David Servan-Schreiber: "A minha saúde é muito melhor do que antes de ter tido cancro"
Todos somos portadores de células cancerosas, a partir de certa idade. Mas apenas uma pessoa em cada quatro vai morrer de cancro. Qual é o segredo das outras três? As suas defesas naturais, afi rma o médico e cientista francês David Servan-Schreiber. E é possível estimularmos essas defesas naturais através do nosso estilo de vida, para prevenir ou lutar contra o cancro. (...)

David Servan-Schreiber: "A minha saúde é muito melhor do que antes de ter tido cancro"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.125
DATA: 2010-05-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Todos somos portadores de células cancerosas, a partir de certa idade. Mas apenas uma pessoa em cada quatro vai morrer de cancro. Qual é o segredo das outras três? As suas defesas naturais, afi rma o médico e cientista francês David Servan-Schreiber. E é possível estimularmos essas defesas naturais através do nosso estilo de vida, para prevenir ou lutar contra o cancro.
TEXTO: David Servan-Schreiber tem 49 anos e formou-se em Neuropsiquiatria pela Universidade de Pittsburgh, nos EUA. Aos 31 anos, soube que tinha um tumor maligno no cérebro. Mas ainda cá está e diz-se de óptima saúde. Sorte? Nada disso, explicou em duas conferências – uma para médicos, a outra para o público – durante o 3. º Congresso de Medicina Antienvelhecimento, que teve lugar há uma semana, em Cascais. A luta de Servan-Schreiber contra a doença mortal com a qual convive há 18 anos levou-o a tentar desemaranhar o novelo dos inúmeros estudos científicos sobre o cancro e a tentar dar-lhe sentido, para perceber o que torna umas pessoas mais resistentes ao cancro do que outras. As suas respostas estão no livro Anticancro – Uma nova maneira de viver, editado em Portugal pela Caderno em 2008 e que se tornou um best-seller mundial. Servan-Schreiber é um divulgador espectacular e convincente. Mas há ainda muita coisa por demonstrar cientificamente nas suas ideias. Até agora, tudo o que afirma baseia-se em estudos epidemiológicos ou em experiências in vitro e em animais. Mas argumenta que as mudanças de estilo de vida que preconiza não podem fazer mal nenhum – e que, se funcionarem, mais vale começar a aplicá-las já do que esperar. Antes de escrever o livro receou que a sua abordagem desse falsas esperanças a outros doentes com cancro. Mas percebeu que o que acontece é que eles vivem numa situação de “falso desespero”, porque sentem que não têm qualquer controlo sobre a sua doença e a sua vida, e decidiu transmitir-lhes as suas “mensagens de verdadeira esperança”. Como um verdadeiro guru. Você teve um cancro. Qual é a sua história?Eu era um jovem médico universitário, cientista, director de um laboratório de estudo das emoções através de imagens do cérebro obtidas por ressonância magnética. Tinha 31 anos e era muito ambicioso. Num fim de tarde, o voluntário que devia submeter-se à experiência desse dia faltou e decidi ser eu a entrar no scanner para o substituir. Foi assim que descobri que tinha um cancro do cérebro. Tive muita sorte, porque o tumor foi apanhado muito cedo e fui operado bastante depressa. Mas o cancro voltou. Tudo correu bem até à recaída, há dez anos, em 2000. Dessa vez foi mais grave, porque o tumor era maior e mais agressivo. Tive de ser novamente operado e de fazer quimioterapia e radioterapia. Foram a cirurgia e os outrostratamentos do cancro que lhe salvaram a vida das duas vezes. Claro. Mas foi nessa altura que pensei que provavelmente isso não seria sufi ciente: as estatísticas de sobrevivência a este tipo de tumores não são boas. E decidi ver o que eu próprio podia fazer para reforça a capacidade de o meu corpo combater a doença. No seu livro Anticancro descreve uma série de regras simples de estilo de vida que podem ajudar a combater a proliferação cancerosa. Quais são?Ter atenção ao que comemos para que, se possível, a comida que ingerimos três vezes ao dia contribua para fazer abrandar a proliferação cancerosa. Como se tomássemos pequenas doses de medicamentos todos os dias. Não têm qualquer efeito tóxico – antes pelo contrário, só trazem benefícios para a saúde. Também é preciso manter um certo nível de actividade física, pois isso estimula todas as capacidades promotoras da saúde do corpo – e em particular o sistema imunitário e a eliminação pelo organismo das substâncias cancerígenas. Por outro lado, temos de aprender a gerir melhor o nosso stress através de métodos simples de relaxação e de relacionamento com os outros. E, por último, devemos evitar ao máximo os produtos tóxicos cancerígenos. Ao ler o seu livro, fi camos com a ideia de que ter um cancro para si foi quase uma coisa boa, que melhorou a sua vida. Sem dúvida. E muitas pessoas que tiveram cancro dizem a mesma coisa – que agradecem ao seu cancro por lhes ter permitido pôr ordem na sua vida. Isso também acontece, aliás, às pessoas que sofreram um enfarte. É uma grande martelada, mas leva muitas pessoas a arrumar as suas vidas. Mas o que mais me espanta é que a minha saúde é muito melhor hoje do que antes de ter tido cancro. O meu estado de saúde é melhor aos 49 anos do que quando tinha 28 ou 29 anos. Afi rma que assistimos actualmente a uma epidemia de cancro, com maior incidência nos jovens do que no passado. Os médicos estão cientes disto, nomeadamente em relação ao cancro da mama. Quais são as causas desta epidemia?Uma mistura de factores alteraram completamente o nosso estilo de vida a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, em particular nas sociedades da Europa ocidental e da América do Norte. A nossa alimentação foi totalmente transformada, passámos a ter muito menos actividades físicas, as redes sociais e de amizade foram-se degradando – e reduzimos a nossa exposição ao sol (e, portanto, os níveis de vitamina D no organismo). Ao mesmo tempo, começámos a ser expostos a produtos químicos com uma intensidade sem precedentes. Juntos, todos estes factores criam um terreno propício à progressão do cancro no corpo humano. Não diria que provocam forçosamente o cancro, mas criam um terreno propício. Fala-se muito da predisposição genética para o cancro e fica-se com a ideia de que há pessoas a quem calhou um “mau” número na lotaria genética. Um exemplo disso são os genes BRCA1 e 2, responsáveis pela maioria dos cancros hereditários da mama e do ovário. Mas, na sua opinião, o nosso destino não fica determinado à nascença. Acha mesmo que temos o poder de contrariar essa lotaria?O que nos dizem estudos recentes é que, se as mulheres que têm mutações nesses genes não fizerem nada de particular, o seu risco de contrair cancro da mama é de 80 por cento. Mas também nos dizem que, quanto maior a quantidade de legumes na alimentação dessas mulheres, mais pequeno o risco. E isso apesar das mutações: as participantes com mutações nesses genes que comiam as maiores quantidades de vegetais viram o seu risco de cancro da mama reduzido em 73 por cento em relação àquelas que comiam as quantidades mais pequenas. Cerca de 15 por cento dos cancros têm uma componente genética. Mas mesmo quando essa componente existe, os factores ligados ao estilo de vida desempenham um papel importantíssimo, tanto para fazer com que esses genes de cancro se expressem como para impedir a sua expressão. Na alimentação, o que é que promove o cancro?Para além do tabaco e do álcool, em primeiro lugar o açúcar e as farinhas brancas. É pena, porque as farinhas brancas são muito apetitosas. Mas no corpo elas transformamse imediatamente em açúcar. Depois temos os óleos de girassol, soja, milho; a carne e os produtos derivados de animais criados com rações à base de soja e de milho (em vez de pastagens). Do lado dos contaminantes químicos, certos pesticidas, certos produtos químicos presentes nos perfumes e nos cosméticos (parabenos e ftalatos), o tetracloroetileno (o solvente da limpeza a seco) ou o bisfenol A (BPA), que é libertado pelos plásticos duros quando são expostos a alimentos ou líquidos quentes. É uma agressão permanente. . . É. Mas isso não quer dizer que todas as pessoas que tenham bebido uma chávena de chá aquecido no microondas numa caneca de plástico duro vão morrer de cancro, porque existem imensos factores que podem compensar esse efeito. Também fazem parte da equação, do equilíbrio, o facto de ser fisicamente activo, de comer com frequência legumes anticancro, de ter bons níveis de vitamina D no organismo e uma rede social de qualidade. São os desequilíbrios que fazem aumentar as probabilidades de o cancro se desenvolver. Mas, apesar de todas estas mudanças supostamente perigosas de dieta e outras, a esperança de vida – e de vida com qualidade – aumentou nitidamente nas sociedades ocidentais. Isso não é paradoxal?A esperança de vida que aumentou foi a das pessoas que nasceram antes de 1950. A esperança de vida das crianças que nascem hoje nos Estados Unidos é inferior à dos seus pais. E é a primeira vez na História da humanidade que isso acontece. Aquilo a que chama alimentos “anticancro” – biológicos, em particular – continuam a ser mais caros do que os outros. Como comer “anticancro” quando se tem uma família para alimentar?Não é totalmente verdade que os alimentos biológicos sejam muito mais caros. Tem mesmo havido estudos sobre a questão. Mas, sobretudo, é preciso passar para uma alimentação de tipo mediterrânico, com quantidades muito mais pequenas de produtos de origem animal. Basta cortar na quantidade de carne que comemos para poupar dinheiro. Se substituirmos a carne por lentilhas e feijões, garanto que o orçamento alimentar da família diminui. E não somos obrigados a comer apenas alimentos biológicos. É melhor, mas não é vital. Mais vale comer brócolos, mesmo que tenham resíduos de pesticidas, do que não comer brócolos nenhuns. A carne não é importante para o crescimento das crianças?As crianças vegetarianas têm um crescimento tão saudável como o das outras. A alimentação tem de fornecer proteínas, mas uma mistura de feijão e de arroz, por exemplo, fornece a mesma quantidade de proteínas que um bife. Há uns anos, um grande estudo sobre suplementos de betacaroteno revelou-se não só decepcionante mas sugeriu mesmo que os comprimidos de beta-caroteno faziam aumentar a incidência de certos cancros. Por que é que os especialistas insistem neste tipo de estudos se, como já referiu, um único ingrediente não chega para combater o cancro?A medicina procura sempre extrair um agente activo. O que eu tento mostrar é que isso não faz sentido. O cancro é um desequilíbrio entre inúmeros factores que o promovem e inúmeros factores susceptíveis de o travar. Se pretendermos utilizar apenas um ingrediente, o mais provável é que não observemos qualquer efeito. Isso também vale para os ómega-3 [gorduras essenciais, contidas nomeadamente no peixe]? Explica que os ómega 3 são gorduras anticancro cruciais, mas sozinhos também não chegam?Não, não chegam. É óbvio. E o que é melhor, tomar um comprimido de ómega 3 ou ir buscar o ómega 3 aos alimentos?Ir buscá-lo aos alimentos. O peixe, por exemplo, que contém muito ómega 3, também tem outras coisas muito úteis, como o selénio, o iodo, para além de ser uma boa fonte de proteína animal sem muitos dos inconvenientes da carne. Considera o álcool como um agente de cancro, mas o vinho tinto como uma excepção. Mais vale engolir um comprimido de resveratrol [o ingrediente “anticancro” responsável pelos benefícios do vinho tinto], beber vinho tinto ou comer uvas pretas?Há menos resveratrol nas uvas do que no vinho tinto, porque a fermentação contribui para extrair o resveratrol das uvas. É difícil dar uma resposta, porque a vantagem dos comprimidos é que não contêm álcool. Mas é um facto que um pouco de vinho tinto (mesmo pouco!) parece contribuir para a eliminação do cancro e favorecer a saúde em geral. E não devemos esquecer que o vinho tinto é também benéfico para a saúde cardiovascular. Mas mal ultrapassamos certas doses, verifica-se o efeito contrário: o vinho torna-se promotor do cancro. Diz que as margarinas que fazem baixar o colesterol contribuíram para fazer aumentar não apenas a incidência do cancro, mas também a das doenças cardiovasculares. Não é o que costumamos ouvir. Acontece que podemos fazer diminuir o colesterol e ao mesmo tempo aumentar os riscos de doenças cardiovasculares – e é o que este tipo de margarina faz [contém ómega 6, uma outra gordura essencial que, em níveis excessivos, tem sido apontada como promotora de doenças cardiovasculares e de cancro]. A questão do colesterol é muito complexa, mas o nível de colesterol é de facto menos importante do que o equilíbrio ómega 3/ómega 6, porque não temos medicamentos para mudar este equilíbrio – que depende, portanto, unicamente da nossa dieta –, mas temos medicamentos para diminuir o colesterol. Fala-se muito do colesterol e não o sufi ciente do equilíbrio ómega 3/ómega 6. Se não devemos pôr nem manteiga nem margarina na nossa torrada do pequeno-almoço, o que é que nos resta?Azeite. É delicioso. Mas comer pão também não é uma grande ideia. Mesmo pão integral?O pão integral também não é a melhor escolha, tem de ser multicereais. E, mesmo assim, é muito mais aconselhável comer muesli (ou uma mistura de cereais e frutas) com um iogurte biológico ou de soja. Isso é que contém muitas coisas que vão estimular a saúde do nosso corpo, não o pão. Só deveríamos comer produtos frescos?O que é preciso evitar são os chamados ácidos gordos trans – que são gorduras que não ficam rançosas e, por isso, são muito utilizadas na indústria alimentar. Mas isso, toda a gente o diz. E se consumirmos conservas, é melhor escolher as que vêm em boiões de vidro. Também podemos comer alimentos congelados. Diz que os médicos continuam a transmitir aos seus doentes com cancro uma mensagem de “falso desespero”, ao dizerem que, em termos de estilo de vida, não há muito a fazer. Chegam a dizer que, para tal ou tal cancro, o doente pode continuar a fumar, porque isso não faz grande diferença. É possível mudar essa atitude “derrotista”?É o que tento fazer. Nas minhas conferências, falo de um estudo que mostra uma redução de 68 por cento do risco de cancro da mama em mulheres que aprenderam a mudar o seu estilo de vida. Mas, mesmo quando há um ensaio como este, ninguém ouviu falar dele. Porquê? Porque ninguém convida os médicos a passar dois dias em Cascais, com todas as suas despesas pagas, para se inteirarem dos benefícios das frutas e dos legumes, do jogging ou das técnicas de relaxação. Há muito pouco dinheiro para fazer estudos quando não há nada que possa resultar numa patente. Mas é preciso ter em conta que cada um destes elementos, isoladamente, pesa muito pouco na balança. Comer apenas brócolos não trava o cancro. Fazer jogging e mais nada não trava o cancro. É quando começamos a juntar todas estas coisas que obtemos resultados. Existe uma pressão sobre os médicos por parte dos laboratórios farmacêuticos para não falarem de alterações do estilo de vida?Não é preciso. Os laboratórios farmacêuticos não têm sequer de mexer um dedo, porque as barreiras que impedem que isto penetre a prática médica são muito efi cazes. Os médicos não recebem mais dinheiro por darem conselhos nutricionais aos seus doentes, antes pelo contrário, uma vez que acabam por passar mais tempo com cada doente. Considera-se livre do seu cancro hoje?Não. E não pensa que, no fundo, teve sobretudo sorte – pelo facto de o seu tumor ter sido operável e de a quimioterapia e a radioterapia terem resultado?Eu não sou uma experiência científi ca. O que digo no meu livro não se baseia no sucesso ou no fracasso do meu caso pessoal – e ainda bem. Não possuo nenhum método garantido a 100 por cento, não sei o que me irá acontecer daqui a três meses ou três anos. Mas isso não altera a validade do que digo. Tento pôr todas as chances do meu lado, mas em relação ao resto não tenho qualquer controlo. Claro que poderíamos dizer que tive sorte: quando olhamos para as estatísticas, há menos de dois por cento das pessoas com a mesma doença que eu e que estão hoje no mesmo ponto que eu. O que faz actualmente?Lancei um programa de investigação com o Centro de Estudo do Cancro MD Anderson de Houston [Universidade do Texas], para testar a minha abordagem através de medições biológicas. Queremos ver como é que as mudanças de estilo de vida modifi cam a natureza do terreno do corpo, fazendo com que as células cancerosas tenham menos hipóteses de proliferar. E estou a trabalhar num livro de receitas de cozinha, com indicações muito precisas em termos de alimentação. É que convém que o resultado seja saboroso. DicasAlguns ingredientes do estilo de vida "anticancro", a consumir em simultâneo
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Entrevista em 2008: "É como se houvesse dentro de mim uma parte intocada. Ali não entra nada"
O escritor português deu uma entrevista ao Ípsilon em Novembro de 2008, um ano depois de uma doença grave. (...)

Entrevista em 2008: "É como se houvesse dentro de mim uma parte intocada. Ali não entra nada"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.25
DATA: 2010-06-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: O escritor português deu uma entrevista ao Ípsilon em Novembro de 2008, um ano depois de uma doença grave.
TEXTO: José Saramago num sábado à tarde. Sala aquecida, luz fria de um Inverno que ainda não é, chilreio de meninos que passam no bairro. Talvez de alguns pássaros, também. Ele parece ser maior do que a casa; melhor, as pernas parecem não caber no sofá, no espaço disponível. Troca-as, destroca-as, o joelho sempre erguido e pontiagudo. Tem ainda a imponência de um gigante. Mas agora seco, delgado - como o avô Jerónimo - o cabelo ralo, um fio de voz. De muitas palavras -ao contrário do avô Jerónimo. Nessa tarde, Saramago foi assim. Ganhou peso, tem uma espécie de protuberânciazinha no lugar da barriga. Há um ano julgou que morria. Pensou que não avançaria nas 40 páginas já escritas. Avançou. Ganhou peso. Ou, como Saramago diria, porque é muito ordenado no pensamento, ganhou peso, avançou. Chegou ao seu destino. Escreveu "A Viagem do Elefante". Saramago empenhou na escrita do livro a sua palavra e a sua vida -como se pode ler. Por agora, o destino é esse. Depois, não pode ser outro senão a morte. Conversa com um homem lúcido. O livro relata a viagem de um elefante, presente de casamento do rei Dom João III e Dona Catarina a Maximiliano de Áustria, de Lisboa a Viena. É uma "visita sentimental de um bruto paquiderme", que passa por Valladolid, o mar, Génova, as montanhas; Viena, por fim. Passa por lobos e desfiladeiros, aldeias curiosas, em ambiente de campanha. Atravessa a Igreja Católica sedenta de um milagre e as lutas internas com o luteranismo. O condutor do elefante não é aquele que conduz a história - esse papel fica para o narrador. Tem um nome indiano que significa branco. E o elefante, quem é? E para onde vai, além de Viena?Começamos pelo livro: "A ressurreição, afinal, estava sobretudo, dependente da livre vontade de lázaro e não dos poderes milagrosos, por muito sublimes que fossem, do nazareno. Se lázaro ressuscitou foi porque lhe falaram com bons modos, tão simples quanto isso". Na sua doença, foi você que quis viver ou foi Pilar [mulher do escritor] que lhe falou com bons modos? Eu não lhe podia falar com maus modos. Nem tinha forças. E ela muito menos. Comunicávamos com as frases que eu conseguia arrumar na minha cabeça, entre o cá e o lá em que me encontrei numa fase -demasiado longa, para meu gosto. Salvarme, transformou-se no objectivo e desejo de todos os meus amigos, e, no caso de Pilar, numa obsessão. Enfim, escapei. Dizer que lhe devo a vida. . . Devo-lhe a vida a ela, aos médicos, a toda a gente que me manteve à tona, e também devo a vida a mim mesmo. Antes disso, estava entre a consciência e a inconsciência? Tenho a memória de que qualquer coisa na minha cabeça entrava em deriva, e eu deixava-me ir. Não era ir atrás dos pensamentos, porque, em rigor, não posso dizer que estava pensando. No quarto, já com largos períodos de consciência total, ficava por vezes numa espécie de limbo. E eu via isso. Era como se fosse um ecrã. A comparação maior é o céu negro com quatro estrelas. Mas no meu caso não eram estrelas. Eram simplesmente quatro pontos brancos, dispostos em quadrilátero, não regular. Era para mim claríssimo, e defenderia essa ideia contra quem fosse, que eu era aquele quadrilátero. Como se se visse de fora? Sim. Esta complicadíssima experiência teve outro efeito: usamos uma linguagem que não é sempre a mesma, que vai variando consoante os tempos que vivemos. Somos um armazém de sedimentos, ou extractos linguísticos. São os que usámos e retivemos nos diferentes períodos da nossa vida. Claro que quando estava na aldeia, na minha adolescência, tinha uma linguagem, não só da época como do lugar. E ficou cá. Quando a minha vida mudou, em Lisboa, e aos 24 anos publico um livro, já era outra pessoa, outra linguagem, outro modo de entender as coisas. No livro, duas personagens mudam de nome. O condutor do elefante passa de Subhro a Fritz e o elefante de Salomão a Solimão. Como se uma palavra diferente dissesse respeito a uma outra identidade. Exacto. O que é que aconteceu durante a minha doença? É que a ordem destes sedimentos alterou-se. Encontro-me diante de uma evidência, que demonstraria com o próprio livro. Este livro está escrito de uma maneira que é simultaneamente moderna e quase arcaica. Algumas coisas que estavam lá no fundo, nessa revolução interior de extractos linguísticos, passaram à superfície. Na hora de escrever o livro apresentaram-se-me construções frásicas, certas utilizações de verbos, palavras que não recordava ter usado nos últimos 40 anos. É pela palavra que nos fazemos, que nos criamos, que nos salvamos. Não temos outra coisa. É que não temos outra coisa. Somos as palavras que usamos. A nossa vida é isso. Se eu digo: estou pensando, e me perguntar: "em quê?", a minha resposta só pode ser com palavras. Não posso tirar o pensamento da cabeça e pô-lo em cima da mesa: aqui está o que eu estava pensando. O livro anterior a este é um livro de memórias, em que se volta, sobretudo, para a infância -um sedimento muito antigo, onde as palavras eram outras. O inconsciente tê-lo-á guinado para aquele lado? Como é que passa de um livro ao outro? O livro d' "As Pequenas Memórias" [2006] é escrito com linguagem que uso hoje. No caso d' "A Viagem do Elefante" é como se houvesse outra mão que me guiasse. Para que eu aceitasse, recebesse e utilizasse palavras e expressões. O que mais caracteriza este livro é o tom narrativo, o modo de narrar. O narrador é uma personagem numa história que não é sua. Sempre defendi a ideia de que o narrador não existe. Neste livro resolvo a questão -pelo menos resolvo-a para mim, que é a única coisa que importa. Passando a considerar-me autor sim, mas autor-narrador, não dissociado. Assumo tudo. É o narrador-autor, aquele que conduz a viagem. Mas está também nas outras personagens? No cornaca (aquele que guia o elefante), no comandante (que se pode imaginar ser um alter-ego seu), no elefante. Provavelmente estou em todas as personagens. Os dados históricos comprovados que se referem à viagem deste elefante cabem numa página, e ainda sobra. Portanto, este livro é um livro de invenção. As personagens históricas, o arquiduque, a arquiduquesa, D. João III, a Rainha Catarina, vejo-os mais como comparsas -embora estes últimos tenham um papel, o que têm para dizer tem importância no contexto do livro. O resto, o capitão de cavalaria, os austríacos, toda a gente que se vai encontrando pelo caminho, são produto da imaginação. Eu não seria o arquiduque, embora certas manifestações poderia aceitar como minhas. A arquiduquesa é uma sombra que passa, destinada a parir 16 vezes. E temos o elefante. É fácil olhar para ele como metáfora da própria vida. É. Não há nada que o elefante faça que possa ser interpretado como consequência de um pensamento seu. Diz, aliás, ao longo do livro, que não se pode saber o que o elefante pensa. Ele não tem palavras, não usa palavras. Se os elefantes pensam, eu não sei como é que pensam. Se nem sei muito bem como é que pensa o meu cérebro. . . O Torga, nos "Bichos", que são uns contos magníficos, antropomorfizou tudo -aqueles bichos pensam. Eu não queria isso. Queria que o meu elefante fosse levado de Lisboa a Viena como um animal que não sabe onde o levam, que não tem nenhuma ideia de qual possa ser o seu destino e que vai andando, porque outros o levam, e também vão andando. Realmente, é um pouco como a vida. O que dá sentido a este livro é o final -o final da vida deste animal, Salomão. Como tinha que acontecer, esfolam-no. A pele é oferecida pelo arquiduque a um conde qualquer. E há aquele detalhe medonho: de usarem as patas para pôr bengalas e bastões. As mesmas patas que poderiam ter produzido um milagre, no miolo do livro. Sem isso, provavelmente o livro não existiria. A viagem do elefante, a autêntica viagem, é o que o leva a isso. As suas pernas andaram milhares de quilómetros, estiveram na Índia antes de o trazerem para Lisboa, serviram-no. E essas mesmas pernas são cortadas e transformadas irrisoriamente num recipiente para pôr as bengalas, os guarda-chuvas, as sombrinhas. Esse é o destino do elefante que faz essa viagem, com episódios épicos, e que acabou ali. A epígrafe do livro acompanha isto: "Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam". Claro que em termos latos, aquilo que nos espera é sempre a mesma coisa: a morte. Neste caso, não é só a morte, é o destino final. Caricato. Disseram-me que até há pouco tempo, essas patas ainda estavam no lugar onde tinham sido postas. Escreve na primeira parte do livro: "É a lei da vida: triunfo e olvido". Perguntam o que vai acontecer ao elefante, e a resposta é: vão dar-lhe umas palmadas -que nós diríamos nas costas -, vai haver muita gente nas ruas, e depois esquecem-se dele. Consigo, também vai ser assim? Inevitavelmente. Não vale a pena que tenhamos ilusões. Pode não acontecer em 50 anos, e talvez em 100 anos ainda haja quem me leia. Depois passo a ser um nome. Um nome que algum excêntrico vai ler e conhecerá. Quem é que, no momento em que estamos aqui a conversar, está a ler o Camões? -para além dos que tenham de lê-lo por obrigação. Quem é que está a ler o Gil Vicente, Dom Francisco Manuel de Melo, ou Padre António Vieira? Quem é que tem paciência para ler sermões, mesmo que eles sejam um esplendor? Desde quando tem a noção de que a sua vida será também triunfo e olvido? Desde sempre. Este pendor relativizante começou por mim mesmo. Depois do "Ensaio sobre a Cegueira" disse que se pudesse ser recordado por alguma coisa no futuro, que me recordassem como o criador do Cão das Lágrimas. Já vê que é pedir bastante pouco. . . Ninguém escreve para o futuro, ao contrário do que se julga. Somos pessoas do presente que escrevemos para o presente. Também pode acontecer que os livros deixem de ser livros e que o nome do autor continue como uma referência. Abrimos uma chaveta para dizer: José Saramago, aquele que inventou o Cão das Lágrimas, escritor, comunista. Pensamos nas palavras cardeais do seu universo: ironia, compaixão, imaginação. Acabamos por converter-nos em conceitos. Já não temos existência, mas continuamos a existir -naquilo que deixamos, nas ideias que as pessoas desse tempo, do futuro, têm sobre aquilo que deixamos, e que podem não coincidir com as nossas. Mas sobre isso não podemos nada, já não estamos cá. De qualquer forma, o olvido está garantido, mesmo que não seja total. Uma das coisas que me dá uma satisfação íntima. . . O meu avô morreu em 1948, a minha avó viveu ainda uns bons anos mais. Aí, o processo de esquecimento começava exactamente no momento em que cada um deles morreu. Dá-me uma satisfação que talvez nem saiba exprimir o facto de ter-lhes dado uma vida. Ao recordá-los, ao nomeá-los. Eu não deixei que morressem. O nome deles nunca mais seria citado, nunca mais se falaria nisso. A família está reduzida a quase nada: estou eu, a minha filha, um vago primo que talvez ainda os recorde. Estavam condenados a desaparecer já. Escrevi sobre eles. E em qualquer parte do mundo, alguém que se interesse por aquilo que faço, já sabe que tem que aguentar com os meus avós. Citou o seu avô no discurso que fez na Academia Sueca e apontou-o como o homem mais sábio que conheceu. Foi o princípio da minha conferência. E aí deixo o nome deles: Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha. Falar deles nestes termos pode levar a uma certa idealização. E sim, servindo-me deles como personagens literários, idealizeios. Mas não imaginem que eram extraordinários: eram pessoas comuns. Eram analfabetos. Porque é que ele era para si o homem mais sábio que conheceu? Porque eu era garoto. Era um homem alto, seco, delgado, de poucas palavras. Olhava para ele, não como se fosse o super-homem, ou um anjo caído do céu, porque era um homem, um camponês, não conhecia uma letra; contudo, como não tinha outros mestres, além dos da escola primária, aquele, sem que alguma vez lhe tivesse chamado isso, foi um mestre de vida. O próprio não sabia que era mestre, eu próprio não sabia que era seu discípulo; simplesmente vivíamos juntos na mesma casa. É possível que haja aqui muita elaboração mental. Mesmo que assim seja, no centro da questão está. . . O amor. Também. Eles não eram muito carinhosos. Não tinham tempo nem tinham sido educados para a expressão do afecto. Já muito tinham em que pensar -tendo comido ao almoço, se tinham comida ao jantar. Chamemos-lhe o momento mágico da infância para resolver esta questão -que não fica nada resolvida, claro. Um pouco como o narrador-Saramago que resolve no livro uma coisa por elipse, com um plof! Imagine se eu tivesse que resolver o processo. . . assim não: plof, e já está! Falei de imaginação, lucidez, ironia, compaixão, que comummente se dizem ser os pilares da sua narrativa. Quando recuperou da doença, temeu ter perdido alguma destas faculdades? Não. No que tem que ver com ironia e humor, nos diálogos que mantinha com os médicos usava uma ironia por vezes agressiva. A Pilar olhava para mim com os olhos esbugalhados; não era a dizer como é que eu me atrevia -estávamos a falar de igual para igual; mas afinal de contas estava muito vivo na minha cabeça. O corpo, estava um desastre, os pulmões encharcados, a perder peso a cada hora que passava, até aos 51 quilos com que saí do hospital. A prova de que não devo ter perdido nada do que era meu antes está no próprio livro. Mas isso só percebeu na escrita do livro? Quando partiu para ele, tinha uma insegurança de algum tipo? O livro foi escrito em duas fases. A primeira desde Fevereiro do ano passado até ao Verão, em que escrevi umas 40 páginas. Depois o meu estado agravou-se e o estado em que me encontrava tirou-me o apetite de escrever. E nisto passaram-se meses. No fim de Outubro, fui quatro dias a Buenos Aires - um disparate. Praticamente não comi. A certa altura meteu-se-me na cabeça que queria maçãs assadas. Mas é impossível encontrar na Argentina maçãs para assar e alguém que as saiba assar. Vim de lá muito mal e fui para uma clínica em Madrid, onde me fizeram uns quantos exames. Não acertaram com o diagnóstico. Fomos para Lanzarote. Aí entrei na rampa e comecei a deslizar para o fundo. Não tive uma dor, não posso dizer que sofri, dá mesmo a impressão que não estava lá. O meu estado era de tal ordem que no hospital tiveram dúvidas em aceitar-me. Porque não queriam que morresse no hospital deles! [riso] Se eu queria morrer, que fosse morrer noutro sítio! Aí a Pilar armou-se em Joana D'Arc e convenceu-os de que não podiam fazer isso, e revelaram-se pessoas e médicos extraordinários. Esteve três meses no hospital. Quando voltou a casa, de quanto tempo precisou até voltar a escrever? Eu era uma sombra. As minhas pernas eram incapazes de suster-me, agora imagine andar. . . Vinte a quatro horas depois já estava sentado à mesa a trabalhar. Porque é que escrever foi indispensável? Aquele trabalho tinha sido interrompido. Durante o tempo em que estive doente cheguei a dizer à Pilar: "Não sei se vou conseguir acabar o livro". A Pilar, falando com os médicos, chegou a dizer-lhes: "Garantam-lhe a vida por mais três meses para que ele possa terminar o livro". Há que dizer que três meses não bastariam. A Pilar sabe pedir. . . Sabe falar com bons modos. . . Sabe, sabe. A Pilar, se quer alguma coisa, é irresistível! [riso] Essa dedicatória que pus, "a Pilar que me agarrou pela gola do casaco e não me deixou cair ao poço" [na verdade, o que está escrito no livro é: "A Pilar, que não deixou que eu morresse"], figuradamente é isso. Curiosamente, a palavra pilar aparece no livro uma única vez, para dizer "pilar da fé". Um pilar é algo que nos sustém. É o pilar da sua vida? Foi, tem sido, e espero que continue a ser o meu pilar. Além de ser intimamente a minha Pilar, é também o meu pilar. Voltemos à necessidade de 24 horas depois estar a trabalhar. Era uma forma de manter-se vivo? Vivo estava eu. Não era o corpo que queria escrever, era a cabeça. Essa ideia -não sei se vou conseguir acabar o livro -continuava cá dentro. A primeira coisa que fiz foi rever tudo o que estava escrito. E corrigir. Se me pergunta: tinha cabeça para correcções? Tinha cabeça para o que fosse. Quando cheguei ao fim dessas correcções, engatei a história, e terminei o livro no dia 12 de Agosto. É um livro muito luminoso. É surpreendente, sabendo de onde vem. . . Embora a mim não me surpreenda. Tenho uma capacidade de distanciamento muito, muito grande. E neste caso, um distanciamento em relação ao doente que tinha sido, ao convalescente que continuava a ser. Não reflecti: posso ou não posso escrever. Já se veria se podia. Abri o computador, procurei o que estava há meses parado, numa certa palavra, e recomecei sem dramatismos. Detesto dramatismos. Detesto aquilo que os escritores cultivam muito: a relação dramática com a escrita. Porque é que detesta esse dramatismo? Porque acho que é falso. Fala como se o que faz fosse simplesmente um ofício. Escrever é um trabalho. Da mesma maneira que um médico, o que faz, é um trabalho. Essas histórias em volta da página branca, o horror da página branca. . . No seu passado de editor ou jornalista estava em contacto directo com as palavras; mas era para si um ofício diferente. Não é a mesma coisa estar no "Diário de Lisboa", e escrever o editorial, ou no "Diário de Notícias", e escrever os meus apontamentos; mas não difere muito. Num caso e noutro estou a usar as palavras, e as palavras de um romance são as mesmas, vêm do mesmo depósito de palavras. Quando eu era um escritor que ninguém conhecia já pensava: isto é um trabalho. Eu poderia ter as melhores ideias para livros, as inspirações mais fulgurantes, mas tenho que as pôr no papel. Pode acontecer, e acontece, que aquilo que eu julgava fulgurante afinal não o é tanto. Isso é trabalhar a forma. Quem trabalha a forma trabalha o conteúdo, quem trabalha o conteúdo trabalha a forma. Comparo o trabalho ao computador com o trabalho do oleiro. O oleiro agarra num bocado de barro, põe-no no torno, o torno gira e ele começa a trabalhar o barro até chegar à forma que quer. Há qualquer coisa de artesanal com o trabalho no computador. Não teve dificuldade em retomar o fio, em engatar, como disse? Nenhuma. Não tem virtude nenhuma. É simplesmente uma maneira de ser. Você está a ver a excelente ocasião que perdi para fazer do reatamento do meu trabalho um drama, uma angústia, uma ânsia, e agora como é que vai ser?, vou ser capaz? Nunca foi um angustiado, pois não? Nunca, nunca, nunca, nunca. E ainda bem. Tive os meus momentos de abatimento, mas entrar em depressão, nunca entrei. O que é que o segurou? O que é que fez com que nunca caísse em depressão? Já não o pensava há muitíssimos anos, e é simplesmente uma frase, mas é como se houvesse dentro de mim uma parte intocada. Ali não entra nada. E que se traduz numa certa serenidade, que se acentuou com a doença. Se alguma coisa pude aproveitar dela foi este sentimento de extrema serenidade. Passei pelos momentos maus e bons que todas as vidas têm, mas nunca perdi esta. . . , não quero chamar-lhe segurança de mim mesmo. . . É um pouco como o olho do furacão: em redor é morte e destruição, mas ali o vento não sopra. Essa noção, de ter essa parte intocada, tem-na desde quando? Desde que é possível ter consciência de uma coisa como esta. Pode ter sido aos 30 anos -ponhamos assim. Mas quando tive consciência, percebi que já antes era assim. Que auto-estima tinha esse homem que está para trás? O homem que foi na primeira parte da sua vida. Isso que descreve, parece ser uma coisa por sua conta, autónoma. De certo modo. Eu tinha 18 ou 19 anos e tinha um grupo de amigos -como éramos cinco, chamávamo-nos Pentágono! E um dia conversando sobre umas quantas coisas sérias -o que é que era a vida? -disse esta frase que recordo tal qual e que me ficou para toda a vida: "Aquilo que tiver que ser meu às mãos me há-de vir ter". Na boca de um rapaz, nos anos 40, uma frase como esta parece reflectir um fatalismo radical. Falame de auto-estima: creio que sempre a tive e que esta frase pode ser interpretada nesse sentido. Como nunca fiz projecto de carreira, como nunca fui uma pessoa ambiciosa, como na minha vida não houve cálculo, realmente não fiz nada para que as coisas acontecessem. A não ser o trabalho que tinha de fazer a cada momento. Fez todos os trabalhos com o mesmo empenho? Fazia o melhor que sabia e podia, quer fosse na oficina de serralharia onde comecei, quer nas actividades que vieram depois. Vou contar-lhe uma coisa: o Nataniel Costa era o director editorial da Estúdios Cor. Encontrávamo-nos no Café Chiado. Eu não tinha quaisquer credenciais. Tinha os meus amigos, os tais do Pentágono -portanto, ficava numa mesa à parte. E ouvia os outros, os Abelairas, essa gente, ali reunida. Passado tempo, o Nataniel entrou na carreira diplomática e falou comigo. Seguimos juntos pelo passeio, em direcção à Brasileira. "Queria perguntar-lhe se está disposto a ocupar o meu lugar na editora enquanto eu estiver ausente, e depois logo se verá". Porque me dizia aquilo a mim? "Não faltam pessoas a quem poderia ter falado; mas não tenho a certeza de que não aproveitassem essa circunstância para me apunhalarem pelas costas". Isto é dos momentos mais importantes da minha vida. Alguém que não tinha sido pago para isso nem tinha razões afectivas para o fazer, disse o que disse. Além de confiarem na sua lealdade, foi o início de um período, em que foi editor. É como se pudesse dizer-me: tenho razão em ter feito a minha vida como a fiz até hoje. Durante anos escrevíamo-nos, trocávamos ideias e sempre nos entendemos sem o mínimo atrito, nunca houve roçadura de pele. A imaginação, a ironia, a compaixão estão para o autor como a moral, a coerência, o comunismo estão para o homem? Contaminam-se, e são do mesmo? São, são. Comunismo é um estado de espírito. Um dia participei no programa do Bernard Pivot [na televisão francesa] que veio com essa: "Como é que você ainda se considera comunista?" Disse espontaneamente: "Acontece que sou uma espécie de comunista hormonal. Da mesma maneira que a barba me cresce, há uma hormona que fez de mim isto, e não posso deixar de o ser. Pode dizerme: depois disto que aconteceu, e isto e isto; de acordo, tudo isso aconteceu, e parece-me mal que tenha acontecido, e condeno quem o fez. Mas isso não me tira o direito, e o dever, de ser aquilo que sou". Ele riuse muito. É isso. Mais recentemente converti isto na declaração: o comunismo é um estado de espírito. Dois camaradas atacaram isto, em nome do materialismo dialéctico. Não entenderam. Voltando ao livro, há momentos de provação. Como quando a caravana enfrenta o desfiladeiro ou os lobos. O que há numa situação e noutra é o medo. Não sei da sua relação com o medo. Nunca me encontrei em situações em que o medo se desencadeasse fora do meu domínio. Pondo esta salvaguarda, não me considero uma pessoa medrosa. Também não sou um exemplo de valentia -nunca fui posto à prova. Vamos à experiência mais recente, a doença. O medo da morte, que é um medo tão comum, nunca tive. A probabilidade de morrer era alta. Talvez não tenha tido medo por causa da costela fatalista que tenho -o que tiver de ser, será. É evidente que o elefante não pode sucumbir aos lobos, ou cair no desfiladeiro -ou seja, nas partes menos boas. Se transportar isso para a vida, é uma forma de optimismo. E que liga com aquela frase dos 19 anos. Escreve para ser amado? Escrever é uma forma de ser amado? Pode ser entendido assim. O Gabriel García Márquez dizia que escrevia para que gostassem dele. É possível. É mais exacto dizer que a gente escreve porque não quer morrer. Ser amado pelo outro não está na nossa mão; podemos escrever para que isso aconteça, e depois acontecerá ou não. Já que temos que morrer, que alguma coisa fique. Não é imortalidade - isso seria um disparate; é um reconhecimento por algum tempo mais. Notícia corrigida às 16h03
REFERÊNCIAS:
O melhor de José Saramago pelos nossos leitores
O PÚBLICO convida os leitores a partilharem as suas passagens preferidas das obras de José Saramago. Os excertos devem ser enviados para o endereço de correio electrónico leitores@publico.pt, com o título "José Saramago – a minha escolha", o nome do leitor, localidade e o nome da obra de onde foram retirados. (...)

O melhor de José Saramago pelos nossos leitores
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 1.0
DATA: 2010-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: O PÚBLICO convida os leitores a partilharem as suas passagens preferidas das obras de José Saramago. Os excertos devem ser enviados para o endereço de correio electrónico leitores@publico.pt, com o título "José Saramago – a minha escolha", o nome do leitor, localidade e o nome da obra de onde foram retirados.
TEXTO: Colette Johnston, Valladolid - Espanha"O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que nao foi visto, ver outra vez o que se viu já. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já. "in "Viagem a Portugal" Maria Pereira, Elvas Jeová não conhecem nem o nome. Enfim, mais duradoiros são os rancores dos deuses do que dos homens. Os homens são estes pobres diabos, capazes sim de terríveis vinganças, mas a quem uma coisita de nada comove, e, se a hora é a certa e a luz propícia, cai nos braços do inimigo, a chorar esta estranhíssima condição de ser homem, de ser mulher, de ser gente. in "Levantado do Chão"Hugo Rosário, Lisboa"sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam"in "A Viagem do Elefante" "O José Dinis morreu. As coisas são o que são, agora se nasce, logo se vive, por fim se morre, não vale a pena dar-lhe mais voltas, o José Dinis veio e passou, choraram-se umas lágrimas na ocasião, mas o certo é que a gente não pode levar a vida a chorar os mortos. "in "As Pequenas Memórias" Jorge Ribeiro, Coimbra"(. . . ) não somos o que dizemos, somos o crédito que nos dão (. . . )" in "O Ano da Morte de Ricardo Reis"Rosângela Ferreira de Carvalho Borges, Brasil"Aprendamos um pouco, isso e o resto, o próprio orgulho também, com aqueles que do chão se levantaram e a ele não tornam, porque do chão só devemos querer o alimento e aceitar a sepultura, nunca a resignação" in "Levantado do Chão"Eduarda Gil Lopes Barata, Amadora"Quando entrou na sala, todos continuavam sentados nos seus lugares. (…) A mulher do médico aproximou o copo dos lábios do rapazinho estrábico, disse, Aqui tens a água, bebe devagar, devagar, saboreia, um copo de água é uma maravilha, não falava para ele, não falava para ninguém, simplesmente comunicava ao mundo a maravilha que é um copo de água. Onde a encontraste, é água da chuva, perguntou o marido, Não, é do autoclismo, E não tínhamos ainda um garrafão de água quando nos fomos daqui, perguntou ele de novo, a mulher exclamou, Sim, como foi que não me lembrei, um garrafão que estava em meio e outro que nem encetado estava, oh que alegria, não bebas, não bebas mais, isto dizia-o ao rapaz, vamos todos beber água pura, ponho os nossos melhores copos na mesa e vamos beber água pura. Agarrou desta vez na candeia e foi à cozinha, voltou com o garrafão, a luz entrava por ele, fazia cintilar a jóia que tinha dentro. Colocou-o sobre a mesa, foi buscar os copos, os melhores que tinham, de cristal finíssimo, depois, lentamente, como se estivesse a oficiar um rito, encheu-os. No fim disse, Bebamos. (…) procuraram e encontraram os copos, levantaram-nos tremendo. Bebamos, repetiu a mulher do médico. No centro da mesa, a candeia era como um sol rodeado de astros brilhantes. Quando os copos foram pousados, a rapariga dos óculos escuros e o velho da venda preta estavam a chorar. in "Ensaio Sobre a Cegueira"Paulo Batista"Se a música pode ser tão excelente mestre da argumentação, quero já ser músico e não pregador, Fico obrigado pelo cumprimento, mas quisera eu, senhor padre Bartolomeu de Gusmão, que a minha música fosse um dia capaz de expor, contrapor e concluir como fazem sermão e discurso, Ainda que, reparando bem no que se diz e como, senhor Scarlatti, se exponham e contraponham, as mais das vezes, fumo e nevoeiro, e se conclua coisa nenhuma. A isto não respondeu o música, e o padre rematou, Todo o pregador honesto o sente quando baixa do púlpito. Disse o italiano, encolhendo os ombros, Fica o silêncio depois da música e depois do sermão, que importa que se louve o sermão e aplauda a música, talvez só o silêncio exista verdadeiramente. " in "Memorial do Convento"Paulo Rato, Queluz"Poema a Boca Fechada Não direi:Que o silêncio me sufoca e amordaça. Calado estou, calado ficarei, Pois que a língua que falo é doutra raça. Palavras consumidas se acumulam, Se represam, cisterna de águas mortas, Ácidas mágoas em limos transformadas, Vasa de fundo em que há raízes tortas. Não direi:Que nem sequer o esforço de as dizer merecem, Palavras que não digam quanto seiNeste retiro em que me não conhecem. Nem só lodos se arrastam, nem só lamas, Nem só animais boiam, mortos, medos, Túrgidos frutos em cachos se entrelaçamNo negro poço de onde sobem dedos. Só direi, Crispadamente recolhido e mudo, Que quem se cala quanto me calei, Não poderá morrer sem dizer tudo. in ""Os Poemas Possíveis"Marina Tavares, Sobreira - Viseu"Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma". in "O Conto da Ilha Desconhecida" André Figueira, Funchal"(. . . ) Assim é, minha filha, e quanto mais se for prolongando a tua vida, melhor verás que o mundo é como uma grande sombra que vai passando para dentro do nosso coração, por isso o mundo se torna vazio e o coração não resisto, oh, minha mãe, que é nascer, Nascer é morrer, Maria Barbara. "in "Memorial do Convento"Manuela Matos Monteiro"Na morte a cegueira é igual para todos. ""Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa somos nós"in "Ensaio sobra a cegueira"Amadeu Gonçalves, Vila Nova de Famalicão"(. . . ) a pintura não é mais do que literatura feita com pincéis (. . . )"in "História do Cerco de Lisboa""Tendo nascido, nasci no princípio da minha morte, portanto quase morto. "in "Manual de Pintura e Caligrafia""Deus é tanto mais Deus quanto mais inacessível for (. . . )"in "O Evangelho Segundo Jesus Cristo""Há ocasiões, e se é verdade que na ocasião se faz o ladrão, também se pode fazer a revolução (. . . )"in "O Ano da Morte de Ricardo Reis"Rui Pedro Vasconcelos, V. N. Gaia "Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. . . "in "As Intermitências da Morte"Paulo Gonçalves"(. . . ) o que é que em nós sonha o que sonhamos, porventura os sonhos são a lembrança que a alma tem do corpo"in "O Evangelho Segundo Jesus Cristo"Ana Soares Barbosa“Deus é o silêncio do universo, e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio”in "Cadernos de Lanzarote"Miguel Torres Preto“Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem”in “Ensaio sobre a Cegueira”Joana Pimentel Alves, Coimbra"Não falou Blimunda, não lhe falou Baltasar, apenas se olharam, olharem-se era a casa de ambos. "in "Memorial do Convento"Maria Teresa Magalhães" O chefe do Governo pôs a mão direita em cima do telefone. Não chegou a esperar um minuto, Senhor primeiro-ministro, começou o ministro do interior, Já sei, não diga mais, cometemos um erro, Disse cometemos, Sim, cometemos, porque se um se equivocou e o outro não corrigiu, o erro é de ambos. . . . . "in "Ensaio Sobre a Lucidez"Ana Luísa Carvalho, Aldeia do Meco"Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida, quando de súbito o céu por cima da sua cabeça se abre de par em par e Deus aparece, vestido como estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a terra, dizendo, Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência. Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez. Depois, foi morrendo no meio de um sonho, estava em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo os ombros e sorrindo também, Nem eu posso fazer-te todas as perguntas, nem tu podes dar-me todas as respostas. "in "O Evangelho Segundo Jesus Cristo"Ivo Raposo". . . a convulsa realidade do universo em que somos um fiozinho de merda a ponto de se dissolver. . . "in "As Intermitências da Morte"Catarina Reis"Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu. "in "Memorial do Convento"Miguel Cardoso - Viseu"Acham eles que passando nós fome nas nossas terras nos devíamos sujeitar a tudo, mas aí é que se enganam, que a nossa fome é uma fome limpa, e os cardos que temos de ripar, ripam-nos as nossas mãos, que mesmo quando estão sujas, limpas são, não há mãos mais limpas do que as nossas, é a primeira coisa que aprendemos quando entramos no quartel, não faz parte da instrução de arma, mas adivinha-se, e um homem pode escolher entre a fome inteira e a vergonha de comer o que nos dão, quando também é certo que a mim me vieram chamar a Monte Lavre para servir a pátria, dizem eles, mas servir a pátria não sei o que seja, se a pátria é minha mãe e é meu pai, dizem também, de meus verdadeiros pais sei eu, e todos sabem dos seus, que tiraram à boca para não faltar à nossa, e então a pátria deverá tirar à sua própria boca para não faltar à minha, e se eu tiver de comer cardos, coma-os a pátria comigo, ou então uns são filhos da pátria e os outros são filhos da puta. "in "Levantado do Chão"Catarina Campinas Furtado, Roterdão“Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais. ”in “Levantado do Chão”Rui Valente, Coimbra"Voar é uma simples coisa comparando com Blimunda"in "Memorial do Convento"Alexandra Godinho, Lisboa"Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não vêem"in "Ensaio Sobre a Cegueira"Ângela Pisco" Releu o que escrevera. . . como se estivesse a tomar conhecimento de um recado deixado por alguém de quem não gostasse, ou o irritasse mais do que é normal e desculpável. . . Agora que está começado vai ser preciso acabá-lo, é como uma fatalidade. E as pessoas nem sonham que quem acaba uma coisa nunca é a aquela que a começou, mesmo que ambas tenham nome igual, que isso só é que se mantém constante, nada mais. ""Há ocasiões assim. Acreditamos na importância do que dissemos ou escrevemos até um certo ponto, apenas porque não foi possível calor os sons ou apagar os traços, mas entra-nos no corpo a tentação da mudez, a fascinação da imobilidade, estar como estão os deuses, calados e quietos, assistindo apenas. "in "O Ano da Morte de Ricardo Reis"Albano Mendes de Matos"A queima vai adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquela extremo arde um homema a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltazar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda. "in "Memorial do Convento"Alexandre Sousa"Não é verdade. A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: «Não há mais que ver», sabia que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com Sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já. "in "Viagens a Portugal"Paulo Gonçalves, Porto"Em verdade, em verdade vos digo, há certas maneiras de ser feliz que são simplesmente odiosas. "in "Cadernos 2"Fernanda Damas Cabral"Epitáfio para Luís de CamõesQue sabemos de ti, se só deixaste versos, Que lembrança ficou no mundo que tiveste?Do nascer ao morrer ganhaste os dias todos?Ou perderam-te a vida os versos que fizeste?"in “Os Poemas Possíveis”, ed. 1999, p. 33Jorge Moita"Quem dele [João Domingos Serra] me falou pela primeira vez foi Maria João Mogarro: “E está aí o João Serra, de quem se diz que escreveu a sua vida, nunca vi, mas deve ser certo. ” Imagina-se o meu alvoroço, um camponês escritor, um António Aleixo da prosa… “Uns apontamentos, não?”», perguntei eu a fingir um cepticismo que não sentia. “Que não”, respondeu ela, “«pelo menos é o que me têm dito. ” No dia seguinte fomos bater à porta do João Serra, que não estava, estavam, sim, as filhas, “O nosso pai está no hospital”, disseram. Expliquei ao que ia, que estava a escrever um livro sobre o Lavre e que seria para mim uma grande ajuda poder passar uma vista de olhos pelo que ele tinha feito. Pusemo-nos de acordo em esperar que o pai saísse do hospital, aonde o tinham levado certos achaques agravados da velhice, e, finalmente, uns quantos dias depois, recebia das mãos do próprio João Domingos Serra o fruto do seu labor. Com o caderno debaixo do braço corri para o meu refúgio e pus-me a ler, com a ideia de ir copiando à mão as passagens mais interessantes, mas rapidamente compreendi que nem uma só daquelas palavras poderia perder-se. Não terminei a leitura. Meti uma folha de papel na máquina e comecei a trasladar, com todos os seus pontos e vírgulas, incluindo algum erro de ortografia, o escrito de João Serra. Tinha enfim livro. Ainda tive de esperar três anos para que a história amadurecesse na minha cabeça, mas o Levantado do Chão começou a ser escrito nesse dia, quando contraí uma dívida que nunca poderei pagar. "Prefácio a "Uma Família do Alentejo"João Pedro Gato"Posto diante de todos estes homens reunidos, de todas estas mulheres, de todas estas crianças (sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra, assim lhes fora mandado), cujo suor não nascia do trabalho que não tinham, mas da agonia insuportável de não o ter, Deus arrependeu-se dos males que havia feito e permitido, a um ponto tal que, num arrebato de contrição, quis mudar o seu nome para um outro mais humano. Falando à multidão, anunciou: “A partir de hoje chamar-me-eis Justiça. ” E a multidão respondeu-lhe: “Justiça, já nós a temos, e não nos atende. Disse Deus: “Sendo assim, tomarei o nome de Direito. ” E a multidão tornou a responder-lhe: “Direito, já nós o temos, e não nos conhece. " E Deus: "Nesse caso, ficarei com o nome de Caridade, que é um nome bonito. ” Disse a multidão: “Não necessitamos caridade, o que queremos é uma Justiça que se cumpra e um Direito que nos respeite. "Prefácio a "Terra", de Sebastião SalgadoDaniela Brasil". . . olhava como se olha o vazio, no vazio não há perto nem longe onde parar os olhos, em verdade, não é possível fixar uma ausência. "in "O Evangelho Segundo Jesus Cristo"Daniel Carolo“Já sabemos que destes dois se amam as almas, os corpos e as vontades, porém, estando deitados, assistem as vontades e as almas ao gosto dos corpos, ou talvez ainda se agarrem mais a eles para tomarem parte no gosto, difícil é saber que parte há em cada parte, se está perdendo ou ganhando a alma quando Blimunda levanta as saias e Baltasar deslaça as bragas, se está a vontade ganhando ou perdendo quando ambos suspiram e gemem, se ficou o corpo vencedor ou vencido quando Baltasar descansa em Blimunda e ela o descansa a ele, ambos se descansando. ” in “Memorial do Convento”Alice Loureiro, Braga "A vida é assim, está cheia de palavras que não valem a pena, cada uma que ainda formos dizendo tirará o lugar a outra mais merecedora, que o seria não tanto por si mesma, mas pelas consequências de tê-la dito"in "A Caverna"Lauro Lopes"(. . . ) A solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio de uma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz. "in "O Ano da Morte de Ricardo Reis"Ana Alexandre"Bastar-te-ás a ti próprio enquanto puderes aguentar, depois confia-te a quem mereces, melhor se esse for alguém que te mereça. " in "A Jangada de Pedra"Paulo Sousa, Alcabideche“Vou a tempo, disse, e era certo, ia a tempo, no fim de contas é como sempre vamos, a tempo, com o tempo, no tempo, e nuca fora do tempo, por muito que disso nos acusem. ”in "A Caverna"Nuno Santos Carneiro, Porto"Servem as palavras para isto: tão certas são para errar, como erradas para acertar"in "Que farei com este livro?"
REFERÊNCIAS:
Joshua Sofaer: "Apesar dos problemas, o Porto "tem uma vida cultural vibrante"
Daqui a um ano, no máximo, o Porto vai ter uma rua nova, e este é o homem que vai fazer disso (aliás já fez) uma festa. As práticas artísticas, acredita Joshua Sofaer, são a melhor maneira de fazer com que o poder pertença, efectivamente, ao homem da rua. (...)

Joshua Sofaer: "Apesar dos problemas, o Porto "tem uma vida cultural vibrante"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.005
DATA: 2010-06-27 | Jornal Público
SUMÁRIO: Daqui a um ano, no máximo, o Porto vai ter uma rua nova, e este é o homem que vai fazer disso (aliás já fez) uma festa. As práticas artísticas, acredita Joshua Sofaer, são a melhor maneira de fazer com que o poder pertença, efectivamente, ao homem da rua.
TEXTO: Joshua Sofaer, o britânico que o FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica convidou para vir ao Porto convencer cidadãos anónimos a darem o nome a uma rua, já pôs os japoneses de Moriya a contemplar numa galeria as toneladas de livros e revistas que deitaram ao lixo em apenas 24 horas, os noruegueses das Lofoten a folhear o catálogo das colecções (de selos, de chávenas de café, de bonecas, de fl ores) de todos os habitantes do arquipélago e os ingleses de Londres a revirar a cidade em busca de animais esculpidos em cenouras. Parece uma brincadeira, mas não é: a arte, diz ele, é o único lugar onde cidadãos anónimos se permitem fazer coisas que nunca lhes passariam pela cabeça. Incluindo governar (das grandes às pequenas decisões, como a de escolher o nome de uma rua) a cidade onde vivem. PÚBLICO – Quando é que vão inaugurar a rua do Viver a Rua? JOSHUA SOFAER – Gostávamos de concluir o processo até daqui a um ano. Nesta fase, o nosso painel de juízes está a escolher o seu top pessoal de cinco nomes, por ordem de preferência. A seguir iremos verifi car o rigor das histórias por trás destes nomes e confirmar que os proponentes querem mesmo avançar com a proposta. No fim, levaremos uma lista definitiva à Comissão de Toponímia da cidade, e depois depende. Quando houver decisão queremos inaugurar a rua a sério, com uma festa. Como é que se lembrou de convidar a cidade a discutir que nome dar a uma rua?Antes de vir ao Porto, já tinha lançado dois projectos semelhantes no Reino Unido, Name in Lights e Rooted in the Earth. Em Birmingham, propus que se escrevesse o nome de uma pessoa num néon gigante em pleno centro da cidade; em Londres, propus que se fizesse mais ou menos a mesma coisa, mas desta vez escrevendo o nome de uma pessoa com flores, em canteiros públicos de praças e parques da cidade. Em Novembro, o Núcleo de Experimentação Coreográfica (NEC) convidou-me para vir ao Porto fazer um workshop sobre como promover a inclusão social e activar uma cidade através das práticas artísticas, e nessa altura ficou decidido que eu voltaria com um projecto para o FITEI. O NEC queria que fosse uma coisa muito visível, mas que custasse muito pouco dinheiro, e então resolvi que seria isto: envolver os cidadãos do Porto na discussão acerca do nome a dar a uma nova rua. O que é que tinha na cabeça no início do Viver a Rua? Participar na escolha do nome de uma rua da cidade onde vivemos é mais do que mandar palpites e sugerir que as pessoas de quem gostamos fiquem imortalizadas no espaço público. É uma discussão que nos obriga a pensar sobre que tipo de pessoas queremos como modelo e o que realmente significa ser cidadão. É sobretudo nisso que estou interessado. Se no fim do dia as pessoas concluírem que não há ninguém que mereça ter o nome numa rua, para mim o projecto é um sucesso na mesma. É o processo, e não o resultado, que vale. Aqui, o que é importante é que este nome, o nome que um cidadão anónimo como outro qualquer propôs, vai fazer parte do tecido da cidade, vai ficar no mapa. Acho que é a primeira vez que faço uma coisa que me vai sobreviver. Vai haver pessoas a viver e a morrer nessa rua, talvez alguns bebés venham a ser feitos nessa rua. Pensando bem, é incrível. Quantas propostas receberam?Estava um bocado inseguro sobre a adesão que iríamos ter. Quando fizemos o Name in Lights em Birmingham, houve milhares de propostas, mas basicamente apenas pedíamos às pessoas que nos enviassem um nome. Aqui fomos mais exigentes, as pessoas tinham de escrever um pequeno ensaio a explicar por que razão sugeriam aquele nome. . . Tivemos 253 propostas, mas, uma vez mais, não quero que isto seja sobre números e resultados. De qualquer modo, esperava que houvesse pelo menos cem propostas, portanto os resultados praticamente duplicaram as minhas expectativas. Que tipo de nomes apareceram? Todo o tipo de nomes. Desde figuras históricas até familiares dos proponentes, pessoas que obviamente não merecem uma rua mais do que qualquer outro cidadão, e até personagens de ficção. Apareceram muitas histórias tristes. Curiosamente, várias pessoas propuseram nomes de figuras históricas que na verdade já têm uma rua no Porto. O que mostra, por um lado, que as pessoas não conhecem bem a cidade, mas também que a Comissão de Toponímia está a fazer um bom trabalho. No Porto, muitas pessoas propuseram nomes de jogadores de futebol. . . Pelo contrário, os nomes vencedores dos seus anteriores projectos eram sobretudo de cidadãos anónimos dedicados à comunidade. . . No Porto essas pessoas não apareceram?No Porto, os cidadãos anónimos também foram maioritários. Mas claro que os nomes mais repetidos correspondem a jogadores de futebol. Em Londres, quando fizemos o Rooted in the Earth, a maioria dos votos foi para o “Baby Peter”, um menino que tinha sido assassinado pelo padrasto, num caso que sensibilizou imenso a opinião pública. Os juízes decidiram não escolher esse nome porque o espírito do projecto é celebrar figuras anónimas da comunidade, e não aquelas de que os jornais falam todos os dias. Vai ser interessante perceber como pensam os júris do Porto. Eu, pessoalmente, acho que esta é uma oportunidade para fazer uma coisa que de outra forma nunca seria feita: dar o nome de um cidadão vulgar a uma rua. Provavelmente, mais cedo ou mais tarde, esses jogadores de futebol acabarão por ter uma rua, com ou sem o Viver a Rua. Acho mágico passar numa rua e ver um néon enorme com o nome de uma pessoa que não faço ideia quem seja. É completamente a negação do star system que caracteriza a cultura contemporânea. Também por isso, gostava que a placa que vai ficar na rua não dissesse nada acerca da pessoa além do nome dela. Quero que as pessoas passem por ali e fiquem intrigadas. Se explicamos tudo, qual é a mística? Trabalha muito com nomes. O que é que o fascina tanto nos nomes?Os nomes são como guiões. Não os escolhemos, mas recebemo-los à nascença, e depois passamos a vida a desempenhá-los [performing]. Penso muitas vezes como é que seria a minha vida se tivesse outro nome, mesmo que tivesse exactamente a mesma cara e a mesma psicologia. Se tivesse um nome islâmico, por exemplo. Fascina-me o modo como os nomes operam. A primeira coisa que fazemos quando conhecemos um estranho é perguntar-lhe o nome – e é extremamente desconfortável falar com uma pessoa que não sabemos como se chama. Porquê? É só um nome. Acredito que, num certo sentido, os nomes são inescapáveis. O meu nome, por exemplo, significa escriba. E o que realmente faço na vida é escrever; neste caso, escrever os nomes das outras pessoas. E na rua, como é que correu o processo? Tivemos voluntários a ir para a rua para mobilizar as pessoas. E correu muito bem. Sobretudo porque houve desenvolvimentos inesperados, e coisas que são muito particulares do Porto. Por exemplo?Uma das coisas com que nos deparámos várias vezes foi a incredulidade das pessoas. As pessoas não acreditavam que isto era mesmo a sério. Diziam-nos: “Ah sim, é muito giro, mas claro que não vai acontecer. ” A segunda pergunta era: “E o que é que a câmara vai achar disso?” É bastante evidente que os portuenses se sentem excluídos do processo político de tomada de decisões acerca da vida da cidade, que se sentem sem poder, empurrados para fora da infra-estrutura política. Não lhes parece que possam ter uma palavra a dizer sobre o rumo da cidade. E isso, para mim, provou a absoluta necessidade de um projecto como o Viver a Rua. O que estamos aqui a fazer é a dizer às pessoas: “Esta cidade é vossa. Os burocratas que estão no poder actuam em vosso nome, mandatados por vocês, para fazerem aquilo que vocês acham melhor para a cidade. ” Ao permitirmos que escolham o nome de uma rua, estamos a encontrar uma maneira muito simples de dar aos cidadãos uma voz directa na coisa pública. Outra coisa curiosa: as pessoas queriam saber que tipo de rua estava em causa: “É que se for uma rua assim muito pequena não estou interessado. ” Fez-me pensar no tormento que é estar dentro de um aeroporto gigante, tipo Charles de Gaulle ou JFK, a correr para apanhar um avião, ou a desesperar porque as malas não aparecem. Os aeroportos são sítios desagradáveis e impessoais, e ainda assim a maior homenagem pública que se pode fazer a uma pessoa é dar o nome dela a um aeroporto. Depois da morte da princesa Diana houve uma enorme discussão em Londres para decidir se se devia dar o nome dela ao aeroporto de Heathrow. Por falar em discussão, o projecto incluiu uma série de workshops. Como correram? Organizámos workshops de escrita criativa, de história local e de reflexão sobre conceitos de cidadania e de família. A ideia não era garantirmos, através dos participantes nos workshops, um número mínimo de nomeações. Mas foi compensador que esses workshops nos tenham levado a trabalhar com escolas, e que vários grupos de alunos tenham feito propostas de nomes. O que é que aprendeu sobre o Porto?Aprendi que as pessoas do Porto adoram a cidade, apesar de passarem a vida a resmungar e queixar-se dela. Quase todas querem saber o que eu acho do Porto comparado com Lisboa, mas eu ainda não fui a Lisboa. No Reino Unido não existe uma divisão semelhante?No Reino Unido todas as pessoas que vivem fora de Londres odeiam Londres e todas as pessoas que vivem em Londres seriam incapazes de viver noutro lado. E como lhe pareceu a cidade em termos de participação cultural?Acho que o Porto está num ponto de viragem. Quando vim cá em Novembro, a cidade pareceu-me envelhecida; agora, nesta segunda visita, o tempo estava fabuloso e a cidade saiu completamente cá para fora. É incrível a quantidade de coisas que aconteceram na mesma semana numa cidade tão pequena: a Feira do Livro, o FITEI, o Serralves em Festa, o Clubbing. . . Quais são os pontos fortes e os pontos fracos da cidade, em termos de participação artística?Prefiro falar em bons e maus exemplos. Um exemplo brilhante é o Clubbing. Estive lá numa das últimas noites e vi um público completamente diversificado a responder com igual entusiasmo a programas complexos de música erudita e a sessões altamente experimentais de electrónica. Um mau exemplo, tenho de admitir, é o Serralves em Festa. Foi uma enorme desilusão. Achei que os projectos apresentados eram paternalistas, para não dizer mais. O mínimo denominador comum, absolutamente: novo circo, teatro de rua, balões, palhaços em andas. . . A arte contemporânea não é aquilo. É uma pena que consigam reunir tanta gente naquele espaço e que depois o Serralves em Festa não passe de um dia no parque. A câmara desinvestiu na cultura nos últimos anos. É um erro, nesta fase de euforia à volta das indústrias criativas? Acho que toda a participação financeira, pública e privada, nas práticas artísticas é saudável. Já se percebeu que, nesta área, os subsídios geram efectivamente emprego e riqueza. Nesta fase de severa crise económica, é óbvio que é politicamente mais aceitável cortar na cultura, mas a cultura é o que nos define como civilização. Logo a seguir à Segunda Guerra Mundial, quando a Inglaterra quis diminuir os gastos com a cultura, o Winston Churchill (não acredito que estou a citar o Winston Churchill) perguntou: então para que é que estivemos a lutar? Não pode haver Europa sem cultura. Ouvi falar do Rivoli mal cheguei ao Porto, falaram-me da ruptura que houve com a sua cedência a um produtor comercial. Mas o que me parece é que, quaisquer que sejam os problemas de bastidores, o Porto tem uma vida cultural vibrante. Mas é claro que é sempre possível fazer mais, e sem gastar muito mais dinheiro. Esta cidade tem imensos prédios e lojas ao abandono, a câmara podia e devia relaxar as regras de acesso e ocupação desses espaços, ceder licenças temporárias para a apresentação de espectáculos; não há razões para que os artistas tenham dificuldade em encontrar espaços. Acima de tudo, o papel do poder local é activar a noção de que as coisas são possíveis. E aqui, claramente, pelo menos no que depende da câmara, os artistas acham que as coisas são impossíveis.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte guerra cultura comunidade social princesa circo
O fabuloso destino de Alfredo Casimiro, um casapiano milionário aos 30 anos
Esta é a história nunca contada de um menino pobre que percebeu aos 30 anos que estava milionário. Um casapiano que acreditou no slogan da sua empresa: "We make it possible." (A Urbanos foi considerada a melhor PME para se trabalhar em 2010.) Como é que ele tornou isto possível? (...)

O fabuloso destino de Alfredo Casimiro, um casapiano milionário aos 30 anos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.4
DATA: 2010-07-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: Esta é a história nunca contada de um menino pobre que percebeu aos 30 anos que estava milionário. Um casapiano que acreditou no slogan da sua empresa: "We make it possible." (A Urbanos foi considerada a melhor PME para se trabalhar em 2010.) Como é que ele tornou isto possível?
TEXTO: Nasceu em 1966. Ontem. Viveu uma vida pobre, arrumada, limpa. Teve a noção do que eram cinco tostões, um tostão, dois tostões. "Os outros miúdos tinham jogos, brinquedos; as mães iam ao intervalo levar um bolo; a minha mãe, às vezes, conseguia comprar-me um bolo, mas de casa eu levava uma sandes. " Fez o seu primeiro negócio aos dez anos. Foi aluno da Casa Pia. Encontrou um preceptor que lhe disse que ele não tinha jeito para nada. (Estará ele a ler a entrevista - pergunta-se Alfredo Casimiro?) Casou e teve filhas cedo. Fundou uma empresa eleita em 2010 como a melhor PME para se trabalhar. Envolveu a família. Cresceu. Enriqueceu. Qual é o segredo de Alfredo Casimiro?A entrevista acontece em casa, no country club de Belas. É uma casa imensa, de linhas despojadas, que não revela de forma ostensiva o património que acumulou nos últimos 20 anos. Não é um exibicionista. Nas fotografias pede, sem pedir, algum recato. Não pretende confirmar o cliché do novo-rico que posa na casa com piscina, exuberante. Desfaz-se num sorriso quando a filha mais nova anuncia que chegou a casa: "Pai, pai, pai!" Tem mais duas filhas, do primeiro casamento. A vida delas nem por sombras se parece com aquela que o pai teve. Mas ele teve o prazer de vencer. A voz é tonitruante. Conta detalhadamente o que viveu. Não esquece pormenores como o de a carne vir da aldeia já arranjada. Ou o gesto do empregado que um dia não lhe deu uma bola de Berlim. Ou o olhar do pai numa conversa decisiva. Ou os anos em que não teve férias para fazer prosperar a empresa. (A Urbanos é hoje muito mais do que uma empresa de mudanças; Casimiro indica que apenas 20 por cento do volume de negócio resulta dessa área. ) A história desta entrevista começa há quase dois anos, quando pela primeira vez quis contar a vida de Alfredo Casimiro. Com polidez, recusou. Só este ano, depois da atribuição do prémio de melhor PME para se trabalhar em Portugal, e sobretudo depois da morte súbita do irmão, anuiu. Está mais sozinho. E dá a cara por um império que está a ser erguido. Tem quase 44 anos. Às vezes parece que foi há uma eternidade, e não ontem, que tudo começou. Quando é que teve a noção de que a sua vida podia ser uma coisa extraordinária?Não tive essa noção. Tive essa necessidade. Que quadro de vida era o seu? Como é que o vivia? Para perceber a necessidade que sentiu de o mudar. Os meus pais são migrantes de uma aldeia perto de Alenquer, Cabanas de Torres. O meu pai foi criado no campo, fez o serviço militar, fez a guerra, instalou-se em Lisboa. Nasci em Julho, eles terão casado em Março ou Abril de 1966. Alugaram o chamado "quarto com serventia de cozinha". A minha mãe empregou-se numa fábrica de pilhas, a Tudor. Eu ficava com uns tios-avós que moravam perto, que me mimavam muito. Os donos da casa onde os meus pais viviam não tinham filhos. O homem era contrabandista, daqueles que nos anos 60 iam a Badajoz buscar chocolates e rebuçados para revender em Lisboa. Um dia comi chocolates até quase morrer, literalmente. Aos 16 meses, tive uma colagem completa dos intestinos e estive três semanas internado no hospital Dona Estefânia, no vai não vai. Foi filho único até 1972. Quem eram os seus amigos?O bairro onde morávamos era em frente a um bairro de barracas. Essas pessoas, que moravam num ambiente degradado, eram os meus amigos. Jogávamos à bola, passávamos o tempo na rua. Quando fui para a escola primária, fui em condições distintas dessas pessoas. Como era muito irrequieto, os meus pais fizeram um esforço adicional e puseram-me num pseudojardim infantil aos quatro anos. Era a casa da Dona Celeste, uma professora reformada que dava explicações na salinha de jantar. Quando fui para a primária, já sabia ler e escrever correctamente. Estes meus companheiros de rua tinham normalmente problemas de aprendizagem, agravados pelo alcoolismo dos pais, pela desestruturação da família; era eu que os ajudava nos trabalhos de casa. Alguns tinham mais dois, três anos do que eu e andavam na primeira classe. Estamos a falar de um tempo anterior ao 25 de Abril, os castigos corporais eram frequentes na escola. Por causa disso, desde pequeno, fiquei com um grupo de guarda-costas privativo! [riso] O seu pai arranjou emprego na Carris. Fazia o quê?Começou por ser guarda-freio, depois passou a cobrador, depois passou a motorista; fez toda a sua vida profissional, até se reformar, como motorista da Carris. A minha mãe era doméstica e simultaneamente fazia costura para fora. Éramos o que se pode definir como família de classe média-baixa. O meu pai ganhava 900 escudos por mês e pagávamos 513 de renda. É um valor que retenho porque a partir dos dez, 11 anos, era eu que ia à Caixa Geral de Depósitos depositar esse dinheiro todos os meses. Era uma grande responsabilidade. Era mais de metade do que o seu pai ganhava. Tinha medo de o perder, de ser assaltado? Esses temores assaltavam-no?Não. Para colmatar as nossas necessidades, o meu pai alugou um pedaço de terreno perto de casa e fez uma pequena horta. Cultivámos feijão verde, tomate, cebola, alho; todos os produtos hortícolas normais, para não termos de gastar dinheiro na praça. Quando tínhamos excesso de legumes, que não consumíamos inteiramente, vendíamos as sobras. Eu tinha seis, sete anos, e ia vender aos vizinhos. Achavam-me graça e eu tinha habilidade para falar com as pessoas. O dinheiro era muito esticado para que não chegássemos ao final do mês sem dinheiro. Eram conversas que tinham consigo, que ouvia? Responsabilizavam-no?Fui envolvido desde a mais tenra infância. Falávamos sobre o valor das coisas, o valor do trabalho, as contas da casa. Faziam-se malabarismos. Antes de o último tomar banho, desligava-se o gás para se gastar a água quente que estava ainda nos canos. Sempre me habituei a tomar duche muito rápido. O meu pai dizia que era por uma questão de robustez física que tomava banho de água fria (até morrer, nunca tomou banho de água quente); mas não acredito, acho que fazia isso para não gastar gás. E poupávamos imenso. Quando fui para a primeira classe, no primeiro dia, a minha mãe foi ter comigo ao recreio e levou-me um pacote de batatas fritas. Um luxo absoluto! Esse gesto da sua mãe revela um cuidado consigo. Com o que é que acha que eles sonhavam?Sonhavam dar-me a mim e aos meus irmãos uma vida melhor do que aquela que tinham. Cada um deles só estudou até à quarta classe. Esforçavam-me muito. O meu pai folgava um dia por semana, fazia muitas horas extraordinárias. Na minha primeira infância, passava os Verões em Cabanas com os meus avós. O meu avô paterno, António, tinha a alcunha de gajão; quando era novo, era bonito, imponente. O meu pai era o mais velho de seis irmãos. Os meus tios iam à guerra e os meus avós vestiam de preto - como se tivesse morrido alguém. Os meus avós estiveram de luto desde que o meu pai foi à tropa, em 1961, até ao 25 de Abril. A antecipar a morte de um filho, que felizmente nunca aconteceu. O Verão na aldeia: tranquilo, com os meus avós, em casa, com o gado. Era uma vida muito pobre - digo: a pobreza do tempo de Salazar. Com pouco cash, mas razoável abundância de tudo. Os meus pais tinham falta de roupa e de sapatos, mas para comer havia sempre pão, carne. Nunca passei fome, nunca andei roto, nunca andei miserável. Apesar de tudo, o quadro que descreve não é desesperado. O que é que o faz dar o salto, sentir a necessidade de que a sua vida fosse outra?[Pausa] Não o consigo identificar. Há um fenómeno que é importante referir. Em 1969, morre uma irmã da minha mãe, que era muito próxima. A minha mãe ficou muito abalada. A forma de se recompor passou pelo encontro com as Testemunhas de Jeová. O meu pai continuou católico até ao fim da vida e sempre com mágoa por a minha mãe praticar uma religião diferente. Mas as meninas são dos pais e os meninos são das mães. Não tenho memórias de práticas religiosas que não sejam as das Testemunhas de Jeová. O que é que aprendeu?Coisas fabulosas. O código ético é muito apertado. É muito difícil convencê-la a ser Testemunha de Jeová, é preciso uma grande capacidade de convencimento, e para isso somos treinados desde que lá chegamos. O objectivo é que me torne um reprodutor dessa mensagem, um pregador dessa palavra e um angariador de mais Testemunhas de Jeová. Isto molda profundamente o meu carácter, e venho a aproveitá-lo em toda a minha vida. Por que é que saiu? Hormonas. Estive até aos 14 anos. Havia uma total proibição de relacionamento entre sexos. Mas, durante os anos em que estive, aprendi muito. Que o não é o princípio do sim. Que é preciso insistir e conseguir. A sua relação com a sua mãe era a célula fundamental da sua vida. A passagem pelas Testemunhas de Jeová é expressão disso. Como era em casa?Ajudo a minha mãe em casa, na costura, a passar a ferro, a tirar linhas. Era uma casa cheia. Todos os irmãos do meu pai passaram por nossa casa depois de regressarem da guerra. Ficaram seis meses, um ano, dois anos, até casarem. Posso dizer-lhe que nunca tive um quarto. Quando é que teve o seu primeiro quarto?Quando me casei. Até lá, dormia sempre na sala ou no divã. Nunca tive essa privacidade. Estava lá, por exemplo, o meu tio-padrinho, que hoje é meu sócio e por quem tenho um profundo carinho. O meu pai tentou metê-los a todos na Carris. Ele sentia essa preocupação em relação aos irmãos? Era o patriarca. Que é, no fundo, hoje o seu papel na família. Os amigos podemos escolher, a família é nossa. Se Deus me deu este dom e esta capacidade de me autodesenvolver, de construir alguma coisa, tenho esta responsabilidade perante a família. Qual foi o primeiro dinheiro que ganhou? Vou falar do primeiro negócio que fiz. Sempre gostei muito de ler e não tinha dinheiro para comprar livros. Só tinha livros emprestados. Os livros da escola primária que tinha eram livros de alguém que já tinha andado na escola primária. Usados, rabiscados, sujos. Em Odivelas, junto à paragem das camionetas, havia uma barraca-armário e um velhote que trocava livros. Deixávamos um livro, trazíamos outro. Um livro custava 25 tostões, pagávamos 10 tostões e trazíamos outro que ainda não tivéssemos lido. Na minha zona não havia nada igual. Então, aos dez anos, tinha uma valise de carton - do género Linda de Suza - com livros. Investia todo o dinheiro que me davam e que ganhava em livros. Passava duas horas por dia, entre as 17h e as 19h, na paragem do autocarro, a vender e a trocar livros. Foi esta a minha fonte de rendimento até ir para a Casa Pia. Sempre sozinho. Contava consigo e partilhava o que vivia com a sua mãe?Exactamente. O salto: em 1972, o meu pai conseguiu comprar um carro velho, uma Renault 4L castanha. Ainda me lembro da matrícula: DG/46 /26. Gostava de saber onde está esse carro. . . Gostava de o ter?Adorava! O meu pai vendeu-o quando tinha 16 anos, com grande pena minha. Queria tê-lo por ter sido o primeiro carro da família, um símbolo de uma certa ascensão?Seguramente. Dava-nos uma sensação de quase riqueza. Estávamos desenraizados. A nossa referência não era o sítio onde vivíamos. Era a aldeia; e na aldeia, estávamos claramente acima da média (porque os meus pais tinham comprado um apartamento próprio, um carro). Em relação ao bairro de barracas, passa-se a mesma coisa. O meu pai comprou o carro e no fim-de-semana fomos a Cabanas de Torres, trouxemos uma quantidade enorme de comida (couves, alfaces, coelhos, galinhas, carne já arranjada). A minha mãe pediu-me que levasse umas coisas ao meu tio, que morava na outra ponta de Odivelas. O meu tio dava-me sempre um dinheirito e naquele dia deu-me 25 tostões. Vim todo contente com a moeda branca no bolso, e na Rua da Memória vi uma pastelaria com uma montra cheia de bolos. Eu sabia que uma bola de Berlim, na padaria, custava 15 tostões. Tenho a cena como se fosse hoje, felliniana. . . Chego-me ao balcão com o meu metro e dez de altura, peço ao empregado: "Quero uma bola de Berlim, se faz favor. " Um empregado vestido de branco, de lacinho. Vai ao armário, tira a bola de Berlim, mete em cima de um guardanapo, em cima de um prato, em cima do balcão. Estico-me e entrego os meus 25 tostões. Ele diz: "São três e quinhentos. " "Obrigado, não tenho. " Retirei a moeda, ele retirou o bolo, venho por aí fora. Penso muito, muito nessa bola de Berlim. Aliás, gosto pouco de bolos. Acho que tem a ver com isso. Determinou que ia ser diferente? Talvez o salto seja este. Sinto que tenho de ganhar dinheiro. Não vou passar a vida inteira a perguntar primeiro quanto é que as coisas custam, para saber se as posso comprar. Esta é a história da minha vida até aos 12, 13 anos. Antes de avançarmos até à adolescência e à Casa Pia, conte-me de um brinquedo que tenha tido na infância. No Natal, a Carris dava brinquedos aos filhos dos funcionários. Nesses brinquedos vinha um saco com balões. Eu gostava tanto de balões. Imaginei que se iriam romper e estragar, e por isso guardei um em cima do reposteiro. "Daqui a uns meses, quando não tiver mais brinquedos, brinco contigo. " Mas, dali a uns meses, o balão estava completamente comido, provavelmente pelos bichos. Fez-me compreender que as coisas têm de ser vividas no dia-a-dia. Este exercício que estamos a fazer, de olhar para o passado e perceber que marcas há dele na pessoa que é hoje, é uma coisa que faz amiúde?Não o faço de forma tão sistematizada. Faço quando olho para as minhas filhas, e as vejo, como este fim-de-semana, a encher balões de água e a rebentá-los na piscina. Fiquei a pensar que tristeza seria se o visse na minha infância. Encher balões e rebentá-los de propósito era inconcebível. Ainda demorou muito na sua vida até assistir a cenas dessas, na piscina? E a dar-se com ricos? Muito tempo. Na minha infância só via ricos na televisão. Sempre estive integrado em grupos de pessoas do meu meio. Entretanto, a minha mãe ficou grávida da minha irmã, quando eu tinha 12 anos. Os meus pais tinham conseguido juntar algum dinheiro e começaram a construir uma casa na aldeia. Planeávamos inaugurá-la nas festas de Cabanas, no dia 3 de Setembro. No dia 2, a minha mãe, no fim do tempo, pôs-se em cima de um banco para limpar umas coisas; um banco de madeira, que se desmanchou todo. Caiu, destruiu o pé e o tornozelo, foi operada ainda antes de a minha irmã nascer. Esteve no hospital uns seis, sete meses. O meu irmão e eu ficámos sozinhos em casa, a minha irmã foi viver com uma tia. Estávamos em 1979, com uma inflação galopante. Por via desta falta da minha mãe em casa, da sua orientação, entrámos numa situação financeira crítica. O meu pai trabalhava incessantemente, 20 horas por dia, em grande desespero. Eu cozinhava, aguentava a casa, tomava conta do meu irmão. Chumbei o sétimo ano. Um dia disse ao meu pai: "Não vou estudar mais. " O meu pai olhou-me profundamente; não me lembro onde foi a conversa, mas lembro-me do olhar dele. "Nem penses nisso, está fora de questão. " Foi o olhar da determinação e da autoridade?Não foi um olhar autoritário. Foi o olhar de quem dizia que aquela seria a última opção. "Tens de te salvar pelo estudo"?Sim. "Tens de ser melhor. " A solução encontrada foi a Casa Pia?Foi. O meu pai transportava todos os dias uma senhora que trabalhava na secretaria da Casa Pia. Inscreveu-me, em Outubro de 1980 entrei como externo. Acordava todos os dias às cinco da manhã e chegava a casa às oito, nove da noite. Ia de autocarro de Odivelas até Belém. Associado a isto, tenho uma história com este homem que moldou a minha vida. O seu avô materno, cuja fotografia trouxe para perto de si durante a entrevista. O meu avô Alfredo. Por causa dele, mudei de nome aos 14 anos. O meu nome é António Alfredo. Toda a gente me chamava António, Toninho, Tonho, Tó. Nessa altura em que vou para a Casa Pia, o meu avô chama-me à parte e dá-me 500 escudos para comprar os livros. O homem que está nesta fotografia não sabia ler nem escrever. Na aldeia, pobre, foi o primeiro a ter uma vaca para produzir e vender leite. Foi o primeiro a comprar sementes de couves e a semeá-las. A alcunha dele era o Moca das Couves. Até então, as pessoas comiam cardos. Criou oito filhos e trabalhou noite e dia a sua terra. Quando cheguei à Casa Pia, "como é que te chamas?". Fiquei Alfredo, nome com o qual me identificava. É um tributo ao meu avô, que mudou a minha vida. Sempre vestido de preto, punha o barrete ao domingo, escondia os cigarros Porto dentro. Ainda lhe fiz a barba algumas vezes antes de morrer - dava-me um prazer enorme. Já tinha sucesso quando ele morreu? Em que fase da vida estava quando fez a barba ao seu avô?O meu avô morreu no final de 1992. Já ganhava muito dinheiro. Como foi a entrada na Casa Pia?A Casa Pia é uma escola fantástica a quem devo uma grande parte do que sou hoje. Se tenho continuado no ensino normal, teria desistido no ano seguinte - não acabaria o 9. º ano. Ter-me-ia desestruturado. Não sei se estaria cá hoje. Não sei se me teria acontecido o que aconteceu a mais de metade dos meus amigos, que morreram por problemas relacionados com a toxicodependência; outros estão presos. Aquilo era francamente duro. Heroína, crack. Nunca foi por aí?Nunca. Fumei o meu primeiro charro aos 14 anos, na Casa Pia. Recusei as drogas duras porque representam a alienação do mundo real. E é no mundo real que quero estar. É no mundo real que tenho de lutar. Na Casa Pia encontrei um ambiente hostil. Trinta por cento dos que lá estavam eram brancos; os outros eram negros, mulatos, timorenses (estávamos no fim do processo de descolonização). Miúdos com muito ressentimento, raiva, dor. A hierarquia era vincada, dos mais velhos sobre os mais novos. Tinha 14 anos, consegui socializar bem. Até porque trazia esta esperteza de rua, este street smart, que aprendi com os meus amigos das barracas. Queria licenciar-se, tirar um curso técnico para poder começar a trabalhar rapidamente? Qual é a opção?Vou para os cursos técnico-profissionais. Serralharia, marcenaria, electricidade, electrónica. Fiz uma série de testes psicotécnicos e um preceptor, que estava a licenciar-se em Psicologia, o Silva, viu os meus exames e disse-me: "Tu não tens jeito para nada. " Foi uma farpa que me espetaram. "Filho da puta, vou provar-te que estás enganado. " Nunca mais vi o Silva. Deve ser, com certeza, um funcionário público medíocre. Era um autoritário estúpido, que batia nos miúdos por prazer. Dedico-lhe grande parte das minhas vitórias. De cada vez que tem uma vitória continua a ouvir o Silva a dizer que não tem jeito para nada?Não. Continuo a ouvir o Silva em cada momento de ameaça. Sempre que me sinto acossado, encostado ao canto. Nas vitórias, ouço os meus amigos e a minha família. Na luta, vou buscar a força ao que o Silva me disse. Como não tinha jeito para nada, durante o primeiro ano passei de oficina em oficina. O que eu queria era electrónica. Por alguma razão especial?Era o mais limpo. Era o mais intelectual. Era onde estavam os melhores. E era aquilo para que tinha mais jeito. Encontrei aí alguns dos meus mestres. Na mesma altura, comecei a trabalhar nas férias e aos fins-de-semana. Ajudava a montar equipamento de som em bailes dos Alunos de Apolo, na Feira Popular, nos Bombeiros Lisbonenses. Ganhava algum dinheiro para os cigarros. Um dos bailes era frequentado mais do que tudo por prostitutas e empregadas domésticas - as denominadas "sopeiras". Entre os meus 14 e 18 anos, só tive namoradas sopeiras. Porque eram aquelas a que tinha acesso?Não. Porque cozinhavam muito bem e estavam normalmente sozinhas em casa durante o dia. Como andava com o grupo de baile, encontrava muitas. Especializei-me. . . Quantos anos esteve na Casa Pia?Quatro. Não foi só o estar na Casa Pia, foi o sair da Casa Pia. Saí na primeira fornada de cursos técnico-profissionais e com oferta de três empregos. A RDP, a RTP e a Control Data. Um grande amigo, já falecido, o João Soares Louro, fez-me a oferta para trabalhar na RTP. Um ex-casapiano, também. Não há ex-casapianos. Um casapiano é um casapiano para sempre. Durante este processo Chernobil da Casa Pia, repugnante, todos foram apelidados de ex-casapianos. . . É-se aluno da Casa Pia quando se está lá. É-se um casapiano o resto da vida. É uma coisa que fica, como se nos acrescentassem um apelido. Serei um casapiano até morrer. Como assistiu a todo o processo Casa Pia?Uma instituição com mais de dois séculos, que deu a este país homens únicos, tem estado debaixo de fogo. O crime é hediondo. Durante os anos em que estive lá, apercebi-me de que existia prostituição juvenil. Que é uma coisa completamente diferente de pedofilia. Havia alguns rapazes, internos e externos, que apareciam bem vestidos, alguns compravam motos. Todos nós sabíamos de onde vinha esse dinheiro. "Iam aos paneleiros" - dizíamos. Prostituição. Como havia na tropa. Enquanto estive na Casa Pia, nunca me dei conta de nenhuma situação de pedofilia, com crianças. Nem depois, quando saí. (Fui responsável e presidente do Casa Pia [Atlético Clube]. Mantive uma relação próxima com os órgãos [sociais] da Casa Pia. ) Teria sido o primeiro a revoltar-me. Estava a contar que quando saiu da Casa Pia teve várias ofertas de trabalho. Um outro casapiano, Jaime Ribeiro, convidou-me para a Control Data, em Palmela. Eu e os meus cinco colegas fomos todos. Sentimos que era ali que estava o futuro. Estamos a falar de uma fábrica de discos; um disco de 40 megabytes era maior do que uma máquina de lavar roupa de hoje em dia. A fábrica era subsidiada pela CIA (soube-o mais tarde), para travar a força dos vermelhos no concelho. Estive seis meses na fábrica de Palmela, ganhei muito, muito dinheiro. Foi a primeira vez que teve um emprego que não era precário e onde ganhava bem?Foi. Com 17 anos, a dias de completar 18, fiz um contrato para ganhar de base 75 contos por mês (375 euros). O meu pai ganhava 20 na Carris. No final de Junho, quando me pagaram o ordenado e o subsídio de férias, comprei uma moto. A partir do primeiro mês, tinha dinheiro a rodos. Na fábrica, éramos 70 homens e 700 mulheres; e tive na família em casa de quem aluguei um quarto, em Setúbal, uma segunda mãe e uma segunda família. Nem aí sentiu que podia descarrilar? Era a primeira folga, a primeira possibilidade de respirar fundo. Senti um bocadinho. Aqueles meses foram o meu Woodstock. Ao fim de meio ano, fui convidado para vir para Lisboa. Uma proposta difícil de aceitar, mas que me motivou bastante. Era um estágio de um ano ao cabo do qual passaria a contrato. Ordenado: 25 contos(125 euros)por mês. Era especializado em discos e podia especializar-me em informática de uma forma geral. Aceito vir para Lisboa, volto para casa dos meus pais, fiquei a contrato. A vida corria-me muito bem. Como é que fundou a Urbanos?Senti, por via dos meus skills naturais, e daqueles que aprendi enquanto Testemunha de Jeová, que tinha skills comerciais e que estava a desperdiçá-los na Control Data. Queria crescer. No departamento comercial só podiam entrar licenciados. Estava liquidado. Estávamos em 1988/89, tinha acabado de me casar. Casei com 21 anos acabados de fazer, quando saí da tropa. Na tropa fui para um batalhão de transportes. Larguei os cento e tal contos que já ganhava por 1200 escudos por mês, para fazer o serviço militar obrigatório. Fui com uma raiva muito grande. É a primeira vez que fala de raiva. Em todo este processo, e apesar das coisas por que passou, não disse nenhuma vez: "Fiquei enraivecido. " Para a tropa, fui realmente enraivecido. Porque era um revés? Porque contrariava anos de ascensão?Porque não fazia sentido. Dois terços dos mancebos eram dispensados de forma aleatória. Fui obrigado, não houve nada que pudesse fazer. Chorei dias seguidos. Mas quando saí da tropa trazia um know how precioso: como é que funciona uma frota de camiões, quais são os custos, onde é que se tira vantagem, como é que se faz uma mudança. Transportes e logística. As bases para a empresa que veio a montar. Por isso a montou?Em Portugal, não havia nenhuma empresa de logística especializada em transporte de tecnologia. Na Control Data, os meus colegas e eu estávamos qualificados para transportar os equipamentos, para abrir as caixas de madeira, passar cabos por baixo do chão. Era um trabalho que qualquer pessoa podia fazer desde que não estivesse bêbeda, mal apresentada, não cheirasse mal e tivesse a barba feita. Como é que partiu para a constituição da empresa, com que dinheiro?Comecei a estudar Gestão, fiz uma série de cursos e candidatei-me a um programa de apoio a jovens empresários. Uma verba de 20 mil contos a fundo perdido. As taxas de juro estavam quase a 20 por cento! Fui apresentar o meu projecto ao Palácio das Laranjeiras, num dia quente, em Julho de 1990. No fim, o meu interlocutor perguntou-me, en passant, se eu era filiado no PSD. . . Desisti dessa possibilidade. Falei com a minha mulher, mãe das minhas filhas mais velhas, e apostámos na Urbanos. Com os dois mil contos que tínhamos, comprámos uma carrinha. Envolvi a família: fiz um acordo com o meu pai e com o meu padrinho (o meu pai já estava reformado e o meu padrinho trabalhava por turnos). Dava 20 por cento a cada um se trabalhassem de borla durante um ano. Foi assim que começámos. A Paula em casa a tratar dos papéis, eu na Control Data, simultaneamente, e a conduzir à noite. Correu bem desde sempre?Não tínhamos custos além do gasóleo, e ao fim de um ano tínhamos cinco carros, sete ou oito empregados. Tínhamos uma série de serviços relacionados com a tecnologia, com a importação de bens perecíveis e o transporte de materiais francos que vinham do aeroporto ou do porto de Lisboa, tabaco e uísque para abastecer os navios que estavam a reparar na Setenave. Montar a empresa de raiz, nessas circunstâncias, é um processo ousado. O que é que o fez confiar tanto em si? O passado. O lado dinâmico, empreendedor e de vendedor vem da minha infância. Em Fevereiro de 1992, despedi-me. Deixei os 500 contos e o carro e vim ganhar 167 contos para a Urbanos. Era o necessário para pagar a prestação da casa, para vivermos com alguma qualidade. Arrisquei tudo e não estou nada arrependido. Passei seis anos consecutivos sem férias. Por que é que quis arriscar tudo quando já estava numa situação confortável, com 500 contos e carro? Para quem vem de uma situação de carência como a sua, aquilo já era extraordinário. Mas não lhe bastava. O problema era que aquilo era a prazo e não tinha perspectivas de crescimento. Já sabia que queria ser alguém. Queria que as minhas filhas tivessem uma vida diferente da minha. Queria viajar pelo mundo inteiro, ter acesso às coisas boas. Queria ter uma vida diferente daquela que tive até aos 14 anos. Quando é que o dinheiro deixou de ser uma preocupação? Quando é que deixou de olhar para o lado direito do menu?Quando me divorciei, pesava 118 quilos, trabalhava e fazia uma vida desregrada. Só nessa altura é que percebi que estava milionário. Entre 1991 e 1998, não tive a noção do património que estava a acumular. Estava preocupado em fazer mais, em fazer crescer a empresa, em contratar as melhores pessoas. Mas ainda não estava a desfrutar?Não, de forma nenhuma. Ofereço a mim próprio o meu primeiro presente no dia em que fiz 33 anos. Comprei um Mercedes descapotável, que ainda hoje tenho e que quero guardar como relíquia. O primeiro brinquedo foi a moto. Sim, mas este teve uma carga especial. Porque era inimaginável?Era a consumação de um facto, a consagração, o abrir da garrafa de champanhe. É a fase em que começo a desfrutar. Comecei a ir para a Quinta do Lago e para Vale de Lobos. Nesse ano conheci a Eugénia, com quem vivo e tenho uma filha. Nunca teve complexos de nenhuma espécie? Nem quando o Silva lhe disse que não tinha jeito para nada. Nem quando nas Laranjeiras lhe perguntam se tinha cartão do partido e vê as portas fecharem-se. Não tenho complexos de inferioridade. Parto de uma base muito baixa para um patamar simpático, onde estou, tanto profissional como económico e social. Em cada sítio onde chego, aprendo, adapto-me, não me sinto complexado. Uma vez ou outra senti-me rejeitado. Dói-me bastante, quando acho que o fazem, não por causa do meu valor, mas quando outros valores se levantam. Nunca teve raiva de ricos?Pelo contrário. Há duas atitudes possíveis. Ou estamos na paragem do autocarro a olhar para o tipo que passa no Mercedes e dizemos: "Um dia hei-de ser como tu"; ou olhamos para o tipo que passa no Mercedes e dizemos: "Filho da puta, um dia hás-de andar de autocarro como eu. " Sempre usei a primeira fórmula. Esta é uma característica que o nosso povo tem. Apetece-me esganar os nove milhões e 800 mil que às vezes sentem isto. Nunca tive raiva aos ricos. Sempre disse que um dia seria como eles. Mas nunca teve a subserviência que muitas vezes os pobres têm em relação aos ricos. Não. Começou a viajar quando? - era outro dos seus anseios. A primeira vez que fui ao estrangeiro foi quando me casei, em lua-de-mel. Fui de carro a Paris no Renault 5 que tinha. Fiquei em casa de uns familiares, e depois em casa da madrinha da minha mulher, na Suíça. Fizemos um pequeno tour, dez ou 12 dias a ver o mundo e a ficar de boca aberta. A comer McDonalds, aquele sabor único que fica do primeiro que se come. Estive a fazer as contas: já visitei 64 países diferentes. Durante muito tempo, só se deu com pessoas do seu meio. Quando é que os ricos passaram a ser pessoas com quem se cruza na rua, ao almoço?Começo a relacionar-me com pessoas de um poder económico e de um mundo diferente do meu em 1996, a jogar golfe. Percebeu que os negócios passavam pelo golfe?Claramente. Tive sempre muitas ajudas. O meu grande segredo foi nunca desiludir as pessoas que apostaram em mim. Não são os "Silva" desta vida que me fizeram chegar onde cheguei; são aqueles que disseram que eu era capaz, que ia ser bem sucedido, aqueles que me deram oportunidade de fazer um negócio com responsabilidade. Os "Soares Louro" desta vida, os "Manuel Mateus" desta vida. Não podemos desiludir as pessoas que estão connosco, os nossos colaboradores. E nas bases é o mesmo processo: é fazer pequenos "Alfredos Casimiros". Pegar em ajudantes de mudanças e transformá-los em directores de unidades de negócio. Este ano, a Urbanos foi considerada a melhor empresa para se trabalhar em Portugal. O segredo é dar a cada pessoa a noção de que pode progredir?Para além das instalações, do salário, da água, da fruta, é a formação e a possibilidade de crescer dentro da organização. Oitenta por cento da nossa equipa comercial é constituída por pessoas que vieram de baixo. A empresa, culturalmente, está desenhada para motivar, apoiar e acarinhar os melhores membros dentro de cada área, sejam ajudantes ou motoristas. Um caso que ilustre isso que diz. O Bernardino Neves é um study case dentro da Urbanos. Foi para lá com 16 anos e o 2. º ano do ciclo, hoje tem o 12. º ano, está a fazer Gestão, é director de uma unidade de negócio, está a um passo de ser administrador do grupo. Encontro pessoas com um valor extraordinário, que vestem a camisola, que precisam da formação certa. E as pessoas sentem esperança. Isso é uma necessidade de retribuição?That"s business. Também tem a ver com retribuição, mas é um modelo de negócio. O meu negócio não é logística ou transportes, são as pessoas. Trata assim as pessoas porque acha que é assim que profissionalmente a sua empresa pode crescer?Exactamente, com o crescimento dessas mesmas pessoas. É isto que faz com que as pessoas dêem a sua last mile, aquela milha extra quando se corre a maratona, quando é preciso suar e ir buscar energias onde elas já não existem. Estão com esta motivação, este drive, porque têm os exemplos dos outros. E os exemplos são tudo, não podemos escrever por decreto e depois não dar o exemplo. Consegui fazer isto na Urbanos e noutros negócios em que tenho estado envolvido, numa série de empresas que comprei e vendi (foi também isso que me deu mais alguma folga económica). É aquela velha máxima de Sun Tzu: "Não existem maus soldados, existem maus generais. " Tem várias edições na estante de A Arte da Guerra, de Sun Tzu. Também tem pelo menos duas edições de O Príncipe, de Maquiavel. Infelizmente não li a edição inglesa. O meu inglês não é suficientemente bom. Mas o das minhas filhas já é. O golpe mais rude da sua vida foi a morte do seu irmão?Foi. O meu irmão era um grande back up. A existência dele dava-me a possibilidade de estar fora o tempo que fosse necessário, sabendo que em termos profissionais e familiares estávamos à distância de um telefonema. Demorei muito tempo a processar a morte do meu irmão. Chorei nos primeiros cinco minutos, depois parei. Entrei num estado de semitranse em que a única preocupação era fazer controlo de danos na família, nos filhos dele, na minha mãe, fazer umas exéquias fúnebres dignas. Só ao fim de 12 dias é que consegui chorar. Fui a nova Iorque em trabalho, e no terceiro dia não saí do quarto; estive convulsivamente a chorar entre as sete da manhã e as seis da tarde. Tinha-me custado muito a morte do meu pai, mas era mais natural, embora tivesse apenas 61 anos. A morte de um irmão mais novo, um companheiro, um compincha. . . Foi como se fosse uma parte de si?Sim. Tinha 37 anos, foi um ataque cardíaco fulminante, um aneurisma. Fez-me pensar, e faz-me repensar, muito a vida. É evidentemente uma dor imensa. Mas o que é que muda em si, em que é que muda a sua atitude?O meu irmão vivo dava-me a garantia de poder fazer as asneiras que quisesse. Se me acontecesse alguma coisa, tinha alguém que trataria das coisas. O meu irmão morto obriga-me a ser muito mais conservador naquilo que faço, nas viagens, nos riscos que corro. Nos riscos financeiros também. Fiquei com uma grande responsabilidade às costas. Já era o patriarca, agora estou mais isolado e sozinho. Sinto um vazio muito grande dentro de mim. Tem três filhas. Qual é a sua grande preocupação em relação a elas?Quero mandá-las estudar nos melhores colégios, nas melhores universidades, licenciatura, master, o que quiserem. Quero dar-lhes uma ferramenta forte, prepará-las para o futuro. Para que possam ser elas a fazer a sua vida. Não quero correr o risco de, daqui a 30 ou 40 anos, estar às portas da morte e ter três filhas imbecis, à espera que o pai morra para meter a mão em 20 milhões ou 30 milhões de euros cada uma. Elas sabem disso?Têm a noção de que o pai não lhes vai deixar nada. Se as deixar bem financeiramente, vou tirar-lhes o prazer de vencer, de construir. Se amanhã se alavancarem no dinheiro do pai, não vão ter esse prazer. Vão ter o complexo de fazer mais ou melhor que o pai; ou então entregam-se à morte: "Vamos lá torrar o dinheiro que o pai nos deixa. "Quando diz que não lhes quer deixar nada, significa literalmente, nada, além da educação? É uma declaração retórica, tem planos em relação a isso?Tenho. Estou a constituir uma fundação onde quero deixar parte considerável dos meus bens, e onde, naturalmente, se alguma coisa lhes acontecer, em termos de saúde ou incapacidade, tenham um apoio. Mas "toma lá um milhão para começares a vida", isso não?Não, definitivamente. Quero muito poder comprar o primeiro carro e a primeira casa e depois "faz-te à pista". O objectivo desta fundação é devolver à sociedade aquilo que ela fez por mim. Numa primeira fase quero que o projecto contribua para a formação de pessoas com valor que estão desaproveitadas, que as possa motivar e ajudar a encontrar aquilo que realmente querem fazer. Mais do que terem um canudo, um degree, ajudá-las a encontrar a vocação. E, simultaneamente, apoiar, em termos empresariais, micro e pequenos empresários. Pegar em empregados de longa duração, ou nos que estão desempregados aos 55 anos, que dificilmente vão voltar ao mercado de trabalho, que têm a ambição de ter o seu próprio negócio, e dar-lhes formação, ensinar gestão, tesouraria, a lidar com os impostos. Só tem 43 anos, mas por ter começado tão cedo, e por ter tanto que contar, às vezes parece que estou a falar com um homem mais velho. Mesmo a propósito da fundação: é raro ouvir um jovem falar assim do seu futuro. Sente-se velho?A fundação é uma ideia que venho a desenvolver há cinco ou seis anos. O falecimento repentino do meu irmão fez-me acelerar este processo e anunciá-lo publicamente. A morte dele fez-me perceber que não somos nada e que a qualquer momento desaparecemos. Isto faz com que fiquemos com um sentimento de maior maturidade, de envelhecimento precoce. Mas não me sinto nada velho. Sinto que mereço descansar um pouco mais. O que é que ainda o faz correr? No começo da entrevista falou de necessidade e não de vontade. É a competitividade, o vício de ganhar. Ganhar e construir coisas dá-me muito prazer. O dinheiro é importante, mas já não é só isso: é fazer, é ser o melhor, ter a melhor equipa. Por que é que perto de si tem a fotografia do seu avô e o quadro do leão? Quis colocar-se estrategicamente nesta posição, de modo a poder vê-los. É uma peça de um autor austríaco do século XIX. Foi a primeira extravagância, ou melhor, investimento, que fiz, em 1995, em Basileia. Revejo-me neste leão, nos finais de dia, quando chego a casa cansado depois de uma luta feroz. O meu avô, porque foi uma grande referência para mim. Ele e o meu padrinho são dois dos homens que, se tivessem sido apoiados pela fundação que quero constituir, teriam sido grandes homens. Gostava de contribuir para colmatar essas falhas e dar a essas pessoas com esse valor intrínseco, com garra e vontade, a oportunidade que tive, e que infelizmente poucas pessoas têm. Entrevista publicada na revista Pública de 27 de Junho de 2010
REFERÊNCIAS:
Incidência do HIV recua nos jovens entre os 15 e os 24 anos nos países mais afectados
A epidemia da sida recuou nitidamente nos jovens entre os 15 e os 24 anos para perto de metade nos 25 países mais seriamente afectados do mundo, particularmente na África Subsariana, anunciou hoje a Onusida. (...)

Incidência do HIV recua nos jovens entre os 15 e os 24 anos nos países mais afectados
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.166
DATA: 2010-07-13 | Jornal Público
SUMÁRIO: A epidemia da sida recuou nitidamente nos jovens entre os 15 e os 24 anos para perto de metade nos 25 países mais seriamente afectados do mundo, particularmente na África Subsariana, anunciou hoje a Onusida.
TEXTO: “A prevalência do HIV entre os jovens está a baixar em vários países chave”, avança o relatório anual do Programa das Nações Unidas sobre o HIV. O documento recorda que 80 por cento dos jovens contaminados – ou seja, 4 milhões de pessoas – vivem na região da África Subsariana, e refere que a diminuição na incidência do vírus se deve ao aumento do uso de preservativos. Estes países “atingiram ou esperam atingir o objectivo internacional de redução de 25 por cento da prevalência do HIV entre os jovens, estipulado pela Conferência Internacional [das Nações Unidas] sobre a população e o desenvolvimento, em 1994”, continua o relatório. Entre os que conseguiram atingir o objectivo estão o Botswana, Costa do Marfim, Etiópia, Quénia, Malawi, Namíbia e Zimbabwe. E entre os países que esperam conseguir fazê-lo até ao fim deste ano estão o Burundi, Lesoto, Ruanda, Suazilândia, Bahamas e Haiti. O relatório adianta que isto é “essencial para inverter a trajectória da epidemia da sida”. Adianta ainda que, pela primeira vez, a redução da prevalência do vírus coincide com a alteração de um comportamento sexual. “Houve uma mudança entre os jovens em todo o mundo, em particular em certas zonas da África Subsariana”. O recuo é explicado por uma entrada mais tardia na vida sexual activa, por uma redução no número de parceiros sexuais e por uma “utilização acrescida” do preservativo entre os 15 e os 24 anos nos jovens com vários parceiros. Segundo a Onusida, cerca de 5 milhões de jovens com esta idade têm sida. Cerca de 900 mil foram contaminados em 2008, 66 por cento mulheres.
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Palavras-chave sexual mulheres marfim
Palco sem emoção, festa fora dele, no Sudoeste
Nota de popularidade para Jamiroquai. Nota artística para DJ Shadow. Foi assim, ontem, no Sudoeste, perante 40 mil pessoas que fizeram a festa, apesar da mediania do que se viu e ouviu. (...)

Palco sem emoção, festa fora dele, no Sudoeste
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-08-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nota de popularidade para Jamiroquai. Nota artística para DJ Shadow. Foi assim, ontem, no Sudoeste, perante 40 mil pessoas que fizeram a festa, apesar da mediania do que se viu e ouviu.
TEXTO: Na noite anterior tinha existido emoção e agitação em palco, através de M. I. A. , Flaming Lips, Very Best, Bomba Estéreo ou Rye Rye, e uma resposta apagada do público, que apenas despertou aquando do concerto de M. I. A. . Ontem foi ao contrário. Espectáculo mornos, assistência em festa. Cerca de 40 mil pessoas, diz a organização. Vá-se lá perceber estas coisas. Ou tente-se. A generalidade do cartaz e a concepção do espaço, misto de parque de atracções e de arsenal publicitário com tudo o que é para adolescentes, está concebido para receber quem vai a um festival em missão de reconhecimento, não de descoberta. Só assim se percebe que o cantautor inglês James Morrison ou a americana Colbie Caillat, que não se distinguem por outra coisa a não ser por alguma fotogenia e por terem um ou dois sucessos radiofónicos pouco aconselháveis, sejam recebidos em festa. Só assim se entende que os repetentes Jamiroquai, capazes de apresentar um espectáculo profissional e competente, mas a léguas da excelência, sejam acolhidos com arrebatamento. Dizem-nos a toda a hora que este é o festival da “boa onda”. Na noite de ontem pareceu apenas o festival da falta de exigência. Quem acabou por beneficiar da letargia, das mensagens de amor bem intencionadas de Colbie Caillat e das versões mais do que ensaiadas por toda a gente (“No woman no cry”, a canção popularizada por Bob Marley), foi Jay Kay, com as inevitáveis penas engalanadas na cabeça, e os seus Jamiroquai. Depois de uma sessão delicodoce, o seu funk dançante até parecia que fazia levitar. Mas, claro, era apenas uma impressão inicial. Quem já o viu ao vivo antes, sabe do que é capaz: apresentar um espectáculo eficiente e dinâmico, coadjuvado por um numeroso naipe de músicos e cantoras, que resgatam os seus êxitos todos (de “Virtual insanity” a “Cosmic girl ou “Alright”), mas a frescura da sua música já lá vai e o gesto espontâneo que liberta um concerto da mediania já não quer nada com ele. Mas o público fez a festa. A nota de popularidade estava entregue. A nota artística teve outros protagonistas: a sueca Lykke Li e, principalmente, o americano DJ Shadow. Da primeira até já lhe vimos melhores prestações, mas as canções do álbum “Youth Novels”, e algumas novas que apresentou, nunca se desfiguram por completo, apesar da cantora e dos músicos que a acompanharam, estarem em regime de serviços mínimos, com as percussões tribalistas a darem lugar à elegância electrónica. Na noite anterior havia-se visto M. I. A. a tentar, com sucesso, apresentar um espectáculo total, que proporcione um tipo de experiência que não se restrinja ao habitual do concerto rock. Ontem foi a vez de DJ Shadow, de forma diferente, o ensaiar. E foi coroado de êxito, facto tanto mais assinalável porque é um alquimista sonoro, não particularmente comunicativo. Mas é autêntico na forma como interage. Apresentou-se dentro de uma bola gigante, que fazia girar, ora estando oculto da assistência ora deixando-se vislumbrar, enquanto as imagens se sucediam. O resto foi com a sua música, o habitual corte-e-cola inspirado em linguagens pós-hip-hop e também em variações rítmicas repescadas ao drum & bass. Foi uma sessão sonora versátil, do ponto de vista cénico surpreendente, que levou a assistência ao rubro. Um exemplo de como transformar uma actuação de um músico sóbrio, que não tem uma relação muito física com a matéria sonora, em qualquer coisa criativa e apelativa.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave cantora
Número de afectados pelas chuvas no Paquistão sobe para 15 milhões
Mais de 1600 mortos, 15 milhões de pessoas afectadas, 650 mil casas destruídas, pelo menos 550 mil hectares de terra agrícola alagada. As cheias no Paquistão, as piores dos últimos 80 anos, não dão sinais de abrandar. (...)

Número de afectados pelas chuvas no Paquistão sobe para 15 milhões
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-08-09 | Jornal Público
SUMÁRIO: Mais de 1600 mortos, 15 milhões de pessoas afectadas, 650 mil casas destruídas, pelo menos 550 mil hectares de terra agrícola alagada. As cheias no Paquistão, as piores dos últimos 80 anos, não dão sinais de abrandar.
TEXTO: O primeiro-ministro Yousuf Raza Gilani esteve a acompanhar as operações de salvamento, e disse que ainda não é possível calcular os estragos. “Peço ao mundo que nos ajude. Estamos a fazer tudo o que podemos. ”Embarcações da Marinha paquistanesa tentavam ontem resgatar sobreviventes na província de Sindh, Sudeste do país, onde as águas do rio Indus galgaram as margens e uma barragem transbordou. O alerta vermelho foi decretado na região e as barragens de Tarbela a Mangla atingiram também o nível máximo. Nos próximos dois dias a situação não deverá abrandar, uma vez que as previsões apontam para fortes chuvas. “Espero que estas águas desapareçam. Quero regressar”, disse à Reuters Sakina, uma das muitas mulheres que tentam fugir às cheias e entrar nos barcos da Marinha, por vezes com crianças ou sacos de roupas. Até galinhas, dos poucos animais que se conseguem salvar. As inundações já terão matado cerca de 10 mil vacas. Mohammad Saleem perdeu tudo na aldeia de Kot Addu. “Não recebemos qualquer ajuda do Governo ou de fora, e tenho a certeza de que a ajuda estrangeira não chegará até nós”, disse à Reuters. Ele é um dos muitos paquistaneses que critica a forma como o Governo tem lidado com a catástrofe, numa altura em que o Presidente Asif Ali Zardari está a ser contestado por ter mantido uma viagem à Europa em vez de ficar no país. No Reino Unido, onde Zardari se encontrou no sábado em Birmingham com apoiantes do Partido do Povo do Paquistão, chegou a haver protestos e do lado de fora da reunião ouviu-se: “Go Zardari, go!” Lá dentro um homem tentou atirar-lhe com um sapato mas foi travado a tempo pela segurança. Zardari é também criticado por manter a viagem ao Reino Unido depois de o primeiro-ministro britânico, David Cameron, ter sugerido, durante uma visita à Índia, que o Paquistão “promove a exportação do terrorismo”. Zardari, dizia o diário paquistanês Dawn em editorial, “parece ter desvalorizado o impacto que esta visita terá para a sua imagem enquanto Chefe de Estado. ”Extremistas no terrenoNo Noroeste do Paquistão está a ser distribuída ajuda humanitária pelo grupo de militantes islamistas Jamaat-ud-Dawa, com ligações à organização extremista Lashkar-e-Taiba, responsabilizada pelos ataques de Bombaim que, em Novembro de 2008, mataram mais de 160 pessoas. “Um dos grandes problemas é que, enquanto o Governo de Zardari e a comunidade internacional lutam para concertar a sua actuação, os militantes islamistas estão no terreno a ajudar”, disse à Reuters o analista Bruce Riedel, do Brookings Institute em Washington. O Jamaat-ud-Dawa está na lista de grupos terroristas da ONU. Nos últimos dias tem distribuído ajuda em Charsadda, Noroeste do país, incluindo alimentos e um serviço de ambulância para socorrer as vítimas, esceveu o Christian Science Monitor, que adiantou: “Através da ajuda humanitária, conquistam corações e mentes numa região ameaçada pela militância islamista e os taliban. ” Um dos voluntários no campo de Charsadd, Hajji Makbool Shah, de 55 anos, disse: “Se o Governo tivesse a fazer o seu trabalho, nós não seríamos precisos. Onde é que estão as ambulâncias do Governo?”
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU
Nobel da Medicina para o pai da fertilização in vitro
A época dos Nobel de 2010 arrancou hoje com o galardão da Fisiologia ou Medicina que distinguiu Robert G. Edwards, o pai da fertilização in vitro. (...)

Nobel da Medicina para o pai da fertilização in vitro
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-10-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: A época dos Nobel de 2010 arrancou hoje com o galardão da Fisiologia ou Medicina que distinguiu Robert G. Edwards, o pai da fertilização in vitro.
TEXTO: Robert G. Edwards nasceu em 1925 em Manchester, no Reino Unido, e está ligado à Universidade de Cambridge, no mesmo país. Depois do serviço militar na segunda Guerra Mundial, estudou Biologia na Universidade de Gales e na Universidade de Edimburgo, onde completou em 1955 o seu doutoramento com uma tese sobre o desenvolvimento embrionário em ratinhos. Em 1958 integrou o “National Institute for Medical Research”, em Londres, onde se dedicou à fertilização em humanos. A partir de 1963 passou a trabalhar em Cambridge, primeiro na universidade e depois na clínica Bourn Hall, o primeiro centro mundial de bebés-proveta, que fundou com Patrick Steptoe, o ginecologista que foi sempre o seu braço direito nestas investigações. “A sua descoberta permitiu tratar a infertilidade, uma condição médica que afecta uma larga proporção da humanidade, incluindo mais de dez por cento dos casais de todo o mundo”, explicou a academia sueca, em comunicado. Foi ainda na década de 1950 que Edwards percebeu que a fertilização in vitro poderia ser o caminho para o tratamento da infertilidade, trabalhando, desde aí, em experiências com óvulos e culturas de células. Um empenho que veio a colher frutos a 25 de Julho de 1978, dia em que nasceu o primeiro “bebé-proveta”. Nos anos seguintes, Edwards e os seus colaboradores refinaram as técnicas necessárias e partilharam-nas com médicos do mundo inteiro. De acordo com dados avançados pela Assembleia Nobel, até ao momento, o investigador já foi pai de quatro milhões de bebés, muitos dos quais já são adultos e até pais. “Uma nova era da Medicina emergiu, com Robert Edwards a liderar o processo desde as descobertas mais fundamentais às mais correntes (. . . ) O seu contributo representa um marco no desenvolvimento da Medicina moderna”, destaca o mesmo comunicado. Para a descoberta de Edwards em muito contribuíram outros cientistas que concluíram com sucesso as experiências com maturação de ovócitos de mamíferos, nomeadamente ratinhos e coelhos, em tubos de ensaio. Edwards percebeu, contudo, que nos humanos os ciclos são muito diferentes, comparativamente com animais como os coelhos, conseguindo clarificar como se processa a maturação, que hormonas a regulam e em que condição é possível haver fertilização. Conseguiu fertilizar um óvulo in vitro, pela primeira vez, em 1969, mas este não se subdividiu. Partiu para uma nova fase: recolher óvulos já amadurecidos nos ovários através de uma técnica chamada laparoscopia e que gerou grande polémica na época, a par com os diversos debates éticos e religiosos que lançou sobre recriar vida em laboratório. 25 de Julho de 1978O dia 25 de Julho de 1978 foi um sábado muito especial para o casal Leslie e John Brown, de Bristol, no Sul de Inglaterra. Mas também foi um sábado especial para muitos casais em todo o mundo, que estavam, até aí, impossibilitados de ter filhos naturalmente. Leslie preparava-se para ser a mãe do primeiro bebé-proveta de sempre, uma menina, chamada Louise Brown. “Comecei a fazer estudos com tecido ovárico humano recolhido em cirurgias. Mas tinha de conseguir fertilizar os ovócitos no laboratório”, contou Edwards, em 2003, aquando da celebração dos 25 anos da sua invenção. As primeiras experiências de Pincus e Saunders, com coelhos, tinham mostrado que bastavam 12 horas para o amadurecimento e fertilização dos ovócitos no tubo de ensaio. Ter acreditado que esses resultados poderiam aplicar-se a células humanas custou-lhe vários desgostos. Até que chegou o dia: "Decidi então esperar 25 horas por três ovócitos que me restavam. De repente, foi a alegria. Agora havia esperança para a fertilização in vitro".
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra humanos
Reacções ao Prémio Nobel para Mario Vargas Llosa
Para o crítico literário Pedro Mexia, este é um prémio surpreendente do ponto de vista político, mas sem surpresas no aspecto literário, disse o autor ao PÚBLICO. O seu antigo editor, Nélson de Matos, considera que o prémio "tardava a ser atribuído.” Um amigo de longa data e editor argentino, Mario Muchnik, descreve a ambição literária de Vargas Llosa como sendo quase "inconsciente". (...)

Reacções ao Prémio Nobel para Mario Vargas Llosa
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-10-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: Para o crítico literário Pedro Mexia, este é um prémio surpreendente do ponto de vista político, mas sem surpresas no aspecto literário, disse o autor ao PÚBLICO. O seu antigo editor, Nélson de Matos, considera que o prémio "tardava a ser atribuído.” Um amigo de longa data e editor argentino, Mario Muchnik, descreve a ambição literária de Vargas Llosa como sendo quase "inconsciente".
TEXTO: Pedro Mexia, crítico literárioPara Pedro Mexia, crítico literário, este é um Prémio Nobel surpreendente do ponto de vista político, mas expectável em termos literários. "Vargas Llosa faz parte daqueles autores canónicos" que está na eterna lista dos candidatos ao Nobel da Literatura, explica ao PÚBLICO ao telefone a partir de São Paulo. "É um prémio que é um pouco surpreendente do ponto de vista político, pelas posições políticas que tem assumido", nomeadamente como cronista e autor de obras como "Diário do Iraque". Mas tal como Phillip Roth ou Milan Kundera, indica, "autores que não precisam do Nobel" para a consagração, é um autor com uma longa obra e que, em termos literários e de correntes sul-americanas, "contraria o realismo mágico - sempre se interessou pelo realismo puro e duro, pelos regimes autoritários", remata. Nélson de Matos, editorNélson de Matos, editor durante vários anos de Vargas Llosa em Portugal durante os seus anos na Dom Quixote, recebeu a notícia da distinção do escritor peruano com muita satisfação. “É um prémio merecidíssimo e que de facto tardava a ser atribuído. ” O editor, agora responsável pelas Edições Nelson de Matos, reconhece que a lista dos candidatos a Nobel contemplava “outros autores, igualmente importantes”, mas destaca, por duas razões, a justiça da atribuição do prémio a Mário Vargas Llosa: “Por estar em atraso por parte da Academia, e por ser um grande escritor, com uma obra muito extensa e diversa, riquíssima sob todos os pontos de vista”. Da obra de Vargas Llosa, Nélson de Matos destaca “Conversa n’a Catedral”, “A Guerra do Fim do Mundo” e “A Tia Julia e o Escrevedor”. “São os seus livros mais conhecidos e mais importantes”, aponta. “Falam-nos quer da sua juventude, quer da sua vida de adulto no Peru onde nasceu, um país cheio de diversidades que aparecem bem relatadas nas suas histórias e de que a sua escrita, muito trabalhada, nos dá conta”. Mario Muchnik, editor e inspiração para personagem de "Travessuras da menina má” (2006)"Estava na hora", diz ao telefone com o PÚBLICO o argentino Mario Muchnik, sobre a chegada do Nobel às mãos de Mario Vargas Llosa. "Há muitos anos que o esperava". Muchnik, que já editou J. M. Coetzee (Nobel em 1993), Susan Sontag ou Bruce Chatwin, conheceu Mario Vargas Llosa entre 1966/7, em Londres. Muchnik, com formação na Física e apaixonado pela fotografia, "estava a começar no mundo editorial". O escritor peruano já tinha sido premiado por "A Cidade e os Cães" (1963) e estava a lançar "A Casa Verde" (1966). Do trabalho do amigo, com quem se encontra regularmente, diz que "é uma literatura mais difícil do que, por exemplo, a de Gabriel García Márquez". "Tem uma estrutura literária extraordinária e ideias muito ambiciosas. Tem romances que são reflexo dessa sua tal ambição literária, por que da outra [ambição] não tem", frisa ao telefone. "É tão ambicioso que é quase inconsciente", ignorando os perigos da possibilidade de não corresponder às suas próprias expectativas. Muchnik dirigiu as colecções Robert Laffont em Paris, criou em seu nome a Muchnik Editores e, mais recentemente, o Taller de Mario Muchnik, em Madrid. É também escritor e fotógrafo. A homenagem maior de Llosa à amizade dos dois foi tê-lo transformado em personagem de "Travessuras da menina má” (2006). "Sou editor [no livro], é uma efabulação do Mario, que me pediu autorização para o fazer quando jantávamos num restaurante italiano", conta. "Por um lado, é muito elogioso", diz, "trata-me muito bem como seu editor" ficcional. "Não sou editor dele, mas gostava de o ter sido". Porque nunca aconteceu? "Ele tornou-se muito conhecido rapidamente e não foi possível. Em pouco tempo tinha três ou quatro livro importantes nas livrarias, não estava ao meu alcance", diz, rindo-se. José Eduardo Agualusa, escritor
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra cães