Bloco Total de Esquerda-Direita: O evangelho do consenso
Como avisou Cavaco Silva, os portugueses serão avisados por ele próprio, e não pelos jornais, da decisão sobre o futuro Governo. Mas estamos em condições de adiantar que a solução será mesmo revolucionária: todos os partidos a governar ao mesmo tempo. Acabou-se o arco, viva o círculo da governação. (...)

Bloco Total de Esquerda-Direita: O evangelho do consenso
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Como avisou Cavaco Silva, os portugueses serão avisados por ele próprio, e não pelos jornais, da decisão sobre o futuro Governo. Mas estamos em condições de adiantar que a solução será mesmo revolucionária: todos os partidos a governar ao mesmo tempo. Acabou-se o arco, viva o círculo da governação.
TEXTO: Ainda o Presidente da República estava a distribuir as batatas quentes na mesa, com aquele sorriso alegre e franco, e já Pedro Passos Coelho pedia a palavra. O ambiente era distendido. Uma luz abençoada entrava pelas janelas da sala de cear de Belém. “É com imenso gosto que saúdo os nossos irmãos do PS nesta terceira reunião. Já nas outras duas demos excelentes passos na procura mútua de uma solução de consenso que dê aos portugueses aquilo que eles mais anseiam. Escusam alguns de continuar a fazer de conta ou a simular que não estamos a avançar muito. Graças ao esforço da Coligação PàF e principalmente da boa-fé do dr. António Costa e dos seus parceiros mais à esquerda, Portugal poderá em breve quebrar um ciclo negativo que durou anos, consolidar as suas contas públicas, e oferecer ao povo o desenvolvimento e a justiça económica e social que tanto merece. ”António Costa agradeceu com uma vénia e lembrou que tudo o que o PS fez nas últimas semanas — desde o resultado inequívoco das eleições, com a vitória da coligação de direita, que só por azar não atingiu a maioria absoluta, frisou o líder do PS — “foi graças ao enorme esforço de diálogo construtivo de Pedro Passos Coelho e do seu colega Paulo Portas”. O líder do PS acrescentou que na PàF tudo fizeram para que as reuniões “fossem conclusivas e produtivas” e elogiou a brevidade das respostas a todas as dúvidas exageradas que o PS tivera acerca do programa eleitoral do Governo de direita, não por esse programa ser demasiado vago, mas com certeza porque este “é tão rico que algum do seu valioso conteúdo não foi imediatamente assimilável pelo povo de esquerda”. Dito isto, e num gesto que a todos comoveu, António Costa e Pedro Passos Coelho trocaram de óculos e ficaram ainda a ver-se melhor um ao outro. Cavaco Silva elogiou este espírito de concórdia e passou a palavra a Catarina Martins, que, lembrando o seu passado nas artes do teatro, elogiou “a bela voz de barítono do Pedro [Passos Coelho], que terá encontrado no Paulo [Portas] o desejado contraponto”, sem esquecer o esforço dos dois estadistas na implementação do tratado orçamental e na “prossecução de uma política de emprego e de justiça social que todos reconhecemos no quadro de uma União Europeia responsável e solidária”. Paulo Portas levantou então um dedinho e retribuiu o cumprimento ao Bloco de Esquerda, que descreveu como “um partido maior em deputados do que o nosso e politicamente inatacável, tal como o actual PS, disse o responsável do CDS. “Catarina [Martins], vejo em ti e nos teus colegas bloquistas os futuros pilares de um governo estável e revolucionário em que todos os cidadãos da Europa, ricos e pobres, mas principalmente os ricos, poderão confiar. Estou empolgado com a actual situação política e permitam-me que estenda esta minha alegria a Jerónimo de Sousa, aqui sentado à minha direita. ”Jerónimo de Sousa levantou-se então e, tratando António Costa por “amigo” e Passos Coelho e Portas por “queridos camaradas”, fez um apanhado das vantagens da integração europeia e do euro, num quadro de concórdia social e crescimento económico em que o PCP e os seus colegas dos Verdes e do Bloco tinham a honra de pela primeira vez participar, a bem de Portugal. “O diálogo mútuo é um exemplo para o mundo ocidental, bem-hajam. ” Paulo Portas levantou outro dedinho e pediu “sinceras desculpas” por, no passado, ter sido um partido “acerrimamente contra a União Europeia e a moeda única, não sei onde é que eu tinha a cabeça”. Mas “já me passou o delírio”, acrescentou Portas. “Agradeço ao PS, ao Bloco e à CDU deixarem-me agora participar neste novo arco da governação ou, melhor, neste círculo da governação. ”Nesse momento bateram à porta e era uma tal de Maria de Belém que vinha apresentar a sua candidatura à Presidência da República, mas ninguém a ouviu e ela foi-se embora sem cear. Logo a seguir, bateram à porta e era um tal de Rui Rio, que vinha apresentar a sua não-candidatura à Presidência da República, mas ninguém o ouviu e foi-se embora sem cear. Bateu ainda à porta um tal de Marcelo Rebelo de Sousa, que pediu para comentar a reunião, porque estava com saudades disso, mas também se foi embora sem comer. Porque o que estava à frente de tudo, dentro da linda irmandade, era o futuro do país. Cavaco Silva pediu então a todos os grupos parlamentares que partilhassem e comessem as “batatas ainda quentes” e todos riram. Antes, juntaram as mãos e juraram fidelidade à Constituição e ao Eurogrupo. Pedro Passos Coelho e António Costa deram um abraço caloroso e tiraram uma selfie que logo enviaram para os jornais ingleses e alemães, para a City de Londres, para Wall Street em Nova Iorque, para a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e para António José Seguro, lá onde quer que ele viva agora. O Presidente da República levou as mãos ao alto e agradeceu ao céu a criação do Bloco Total Esquerda-Direita que irá governar Portugal nos próximos quatro anos. Nesta distracção, entrou um homem que ninguém conhecia. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. — Quem é o senhor?— Sou o deputado do PAN. Esqueceram-se de mim? Escorraçam-me do poder como a um cão? Ai o meu canário. Eu voto contra. E afinal não houve consenso e a política portuguesa voltou a ser um saco de gatos.
REFERÊNCIAS:
Personagens de ficção Árbitro Pedro Proezas da Bola: O contra-insulto da bola
Conseguiu pôr Bruno “Nádegas Opulentas” de Carvalho e Pinto “Apito” da Costa de acordo numa coisa que não era insultarem-se um ao outro. Era derrotar o Benfica, claro. Acabaram por votar a favor de um homem que é contra a sua grande reivindicação para o campeonato: o sorteio dos árbitros. Pedro Proença é uma caixinha de surpresas (...)

Personagens de ficção Árbitro Pedro Proezas da Bola: O contra-insulto da bola
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Conseguiu pôr Bruno “Nádegas Opulentas” de Carvalho e Pinto “Apito” da Costa de acordo numa coisa que não era insultarem-se um ao outro. Era derrotar o Benfica, claro. Acabaram por votar a favor de um homem que é contra a sua grande reivindicação para o campeonato: o sorteio dos árbitros. Pedro Proença é uma caixinha de surpresas
TEXTO: A Liga Portuguesa de Futebol é redonda. Para espanto internacional, agora é dirigida por um dos árbitros mais conhecidos e respeitados do mundo (seja lá o que “respeitado” quer dizer no mundo do futebol). Entre várias distinções e grandes finais, o currículo de Pedro Proença (Lisboa, 3 de Novembro de 1970) destaca-se, com letras gravadas a ouro, num dos mais prestigiados domínios do conhecimento: o calão. O slang da bola. Pedro Proença, o ex-árbitro internacional sabe tudo da arte do insulto. Tirou um curso durante muitos anos, em ritmo intenso. Escutou em directo nos estádios, nas ruas, nas rádios, nos telefonemas anónimos. Leu nos jornais, nas redes sociais, nas paredes das casas de banho. Fala todas as línguas do futebolês ordinário. Aos 44 anos, Pedro sabe como se diz “palhaço” (e as suas derivações exclamativas “ó palhaço” e “ganda palhaço”) em português, inglês, francês, castelhano, catalão, holandês, flamengo, alemão, italiano. Na flor da idade de um homem-do-apito, Proença sabe como se grita “gatuno” em japonês, coreano, iídiche, árabe, vietnamita. Sabe soletrar “vai roubar para a estrada” em centenas de dialectos do subcontinente indiano, em russo, em ucraniano, em polaco. Sabe todos os palavrões sexuais e/ou animalescos em xhosa do Sul de África, em zulu, em balanta e bantu. Se lhe perguntarem como é que se diz “estás comprado” em húngaro, essa língua que não se relaciona com nenhuma outra, só talvez o islandês, Proença não hesitará em responder. Se houver alguma dúvida de que Pedro conhece a fundo as formas subtis de dizer “vai para este sítio” e “vai para o outro”, tantos esses sítios que começam em “c” como os que inauguram em “p” e acabam em “que te pariu”, nas línguas bárbaras mas melodiosas do Norte — como sueco, norueguês e dinamarquês — é melhor que as dúvidas se dissipem, porque Proença saberá cantarolar os impropérios como qualquer chefe de claque dos fiordes gelados. O ex-árbitro Pedro Proença Oliveira Alves Garcia — nome mais português é difícil — tem um currículo e tem mundo. Director financeiro de profissão, começou cedo a exercitar a sua vocação para saco-de-pancada dos adeptos, jogadores e dirigentes do futebol: ser árbitro. Sempre bem penteado, magro, em boa forma, há muitos anos que Proença começou a treinar o sopro e o gesto decidido, a elegância ao puxar do cartão vermelho. O gel é o seu grande companheiro, em dias de sol, em noites de tempestade. Sempre no horizonte, a possibilidade de ter de correr pela vida ao arbitrar um dos clássicos, para o que é necessário saber as localizações exactas dos túneis e das saídas de emergências do Estádio da Luz, do Estádio do Dragão e do Estádio de Alvalade, quando as coisas dão para o torto. Pontos altos da carreira de um homem que, entre 2012 e 2013, esteve na categoria Elite da UEFA: arbitrou a final do Campeonato Europeu de Selecções (vitória de Espanha contra Itália por 4-1); arbitrou também a final da Champions (Liga dos Campeões da UEFA). Ponto baixo da carreira do mais respeitado dos árbitros portugueses foi uma converseta antiga entre Pinto da Costa e Pinto de Sousa, então presidente da Comissão de Arbitragem (interceptada em 2003 pela Polícia Judiciária) na véspera de uma Supertaça entre o FCP e União de Leiria:Pinto da Costa — Quem é?Pinto de Sousa — O Proença!!! Então não é?! Falei contigo. P. C. — Pois, eu sei. P. S. — Ah?!P. C. — Já sei!P. S. — É esse! Foi nomeado ontem… oficialmente!P. C. — Ai é…P. S. — Foi ontem nomeado, só! Mas… antes de nomear tinha falado contigo!P. C. — Sei! Mas eu, se me perguntarem alguma coisa, eu vou dizer que não comento, como é óbvio!P. S. — Claro!P. C. — Não vou dizer que…P. S. — Claro! Ah, ah! É evidente, é evidente! Pelo contrário! Até devias dizer que achas mal! Eh, eh, bom…E, dois dias depois, os mesmos voltaram a conversar:Pinto de Sousa — É… mas vou devagarinho, pá, calmamente… vou falar com Pedro Proença!Pinto da Costa — Vais?P. S. — Grande jogo em Guimarães, pá! Vai fazer um grande jogo!P. C. — Com recados para não expulsar ninguém!P. S. — Eh, eh, eh…Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. É claro que uma pessoa honesta pode ser apanhada como um pinto entre dois pintos maiores (na altura muito activos em conversas de galos e de poleiros no futebol português). A carreira de Pedro Proença aguentou todas as más-línguas. Um homem que ao longo de anos acabou por conhecer tão bem Sepp Blatter e Michel Platini acabará por ficar imunizado contra os golpes mais baixos do “desporto-rei”. Agora a proeza é liderar e unir os clubes todos da Liga. Tem de começar pela linguagem da competência. Pedro Proença acha que Vítor Pereira (da Arbitragem) é incompetente e tem de sair (ou já não acha?). E Bruno de Carvalho acha incompetente o derrotado ex-presidente da Liga Luís Duque, e Luís Duque considera incompetente Bruno de Carvalho. E Pinto da Costa fala isto de Luís Filipe Vieira e Vieira fala aquilo ainda pior de Pinto da Costa. O trabalho do cavalheiro Pedro Proença terá de ser o contrário daquilo que sempre sofreu: o árbitro agora é que terá de gritar uns palavrões. Mas ele sabe-os.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homem japonês
Eles fazem videojogos e são muito bons nisso
A história de como alguns portugueses se fartaram de ver os meninos estrangeiros a brincar e resolveram montar uma indústria de videojogos em Portugal (e não estão nisto para perder) (...)

Eles fazem videojogos e são muito bons nisso
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.909
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A história de como alguns portugueses se fartaram de ver os meninos estrangeiros a brincar e resolveram montar uma indústria de videojogos em Portugal (e não estão nisto para perder)
TEXTO: A história de como alguns portugueses se fartaram de ver os meninos estrangeiros a brincar e resolveram montar uma indústria de videojogos em Portugal (e não estão nisto para perder)Corrria o ano de 2001 e da agenda de Filipe Pina constava uma reunião com o director do Instituto Português da Juventude (IPJ), cujo único ponto de ordem era avaliar a possibilidade de aquela entidade investir na empresa de videojogos que Pina criara. Lá fora, é prática comum um investidor, público ou privado, colocar dinheiro a fundo perdido nas pequenas empresas que estão a começar neste negócio. Em Portugal, nunca tinha acontecido. Pina demorara meses a convencer o IPJ a recebê-lo. “Finalmente surgiu uma data”, lembra: 11 de Setembro de 2001. “Aconteceu o que aconteceu e não houve reunião. ”Este acaso simboliza o que foi, durante anos, a quase inexistente indústria de videojogos em Portugal: aos 21 anos, Pina deixara um emprego bem pago na televisão para montar uma empresa de videojogos, após associar-se a estudantes universitários que conhecera nos chats do IRC (um dos primeiros protocolos que permitiam que os cibernautas de todo o mundo conversassem entre si em tempo real). Para pôr o plano em marcha, era preciso um investidor externo, de modo que, com o apoio do IPJ, Pina conseguiria finalmente concretizar o seu sonho de infância: criar, no seu país natal, um jogo decente. E a tragédia que mudou o mundo “tinha logo de acontecer nesse dia”. Não houve nova reunião no IPJ e a carreira de Pina nos videojogos podia ter acabado ali. Não acabou, mas foi no mínimo rocambolesca: os seus sócios encontraram, no Porto, investidores interessados, mas essa empresa acabou por falir; depois Pina montou outra, a Seed Studios, que, com a ajuda de um subsídio da União Europeia, criou Under Siege, um jogo cujo orçamento rondou os 1, 4 milhões de euros, o maior de sempre para um jogo português. Under Siege, foi lançado em 2011 para a PlayStation 3. Fazer um jogo para uma consola tão popular é o sonho de todo o criador de jogos, e o Under Siege ainda hoje é um caso de culto. Mas podia ter sido muito mais, podia ter sido um êxito estrondoso. Os azares, acasos e imponderáveis que o impediram dizem bem da dificuldade que havia em fazer jogos a partir de Portugal. Estava previsto que Under Siege fosse lançado em finais de Abril de 2011 — mas, na semana do lançamento, a PlayStation Network sofreu o único ataque de hackers da sua história e os clientes ficaram sem aceder aos jogos durante um mês. Quando os servidores foram novamente ligados, a Sony (dona da PlayStation) tinha ficado sem os registos dos seus 70 milhões de utilizadores. Com o tempo, a Sony recuperou a sua confiança, mas para a Seed Studios o mal já estava feito. As críticas foram óptimas mas comercialmente o jogo foi morto à nascença: como saiu durante o período em que os servidores estavam em baixo, não teve a alavanca mediática para poder ter sucesso. Para agravar, o Estado não pagou a última tranche do subsídio, no valor de 120 mil euros e, sem esse dinheiro, a Seed Studios faliu nesse mesmo ano de 2011. Pina não desistiu: aproveitou o “boom do mobile” e reergueu-se: hoje está à frente da Nerd Monkeys, uma empresa que aposta, sobretudo, em jogos para smartphones e está a crescer dia após dia, encomenda após encomenda. A palavra-chave, aqui, é esta: “mobile”. Foi o advento dos smarthpones que permitiu que os portugueses, até aí meros consumidores de jogos, se tornassem criadores. E neste momento há uma indústria de videojogos, feito por empresas portuguesas, com dinheiro português e trabalhadores portugueses, a explodir. Uma indústria, com gente experiente e com procura externa — e não apenas meia dúzia de entusiastas, como acontecia há uma década. De 2011 para cá, o salto foi brutal — de quatro empresas passou-se para mais de quatro dezenas. “Na última contagem que efectuei, encontrei 43 empresas, que empregam pelo menos 250 pessoas”, explica Ivan Barroso, o “historiador oficial” do movimento. Bacharel em Artes Plásticas e licenciado em Multimédia, Barroso, de 35 anos, é professor na ETIC, onde em 2011 começou a leccionar um curso de videojogos. Como os restantes developers (pessoas que desenvolvem videojogos) portugueses da sua geração, o seu trajecto é incomum: trabalhou em gabinetes de arquitectura, em teatro, galerias de arte, fez cinema, animação para a RTP África e, entre 2008 e 2010, esteve na Sérvia como director de arte de uma editora de livros. Trabalha em jogos há uma década, sempre como freelancer: “No total, devo ter feito cinco jogos para PC ou consolas e uns 40 para mobile”, diz. Mas não é o seu percurso ou a quantidade de jogos que o qualificam como historiador, antes os seus livros — o primeiro chama-se mesmo História dos Videojogos. Segundo Barroso, os valores movimentados pela indústria portuguesa já ultrapassam a casa do milhão de euros por ano, isto fazendo as contas por baixo, devido ao secretismo do negócio: como em outras áreas das tecnologias de informação, as empresas (tanto as portuguesas como as outras) assinam muitas vezes NDA (Non-Disclosure Agreement), um acordo que obriga as partes que o assinam a não revelar publicamente nenhum dado acerca do negócio que estão a levar a cabo. Imaginemos que um investidor estrangeiro coloca dinheiro numa empresa portuguesa mas a obriga a assinar um NDA, ou que uma empresa estrangeira contrata uma empresa portuguesa para fazer os gráficos de um jogo — é muito possível que a obrigue a assinar um NDA. Isto torna mais complicado perceber exactamente com que quantias as empresas portuguesas de videojogos estão a trabalhar neste momento. Nestes números não entra a Miniclip, uma empresa de capital estrangeiro mas sediada em Portugal, que é “a que emprega mais gente, cerca de 80 pessoas. Está sempre no top 50 internacional dos jogos mobile”, acrescenta o historiador. A Miniclip, segundo alguns dos seus ex-empregados, faz facilmente três ou quatro milhões de euros de facturação por mês. Elementos relevantes da indústria nacional de videojogos afiançam que os montantes com que as empresas portuguesas trabalham são maiores que os que Barroso avança. O que está a acontecer não é um momento de sorte na vida de fãs que querem fazer joguinhos: trata-se do culminar de um longo, e por vezes penoso, processo protagonizado por fanáticos que querem criar jogões — e que, após terem batido com a cabeça na parede muitas vezes, querem fazer dinheiro. Casos como os de Pina ou de Nuno Folhadela ou de Tiago Loureiro (que faz parte do Conselho Nórdico para os Videojogos, e por isso lhe chamam “Viking”), são ainda mais extraordinários se pensarmos que já receberam várias propostas milionárias para irem trabalhar para o estrangeiro, mas recusam-se a sair: o que os move é serem senhores do seu destino, fazerem os jogos que querem, no seu próprio país — e serem donos das suas empresas. Os membros desta geração, nascida na década de 1970 e início de 80, têm em comum a ausência de percurso académico ou de carreira tradicional. Pina, que Ivan Barroso descreve como “a cola” que une os profissionais dos videojogos em Portugal, não foi para a faculdade e começou por trabalhar em grafismo numa produtora de TV, antes de se lançar nos jogos; Loureiro, um programador de excelência reconhecido internacionalmente, já trabalhava aos 12 anos e frequentou pelo menos quatro licenciaturas sem ter terminado nenhuma; Nuno Folhadela acabou um curso de Cinema de Animação com 19 anos, trabalhou no McDonalds e vendeu jogos ao balcão de uma loja chamada Replay Games, enquanto ia aprendendo programação por conta própria, até acabar por fazer o site online da loja. Finalmente, em 2006, conseguiu trabalho numa empresa de videojogos. Hoje é o dono da Bica Studios — chamam-lhe “O empresário”, por considerarem que é o mais atento às necessidades do mercado. Se o sonho americano é arriscar e enriquecer, o sonho português seria, para a geração de 1970, tirar um curso, arranjar emprego certo, comprar casa e carro. Não para Pina, não para Loureiro, não para Folhadela: o sonho deles era fazer jogos, aqui. E convencer os outros de que isto dá para brincar mas não é uma brincadeira. Em alguma coisa hão-de ter acertado: tanto eles como as gerações mais novas fazem, a partir de Portugal, os seus jogos, para mobile e para consolas — a XBOX, a PlayStation, etc. Era nas consolas que estava o dinheiro a sério — era preciso comprar a consola e o jogo, sendo este mais caro que o actual jogo de mobile. (O mobile veio alterar isto E já há jogos em consolas gratuitos. ) É em consolas que a Tio Atum, uma empresa cujos donos nasceram na década de 1980, está a apostar agora. “Até há ano e meio, só fazíamos mobile”, conta Miguel Pedro Rafael, um dos três donos da empresa. Quando alguém entra no “escritório” da Tio Atum, Miguel faz uma rábula: aponta para um quarto, onde um vulto se esconde atrás de um computador, e diz: “Este é o escritório do nosso sound designer. ” Claro que não é um escritório — é o próprio quarto de Miguel Cintra, o sound designer. “Ele teve um desgosto amoroso e veio viver cá para casa”, explica Miguel. A rábula prossegue: “Este é o escritório do Afonso, o nosso programador” e, claro, não é escritório algum, é o quarto de Afonso. O “escritório” da empresa é a casa onde os donos da Tio Atum vivem. Quando chega à sala de estar, Miguel anuncia: “E esta é a nossa sala de reuniões. ”A rábula pode dar a ideia de tratar-se de um bando de garotos que, enquanto não têm filhos, brincam aos jogos — mas em menos de quatro anos a Tio Atum fez seis jogos para mobile que “ultrapassaram os dois milhões de downloads”. De há ano e meio para cá, estão a trabalhar no primeiro jogo para PC e consolas, chamado Greedy Guns (a demo está online). “A ida para PC está garantida — agora, quais consolas, isso ainda não sabemos. ”O trio da Tio Atum não precisou de investimento externo de modo a trabalhar em Greedy Guns: “Foi tudo feito com os rendimentos que tivemos dos jogos mobile”, diz Miguel, antes de atirar: “Arriscámos desde o início, foi assim que começámos e, se a empresa acabar, acaba a arriscar. ”Bem-vindos então ao novo sonho português. Como é que se faz dinheiro com jogos para smartphones? Bem, primeiro faz-se o jogo, depois tenta-se que uma plataforma de venda (a App Store, por exemplo) o aceite. Os seis jogos da Tio Atum estão no Google Play e na App Store. “Esses jogos são gratuitos”, explica Pedro Rafael. “Nós ganhamos da publicidade ou com compras dentro dos próprios jogos. ”As compras dentro dos jogos funcionam assim: o jogador descarrega um jogo da Tio Atum e começa a jogá-lo no seu smartphone. Mas o jogo tem um número de armas limitado ou só meia dúzia de níveis de dificuldade. Este é um exemplo das múltiplas tácticas que as empresas encontram para viciar o jogador e levá-lo a querer jogar mais: quem quiser mais armas, ou mais níveis, tem de pagar. Quanto à outra fonte de rendimento, a publicidade: “Nós colocamos um serviço de anúncios no jogo, directamente na aplicação. Por cada pessoa que vai ao anúncio a partir do nosso jogo, recebemos um valor que pode chegar a um euro por pessoa. ” Há empresas (estrangeiras) que facturam um milhão por dia; os autores de Candy Crush Saga “gastam balúrdios por dia só a anunciar o seu jogo em outros jogos”. Como dissemos, a palavra-chave é “mobile”. Os smartphones — em Portugal como no estrangeiro — mudaram tudo. Até ao advento dos smartphones, os jogos eram desenvolvidos para consolas (sendo a PlayStation e a Nintendo as mais fortes no mercado) ou para PC e Macintosh. De modo que há uns anos não era raro haver “600 a mil pessoas a trabalhar no mesmo jogo”, segundo Barroso, que nota que “esta é a maior indústria de entretenimento do mundo — vale mais que a do cinema e da música juntas. Só para se ter uma ideia, o orçamento de marketing do GTA 5 [Grand Theft Auto 5, que vendeu mais de 45 milhões de cópias] é superior ao orçamento de feitura do jogo”. E o mercado dos videojogos continuará a crescer: de 57 mil milhões de euros em 2012 para praticamente 70 mil milhões em 2017, segundo a Forbes. Antes, um videojogo lançado em grande escala era uma manada de elefantes que implicava ter: artistas (que desenham os bonecos ou os posters); programadores (fazem o esqueleto do jogo); designers (de menus, de gráficos, de 3D); arquitectos (apesar de serem assim chamados, não são licenciados em Arquitectura, antes engenheiros que tratam da habitação do espaço do jogo, isto é, a forma como o jogador, através do boneco que controla, se move através do jogo); guionistas; game designers (que decidem que quando o boneco salta também pode atirar uma faca e assim desbloquear um puzzle); sonoplastas (que fazem os sons e também podem fazer a música); e animadores (gente vinda do cinema de animação e que melhora os movimentos dos bonecos). E depois vieram os smartphones. Não é que antes não existissem jogos para telemóveis, mas eram muito precários, pouco aliciantes — e, portanto, pouco viciantes. Para fazer jogos para mobile, não são precisas 600 pessoas e um orçamento de marketing superior ao salário delas durante quatro ou cinco anos — basta uma pessoa. Como David Amador — o primeiro português a ver um jogo aprovado no Humble Bundle, uma das principais plataformas de vendas de jogos. O jogo, Quest of Dungeons, foi também aprovado pelo Steam (outra grande plataforma de venda de jogos online) em apenas seis dias. Amador é um rapaz de 31 anos que, como outros, não acabou o curso: nasceu em Vila Nova de Milfontes e começou a estudar Engenharia Informática no Instituto Politécnico de Portalegre aos 19 — chumbou um ano no secundário. “Tive sempre dificuldade na escola”, conta. Ao contrário de Pina, Folhadela ou Loureiro, nunca pegou num Spectrum — o primeiro computador de tantos rapazes nascidos na década de 1970. David começou por um PC, um Pentium 2, “aos 14 ou 15 anos — tarde, para os padrões comuns”. Na altura, os seus colegas “tinham jogos que [ele] não tinha”. Os jogos “nunca foram uma coisa que os meus pais achassem produtivo. Pelo que não me compravam muitos”. David cresceu a brincar nas consolas dos amigos: Nintendo, Megadrive, “ainda um pouco da primeira PlayStation”. A sua lista de jogos preferidos dessa época inclui Zelda, Super Mario e Prince of Persia, um jogo que marcou a geração anterior à dele. Teria uns 16 anos quando começou “a mexer umas coisas em Pascal [uma linguagem de programação caída em desuso] e num programa em Basic [uma linguagem de programação básica, usada pelos iniciados da informática a meio da década de 1980]. Até ir para a universidade, não tive educação formal de informática”. Para pagar as propinas, David procurou um part-time. Na altura, uma série de start-ups instalara-se no edifício da Câmara Municipal de Portalegre — uma delas foi a Spellcaster Studios. “Cheguei à entrevista, puseram-me um computador nas mãos e disseram-me: ‘Tens duas horas para fazer um jogo. ’ Não me disseram que tipo de jogo, em que linguagem, nada. ” Entrou. Fez um estágio e, quando a Spellcaster se mudou para Setúbal, David seguiu-os, deixando o curso para trás. Ainda por lá ficou mais dois ou três anos, a trabalhar em websites. Em 2010, estava desempregado e decidiu fazer um jogo chamado Vizati, por si próprio, num mês. Levou-o a um concurso da Microsoft e ganhou o primeiro prémio. Vizati saiu em Junho de 2010 e teve boas críticas, estando disponível para iPhone, PC, Mac e iPad — o que lhe deu motivação para continuar. “O meu currículo são os jogos”, diz. O último emprego que teve foi na Sapo, e descreve assim a contratação: “Levei o iPad para a entrevista e disse: ‘Tenho feito isto. ’ Eles acharam graça e começaram a jogar: consegui o emprego. ” Isto significa que houve uma mudança cultural: o patronato começa a ver o talento para criar jogos como uma qualificação, não uma coisa de garotos. Em 2013, resolveu fazer, sozinho, Quest of Dungeons — um jogo em que o objectivo é recuperar a luz roubada por um senhor das trevas e que tem a particularidade de os diferentes níveis nunca se repetirem. Tinha passado anos a fazer jogos (fosse para empresas, fosse nos seus tempos livres) e conseguira um certo culto na comunidade nacional de jogadores. Trabalhou em Quest of Dungeons durante um ano e foi “mostrando o progresso do jogo em fóruns, no Twitter e no Facebook”. Quando achou que o jogo estava próximo de estar acabado, fez o trailer e no mesmo dia mandou-o para o Steam. No Steam, os criadores submetem os jogos, os jogadores votam nos que mais gostam e, se um jogo conseguir entrar no top 100 de votos, a plataforma talvez o distribua. Era uma da manhã quando David enviou o jogo; quando acordou, Quest of Dungeons tinha 6% dos votos do 100. º jogo mais votado; no dia seguinte 18%; e foi a subir até chegar ao top 100. A 19 de Janeiro de 2014, seis dias depois de ter enviado o jogo, o Steam aprovou-o para a sua loja. Quest of Dungeons foi também para PC e Mac, depois iOS (o sistema operativo dos iPhones e dos iPads) e acabou na Humble Bundle. Agora, David Amador está a passar o jogo para a XBOX. Foi ele quem apresentou o jogo à Microsoft (dona da XBOX). Está a fazer tudo sozinho, com o dinheiro que ganhou até agora. Quando Amador era aluno universitário, Pina foi à sua escola falar com os estudantes. David pensou: “Estes gajos fazem o que eu quero fazer. ” Sem a palestra de Pina, Amador não teria pensado que era possível viver dos jogos. Um dos primeiros problemas com que Pina se deparou quando resolveu iniciar a indústria de videojogos em Portugal, há 15 anos, foi a dificuldade em chegar à fala com editoras que publicassem os jogos: “Todas as editoras eram estrangeiras e nós não tínhamos ainda o know-how. ” Mas a grande barreira era económica e ainda subsiste: “Os bancos em Portugal não investem em videojogos. ”Segundo Ivan Barroso, “até hoje não houve um banco que investisse num jogo em Portugal”. Segundo Miguel Pedro Rafael, da Tio Atum, “a nossa cultura financeira não ajuda — não temos milionários a dar com pau”. As nossas regras fiscais também não estão adaptadas à especificidade do negócio: na maior parte dos países ocidentais, as empresas de videojogos têm isenções fiscais nos primeiros anos, porque um jogo pode demorar um a dois anos a ser feito, e depois ainda pode ser preciso esperar outro ano até receber o dinheiro. Por cá é preciso pagar IRC e segurança social durante todo este período. É por isso que Rafael acredita que os criadores de videojogos têm de se “unir para fazer lobby”. A questão do know-how foi resolvida com o tempo: quando Pina começou a sua mais recente empresa, a Nerd Monkeys, já tinha no currículo jogos como Toy Shop Tycoon (o primeiro jogo para a Nintendo criado em Portugal, distribuído em todo o mundo, em seis línguas, que saiu em 2008), além do Under Siege. Graças aos seus próprios desaires, os pioneiros dos videojogos portugueses aprenderam a conhecer as necessidades do mercado e os seus agentes. Assim se compreende que a Nerd Monkeys já tenha lançado vários jogos para mobile e esteja a crescer, ao ponto de nos próximos meses ir contratar mais quadros, isto além de já contratar regularmente freelancers — por exemplo, a música dos jogos é feita por João Mascarenhas, líder da Stealing Orchestra, uma banda de culto. Há cada vez mais freelancers nesta área — seja a fazer grafismo, programação ou som. Ou seja: a estrutura das empresas portuguesas começa a assemelhar-se à das empresas convencionais ocidentais. Ou seja: começa a haver uma indústria portuguesa. Também a crescer está a Bica Studios, de Nuno Folhadela, empresa “altamente centrada no mobile”, que, entre outros jogos, desenvolveu um que teve êxito, Smash It!. Ao ponto de entretanto ter lançado uma sequela, Smash Time. Folhadela, um homem que fala com um entusiasmo e confiança impressionantes, tem grandes planos: “Somos a empresa mais promissora [de jogos] em Portugal. Somos nove empregados, mas daqui a seis meses vamos passar a ser 15 — planeamos contratar artistas, programadores e analistas de dados. ”Quando Folhadela chegou à Game Invest, em 2006, tinha passado anos a “entregar currículos em empresas de animação, porque não havia empresas de jogos”. Bem, havia esta — ainda por cima portuguesa — mas, para azar de Folhadela, a Game Invest faliu em 2007, de modo que o dono da Bica Studios teve de esperar quatro anos até voltar aos jogos, na Biodroid, também portuguesa. Esteve lá de 2011 a 2013. Na Game Invest — que fazia os seus próprios jogos —, fora game designer e argumentista; na Biodroid, foi também produtor. Mas como as empresas portuguesas são pequenas, acabou (como Loureiro ou Pina) a fazer um pouco de tudo. Na Biodroid, fazia a história, a mecânica e a arquitectura dos jogos. Foi aí que encontrou “gente com vontade de fazer jogos para o mundo inteiro” e resolveu formar a sua própria empresa. A gente da Bica Studios tem sonhos mas é pragmática. Querem “uma marca”, fazer “um jogo que seja bom daqui a 20 anos”, daí a opção pelo seu próprio produto em detrimento das encomendas que possam surgir. (Neste negócio é muito comum uma empresa consignar a outra uma parte da feitura do jogo. ) Mas também querem “chegar a muitas pessoas”. Fizeram uma análise de mercado e descobriram que “faltavam smashers”, jogos em que se partem, esmagam e escavacam coisas. “São jogos simples, que se aprendem rapidamente e sem um grande campeão de vendas nas lojas digitais. ” Foi assim que criaram a série Smash (cuja primeira versão saiu em Maio de 2013 e a última em Dezembro), disponível para AppStore, Windows Phone e Google Play. A ideia é ser um sucesso global e “haver mais conteúdos todos os meses. Novas personagens, novos níveis, novas mecânicas”, explica Folhadela: “Ao contrário do que acontecia nos jogos tradicionais, em que o objectivo era chegar ao fim, o jogo para mobile não pára. É a beleza destes jogos. ”Com o êxito de Smash It! fizeram um acordo com um grupo de investidores portugueses — que se tornaram donos de uma parte da empresa. A Bica usou o dinheiro para desenvolver Smash Time, a sequela de Smash It!, e “fazer dele um campeão de vendas”. Folhadela recebeu duas propostas da King, que desenvolveu o Candy Crush Saga, e mesmo assim “não quis sair”. A King é a maior criadora de jogos no Facebook e está avaliada em mais de sete mil milhões de dólares. Folhadela prefere “pensar no que [pode] fazer por Portugal”. A ideia é um dia vender a empresa por uma batelada. “O grande problema de Portugal”, explica, “é que somos muito novos a produzir entretenimento”. Isto dificulta coisas tão simples como encontrar financiamento externo ou chegar às grandes distribuidoras. O país é visto com desconfiança, mas por outro lado, sabe-se que aqui há talento e barato, o que explica a razão por que a Miniclip, cujo capital é estrangeiro, se estabeleceu cá. Um dos seus grandes êxitos foi um jogo chamado 8 Ball Pool. Por trás dele está Tiago Loureiro: “Fui contratado pela Miniclip para coordenar a passagem do jogo para mobile no mercado americano e europeu. ” Foi um êxito global em 2013. Nenhum percurso é tão estranho como o do “Viking”, um homem que fala depressa, tem sentido de humor e um marcado pragmatismo — o que é igualmente notório nos restantes criadores de videojogos nacionais. Aos 39 anos, Loureiro é dos mais velhos a trabalhar nesta indústria (embora Pina trabalhe na área há mais tempo). Teve um Spectrum, claro, mas começou a programar em Basic aos seis anos, num Texas Instruments — um computador com periféricos para disquetes e gravador de cassetes, sobretudo popular nos Estados Unidos. O gosto pelas tecnologias de informação percorre a família: “O meu pai viu aquilo e comprou-o — quem lhe vendeu o meu computador foi o meu actual padrasto. ”No 10. º ano, criou “um programa no Spectrum para resolver os problemas de Matemática”. Não tencionava estudar Informática: “No 9. º ano, a imagem que tinha dos cursos de Informática em Portugal era má. ” Pelo que se candidatou a Psicologia — mas entrou em Matemática. Ainda se inscreveu em Gestão, Psicologia e Engenharia Informática, não terminando nenhuma destas licenciaturas. Valha a verdade, nunca precisou: aos 12 anos já ganhava trocos a quebrar os galhos informáticos dos conhecidos, aos 14 criava softwares para empresas de amigos dos pais, aos 17 criou uma distribuidora de livros de role playing (em que o jogador encarna uma personagem por ele criada) e aos 18 tornou-se operador de registo de dados numa empresa. Aos 22 era chefe de equipa de um sistema interbancário de detecção de fraude em tempo real com cartões bancários. Depois foi para a SisCog, onde desenvolveu programas de suporte à decisão para sistemas ferroviários no Norte da Europa — onde criou nome. E esta é a versão super-resumida do seu currículo. Foi capa de revistas especializadas, mas só em 2006 começou a trabalhar em definitivo na área dos jogos. Hoje, “gente no mundo inteiro" vem ter com ele, diz, muito à conta de “ter publicado jogos que ainda estão no top 30 da Appstore dos EUA”, como Gravity Guy, mas também pelo seu talento enquanto programador — é o programador mais admirado pelos portugueses que trabalham na indústria dos videojogos e um dos programadores portugueses mais requisitados. E, no entanto, não se quer ir embora. De tal modo que agora tem a Raindance Studios, que anda por estes dias por feiras em Londres. “Antes era difícil, do ponto de vista técnico, entrar nesta indústria. Mas agora há tantas ferramentas de tão fácil utilização que qualquer um pode fazer jogos”, diz. Além disso, ter estado na Miniclip abriu portas lá fora: “Hoje sei exactamente quem hei-de contactar e como. ” O “como” refere-se ao modelo de negócio: a Raindance Studios conseguiu apoio de uma distribuidora, a Lace, que adiantou dinheiro para um jogo para Mac e, se tudo correr bem, para XBOX. A Raindance Studios faz o jogo, a Lace publica e depois partilham receitas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O adiantamento só dá até Outubro. Loureiro tem uma filha de cinco anos. Como se mete numa coisa destas? “Se correr mal, vamos à nossa vida”, diz, no tom mais pacato que se possa imaginar. “Não estou nada preocupado com isso. Num mês, tenho emprego. ”Certo, mas e aqueles que não têm certeza de arranjar emprego num mês? “Devem seguir o que sonham mas não se devem definir por isso. Cada projecto é só um projecto. Se correu mal, correu. Foi o projecto que correu mal, não foi a pessoa. É circunstancial: naquela altura não foi possível fazer isto. ‘Bora fazer outra coisa. ”Agora é hora de fazer jogos.
REFERÊNCIAS:
Slow movement: Trabalhar menos. Trabalhar melhor
A energia dos cidadãos, das comunidades ou dos países não pode ser empregue apenas no crescimento económico, mas na capacidade em distribuir equitativamente a riqueza, o saber, o trabalho, o lazer e o tempo. E isso é slow movement. (...)

Slow movement: Trabalhar menos. Trabalhar melhor
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.011
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A energia dos cidadãos, das comunidades ou dos países não pode ser empregue apenas no crescimento económico, mas na capacidade em distribuir equitativamente a riqueza, o saber, o trabalho, o lazer e o tempo. E isso é slow movement.
TEXTO: Desafiar a cultura da velocidade, da acumulação, do frenesim, da quantidade sobre a qualidade. Não para tentar impor o seu contrário, mas para repor equilíbrio nas diferentes áreas da vida. O movimentoambiciona proteger um bem escasso que é transversal a tudo o que fazemos — o tempo —, interrogando-se sobre como o gerimos e o que fazemos dele. Não se trata de recusar as tecnologias, as conquistas do bem-estar ou aspectos positivos da globalização, mas de os tornar aliados no objectivo da sustentabilidade. Não se trata de fazer a apologia da lentidão ou de encarar o trabalho de maneira negativa, mas sim de enaltecer o revigoramento que pode surgir quando se vive segundo um modelo em que se sabe quando é necessário abrandar ou acelerar, não deixando que o desacelerar se torne estagnação, nem que a hiperactividade se torne obsessão. O tempo tornou-se a unidade de medida de tudo, até do espaço. Já não falamos de distâncias quilométricas, mas de tempo de viagem: três horas de voo. Duas de comboio. Quatro de carro. As teorizações acerca do tempo e do ritmo são recorrentes ao longo da história. Mas na última década, em parte por reacção ao culto da rapidez, a procura do tempo justo tem sido revalorizada. Os diferentes movimentos slow surgidos nos últimos anos — slow cities, slow food, slow design, slow travel, slow thinking e tantos outros — direccionam a sua abordagem para áreas específicas, mas no fim de contas todos alertam para a necessidade de abrandamento do mundo moderno, não para regressarmos a formas pré-modernas, mas para reconfigurarmos o presente. A questão é como desacelerar num contexto contemporâneo que nos impele exactamente para o contrário. Um ambiente onde a produtividade ainda é associada a trabalhar muito e não racionalmente, onde ter sucesso ainda é sinónimo de acumular, ou onde a satisfação é tantas vezes confundida com consumir. “Há uns anos, em férias, simplesmente não conseguia desligar-me do trabalho, passava o tempo ao telemóvel”, ri-se Maria Andrade, advogada de 43 anos, que se viu obrigada a reduzir o ritmo de trabalho depois de ter apanhado um valente susto de saúde. “Às tantas fui avisada por mais de um médico de que tinha de parar”, confessa, recordando a sua relação com o trabalho: “Inventava, inclusive, desculpas para mim própria para não tirar férias, era como se não soubesse o que fazer com elas, como se fossem uma perda de tempo. Vivia apenas e só para o trabalho. ”O seu caso é extremo. Abrandar, mais do que opção, foi um imperativo. O facto de ter uma situação desafogada do ponto de vista material permitiu-lhe parar durante um ano e reflectir. Quando regressou ao escritório de advogados, renegociou o contrato de trabalho. Passou a auferir um vencimento menor, em troca de laborar menos horas e de ser ela a controlar o seu tempo. No início não foi fácil, “porque estamos inseridos no colectivo e alguns colegas não percebiam a situação de excepção que eu representava”. Hoje diz que a situação se normalizou e não está arrependida. Apesar de se saber uma privilegiada, “porque nem todas as pessoas se podem dar ao luxo de ver o seu ordenado reduzido”. Maria Andrade ganhou outras coisas. “Antes era uma mulher ansiosa com trabalho. Agora sou mais construtiva e produtiva e também com mais tempo para mim, para os que me rodeiam e para tudo aquilo que fui adiando ao longo dos anos — da natação à pintura. Não tenho qualquer dúvida de que abrandar me tornou mais eficiente, produtiva e realizada. ”A relação com o trabalho no mundo ocidental já passou pelas mais diversas mutações. Na Grécia Antiga nem sempre foi tido em grande conta. O Renascimento recuperou-o e elegeu como um dos seus heróis o mestre artesão. Mas foi com a Revolução Industrial que o trabalho passou a ser celebrado como o grande motor da transformação do mundo. No relatório de Julho deste ano da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), Portugal surgia no 12. º lugar dos chamados países industrializados onde mais horas se trabalha — apesar de a instituição advertir que as comparações entre países podem ser enviesadas. Por cada dia útil, em média, um português trabalha sete horas e vinte minutos. Na Europa são os gregos quem mais horas trabalha (oito horas diárias), enquanto os alemães, por exemplo, se ficam pelas cinco e meia. Recentemente, o laboratório de políticas públicas da Suécia fez saber que, até ao final do ano, está a proceder a um teste. Metade dos funcionários públicos da cidade de Gotemburgo trabalha seis horas por dia e a outra metade oito. A experiência pretende provar se é possível ser mais eficiente, dedicado, criativo e comprometido, trabalhando menos. Em França, onde estão implementadas as 35 horas semanais (em contraste com as 40 portuguesas), os defensores e detractores da lei apresentam argumentos diferentes. Os que a contestam dizem que a produtividade baixou. Os que a defendem afirmam que não só não baixou, como a educação, a cultura, o desporto, o lazer ou as ocupações que envolvem participação cívica passaram a ser mais valorizados, ao mesmo tempo que as grandes companhias puderam negociar com os trabalhadores formas mais flexíveis de operar. No movimento slow defende-se que menos horas de trabalho acaba por contribuir para a maior valorização dos bens não materiais. Dessa forma não se concorre tanto para o possível esgotamento do planeta, ao mesmo tempo que se contribui para o enriquecimento individual, e para a vida salutar em comunidade, ao contrário da corrida à reposição de bens, que é uma das principais razões pelas quais se trabalha mais na actualidade. Trabalhar menos é apenas um dos elementos defendidos pelo movimento slow. O outro é poder negociar, sempre que tal se revele praticável, quando e onde se trabalha. Ou seja, deter um maior controlo sobre o tempo que se trabalha. Uma prática difícil de encaixar numa cultura onde ainda se é julgado mais pelas horas que se passam a trabalhar do que pelos resultados que se alcançam. Claro que existem já muitas excepções. No Canadá, por exemplo, há inúmeros casos de autonomia temporal dos trabalhadores. É o que acontece com o Royal Bank of Canada, que concluiu que “quando têm controlo sobre o tempo de trabalho, os funcionários ficam mais calmos e são muito mais eficientes, e, por outro lado, o abrandamento é fulcral ao nível dos planeamentos estratégicos, das relações humanas e do pensamento criativo”. O escritor e filósofo suíço radicado em Inglaterra Alain de Botton é um dos que acham que hoje “as pessoas trabalham mais do que alguma vez aconteceu”, diz-nos por email. “Nas sociedades ocidentais contemporâneas temos a sensação de que vivemos na era do lazer e das viagens, mas é bem capaz de não ser assim”, afirma. “Na Idade Média, a maior parte das pessoas trabalhava até ter o que precisava para sobreviver e depois parava para desfrutar do que conseguira. Na era industrial começaram a surgir as jornadas regulares de trabalho. E hoje vivemos obcecados em ter uma vida produtiva, trabalhar muito, de forma quase incessante. É preciso não generalizar, mas todos conhecemos quem trabalhe em ambientes altamente competitivos e que, aos domingos à tarde, está com o pensamento no escritório. ”Na sua opinião, o ritmo desenfreado contribuiu para que, quando paramos, não saibamos como usufruir desses momentos. Talvez não seja um acaso que alguns especialistas da área das relações familiares proclamem que, nas férias, tendem a aumentar as separações entre casais e a agudizar-se os conflitos entre pais e filhos. Os níveis de ansiedade sobem para quem está habituado a determinadas rotinas. É difícil aceitar a preguiça. Aquela que é desejada, claro. Aquela que, sem nenhum desejo para ser realizada, permite o repouso ao corpo e à mente. Uma vida verdadeiramente produtiva só era possível com muitos momentos de improdutividade, argumenta Alain de Botton. Ou seja, os seres humanos mais produtivos são aqueles que também sabem o que fazer no ócio. O trabalho identifica. “Somos o que fazemos. ” É por isso que é tão difícil estar no desemprego. É uma questão de dinheiro e de sobrevivência, como é evidente. Mas é mais do que isso. É também a identidade de cada um que se joga. Fora do mercado de trabalho é como se não se existisse. Nas sociedades ocidentais contemporâneas temos a sensação de que vivemos na era do lazer e das viagens, mas é bem capaz de não ser assim”Hoje vivem-se tempos paradoxais. Nas últimas décadas parecia que caminhávamos para uma época do lazer. O ser humano da produção parecia cada vez mais em sintonia com o do jogo, do sentido lúdico e dos tempos livres. O aceleramento do progresso tecnológico, o imaginário dos computadores e dos robôs, parecia prometer uma maior libertação do homem em relação ao trabalho, mas nem sempre as tecnologias disruptivas conseguem garantir, em simultâneo, progresso e equidade. Tanto podem contribuir para a redução de empregos generalizada, com todas as consequências que daí advêm, como propiciar a melhoria do bem-estar, uma distribuição de rendimentos mais justa e mais tempo para dedicar ao lazer. A verdade é que a larga maioria sente que trabalha muito, não usufruindo de tanto tempo livre como desejaria. A sua vida é obrigada a girar em torno do emprego. E a crise económica que se perpetua veio agravar em muito este quadro. À medida que os postos de trabalho reduzem, o mundo parece dividir-se acentuadamente entre os que trabalham de mais, e em condições precárias, e os que simplesmente não têm trabalho. Se existisse lógica, a carga horária seria racionalizada, de forma a todos termos emprego. Reduzir-se-ia a porção de trabalho individual. Os que já o têm trabalhariam menos. E os que estão no desemprego poderiam aspirar a um posto de trabalho. O canadiano Carl Honoré, grande defensor do movimento slow e autor de In Praise of Slowness, afirma que a recessão afectou de formas diversas os ambientes de trabalho. Por um lado, colocou ainda mais pressão sobre quem trabalha, sendo-lhe exigido maior produtividade e em menos tempo. Em simultâneo, aumentaram os mecanismos de controlo, sejam eles informais ou estruturalmente burocráticos. Resultado? “Numa cultura que valoriza a velocidade e a competição, as pessoas sentem que uma forma de parecerem indispensáveis nos seus locais de trabalho é darem a impressão de que estão sempre a correr e em grande actividade”, escreveu há meses no Huffington Post. Ou seja, nos locais de trabalho há muitas pessoas que têm um comportamento performativo. Por outro lado, diz Honoré, a recessão apenas veio recordar-nos de que o estilo de vida que adoptámos nas últimas décadas é insustentável. “As pessoas estão ávidas por alternativas. Há cada vez mais quem já tenha percebido que é necessário reinventar a forma como gerimos a economia e a sociedade desde a sua base”, diz. “E o desacelerar terá um papel importante nessa mudança. ”Na obra Non-Stop Inertia, o psiquiatra inglês Ivor Southwood reflecte sobre as contradições dos últimos anos nas sociedades ocidentais, argumentando que a cultura do trabalho temporário, a fragmentação, ou a velocidade dos meios de comunicação digitais nos fazem acreditar que estamos sempre em movimento. Mas é um movimento sem nexo, sem destino. É uma acção paralisante que, muitas vezes, apenas leva à fadiga crónica ou à depressão. Os jovens não conseguem projectar o seu futuro. Sentem-se bloqueados por um eterno presente feito de precariedade. Os pais receiam perder a reforma ou a assistência social. O resultado é uma existência guiada pela imobilidade. Aquilo que ele chama “uma hipertrofia do presente”, em que a experiência múltipla e humana do tempo foi substituída pelo tempo exclusivo do capital. A modernidade instaurou o tempo único da produção, da tecnologia e da rapidez. Um regime temporal ocidentalizado hegemónico, eliminando os diversos tempos locais e individuais. Um processo de aceleração que não se detém, que se intensifica. Como diria o conhecido pensador francês Paul Virilio, já não vivemos na época da velocidade, mas do instantâneo. Um tempo único que elimina a espera, a transição, o intervalo, a reflexão. Num mundo assim talvez seja urgente formular novas noções de tempo. É isso que tem vindo a acontecer nos últimos anos. Em 1986, nasceu em Itália o movimento slow food, que pretendia contrariar os valores associados ao fast food. O slow expandiu-se depois, em vários países ocidentais, a outras áreas de acção — saúde, educação, turismo, relacionamentos, lazer, urbanismo — tendo por base a ideia que é possível vivermos num ritmo mais lento, adequado ao bem-estar e ao desenvolvimento pessoal, comunitário e ambiental. Foi com esses pressupostos que nasceu também, em 2009, a associação Movimento Slow em Portugal, dirigida hoje pela antropóloga social Raquel Tavares. O livro de Carl Honoré constituiu o ponto de partida para que uma série de pessoas, ligadas ao associativismo e ao desenvolvimento local, materializasse esse interesse numa associação e numa ONG, diz-nos Raquel Tavares. “Mais do que um submovimento, como existe noutras partes do globo, direccionado para áreas distintas, interessa-nos algo mais transversal ligado ao conceito de tempo. Para nós, é uma forma de estar que é empregue em diferentes dimensões da existência. ”Não existem receitas. O ideal é cada um encontrar o seu equilíbrio. Slow não é parar ou estagnar. É procurar equilíbrio. ”Na sua opinião, as mudanças individuais são indissociáveis das colectivas, mas não tem dúvidas de que é difícil lutar sozinho contra uma corrente predominante. “O que não significa que não se consigam dar pequenos passos, lentamente, na direcção certa. O primeiro, é a pessoa estar consciente da necessidade de operar algumas mudanças. Mas, como é evidente, demora tempo. ” Cortes abruptos também acontecem. “Quem tem um estilo de vida extenuante, do padrão executivo, que normalmente ganha bastante bem, e que decide cortar indo viver para o campo, por exemplo. São atitudes radicais, mas que não são para todos. Não existem receitas. O ideal é cada um encontrar o seu equilíbrio. Slow não é parar ou estagnar. É procurar equilíbrio. ”A recessão também ajudou à decisão. “Podíamos trabalhar ainda mais, acumular ainda mais e de forma ainda mais vertiginosa, como aconteceu com os nossos amigos, ou resistir a essa ideia. Foi o que fizemos. ”O que também mudou neles foi o seu sentido de comunidade. “O respeito pelo território, os negócios onde as populações se sentem integradas, enfim, o zelar pelos recursos existentes faz parte daquilo que somos agora. E gostamos de envolver mais pessoas nestas questões, porque só assim se pode mudar alguma coisa. Em grupo é mais fácil. ”As mudanças civilizacionais são lentas. Com avanços e recuos. Mas acontecem. A progressiva consciência ambiental é um exemplo, diz-nos Júlio. “A verdade é que a nossa relação com a ecologia mudou. E na relação trabalho/lazer poderá vir a acontecer o mesmo. ”“A nossa matriz de estilo de vida parecia ir na direcção de utilizarmos o tempo que nos sobrava”, reflecte por sua vez Raquel Tavares, “porque havia essa ideia de que com as máquinas poderíamos fazer mais rápido. Mas não interessa ter mais tempo se o ocupamos para fazer mais e mais, pensando apenas na quantidade. Esta época é marcada por um querer insaciável. Queremos mais sucesso. Queremos consumir a última novidade. Enfim, vamos estar sempre nessa corrida que não tem fim se não conseguirmos conectar-nos com outras coisas. ”Enquanto as grandes transformações não acontecem — seja através de políticas que permitam uma redistribuição mais justa dos rendimentos e recursos, ou da redução das horas de trabalho, seja pela adopção de novos comportamentos — é pelo menos possível ir ensaiando pequenas mudanças. Como dormir a sesta. É isso que advoga a Associação Portuguesa dos Amigos da Sesta, surgida em 2003, hoje com quase três centenas de sócios e com quatro conferências nacionais realizadas. O presidente é o advogado Prates Miguel, que, inicialmente, criou a associação em tom de desafio — “faço a sesta desde criança, porque sou do Alto Alentejo, e em determinada fase era alvo de chacota de colegas e juízes quando lhes dizia que julgamentos para as 14h eram contraproducentes”. Hoje continua um defensor do ritual, bem como do movimento slow. “É necessário entender este assunto em moldes biológicos a partir da necessidade de repouso, intercalado entre as duas jornadas de trabalho”, diz. Muitas das figuras mais vigorosas da história — Napoleão Bonaparte, John F. Kennedy, Thomas Edison ou Winston Churchill — não prescindiam de uma boa soneca. “Não pensem que trabalho menos por dormir durante o dia”, terá dito uma vez Churchill à imprensa, meio a brincar, meio a sério. “Isso é uma noção sem sentido da parte de quem não tem imaginação. Pelo contrário, é possível ser bem mais produtivo assim. Até porque é como se tivéssemos dois dias num só — ou pelo menos, um dia e meio. Depois da sesta sinto-me pronto para tudo. É revigorante. ”Nos últimos anos, afirma Prates Miguel, inúmeros estudos de carácter científico e obras publicadas têm levado as pessoas a olhar para a sesta de forma diferente. “Há um autor francês que diz que a sesta é tão necessária como o ar que respiramos. Faz parte do ritmo biológico. Recentemente, o alcaide de uma autarquia do Sul de Espanha decretou a prática opcional da sesta e eu compreendo isso. ”São incontáveis os estudos legitimados com o carimbo de “ciência” que concluem que trabalhar menos, ou a sesta, contribuem para melhorar a qualidade de vida. Ainda há pouco tempo, a NASA divulgou uma pesquisa em que se concluía que as sestas aumentavam o desempenho e a focagem. Da mesma forma existem hoje inúmeras empresas de prestígio que advogam práticas dos seus funcionários que contemplem o abrandamento. Em parte, tornou-se até um fenómeno de moda, em países como o Japão ou os Estados Unidos, as empresas proporcionarem sessões de ioga, de meditação ou de massagens aos seus funcionários em tempo laboral, incentivando-os a almoçarem longe da secretária ou a tirarem férias repartidas ao longo do ano. Na base destas decisões está a ideia de que somos mais criativos quando calmos, sem ansiedade e imunes a distracções. Abrandar no momento certo pode ajudar-nos a trabalhar e a viver melhor. “As melhores ideias não acontecem quando estou a enviar emails ou no escritório em reuniões, mas quando passeio o cão ou depois de nadar na piscina”, diz-nos Maria Andrade. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Numa apetência por novos paradigmas há até quem advogue um indicador alternativo ao PIB (Produto Interno Bruto), que associamos ao desenvolvimento económico. A tese é que o PIB avalia a quantidade, mas não a qualidade, sustentabilidade, bem-estar, educação, saúde, boa governança, vitalidade comunitária, protecção e conservação ambiental, acesso à cultura ou a gestão equilibrada do tempo. Claro que não basta mudar os indicadores da realidade para que a realidade mude, mas pode muito bem ser um princípio. A verdade é que o lazer, na actualidade, adquire um significado para além do lúdico, da mera evasão ou da compensação face ao tempo de trabalho. A energia dos cidadãos, das comunidades ou dos países, não pode ser empregue apenas no crescimento económico, mas na capacidade em distribuir equitativamente a riqueza, o saber, o trabalho, o lazer e o tempo. Talvez esteja na hora de conceber outras formas de viver o tempo que temos para viver.
REFERÊNCIAS:
Santos, Lisboa: Quem são os Santos?
Esquecemo-nos de perguntar o que está por trás de um nome. Santos-o-Velho, Santos-o-Novo. Quem são os misteriosos santos que assim marcaram a cidade? (...)

Santos, Lisboa: Quem são os Santos?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Esquecemo-nos de perguntar o que está por trás de um nome. Santos-o-Velho, Santos-o-Novo. Quem são os misteriosos santos que assim marcaram a cidade?
TEXTO: Falamos da zona de Santos, do bairro de Santos, da (antiga) freguesia de Santos. Mas não paramos para fazer a pergunta: de que santos estamos a falar? Santo António? São Vicente? Ou serão Todos-os-Santos? Os santos em geral ou algum em particular?Comecei a pensar nisto depois de uma visita ao convento de São Pedro de Alcântara, recentemente aberto ao público. A capela chamada dos Lencastres — onde está sepultado D. Veríssimo de Lencastre, filho de D. Filipa de Vilhena, Arcebispo de Braga e Primaz de Espanha, conhecido como o Cardeal Inquisidor — é dedicada aos santos mártires Veríssimo (que deu o nome ao cardeal), Máxima e Júlia. Foi aí, enquanto olhava para o magnífico trabalho de pedra que decora toda a capela, que começou a minha história com os Santos. Então, de São Pedro de Alcântara viajei para a zona de Santos à procura de sinais de Veríssimo, Máxima e Júlia. Temos que recuar aos tempos romanos, aos anos de 303 ou 304, para encontrar estes três irmãos — que segundo alguns relatos teriam vindo de Roma até Lisboa mas segundo outros eram naturais desta cidade — e que foram supliciados e executados por ordem do prefeito Daciano. Há quem se refira a eles como “crianças”, mas nada encontrei que referisse concretamente a idade que teriam. O que se sabe é que se apresentaram por vontade própria ao executor dos éditos imperiais e declararam a sua fé cristã. Diga-se em abono do romano que este terá tentado dissuadi-los mas, não conseguindo, viu-se forçado a mandá-los prender. O que se seguiu foi terrível: os três irmãos foram torturados de todas as formas imagináveis, com unhas de ferro, lâminas em brasa e, ainda vivos, foram arrastados pelas ruas de Lisboa para acabarem degolados. Os seus corpos foram depois dados às feras para que os devorassem, mas conta a lenda que os animais não tocaram neles. O juiz que os tinha sentenciado determinou então que fossem lançados ao mar atados a pesadas pedras. Mesmo assim os corpos voltaram a dar à praia em Lisboa, precisamente na zona que hoje conhecemos como Santos. Os cristãos da cidade recuperaram os corpos e enterraram-nos no local, construindo-lhes um templo. Mais tarde, já durante o período muçulmano, este templo teria sido destruído e dele teriam restado apenas três pedras. Depois da conquista da cidade por D. Afonso Henriques, este mandou erguer no local uma nova igreja dedicada aos santos mártires. Pelo templo de Santos passaram os monges militares de Santiago e Espada e depois, após a partida dos monges, ali recolheram senhoras que ficaram conhecidas como Comendadeiras. Terão sido elas a descobrir os supostos restos mortais dos três mártires, que aí foram mais uma vez sepultados. Mesmo assim, Veríssimo, Máxima e Júlia não encontraram descanso. Por ordem de D. João II, em 1490 as Comendadeiras foram transferidas para outro convento. É então que nascem os dois nomes que hoje nos são familiares: Santos-o-Velho, o local do convento e igreja originais, e Santos-o-Novo, o novo mosteiro acima de Santa Apolónia para onde foram levadas, pelas Comendadeiras e numa procissão solene que atravessou a cidade, as ossadas que se acreditava pertencerem aos três irmãos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os santos mártires atravessaram a cidade mas é como se não tivessem querido abandonar definitivamente o lugar onde há muitos séculos os seus corpos deram à costa. Na fachada da Igreja de Santos-o-Velho existe uma pedra na qual estão esculpidas em relevo as figuras de Veríssimo, Máxima e Júlia, os três de chapéu e segurando um bordão — uma imagem em que não parecem crianças. No interior da igreja, no altar-mor, os irmãos surgem outra vez, já não com o aspecto de viajantes que têm no exterior, mas com o de santos que se tornaram depois do martírio. Mas em Santos-o-Velho, em Santos-o-Novo ou na capela dos Lencastres, o que impressiona é a capacidade de resistência de uma memória. Porque é que uma história se recusa a morrer? Como é que, dezassete séculos depois, eu posso perguntar ‘quem são os Santos?’ e ainda encontrar a resposta. Chamavam-se Veríssimo, Máxima e Júlia e quiseram morrer para afirmar a sua fé.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave filho
Debate Passos-Costa versus Sócrates: 13 Passos Socráticos
Depois de martelar 12 vezes, em três televisões simultâneas, para 3, 3 milhões de espectadores, o nome de “Quem-nós-sabemos”, e “Aquele-que-não-pode-ser-nomeado-demasiadas-vezes-pois-ele-se-vira-contra-nós”, Passos Coelho engoliu o azedume da derrota televisiva. (...)

Debate Passos-Costa versus Sócrates: 13 Passos Socráticos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Depois de martelar 12 vezes, em três televisões simultâneas, para 3, 3 milhões de espectadores, o nome de “Quem-nós-sabemos”, e “Aquele-que-não-pode-ser-nomeado-demasiadas-vezes-pois-ele-se-vira-contra-nós”, Passos Coelho engoliu o azedume da derrota televisiva.
TEXTO: Aviso: a campanha está a ficar cheia de números atirados ao ar. Em respeito pelos leitores eleitores, começamos com um número fácil de entender: dois. Foi a pensar em duas frases que Passos Coelho avançou por uma rua de Lisboa cheia de buracos e de repórteres que, a meio, tem um prédio azul-bebé com traços art-déco, um número (33) gravado na alvenaria, uma porta de alumínio brilhante que não se percebe como foi aprovada numa obra original dos anos 30-40 e um polícia que não pode sair dali, coitado. Diz-se que fica em Lisboa, mas pode ser um estúdio na Cinecittá ou em Bollywood. A primeira frase era do próprio candidato Passos Coelho, atirada em directo contra António Costa:— Eu acho extraordinário que venha fazer a acusação de que há uma mestificação sobre a troika, dizendo que foi o PSD que chamou a troika e que o programa foi negociado pelo PSD. Ó dr. António Costa, não leve a mal… Mestificação? O senhor fala em mestificação?!A segunda frase, ligada à primeira, mostrava que Costa era de facto um mestre a mestificar:— O engenheiro José Sócrates está em melhores condições para debater consigo. Por que é que não vai lá a casa debater com ele? Tem tantas saudades!E era verdade, infelizmente, radicalmente verdade. Passos Coelho percebera, ao sair do Museu da Electricidade (que sítio para se sair sem energia, com as pilhas políticas em baixo. . . ), que estava viciado em Sócrates. O seu programa do Governo, aos olhos dos portugueses, era apenas não-ser um programa de José Sócrates. Medidas concretas, nicles, a ideia de campanha era só “fazer de morto”, “deixar correr o marfim” e deixar o PS automutilar-se em mais asneiras de campanha. Mas, ao dizer 12 vezes Sócrates em directo, contra todos os que pensaram que ia mostrar-se acima do assunto, Passos mostrou precisar de um programa de dessocratização. A cura são 12 passos, como os Alcoólicos Anónimos. Austeridade total aplicada ao antigo primeiro-ministro. Tal como beber um copo: um José Sócrates é de mais e mil José Sócrates não chegam. Entrada imediata nos Socráticos Anónimos (SA), como tantos portugueses que há meses andam por aí aos caídos, uns porque acreditam na culpa, outros porque não acreditam que Sócrates é culpado, e não fazem mais nada nesta vida miseranda. Perdem a casa, perdem o emprego e. . . espera aí, isso foi culpa da troika. . . Voltemos à nossa narrativa. Bolas, o Sócrates é que inventou isso da narrativa! (Mãezinha, reparo que também estou viciado, ando a dar-lhe no José, preciso de me curar a frio depois das eleições. )Voltemos à nossa história. Era a 13º e última vez que Passos Coelho ia tomar a sua dose diária de José Sócrates. Depois acabava-se, a partir dessa noite ia ficar limpo. — Nunca mais serei socratodependente!Mas era muito perigoso ir à fonte do mal, o número 33 de Lisboa. Pensar que outros desgraçados injectaram todos os dias o 44 de Évora! Isso dá cabo do fígado. Os repórteres viram chegar uma estranha figura de capacete de mota, com um camaroeiro comprido às costas. Passos disfarçara-se muito bem de qualquer coisa e ninguém o reconheceu. — Vem entregar uma pizza doube-cheese/pepperoni?, disse um repórter, com azeda ironia teletransmitida. — Não nos enganas. Outro golpe sujo para nos abalar o prestígio profissional de jornalistas de porta-de-prédio?Passos encolheu os ombros e afinou a voz uma oitava acima. — Não, não. Eu limpo piscinas. Vim só aqui para. . . para fazer um ahhhh. . . o plafonamento do chão de uma piscina, mas nem sei o andar. Não sei se a piscina é no terceiro, se é no rés-do-chão. — Qual é a sua empresa?— Ahhh. . . A Tecnofor. . . ai, a Tecnopool. É uma coisa nova. Passado o obstáculo das câmaras, entrou no patamar e encontrou o polícia. O guarda estava impaciente. Apetecia-lhe atirar gás de mostarda aos visitantes. Ao menos com os espoliados do BES um agente tem alguma actividade, sente-se útil, pensou o agente José Carlos Rebocho Crespim, da esquadra de Sete-Rios, que pediu para não ser identificado. — Cartão de cidadão, se faz favor. — Cá está. Esse número que aí está no verso, o da Segurança Social, enfim. . . já está pago, paguei tudo, foi um lapso, eu desconhecia que as contribuições do regime contributivo, neste caso horizontal e não vertical como o plano dos socialistas, ahhh. . . isso foi uma grande mestificação do jornal PÚBLICO e. . . — Não estou a perceber patavina. — Só venho limpar uma piscina, deixe-me entrar!— É esperado em casa do. . . você sabe quem?— Mais do que esperado, senhor guarda. Desejado. A porta abriu-se e apareceu Aquele-cujo-nome-já-se-disse-demasiadas-vezes-é-que-isto-já-enjoa-caramba. — Vieste atrasado. Pensei que viesses a correr logo a seguir ao desastre. Então precisas da ajuda aqui do preso político?— Sim. Também fiquei preso político das minhas promessas falsas. — Ora, isso passa. Vieste de TGV? Viajaste pelo novo aeroporto? Não, pois não?— Por favor, senhor engenheiro, não se fique por uma declaração de apoio simples e discreta. Diga ao António Costa que gostava de integrar o Governo, sei lá, grite o seu amor incondicional pelo PS!— Mas isso pode prejudicar o meu partido. — A ideia é essa. Eu não gosto do António Costa, mas não o detesto como Aquele-que-nós-sabemos-e-que-está-aqui-à-minha-frente. — Hum, por outro lado, com o PS no Governo, isto de eu ser um preso político fica mais duro de explicar. — Lá está. — Ok, alinho. Mas em troca, quero um favor. — Já se esperava. — Tens de me explicar o plafonamento da segurança social. — Bom. . . hum. Faltam 600 milhões de euros. — E. . . ? Não faças essa cara de virgem vestal. E?. . . — É esse problema. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. — Mas o que é isso de 600 milhões?— É o que falta! Faltam 600 milhões de euros!— Não percebo. Se faltam 600 milhões falem com um vosso amigo. Assim é difícil conversarmos.
REFERÊNCIAS:
Rua de Entrecampos, Lisboa: Quando a minha rua era uma aldeia
Quintas, burros com babetes, um chafariz para estes beberem água, a Rua de Entrecampos já foi o caminho de saloios e lavadeiras numa Lisboa ainda rural. (...)

Rua de Entrecampos, Lisboa: Quando a minha rua era uma aldeia
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Quintas, burros com babetes, um chafariz para estes beberem água, a Rua de Entrecampos já foi o caminho de saloios e lavadeiras numa Lisboa ainda rural.
TEXTO: Folheava o livro Photographias de Lisboa 1900, de Marina Tavares Dias, quando parei numa imagem que tinha algo de muito familiar — e, ao mesmo tempo, algo de profundamente distante das minhas memórias. É uma fotografia de um chafariz de pedra, daqueles que existem em várias zonas de Lisboa. Mas havia neste qualquer coisa que eu reconheceria mesmo que apenas o vislumbrasse: olhei para ele todos os dias durante pelo menos 20 anos. O chafariz da Rua de Entrecampos fica junto à casa onde cresci, encostado à linha do comboio e, hoje, em frente do edifício da EDP que um dia ali despontou, demasiado grande para tudo o que o rodeava. A imagem do livro de Marina Tavares Dias mostra o mesmo chafariz numa data incerta de um passado longínquo. Na parede de um dos seus “braços” estão cartazes de publicidade antigos — Licor Cointreau, Aguas Fuente Nueva, Odol, o melhor para os dentes. E, à frente, duas carroças com grandes rodas de madeira, puxadas por burros e carregadas até ao limite com trouxas de roupa lavada. Montadas em cima das trouxas, as lavadeiras saloias, de saias compridas e lenços na cabeça, lançam ao fotógrafo um olhar entre a curiosidade e a suspeita. Por aqui passava, conta Marina Tavares Dias, a Estrada de Entrecampos, “um caminho ancestral, anterior às Avenidas Novas, com casas ainda do século XVIII”. Parece que era local de grande movimento e animação, percorrido pelas carroças que vinham (e voltavam) da Calçada de Carriche. O chafariz data de 1851. Eu conheci-o nos anos 1970, já sem utilidade. Mas a minha mãe recorda-se dele nos anos 50 do século XX — ou seja, estava a celebrar cem anos de vida. Foi nessa altura que os meus avós se mudaram do Bairro Alto para a Rua de Entrecampos, zona mais moderna mas com muito menos graça, segundo a minha mãe. Existia ao lado do nosso prédio aquilo a que sempre ouvi chamar “a quinta”. Isto apesar de, pelo menos desde que eu nasci, já não ser uma quinta, mas apenas uma casa senhorial à qual se acedia por um portão, mesmo junto da nossa porta, e um caminho inclinado que a tornava mais misteriosa. Da janela da cozinha via-se o jardim da “quinta”, um pedacinho de uma Lisboa romântica com uma árvore, um banco e uma fonte. A minha mãe era pequena quando começaram a desmantelar a quinta. Antes disso, garante, havia produção agrícola e animais como se estivéssemos no campo. Tudo foi desaparecendo (pelas contas dela no início dos anos 50) e ficou apenas a casa e o jardim, em frente ao chafariz. Lisboa era ainda muito rural. No tempo (indefinido) em que as lavadeiras vinham da zona saloia em carroças puxadas por burros e nos anos 50 quando a minha mãe, miúda, ia para a escola perto do Saldanha e atravessava a Defensores de Chaves onde, fiquei agora a saber, passava também por muitos burros. O que mais a divertia era ver os babetes que os animais usavam com os respectivos nomes, que ela se entretinha a ler. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Na Rua de Entrecampos, do outro lado da linha do comboio, havia a taberna (hoje é o bar Entrecopos), provavelmente local de paragem para quem percorria a tal Estrada de Entrecampos e tinha necessidade de beber um copo. Ainda me lembro dessa taberna com a sua latada. Tal como me lembro da mercearia por baixo da minha casa, serradura pelo chão (poupava-se nas lavagens, sobretudo quando por aqui andavam galinhas vivas), grandes bidons com azeitonas, perus pendurados pelas patas na altura do Natal e morangos a manchar de vermelho os sacos de cartão áspero que trazia para casa abraçados contra o peito. Havia, conta a minha mãe, ao fundo da rua, uma leitaria que recebia o leite dos produtores e onde se ia buscar o que se precisava em leiteiras metálicas e se comprava a manteiga aos pedaços em papel vegetal. Disso já não me lembro. Sou do tempo em que abriu uma moderníssima loja da Ucal. Mas recordo bem a peixeira de canastra à cabeça que vendia peixe em plena Rua de Entrecampos. Ligo à Mónica Cid para lhe dizer que esta crónica, com ilustração dela, seria inspirada pela foto do tal chafariz, temendo que o tema só interessasse a quem um dia tivesse vivido na Rua de Entrecampos. E ela exclama: “O meu pai viveu em frente a esse chafariz. ” “A sério? Na ‘quinta’?” Sim, mas não era bem uma quinta, responde ela. Eu sei, mas para nós, que espreitávamos da janela da cozinha aquele jardim tão bonito, será sempre “a quinta”. Até que já não sobreviva na memória de mais ninguém.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave escola campo
Rua da Fonte Taurina, Porto: Rua-esplanada
É uma das mais antigas ruas do Porto, no coração do centro histórico e património da Unesco. Fechada ao trânsito, tem agora os seus passeios dedicados a esplanadas. (...)

Rua da Fonte Taurina, Porto: Rua-esplanada
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: É uma das mais antigas ruas do Porto, no coração do centro histórico e património da Unesco. Fechada ao trânsito, tem agora os seus passeios dedicados a esplanadas.
TEXTO: O Porto anda assim: estamos uns meses sem passar numa rua e, quando lá voltamos, ela recebe-nos com uma mão cheia de novidades. É o turismo a ditar o rumo da cidade, como nunca antes o fez, e nós a tentar acompanhar-lhe o ritmo. Estou a falar da Rua da Fonte Taurina, rua medieval no coração do centro histórico do Porto. Foi aí, ainda adolescente, num fim de noite depois de um concerto nos Aliados, que bebi a minha primeira cerveja. Foi aí que me deixei impressionar pela curta distância que vai da janela de uma casa à da vizinha, criando a ilusão que, mais do que conversar de uma habitação para a outra, podemos dar as mãos a quem mora à nossa frente. Há décadas que esta é uma zona de bares e restaurantes, nada desconhecida do turismo, portanto. Mas é também casa de gente que teima em fazer do centro histórico a sua morada, pendurando lençóis lavados à janela, dando um outro colorido à rua um pouco escura, que serpenteia entre a Praça da Ribeira e a Rua da Reboleira. Não seria por isso surpresa que uma passagem pela Fonte Taurina significasse cruzarmo-nos com pessoas de copo na mão, à conversa e encostadas a uma das fachadas do casario; ou com visitantes de máquina fotográfica ao pescoço e nariz no ar, a ver a ondulação da roupa a secar, as varandas de ferro e a nesga de céu lá em cima. Mas, agora, bares e restaurantes instalaram-se na rua, aproveitando a ausência de trânsito. As esplanadas tomaram conta do caminho e é preciso ziguezaguear entre elas. Não me recordo de outra assim na cidade, com as esplanadas a ocupar toda a largura da via. É como se a rua quisesse reivindicar algo particular, único, no meio de tantas e tantas outras cada vez mais ocupadas por espaços dedicados aos turistas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Se nos anos 80, a Ribeira era, por excelência, o local para se estar na noite do Porto, hoje não falta quem queira abrir, nas velhas casas altas e estreitas de vasos à janela, alojamentos locais, guesthouses, hostels. A Rua da Fonte Taurina, com o Douro à porta e o Património Cultural distinguido pela Unesco a fazer-se sentir em todos os poros, serve hoje de morada temporária para quem chega de visita para ficar uma ou duas noites. Como será dormir ali, entre as vozes de quem grita pelos miúdos que mergulham no rio, à hora de regressarem a casa? Entre as conversas das velhas e o silêncio que sobrou, depois de “a noite” portuense se mudar para outras paragens? Será que velhos fantasmas da cidade medieval percorrem a rua, depois de as esplanadas serem finalmente recolhidas?A Rua da Fonte Taurina é das mais antigas do Porto, havendo referências à sua existência já no século XIII. O nome virá de uma fonte que ali existiu, num ponto que não está definido, mas que se admite que ficasse próximo da intersecção com a Praça da Ribeira. É um nome curioso e cuja origem é um mistério — será que tinha a imagem de um touro? Taurina, como explica o dicionário, é um ácido que existe na bílis, mas dificilmente será essa a razão para o nome de uma fonte ancestral. Por outro lado, também não é certo que Taurina fosse o seu nome original, já que, como contou Germano Silva numa das suas crónicas sobre a cidade, a designação da fonte já variou entre Aurina, D’Ourina ou Tourina, antes de se ficar por aquela que hoje aparece na placa toponímica. Se as pedras da calçada falassem, se as fachadas das casas se transformassem em rostos antigos para nos dizerem o que já viram e ouviram, talvez conseguíssemos decifrar o mistério. Assim, basta-nos percorrer, de vez em quando, aquela estreiteza, mirar as fachadas, desviarmo-nos das esplanadas, beber um copo e deixar que a rua, a de ontem e a de hoje, tome conta de nós.
REFERÊNCIAS:
Entidades UNESCO
O Clube dos Oito menos Um: Os Sete e os europeus roubados
Vem conhecer o François, a Angela, o Matteo, o Mariano, o Charles Michel, o Xavier e o Mark. Eles são o Clube dos Oito Menos Um e estão prontos para resolver mistérios a qualquer hora. (...)

O Clube dos Oito menos Um: Os Sete e os europeus roubados
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento -0.1
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Vem conhecer o François, a Angela, o Matteo, o Mariano, o Charles Michel, o Xavier e o Mark. Eles são o Clube dos Oito Menos Um e estão prontos para resolver mistérios a qualquer hora.
TEXTO: Vamos reunir os membros do Clube dos Seis, — disse o François à Angela — há imenso tempo que isso não acontece. — Acho boa ideia, disse a Angela, lambendo os dedos gorduchos que sujavam de compota de mirtilos e de flocos de aveia o dossier do Tratado Orçamental. — Não foi por nos termos esquecido do Clube, François, mas temos andado tão ocupados com o crescimento da extrema-direita e outras distracções, que ainda não tivemos tempo de marcar a primeira reunião. Na verdade, nem sequer existimos ainda!O François endireitou os óculos com uma expressão perdida e olhou para a sua amiguinha alemã. Como a Angela cresceu desde que nos conhecemos, mas cresceu para os lados!, pensou o pequeno rapazinho francês, um pouco apreensivo. — Mas, Angela, não vale a pena termos um clube para mandar no Euro se não nos reunirmos. O nosso rival Eurogrupo nem sequer tem estatutos e manda muito mais do que nós!— Fala por ti, que eu mando e não é pouco — disse logo a Angela, orgulhosamente. O François fez de conta que não ouvira o reparo:— É preciso avisar os nossos amigos. Escreves tu os bilhetinhos secretos?— Eu escrevo ao preguiçoso da Europa do Sul, o italiano, a pedir-lhe que ele convoque os do Norte, para ver se trabalha alguma coisa — disse a Angela com um brilho enigmático nos olhos azuis ora ternos, ora glaciais. — Confias no Matteo? É fundador disto, só que há muito que gasta mais do que as suas possibilidades. — E temos o problema do Mariano. Exige entrar no clube, apesar de não ser fundador. Diz que vem daí disparado de Espanha. O problema — suspirou o François, tentando dar à voz um tom importante — é que assim passamos a ser O Clube dos Sete, e esse acho que já existe!— Resolvemos esse problema depois —, atalhou a Angela, roendo um delicioso biscoito de gengibre, com um ar desinteressado —, o importante é que vamos brincar aos donos da Europa e resolver muitos crimes e mistérios. Viva!Dias depois, a velha arrecadação em Bruxelas ganhava uma azáfama que há muito não se via. Um lufa-lufa que fazia levantar o pó do chão e as teias de aranha da cabeça dos amigos. O Clube dos Seis estava finalmente reunido, ou melhor, o Clube dos Seis Mais a Espanha, porque o Mariano sempre aparecera, felizmente carregado com deliciosas tortilhas feitas pela mãe, e foi aceite sem mais delongas. — Tenho cá um apetite! — exclamou o Charles Michel, que sendo belga vivia ali perto. O Xavier Bettel não cabia em si de excitação por finalmente poder mostrar que o Luxemburgo tem mais pessoas além do Jean-Claude Juncker. O último a chegar foi o Mark Rutte, que trazia da Holanda uma novidade misteriosa. — Calma, primeiro temos de combinar a senha secreta — disse a Angela. Todos franziram os narizes. Realmente, era só o que faltava, que viessem intrusos meterem-se no núcleo do euro, só porque também pagam em euros o fiambre e o pão na mercearia! — Só com a senha secreta é que se entra, eu proponho que seja “salsicha de frankfurt” — continuou a Angela. — Eu prefiro “baguette estaladiça” ou então “queijo Roquefort” — disse logo o François. — “Spaghetti à bolonhesa” é que é uma senha “deliciomidável” — disse o Matteo Rizzi a rir — é uma mistura de delícia e formidável. Menos de 17 horas depois já tinham chegado a acordo. Seria “marco alemão”, senha que se impusera com toda a naturalidade. Os petizes podiam finalmente avançar com as suas aventuras de poder. Foi então que o Mark Rutte pôs um olhar carregado e pediu a palavra. — O meu amigo holandês do Eurogrupo, o Jeroen Djissel. . . Djisselb. . . ai, vocês sabem, o dos caracolinhos com gel, acha que na casa aqui ao lado há movimentos suspeitos!— Aquela a que chamam “solar do grego”? — espantou-se o François — mas há anos que essa casa está abandonada!— Vamos vigiá-la, adoro vigiar! — exclamou a Angela. — Boa, vamo-nos disfarçar! — gritaram todos em uníssono. Disfarçaram-se tão bem que na rua passavam perfeitamente por democratas em calções empenhados no ideal europeu, apesar dos joelhos esfolados. A casa parecia mesmo desabitada, com as vidraças quebradas, os algeroz solto e as velhas tábuas rangentes como a dívida soberana. Havia marcas de pneus recentes na relva seca. — Ali, ali, viram? Um careca no primeiro andar! — gritou o François. Um som aterrador saiu de repente das traseiras. Os sete amigos ficaram da cor da cal. Logo a seguir viram uma grande moto rugidora com um homem de expressão diabólica e camisa colorida (num padrão nunca visto) que passou por eles a acelerar, quase atropelando a Angela. Deixou cair um caderno na fuga. — Rápido, vamos decifrar este mistério — disse um dos jovens detectives. O caderno estava em grego codificado: era o Plano Varoufakis. Aterrados, os sete amigos leram um plano de revolução e destruição da Europa. — Vejam aqui! Esse bandido da moto queria que os funcionários da troika também tivessem um corte de 40 por cento, igual ao dos gregos que ganham 300 euros por mês. Mas os funcionários da troika só ganham 18 mil euros por mês!— Isto são medidas de um bom-senso absolutamente escandaloso! Esse homem devia ser preso por traição. Quem vota a favor, rápido?— Eu, eu, eu!, disseram todos em uníssono ao fim de 17 horas. Chamou-se o guarda Schäuble, que deitou fogo ao solar abandonado. As chamas eram lindas e misteriosas. — Pronto, este já está — disse o simpático guarda Schäuble, observando as labaredas na sua cadeira de rodas. De súbito, a Angela estremeceu. As chamas saltaram para os telhados vizinhos e queimaram a cidade, o que os deixou admirados. — Béu, béu — ouviu-se de repente. Chegara, com as suas orelhas peludas, um cão-de-água português. Os olhinhos pouco expressivos mas espertalhões pareciam dizer: “por acaso, isto foi tudo ideia minha. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. — Dá a pata, Coelho — disse a Angela, risonha. — Este simpático cãozito chama-se Coelho? — guinchou o François. E todos se riram porque agora é que o clube estava completo. — O clube dos Oito Menos Um é o melhor clube do mundo!
REFERÊNCIAS:
E agora, esquerda ou direita?
Antes de ser eleito pelo PAN, André Silva tinha ido ao Palácio de São Bento em visitas de estudo e, depois, assistir a algumas votações nas galerias. Agora, tem um gabinete e até já descobriu uma colónia de gatos. (...)

E agora, esquerda ou direita?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.142
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Antes de ser eleito pelo PAN, André Silva tinha ido ao Palácio de São Bento em visitas de estudo e, depois, assistir a algumas votações nas galerias. Agora, tem um gabinete e até já descobriu uma colónia de gatos.
TEXTO: André Silva fixa mentalmente o caminho: tem de passar as portas de vidro, virar à direita, subir umas escadas, descer outras, o bar fica ao fundo do longo corredor. O deputado eleito pelo Pessoas-Animais-Natureza (PAN) anda a conhecer os cantos à casa, onde a partir de agora passará muito do seu tempo, a Assembleia da República. Na segunda-feira, poucos minutos depois das 10h00, pede um café e, entre os vários telefonemas que vai atendendo de jornalistas, não escapa à conversa com a funcionária. Também ela quer dar as boas-vindas ao deputado novidade. Afinal, o PAN é a mais recente força política do Parlamento, onde desde 1999 não entrava, em listas próprias, um novo partido. — Então, sr. deputado, que tal? As primeiras horas foram boas? O plenário é mais pequeno do que parece, não é?— É, sim. As primeiras horas têm corrido bem, o acolhimento tem sido muito bom. — É sempre assim, quando corre mal é dentro do hemiciclo, cá fora não. Todos se riem: André Silva, a funcionária do bar e a assessora jurídica do PAN, Cristina Rodrigues, que tem acompanhado o deputado. Quando saem do bar, é Cristina Rodrigues quem pergunta:— E agora, esquerda ou direita?André Silva, engenheiro civil de formação, orienta-se rapidamente:— Pode ser por aqui, subimos e ficamos mesmo ao pé da biblioteca. É para lá que vão trabalhar, porque neste dia não tinham ainda as chaves do gabinete. Vão debruçar-se sobre a actualidade política, inteirar-se das questões burocráticas, entre outros assuntos. Não faltam perguntas, dúvidas, papéis: “É todo um novo mundo”, admite o engenheiro, com especialização em recuperação do património arquitectónico e artístico, de 39 anos. Antes do café, André Silva tinha ido ao chamado “correio externo” assinar um requerimento para que a Iniciativa Legislativa de Cidadãos que o PAN entregou na anterior legislatura, mas que não chegou a ser discutida, volte a dar entrada nesta. Entre outras propostas, pretende-se acabar com os “canis de abate”. O sítio onde tem de assinar o requerimento fica do lado esquerdo do Palácio de S. Bento. É um acesso exterior. Antes de tocar à campainha, André Silva é abordado por um segurança que não o reconhece:— Os senhores vão entregar expediente? O seu nome, por favor. — André Silva. — A proveniência?— PAN. Depois de entregar o documento e uma caixa de papel com as assinaturas, o deputado contorna o edifício e sobe parte da emblemática escadaria. Mais um segurança. Aqui já há controlo, é preciso colocar os objectos no raio X. André Silva, agora como deputado, está dispensado de o fazer, mas, ainda assim, pergunta se pode sequer entrar por ali:— Bom dia, podemos entrar por aqui?O funcionário levanta o rosto, olha para o deputado e, antes de chegar a fazer alguma pergunta, André Silva esclarece:— Sou eleito. — Ah! Seja bem-vindo, sr. deputado. André Silva vai repetindo aos funcionários que o ajudam:— Obrigado. Obrigado pelo acolhimento. Neste dia, era a terceira vez que estava no Palácio de S. Bento desde que foi eleito deputado pelo círculo de Lisboa. Antes disso, tinha estado lá em visitas da escola e, mais tarde, para assistir a uma ou outra votação nas galerias. Não é a mesma coisa. Lá dentro, o espaço é maior, salas e corredores, por isso, volta e meia, ainda tem de perguntar:— E agora é por onde?Não tenciono aderir ao fato e gravata. Julgo que não é necessário para a actividade que vou desempenharA primeira vez que entrou no Palácio de S. Bento já como deputado eleito fê-lo pela porta lateral, não pela escadaria. Nesse dia, o segurança reconheceu-o e informou-o logo de que não precisava de passar os objectos pelo raio X. André Silva, porém, que não tinha ainda sido empossado, fez questão de o fazer. Nos primeiros dias da nova legislatura, a Assembleia da República está cheia de setas a indicar: “Acolhimento”. Trata-se, no fundo, de um procedimento que os deputados têm de cumprir, dando informações, preenchendo papéis. O que distingue, do ponto de vista pessoal, a integração de André Silva de outros estreantes é não só ser de um partido que acaba de entrar no Parlamento, mas também estar sozinho, sem um grupo parlamentar. No salão nobre, onde os deputados têm de ir prestar as inúmeras informações para se registarem, há várias mesas. É todo um circuito, no qual o deputado do PAN esteve mais de uma hora. Posto um: composto por duas mesas, é sobretudo para os deputados eleitos pela primeira vez. Os reeleitos só têm de lá ir se quiserem mudar de fotografia, de assinatura ou actualizar documentos. Quem se estreia no cargo tem, entre outros procedimentos, de dar alguns dados biográficos para receber, por exemplo, um login e uma password que terá várias aplicações (como para o cartão de deputado que, com um chip, permite votar electronicamente). Tem de tirar uma fotografia para esse cartão e para o site do Parlamento. Digitalizam-se documentos — bilhete de identidade, cartão de cidadão, número de identificação fiscal. Posto dois: aqui é que se faz o registo biográfico propriamente dito, mais completo e demorado, porque exige a verificação dos dados que foram fornecidos no posto um e outros tantos que o completem: nome; idade; morada; habilitações literárias; profissão; descontos para a Segurança Social, entre muitos outros. Tecnicamente, trata-se do “preenchimento do formulário electrónico do registo biográfico e do pedido de estacionamento”. Os deputados reeleitos podem usar as credenciais que já possuem. Posto três: de cariz mais informativo. Nesta parte do acolhimento, os deputados ficam a saber que há quatro formulários que vão ter de preencher, até 60 dias após a tomada de posse. São sobre o registo de interesses e a inexistência de incompatibilidades e impedimentos. Dois para entregar na Comissão de Ética, os outros dois no Tribunal Constitucional. No registo de interesses, têm, por exemplo, de dizer qual a actividade principal, as actividades políticas e profissionais, os cargos sociais ou em empresas, entre outras situações. A declaração de inexistência de incompatibilidades serve para comprovar que não têm qualquer actividade incompatível com o exercício de deputado. A lista é extensa, dois exemplos: deputado ao Parlamento Europeu; membro da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Posto quatro: informações diversas sobre os sistemas informáticos, computadores portáteis, telemóveis, passaporte diplomático, creche para os filhos ou netos, entre outros direitos dos deputados. Aqui os eleitos recebem também edições da Assembleia da República, como o Regimento e a Constituição da República Portuguesa. Por fim, numa outra sala, gravam um vídeo. Foi uma novidade deste ano e era um desafio facultativo. André Silva aceitou-o. Gravou uma coisa curta, garante. Nome, idade, profissão, círculo eleitoral, áreas de interesses, pouco mais. É para ser colocado no site do Parlamento. Quando está na Assembleia da República, sente um outro pequeno espanto, que está directamente ligado à sua profissão. Repara em todos os detalhes daquele antigo mosteiro: “Na minha actividade profissional, aquilo que faço é a reabilitação do património arquitectónico e, agora, acabo por ir parar mais uma vez a um edifício classificado como monumento nacional. E que tem vários aspectos de arquitectura, de escultura, de arte, vários materiais nobres que me são conhecidos”, vai dizendo enquanto atravessa as salas com pé-direito alto e os corredores compridos do Parlamento. “Esta pedra lioz do chão é lindíssima, o cheiro a madeira, é todo um ambiente num edifício que me agrada pelo simbolismo patrimonial e histórico. ”E, por falar em actividade profissional, André Silva lembra-se subitamente de mais um papel que tem de pedir: o que lhe permitirá tratar da licença sem vencimento na empresa onde trabalha e dedicar-se a tempo inteiro ao cargo de deputado. Na primeira sessão plenária desta legislatura, o deputado eleito por Lisboa, que desde o início manifestou vontade de ficar na primeira fila, a meio do hemiciclo, ficou sentado na terceira fila da bancada socialista, no lugar da ponta, já ao lado dos sociais-democratas. Foi nesse plenário que os deputados elegeram, por votação secreta, o presidente da Assembleia da República — acabou por ser o socialista Ferro Rodrigues. Já depois, porém, da Conferência de Líderes, ficou acordado que o deputado do PAN se sentaria na segunda fila da bancada socialista, novamente no lugar da ponta e novamente junto à bancada do PSD. O PAN tem sempre dito que não se posiciona nem à esquerda, nem à direita, nem ao centro, que é um partido de causas. Entre outras ideias, entende que “a política não se pode subjugar à economia”, que se deve reduzir o número de horas de trabalho para 30, fazer uma auditoria à dívida e, depois, eventualmente renegociá-la. Algumas das propostas passam pela criação de um IVA da distância sobre produtos, tendo em conta o gasto que têm da origem à distribuição; o fim dos apoios à agricultura sintética; a criação de taxas sobre produtos com alto impacto ambiental e a discriminação positiva da agricultura biológica. Como não estou nas negociações para o acordo, tenho de ver a comunicação socialAndré Silva, que sente “uma enorme responsabilidade” pelos 75. 170 eleitores que depositaram a confiança no PAN, está ainda a inteirar-se dos direitos que tem enquanto deputado. Por exemplo, de acordo com o regimento, “cada grupo parlamentar tem direito a produzir, semanalmente, uma declaração política com a duração máxima de seis minutos”; já no caso de um “deputado único representante de um partido tem direito a produzir três declarações por sessão legislativa”, ou seja, num ano. O deputado do PAN garante que vai lutar para alterar algumas destas regras, para ter mais tempo no Parlamento, aumentar a sua visibilidade e defender mais a sua agenda. Apesar disso, na primeira sessão plenária desta legislatura, depois da eleição do presidente da Assembleia, quando lhe perguntaram se queria falar, declinou. Sobre a situação política que se vive depois das eleições legislativas de 4 de Outubro, o PAN tem insistido que quer dialogar com as várias forças políticas e contribuir para a “estabilidade” governativa do país. O deputado está, porém, consciente da polarização que existe e que tem colocado a coligação de direita de um lado e PS, PCP e Bloco de Esquerda de outro. Neste último caso, os três partidos, em maioria, estão à procura de um acordo para uma solução de Governo alternativa e deverão apresentar uma moção de rejeição, em conjunto ou separadamente, ao programa da direita no Parlamento. André Silva garante que ainda não tem uma posição definida sobre esta nova realidade no Parlamento, nem sabe como votará a moção, ou as moções, apresentadas por PS, BE e PCP. Só decidirá depois de conhecer o programa de governo, que será debatido a 9 e 10 de Novembro. Embora defendendo que o Presidente da República “deveria indigitar o líder que considerasse ter mais condições para dar estabilidade governativa” ao país, não tem dúvidas de que o discurso de Cavaco Silva podia ter sido “menos crispado”. Quando indigitou o líder da coligação de direita Passos Coelho, o chefe de Estado sugeriu que a alternativa de esquerda é “claramente inconsistente” e ainda fez aquilo que alguns comentadores consideraram um apelo à dissidência dos deputados do PS na votação das moções de rejeição ao programa de governo. Assim, diz André Silva, “contribuiu para uma maior polarização e crispação entre dois grandes blocos”. Nessa primeira sessão plenária, o deputado do PAN — que é vegetariano, tem um cão chamado Nilo, faz mergulho e biodanza (“um processo de desenvolvimento humano através da dança, da repetição, sempre em grupo”) — foi vestido de calças de ganga, camisa sem gravata, blazer, ténis All Star. E das outras vezes que o visitámos na Assembleia da República continuava com o mesmo estilo descontraído. Não pretende mudar. “Não tenciono aderir ao fato e gravata. Julgo que não é necessário para a actividade que vou desempenhar”, justifica. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Na terça-feira, André Silva — que estudou em Coimbra e agora vive em Lisboa, numa casa com uma horta de 50 metros quadrados, onde faz compostagem — já estava a trabalhar no seu gabinete. Fica na ala dos serviços afectos à presidência. Como deputado, é o único nesta parte do edifício. Era ali que havia uma sala disponível. O engenheiro — neto de agricultores que viviam no concelho de Tondela, onde passava férias e se lembra de cozer broa e assar espigas — está satisfeito: “Trabalho com vista para um claustro renascentista, que remete para os jardins do Sul da Europa e árabes, e ao som da água, o que é muito tranquilizador”, diz, apontando para a janela aberta. Lá fora, há flores, oliveiras e está sol. Cá dentro, em cima da mesa, estão recortes de notícias de jornais, sublinhadas e com setas, sobre as negociações que decorrem entre PS, BE e PCP. “Como não estou nas negociações para o acordo, tenho de ver a comunicação social”, explica. O gabinete tem duas mesas, mas o deputado pediu uma terceira. Para já, estão lá a trabalhar André Silva e a assessora jurídica, mas a ideia é recrutar mais uma administrativa e um assessor de comunicação — usando para isso a subvenção a que tem direito e que, segundo lhe transmitiram para já os serviços, poderá rondar os 82 mil euros brutos anuais. Apesar de estar ainda a conhecer os cantos à casa, o deputado do PAN conseguiu também descobrir uma colónia de gatos na Assembleia da República. Conta-nos, divertido: “Está muito bem tratada, por sinal. Quem cuida deles é a senhora da enfermaria. ” E os pavões que se passeiam lá fora? “São lindos. ”
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