No parque do Kastelo, a alegria das crianças é sentir o vento e a água no corpo
O Kastelo, o único centro do país de cuidados continuados para crianças com doenças crónicas, ganhou um parque com muita água para os que não podem ir aos parques aquáticos tradicionais, porque estes não estão adaptados às suas necessidades. A inauguração é esta quinta-feira. (...)

No parque do Kastelo, a alegria das crianças é sentir o vento e a água no corpo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.8
DATA: 2018-08-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Kastelo, o único centro do país de cuidados continuados para crianças com doenças crónicas, ganhou um parque com muita água para os que não podem ir aos parques aquáticos tradicionais, porque estes não estão adaptados às suas necessidades. A inauguração é esta quinta-feira.
TEXTO: Não há escorregas nem piscinas ou canoas que andam em carris a alta velocidade. Mas “Gabi” não se importa. Nem ele nem os outros miúdos para quem a água que agora jorra no jardim do Kastelo é mais do que suficiente para os fazer sorrir. “Enfermeira Teresa, por que é que o parque se desligou?”, repara “Gabi”, mal os repuxos de água param. “Gabi” ou António Gabriel Ferreira Pinto — foi ele quem se apresentou assim — tem cinco anos e é um dos 23 meninos que o Kastelo, em Matosinhos, o único centro do país de cuidados continuados para crianças com doenças crónicas, acolhe no momento. “Gabi” foi saudável até aos três anos, mas uma infecção, cuja origem ainda é desconhecida, atingiu-lhe toda a parte motora. Já foi ao banho no novo (e único) parque lúdico de aparelhos aquáticos, adaptados a crianças com mobilidade física muito reduzida, que o Kastelo vai inaugurar esta quinta-feira. Tê-los debaixo de água e sentir-lhes a alegria faz, por momentos, esquecer — a eles e a nós —, as limitações que os tornam diferentes e lhes vão diariamente complicando a vida. Há uma semana e meia que Teresa Fraga, a directora técnica, enfermeira especializada em cuidados intensivos pediátricos, que pôs este Kastelo de pé, diz que ali se faz história. "Faz-se história porque crianças ligadas a um ventilador podem agora frequentar um parque diariamente". É o caso de “Gabi” e de Albino que não vivem sem ajuda para respirar. O parque fica nas traseiras do edifício principal, rodeado de um enorme jardim, uma horta, uma quintinha com ovelhas, numa área plana onde é fácil levar as crianças de cadeira de rodas e pô-las debaixo da água. E fica junto a umas grandes tílias que lhes dão a sombra que precisam depois do banho. A água jorra por repuxos que saem do chão, ou por equipamentos mais elevados, que permitem que os meninos e meninas que conseguem pôr-se de pé possam lá andar por baixo. “O importante aqui é o lazer, a estimulação sensorial, a reabilitação e, claro, a brincadeira”, nota Teresa Fraga. A construção de um parque aquático no centro até nem estava nos planos da directora. Mas um dia, no Verão do ano passado, mostraram-lhe uma notícia sobre a abertura de um parque aquático no Texas para crianças com deficiência. Trata-se do Morgan’s Inspiration Island, na cidade de San Antonio, no Texas. Abriu em Junho do ano passado e é o primeiro parque aquático no mundo pensado para receber crianças com problemas de mobilidade. Oferece, por exemplo, cadeiras de rodas impermeáveis, tem um sistema de controlo da temperatura de água, para que quem tem sensibilidade ao frio possa usufruir de todas as actividades, tem áreas silenciosas para pessoas sensíveis ao ruído e pulseiras que localizam crianças que se percam. Leu o artigo, contactou uma associação americana envolvida no projecto, e chegou à conclusão mais óbvia: era "importantíssimo" que estes meninos tivessem a oportunidade de estar num parque com água como aquele. A partir daí, reuniram-se grandes doses de persistência para pôr de pé esta obra. Com a campanha “70 Mecenas no Kastelo”, um evento de angariação de fundos, angariaram 70 mil euros, que cobriram metade do investimento ali feito. “Para já, é o suficiente para estas crianças”, diz Teresa. Foi mais um passo para tornar a vida destes miúdos o mais próxima possível da dos meninos mais saudáveis. “Para as crianças foi dar-lhes qualidade de vida, aumentar-lhes a esperança e fazer com que elas se sintam iguais a outras crianças consideradas saudáveis”, sublinha. O Kastelo não quis que estas novas valências ficassem apenas reservadas a quem é utente do centro. Por isso, aos sábados e domingos durante a tarde, de Maio a Setembro, as portas vão estar abertas a quem quiser usufruir do espaço. Terá o custo de cinco euros por família. Enquanto esperam por entrar na água, estão atentos à banda que ensaia a apresentação para a inauguração. E “Rafa” está desejoso por entrar na água, diz Teresa, que já lhe conhece as manhas de ginjeira . Rafael tem cinco anos, ainda que a idade aqui seja um mero número e não conte muito para o acompanhamento que é feito a estas crianças. “Nós não funcionamos com a idade, é mais com as competências que eles apresentam”, diz Raquel Pereira, 24 anos, a terapeuta ocupacional que o acompanha. “Rafa” tem um traumatismo cranioencefálico. Teve um desenvolvimento normal até cerca dos dois anos, mas depois um acidente deixou-o com dificuldades na mobilidade e sem expressão. Nos últimos meses, sublinha Raquel, tem mudado muito. “Já é possível perceber o que ele gosta, o que não gosta”. O trabalho de Raquel é expor estas crianças aos diferentes estímulos do meio ambiente, trabalhar a parte sensorial. A ocupação delas é brincar, por isso, parte da avaliação que lhe é feita, tem em conta a forma como o fazem. “Muitas destas crianças nunca tiveram experiências como outros meninos da sua idade”, repara. O parque aquático acaba por ser diferente nisso, ao dar-lhes oportunidades que eles nunca tiveram. “O importante é mesmo a qualidade de vida, o relaxamento, o conforto”, nota. O trabalho que é feito pelos profissionais deste centro acaba por ser muito multidisciplinar. “Aqui trabalhamos muito em equipa. Nota-se muita diferença dos outros sítios por causa disso. Acaba por ser a nossa família também, como se fossem os nossos primos, os nossos filhos”, sublinha a terapeuta. Neste momento, o centro acolhe 23 crianças, das quais 20 (dez internadas e dez em regime de ambulatório) estão ao abrigo da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, e três são particulares. Têm doenças metabólicas e neuromusculares, paralisias cerebrais, traumatismos cranioencefálicos e doenças auto-imunes. Rodrigo, de nove anos, tem uma paralisia cerebral, que o faz ter uma mobilidade mais reduzida. Entrou no ano passado para o centro, e o progresso tem sido lento, mas Rodrigo "tem ganhado algumas coisas". Já é capaz de dar alguns passos com ajuda, explica Helena Teixeira, 25 anos, fisioterapeuta enquanto o põe na água e começa a trabalhar-lhe as coxas para que ganhe mais mobilidade e seja “mais eficaz na marcha”. As primeiras vezes que começaram a trabalhar no chão ele resmungava muito, conta. Não havia riso para ninguém. Mas assim, sob a água, nem parece que estão a trabalhar, nota a técnica. “Para todos os profissionais foi uma aprendizagem e uma maneira de eles evoluírem e crescerem. De aprenderemos todos a gerirmos as nossas emoções, porque não é fácil trabalhar aqui. Nunca sabemos quando a doença crónica nos pode acontecer”, diz Teresa. Teresa Fraga, de 55 anos, já viu “muito sofrimento, muito desespero” nos corredores do hospital. Enfermeira especialista, sempre trabalhou nos cuidados intensivos neonatais e pediátricos em hospitais do Porto. Um dia, conta como uma mãe a marcou. O filho nascera “com problemas gravíssimos” e os pais, ambos com 21 anos, não tinham onde o colocar. “Foi um desespero”, recorda. Quando passava em frente da casa onde hoje é o Kastelo, em São Mamede de Infesta, dizia para si muitas vezes: "Se me saísse o Euromilhões, comprava esta casa para criar aqui uma instituição para as crianças com necessidades especiais. Para ajudar as mães a ter mais qualidade de vida". O certo é que a 24 de Junho de 2016, mesmo sem Euromilhões, conseguiu abrir as portas da primeira unidade de cuidados continuados e paliativos pediátricos do país e na Península Ibérica, diz a sua fundadora. A associação Nomeiodonada, à qual Teresa preside, transformou um antigo palacete num centro que quer dar a meninos com doenças graves e incuráveis, alguns em fase terminal, uma vida o mais normal possível, reduzindo o tempo que somam fechados em hospitais. Além de dirigir o Kastelo, Teresa ainda trabalha nos cuidados intensivos pediátricos no Centro Hospitalar do Porto. "Também não podemos perder aquela mão, aquele traquejo para ajudar estes meninos". Com ela, trabalham 34 profissionais ali no centro, entre terapeutas, o professor e a educadora, a psicóloga, a assistente social, auxiliares e enfermeiros. O centro tem capacidade para 30 crianças. Desde a abertura, já apoiaram cerca de 70 que chegaram de Beja a Mirandela. O trabalho que é ali desenvolvido valeu-lhe um lugar entre os quatro finalistas portugueses (a par do Instituto “i3S”, do Centro de Negócios do Fundão e do Museu do Património da Vista Alegre) dos Prémios RegioStars, atribuídos pela Comissão Europeia, e que visam destacar projectos originais e inovadores apoiados por fundos europeus. Os vencedores serão conhecidos a 9 de Outubro. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Teresa Fraga costuma dizer que "sentir o vento é sinal de liberdade, de que não se está fechado". Por isso, ali a criança só usa o quarto para dormir à noite. Não estão acamadas. Vão circulando, mesmo os que precisam de ajuda para respirar. Aqui, não há limite para a felicidade das crianças. “Basta vê-los que ficamos logo satisfeitos. Eles acabam sempre por nos ensinar muita coisa”, diz a enfermeira. Estas crianças são diferentes, têm mais esperança. O “Gabi” costuma dizer que um dia ainda vai andar, correr. Não sabe se tal será possível ou não, mas a esperança mantém-se nele. A filosofia do Kastelo “é dar vida aos dias das crianças e não dias à vida”. Que vivam intensamente cada dia, já que o futuro deles é o agora. Que vivam sempre com a alegria de poder sentir o vento e a água a bater-lhes no corpo.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave filho ajuda social criança doença corpo
O riso de Agustina
A história de Agustina Bessa-Luís é a história de uma figura iconoclasta. Mesmo depois de a saber, e até de a compreender, não se acredita que exista uma criatura assim. Adentrámo-nos nesta estranheza pela mão da filha, Mónica Baldaque. Entrevista de Anabela Mota Ribeiro (...)

O riso de Agustina
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-06-06 | Jornal Público
SUMÁRIO: A história de Agustina Bessa-Luís é a história de uma figura iconoclasta. Mesmo depois de a saber, e até de a compreender, não se acredita que exista uma criatura assim. Adentrámo-nos nesta estranheza pela mão da filha, Mónica Baldaque. Entrevista de Anabela Mota Ribeiro
TEXTO: “Esta é a minha história que a memória abreviou. . . ”, escreve Agustina Bessa-Luís na sua autobiografia. Uma história em que são protagonistas um pai jogador que vivia entre a presa e o predador, uma mãe que repetia provérbios, uma figura inverosímil de quem herdou o espírito aventureiro, o avô Lourenço. Os gregos diziam que Eros tinha duas setas diferentes, uma de chumbo e outra de ouro. A pessoa atingida pela primeira sofria a paixão, a pessoa atingida pela segunda era o objecto da paixão. Eram duas formas de a paixão ser vivida. O que há de mais enigmático na natureza humana parte daí. ” E qual é a paixão de Agustina? “Começa por ser eu própria. Não posso viver sem essa paixão, que não tem outra significação senão a aliança profunda com a vida humana. ” Agustina, a enigmática, diz coisas que iluminam o coração da vida. Isto que acabaram de ler, disse-o perante uma plateia, em Serralves, em 2003. Disse-o como quem escreve páginas de um romance, revelando uma vontade indómita, cosida com a raiz da existência. Escritora amada, Agustina Bessa-Luís pertence à categoria dos que transformam a sua idiossincrasia num elemento reconhecível por todos (mesmo pelos que não a leram ou conhecem de perto). Como é o mundo agustiniano? É sem catalogação possível, pasmoso, livre. Esta semana, Agustina faz 92 anos. Este ano, passam 60 anos sobre a edição d’ A Sibila. Nos dias 14 e 15, discute-se na Gulbenkian a Ética e a Política na sua obra, no primeiro congresso internacional dedicado à autora organizado pelo Círculo Literário Agustina Bessa-Luís (www. clabl. pt). A obra continua a ser reeditada (Os Incuráveis é a peça mais recente). A conversa com a filha, Mónica Baldaque, permite saber de uma mulher e de uma escritora. Que são uma, como se verá. Agustina está retirada desde 2006. Deixou de escrever. Como olharia para a maneira como olhamos para ela? Rindo-se. Seguramente. Como é que vamos apresentar Agustina? A genial?, a sem medo?, a perversa?, a barroca (assim lhe chamava Óscar Lopes)? Estes são alguns dos epítetos mais comuns. Todos lhe servem. O que é para além disso talvez não tenha definição. Verdadeiramente, aquilo que ela é está no riso. No riso?É uma das características fundamentais da minha mãe, da vida dela e do estar dela com os outros. O riso não tem que ver com a troça. Tem que ver com um segredo, com o mistério, com o estar numa outra dimensão. Há um provérbio judaico que diz: “O homem pensa, Deus ri. ” Acho que aí a minha mãe está perto de Deus. O riso dela é como se fosse o riso de Deus. O riso de quem tudo vê? E que compreende, engloba a totalidade do que vê. Sim, sim. E de quem sente uma harmonia em relação a tudo. Nas coisas triviais, o que é que a fazia rir? Num plano mais imediato, fazia-a rir o absurdo. Situações absurdas. A resposta de um taxista, um comentário de uma pessoa na rua. A par do riso, vinha a nota, o explorar a situação na escrita. Ocorre-lhe uma situação absurda de que tenha tirado prazer e riso?Era tão constante. . . A minha mãe tinha uma modista de quem gostava muito e onde ia frequentes vezes. Essa modista, que era uma mulher muito Porto, de classe média, tinha um neto com um atraso ligeiro. Muito mentiroso. Uma vez, a avó estava muito preocupada porque ele nunca mais aparecia. A certa altura aparece com ar tranquilo. A avó, aflita: “Onde é que estiveste?” Ele explica, virado para a minha mãe: “Aconteceu-me uma coisa muito estranha. Vinha para cá e vinha um senhor na minha direcção. De repente, o nó da gravata dele começou a desfazer-se. A gravata escorregou por ele abaixo e enfiou-se num bueiro. Fiquei a olhar para o senhor, o senhor a olhar para mim. Estávamos sozinhos na rua — o que era absurdo, porque era a Rua de Cedofeita — e tentámos tirar a gravata do bueiro. Não conseguíamos, e começou a vir gente que estava às janelas. Perdemos este tempo todo e não conseguimos tirar a gravata, avó. ”Foi um delírio. A minha mãe divertiu-se imenso com esta história. Gostava imenso de ir à modista para que esta lhe contasse histórias do neto. Portanto, o que contradiz a pompa, o que escangalha o composto, a vitalidade das pessoas comuns, a sua imaginação sem rumo — tudo isto a prendia. Sim. No inconsciente, [o rapaz] achou que a minha mãe seria a interlocutora ideal para uma história absurda como aquela. Acho que chegou a escrevê-la. Voltemos às definições iniciais: a sem medo. N’O Livro de Agustina, escreve: “Aos três anos, em Espinho, eu saí do hotel, sozinha, com um vestido de voile azul-claro e um ar de grande aventura. Tenho ainda essa aspiração de caminhar sem rumo, dizem que é um fio de epilepsia. Talvez seja. Talvez a liberdade seja um sintoma epiléptico. ”A relação com o medo. . . A mãe herdou isso, como eu herdei, e os meus filhos herdaram, da família. A sensação de ter medo — dos outros, de alguma coisa, de uma situação — foi coisa que nunca existiu. Estava completamente banida. É na família que a minha mãe pega. Diria que em quase todos os livros aparece alguém. Utiliza-os como figuras que estão guardadas na caixa e que vai buscar, de vez em quando, para fazer este papel, e aquele e aquele. Como é isso possível, ainda mais numa sociedade amedrontada como a nossa? Temos medo de pessoas, do futuro, da guerra, do concreto e do inconcreto. Penso que essa ausência de medo vem de uma segurança que a pessoa tem em relação a si própria. Com a certeza de dominar o que quer que seja. Sentia isso no meu avô, no pai da minha mãe. O pai é uma figura fundamental na vida de Agustina. Tem a certeza de que pode dominar um cataclismo. De onde lhe vinha essa confiança?Em primeiro lugar, era um jogador. Agustina diz que o pai lhe paga a edição d’ Os Super-Homens, “não porque acreditasse muito nela, mas porque não perdia a ocasião de apostar num provável vencedor”. Era um grande jogador. Depois era um aventureiro. Um homem que saiu de Portugal criança, com 12 anos. Foi para o Brasil, para fazer fortuna. Foi à aventura e aguentou-se. O que contava da experiência no Brasil era muito pouco. Imaginamos o que não terá vivido por lá. . . O que é que imaginavam? A sua mãe falava disso? Ela queria saber o que tinha sido essa vida no Brasil?Pouco. Deve ter passado maus bocados. Foi trabalhar com um tio, muito pouco tempo. Rapidamente se desinteressou. A vocação dele era jogar. Tudo o que pertence a esse mundo, com certeza não é o mais saudável, o mais honesto. Nunca ouvi da sua mãe um juízo sobre a vida do pai no Brasil ou sobre o seu passado mais dúbio. Nunca houve em ninguém. O avô da minha mãe acedeu a que a filha casasse com esse homem, sabendo da vida dele, e aceitando com gosto que entrasse para a família. O avô é uma personagem, e de que maneira! A minha mãe pega nele n’Os Incuráveis (que saiu agora, em reedição). A grande figura da família é ele, o avô Lourenço, que era um homem do Douro. O pai (da minha mãe) era de Amarante. A gente de Amarante era muito valente. Grandes jogadores de pau. O Zé do Telhado foi mestre de pau do avô Lourenço. Tinha um pé, sempre, fora da lei. Um bocadinho. Só o bastante para lhe dar um certo entusiasmo. Esse pé fora da lei dava-lhes uma graça romanesca. Pai e avô parecem personagens de romances de meninas bem comportadas, que arrebatam e insubordinam a ordem estabelecida quando chegam — na transgressão. É. [riso]Do lado da sua avó materna, a família era mais regular. Sobre o encontro da mãe e do pai, lê-se n’O Livro de Agustina: “Há uma cena num filme de Manoel de Oliveira, o Vale Abraão, em que um desconhecido, num restaurante, lhe oferece um prato de figos. Foi assim que meu pai abordou a jovem Laura, que estava vestida de preto, não por luto mas por promessa. ”Fui muito criada com a minha avó. Sobretudo depois de ela morrer, fui refazendo muitas das suas atitudes. Acho que a minha avó fingiu muito, toda a vida. Fingiu! Senão, porque é que casou com um homem daqueles? Alguma coisa a leva a escolher isso. Devia casar com um advogado, um engenheiro, um homem mais certo. De resto, teve essa oportunidade. O grande gosto da vida dela teria sido ser actriz. Em criança e adolescente, representava, dizia poemas. Claro que foi reprimida pelos pais porque isso tinha uma conotação muito duvidosa. Agustina fala muito do gosto que tem pelo music hall, por ver as bailarinas enfileiradas. Ela mesma queria ser bailarina. E tinha uma paixão pelo cinema. Mas não sabia do gosto da mãe pela representação. A mãe e a tia. Essa tia ficou sempre solteira. Era uma mulher excêntrica. A minha mãe retrata-a numa série de livros. Era espanhola, como a minha avó, e tinha atitudes incríveis, que divertiam toda a gente. Por exemplo, ia às mesmas modistas da irmã. Modistas caras. Vestiam muito bem. Quando chegavam a casa, a primeira coisa que essa tia fazia aos vestidos era cortar-lhes as mangas. E andava assim, com aquilo esfarrapado. Estou a ouvi-la falar dessas pessoas e percebo que Agustina é uma síntese de todas essas criaturas, singulares, não conformes. Por outro lado, faz deles uma matéria-prima privilegiada para os romances. Os personagens dos livros, mais do que tudo, são a família?Sim, é na família que a minha mãe pega. Diria que em quase todos os livros aparece alguém. Utiliza-os como figuras que estão guardadas na caixa e que vai buscar, de vez em quando, para fazer este papel, e aquele e aquele. Utiliza-os na escrita com uma sofreguidão de vampiro. Diz na autobiografia: “Escrever, entrar no coração das pessoas, beber-lhes o sangue, avançando sempre, criando enredos e fazendo saltar os personagens das páginas. Há pouca gente que percebe que escrever é uma espécie de danação em que às vezes se têm encontros com Deus. ” Quem foram as pessoas a que recorreu mais e que transformou em personagens?A mãe dela. A tia. O pai. Imensas vezes. O avô Alfredo, inúmeras vezes. O tio, irmão da mãe. Foi uma pessoa que ela adorou e que morreu jovem. Há uma carta que ele escreve à minha mãe (ela tinha 12 ou 13 anos) de Moçambique, onde estava a trabalhar como engenheiro: é assombrosa. Falava de quê?Em todas as cartas que escreveu, e escreveu muitas, sobretudo à irmã (minha avó), falava do país, da vida, das pessoas. O gosto pela escrita na minha mãe vem também do tio e do avô. O avô Lourenço escrevia com pretensões. Vemos isso no diário que deixou. Há nele uma escrita e uma intenção peculiares; e uma vontade de que aquilo venha a ser lido pelos descendentes. Morreu quando a minha mãe tinha três anos. Como foi tão forte a marca dele se conviveram tão pouco?Ele morreu, mas dá-me a impressão de que permaneceu. A memória do que foi a vida dele chegou até mim. Qual é o essencial da história do avô Lourenço, que fascinou tanto a sua mãe?Ela lembra-se de ter subido para a cama dele, onde estava doente. Mas não pode lembrar-se de mais. Foi um homem que teve uma vida no Douro, numa terra pequenina. Estudou. O pai morreu quando ele tinha 13 anos. Herdou uma fortuna, à época grande, que estourou em muito pouco tempo. A minha mãe nunca se entendeu a si própria como uma personalidade resolvida. Estou a dizer-lhe isto a partir da leitura de cartas que tenho feito. Cartas à mãe dela. Sempre escreveu à mãe de uma forma que não é muito normal. Era como se escrevesse a si própria. Estourou em quê?Estroinices. Mulheres, jogo?Jogo, não. Não era dado. Em negócios que não resultaram. Em viagens. Gastou de uma maneira pouco previdente. Entretanto, teve um padrasto porque a mãe casou de novo. Era um intelectual, que tentou que o enteado estudasse. Realmente consegue fazer o curso de Engenharia. Trabalha no Norte, em Espanha, em África. Casa uma primeira vez com uma mulher muito excêntrica, de Santa Comba Dão. Ao que dizem, rica. Tiveram dois filhos. O rapaz epiléptico, a rapariga tuberculosa. Casa uma segunda vez com a espanhola, a minha bisavó. E tem sempre uma vida e umas atitudes inesperadas. No dia em que vai para Lisboa para embarcar para África, a mulher está a dar um lanche às amigas, na casa do Douro. Ela recebe um telegrama a dizer que ele está a embarcar. E tudo isto é recebido com naturalidade. Pelos filhos, pela mulher. A vida continua. O marido viria, um dia. Havia essa liberdade que uns davam aos outros de ser como eram. Ninguém tinha medo de magoar o outro? É, muitas vezes, o que tolhe as pessoas, este afecto. Acho que não. Nunca se pensou nesses termos, magoar. “Ele é assim. ” Havia um respeito, acima de tudo. Um respeito pela individualidade, pela sua vontade. Total, sim, sim. Além de usar estes personagens, usa-se a si mesma? Em que livros Agustina está mais na primeira pessoa?Não como personagem central, mas, às vezes, sinto-o, Agustina aparece intrometida numa personagem. Dá a impressão de que aquela personagem não diria aquilo. É ela, Agustina, que está a dizer. Porém, há uma personagem que é ela do princípio ao fim. A Germa, d’ A Sibila. Essa é ela há 60 anos. É a mesma que foi sendo, pelos livros fora? Parece que Agustina é sempre Agustina, que estamos a lidar com as mesmas pessoas, os mesmos temas. Apesar dos sucessivos livros e de diferentes registos. Completamente de acordo. Depois, há obras que saem um bocadinho disso. O Vale Abraão, a Fanny Owen. No Vale Abraão estou a ver essas tias, figuras durienses. São pessoas de lá, que existiram, com quem Agustina teve convívio. De certo modo, são um prolongamento da família. A Fanny é uma história exacta, com aquelas pessoas, que existiram. As pessoas existem ou existiram sempre? Agustina repetia que não tinha imaginação. Existiram. Propriamente inventar, a partir de coisa nenhuma, não inventava. Vai buscar aquilo que acha que é traduzível em romance ao concreto. A teia principal é constante. O que é que apontaria como traços dominantes nesta manta?O que está sempre lá são as relações familiares. É uma constante e uma preocupação. Explorar até ao infinito essa dinâmica. E daí se compreende o fascínio por Freud, que leu, e a que voltou, recorrentemente, como quem lê um grande romancista. Freud, Jung, devorava. Devorava e estudava. Tentava compreender as pulsões? Ouvir o inconsciente?Sim. Nessa procura de entender a alma, ela estava sempre incluída. De uma forma discreta. A minha mãe nunca se entendeu a si própria como uma personalidade resolvida. Estou a dizer-lhe isto a partir da leitura de cartas que tenho feito. Cartas à mãe dela. Sempre escreveu à mãe de uma forma que não é muito normal. Era como se escrevesse a si própria. A mãe era um interlocutor seguro, que saberia ouvi-la. O que a minha mãe dizia caía num poço, não era comentado, não era censurado. Em que circunstâncias escrevia cartas à mãe? Em que períodos?Sempre. Toda a vida escreveu à mãe. Como quem fala. Como quem fala a pensar. Acho que a minha mãe não é uma pessoa que se ame. Reconhecemos nessas cartas a escrita, o olhar da Agustina? Podiam ser páginas de romance?Hum. Algumas, talvez. Há descrições que podiam fazer parte de um romance. Mas não era a intenção dela. A intenção era a de se centrar nela. Essas cartas aproximam-se mais do registo de um diário?Talvez. [Aproximam-se] do diário, da confissão. Confissão no sentido de tentar explicar a sua atitude perante muitas coisas. Não é uma confissão de uma culpa. É no sentido de uma entrega e da interrogação. Ela confessava-se à mãe sem biombos?Sem biombos. Foi uma correspondência que li há bastante tempo, não me lembro bem. . . Tudo isto está a ser objecto de trabalho sistemático por parte da Lourença [filha de Mónica e neta de Agustina]. Podia confessar a sua vulnerabilidade?A minha mãe, vulnerável?Agustina era vulnerável a quê?Verdadeiramente, a nada. [riso]Temos a ideia de que todos temos zonas de sombra e vulnerabilidade. Não consigo descobrir. A minha mãe, às vezes, era, não direi vulnerável, mas sensível à injustiça [de que era alvo]. Mas rapidamente transformava isso noutra coisa qualquer. Num vestido, numa carteira. Nem sequer isso [a injustiça] permanecia muito tempo. A relação de Agustina com a mãe é central. Mas esta parece ter uma rivalidade que não existe na relação, igualmente central, com o pai e o avô. Concorda? Não parece uma relação cúmplice. . . Acho que a relação mãe-filha, filha-mãe é das coisas mais misteriosas que há. É tão forte, tão violenta, tão inacessível o profundo dessa relação. É impossível definir por palavras. Cumplicidade é uma palavra que eu retiraria. Seja qual for a mãe, seja qual for a filha. É de uma relação superficial. A minha mãe tentou, tentou, trabalhou esse tema em toda a obra. Está para lá do amável, do compreensivo, do necessário. A obra em que senti que havia uma aproximação mais forte a esse tema é A Ronda da Noite. Foi o último livro que escreveu. Sinto que foi a despedida, consciente. Nunca a vi trabalhar com um esforço interior tão grande como na escrita desse livro. Havia uma entrega, uma ausência. . . A minha mãe sempre escreveu mantendo a disponibilidade em relação a toda a gente, à família, aos problemas domésticos. Nesse, não. Voltamos à Ronda mais tarde, quando falarmos da última etapa. Ainda em relação à mãe dela: a mãe rasgou o testamento do avô de Agustina dizendo que ela não precisava dele; já tinha a inteligência, que era o seu tesouro. Claro! [riso]Claro? O que isto pressupõe é a plena consciência, de todos, da inteligência prodigiosa de Agustina. Encarada como um dom. Mas o episódio traz-me a competição entre elas. Numa frase: será que Agustina se sentiu muito amada pela mãe? Admirada, sabemos que sim. O que é que eu acho? Acho que a minha mãe não é uma pessoa que se ame. Como?Não! Ela é de tal maneira uma força tão poderosa, tão poderosa, que nem em criança podia suscitar esse sentimento. Então suscita o quê? O espanto? A assombração?Suscita temor. Porque não se reconhece aquele objecto estranho?É. Inclusivamente a mãe dela. Havia uma cerimónia entre as duas. Também em relação aos amigos. Ao irmão. Até o pai. Sendo ele um homem tão independente e tão seguro, tinha uma cerimónia em relação à filha. Não tem que ver com amor. Por isso ela diz: “Nasci adulta, morrerei criança. ” Como criança adulta, não suscitava esse amor. Suscitava o desafio. Os outros sentiam-se desafiados pela sua presença. Presença, apenas. Nem era preciso mais. Isso manteve toda a vida. É muito impressionante o que diz. O que nos liga, em primeiro instância, é o amor. Mas no caso de Agustina parece que falamos de uma criatura que não obedece a nenhum destes critérios, a nenhuma destas regras de funcionamento. Foi assim que ela se habituou a olhar para ela mesma. Repare no amor, nas obras. Como é que ela o trata? Está-se sempre na iminência de um estado de amor. Mas está-se sempre na iminência de esse estado se transformar noutra coisa. Que vem a ser a coisa importante. Uma guerra. Um crime. Estou a lembrar-me da Fanny. O desenvolvimento [da história] conduz à morte dela, quase por vontade própria, à morte dele, também, porque não há outra saída. A morte traduz a falta de imaginação para resolver situações difíceis. Na Ema [Vale Abraão], como é que se resolve o amor? Com a morte dela. Como é que A Sibila resolve uma tentação de um estado de amor? Morre. O amor é sempre um empecilho. Ou um caminho para qualquer coisa. Um caminho. No caso de Agustina, essa outra coisa que é linda, para citar o poeta, nunca é o amor. Não, não é. Nunca descobri que essa outra coisa fosse o amor. E o sexo, que importância tem no universo de Agustina? O sexo é olhado como uma força geradora, animal, que não sabemos de onde vem. A sua importância reside no facto de ser um motor, um agente de mudança?Na vida familiar, o sexo não era referido como matéria relevante. Mesmo comigo, nunca houve uma atenção especial sobre isso. Embora eu sinta nos livros que aparece com um certo poder. Mas é sempre, também, transformável noutra coisa. Dá a impressão de que são passadas que a minha mãe dá. Depois varre e caminha em frente. O choro era uma coisa que não imaginava nela. E era completamente insensível quando me via chorar. Queria era afastar essa imagem de ao pé dela. Achava que era uma perda de tempo. Abordámos a ideia de Agustina estar pronta desde sempre, madura à nascença. O retrato que dá dela n’ A Sibila é prova disso. Esta ideia está também contida no aforismo que já citou: “Nasci adulta, morrerei criança. ” Há também uma famosa carta de Teixeira de Pascoaes que se refere à estreante Agustina como uma “escritora dotada do instinto do real” — o que poderíamos, ainda hoje, dizer. O que é que ela dizia acerca deste tema?Sempre sentiu que estava preparada, segura. Considerava isso um dom. E que tinha vindo ao mundo, a este tempo com um propósito. Mas que não se esgotava aí [nesse tempo]. [Nos estudos que temos feito], estamos na fase “Agustina e o inacabado”. É isso. A própria vida de Agustina é um inacabado. Tudo isto vai continuar. Tem outros capítulos. Os outros capítulos serão, por exemplo, uma exegese da sua obra?Não, serão ela própria, noutra galáxia. [gargalhada]Sempre teve a noção de ser imortal? De resto, numa entrevista, falando do post-mortem, disse: “Nem todos podem ser imortais. ” Com a clara noção de que ficava. Volto a dizer: isto não é uma prerrogativa da Agustina, achar que é imortal. Todos na família acham que são imortais! Até porque não dão muita importância à morte. O facto de uma pessoa morrer. . . Continua-se com o almoço, com o jantar, com as rotinas. Como se fosse — e é! — a coisa mais natural sair daqui e ir para outro sítio. Nunca foi empolado [o tema da morte], nunca foi drama. Desaparecer daqui não quer dizer que não permaneça de outra maneira, com outra forma de presença. Como é que foi quando morreu o pai?Foi uma morte esperada, porque esteve muito tempo doente. Estávamos a viver em Esposende nessa altura. A minha mãe sentiu a partida do seu pai com desgosto. Nunca a vi chorar. Nunca chorou à sua frente mas percebia que ela chorava, sozinha?Eu nunca a vi chorar. Não sei se chorava. Nunca pressenti que pudesse ter estado a chorar. O choro era uma coisa que não imaginava nela. E era completamente insensível quando me via chorar. Queria era afastar essa imagem de ao pé dela. Achava que era uma perda de tempo. E desnecessário. O que a vi reter da morte do pai foi a descrição do dia e do que aconteceu quando saiu o caixão do Douro para o cemitério de Travanca. Foi um nevão enorme, que cobriu tudo. Já em Março. A minha mãe reteve isto como um sinal. Um sinal de qualquer coisa, não sei o quê. Mas para ela foi importante. Noutra entrevista, que lhe fiz em Serralves, perante a plateia, em 2003, refere-se à quantidade de pessoas que assistiram ao funeral, apesar do frio e da neve. Ficou tocada com isso. Estava muita gente a esperá-lo. Pessoas até que ela não conhecia. E uma figura misteriosa. Apareceu ao longe, comovido, homem. A minha mãe fixou-o. Nunca soube quem era aquela figura. Diz de si, jovem: “Meu irmão dizia aos amigos que eu era um génio, o que não ajudava nada. Nesse tempo trocava correspondência com desconhecidas só pelo gosto epistolar, e via que exercia um poder sobre elas que não era vulgar. Não as considerava amigas, mas sim o pretexto para eu escrever mais e mais. ‘Eu não preciso de amigos, preciso de quem me leia’, dizia eu. ” Sempre teve a noção do seu valor. Sempre. E nunca teve dúvidas de que ficaria?Várias vezes a ouvi dizer que a obra estava fora do tempo. Que poderia vir a ser importante mais tarde. E entendida de outra maneira. Nunca a viu com angústia em relação ao que fazia?Não!Como é que era a cara dela a escrever? Via-a?Às vezes, via. Ficava completamente entregue e ausente de tudo o mais. Faz-me essa pergunta e lembro-me de situações. . . Uma vez, tinha seis, sete anos, entrei na sala onde a mãe estava a escrever. Com a prancheta nos joelhos, a manta nos joelhos. Quase tive medo. Só de olhar para ela. Porque não era a minha mãe. Era uma pessoa que estava ali de tal maneira compenetrada em qualquer coisa que eu não sabia bem o que era. . . O que é que podia provocar aquele ar, aquele transe?Estava enovelada sobre si?, fisicamente essa era a posição?Sim, e num maple com orelhas, o que também a envolvia. É sabido que o seu pai, de quem não falámos ainda e que tem uma importância enorme na vida da sua mãe, passava à máquina os manuscritos. Esse processo fazia-se como?O meu pai não se limitava a transcrever. Havia coisas que não percebia. Ou não percebia a letra, embora estivesse habituadíssimo a ela, ou achava que o sentido não era claro. Fazia observações. Era sempre muito mal recebido! A minha mãe acabava de escrever um livro e desligava-se em absoluto dele. Já nem sabia quem era fulano nem sicrano. Logo?Era um desligar imediato. Portanto não se interessava. Não queria voltar à história. Era o pior tempo da casa, esse em que o meu pai estava a passar à máquina. Era o mais desestabilizado possível, uma guerra entre duas linguagens. Era a fuga da minha mãe a dar qualquer explicação e a insistência do meu pai, com a formação do Direito, e a exigência do rigor, do que tem de ser bem entendido, a querer obtê-la. O meu pai foi fundamental. Não só no trabalho de transcrição como no de procura de documentos, livros, leituras. A relação deles era muito desigual? Ele tinha o sentimento que se tem por uma criatura tão singular como ela, que se idolatra?A ideia que tenho é que havia um entendimento muito profundo entre os dois. E, da parte do meu pai, uma admiração muito grande pela obra da minha mãe; e uma vontade imensa de que fosse reconhecida, bem sucedida nas intervenções públicas. A minha mãe reconhecia as qualidades que o meu pai tinha, e tem. Com ele, não pode haver falhas. A minha mãe é muito mais solta. Se fosse preciso pôr uma data que não correspondia, punha. Achava que tanto fazia. Mas considerava essas qualidades do meu pai importantes para ela. Eram o tipo de casal que tem gestos de carinho ou nunca os viu assim?Vejo agora. No passado, nunca vi. Apesar de sentir que havia uma relação de casal, um tratamento atento e carinhoso. Tocar o ombro, agarrar a mão: só agora? Agora que estão entregues um ao outro e à velhice?Sim. Agora vejo e quase não me apetece ver, sabe? Não é aquilo a que eu estava habituada. É comovente. O tempo e a situação de doença da minha mãe. . . Não sei se lhe podemos chamar doença. Como é que lhe chama?Chamo-lhe uma ausência. Todo este processo da minha mãe é muito complicado, muito estranho. A minha mãe sempre disse que não tinha nada que ver com médicos. Quando começou a ter sintomas de qualquer coisa do foro neurológico, disse que o que tinha era uma depressão profunda. É o que eu acho que ela tem. Começou a aprender a viver com ela. Já lá vão oito anos. Teve um derrame cerebral em 2006, é assim?Dizem que sim. Ela diz que não. Todos os sintomas desse dito derrame foram vindo aos bocadinhos. A fala, o andar, o deglutir. Depois recuperava. Por isso é que nunca achou necessária a presença de médicos. Dizia que sabia o que se estava a passar. Acredito que sim. E lendo o último livro que escreve, [percebe-se] que o que aconteceu a seguir é a sequência natural. O que conta do estado da sua mãe não coincide exactamente com a doença de Alzheimer. . . Mas a [minha] mãe não tem Alzheimer. Então teve um derrame seguido de um apagamento de si própria?Sim. Nunca perdeu a consciência, de quem é, de onde está, da família. Simplesmente fechou-se num quarto. E deixou de escrever. Mantém o gesto, o movimento da escrita. É capaz de escrever. Não é capaz de engendrar um mundo. A caligrafia mantém-se?Agora é natural que esteja mais debilitada, mas até há um ano era exactamente a mesma. Sem hesitação. O que é que escreve? Cartas, notas?Não escreve nada. Nós dizemos: “Mães, escreve esta frase”; e ela escreve, direitinho. A Ronda da Noite, escrito em 2006, meses antes do derrame: é um livro de preparação para a morte?, é um livro de despedida?Preparação para a morte, não. De zanga, porque vai morrer?, porque vai envelhecer?Não. A preparação para a morte: acho que foi a vida toda. A Ronda da Noite foi o registo de uma memória que ela não queria que ficasse dita de outra maneira. Queria que a mãe dela fosse recordada assim. O sítio onde aquilo se passa tem muita importância no imaginário dela. É uma quinta, que foi vendida. Como tudo. Esses rastos de lugares, de casas, a mãe foi-nos apagando. Vendeu não por necessidade?Não por necessidade. Era de família. A mãe dela era assim. Tinha a tentação de mudar. Sair daqui e ir viver para ali. Fechar a casa. Esse gosto nómada, aventureiro, sempre existiu na minha mãe. Encontrei no outro dia, no Eugénia e Silvina, a razão de ser disto: “Um sinal de luto profundo é o abandono do lugar onde se vive e se têm recordações. ” Parei aqui. Pensei se este abandono sistemático dos lugares pela minha mãe quereria dizer luto. Quereria dizer um abandono das recordações? Com certeza, sim. É a cuidadora de uma mãe debilitada e também uma das cuidadoras do seu espólio. Como está entre estes dois papéis?Ao lidar mais de perto, mais atentamente com a obra dela, e sem a palavra dela ao lado, que era o que normalmente tinha (tinha a minha mãe disponível para lhe fazer perguntas), procuro, procuro-a. Leio a obra dela nessa perspectiva: a da razão de ser disto e daquilo, deste comportamento e deste pensamento. Não é bem a escritora. . . É o desvendar, no fundo, da minha mãe. Dela como figura mãe. Ela como figura mãe, ela como pessoa estão na obra que escreveu, nas entrelinhas?Sempre. Agustina continua a ter gosto nos vestidos?Aiii, sim! Sim! De que maneira. Quer dizer qualquer coisa. Lembro-me de ouvir Agustina falar com mais alegria de um bordado do que de Dostoiévski. [gargalhada] Isso continua presente. Aí não houve derrame nenhum! Eu entro na sala; se vou mais bem vestida, porque fui a um jantar ou almoço, a mãe tem um olhar absolutamente fulminante. Chama-me e começa a ver o que tenho. Dos pés à cabeça. Os sapatos, a roupa, a carteira. Olha-me com uma expressão. . . sei lá! De fúria. Como quem diz: “Tu usas isso! Tu podes usar isso. E eu não. ” Não digo que seja inveja. Mas uma certa. . . Impotência perante a velhice? Porque já não pode. Já não pode ir às lojas, já não pode ir a Paris buscar as coisas, já não pode escolher. É a única vez em que sinto que a mãe está na plena posse das suas capacidades. De onde vem este gosto pelos vestidos? Um dos aforismos mais famosos: “O sucesso não vale tanto quanto um vestido novo. ”Tem razão. Não era uma boutade?, acreditava nisso?Absolutamente sim! Há tempos foi lá a casa uma pessoa visitá-la. Muito ternurenta, com aquele ar “coitadinha da senhora dona Agustina”. A mãe ouviu tudo, impassível. A senhora foi-se embora. A mãe: “Estava tão mal vestida!” [gargalhada]Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Extraordinário. É. Articulou tudo muito bem articulado. Enquanto tiver esse gosto. . . É sinal de que está aqui, sendo ela. PUB
REFERÊNCIAS:
Sobre a noite passada: A Guerra dos Tronos é a mais vista – e é a história d’O Dragão e o Lobo
O episódio final da penúltima temporada da série mais popular – bateu novos recordes – deixa os leões para trás e revela novidades para leitores e espectadores. Série pode voltar só em 2019. (...)

Sobre a noite passada: A Guerra dos Tronos é a mais vista – e é a história d’O Dragão e o Lobo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.033
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: O episódio final da penúltima temporada da série mais popular – bateu novos recordes – deixa os leões para trás e revela novidades para leitores e espectadores. Série pode voltar só em 2019.
TEXTO: Este texto contém spoilers sobre o episódio O Dragão e o LoboTantas pessoas, tão pouco tempo. N’A Guerra dos Tronos televisiva houve menos episódios e mais, muito mais gente frente ao ecrã neste Verão de 2017. Mas se A Guerra dos Tronos se fez sempre de tantas, mas tantas pessoas, “quando chegamos ao fim da temporada, o universo contrai-se”, diz um dos seus autores, David Benioff. O Dragão e o Lobo, título simbólico do episódio de fim de temporada, matou e juntou personagens há muito em rota de colisão – e agregou 16, 5 milhões de pessoas só nos EUA. É um novo recorde que confirma o estatuto da série como a maior do momento. O Dragão e o Lobo, transmitido domingo à noite nuns EUA em que competia com os prémios da MTV e com Twin Peaks perto do fim, tornou-se no episódio mais visto de sempre da série. É um crescendo constante, o desta penúltima temporada de uma série televisiva que parece feita à medida para a era Twitter e que, segundo os dados citados pela Hollywood Reporter, só nos EUA tem reunido em torno de cada episódio 31 milhões de pessoas. É um número da “velha televisão”, dos acontecimentos como as finais desportivas ou dos tempos com muito menos canais, especialmente significativo por se tratar de audiências de um canal de televisão pago. Atinge-se juntando expedientes da “nova televisão”, os visionamentos diferidos, o streaming nas várias plataformas oficiais, a compra de pacotes on-demand. Exclui os números internacionais (o primeiro episódio bateu também recordes para o canal português, o SyFy) e os ilícitos, aqueles que fizeram da série uma recordista também da pirataria. Enquanto as audiências se expandem, o mundo criado em 1996 por George R. R. Martin contrai-se, como resumiu Benioff no vídeo Inside the Episode que acompanha cada capítulo no YouTube. Estes clips são também explicadores, não só da intriga mas também das motivações de dois autores – D. B. Weiss e David Benioff trabalham sobre o universo denso de fantasia e guerra que Martin alicerçou em regras bem definidas. Chega-se ao fim com menos gente a bordo (oito personagens e um dragão estão na lista de baixas da temporada) e com todas mais próximas. A intriga pôs pela primeira vez, ou pela primeira vez em muito tempo, uma panóplia de nomes centrais numa arena – os Lannister, os irmãos Clegane, Snow, Daenerys e seus acólitos. “É um desafio, por que há tantas vias diferentes por onde seguir, mas o facto de estarmos centrados no esforço de convencer Cersei [Lannister] a recuar e aceitar tréguas, isso deu-lhe uma espinha dorsal”, diz D. B. Weiss sobre esta escolha. Mas o episódio de 1h20 de duração realizado por Jeremy Podeswa não se chama O Dragão e o Leão, mas sim O Dragão e o Lobo. Animais que simbolizam casas de Westeros, mas também o fogo e o gelo (personificado) que dá nome à série literária que inspira a série televisiva – A Canção de Gelo e Fogo. Esse momento que os argumentistas criaram em torno de uma rainha e de uma casa que já foi grande, a Cersei cuja bandeira tem um leão, só evidencia como as peças antigas estão espalhadas num tabuleiro tomado por novos jogadores. Sejam eles os guionistas Weiss e Benioff e a televisão, sejam os jovens líderes que eliminam um estratego como Mindinho, para quem o caos era uma escada até se revelar, afinal, a morte na ponta de uma adaga. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Há dias, Martin voltou a frisar que “a série de livros e a adaptação televisiva vão por caminhos diferentes”, como disse à edição norte-americana do jornal Metro. Mas Weiss e Benioff claramente ainda sentem o peso da herança dos livros, apesar do novo ritmo acelerado da série e do atropelo de algumas regras de Martin que mantêm plausível e sólido um mundo de dragões, videntes, ressurreições e geoestratégia convencional. Nos últimos minutos do episódio, confirma-se a parentalidade de uma personagem central (senão mesmo titular) e revela-se um dado novo para neófitos televisivos e fanáticos dos livros e do ecrã. “O desafio com esta sequência era encontrar uma forma de apresentar informação que pelo menos uma boa parte do público já tinha de uma forma dramática e excitante e com um novo elemento”, diz D. B. Weiss no vídeo oficial da HBO. Chama-lhe uma “bomba de informação”. Ou, como resume delicadamente Benioff, saber que afinal o famoso Jon Snow é Aegon Targaryen, “o herdeiro de direito do Trono de Ferro” e sobrinho da rainha Daenerys, com quem acaba de se envolver numa relação incestuosa, “enlameia as águas”. Para acabar de contar a história na televisão restam seis episódios, ainda sem data de transmissão – há um ano, já se aludia à possibilidade de a série só voltar em 2019; o director de arte da série disse ao PÚBLICO que em Julho já estaria a trabalhar no terreno na oitava temporada; fontes da produção disseram à Hollywood Reporter que a rodagem começa já em Outubro mas que pode durar até Agosto de 2018. Desde o início que a série tenta dizer, primeiro sussurrando e depois gritando, o que a personagem Jaime Lannister resumiu segunda-feira sem grande poesia: “Isto não é sobre casas nobres. Isto é sobre os vivos e os mortos”. É uma das personagens que muda de rumo e segue um novo caminho, tal como Martin aludia. Alan Sepinwall escreve, no Uproxx, que “A Guerra dos Tronos tem de mudar para a sua temporada final”. Matt Zoller Seitz avisa, no Vulture, que “agora esta [já] é uma A Guerra dos Tronos diferente”. Uma história que envolve milhões de pessoas pelo globo aproxima-se do fim com muitos pequenos clímaxes concentrados nas suas últimas horas de TV. Neste final, a imagem que fica é tanto do novo candidato a rei, um jovem lobo dragão, quanto de outro rei, gélido e ameaçador, a derrubar a única muralha entre o reino dos vivos e o exército dos mortos. "A seguir ao alimento, abrigo e companhia, as histórias são o que mais precisamos no mundo", como diz o escritor Philip Pullman. Esta é contada por dois autores que já mostraram saber qual a rota e as jogadas que a sua audiência e essa categoria apaixonada que são os "fãs" quer ver, mas que jogam com cartas antigas, com marcas que acumulam enormes expectativas.
REFERÊNCIAS:
Eles querem unir o prazer da carne ao prazer sem carnes (no prato)
Pedro Garcia e Catarina Trindade são as caras do projecto Carne, Só Viva. Querem trazer para a discussão sobre o vegetarianismo uma pitada de humor e descontracção. (...)

Eles querem unir o prazer da carne ao prazer sem carnes (no prato)
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Pedro Garcia e Catarina Trindade são as caras do projecto Carne, Só Viva. Querem trazer para a discussão sobre o vegetarianismo uma pitada de humor e descontracção.
TEXTO: Depois de mais de dez anos de vegetarianismo, Pedro Garcia já perdeu conta às perguntas, aos comentários jocosos, aos incitamentos para voltar a sentir o sabor da carne. Qualquer refeição com alguém novo, não-vegetariano, e mais cedo ou mais tarde o inevitável processo repetia-se: a comida ficava a esfriar no prato, enquanto ele tentava responder ao bombardeamento de julgamentos em forma de interrogação. Até que um dia saiu-lhe simplesmente: “Olha, para mim, carne, só viva. ” O inesperado da resposta fez as gargalhadas soltarem-se e, de repente, o ambiente ficou mais leve. “A conversa já não fluiu tanto pela parte alimentar mas pela brincadeira”, recorda. É essa pitada de humor e de descontracção que Pedro e a namorada, Catarina Trindade, querem trazer para a discussão sobre o vegetarianismo (e não só). Em Abril do ano passado, lançaram o projecto Carne, Só Viva, uma “plataforma multidisciplinar dos prazeres da carne e dos prazeres sem carne”, resumem. A ideia é explorar as temáticas da alimentação e do exotismo e da sensorialidade através da ilustração, da fotografia, da escrita e da partilha de receitas. Mas também de marmitas recheadas para o almoço (que comercializam através da Eat me) e, no futuro, de workshops e da partilha de conteúdos e produtos de outras marcas ou associações nas plataformas do projecto. “Também gostávamos de lançar uma revista ou uma fanzine e, definitivamente, um livro. ”Sempre com humor e amor. “Queríamos ver uma abordagem diferente à nossa alimentação porque sentimos que não nos identificamos com a forma como essa comunicação é muitas vezes feita”, conta Catarina, de 27 anos. “É agressiva, julgadora, muito de apontar o dedo e de excluir e nós achamos que não é assim que vamos conseguir mudar quem quer que seja, porque a resposta vai ser agressiva e defensiva”, argumentam. Para eles, a solução passa por dar o exemplo e conquistar as pessoas pelo humor, pela arte, pelo erotismo e, claro, pelo estômago. “E dando espaço às pessoas para se interessarem sem sermos nós a tentar enfiar-lhes isso. Queremos que elas também se sintam entusiasmadas por aderir”, conclui Pedro, 35 anos. Entre as ilustrações que adornam cadernos, t-shirts e aventais, convivem legumes, frutas, corpos nus e órgãos genitais, quase sempre acompanhados por jogos de palavras e apontamentos com a cor criada para o projecto: um irónico rosa carne. Numa das serigrafias, alinham-se três peitos femininos com diferentes tons de pele. “Cru, médio e bem passado”, lê-se por baixo, em inglês. O vegetarianismo entrou nas vidas de Pedro e de Catarina em alturas diferentes — ele não come carne nem peixe há mais de dez anos, ela há dois anos e meio — mas pela mesma porta: o método DeRose. Foi lá que se conheceram, em 2014, na escola do Chiado (entretanto encerrada). Pedro, hoje formador no novo centro, aberto em São Sebastião, explica o conceito: “É uma metodologia de desenvolvimento pessoal que aborda muito a expansão da consciência e do mundo que nos rodeia para, depois, dar-nos ferramentas para sermos mais activos na mudança desse mundo. ”“Para nós, o vegetarianismo é uma questão de valores, de opção, não de gosto”, contam. Pedro adorava um bom bife, pelava-se por frango assado. Catarina era doida por ensopado de borrego. O respeito pelos animais, primeiro, as preocupações com o meio ambiente e com a saúde pessoal, depois, ditaram o fim do consumo. De repente, comer já não era só “meter à boca” ingredientes, mas um momento em que pensavam sobre tudo o que o gesto implicava. A vaca que entretanto Catarina desenhou em tops e sacos de pano deixou de ser “le dîner”. A decisão, garantem, não foi difícil. Mas não douram o prato a açúcar. “Dá trabalho e se calhar até é um pequeno acto de coragem largar todas as convenções e valores que tinhas e substituíres por outros”, assume Catarina. Para ela, que desde os tempos da faculdade tinha blogues sobre comida e “jurava por aquilo”, foi como “desacreditar-se” e “escolher pôr de parte toda uma área da vida”. Sair da zona de conforto para encontrar adiante outro tipo de conforto, porventura mais profundo. Catarina é o principal motor do projecto. Em 2016, despediu-se da agência de design de marcas onde trabalhava para se dedicar a 100% ao Carne, Só Viva. São dela as ilustrações, as receitas, a maioria dos textos. “Formei-me em design de comunicação na Faculdade de Belas Artes, em Lisboa, e paralelamente à universidade fui desenvolvendo um interesse muito grande pela alimentação”, recorda. “Sempre escrevi muito, por isso os blogues serviam quase como terapia e cozinhar sempre foi um refúgio muito grande para mim. ” Durante um ano, ainda passou pela área da restauração para perceber se o futuro seria por aí. “Descobri que ter um restaurante era mais gestão e menos tempo na cozinha, por isso desisti”, ri-se. Hoje, prepara kits semanais de refeições vegetarianas por encomenda e tem um serviço de catering para eventos de pequena e média dimensão. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas porquê aliar comida e erotismo? Porque são duas áreas da vida que dão prazer. Porque querem quebrar tabus e questionar convenções. E porque as questões da alimentação e do corpo estão tantas vezes interligadas. Controlamos um através do outro e vice-versa. “Porque é que as pessoas têm tantos problemas e complexos com o próprio corpo?”, questiona Pedro. Para Catarina, são dimensões inseparáveis. Apaixonou-se pela cozinha quando quis controlar o (excesso) de peso. Ao ponto de cair no espectro contrário, juntando a isso uma depressão. No blogue, aflora os distúrbios alimentares do passado para mostrar que é possível chegar onde está hoje. Os demónios exorcizados uma vez mais (também) através da comida. E nas ilustrações, os corpos nus assumem formas curvilíneas, têm pregas nas ancas. “Tento ir buscar diferentes corpos, até para fazer brincadeiras com a alimentação. ” No desenho de uma rapariga de costas escreveu, uma vez mais em inglês: “O tipo de gordura boa”. “A informação está toda por aí, mas às vezes a forma como dizemos as coisas pode fazer a diferença, pode tocar alguém”, acredita. “Somos feitos das nossas experiências. Se calhar não seria o que sou hoje nem teria este projecto se não tivesse passado por tudo isto. ”Se pudessem escolher uma pessoa no mundo inteiro para “converter” com o vosso projecto, quem escolheriam? Pedro: A minha mãe. Pelo amor que sinto por ela, por sentir que ela não está tão bem de saúde como poderia estar e por achar que se ela adoptasse o que nós preconizamos mais facilmente conseguia alcançar esse objectivo. Catarina: O meu pai. Porque se o conseguisse convencer seria um óptimo objecto de estudo para compreender o processo pelo qual ele tinha passado até chegar aí [e utilizá-lo para convencer outras pessoas]. As vossas ilustrações têm muitas vezes frases associadas. Qual é a vossa preferida? Catarina: Ceci n’est pas le dîner, na [ilustração] da vaca, por associação à obra de Magritte. Simboliza a traição das imagens. Aquilo não é o que parece ser, faz-nos questionar. O cachimbo [do quadro de Magritte] era só um cachimbo. Uma vaca era o nosso jantar. E, de repente, quando somos confrontados com aquela frase, questionamos. Também gosto muito da frase The good kind of fat porque apanha os nossos dois conceitos: o prazer de comer e o prazer dos corpos. E achamos que tem um bom jogo de palavras — aquele é mesmo o melhor tipo de gordura que se pode comer (ri-se). Qual é o prato de infância com a melhor versão vegetariana? Pedro: Feijoada. Catarina: Não faço muitas adaptações. Há o alho francês à Brás, que é aquele clássico que sabe superbem. Mas diria um chili ou uma boa lasanha vegetariana. Ou qualquer coisa com beringela. Adoro beringela!
REFERÊNCIAS:
Portugal a dialogar com o México na Feira do Livro de Guadalajara
A maior feira do livro da América hispânica, e a segunda mais importante do sector a nível mundial, tem pela primeira vez como convidado de honra Portugal, que ali mostrará a sua cultura, e não apenas a sua literatura. Dentro e fora do pavilhão de 1200 metros quadrados que terá à sua disposição. (...)

Portugal a dialogar com o México na Feira do Livro de Guadalajara
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.7
DATA: 2018-11-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A maior feira do livro da América hispânica, e a segunda mais importante do sector a nível mundial, tem pela primeira vez como convidado de honra Portugal, que ali mostrará a sua cultura, e não apenas a sua literatura. Dentro e fora do pavilhão de 1200 metros quadrados que terá à sua disposição.
TEXTO: Quase cem mil pessoas entram habitualmente por dia na Feira Internacional do Livro de Guadalajara (FIL), que começa este sábado no México e durante nove dias terá Portugal como convidado de honra. Todas elas terão de passar obrigatoriamente pelo Pavilhão de Portugal, que fica à entrada da Expo Guadalajara, para percorrer aquela que é a segunda mais importante feira do sector a nível mundial. Dos cinco gabinetes de arquitectura convidados para o concurso de ideias, a proposta do atelier Santa Rita & Associados foi a que "melhor compreendeu" o que a representação portuguesa pretendia para os 1200 metros quadrados que terá à sua disposição na FIL, explica ao PÚBLICO a comissária Manuela Júdice, actual secretária geral da Casa da América Latina em Lisboa: “Que as pessoas entrassem e nos viessem visitar sem perturbar a circulação da entrada na feira. Não é preciso dar a volta ao pavilhão, ele tem amplitude suficiente para ser local de passagem. Uma vez lá dentro, temos de ser suficientemente atractivos para convencer os visitantes a ficarem. O pavilhão é permeável, mas tentámos criar espaços com conteúdos que funcionem como íman. ”Além de um auditório com mais de 120 lugares, o pavilhão dispõe do espaço de livraria que era obrigatório que tivesse, e que será gerido pelo Fondo de Cultura Económica. A representação portuguesa terá "como parceiro para toda a logística de envio dos livros em português a Livraria Ferin, que já o fez com sucesso quando Portugal foi o país convidado da Feira Internacional do Livro de Bogotá”, diz Manuela Júdice. Haverá ainda outra área onde se poderão encontrar Lenços de Namorados e peças da Vista Alegre alusivas a autores e artistas portugueses (o azulejo estará representado por uma curta-metragem) e um espaço/atelier onde uma bordadeira e um pintor de porcelana mostrarão as suas artes. Depois de Portugal ter sido o país convidado da Feira do Livro de Frankfurt em 1997 e da Feira de Bogotá em 2013, concretiza-se agora um sonho antigo, que passou por vários titulares do Ministério da Cultura. A ideia nasceu em 2006, quando Isabel Pires de Lima considerou a possibilidade de Portugal ser país-tema da edição de 2008, mas foi já nesta legislatura, pelas mãos do ex-ministro da Cultura Luís Filipe de Castro Mendes e do ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva, que se formalizou a participação de Portugal como convidado de honra da 32. ª edição da FIL. E será já uma outra ministra da Cultura, a recém-empossada Graça Fonseca, a discursar este sábado na cerimónia oficial de abertura. A inauguração do Pavilhão de Portugal acontece logo a seguir, com “um pequeno número musical” de Gil do Carmo no auditório e um almoço oferecido por Portugal no Hotel Hilton. O chef Luís Tarenta, que foi seleccionado pelo Turismo de Portugal, criou para a ocasião uma ementa tirada de Os Maias de Eça de Queirós: canja de galinha gorda com paio, bacalhau com grão-de-bico e pimentos, fricassé de frango e arroz doce. É da tradição que cada convidado tenha um presente no seu lugar à mesa, por isso serão oferecidas colecções de marcadores de página com autógrafos de escritores portugueses e argolas de guardanapo bordadas à mão. O orçamento previsto para a participação portuguesa nesta edição da Feira de Guadalajara era de 2, 5 milhões de euros, mas gastaram-se apenas 1, 8 milhões, dos quais 340 mil euros são contribuições de privados. A feira exige do país convidado “uma presença em todas as vertentes culturais”, tal como lembrava no dia da assinatura do convénio entre Portugal e o México o subdirector-geral da Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), José Manuel Cortês, que conhece bem o caderno de encargos. “É uma operação muito complexa e muito difícil de montar”, dizia então ao PÚBLICO. Ano e meio depois, Portugal leva ao México uma embaixada de cerca de 40 escritores, que representam várias gerações e géneros literários: do romancista e recorrente favorito ao Nobel António Lobo Antunes ao poeta e tradutor Vasco Gato, passando pelos prémios Camões Mia Couto (2013), Hélia Correia (2015) e Germano Almeida (2018). Da FIL, Manuela Júdice recebeu uma lista de critérios: prevalência da ficção narrativa (conto, crónica e romance policial) e equilíbrio entre homens e mulheres e entre autores premiados e não premiados. Mas na mala da representação portuguesa viajam também os arquitectos Graça Correia, Francisco Vieira de Campos, Nuno Brandão Costa e Roberto Ragazzi, que participarão na ArpaFIL, a secção de arquitectura da feira, onde João Luís Carrilho da Graça, que dará uma conferência sobre o seu percurso, terá direito a uma homenagem. E ainda: espectáculos de teatro (By Heart, de Tiago Rodrigues, e ‘Consentim(iento’ – A Perda do Paraíso, com João Grosso e Pedro Barbeitos) e de dança (Lídia, de Paulo Ribeiro, pela Companhia Nacional de Bailado), concertos (Ana Bacalhau, Camané, Capicua, Dead Combo, etc. ), um ciclo de cinema (com 12 longas-metragens baseadas em livros de autores portugueses, mas também sete curtas e um realizador convidado: João Botelho) e três exposições. A primeira das três exposições já foi aliás inaugurada esta quinta-feira, no Instituto Cabañas de Guadalajara. O que dizem as paredes: Almada Negreiros e a pintura mural, com comissariado de Mariana Pinto dos Santos, põe em diálogo as tapeçarias que reproduzem os painéis feitos por Almada Negreiros (1893-1970) para a Gare Marítima de Alcântara e para a Gare da Rocha do Conde de Óbidos, nos anos 40, com os murais do pintor mexicano José Clemente Orozco (1883-1949). Há muito tempo que Manuela Júdice desejava expor os muralistas mexicanos, no âmbito da sua acção na Casa da América Latina: “Ao saber que Guadalajara era a terra de Orozco, decidi que em vez de os muralistas mexicanos virem a Lisboa ‘conversar’ com o Almada, eu levaria o Almada até eles. " A comissária, que gosta de relacionar coisas, partiu então para o México com a ideia de realizar “esse sonho ao contrário”. Porque se trata de uma feira do livro, todo o programa paralelo deve partir "do texto literário ou da escrita", e "Almada Negreiros enquadrava-se nesse âmbito". Do paralelo entre a importante tradição do bordado mexicano, nomeadamente com o movimento Bordamos por la Paz, e os Lenços de Namorados da tradição portuguesa, que aliam o bordados à escrita, nasceu a exposição Variações sobre uma tradição: Dos lenços de amor aos bordados com poesia, com curadoria de António Ponte, que abriu esta sexta-feira no Museu Regional de Guadalajara. Os lenços foram bordados com excertos de obras de Pedro Tamen, Herberto Helder e José Luís Peixoto. Finalmente, no Museo de las Artes, abriu já também Ana Hatherly e o Barroco: Num jardim feito de tinta, exposição que Paulo Pires do Vale comissariou para a Fundação Calouste Gulbenkian a partir a obra da artista plástica, realizadora, tradutora e escritora Ana Hatherly (1929- 2015), que foi também professora catedrática de Literatura Barroca. Para a ajudar na escolha do programa paralelo, Manuela Júdice tinha consigo uma listagem, fornecida pela Secretaria de Estado da Cultura, de espectáculos de música e de artes cénicas produzidos ou co-produzidos com apoio do Estado, e por isso mais facilmente negociáveis. Entre esses espectáculos estava, por exemplo, a Toada de Portalegre de Ricardo Ribeiro e Rabih Abou-Khalil, que implicava a presença de uma orquestra. Como não iria ter dinheiro para levá-la de Lisboa, a comissária arriscou convidar a Orquestra Sinfónica de Jalisco. Foi uma “dura negociação”, por causa da agenda da formação, cujas temporadas são organizadas com anos de antecedência, mas conseguiu-se. A comissária preparava-se também para propor noites só de fados e de grupos portugueses mas foi avisada pela organização de que, por muito bons que fossem os grupos portugueses, se não incluísse artistas mexicanos não iria ter êxito. Como o fado e a música mariachi são ambos Património Imaterial da Humanidade, um concerto de Kátia Guerreiro e Mariachi Los Tapatíos juntará as duas tradições musicais. Manuela Júdice tinha também na cabeça a participação da cantora mexicana Lila Downs no filme Fados, de Carlos Saura, e quis que ela cantasse um fado de Lucília do Carmo ao vivo na feira: "Se há mexicana que pode dialogar com os portugueses é ela. Depois apareceu-me o nome do cantor mexicano Miguel Inzunza, que fará um concerto com Luís Represas”, revela ao PÚBLICO. A organização pediu-lhe também que não reduzisse a representação musical portuguesa ao fado. “A ideia de levar os Moonspell veio por causa da ligação do Fernando Ribeiro ao Fernando Pessoa, e para mim foi uma surpresa este estrondoso êxito que está a acontecer nas redes sociais mesmo antes de eles lá chegarem. ” Está de resto para sair no México a biografia Lobos Que Fueron Hombres, a história da banda escrita por Ricardo S. Amorim: o lançamento chegou a estar marcado para o pavilhão de Portugal, mas acabou a pedido da organização por ser mudado para um espaço maior. Considerada um dos maiores festivais literários do mundo, a FIL é uma feira aberta ao público (só no ano passado teve mais de 800 mil visitantes), mas também é um importante ponto de confluência para a indústria editorial ibero-americana, com a presença de mais de 20 mil profissionais do livro, duas mil editoras e mais de 40 mil títulos numa área expositiva de 34 mil metros quadrados. Por isso, indo além do seu programa anual de apoio à tradução, a DGLAB lançou um apoio especial para Guadalajara a que concorreram editoras de diversos países hispanofalantes. As traduções daí resultantes serão apresentadas na feira. Entre os convidados da FIL nesta sua 32. ª edição estão três prémios Nobel: George F. Smoot (Nobel da Física 2006), Mario Molina (Nobel da Química 1995) e o Nobel da Literatura de 2006, o escritor turco Orhan Pamuk, que irá lançar em Guadalajara o seu mais recente livro, A Mulher do Cabelo Ruivo. Também se comemorarão os 20 anos da atribuição do Nobel da Literatura a José Saramago. Numa mesa sobre o legado político do escritor português intitulada El Viaje de la Conciencia. Memoria Política de Saramago, com a presidente da Fundação Saramago, Pilar del Río, e escritores e jornalistas mexicanos, falar-se-á sobre o que levou Saramago ao México, nomeadamente a Chiapas, onde acompanhou o movimento zapatista. E já este domingo Pilar del Río estará ao lado de dois Prémios José Saramago, os escritores Gonçalo M. Tavares (2005) e Ondjaki (2013), numa mesa que tem por tema La literatura sigue (el mundo después de Saramago). Durante anos, o Nobel português tentou que Portugal fosse protagonista da FIL, uma feira cujo programa inclui visitas a escolas, lançamento de livros, sessões de leitura e encontros com leitores. “Justamente no ano em que se comemora o 20. º aniversário da entrega do Nobel a José Saramago, isso finalmente acontece. É realmente emocionante”, considerou Pilar del Río em Junho passado. Na cerimónia de abertura deste sábado, a poeta uruguaia Ida Vitale, Prémio Cervantes 2018, irá receber na feira o Prémio FIL em Línguas Românicas 2018, galardão que o escritor português António Lobo Antunes também já recebeu em 2008, quando o prémio ainda se chamava Prémio Juan Rulfo. Agora que se comemoram os dez anos da atribuição deste prémio, António Lobo Antunes regressa à FIL – integrado na comitiva portuguesa mas também como convidado da própria feira. O escritor, que lançará em Guadalajara o romance No es medianoche quien quiere, conversará com a escritora colombiana Laura Restrepo na próxima segunda-feira. Dois dias depois será entrevistado pelo académico colombiano especialista em Pessoa Jeronimo Pizarro, que em 2013 comissariou a presença portuguesa em Bogotá. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas mais autores estarão em Guadalajara a pedido da própria FIL. Um deles é o escritor Nuno Júdice, marido da comissária, que a feira convidou directamente para encerrar o Salão de Poesia desta edição, em que participarão também Filipa Leal e Ana Luísa Amaral. “Quando lhe foi feito o convite, Nuno Júdice disse que não queria ir por ser eu a comissária. Mais tarde acabou por aceitar com a condição de ser ele a pagar a viagem, para não gastar dinheiro à organização. ” Nuno Júdice é o único português vivo que tem o Reina Sofía de Poesía Ibero-Americana e o prémio Poetas del Mundo Latino Víctor Sandoval. Manuel Alegre também era outro dos convidados da própria FIL para o Salão de Poesia, mas por razões de saúde não irá ao México, como estava anunciado. Os escritores João de Melo e João Luís Barreto Guimarães também tiveram de cancelar a sua participação. A FIL Guadalajara termina no dia 2 de Dezembro com a presença do primeiro-ministro António Costa numa sessão que servirá para Portugal passar o testemunho à Índia, país convidado de 2019.
REFERÊNCIAS:
Tilda Swinton e Dakota Johnson dançam com os seus demónios
Tilda Swinton, com silhueta de Pina Bausch, explorou um tema que a obceca: o domínio da arte sobre a vida. Dakota Johnson aprendeu a dançar como um demónio. Recordações do plateau feminino de Suspiria, o filme de Luca Guadagnino que chega amanhã às salas. (...)

Tilda Swinton e Dakota Johnson dançam com os seus demónios
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Tilda Swinton, com silhueta de Pina Bausch, explorou um tema que a obceca: o domínio da arte sobre a vida. Dakota Johnson aprendeu a dançar como um demónio. Recordações do plateau feminino de Suspiria, o filme de Luca Guadagnino que chega amanhã às salas.
TEXTO: Depois de Eu Sou o Amor, Mergulho Profundo e, já deste ano e nomeado para os Óscares, Chama-me pelo teu Nome, Luca Guadagnino poderia ter escolhido fazer o que quisesse. Mas, em vez de seguir o caminho de Hollywood, o excêntrico italiano, 47 anos, optou por aquilo que denomina como “reimaginação” de Suspiria, de Dario Argento (1977). “Desde sempre o quis fazer”, diz, voz empolgada. “Estou a tornar-me um perseguidor de grandes realizadores, e o Dario é um deles. ”Concretiza com este filme aquilo que é, então, mais do que uma remake. Enquanto o original, em parte baseado no livro de Thomas de Quincey Suspiria de profundis, publicado em 1845, se passava na cidade alemã de Freiburg, o realizador Guadagnino decidiu trazer para primeiro plano o contexto político dos anos 70 alemães, incluindo o terrorismo do grupo Baader-Meinhof. “Colocar a acção em Berlim pareceu-me ser a forma mais fácil de conseguir isso. Também queria referenciar o movimento feminista e os filmes do grande Rainer Werner Fassbinder. ”Suspiria conta a história de Susie Bannion, bailarina norte-americana que viaja até Berlim para uma audição com Madame Blanc, a directora artística da fictícia Companhia de Dança Helena Markos. A companhia está a fazer uma nova versão da sua principal obra, Volk, criada na década de 40, e abriu audições para o papel principal, que originalmente foi interpretado por Madame Blanc. Para surpresa geral, a recém-chegada Susie fica como primeira-bailarina. Quando Olga, a ex-primeira-bailarina, acusa as mulheres que dirigem a companhia de serem bruxas, uma força tenebrosa associada à dança de Susie instala-se sobre Olga. Guadagnino escolheu Tilda Swinton, sua amiga íntima e colaboradora habitual, para o papel de Madame Blanc, enquanto Dakota Johnson, de Mergulho Profundo e da trilogia Cinquenta Sombras de Grey, encarna Susie Bannion. “Gosto de apreciar a companhia de amigos”, diz Guadagnino. “Descobrimos coisas juntos. É como se fosse um parque infantil, e também como se fossem pequenas férias. É uma constante parceria de divertimento. »“O nosso trabalho é feito da nossa amizade”, concorda Swinton - fez Eu Sou o Amor e Mergulho Profundo com Guadagnino após se terem conhecido em 1994. “Estivemos o tempo todo a construir este filme juntos, não houve separações. Também colaborámos em conjunto noutros projectos. Estamos a produzir um filme em que não apareço e que o Luca não realiza. Faz tudo parte do material das nossas vidas. Madame Blanc representou uma maravilhosa oportunidade para explorar temas que exploro desde há muito”, continua a actriz. “Para mim o cerne do filme é o meu amor pela grande personagem que [o actor] Anton Walbrook criou com [o realizador] Emeric Pressburger em Os Sapatos Vermelhos – Boris Lermontov é um dos maiores retratos de artista que conheço. É claro que é um bailarino, é um coreógrafo, é alguém que está a tentar persuadir uma jovem a escolher a sua arte e não a vida. Tenho sempre procurado uma forma de explorar este território, e é óbvio que Madame Blanc é um meio perfeito de me lançar aí. ”Luca Guadagnino quis fazer do clássico de Dario Argento, Suspiria, mais do que “apenas” um filme de género. Foi esse o seu erro, numa remake que tem ideias a mais e cabeça a menos. “Luca também olhou para a obra de Mary Wigman, bailarina que foi uma pioneira do bailado expressionista, da dança livre. Ela manteve a sua companhia de bailado a funcionar ao longo do Terceiro Reich e sobreviveu a ele, por meio de sabe-se lá que compromissos, e foi psicologicamente frágil e atormentada ao longo de toda a vida. Quando estávamos a definir o visual pesquisámos Pina Bausch a nível estético, mas não ao nível da sua dança ou dos seus gestos. A coreografia [criada pelo franco-belga Damien Jalet] aproxima-se da mais famosa das peças de Mary Wigman, Hexentanz [Dança das Bruxas], que se pode encontrar no YouTube. ”Swinton também interpreta outros papéis em Suspiria, o que é um dos jogos de descoberta que o filme encerra. No Festival de Veneza chegou ao ponto de ler em voz alta uma suposta carta de um tal Josef Klemperer, que recebe o crédito de interpretar no filme a personagem de Lutz Ebersdorf, um psicanalista de 82 anos. Mas Tilda já confessou que era ela própria, por baixo de camadas de maquilhagem. (A camaleónica actriz de 57 anos tem ainda um terceiro papel, o da grotesca chefe do covil de bruxas Markos) Trata-se basicamente de uma diversão, num filme longo demais em que o foco está sobre a Susie de Dakota Johnson (Jessica Harper interpretou a personagem no filme de Argento, e aqui tem um papel secundário. )“Trabalhámos juntos em Mergulho Profundo e ao longo desse processo fui cativado pela sagacidade da Dakota”, diz o realizador. “Nessa altura já estávamos a tentar produzir Suspiria e ela não tinha visto o filme do Dario. Por isso dei-lhe um DVD e perguntei-lhe se ponderaria fazer Susie. Adoro a Dakota. É espirituosa e empenhada e atira-se de cabeça, faz as coisas simplesmente porque acha divertido. ”Para Dakota, “o uso que Luca faz da dança para contar parte da história e para lançar feitiços e conseguir que seja uma coisa tão poderosa foi espantoso e entusiasmante”. “Achei que as referências ao clima político de 1977, época em que o filme se desenrola, foram importantes, para dar o tom da energia que rodeava estas pessoas. Quando estão fora das paredes da sala de dança é tudo muito duro, muito tenso. Tive que aprender muito. ”Teve que aprender a dançar, literalmente, como um demónio”. Mesmo tendo estudado ballet em criança. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Quando era nova não era nenhuma bailarina prodigiosa. Trabalhei arduamente para conseguir fazer isto. Estudei o trabalho de Mary Wigman, de Martha Graham, a coreografia de Pina Bausch, e descobri que gostava mesmo muito do trabalho delas. Seis meses antes das filmagens comecei a trabalhar o corpo com um treinador pessoal e de dança que me ajudou a descobrir como a Susie se iria movimentar. Ela tem capacidades incríveis mas não tem qualquer formação académica, por isso a questão é: como é que esta pessoa adquiriria estas competências? Muito disso veio de ouvir artistas de diferentes géneros de música, de Nina Simone aos Jefferson Airplane ou os Carpenters, que ela poderia ter ouvido sempre que ia ao supermercado ou ao restaurante. Assim, quando ela faz a audição a sua dança é como uma mistura de estilos diferentes. Não se sabe o que está a acontecer, não é apenas um género. Vêmo-la fazer piruetas, e logo a seguir está em ponte a fazer qualquer coisa maluca e agressiva e animalesca. (Guadagnino exprime o seu espanto por Johnson “conseguir deslocar os seus ombros de uma forma que mais ninguém consegue”. ) Ao longo do filme podemos ver a personagem tocar nessa zona de si própria”. Johnson apreciou ter trabalhado um plateau dominado por mulheres, muitas das quais bailarinas profissionais. Notou que estavam tão sincronizadas que estavam no mesmo ciclo menstrual. “As mulheres entendem-se umas às outras”, diz Dakota. “Obviamente que existem fricções nas filmagens, existe sempre uma intensidade nas coisas que acontecem entre as pessoas. Somos artistas, é o que fazemos: discutimos ou temos vibrações estranhas. Nunca vai ser perfeito ou regular. Mas notei que nunca ouvi mulheres a gritar umas com as outras, enquanto ouvia homens a gritar uns com outros - era o técnico de som, o operador de microfone suspenso e o departamento de fotografia. . . ”
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Partidos LIVRE
Laborinho Lúcio, o elogio e (alguma) hipocrisia reinante
Só agora consegui tempo para ler a entrevista concedida ao PÚBLICO por Laborinho Lúcio. É riquíssima e os temas abordados dariam vários ensaios. Gostava de reflectir aqui sobre alguns deles. (...)

Laborinho Lúcio, o elogio e (alguma) hipocrisia reinante
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: Só agora consegui tempo para ler a entrevista concedida ao PÚBLICO por Laborinho Lúcio. É riquíssima e os temas abordados dariam vários ensaios. Gostava de reflectir aqui sobre alguns deles.
TEXTO: Só agora consegui tempo para ler a entrevista concedida ao PÚBLICO por Laborinho Lúcio. Tenho tido o enorme gosto de o encontrar em eventos científicos, de cidadania e literários. Não tenho dúvidas em afirmar, pelo que conheço, que foi o melhor Ministro da Justiça em democracia. A sua entrevista, como sempre, é riquíssima e os temas abordados dariam vários ensaios. Gostava de reflectir aqui sobre alguns deles. Antes disso, porém, esperando que o Laborinho não me leve a mal, deixem-me partilhar convosco uma história que diz tudo sobre este ser humano que, sendo juiz, foi ministro por ter sentido um profundo dever de cidadania. E que foi dos mais marcantes directores do Centro de Estudos Judiciários, inaugurando uma nova forma de encarar a formação de magistrados que, no essencial, ainda considero actual. Era Laborinho ministro e foi-lhe comunicado que num dado estabelecimento prisional (EP) havia problemas graves, por se recusarem os reclusos a estar no mesmo espaço que um outro recluso, portador do VIH. Estávamos no período em que pouco se sabia sobre essa maldita doença que, à época, equivalia a sentença de morte. O ministro deu indicações ao director do EP para reunir os reclusos no pátio e que ele aí se deslocaria. Figuro a cara do director. Os homens alinhados, Laborinho disse-lhes que sabia o que se passava e que não deviam temer, explicando-lhes as formas de contágio. E acrescentou que, como prova do que referia, iria dar um abraço ao doente, fazendo depois os demais reclusos o que entendessem. Imagino a força imagética desse abraço. Atónitos, passado o tempo necessário para processar grandes emoções, um a um, os outros abraçaram o proscrito. Tudo serenou e o ministro saiu como entrou. Sem alarido. E assim tem Álvaro conduzido a sua vida. Desligou-se do Direito, mas não da Justiça, como eloquentemente sublinha na entrevista. É agora, como gosta de dizer, “aprendiz de escritor”. E que escritor. Não tem receio de assumir que toda a administração da Justiça é falível, porque construída por mulheres e homens, importante sendo que exista a perfeita noção da subjectividade e a sua redução ao mínimo, de entre outros instrumentos, por via de uma criteriosa selecção dos factos e de uma fundamentação nessa sede e na da subsunção jurídica lógica e imparcial. Assume ainda que falta coragem política para mudar profundamente a administração da Justiça. Permitam-me agora salientar um aspecto de que Laborinho Lúcio não fala nesta entrevista, mas que me preocupa enquanto cidadão e jurista. No Direito Penal, ensinamos que as sanções criminais servem para afastar a comunidade do delito e para reabilitar o condenado. O art. 40. º, n. º 1 do Código Penal assim o diz, em concretização de comandos constitucionais. Várias têm sido as interpretações sobre o tema, que para aqui não interessam. O que desejo salientar é a enorme falácia de que, por regra, se alimenta o nosso ordenamento jurídico-penal (e de tantas outras latitudes). Desde cerca da década de Sessenta da passada centúria que se diz que a ressocialização é um mito, o que conduziu, sobretudo nos EUA (mas não só), a uma “viragem punitiva”. Ouvimo-la muitas vezes nas ruas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Se quisermos ser congruentes com o que está escrito nas leis e não nos limitarmos a proclamações piedosas, como tantas vezes sucede (porventura herança do passado salazarista), então deveríamos levar a sério a ressocialização. Para tal não poderia haver técnicos nos EP com centenas (sim, é verdade) de reclusos para acompanhar, nem uma norma esdrúxula que só obriga a elaborar um “plano individual de readaptação” (termo horrível) em condenações superiores a um ano de prisão. E os outros? Limitam-se a passar aí o tempo? Se isto tudo não fosse, como regra, letra morta, deveríamos ter, como em outros Estados, “casas de transição” públicas para quem sai do encarceramento e não tem qualquer rede social. Se quase tudo não fosse “para inglês ver”, haveria muito mais projectos psicológicos, educacionais, de alteração de comportamentos, mais condições para unidades livres de drogas. Maior vontade de o sistema prisional colaborar com a “sociedade civil”, como a lei diz. Lembro-me de um projecto que dinamizei e que levou mais de 10. 000 livros a todas ou quase todas as prisões de Portugal continental, fruto da generosidade de tantos. O Director-Geral da altura entendia que isso “dava má imagem do serviço”, numa altura em que o país quase estava na bancarrota e que, como se percebia, esta não era uma prioridade do Estado, mas que este tinha obrigação de acarinhar. Ao invés, os obstáculos existiram e nem sequer se obteve autorização para encerrar a campanha com sessão num EP, por “razões de segurança”. Imagino que seriam candentes, pois estariam presentes indivíduos tão perigosos como presidentes de câmara e representantes da Fundação de Serralves, da Pastoral Penitenciária e de uma ONG. Voltando ao ponto: os estudos criminológicos mostram, para quem se pauta por mera análise custo-benefício, que os contribuintes gastam mais com a reincidência do que com uma ressocialização à séria. Assim, o que temos é um arremedo de (re)inserção social. Obviamente que assim não vamos lá. Uma última nota. Laborinho Lúcio disse com todas as letras que há uma justiça para ricos e outra para pobres, tal como sucede com a saúde, a habitação, a educação. Verdade verdadinha, que também digo sempre que dou formação a médicos, p. ex. , incomodados, alguns, com a crescente consciencialização dos direitos dos doentes. E porquê? A Justiça reproduz a sociedade; se ela é desigual, o que se esperava? E ficamos assim? Não. Mudem-se, para começar, as regras do acesso ao Direito que, hoje, praticamente só estão acessíveis a um sem-abrigo. Um casal que ganhe a fortuna de um salário mínimo cada um não tem direito a isenção total e nomeação de advogado. Depois do que disse, dirão que sou um idealista. Nada disso. Com a frontalidade que critico quem diz que a ressocialização é uma treta sem nunca a termos efectivamente implementado, também assumo que delinquentes existem que não são ressocializáveis. Verdade porventura inconveniente – limito-me a verificar um facto, sem juízo de valor e, obviamente, sabendo que existe uma multiplicidade de razões para o efeito. E para estes, o labéu de “incorrigíveis” à maneira do penalista alemão Franz von Liszt? Não. Para estes a prisão é uma contenção que protege a sociedade. A ressocialização deve ser proposta e nunca imposta. Para além de razões constitucionais, por imperativos pragmáticos – só assim pode operar. É óbvio que a esses reclusos terão de se aplicar todas as garantias constitucionais e legais. Não defendo nenhum “Direito Penal do inimigo” (Jakobs). Mas também sempre me incomodou o moralismo hipócrita que nos impede de aceitar factos que estão à nossa frente. Ainda que do tamanho de elefantes.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Senhorios sem lei, estudantes sem casa: a vida em suspenso dos universitários
As residências universitárias são insuficientes, arrendar um quarto é cada vez mais complicado. Preços exorbitantes, más condições, requisitos ilegais. Fraudes e irregularidades. A angústia e os dramas dos universitários deslocados (...)

Senhorios sem lei, estudantes sem casa: a vida em suspenso dos universitários
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: As residências universitárias são insuficientes, arrendar um quarto é cada vez mais complicado. Preços exorbitantes, más condições, requisitos ilegais. Fraudes e irregularidades. A angústia e os dramas dos universitários deslocados
TEXTO: Ainda a entrevista não começou e já Daniela Ferreira se antecipa: “Tenho de apanhar o autocarro daqui a 20 minutos, se não perco o comboio. ” E se perder o comboio que sai de São Bento dali a coisa de uma hora não tem outro depois. Se perder o comboio, a boleia da estação de Paredes até à casa dos pais, nos arredores da cidade, fica também comprometida. A vida da estudante de 23 anos é como um dominó de peças alinhadas, debaixo da angústia de um desajuste. Basta um para que a rotina desabe. Anda num vaivém diário desde o início do ano lectivo. Um déjà-vu do sucedido há um ano quando se estreou na Universidade do Porto e na batalha campal do alojamento universitário. Dessa vez, viu a habitação na residência universitária ser recusada por “lotação” e só conseguiu arrendar um quarto meses depois, já o Outono se transformava em Inverno. Partilhava-o com uma colega de curso e cada uma pagava 187 euros. Não era incomportável. Mas os problemas com o senhorio rapidamente ganharam volume: as despesas estavam incluídas no preço, mas a conta da luz nem sempre era paga. Um dia ficaram sem electricidade em vésperas de um exame. Sabia que tinha de sair. Em Junho já andava em busca de outro quarto, a pensar no novo ano lectivo que iniciaria dali a três meses. Parecia tempo mais do que suficiente para encontrar um espaço. Mas não foi. As aulas já decorrem e Daniela continua sem casa. Faz viagens diárias até Paredes. Ao final do dia, são no mínimo duas horas e meia roubadas ao estudo, mais de uma centena de euros tiradas à carteira dos pais. O que tem encontrado no mercado imobiliário ora é muito caro ora demasiado mau. Na Avenida da Boavista, visitou um T0 com cama de casal e cozinha no mesmo sítio, onde tinha de atravessar uma varanda para chegar à casa de banho, partilhada com vários hóspedes desconhecidos. Noutra zona, encontrou um quarto por 200 euros, onde a senhoria lhe pedia que assegurasse a renda de toda a casa e gerisse os restantes arrendatários. Tudo o resto, ascendia aos 300 e 400 euros. Uma impossibilidade, diz: “Não posso pagar esses valores. ”Daniela não está no epicentro dos preços impossíveis. Mas não anda longe disso. De acordo com dados da plataforma Uniplaces, é em Lisboa que se encontra a renda média de um quarto mais elevada em 2018: são 485 euros mensais (mais 26 do que no ano anterior). O Porto é a segunda cidade mais cara para universitários: o valor médio anda nos 407 (mais 24 do que em 2017). E quem pensa que é coisa de cidades grandes, desengane-se: o valor médio nacional no primeiro semestre do ano andou nos 451 euros. Alice Rodrigues trocou Coimbra por Lisboa para terminar o mestrado em Direito. No centro do país, pagava 200 euros por um quarto, em Lisboa o melhor que encontrou foi um no Areeiro por 330. Divide o apartamento com a própria senhoria, sem contrato assinado. E obedece às suas estranhas leis: se chegar tarde a casa deve tirar os sapatos para não fazer qualquer ruído, se quer ir à casa de banho de noite é certo que terá sermão na manhã seguinte. Ligar um aquecedor é proibido e levar alguém a casa está fora de questão. Alice só tem autorização para se movimentar entre o quarto, a cozinha e a casa de banho. A sala está interdita. Há coisa de três meses cansou-se. Voltou aos sites de imobiliário, à busca permanente. E aumentou o espanto com aquilo que ia vendo. Ao anúncio de um quarto em Alvalade por 650 euros — quase mais 100 do que o salário mínimo em Portugal — nem se deu ao trabalho de responder. Encontrou um por 400 que teria de partilhar com mais três raparigas e onde era proibido ter visitas. Quartos sem janela viraram “tendência”. Visitou outro, sem mesa na sala de jantar, apenas na varanda, e com patelas de remédio para ratos espalhado em todo o lado. 350 euros. A procura continua, mas a esperança é pouca: "O turismo e alojamento local estão a tornar a vida em Lisboa insustentável. Estamos a ser escorraçados da cidade. "Os relatos multiplicam-se. Um quarto com varanda e vistas para a Torre de Belém custa 650 euros. Um T3+1 “excelente para estudantes” por 2500 euros. Um T7 em Coimbra por 250 ou 300 euros por quarto, sem ou com ar condicionado. Em Aveiro, uma divisão por 380 euros. Em Braga, por 300. Às vezes, quartos que são “vãos de escadas”. Ao email do P3 chegaram denúncias de geografias variáveis — alguns não querem revelar o nome verdadeiro, quem aceita falar não quer ser fotografado. Carolina Malhão, já licenciada em Ciências Biomédicas e a preparar a candidatura a Medicina no próximo ano, estende o mapa até ao sul: “Aqui no Algarve as coisas também não estão fáceis. ”Está no sul há cinco anos e já mudou de casa várias vezes. Na primeira moradia onde viveu, casa enorme dividida em várias, havia 15 pessoas, com senhoria incluída e gente a viver num anexo no jardim. A 160 euros por mês a cada uma, sem conta da luz incluída, “é só fazer as contas”: 2400 euros mensais de rendimento. E as regras eram de gabarito semelhante ao preço: não se podia tomar banho depois das 22 horas, não se podia convidar ninguém para jantar. Muito menos para dormir. Noutro apartamento, onde pagava 250 euros por um quarto, e a utilização da caixa de correio estava interdita, o senhorio era visita habitual na casa. Um dia, estava Carolina de roupa interior e t-shirt e ele abriu a porta. Foi a gota de água. Há tempos, viu um anúncio de uma divisão por 330 euros sem despesas. Contactou a senhoria. E de resposta recebeu um questionário onde, entre outras coisas, se pedia que o candidato ao espaço se “descrevesse numa frase”. Passou a primeira fase. Mas a casa não passou a seguinte. Se Carolina Malhão, 23 anos, quisesse levar lá alguém durante o dia, uma “visita externa” como lhe chamava a proprietária, teria de pagar cinco euros. Se quisesse pernoitar, o preço subia aos 10 euros. No “contrato ilegal”, havia ainda a indicação de que podia visitar a casa, para verificar a limpeza, duas a três vezes por semana. No centro de Faro, contou a proprietária a Carolina com toda a naturalidade, tinha um T2 por 900 euros. O quarto com cama de casal seria arrendado por 500 euros a duas pessoas — mas casais não eram aceites. Inês Lopes, natural de Setúbal, costuma dizer que encontrou “um achado” em Lisboa: são 350 euros por um quarto numa casa com cinco divisões e seis pessoas. Quando ali foi parar, a mãe ainda tentou regatear o preço. Sem sucesso. Quando pediu recibo, comunicaram-lhe o que parece ser habitual: nesse caso eram mais 23%. “Se não quiser temos uma lista de espera enorme: é pegar ou largar”, avisou o proprietário. Embarcou numa situação de irregularidade por não ter outra hipótese. A apenas um ano de terminar o curso de Engenharia Física Tecnológica, no Técnico de Lisboa, Inês vê-se mergulhada na desesperança. Há algum tempo que se inscreveu em tudo o que são grupos de arrendamento de casas e quartos — e isso foi a confirmação de um futuro pendente. “Mesmo depois de entrar no mercado de trabalho a minha única solução será partilhar casa. Possivelmente voltar a Setúbal”, lamenta. Chamam-lhe “a inflação”, diz Inês, mas essa “lei do mercado que se tornou aceitável” deixa todos “desprotegidos”: “Não há contratos, não há legislação. Isto não pode continuar assim. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. As residências universitárias contam com 13. 971 camas — e isso garante alojamento para apenas 12% dos 113. 813 alunos a estudar afastados de casa. Lisboa, Coimbra e Porto são as regiões com mais carência de oferta, revelou o diagnóstico do próprio Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. No Plano Nacional de Alojamento do Ensino Superior, lançado em Maio, prevê-se que até 2021 haverá mais duas mil camas disponíveis. Graça Pacheco foi estudante de Matemática Aplicada na Universidade do Porto há quase 40 anos. Era uma outra cidade, uma outra realidade. Teve um lugar numa residência universitária, mas lembra-se bem de isso já ser poiso apenas para alguns. E de muitos colegas terem problemas para encontrar casa. A diferença, aponta, “é que não havia tanta ganância”. Palavra de mãe de três, dois ex-estudantes e uma ainda nas salas de aulas. Quando há 12 anos a primeira lhe seguiu as pisadas, trocando Mirandela pelo Porto, encontraram solução na casa de uns familiares. Mas seis anos depois, quando o irmão do meio se fez caloiro, já não cabiam todos. Pensaram até em comprar, mas só encontravam “cubículos com condições miseráveis”. Viraram-se para os quartos, com a ajuda de agências imobiliárias. “Mostraram-me coisas que me fizeram entrar em pânico só de imaginar os meus filhos lá dentro”, recorda. “Nem para animais dava, quanto mais para pessoas! Um cheiro a mofo e humidade impossíveis. Viviam lá dois rapazes, não sei como não ficavam doentes”. Ela protestou com o agente:— Não têm vergonha de mostrar isto?— É aquilo que temos. A filha mais nova de Graça está agora no terceiro ano de Medicina na Universidade de Coimbra. Vive num “quarto minúsculo” por 200 euros, sem despesas. Até surgir algo melhor. Se surgir algo melhor. Graça Pacheco põe-se a pensar nas “dificuldades que muitos estudantes devem enfrentar” com os custos impossíveis da habitação. Com os salários mínimos e médios de Portugal, ter filhos na universidade tornou-se uma equação para a qual a matemática não vê solução. Serão os senhorios sem leis o início da narrativa dos estudantes sem futuro?
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave filha lei ajuda estudo vergonha salário ilegal pânico
#VanLife: mais do que a carrinha, um estilo de vida
A hashtag #VanLife é das mais cobiçadas no Instagram — são quase quatro milhões de publicações. Fomos atrás delas e encontrámos várias histórias, na vida real, de pessoas que transformaram carrinhas em casas sobre rodas onde sempre sonharam morar. (...)

#VanLife: mais do que a carrinha, um estilo de vida
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-10-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: A hashtag #VanLife é das mais cobiçadas no Instagram — são quase quatro milhões de publicações. Fomos atrás delas e encontrámos várias histórias, na vida real, de pessoas que transformaram carrinhas em casas sobre rodas onde sempre sonharam morar.
TEXTO: Sofia não podia estar mais satisfeita. Algures na praia do Amado, no concelho algarvio de Aljezur, encontrou o sítio “perfeito” para estacionar Framboesa, uma Volkswagen Transporter T3. As ondas quase lhe salpicam a janela. “Queres ver?” A pergunta é retórica. Ágil, a programadora de 28 anos levanta-se do chão, empoleira-se no sofá (que é metade da cama) e levanta a porta de trás da carrinha ligeira. Dá uma gargalhada: “Incrível. É como acordar todos os dias ainda dentro do meu sonho. ”Lá fora, o namorado, Filipe, conversa com “os vizinhos”. Naquela manhã, são dois alemães, jovens, que alugaram uma carrinha portuguesa para percorrer a Costa Vicentina. Está parada ao lado da Vw T3 que Sofia Rodrigues comprou há um mês. E a fotografia do grupo, sentado na falésia, está bem perto da imagem que a fez querer deixar de ter morada e passar a morar numa casa sobre rodas. Imagine-se: pôr do Sol. Verão (ou um início de Outono assustadoramente quente, como este). Uma autocaravana empoleirada numa arriba alentejana, de portas abertas, as cortinas a esvoaçar. Um casal, em duas cadeirinhas dispostas lado a lado, cabelos brancos escondidos nos chapéus. Ele a ler um livro. Ela só a ver o mar a ser o mar. E Sofia, uns metros à frente, petrificada a olhar para “toda aquela serenidade”, enquanto os colegas de viagem se apressavam a entrar no carro. “Na altura não partilhei com ninguém. Mas desde aí que comecei à procura daquilo”, conta. Foram três anos a fazer contas. E três passos gigantes a dar: mudar de área, aceitar um projecto longe de casa para ganhar a confiança dos superiores e comprar a carrinha. Deixou a engenharia civil (depois de ser bolseira da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto e de trabalhar em Moçambique) e aprendeu a programar. “Todos os passinhos que eu dou é de forma a poder trabalhar remotamente. ” Não queria estar presa à secretária de um escritório, das 9h às 17h. Pensou: “Até gosto de informática. Como software developer só preciso de um computador. E posso levá-lo para onde eu quiser. ”Agora, trabalha numa empresa holandesa, que tem uma sucursal no Fundão. Os incentivos eram difíceis de recusar (metade da renda é paga), podia finalmente pendurar as calças de fato, os chefes defendem horários flexíveis e ela mudou-se para a Beira Baixa. “Achava que ia morrer de tédio. Acuso-me, era a típica rapariga que ia beber um copo ao final da tarde, que gostava de passear em shoppings. ” Mas um ano e meio depois, ainda não se aborreceu. Em Maio deste ano, voltou a mudar-se. Perguntaram-lhe se não estaria interessada em liderar um projecto na Irlanda e ela aceitou. Nos intervalos de almoço — “lá comem em frente ao computador” — continuava à procura de uma carrinha para viajar. Fazer scroll em sites de venda online era “o entretenimento diário”. O garfo numa mão, o rato do computador na outra. Até que teve de largar o garfo para se atirar com as duas mãos ao teclado. Estava ali, no monitor, a carrinha dela. Susi Cruz desistiu da faculdade, deixou o trabalho e fez-se à estrada, sozinha. Há um ano que a alemã de 25 anos viaja na carrinha que converteu em casa sobre rodas. O objectivo é chegar à China. Mas acaba sempre por voltar a Portugal (e, agora, a um português). O P3 encontrou-a numa oficina em Vila Nova de Gaia. Podes ler a entrevista aqui. “Esse foi o dia mais stressante da minha vida”, suspira. O anúncio da Volkswagen Transporter T3, o modelo que andava desesperadamente à procura, atraiu quatro mil visualizações nas duas primeiras horas de publicação no Custo Justo. O anunciante pedia 9500 euros, Sofia só podia pagar 9000. Ao mesmo tempo, Filipe Pereira, o namorado e futuro parceiro de viagens, não lhe atendia o telemóvel. “Eu precisava mesmo de lhe dizer ‘Olha, vou gastar muito dinheiro’. E preciso que vás buscar a carrinha. ”Marcou o número no anúncio e quando lhe atenderam atirou: “Quando vi os faróis, que parecem uns olhinhos a pedir carinho, nunca mais os esqueci. Cresci a ver os carros e as motas serem tratadas como família. E esta ia ser a minha casa. ” Não parece um argumento tão aliciante quanto as propostas mais altas que não paravam de cair, mas do outro lado da chamada estava um homem que criou uma família naquela carrinha. Só a estava a vender para comprar uma maior, onde pudesse seguir viagem com o próximo bebé, a poucos meses de chegar. “A carrinha não está para leilão”, rematou, “se a tenho de vender, que seja a ti”. E foi assim, “à filme”, que Sofia, Filipe e o gato Alfie (The Grey, por favor) chegaram ao volante de Framboesa — o nome foi escolhido “com muito bom gosto” pela filha do primeiro dono e adoptado sem reservas por eles. A primeira noite foi a 17 de Setembro, em Arraiolos, Évora, sozinhos, num lago que descobriram através da aplicação móvel Park 4 Night, uma espécie de TripAdvisor do caravanismo (na app estão marcados 2163 sítios para estacionar, de forma segura, só em Portugal). “Aí sim, sossegámos: era mesmo isto. ”Em Outubro, Sofia regressa à Irlanda. Volta no final do ano, mas avizinha-se uma separação difícil. “Já disse ao Filipe que ele vai ter de me levar na carrinha até ao aeroporto de Lisboa. Demore o tempo que demorar. ” Enquanto ela estiver fora, cabe-lhe a ele construir outra secretária amovível. Assim, um dos assentos vira-se para trás, a cama vira sofá e os dois podem “trabalhar a partir dali, no conforto de uma sala”. A empresa até dá o cartão para acederem à Internet. Rita Vasconcelos e Miguel Lisboa, 24 anos, ainda não tinham passado a fronteira portuguesa quando fizeram um pacto. Nove meses, 37 países europeus, 27 mil quilómetros e 20 mil euros depois, a autocaravana — responsável por metade do valor que tiveram de juntar, "sem qualquer ajuda financeira dos pais" — tinha de seguir viagem sozinha. “Sabíamos que íamos chegar sem dinheiro”, diz um. “Para os projectos futuros temos sempre de vender o nosso projecto passado. As coisas não duram para sempre. E nós não somos pessoas de ficarmos agarrados a elas”, completa outro. No Verão, passaram “cerca de 400 horas” a converter uma carrinha Iveco Daily 30. 8D numa casa sobre rodas. Que já estão a planear vender. Próximo destino: partirem para a Ásia, quando tiverem o canudo na mão. Até lá, viajam para fora cá dentro, nos intervalos do trabalho de Rita e das aulas de Miguel. Durante a semana, é ele que leva a carrinha para Évora. Estaciona-a “mesmo ao lado da faculdade” onde estuda Engenharia das Energias Renováveis. Dorme, toma banho, janta e estuda lá — e é “bem mais confortável” do que alguns quartos para universitários. Mas mais do que as viagens ou poder não pagar renda, o que eles procuravam mesmo era um “desafio”. “Nunca tínhamos feito nada a nível de carpintaria. Nem de electricidade. ” E gostaram da ideia de aprender — horas de tutoriais no YouTube — e de poderem desenhar a planta “tal e qual a queriam”, com a experiência que traziam da autocaravana. Voltaram a juntar dinheiro. E a carrinha, de 25 anos, chegou-lhes às mãos em Março. Escolherem-na porque conseguiam caber em pé no interior (um “requisito obrigatório”), a caixa tem quase quatro metros de comprimento e largura suficiente para uma cama de casal fixa, e porque estava à venda por menos de dois mil euros, no OLX. “Foi mais ou menos um achado, porque agora não se vê muitas carrinhas destas por este preço. ”Fizeram uma revisão geral e o mecânico aconselhou-os a mudar o óleo, os filtros e os travões (500 euros). Depois, começaram a limpar. “Tinha feno por todo o lado, porque era usada para transporte de cavalos”, ri-se Miguel. Começaram por uma camada de tinta anti-ferrugem e uma barreira anti-vapor, depois construíram o chão, o isolamento, fizeram uma janela. Instalaram depósitos de água, um painel solar de 100 watts, uma segunda bateria e um aparelho (relé) que a carrega com o carro em movimento. Querem ter uma “auto vivenda auto-suficiente” e, para isso, construíram até uma casa de banho com chuveiro e sanita portátil, algo “que a maior parte das carrinhas não tem”. Compraram todos os materiais numa conhecida rede de lojas de materiais de construção, à excepção dos componentes eléctricos que encontraram em sites online. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Contas feitas, “gastaram tanto como com a autocaravana”: 8500 euros. “Podia ter sido mais barata, temos um forno e um frigorífico que foram caros, por exemplo. Mas queríamos uma carrinha que valha alguma coisa. E como estão na moda e há muita procura, elas valorizam muito. ”Para legalizarem as transformações, decidiram ainda homologar a carrinha, o que também pesou no orçamento (1800 euros entre o que pagaram ao IMT e ao engenheiro que fez o projecto). A transformação “deu muito, muito trabalho”. Está toda detalhada, preços e materiais incluídos, e com fotografias, n’O Mundo No Meu Caminho, o blogue que criaram para “manterem a família, amigos e interessados” actualizados. “No final só queríamos despachar isto. Na tarde em que acabámos o essencial, entrámos na carrinha e fomos embora. ” Durante duas semanas, no início de Setembro, percorreram as praias fluviais do interior do país e as aldeias de xisto. Gastaram 25 euros por dia. “Depois da nossa viagem de autocaravana ficamos mesmo a gostar deste estilo de vida. De poder parar, de poder ir onde quiser”, explica Rita. “Queremos que viajar seja uma parte importante da nossa vida. E não só umas férias rápidas de vez em quando. ”
REFERÊNCIAS:
Haddad, entalado entre Lula e a guerra das fake news de Bolsonaro
É difícil apresentar-se a votos em lugar de outra pessoa, ainda mais quando essa pessoa é idolatrada e odiada quase em partes iguais pelo povo. Com Bolsonaro à frente nas sondagens, o candidato do PT tenta firmar a sua posição para a segunda volta. (...)

Haddad, entalado entre Lula e a guerra das fake news de Bolsonaro
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.5
DATA: 2018-10-06 | Jornal Público
SUMÁRIO: É difícil apresentar-se a votos em lugar de outra pessoa, ainda mais quando essa pessoa é idolatrada e odiada quase em partes iguais pelo povo. Com Bolsonaro à frente nas sondagens, o candidato do PT tenta firmar a sua posição para a segunda volta.
TEXTO: Com o domingo das eleições a aproximarem-se, Fernando Haddad, o candidato ungido pelo Partido dos Trabalhadores (PT) para disputar o cargo de Presidente - fazendo as vezes de Lula da Silva, condenado, preso e sem poder votar -, sofre para se afirmar. Por culpa sua, ou por culpa da estratégia escolhida pelo PT, que decidiu fundi-lo com o ex-Presidente sob o já célebre lema “Lula é Haddad, Haddad é Lula”? Em São Paulo, onde Haddad foi prefeito, conhecem-no e não é popular. “Antes eu votava PT mas não escolheram uma pessoa leal. Haddad não tem um projecto que inclua aquilo de que estamos a precisar”, diz a enfermeira Joyce Kathenen, de 20 anos, que faz uma pausa sentada num murete da Praça da República, um grande redondel com piso de tijoleira branco avermelhado e árvores altas no velho centro da cidade de São Paulo. O rabo-de-cavalo, T-shirt verde larga e mochila dão-lhe um ar de estudante. “Formei-me numa escola de saúde onde faltava muito material, nem sequer havia seringas para fazer diluições”, explica. Antes Joyce Kathenen votou no PT, mas Haddad é um político demasiado centrista – ao contrário do que os media repetem em cadeia e do que os políticos que se opõem ao PT professam, o partido de Lula está muito longe de ser um perigoso radical de esquerda, ou comunista. E Fernando Haddad nem pertence às correntes mais à esquerda do PT. Kathenen prefere Guilherme Boulos, o candidato do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) – considerado o partido mais à esquerda no Parlamento –, mas ainda não se decidiu completamente. A conversa nesta praça num dia nublado – normal nesta grande metrópole do Sul, a oitava maior região metropolitana do mundo – ilustra alguns dos problemas de Fernando Haddad, que pena para se definir ou como “poste” de Lula, alguém sem peso específico que é apenas um fantoche do ex-Presidente, ou como um verdadeiro sucessor de Lula, com voz activa na definição de políticas, ainda que tenha sido ele o autor do programa de governo apresentado para estas eleições. Parte do eleitorado, no entanto, vê Haddad como o representante da democracia face a Jair Bolsonaro, o candidato de extrema-direita e que representa as forças mais retrógradas do Brasil, incluindo elogios à ditadura militar. A última sondagem do instituto Datafolha, divulgada quinta-feira à noite, antes do último debate entre os candidatos – fora Bolsonaro, que não foi autorizado pelos médicos a comparecer –, e que contabiliza apenas os votos válidos, ou seja excluindo os votos nulos e brancos, dá 39% ao capitão reformado do Exército e 25% ao candidato do Partido dos Trabalhadores nas eleições de domingo. Para uma segunda volta, surgem em empate técnico, com 44-43%. Em São Paulo, a cidade onde foi prefeito, Haddad está mal colocado nas preferências dos eleitores. Bolsonaro tem 41%, enquanto no segundo lugar, com 16%, estão empatados Geraldo Alckmin, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) que deixou o cargo de governador para se candidatar à presidência, e Fernando Haddad. Este foi derrotado quando tentou a reeleição em São Paulo, em 2016, por João Dória – que é do PSDB e agora concorre a governador, mas apoia Bolsonaro. Nas redes sociais, espalha-se entre os apoiantes de Bolsonaro algo a que não se pode chamar propriamente uma notícia, mas cujo título é “Fernando Haddad é o pior prefeito do Brasil”. Tudo para ajudar a criar uma dinâmica de crescimento do apoio ao ex-capitão e deputado federal há 27 anos para que consiga uma vitória logo na primeira volta – que passou a ser o objectivo confesso da campanha de Jair Bolsonaro. O último debate entre os candidatos às presidenciais, realizado quinta-feira à noite, na TV Globo, com a ausência de Bolsonaro - ainda convalescente da facada logo no iníco da campanha -, seria uma oportunidade para convencer os últimos indecisos. E são ainda muitos, fala-se em cerca de 25%, incluindo eleitores que já fizeram uma escolha mas podem ainda alterar o seu voto. Mas não houve nada de muito dramático. Haddad esteve na berlinda, e foi interpelado por Marina Silva (Rede, ecologista), que está a deslizar para o fundo da ladeira das intenções de voto, a fazer o mea culpa da governação do PT que todos os outros partidos exigem. Mas Haddad não pode trair o seu partido e dizer que tudo foi errado. Relembra apenas todas as entrevistas e declarações que já fez apontando coisas erradas, coisas com as quais não concordou – que não parecem ser suficientes para amaciar o coração ferido de Marina Silva, que foi ministra do Ambiente de Lula da Silva mas saiu ressentida com o PT. De Álvaro Dias, um senador que foi do PSDB e agora é do Podemos e tem intenções de voto residuais, Haddad teve uma hostilidade constante. A única agenda de Dias, ex-governador do Paraná – cuja capital é Curitiba, onde está preso Lula da Silva – é falar da corrupção do PT, da “organização criminosa”. Chega a ser cómico, de tão exagerado. Desperdiçou oportunidades de fazer perguntas aos adversários porque ficou a destilar veneno, na sua voz rouca e forte. Acabou por ser repreendido por Haddad: “O senhor devia ter uma melhor compostura neste debate. . . a fazer piadas com coisas que não têm graça. ” Voaram chispas entre os dois candidatos. Críticas a Bolsonaro houve muitas, até porque o candidato ausente resolveu pesar sobre o debate de uma forma desleal: deu uma entrevista à TV Recorde, propriedade do bispo Edir Macedo (que o apoia), da Igreja Universal do Reino de Deus, transmitida à mesma hora que se iniciou o debate na Globo. De tom amigável, sem o confrontar com perguntas difíceis, mostrando um homem de ar cansado, que tinha de interromper a sessão de perguntas após dez minutos para descansar a mando de um enfermeiro, a entrevista contribuiu para construir a imagem de mártir, de um político que sofre e se esforça para o bem do povo – o homem providencial de que o Brasil precisa. “Porque é que eu sou tão mau, quero o mal de todo o mundo, se eu só quero a união de todos, sempre combati a corrupção”, interrogava Bolsonaro, auto-santificando-se. Durante a tarde, Bolsonaro divulgou um vídeo no YouTube com vários apoiantes, em que faz de moderador de várias intervenções, incluindo do influente pastor Silas Malafaia. Malafia encadeia ideia atrás de ideia de forma incoerente mas entusiástica. “O Cristianismo não é religião, é ideologia, é a tradição de base do Ocidente, da Europa, e esses psicopatas a querem destruir para implantar um modelo esquerdista e a sociedade brasileira rejeita isso, independentemente da religião, porque tem gente que pensa que a família não é só coisa de religião, família é coisa de espírita, de católico, de evangélico, gente, eles estão enganados, família uma coisa preciosa. Querem levar dos pais, Bolsonaro, a autoridade. Está na Constituição, na Convenção Americana dos Direitos Humanos, pertence aos pais a educação moral e religiosa dos filhos, como é que esses caras da esquerda querem destruir isso?”, diz Malafaia, de um fôlego. A campanha do PT teve um despertar violento nesta última semana. Descurou o peso na formação de opiniões e decisão sobre o voto das fake news nas redes sociais, sobretudo no WhattsApp. Segundo o jornal Folha de São Paulo, os petistas preocupavam-se mais com as notícias e fazedores de opinião dos media tradicionais. As notícias falsas nas redes sociais eram consideradas demasiado absurdas para fazer mossa. Mas as ideias falsas espalham-se como fogo na palha, com o entusiasmo que é demonstrado pelo famoso pastor evangélico Silas Malafaia. A demonstrar a sua eficácia, a popularidade de Bolsonaro cresceu, nesta última semana, entre as mulheres, um eleitorado que lhe é mais avesso. Sobretudo entre as eleitoras evangélicas e mais pobres, dizem as sondagens – as mais vulneráveis a uma campanha de fake news deste tipo. Culpando estes ataques distribuídos nas redes pelo estancar da subida das intenções de voto em Haddad, e pela subida da rejeição dos eleitores ao seu candidato, o PT começou a retaliar esta semana com a sua própria campanha no WhattsApp. E a accionar a justiça para tentar travar a difusão de fake news. Começou também a fazer vídeos de propaganda que em vez de lembrar apenas feitos passados do Governo PT e promessas eleitorais, visa agora directamente Bolsonaro. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Será suficiente para recuperar força até domingo?“Se Bolsonaro não ganhar ou não for à segunda volta é fraude”, diz o motorista Eliphas Levi, de 54 anos, descendente de judeus – uma comunidade que, segundo algumas notícias, apoia em grande medida o ex-capitão, embora isso seja contestado. “Há técnicos de tecnologias de informação a dizer no YouTube que é possível fraudar a urna electrónica, embora os juízes do Tribunal Superior Eleitoral digam que é confiável. Mas foi o PT que os pôs lá. O Brasil está de saco cheio com esse comunismo”, remata.
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