Vamos tomar café a Évora no meu avião
Ter um avião privado e ir com ele para o emprego não fica tão caro como se pensa. É possível viajar pela maior parte do território, e há pistas por todo o lado. Dizem que não é perigoso. Viagem ao mundo dos loucos das máquinas voadoras. (...)

Vamos tomar café a Évora no meu avião
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ter um avião privado e ir com ele para o emprego não fica tão caro como se pensa. É possível viajar pela maior parte do território, e há pistas por todo o lado. Dizem que não é perigoso. Viagem ao mundo dos loucos das máquinas voadoras.
TEXTO: Ter um avião privado e ir com ele para o emprego não fica tão caro como se pensa. Podemos ir de Lisboa ao Algarve com 20 euros de combustível, depois de investirmos 3 mil num ultraleve. É possível viajar pela maior parte do território e há pistas por todo o lado. Dizem que não é perigoso. Os aviões foram feitos para voar e os pilotos têm de saber cair. Viagem ao mundo dos loucos das máquinas voadoras. Aérodromo de Tires, domingo, 10 da manhã. Luís Laureano Santos, 71 anos, e Artur Caracol, 80 anos, chegam, cada um no seu carro. O avião, um Cessna Skyhawk 172 azul e branco, monomotor de asa alta, quatro lugares, motor de 220 cavalos, velocidade máxima de cerca de 300 km/h, matrícula CS-AYZ, é puxado do hangar à mão. O plano de voo está feito, de Cascais a Évora, seguindo pela costa até ao estuário do Sado, depois em linha recta rumo a leste. Luís faz a inspecção exterior. Flaps, aileron, hélice, todos os parafusos estão no sítio, leme de profundidade, leme de direcção… O Cessna tem 40 anos, mas isso nunca foi problema para um avião. Terminada a volta, faz-se a purga, confirmando que não há condensação no combustível. No cockpit, Luís fixa ao manche o seu iPad Mini, onde tem o plano de voo e todas as coordenadas, através do software Air Navigator. Artur fixa o seu tablet especial de aviação, com cronómetro analógico acoplado. Em seguida pega no vetusto papel envolvido em plástico da checklist de inspecção de voo, que contrasta comicamente com a sofisticação electrónica dos seus gadgets pessoais. Auscultadores na cabeça, Artur pede autorização de descolagem à torre de controlo. “Válvula de combustível ligada”, diz ele para Luís. “Sim. ”“Equipamento eléctrico desligado. ”“Tá. ”“Fusíveis. ”“Tá. ”“Bomba eléctrica de combustível desligada. ”“Tá. ”“Travões bloqueados. ”“Sim. ”“Flaps. ”“Check. ”Percorrida toda a checklist, é altura de accionar o motor e avançar para a pista. “Ignição. ”O motor de arranque engasga-se um pouco, como num carro velho, mas lá pega, com um grande estremeção. Tudo vibra e abana, como uma tenda no meio da tempestade, segue-se o resto da inspecção de voo, o contacto com a torre. “Autorização para descolar, Alfa Tango Yankee Zulu, em direcção à Cova do Vapor. Posição de espera na pista 3. 5. Código 3212. Vento Norte 360. ”Luís vai aos comandos. No seu iPad surgem três círculos sobre o Googlemaps, representando as zonas definidas que vamos cruzar. O avião descola, sobrevoa as praias de Cascais a baixa altitude, atravessa o Tejo, sobre o Bugio, acompanha a linha da Costa de Caparica. Velocidade, 200 km por hora, a mil pés de altitude (cerca de 300 metros). A partir da lagoa de Albufeira, subimos aos 1500 pés. É obrigatória a baixa altitude, devido ao aeroporto de Lisboa e respectivo tráfego comercial, o que nos coloca numa posição vulnerável à turbulência. A causa é o calor do solo, que provoca a elevação de massas de ar, explica Luís. “Quanto mais baixo, mais vento. ”A sensação é de fragilidade total. Dançamos no espaço. Por vezes parece que a aeronave não segue em frente, mas para os lados, cedendo a um empurrão. Outras vezes é como se levássemos um pontapé, que nos atira brusca e violentamente para cima ou para baixo. Em certos momentos, sentimo-nos numa cápsula pendurada por um fio, balançando perigosamente, mas presa a algum invisível cabide do céu. De repente caímos, como quem tropeça num degrau. Nos headphones, ouvimos, em inglês, as comunicações da torre de Lisboa, que incluem todos os voos comerciais, misturados com trocas de mensagens entre a torre de controlo e tripulantes de aviões ligeiros. A amálgama sonora faz-nos mergulhar numa cisterna tépida, é uma espécie de senha para um universo multidimensional, sem gravidade, livre. A torre, agora, depois de Setúbal, já do controlo aéreo militar, avisa-nos de um avião que vem em sentido contrário, a 2000 pés. Lá em baixo, a península de Tróia, o estuário do Sado, verde, absolutamente selvagem. A serra da Arrábida, em formas e tons que é impossível ver do solo. Com o aumento da altitude, entramos numa zona calma. Luís larga as mãos do manche e dos comandos. Artur sorri, dir-se-ia que de pura felicidade. Não há dúvida de que isto provoca uma certa embriaguez. Tudo é relativo, confuso, maravilhoso. Surpresa, agora que apontámos a leste: o território tem áreas imensas sem vestígios de civilização. E muitos lagos. Água a refulgir entre promontórios verdes por todo o Alto Alentejo. No meio do nada, surgem palácios secretos. Em zonas recônditas, abrem-se pedreiras infectas, como feridas. As estradas são traçadas em perfeitas linhas rectas. Ali, um cemitério faz lembrar um canteiro. Por todo o lado há pistas de aviação, particulares, por vezes mínimas, onde, se quiséssemos, poderíamos aterrar. Mas avançamos até Évora, que surge, extensão de casario branco, no horizonte. Atenção que há actividade de pára-quedismo no ar, avisa a torre do aeródromo de Évora. Aterramos sem incidentes. Saímos e vamos tomar um café. Luís e Artur fazem isto todas as manhãs de domingo, há 40 anos. Por vezes, vão a Santarém ou a Portimão. Mas não usam só o avião, que é deles, comprado a meias, para estas escapadelas de lazer. Luís, que é advogado, desloca-se no Cessna para ir a julgamentos, em Faro, ou Bragança. É muito mais rápido, e até mais barato do que ir de carro, explica. Artur, gestor de empresas, voa muitas vezes para reuniões, em vários pontos do país. Vão muitas vezes sozinhos. Metem-se no seu avião e partem, para onde é preciso. O país está cheio de pistas de aviação, enumeradas em listas próprias e identificadas no próprio GPS. É quase possível estacionar à porta de casa ou do escritório. Um avião ligeiro (o caso do Cessna de Luís e Artur), ou ultraligeiro, pode voar praticamente por todo o país. O mapa do espaço aéreo mostra as zonas restritas, afectas a áreas militares específicas, e as formas de as contornar, através de “túneis” aéreos, ou usando o espaço aéreo não controlado, abaixo dos mil pés de altitude. Todo o território está coberto por comunicações e controlo, quer seja dos aeroportos e aeródromos, quer pelas torres de controlo militar, de cuja ajuda qualquer aeronavegante pode beneficiar. Ao contrário da dos controladores aéreos oficiais (que só existem em Lisboa, Porto, Faro e Cascais), as informações e instruções fornecidas por estes, tal como as que existem em muitos aeródromos municipais, como o de Évora, são apenas indicativas, não obrigatórias. Trata-se de serviço de AFIS (Aerodrome Flight Information Service), a que os pilotos podem recorrer, embora não sejam obrigados. Luís e Artur lembram-se de quando toda a informação era dada apenas com gestos ou luzes, e toda a navegação era feita à vista, apenas com a ajuda de uma bússola. Quando se entrava numa nuvem, era o pânico. O GPS veio revolucionar a navegação aérea. Luís lembra-se do velho Tiger em que voava, há algumas décadas, onde o velocímetro funcionava com uma chapa que se torcia com a velocidade do vento. Não era possível, nessa altura, distinguir entre a velocidade em relação ao ar circundante, e a velocidade em relação ao solo, que são completamente diferentes. Portanto também não era possível saber a que distância nos encontrávamos do destino. Os sistemas de comunicações também são uma inovação recente para a maior parte das aeronaves. Dantes, um avião ligeiro estava sempre sozinho no céu, e era obrigado a voar segundo as regras VFR (Visual Flight Rules). Hoje, predomina a IFR (Instrument Flight Rules). Luís tem o brevet desde os 17 anos, quando, para fugir às outras actividades da Mocidade Portuguesa, se inscreveu no núcleo de aviação. Também fez o curso de jornalismo. Ficou tudo de graça. Hoje, já tem cerca de 900 horas de voo, devidamente registadas na sua caderneta, que actualiza a cada aterragem. Artur gosta de aviões desde miúdo, quando, perto da base militar de Sintra, onde vivia, se lembra de ficar deitado no chão a observar as manobras dos caças. Mas só aos 39 anos conseguiu tirar o brevet. É um verdadeiro apaixonado, compra todos os gadgets de última geração (tem uma vasta colecção de sistemas de GPS), aprende novas técnicas, adora fazer acrobacias e “manobras de recuperação”. “Gosto da turbulência”, diz ele. “Gosto de fazer aterragens com ventos instáveis, coisas que a maioria dos pilotos evita. Eu tenho prazer com essas sensações. Não tenho medo. Sempre que posso, treino manobras complicadas. ”Luís prefere os voos calmos, embora não perca o sangue-frio nas piores situações de emergência. Como quando teve um curto-circuito a bordo, que fez deflagrar um incêndio, e parar o motor, e foi preciso desligar, um a um, todos os fusíveis, até identificar onde estava o problema, repará-lo e voltar a ligar os circuitos. Tudo isto sem descurar a pilotagem, e sempre atento ao solo, seleccionando os espaços abertos onde faria a aterragem de emergência, se necessário. Pode ser um campo de cultivo, um estádio, ou até uma auto-estrada. Uma vez, num dos seus voos de domingo, Luís e Artur esqueceram-se de verificar o combustível. Mal descolaram, perceberam que os depósitos estavam vazios. A primeira hipótese que lhes ocorreu foi a Praia Grande, perto de Sintra, para a aterragem de emergência. Mas como o motor não parou logo, seguiram até ao cabo da Roca, em cujo planalto acharam que conseguiriam “pôr o avião no chão”. E assim sucessivamente até regressarem ao aeródromo. Afinal a reserva do depósito foi suficiente. “Gosto muito de voar. Lá em cima, estamos isolados do mundo”, é como se sente Luís Laureano. “É bom para lavar a cabeça. Desligamo-nos dos problemas, não temos de aturar as pessoas cá em baixo. É uma espécie de tempo fora do tempo. ” Já Artur fala da sensação de liberdade, de poder e de isolamento completo. Não consegue passar muitos dias sem voar. As vidas profissionais de ambos não têm nada que ver com aviação, mas estão envolvidos em várias actividades relacionadas, como as associações (Luís foi presidente da AOPA — Associação de Operadores e Pilotos de Aeronaves) e as iniciativas dos clubes, como os encontros nacionais e internacionais, e as voltas aéreas, que incluem concursos, demonstrações e jantaradas. Todas as quartas-feiras, aliás, Luís e Artur almoçam juntos, num restaurante na zona do Saldanha, para falarem de aviões. Ao contrário do que se possa pensar, o hobby da aviação não é caro, dizem eles. Um avião como este custa, novo, cerca de 400 mil euros, com um nível razoável de equipamento extra. Usado, no entanto, pode comprar-se por 50 mil euros. E raramente um piloto compra um avião sozinho. Organiza-se numa sociedade com um ou vários amigos e dividem os custos. O combustível não fica caro, se compararmos com os automóveis. Custa 1, 75 euros por litro, sendo que a aeronave consome cerca de 35 litros por hora e viaja a velocidades de cruzeiro de mais de 200km por hora. Ou seja, uma viagem até Faro, considerando que a distância em linha recta é mais curta, e que não há portagens no ar, custa cerca de 60 euros e demora pouco mais de uma hora. A taxa de aterragem num aeródromo é de 10 a 20 euros, embora seja gratuito no aeródromo onde o avião está estacionado, serviço que custa uns 150 euros por mês. O curso de pilotagem, com exame e obtenção de brevet incluídos, custa 7500 euros, através do Aeroclube de Portugal. E o aluguer de um avião ligeiro, para quem opta por não comprar, fica, no aeródromo de Cascais, por 150 euros por hora. Além disso, é preciso ainda contar com as revisões periódicas, que são obrigatórias, para que o avião possa voar. No caso da aviação ultraligeira, tudo isto pode ser reduzido para mais de metade. Estamos no campo de aviação de Benavente, a capital portuguesa dos ultraleves. Paulo Cunha, 57 anos, é um dos proprietários do campo e da escola de aviação, Aerolazer, empresa que também representa e vende em Portugal várias marcas de aviões ultraleves. É também presidente da APAU (Associação Portuguesa de Aviação Ultraleve). De profissão, é médico, dá assistência técnica a sete clínicas espalhadas pelo país e percorre-as de avião. Pelas suas contas, gasta, para ir de Benavente à sua clínica de Portimão, cerca de 20 euros, já que o seu Dynamic gasta uma média de 12 litros por hora. E faz a viagem em pouco mais de meia hora, enquanto de carro gastaria mais de 60 euros, incluindo portagem, e demoraria umas quatro horas. Como é um dos locais onde se desloca com mais frequência, tem um carro velho estacionado no aeródromo de Portimão, para as deslocações locais, e vai sempre de avião. “Voar faz parte da minha essência”, explica. “Se ando um mês sem voar, não ando bem. Isto é a minha saúde mental. Nunca precisei de tomar um Xanax. ”Um ultraleve é um avião como outro qualquer, apenas mais leve. Segundo as regras adoptadas em Portugal (que, no caso dos ultraligeiros, diferem muito em cada país), não pode pesar mais de 450 quilogramas. Outras restrições incluem não poder voar durante a noite e não estar habilitado a usar as regras de voo por instrumentos (IFR). Apenas VFR, o que significa mais liberdade e sensibilidade. Um ultraleve só precisa de um piloto, embora tenha quase sempre dois lugares. E pode voar em todas as zonas controladas do espaço aéreo, desde que possua comunicações e sistema de Transponder, que permite ser localizado pelos radares. Mas, no essencial, um ultraleve obedece aos princípios de um avião, e é também isso que o define: manobra-se segundo três eixos, como explica Rui Augusto, técnico de manutenção de aeronaves e de motores Rotax (a quem chamam o “ginecologista”, por trabalhar “onde os outros se divertem”): o leme de direcção, ou vertical; o leme de profundidade e os aillerons. Um Quicksilver como este estacionado junto ao bar do aeródromo, e que se pode guardar numa garagem, possui todas estas características. É, para todos os efeitos, um avião, embora pareça um asa delta com motor. É composto por uma estrutura simples, uma hélice ligada ao motor, que fica à vista, asas de tela e dois lugares sentados, ao ar livre. Mas lá está o manche, em forma de joystick, com que se faz a geringonça subir ou descer, virar para a direita ou esquerda, e os pedais, que permitem inclinar as asas, para uma viragem aerodinâmica. Assemelha-se a um insecto gigante e proporciona sensações únicas. É como progredir no ar sem qualquer veículo, elevados por impulsos do próprio corpo. É a sensação pura de voar, o mais perto que podemos estar de Ícaro. Sente-se o vento no rosto e o mundo a toda à volta, líquido, irisado e volúvel, como no interior de uma bola de sabão. Os elementos estão à solta, mas deixam-se tocar, próximos e dóceis. As movimentações térmicas, as massas de ar, que se vão tornando densas, depois da descolagem, e acabam, como descrevia Saint-Exupéry, por ficar superfícies sólidas, onde nos podemos agarrar. Um Quicksilver não é muito diferente das maquinetas dos irmãos Wright ou Santos Dumont, embora pareça muito mais simples. A tecnologia aeronáutica evoluiu desde então no caminho da sofisticação, mas também da singeleza, da essência da ideia. E é dessa que o Quicksilver é um expoente avançado, inteligentemente fiel às visões iniciais, do Ornitóptero de Leonardo Da Vinci à Passarola de Frei Batolomeu de Gusmão. “Não vou com isto até Bragança”, diz Paulo Cunha. Não é um avião para longas viagens, mas para pequenos passeios locais. É fácil descolar e aterrar, e podemos fazê-lo dezenas de vezes numa tarde, por pura distracção, como quem pega numa bicicleta. Pilotos profissionais de grandes companhias aéreas vêm até aqui no seu dia de folga, para dar umas voltas de Quicksilver. Pedro Simões, empresário de 39 anos, tem dois aviões: um portentoso WT9 Dynamic e um Quicksilver. O primeiro, diz, vendia-o, se surgisse uma boa oferta. Mas por nada deste mundo se desfaz da caranguejola voadora. Um ultraleve sofisticado como o Dynamic de Pedro Simões pode custar, com uns dez anos de idade, 70 mil euros. Mas há modelos muito mais baratos. Como um que está à venda num dos hangares da Aerolazer por 15 mil euros. Se um grupo de cinco recém-licenciados da escola decidir comprá-lo, pagará 3 mil euros cada um, e ficarão proprietários de um avião, que poderão usar em qualquer altura. O curso de piloto de ultraleve não é equivalente ao da aviação ligeira, embora, no futuro próximo, se preveja a introdução de um sistema de créditos que permitirá, com uma extensão de aulas e um novo exame, fazer o upgrade de uma licença para a outra. Dentro da aviação ultraligeira, há ainda dois tipos de licenças, correspondentes a dois cursos diferentes. O que permite apenas pilotar aeronaves do tipo 1, mais simples, e o que é próprio para os aviões tipos 2 e 3. O primeiro curso tem um custo total, exame incluído, de 3200 euros, o segundo de 4500. Os licenciados que queiram alugar aviões pagarão 80 euros à hora, combustível incluído. Mas grande parte dos novos pilotos tenta comprar o próprio avião, não apenas porque acaba por sair mais em conta para quem tencione de facto voar muitas horas, mas também porque é impagável a sensação de possuir um avião. Ser dono de um italiano Blackshape, de linhas futuristas, de uma aeronave simples, barata e retro como o francês Skyranger (custa cerca de 40 mil euros, novo), um clássico Pioneer 300 (também francês), um eslovaco sofisticado como o Aerospool WT9 Dynamic, ou mesmo ter um básico Quicksilver, “é um privilégio”, como diz Pedro Simões, um dos mais antigos frequentadores do aeródromo de Benavente. “Sinto-me um privilegiado”, diz ele, sentado no cockpit do seu WT9 Dynamic. É um cubículo onde mal cabe piloto e passageiro, sentados lado a lado. O painel de comandos e instrumentos é próximo e complexo, o manche em forma de joystick, o tecto totalmente transparente. Além do altímetro, velocímetro, indicador de horizonte artificial, de “climb”, de combustível, e os vários instrumentos básicos, a aeronave está ainda equipada com todos os gadgets possíveis, relacionados com comunicações, orientação, navegação, etc. Além dos 70 mil euros que o avião custou, Pedro gastou mais 100 mil em equipamento extra. “Gosto de ter tudo no meu avião. Isto é um sonho que eu tenho desde sempre e que realizei quando pude. Faz parte da minha vida. ” Desde que entramos no avião, enquanto o motor aquece, na descolagem, no voo a 250 km/h sobre os campos ribatejanos, nas manobras de revirar o estômago como o brusco pranchamento da asa de 60 graus a 1500 pés, Pedro não pára de falar. Conta como usa frequentemente a aeronave para se deslocar a reuniões de trabalho, em Beja ou noutras cidades, como vai a todo o lado fechar negócios da sua empresa de sistemas de rega, como os clientes ficam pasmados e seduzidos quando, depois de lhes oferecer uma boleia, se vêem de repente a subir aos céus, sentados na cabina do Dynamic. Fala sem parar, vê-se que está radiante e liberto, senhor de si, magnânimo e filosófico, aos comandos do seu Dynamic. Pilotar parece tão fácil. E é. Vertiginosamente fácil e seguro, ou Pedro não teria deixado os comandos nas mãos de um repórter que nunca se tinha sentado num cockpit. O mais surpreendente é que não é preciso fazer nada. O avião voa sozinho. Vai como se estivesse vivo e não precisasse de instruções. No entanto, os comandos são assustadoramente sensíveis. Um toque leve no manche provoca logo uma guinada. Com um empurrão no manípulo, o avião afocinha abruptamente, e é difícil reprimir o desejo de fazê-lo saltar para cima, com a fúria de um puma dos céus. “Este é um avião de viagem”, vai dizendo Pedro, enquanto, por um longo período, seguimos a direito, sobre campos, rios e aldeias. Mas a verdade é que seria difícil, depois, recordar que trajecto ou direcção seguimos. No chão, sabemos sempre por onde vamos. Há sempre uma estrada, referências e destinos. No ar, avançar não significa ir a lado algum. Todos os pilotos concordam que os aviões transmitem uma grande sensação de segurança. Mas também que essa sensação é, em grande medida, falsa, e é isso que provoca os acidentes. Tem havido muitos, nos últimos anos, envolvendo aeronaves ligeiras e ultraligeiras, e provocando frequentemente a morte aos tripulantes. Os casos, alguns deles ocorridos com amigos dos pilotos com quem falámos, são amplamente debatidos nos convívios de Benavente ou de Tires. Devem-se quase sempre a excesso de confiança dos pilotos, explicam. Os aviões são veículos muito seguros. Mesmo se estão muito velhos, têm todas as condições para voar, desde que com as revisões feitas. Num avião, cada peça tem um prazo de validade e é substituível. E não se pode voar sem ter a manutenção em dia. Por isso, ao contrário do que acontece, por exemplo, com um automóvel, não faz sentido dizer que um avião está velho. Pedro Simões, que viaja várias vezes por semana de ultraleve, diz que deixou de andar de moto por ser demasiado perigoso. “Se forem cumpridas todas as regras, nada acontece”, diz Paulo Cunha. “Há sempre uma maneira de pôr o avião no chão. ”Pedro resolve exemplificar. Desliga o motor do seu Dynamic. O hélice fica a trabalhar apenas ao ralenti, sem propulsão. Não se passa nada. O avião não cai. Continua a voar, embora comece, lentamente, a perder altitude. Há tempo suficiente para procurar uma pista de emergência. “Ali aquele campo de golfe”, diz Pedro. Dirige para lá o avião, e começamos a descer. “Podemos partir uma roda, mas não vamos morrer, de certeza”, continua ele, muito calmo. O campo de golfe está à nossa frente, mas pouco antes de tocarmos o relvado, o motor volta a trabalhar, e subimos, suavemente. “Podíamos ter aterrado ali. Há sempre um sítio. Podia ser na estrada. ”Artur Caracol conta uma história passada no tempo da sua instrução. Ficara apreensivo e com dúvidas, depois de um instrutor e um aluno da mesma escola terem tido um acidente mortal. Mas o seu instrutor decidiu levá-lo para uma experiência. Durante a aula, levou o avião muito alto, e depois apontou-o ao chão, desligando o motor e deixando-o em perda. Começaram a cair a pique, mas ele não fez nada. Até que a certa altura o aparelho se endireitou, sozinho, e recomeçou a planar. “Estás a ver?”, disse o instrutor. “Os aviões foram feitos para voar. ”Quando há acidentes, diz Luís Laureano Santos, “é o piloto que faz cair o avião, e não o avião que faz cair o piloto”. Ou seja, tudo se passa como se os aviões se recusassem a cair, e só um número muito restrito de pilotos, particularmente habilidosos, os conseguissem fazer despenhar. Para se salvarem, bastava não terem feito nada. Mas os pilotos têm dificuldade em estar quietos. Muitos gostam de testar os seus limites, de facilitar os procedimentos e de se exibirem. “Podemos fazer estas manobras [o pranchamento da asa] a alta altitude, porque se acontecer alguma coisa, temos espaço para corrigir a manobra”, diz Pedro. “Mas a alta altitude ninguém nos vê. ”Há quem não resista a exibir-se voando baixinho. Segundo Álvaro Neves, director do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves, (GPIAA), há uma idade crítica. Pilotos entre os 45 e os 55 anos, com uma média de 250 a 300 horas de voo, tendem a experimentar uma sensação de confiança excessiva. Começam a facilitar, a ultrapassar os limites, e correm riscos. “Acham que são os maiores pilotos do mundo. Fazem manobras acrobáticas, que são proibidas. Mas um piloto nunca é suficientemente experiente. ” Nos acidentes dos últimos anos, as causas têm sido, em 98%, devidas a factor humano. Além disso, na classe dos ultraleves, há muito quem descure as normas de segurança. “É um tipo de aviação muito livre, e é bom e normal que assim seja. Mas nem todos associam essa liberdade a responsabilidade. Há pessoas com uma atitude agressiva na pilotagem. ” Segundo Álvaro Neves, que também é piloto, muitos proprietários de aviões guardam-nos nas suas quintas, em garagens sem assistência técnica profissional, descolam e aterram em pistas não certificadas, que têm dentro das suas propriedades ou nas de amigos. “Das 550 aeronaves ultraleves que existem registadas em Portugal, cerca de 50% estão nessas condições, e não cumprem as regras de manutenção e segurança. ”Nesse aspecto, a base de Benavente, diz o director do GPIAA, é uma “unidade de referência”. E a Associação Portuguesa de Aviação Ultraleve (APAU), presidida por Paulo Cunha, está a trabalhar com o GPIAA na tentativa de trazer para a legalidade todos os proprietários de ultraleves. E depois há ainda o problema de quem não nasceu para isto. “É preciso sentir o avião. Os nossos pés são as suas rodas, os nossos braços são as asas”, explica Luís Laureano. “Há pessoas que são pilotos à nascença. Depois só têm de aprender. ”Para Artur Caracol, o importante é ter a capacidade de manter a calma em todas as situações, não entrar em pânico. “É preciso saber cair. ”Pedro Simões, quando foi fazer o curso, já sabia pilotar, porque passara centenas de horas agarrado ao simulador de voo, no computador. Mas teve de fazer as regulamentares 140 horas teóricas e mais 40 de voo. Durante o curso, não antes, há um momento em que o futuro piloto percebe se foi ou não feito para aquilo: quando é largado pela primeira vez. É uma ocasião mágica e ritual, que surge sempre de surpresa. O instrutor é que decide quando chegou a altura e só o comunica ao aluno no próprio dia. Tanto pode ocorrer às 30 horas de voo, como às dez. Aterram, o instrutor sai do avião e diz para o aluno: Vai! E ele, sem estar à espera, tem de descolar e voar sozinho. “É um momento incrível”, recorda Artur. “É o voo mais importante da nossa vida”, diz Paulo. “É o momento da verdade”, admite Pedro. Depois, se correr bem, as aulas continuam normalmente até ao fim, com o instrutor ao lado. Laureano foi largado com apenas sete horas de voo. Artur com oito. O instrutor, o tal que meteu o avião a pique sem o conseguir despenhar, travou na pista, saltou fora num ápice e gritou: “Agora vai e parte esta merda toda. ” Quarenta anos depois, Artur ainda não conseguiu. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
António Costa: O conciliador
Há quatro anos, António Costa e Catarina Martins não eram líderes partidários. Passos Coelho prometia não cortar salários. Paulo Portas foi a votos sozinho. Jerónimo de Sousa viajou a Havana e encontrou-se com Raúl Castro. Quarto artigo da série "Quatro anos que mudaram a vida deles (e a nossa)." (...)

António Costa: O conciliador
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há quatro anos, António Costa e Catarina Martins não eram líderes partidários. Passos Coelho prometia não cortar salários. Paulo Portas foi a votos sozinho. Jerónimo de Sousa viajou a Havana e encontrou-se com Raúl Castro. Quarto artigo da série "Quatro anos que mudaram a vida deles (e a nossa)."
TEXTO: No subsolo da Baixa pombalina, próximo do Arco da Rua Augusta, há um espólio arqueológico que conta a história de Lisboa dos últimos 2500 anos. Junto a uma intervenção naquele núcleo histórico, visível acima do solo, na Rua do Ouro, um homem pegou num saco e foi-se embora sem demoras. O gesto causou suspeitas a um transeunte que por ali passava, à hora de almoço. Inquiriu um trabalhador da obra sobre o alegado furto, mas a resposta foi vaga. Chamou um agente da polícia municipal e pediu-lhe que fosse atrás do suspeito. Horas depois, o telefone toca. Era o comandante da Polícia Municipal. O homem tinha sido detido, sim, mas era funcionário da Câmara Municipal de Lisboa (CML) e estava a recolher objectos para levar para o Museu da Cidade. Deste lado da linha, o então presidente da CML pôs as mãos na cabeça. O delator tinha sido o próprio António Costa. Mais tarde, recebeu uma carta do funcionário a dizer que tinha um grande orgulho no cuidado que o presidente mostrava ter sobre os vestígios arqueológicos da cidade. “Fiquei envergonhadíssimo”, conta o líder do PS à Revista 2. Nem sempre esta inclinação de António Costa para inspector camarário resultou em embaraço para o próprio. Muitas vezes, pelo contrário, deu origem a chamadas de atenção para os seus colaboradores. À noite, depois do jantar, era comum que começassem a chegar sms aos telemóveis do chefe de gabinete do presidente, de directores municipais e de assessores. As mensagens alertavam para buracos na estrada, candeeiros com luzes apagadas, semáforos por arranjar, espaços verdes por tratar. Algumas chegavam até com fotografia do local. Já se adivinhava: o presidente da câmara fazia um dos seus percursos pela cidade, a pé ou de bicicleta, um dos prazeres que deixou de ter ao trocar a governação da autarquia pela liderança do PS. “Adoro andar a pé. Das coisas que mais me custam são as horas infindáveis a viajar de carro de um lado para o outro. ” Deixou Lisboa e mudou-se para Sintra quando se tornou candidato à liderança do PS. No tempo em que esteve à frente da CML — que quase consumiu os últimos quatro anos do agora candidato a primeiro-ministro —, António Costa deu outros exemplos de um autarca que “gosta de pôr a mão na massa”, como diz um seu colaborador. Foi o caso das polémicas alterações de trânsito introduzidas na rotunda do Marquês de Pombal, em Setembro de 2012, com um pretexto ambiental. Na primeira manhã em que a rotunda se dividiu em dois círculos, Costa pôde assistir, no centro de controlo de tráfego da CML, ao caos de circulação automóvel naquela zona. À hora de ponta, foi aconselhando os técnicos sobre os tempos de funcionamento dos semáforos na zona. Percebeu que boa parte do problema estava na deficiente sinalização e passou o dia a trabalhar para que novos sinais fossem afixados antes da manhã do dia seguinte. Esse trabalho de proximidade teve, porventura, o seu expoente máximo quando, em Abril de 2011, António Costa mudou temporariamente o seu gabinete para o então degradado Largo do Intendente. Era só por um ano, ficou três. O projecto, que aliou a requalificação urbana à regeneração social, deu uma vida nova ao bairro de má fama. Instalado no prédio da antiga Fábrica Viúva Lamego, era comum António Costa sair do gabinete e perguntar aos moradores se os horários mais curtos impostos aos bares estavam a ser cumpridos. A partir do Largo do Intendente, o então presidente da câmara pôde acompanhar de perto a requalificação do bairro da Mouraria. Este trabalho cruza-se com o fado, uma paixão que cresceu nos últimos anos, desde que se tornou impulsionador da candidatura a Património Cultural Imaterial da Humanidade. Em Novembro de 2011, fez parte da comitiva portuguesa que se deslocou a Bali, na Indonésia, para receber a distinção da UNESCO. No palco, em jeito de homenagem, encostou o seu iPhone ao microfone da sala e deixou que a voz de Amália se ouvisse em Estranha forma de vida. Nos últimos anos, tornou-se amigo de fadistas, foi conquistado pela Rádio Amália e hoje em dia raramente perde um concerto de fado, mesmo quando percorre o país nas digressões políticas. Enquanto presidente da câmara, não falhou as festas populares das noites de Santo António, mas teve de pôr à prova a sua capacidade de negociar quando uma greve na recolha de lixo ameaçou estragar o arraial de 2014. Depois de falhadas as conversações entre o vice-presidente e os sindicatos dos trabalhadores municipais, foi o próprio que tomou a iniciativa de se sentar à mesa das negociações. Cedeu nas reivindicações laborais e travou a greve marcada para vários dias. Apoiantes mas também adversários elogiam-lhe a capacidade para fazer compromissos. “É um negociador habilíssimo, resolveu dossiers que estavam na câmara bloqueados há anos”, afirma Helena Roseta, eleita vereadora pelo movimento Cidadãos por Lisboa, e que aceitou um entendimento com Costa em 2009. Tornou-se presidente da Assembleia Municipal em 2013 e está em terceiro lugar nas listas do PS por Lisboa para as legislativas. Foi uma das pessoas de quem mais se aproximou nos últimos anos. Exemplo simbólico de um acordo conseguido com um campo político adversário foi o memorando de entendimento fechado com o então ministro Adjunto Miguel Relvas, sobre os terrenos do Aeroporto de Lisboa. O contencioso durava há 23 anos e acabou em 2012 depois de longas conversações com o ministro. Pelo lado do Governo era preciso também que este problema se resolvesse para poder avançar com a privatização da ANA. Entre outros pontos do acordo, o Governo assumiu o pagamento de 286 milhões de dívida bancária de médio e longo prazo da CML em troca da totalidade do perímetro dos terrenos aeroportuários, o que permitiu a Costa anunciar uma redução da dívida do município em 43%. Mais um ponto que, mais tarde, haveria de servir como trunfo ao candidato a primeiro-ministro no combate a Passos Coelho, líder do Governo que se orgulha de ter posto as contas do país em ordem. No frente-a-frente televisivo entre os dois candidatos, essa operação veio à conversa: Costa lembrou a redução da dívida da CML, Passos recordou que isso foi conseguido com dinheiro do Governo. Outro dos diferendos municipais que se arrastava nos tribunais era o do caso Bragaparques. Em Janeiro de 2014, António Costa fechou um acordo com a empresa de Braga que permitiu à CML reaver os terrenos da Feira Popular e do Parque Mayer, pagando desde logo 101, 7 milhões de euros, salvo encargos futuros e com a condição de alguns dos diferendos serem remetidos para o Tribunal Arbitral. O entendimento teve o voto a favor do PSD. Foi também com uma estratégica aliança com os sociais-democratas de Lisboa que Costa conseguiu concretizar uma das reformas de que mais se orgulha: a descentralização de competências da CML e a redução do número de freguesias. A reorganização levou-lhe anos a preparar, mas foi estabelecida com base em trabalho de proximidade com os autarcas das próprias freguesias. Essa preocupação em construir pontes e de não impor um desenho feito a régua e esquadro valeu-lhe uma contestação mais suave por parte dos autarcas e de trabalhadores. “Esta reforma não foi uma reforma filha da troika”, disse numa reunião camarária, em Dezembro de 2013, em claro contraste com a contestada reorganização de freguesias em todo o país executada por Miguel Relvas, em resultado do memorando de entendimento. O próprio António Costa reconhece que os acordos mais importantes que conseguiu em Lisboa foram estabelecidos quando já dispunha de maioria absoluta. “Os compromissos são sempre necessários por uma razão: é que as maiorias não duram para sempre”, observa. E esse é um “erro” que aponta ao (primeiro) governo de Sócrates, por “não ter usado a maioria absoluta como forma de obter compromissos mais alargados”. Um discurso que manteve com coerência antes e depois da detenção do ex-primeiro-ministro. A caminhada para a liderança do PS tinha começado meses antes, depois de uma pública hesitação em Janeiro de 2013. Até esse episódio e mesmo depois dele, António Costa foi constantemente questionado pelos jornalistas sobre a sua disponibilidade para liderar o PS. O então autarca foi repetindo a recusa, com os mesmos argumentos, mas sem nunca fechar completamente a porta. “Neste momento não estou a concorrer para cargo nenhum, mas também não fujo de cargo nenhum”, disse em Março de 2012, numa entrevista ao PÚBLICO a propósito do lançamento do seu livro Caminho Aberto, uma compilação de textos sobre o seu pensamento político dos últimos 20 anos. A crítica à forma como o então secretário-geral do PS, António José Seguro, geria o partido, sobretudo por causa da herança socrática, não foi discreta. Foi mesmo bastante visível quando disse que o PS, que na altura cumpria um ano de oposição, “fingiu que o passado não existe” e apostou numa “política impossível” que não era nem a de “autoflagelar-se” nem a de uma “avaliação crítica”. A farpa foi lançada no programa Quadratura do Círculo, na SIC, onde foi comentador político até ser candidato a primeiro-ministro. Nessa cadeira, condenou o PS de Seguro por se ter abstido na proposta de Orçamento do Estado para 2012, que impunha uma forte dose de austeridade, e considerou que o Governo PSD/CDS “se distanciou” do memorando da troika. Apesar de ter defendido, a 22 de Novembro de 2014 — um dia depois da detenção do ex-primeiro-ministro — que o PS “não adopta as más práticas estalinistas de eliminação da fotografia deste ou daquele” —, as políticas de Sócrates passaram a ser quase um tabu nos seus discursos de campanha. Com antagonismos acumulados na história do PS desde os tempos em que ambos militavam na Juventude Socialista, Costa foi mortal para Seguro logo que este assumiu a candidatura à liderança do PS, em Junho de 2011. “Não o conheço bem. Sei quem ele é e já nos cruzámos, mas não é uma pessoa com quem tenha convivido”, reagiu na Quadratura do Círculo. Pormenor: os dois socialistas foram membros de ambos os governos liderados por António Guterres (1995-1999/1999-2002). A rivalidade entre os dois veio ao de cima no incidente que aconteceu no congresso de consagração de Seguro como secretário-geral, em Setembro de 2011. O então líder recém-eleito aproximou-se dos estúdios das televisões instalados no congresso e interrompeu uma entrevista de António Costa, em directo na TVI. De imediato, Costa cedeu o seu lugar, mas não perdoou. Seguro representava “uma nova etapa de intimidade entre a liderança política [do PS] e a comunicação”, disse aos jornalistas, momentos depois da troca de lugares. E deixou o contraste com Sócrates que foi “menos íntimo [da comunicação social] e mais concentrado nas pessoas e nos cidadãos”. Frase que, hoje em dia, seria quase impossível de repetir. Como comentador político ou como presidente da CML, Costa foi expondo o seu pensamento político, sobretudo a sua crítica à “ideologia liberal” do Governo liderado por Passos Coelho. Nas cerimónias de comemoração do 5 de Outubro, os discursos do autarca não se confinavam ao município. Eram para o país. Em 2012, por exemplo, a intervenção serviu para criticar o “estatuto do bom aluno” assumida pelo Governo perante a Europa. “Menoriza-nos e infantiliza-nos. ”Poucos meses depois, em Janeiro de 2013, assume a vontade de liderar não só a governação de Lisboa, mas também a do PS. Horas antes de uma comissão política nacional, convocada para decidir o calendário do congresso e de eleição para secretário-geral, chamou os vereadores e informou-os da sua intenção. Dias antes, o ex-ministro socrático Pedro Silva Pereira defendia, na Rádio Renascença, que o congresso devia ser antecipado para antes das eleições autárquicas, marcadas para Setembro desse ano. A lebre estava lançada. Costa chegou ao Largo do Rato, acompanhado por Francisco Assis, que se tinha candidatado contra Seguro em 2011 e que viria a abandonar o congresso da consagração do actual líder por não lhe darem tempo para intervir. Na comissão-maratona, apoiantes de um e de outro trocaram duras acusações. Sem o apoio da esmagadora maioria dos presidentes das federações, Costa recuou na sua intenção e comprometeu-se a trabalhar com Seguro na união do partido. As tréguas foram seladas com um abraço entre os dois, perante os dirigentes socialistas, após seis horas de reunião. Dias mais tarde, foi aprovado o Documento de Coimbra, que aproximou as alas desavindas do partido. E dois meses depois Costa aceitaria ser o número dois da comissão nacional liderada por Seguro e eleita por larga maioria em congresso. A marcha-atrás de Costa desiludiu fortemente os seus apoiantes, mas até hoje justifica a sua decisão com a indesejada instabilidade que voltaria a existir no partido. Oito meses depois desta noite longa do PS, reconquistou a CML com o melhor resultado de sempre de um partido em Lisboa. Uma nova tentativa para liderar o PS só aconteceria após as eleições europeias de 25 de Maio de 2014. Poucas semanas antes, no arranque da campanha eleitoral, andou ao lado de Seguro, do cabeça de lista Francisco Assis e do presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, nas ruas de Lisboa. O momento de aparente unidade ficou cristalizado numa selfie. A imagem viria a tornar-se anacrónica quando um mês depois o embate entre os dois se tornou público. Na noite eleitoral das europeias, Costa não passou pelo Hotel Altis para cumprimentar Seguro pelo resultado e seguiu directamente para a SIC para participar numa edição especial da Quadratura do Círculo. À medida que as horas passavam, percebeu que o PS tinha ficado nos 31%. “Não havia nenhuma sondagem que o indicasse. Foi para mim um choque”, diz à Revista 2, usando uma palavra próxima da que António Guterres escolheu para comentar a derrota do então líder socialista Jorge Sampaio contra Cavaco Silva em 1991. Quando as percentagens se consolidavam, escreveu um sms a Seguro com o que se preparava para dizer no comentário televisivo. “Foi das poucas vezes que eu fui para a Quadratura do Círculo com a frase escrita depois de ter informado o que é que ia dizer. Tive esse cuidado. Mandei para ele e disse-lhe que gostava de falar com ele pessoalmente”, revela. Nessa noite, mostrou preocupação pelo facto de a “derrota histórica da direita [27, 7%] não ter correspondido a uma vitória histórica do PS”. A eleição “soube a pouco”, rematou. Esse encontro com Seguro não aconteceu nos dois dias seguintes, até Costa anunciar a sua disponibilidade para disputar a liderança. Assegura que o processo de decisão de avançar aconteceu entre a noite de domingo e a terça-feira do anúncio. “Só falei com a minha família, não falei com mais ninguém. Falei com os meus filhos e falei com o meu irmão [Ricardo Costa, director do Expresso] para medir as consequências na vida dele. Há decisões que só o próprio pode tomar”, conta. Para esse ânimo súbito, terá contribuído também o apoio popular. “Passei a campanha toda das autárquicas a ouvir as pessoas na rua a dizerem-me ‘eu vou votar em si mas verdadeiramente o que eu quero é que vá para primeiro-ministro ou para Presidente da República’. Alternava. ”A escolha de avançar três anos depois de Seguro fazer o seu “caminho das pedras” deixou-lhe colada uma imagem de calculista que, dizem os mais próximos, “transpareceu em estudos de opinião”. O processo da luta interna viria a tornar-se tempestuoso e porventura mais demorado do que o esperado. O país assistiu, em directo na televisão, ao duelo entre os dois Antónios, camaradas do mesmo partido que se tratavam por tu. O embate foi feio. Trocaram acusações a roçar o insulto e, por várias vezes, Costa perdeu as estribeiras. Tanto os seus colaboradores como os seus adversários dizem que é muito frequente ter fúrias, mas também que é capaz de as ultrapassar em pouco tempo. Essa capacidade é potenciada se perceber os ganhos de atingir determinado objectivo. “É um dos políticos mais pragmáticos que eu conheço”, diz João Gonçalves Pereira, vereador do CDS-PP, que desafiou António Costa a criar o comissariado municipal do combate ao desperdício municipal. Apesar de ser uma proposta de um partido da oposição, foi aceite de imediato. E aprovada por unanimidade. Numa disputa que não foi pacífica, Costa ganhou o lugar de candidato a primeiro-ministro com uns esmagadores 67, 7% contra 31, 5% de Seguro. Nessa noite eleitoral, foi ao auditório do Fórum Lisboa com um discurso muito conciliador. “Estas primárias só têm um vencedor: o PS. ” E empolgou a plateia com o combate contra o seu adversário seguinte, inspirado em Sérgio Godinho: “Este é o primeiro dia de uma maioria de Governo e o primeiro dos últimos dias do actual Governo. ” Já o próximo executivo, se for socialista, pode ter outras latitudes. O primeiro acto como candidato a primeiro-ministro foi discursar no primeiro congresso do Livre, liderado pelo ex-bloquista Rui Tavares, e falar num “ponto de equilíbrio” para alternativa de governação à esquerda. “O que temos de fazer não é guerrear entre nós”, disse, deixando claro que “há várias formas de governar que não passam necessariamente e só pela coligação”. Estava dado o sinal para possíveis entendimentos à sua esquerda. Com a crítica ao executivo de Passos Coelho muito acentuada na ideia de que “foi para além da troika”, a actuação do Presidente da República Cavaco Silva foi o outro pólo das atenções. Logo em Junho de 2011, o ainda autarca antevia o “carinho” de Cavaco ao Governo PSD/CDS. Críticas não faltaram nos últimos quatro anos, mas uma das mais violentas aconteceu em Julho deste ano, depois de Cavaco pedir que o próximo Governo seja “estável e duradouro”. A resposta foi dura ao repescar uma frase do próprio Cavaco, na altura primeiro-ministro, dita há 21 anos sobre o então Presidente Mário Soares. “O prof. Cavaco Silva está no fim da sua carreira política já bastante longa. Devemos aliviá-lo dos problemas e ajudá-lo a terminar o mandato com dignidade e não lhe criar problemas acrescidos”, disse. A escolha de um candidato a sucessor de Cavaco tem-lhe dado dores de cabeça. Pôs a cassete sobre Presidenciais — “o PS tomará a sua decisão no momento oportuno” — mas já foi confrontado com o anúncio da disponibilidade para o cargo da ex-presidente do partido Maria de Belém. Mesmo assim insistiu em elogiar o antigo reitor e já candidato Sampaio da Nóvoa. A poucas horas de o partido se reunir e poder transformar o congresso num palco incontrolável de guerra contra o poder judicial, Costa usou um dos seus meios preferidos para comunicar: o sms. Enviou uma mensagem escrita a todos os militantes socialistas com um forte apelo de contenção e traçando uma linha de demarcação — que manteve intransigente até hoje — entre o caso judicial e a esfera política. Mesmo sabendo que não está a agradar a muitos. “Acho que tenho feito o correcto e que é, mesmo com muitas incompreensões, estabelecer uma rígida separação entre aquilo que é a acção do PS e aquilo que é esse processo. ”Até recentemente as suas palavras resumiam-se a assumir que é um “caso doloroso do ponto de vista pessoal” e a reconhecer que a detenção tem “um peso muito grande” no partido. Em contraste com a romaria a Évora de muitos socialistas, visita Sócrates na prisão uma única vez, a 31 de Dezembro de 2014. À saída, pouco mais de uma hora de encontro, faz uma declaração que soube a pouco aos socráticos: “A personalidade dele é conhecida de todos. Vai certamente lutar pelo que acredita ser a sua verdade. ” A 4 de Setembro, a um mês das legislativas, Sócrates foi transferido para prisão domiciliária. E passa a poder dar entrevistas presencialmente. Reconquista a atenção mediática e põe à prova o candidato a primeiro-ministro a quem as sondagens não dão larga vantagem. Ainda antes da alteração da medida de coacção do ex-primeiro-ministro, Costa falava ao PÚBLICO do caso como “teste muito importante” para a democracia. “É o caso que tivemos até hoje onde mais radicalmente se confronta o princípio da afirmação do Estado de direito relativamente ao poder político. E acho que aqui estamos a ser testados no princípio da presunção da inocência. ”O factor Sócrates faz de Costa “uma marca com elevada contingência”, sustenta o marketeer Carlos Coelho, um contraste com a “marca líder que é a que está no Governo e que normalmente é que tem as contingências” por causa das políticas que desenvolveu. “É um factor de enfraquecimento invulgar a que o político António Costa tem de fazer face”, observa. O outro ponto fraco apontado é também um ponto forte: ser um conciliador. Se por um lado a sua “grande característica é a capacidade de conectar os mais variados interesses, faixas etárias e preocupações sociais”, por outro “é impossível manter essa flexibilidade sem perder a sua personalidade”. Nesta última fase da campanha, pode mesmo “ter de quebrar algumas compatibilidades” para lidar com o caso Sócrates. Transpondo a política para o marketing, Carlos Coelho considera que “a marca pessoal de Costa vale mais do que a do partido”. Esta posição é partilhada por outro marketeer, Pedro Bidarra. “A marca PS está de rastos”, diz, tendo em conta não só o caso Sócrates, mas também o anúncio da candidatura às presidenciais de Maria de Belém e as implicações de ter chamado a troika. O publicitário aponta um contraste entre o autarca e o líder partidário. “Lá na câmara parecia-me alto e mandão e agora sinto-o abafado pelo PS”. Para Pedro Bidarra, o partido devia “puxar pelos galões” do autarca na campanha: “Se o PS tivesse tronco e membros, Fernando Medina [presidente da CML] devia estar a fazer inaugurações todos os dias e dizer que era obra do Costa. ”No combate político que tem travado contra o Governo PSD/CDS, o seu discurso sofreu outro percalço: a Grécia. No início de Janeiro deste ano, o líder do PS cavalgou a onda de entusiasmo que os partidos à esquerda partilharam com o que a vitória do Syriza podia significar para a Europa. “Este é mais um sinal da mudança da orientação política que está em curso na Europa, o esgotamento das políticas de austeridade e a necessidade de termos uma outra política que permita que a moeda única seja efectivamente uma moeda comum”, afirmou na noite em que Alex Tsipras foi eleito primeiro-ministro. Não felicitou o Syriza pela vitória, é verdade, mas omitiu no seu discurso a pesada derrota do partido grego homólogo do PS, o PASOK. Perante os ziguezagues do Syriza nas negociações com os credores, o entusiasmo com os ventos de mudança na Europa esfumou-se. O ânimo que restava findou quando Tsipras aceitou um pacote de austeridade brutal. Costa tinha acentuado as críticas ao erro da Europa em “humilhar a Grécia”, passou a censurar mais a estratégia de “confrontação” assumida pelo Governo grego, chegando a dizer que Yanis Varoufakis, então ministro das Finanças, foi negociar para Bruxelas qual “cavaleiro andante”. Hoje em dia, diz não se surpreender com o que aconteceu com a Grécia: “Antes de tomar posições públicas sobre questões europeias, estabeleci contactos com a nossa família na Europa e tirei as minhas conclusões. ” Quando o Syriza se curvava perante Bruxelas, anunciou uma aliança com o PSOE — o novo impulso para a convergência de Portugal e Espanha. Uma estratégia de “construir alianças” a que se junta a defesa da “leitura inteligente” do Tratado orçamental” e a de colocar em segundo plano a renegociação da dívida. Quatro anos de uma legislatura — três na câmara e um como líder do PS em exclusivo — geraram algumas mudanças na vida pessoal de Costa e bastantes cabelos brancos. Quando entrou na corrida para a liderança do PS, deixou de participar no programa da SIC, o que fez baixar o seu rendimento mensal em 7700 euros. Essa quebra levou-o a sair do apartamento em Lisboa e voltar a morar na casa de família, em Fontanelas, Sintra. O prédio em que arrendou o duplex, na Avenida da Liberdade, entre Julho de 2012 e o final de 2014, não passou despercebido quando o PÚBLICO noticiou que foi alvo de um parecer desfavorável da câmara sobre as obras de ampliação. Regressou à casa onde a mulher (com quem é casado há 28 anos) não deixou de viver, mas não tem tido tempo para se perder num dos seus gostos pessoais que é cozinhar. Nas poucas horas que tem para ler ficção, continua a gostar de José Eduardo Agualusa. Mas o tempo da leitura foi consumido em livros sobre a crise económica e monetária em que a Europa mergulhou. Um deles foi marcante por ter das “análises mais interessantes” sobre a crise. Tem o sugestivo título La gauche n’a plus droit à l’erreur (A esquerda não tem direito a falhar) e é uma visão apocalíptica sobre a Europa de dois socialistas franceses, o ex-primeiro-ministro Michel Rocard e o economista Pierre Larrouturou. As novas funções no PS deixaram-lhe pouco tempo para a família. Ainda assim não perdeu a festa de aniversário dos 25 anos do seu filho mais velho, em Julho deste ano, numa discoteca em Vilamoura. Uma das raras ocasiões em que se deixou fotografar com a família para a revista Caras. Seis meses entre primárias, directas, congresso e em acumulação com a presidência da câmara esgotaram muito da vida pessoal. Mas voltou a um dos seus hobbies: os puzzles. Desta vez, um de 1800 peças. “É pequenino, já fiz um de 24 mil. ”Essa “paciência evangélica” — como assumiu ter num dos debates televisivos com Seguro — não se revelou nas redes sociais. Usa um tablet, tem um iPhone 6, “que é uma grande ajuda”, mas não gosta de Facebook. “É um espaço para o insulto gratuito. É um caso curioso em que a democratização não tem contribuído para o apuramento da qualidade. ”É capaz de ver notícias no tablet, mas prefere ler os jornais em papel. É aí que lê as notícias de que nem sempre gosta. Filho da jornalista Maria Antónia Palla e irmão do director do Expresso, parece viver uma relação de amor/ódio com a comunicação social. Não esconde que é crítico do jornalismo que se faz hoje em dia. “Para ser totalmente franco, é pior do que há dez anos. Porventura porque o noticiário de meia em meia hora, o noticiário no online, é uma pressão que diminui o tempo de trabalho do jornalista e porque há degradação no mercado de trabalho. ”As irritações com jornalistas — como aconteceu na passada semana na entrevista da RTP com Vítor Gonçalves — somam-se nos últimos tempos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Em Maio deste ano, enviou um sms ao director adjunto do Expresso João Vieira Pereira — que o tornou público — em que lhe dava um raspanete a propósito de uma análise escrita em torno do programa do PS. A resposta não seria a mesma se o artigo não tivesse sido escrito por um subdirector de um jornal “que se arroga ser o mais influente do país”. Admite que há tensão entre a política e o jornalismo, mas assegura que aprendeu a respeitar muito. “Não creio que tenha uma relação diferente do que outros políticos têm [com jornalistas]. Porventura manifestam-se menos ou serão menos exigentes. ” A exigência, como lhe chama, não é apenas reflexo de um impulso, mas decorre da convicção de considerar que “alguns jornalistas acham que têm o exclusivo da crítica e que não estão sujeitos também a uma avaliação crítica”. Filhos do escritor e militante do PCP Orlando Costa, os dois irmãos, o político e o jornalista, traçaram publicamente as suas balizas. Ricardo fê-lo numa carta dirigida ao “irmão político”, António anunciou que deixou de ler as crónicas do director para ele não ter, “ainda que subconscientemente, qualquer tipo de autocensura”. Depois de muitos anos a viver em lados diferentes da barricada, vem ao de cima o lado pragmático do político: “Temos de viver assim. Olhe, se fôssemos jogadores de futebol, como ele é do Sporting e eu sou do Benfica, se calhar tínhamos de jogar um contra o outro. Assim, temos apenas de conviver dentro do mesmo campo. ”
REFERÊNCIAS:
Vamos brincar com a comida
O artista Douglas Fitch e o chef Leonel Pereira estão a fazer um filme de animação onde a comida é a protagonista. O trabalho insere-se no projecto Mar e Montanha, que quer promover os produtos algarvios numa colaboração entre cozinheiros e artistas plásticos. (...)

Vamos brincar com a comida
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O artista Douglas Fitch e o chef Leonel Pereira estão a fazer um filme de animação onde a comida é a protagonista. O trabalho insere-se no projecto Mar e Montanha, que quer promover os produtos algarvios numa colaboração entre cozinheiros e artistas plásticos.
TEXTO: Estamos no interior de um filme de animação. O conteúdo de uma arca frigorífica foi despejado em cima de uma mesa e agora, peça a peça, é colocado de forma a compor um quadro hiper-realista. Um peixe, um leitão, uma galinha do campo. Acção. O filme vai começar. Tirada a fotografia, cada ingrediente ganha vida, sai da mesa, cumpre uma função que deixou de ser a de alimento para se transformar em arte. Onde está a fronteira entre uma coisa e outra? A pergunta surge na sequência de um encontro mais ou menos improvável entre Douglas Fitch, americano, 55 anos, designer, coreógrafo, cenógrafo, realizador de animação, pintor, escultor, e Leonel Pereira, português, 44 anos, chef do restaurante São Gabriel, no Algarve, um cozinheiro que diz que a pintura é uma inspiração para o modo como apresenta os seus pratos. Não se conheciam até aceitarem o convite para entrar no projecto Mar e Montanha, uma ideia de André de Quiroga e Nuno Figueiredo, comissários da Trienal de Arte de Alentejo, que convidarem 20 artistas plásticos e 20 cozinheiros para se unirem em duplas e interpretarem 20 produtos gastronómicos do Algarve (o programa pode ser consultado em www. maremontanha-algarve. com). Antes de escolherem que produto, Douglas Fitch e Leonel Pereira despejaram a arca do restaurante e Fitch decidiu animá-la numa ideia que dá continuidade ao longo trabalho que tem desenvolvido com comida. 20 cozinheiros e 20 artistas plásticos unidos no projecto Mar e Montanha para interpretarem 20 produtos gastronómicos do AlgarveNesta história é preciso agora dar um salto. Do São Gabriel, num dia de Março em Almancil, passamos para Nova Iorque, em finais de Maio. São nove horas da manhã em Sunset Park, uma área que ainda não se tornou proibitiva para os artistas que se mudaram, em fuga dos preços de Manhattan, e assistem agora a idêntica inflação no novo grande bairro das artes e da moda em que Brooklyn se tornou. O estúdio de Douglas Fitch — ou Doug Fitch — fica numa rua de oficinas, armazéns, num antigo edifício industrial que foi dividido em apartamentos para artistas. Fitch ocupa dois, um para trabalhar e outro onde vive e no qual se destaca uma enorme mesa de refeições e uma bancada que não deixa dúvida: naquela casa sabe-se de cozinhados e a comida ocupa muito espaço na cabeça de quem nela mora. As pinturas nas paredes, os utensílios que se misturam com móveis que parecem retirados das muitas produções que Fitch tem feito com as filarmónicas de Nova Iorque, Londres, Los Angeles, em trabalhos com os maestros Alan Gilbert, James Ross, Leonard Slatkin. Objectos estranhos inspirados em criaturas míticas e um armário que parece uma melancia. No estúdio, no mesmo corredor, há pedaços de cenários, figurinos, uma bicicleta de cidade, uma parede cheia de livros, muitas folhas de papel espalhadas com desenhos. É como se houvesse um percurso natural entre o estúdio, onde as ideias ganham forma, e a casa, onde essas ideias já são memórias e se preservam. Algumas, ao lado do frigorífico. Do conjunto, fica a noção de festa, um banquete, de onde se destacam quadros pendurados que são parte do trabalho de cerca de 20 anos que Doug Fitch criou com a artista plástica japonesa Mimi Oka. O tema era, justamente, comida. Doug e Mimi chamaram a esse projecto, uma reinterpretação de receitas, ingredientes, representações de alimentos ou de rituais ligados à alimentação. Um dos mais emblemáticos de toda a série é a paródia à pintura de Bruegel, , um óleo de 1567 sobre uma terra mítica onde não é preciso trabalhar para conseguir comida, um sítio de abundância e excesso de alimento em contraste com o espírito vazio. No quadro de Doug e Mimi — que imita o estilo de Bruegel —, vemos os dois artistas caricaturados, de barriga cheia, a dormir debaixo de uma árvore, uma mesa farta, alimentos pelo chão, enquanto ao fundo uma criança sobe uma montanha feita de massa de pão. “É o filho de Mimi”, aponta Douglas. Foi por aí que tudo começou para Fitch, pelo pão. Quando era criança, em Fargo, North Dakota, a avó materna era uma visita regular. “Ela cozinhava muito mal, mas fazia pão”, conta Fitch no tom de quem conta uma história para uma plateia de crianças, sentado numa poltrona rota que veio de um palco. “Sempre que vinha, ela fazia pão”, continua, “e ninguém que eu conhecesse fazia pão. Estávamos nos anos 60 e naquela altura na América as padarias industriais mataram as caseiras; ninguém estava interessado em fazer pão. A ideia era que dava muito trabalho e ninguém queria saber disso. Ela ensinou-me a amassar o pão. Dá tão pouco trabalho comparado com o divertimento, e depois é tão gratificante. Em poucos minutos, misturam-se os ingredientes e há um bocadinho de exercício físico que sabe bem. No fim aparece aquela coisa fantástica que cheira tão bem e sabe tão bem. Porque não o fazemos mais vezes? Imagine-se que uma cultura inteira fugiu disso!” O espanto de Douglas foi o de quem conheceu um material mágico. “A massa do pão transformava-se. E nas mãos da minha avó e depois nas minhas dava pão. Eu achava aquilo um milagre. Faz sentido que durante séculos as pessoas achassem que era mesmo um milagre”, diz, referindo-se ao milagre bíblico da multiplicação dos pães e ao efeito da levedura. “Ninguém entendia aquilo, parecia vindo dos céus, até que Louis Pasteur, no século XIX, descobriu as partículas de levedura. ” É então que Fitch começa a explorar a fronteira entre gastronomia, ou comida, e arte. “O conceito de milagre funciona muito bem na arte. Adoro essa ideia de milagre e de poder descansar nela. ”Começou a fazer pão em criança, continuou a fazer pão e, na faculdade, terminado o terceiro ano em Harvard, decidiu que ia parar. “Acho que não estava muito satisfeito com a minha formação ou educação — gosto mais desta última palavra —, achava-me fechado, que o essencial me estava a escapar e decidi tirar um ano e fazer algo na Europa. ”Enfiou-se na biblioteca da universidade à procura de hipóteses. A ideia de que podia escolher entre tantas possibilidades era fascinante. Foi por ordem alfabética, eliminando letras, mas parou logo no C. “Decidi ir para uma escola de cozinha em Paris. Pareceu-me um projecto óptimo. Porque gostava de fazer pão e gostava de fazer alguma comida e gostava de comer. Achei ainda que era uma boa maneira de ter um plano de refeições porque não queria gastar muito dinheiro em comida. Além disso, se aprendesse a cozinhar correctamente, seria sempre bem-vindo a qualquer casa, para fazer uns sautés e assim. ” Era o plano. Passou um ano em La Varenne, Paris, e aprendeu mais do que sautés. O conceito de milagre funciona muito bem na arte. Adoro essa ideia de milagre e de poder descansar nela. ”Voltou a Nova Iorque, terminou a faculdade e uns 12 anos depois encontrou Mimi Oka, uma antiga colega que lhe perguntou o que tinha feito ele no ano em que desapareceu. Contou ainda que em Harvard tinham escrito uma peça de teatro para ele, mas ninguém o encontrou. Esse encontro com Mimi Oka foi em Los Angeles, e foi por acaso. Mais um acaso fê-los esbarrar um no outro em Tóquio e decidirem então trabalhar juntos depois de descobrirem que ambos tinham lido The Futurist Cookbook, descrito como uma das “melhores piadas artísticas do século” e escrito pelo fundador do movimento Futurista, Fillipo Tommaso Marinneti. “O que muitas pessoas não sabem é que Marinetti tinha um restaurante, um sítio experimental, criado a partir da ideia de que a comida é medium artístico muito nobre. No futuro iríamos buscar os nossos nutrientes a ondas rádio, o que libertaria a comida ou a ideia de refeição para uma experiência puramente estética. É o que está a acontecer com as nossos amigos no Algarve. É exactamente o que está a acontecer na cozinha do Leonel. Só não estamos — e acho que isso nunca irá acontecer — a ser alimentados por ondas rádio”, declara Douglas Fitch. Publicado em 1932, o livro de Marinetti, além de ser uma espécie de manifesto humorístico, reúne receitas, contos e experiências que inspiraram Douglas Fitch e Mimi Oka a definir o projecto conjunto que os trouxe a Portugal em Agosto de 2006. “Foi a primeira vez no país”, comenta Fitch, tentando soletrar Milfontes. Fizeram um enchido e chamaram-lhe Festa. “Era a salsicha da memória, uma espécie de colector de memórias. Pedimos às pessoas para nos levaram qualquer coisa que tivesse que ver com a sua memória, uma carta de amor de alguém de quem se separaram, um televisor velho, cabelo que ficou do último corte… podia ser quase tudo e apareceu muita coisa. Pusemos tudo num enorme alguidar, misturámos e enchemos uma ‘tripa’, que estava agarrada a outra ‘tripa’, etc. Depois oferecemos pedaços. De memória. Era um souvenir, os souvenirs são estranhos”, conta sobre essa experiência, mais uma que mostra que Douglas Fitch não tem qualquer problema em brincar com a comida e que com ele foi a brincar com comida — com a massa do pão — que a arte começou. As pessoas referem-se aoscomo sendo artistas, mas já não fazem isso quando são artistas a mexer com comida. A Mimi e eu quisemos alargar esta fronteira”, esclarece para justificar a incursão. “É fácil dizer que a arte é comida, comida para alma, e é também fácil entender isso. É uma óptima metáfora. Mas se a arte é comida, porque não fazer da comida arte? Isso já não é fácil. Não se pode pintar com. Se fazemos arte do que comemos isso é uma expressão, mas é também uma verdade muito clara. Quando perguntamos o que comemos, esquecemos que comer é consumir, e comemos com os olhos, com o olfacto, com os ouvidos, com o palato, com todos os nossos sentidos, e estamos a consumir a experiência e a processá-la. A comida é uma grande metáfora para o modo como processamos qualquer coisa. Comemos uma pintura com os olhos. É muito interessante. Somos o que vemos, o que ouvimos e somos também o que comemos. Se começarmos a estar atentos a isso, a comida torna-se ummuito útil e interessante para se trabalhar. ”Há 20 anos, quando começaram, a comida não estava na moda como está agora e, em inglês, ainda muito poucos tinham lido The Futurist Cookbook (estava traduzido do italiano há muito pouco tempo). Muitos menos ainda tinham experimentado a cozinha molecular. “As pessoas diziam-me que o que nós estávamos a fazer era decadente. ‘Estão a brincar com comida’”, acusavam. Porque é que pensavam que brincar com a comida era decadente? Estamos a comê-la e é delicioso! Mas vamos outra vez às palavras, o que é decadente? A palavra tem que ver com decair ou cair. A comida não é decadente, mas é interessante que toda a comida natural, por exemplo, a fruta, é melhor no momento mesmo antes de cair da árvore ou do arbusto, e a carne depois do animal morto, é pendurada e começa a decompor-se e é quando a comemos. Toda a comida é melhor quando começa o processo de decair. É outra grande metáfora para a sociedade, as sociedades quando atingem o pico começam a decair e os artistas são sempre um espelho do que estamos a fazer em sociedade. Os artistas têm esse papel de barómetro dos tempos ao longo da história e enquanto barómetros não estamos conscientes disso, apenas apanhamos a boleia e mostramo-lo como um guia”, conclui, num discurso que também podia ser quase um manifesto artístico. Pintura, escultura, fotografia, desenho, vídeo fazem parte dos trabalhos com Mimi Oka. Alguns estão nas paredes da cozinha de Douglas Fitch. Fizeram algo inédito na carreira de um e do outro e no fim publicaram um livro, Orphic Fodder: Experiments in Dinning, or’ an Autobiography of as Artistic Collaboration (Eppure Editions), uma edição bilingue, em inglês e francês publicada em 2013. O trabalho que agora Douglas Fitch veio fazer com Leonel Pereira pode ser visto como um prolongamento pessoal dessa experiência artística. “Revejo-me na irreverência do Douglas Fitch”, refere o chef do São Gabriel, curioso quanto ao resultado final de uma animação que está em processo de pós-produção. Há poucos dias, Leonel Pereira apresentou o prato que vai fazer parte do menu de Verão do seu restaurante inspirado num produto algarvio e que também será integrado num livro com pratos dos outros 20 chefs, além do trabalho que todos desenvolveram com artistas plásticos para o projecto Mar e Montanha, Arte e Gastronomia no Algarve, que os dois comissários da Trienal do Alentejo estão a desenvolver com o Turismo de Portugal. Leonel Pereira fez um robalo. “Este ano os robalos estão a aparecer no Algarve com uma qualidade extrema”, refere, para justificar a escolha. No seu caso, tinha de confeccionar um produto do mar. “É um robalo com topinambur (um meio tubérculo, meio legume), servido com um ravioli de azeitona preta recheado com azeitona verde. Tem aipo rama e uma batata inteira, que depois é partida com a mão, rasgada, e tem um cremoso de topinambur”, revela o chef. A produtora de Douglas Fitch, Giants are Small, irá contar a história da mesa de Leonel Pereira. Vai chamar-se Still Life in Motion. “É um filme animado e vai acontecer numa casa comestível”…, adianta, ligando esta ideia a outra que tinha e se mostrou para já difícil de concretizar: produzir mesmo uma casa onde tudo é comestível. Desenhou para a Nest Magazine, uma revista dedicada ao design, com enfoque no design de interiores, que terminou em 2004, depois de 26 edições, mas que fez culto. “Nessa casa, as pessoas mais ricas ficavam no topo, junto ao tecto, e comiam umas coisinhas e quando comiam o candeeiro caía e estilhaçava-se na mesa… A casa era também uma peça de teatro que contava a história da nossa sociedade e de como ela colapsa. Acho interessante a ideia de começar a fazer pequenos mundos. É o que faço no teatro. O propósito da fantasia é apresentarmos um caminho, o acesso ao oposto da fantasia. Muitas vezes precisamos dela para entrar na realidade. Se tivermos um universo paralelo, entendemo-la melhor e começamos a ter um mundo melhor, sem isso fica tudo muito limitado. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Pode parecer, mas Douglas Fitch não se perdeu nesta história. “O Still Life in Motion é uma ideia teatral”, continua. “A comida está inanimada, mas quando comemos ela anima-nos. Há objectos na nossa vida que nos dão alegria e ponho-me a pensar no que lhes acontece quando vou para a cama; acho que andam a dançar por aí. Os objectos têm vida própria”, ri. Volta a ficar sério. “Trabalho muito com marionetas e as marionetas são conhecidas como objectos inanimados que ganham vida quando estão nas mãos de humanos. Gosto dessa noção dos objectos inanimados ganharem vida e por isso escolhi o nome Still Life in Motion. A ideia do memento mori sempre me fascinou, dá-nos a noção de que a vida se vai tão depressa. A arte trabalha muito isso. Se imaginarmos quanto tempo demora a fazer uma pintura a óleo perfeita. . . Pintar uma flor ou um porco. Quando a pintura estiver terminada o porco estará comido, a flor morta. As pinturas estão a preservar, a eternizar aquele momento no tempo de uma forma muito lenta. Como é que se pára o tempo? Como é que o desaceleramos? O Still Life in Motion é essa tentativa e é uma piada. Gosto do humor. No São Gabriel, estivemos a filmar cada um daqueles ingredientes. Tudo ali é comida de verdade e a sua função é chegar à cozinha. Mas enquanto still life (manter-se viva) a sua função passa a ser de arte. Então, quando um ingrediente sai para a cozinha, é substituído por um outro ingrediente inanimado, a versão artificial dele mesmo. Será um filme de três minutos, mas quero depois trabalhar essa imagem em vários meios. Gostava que essa ideia se estendesse”, conclui Douglas Fitch sobre um trabalho que foi pensado para poder continuar. A primeira etapa está quase pronta e será apresentada no Algarve em data ainda a fixar. Leonel Pereira irá recebê-la com um prato de robalo da ria Formosa servido a Douglas Fitch.
REFERÊNCIAS:
Proteger as crianças ou torná-las independentes?
A criminalização da independência infantil é uma mudança cultural tão significativa como os telemóveis. E é uma loucura. (...)

Proteger as crianças ou torná-las independentes?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A criminalização da independência infantil é uma mudança cultural tão significativa como os telemóveis. E é uma loucura.
TEXTO: O seu crime? Os Meitivs deixaram os filhos de dez e seis anos voltar sozinhos, a pé, de um parque na Baixa da cidade para casa. Agora estão a ser investigados por negligência. O caso representa um daqueles fossos culturais que se abatem sobre os pais de hoje. Num lado, há os pais que quando eram pequenos andavam pelo bairro de um lado para o outro com a chave de casa pendurada ao pescoço e que querem que os seus filhos vivam da mesma maneira. Do outro, os pais hipervigilantes que não conseguem sequer imaginar os filhos a irem a pé para a escola, ou que façam qualquer outra coisa, sem supervisão parental. A criminalização da independência infantil é uma mudança cultural tão significativa como os telemóveis. E é uma loucura. “Não sabe quão perigoso o mundo é?”, perguntou um dos quatro polícias que apareceram em casa dos Meitiv a 20 de Dezembro, depois de terem recebido um telefonema a avisar que duas crianças caminhavam sozinhas pela Baixa de Silver Spring. A polícia apareceu e apanhou-os numa rua movimentada, a meio da sua caminhada de 1, 5 quilómetros do parque até casa. Um quilómetro e meio? Sim, também me fez parar. O meu grande momento de rédea solta foi quando deixei os meus dois filhos rapazes, de dez e sete anos, andarem metade disso até à mercearia da esquina em Capitol Hill. Levaram o cão e o telemóvel. E admito que passei todo o tempo em sobressalto. Por isso, a ideia de os dois caminharem pela cidade parece tão corajosa e improvável como aqueles tipos que saltam de uma montanha para a outra com fato de morcego. Eu não conseguiria. Mas os Meitivs têm estado a trabalhar nesta coisa da independência há muito mais tempo do que eu. São pessoas com mentes científicas. Ele é médico no Instituto Nacional de Saúde; ela é consultora de Ciência Climática do Banco Mundial. Olham para as decisões parentais com base na ciência. “Qualquer decisão parental envolve gestão de riscos”, disse-me Danielle Meitiv, enquanto Rafi, o seu filho de dez anos, praticava trompete por trás. “A verdade é que os sequestros de crianças por estranhos são tão raros como sequestros por aliens. Bom, talvez não tanto. Mas são muito mais raros do que os acidentes de carro. Pôr um filho dentro do carro é a coisa mais perigosa que podemos fazer todos os dias. ”É verdade. Cerca de 300 crianças por dia sofrem acidentes rodoviários [nos Estados Unidos]. Em média, morrem três crianças por dia numa viagem de carro. Argumentaríamos que isso é negligência infantil, porque os pais deveriam conhecer os riscos que existem na estrada?Provavelmente não. Mas tendo em conta as estatísticas, Meitiv não achou que seria um risco terrível deixar os filhos brincarem sozinhos na rua. “Estamos dispostos a correr o risco porque sabemos quais são as probabilidades”, diz ela. Depois, os filhos começaram a andar pelo quarteirão, no pacato bairro de Silver Spring, perto do campus da Universidade Montgomery. “Oh, já nem me lembro da primeira vez. Simplesmente não era nada de especial”, disse-me Meitiv quando comecei a contar histórias de pais nervosos. Já há uns dois anos que eles brincam sozinhos no parque infantil do outro lado da rua e no quintal de casa. Por isso, a caminhada de 1, 5 quilómetros não era um grande esticão. Quando se pega em cada peça da história — um cidadão preocupado que vê dois miúdos sozinhos na rua na azáfama de Silver Spring e chama a polícia; a polícia receber o aviso e levá-lo a sério (imaginem as histórias que estaríamos a escrever agora se os miúdos tivessem estado aflitos e os polícias não lhes tivessem ligado); e leis que exigem uma investigação à Comissão da Protecção de Menores sempre que há um relato de negligência — cada uma das acções fazem algum sentido. Os responsáveis de Montgomery afirmam que não podem comentar este caso em particular, mas adiantaram que existe uma lei contra deixar crianças sozinhas em casa sem supervisão de alguém que tenha pelo menos 13 anos. A lei, argumentam os Meitivs, não refere nada em relação às crianças estarem sozinhas no exterior. Também é curioso que as escolas do condado garantam transporte, segundo o website, a crianças do 1. º ciclo que vivam “a mais de 1, 5 quilómetros” da escola, ou que estejam sujeitas a alguma circunstância extraordinária. Então, significa isto que as escolas estão tranquilas que crianças da primária andem 1, 5 quilómetros para chegar às aulas?Desde o incidente, a Comissão de Protecção de Menores voltou para levar os pais a assinar um “plano de segurança”, no qual prometem não deixar os filhos sem supervisão. Entrevistaram os miúdos na escola e pediram para inspeccionar a casa da família, procurando outros sinais de negligência. 60% foi quanto desceu o número de homicídios de crianças entre os 14 e os 17 anos. E desde 1993, que essa percentagem desceu 36% para crianças com menos de 14 anosTem existido um padrão nacional de atemorizar os pais que não andam de vigia em cima dos filhos. No Verão, ouvimos falar de uma mãe da Florida que foi presa por deixar a filha de sete anos ir ao parque local e de outra mãe detida porque a sua criança de nove estava a brincar no parque do bairro, na Carolina do Sul. Não só estamos a fazer exigências irrazoáveis aos pais para que estejam com os seus filhos 24 horas por dia, como estamos a bloquear o desenvolvimento de seres humanos independentes. O mundo de hoje é diferente, diríamos? Ah, sim, é. Desde 1993, o número de crianças com menos de 14 anos que foram assassinadas desceu 36%. Entre as crianças entre os 14 e 17 anos, os homicídios desceram 60%. Pouco mais de 1% das crianças desaparecidas são sequestradas por estranhos ou sequer conhecidos pouco próximos, segundo o Centro Nacional para as Crianças Desaparecidas e Exploradas. Só parece mais assustador porque temos muito mais informação. São-nos oferecidas diariamente histórias de crianças desaparecidas em todo o país. Antigamente, parecia muito mais seguro porque as histórias trágicas ficavam pelos jornais e emissoras locais. As estatísticas baixaram por sermos muito mais cautelosos? Talvez sim. Mas provavelmente não, dado o elevado número de ataques contra crianças que no passado ficavam por reportar devido ao estigma social que comportavam. Os Meitivs deverão voltar a encontrar-se novamente com funcionários da comissão, a quem esperam fazer entender que as suas decisões têm que ver com uma filosofia de educação e não com negligência. “Todo este medo está mal situado. O maior medo que a nossa sociedade deveria ter é o de estarmos a educar crianças que não saberão ser independentes”, comenta Danielle Metiv. “Acham que a criança independente vai aparecer como o génio saído da garrafa? É preciso tempo. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ela está certa. Não, nem todos os pais deixarão os filhos caminhar um quilómetro sozinhos numa rua cheia de trânsito. É um bocadinho extremo. Mas deixá-los dar pequenos passos é uma experiência humana que tem de acompanhar o nosso regresso ao bom senso. The Washington Post
REFERÊNCIAS:
E se um desconhecido lhe disser “vou suicidar-me”, o que lhe responde?
Um escritor frustrado a viver no Japão envia para vários jornalistas e escritores que não conhecia um email a anunciar que tenciona pôr fim à vida. Perante a mensagem, há várias atitudes possíveis. Uns reagiram, outros passaram para a mensagem seguinte. (...)

E se um desconhecido lhe disser “vou suicidar-me”, o que lhe responde?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um escritor frustrado a viver no Japão envia para vários jornalistas e escritores que não conhecia um email a anunciar que tenciona pôr fim à vida. Perante a mensagem, há várias atitudes possíveis. Uns reagiram, outros passaram para a mensagem seguinte.
TEXTO: A 10 de Dezembro de 2013, um expatriado americano no Japão enviou para um grupo de redactores, muitos deles do Washington Post, uma carta de suicídio. Com o título “Salvar um Legado”, o professor de Inglês e escritor desconhecido de 66 anos, chamado Dennis Williams, redigiu um email arrepiante. “Este é o meu último dia neste mundo. Estou a contactá-lo por causa de um artigo seu no Washington Post que me deixou impressionado. . . Estou a pôr fim à minha vida não por desespero, mas porque já disse tudo o que tinha para dizer e considero que o meu trabalho está terminado. Uma vez que ninguém actualmente (nem no passado) está interessado, não tenho qualquer plataforma através da qual me expressar sobre o meu trabalho. Por isso, acredito que tenho muito para dar, não apenas da alma como do coração, mas simplesmente não há ninguém para o receber. ”Era já final da manhã em Minato-ku, no Japão, quando Williams enviou o email. A mensagem chegou ao mesmo tempo a caixas de correio no Japão, China, Los Angeles, Washington D. C. e New Jersey. Dado as 14 horas de diferença para a costa Leste dos EUA, a maioria dos que a receberam ali só a abriram na manhã seguinte. Eu estava acordada até tarde e a ler emails na cama no meu portátil. Abri-o um pouco antes da meia-noite. “Oh, meu Deus!”, exclamei, sentando-me direita. A comoção repentina chamou a atenção do meu marido. Quando lhe expliquei o que estava a ler, ele nem sequer se mexeu, fazendo em vez disso um barulho entre o desinteresse sonolento e o aborrecimento. É uma piada, ignora-o, disse ele. O meu marido é jornalista de criminologia, e entre os dois tivemos as duas reacções possíveis a um email deste género: horror e cepticismo. Comecei à procura de sinais no email que indicassem tratar-se de uma farsa. Mas isto não era coisa de um miúdo imaturo ou um monólogo furioso de um homem incapacitado. Não havia referências a extraterrestres nem a controlo de mentes por parte do Governo. Estava bem escrito, ora desolador, ora loucamente autoconsciente. O autor disse que se chamava Katry Rain, mas explicou que esse era um pseudónimo. Nasceu como Dennis Williams. No momento em que carregou no “enviar”, vivia a dez quilómetros de Minato-ku, a sua última paragem no caminho que o levou de Detroit, onde nasceu a 5 de Julho de 1947, à Califórnia, Austrália, Nova Zelândia e Japão. As pessoas que pensam em suicidar-se geralmente não pedem ajuda a estranhos escrevendo-lhes a anunciar a sua decisão. Isto era obra de alguém rebuscado, narcisista e megalómanoUma pesquisa na Internet revela que o homem conhecido por Danny, ou Den para os primos de Detroit, acabou por adoptar um pseudónimo porque estava mais de acordo com o seu amor à natureza. Profundamente cristão até à adolescência, mais tarde lançou-se numa espiritualidade que misturava budismo, judaísmo, tauismo e sufismo. Fisicamente, Williams descreve-se assim num post do seu blogue: “Sem aptidões atléticas naturais, nunca tinha lançado uma bola até aos nove anos, e fui agraciado com aquilo que alguns chamam ‘corpo de nadador’ durante toda a minha vida — 1, 82 metros e 77 quilos. ”Depois de ter estudado na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e feito um PhD na Universidade de Oregon, começou a dar aulas de Inglês no Japão, um país que acabou por abraçar tanto que escreveu um livro, Love Letter to Japan. Depois, planeou morrer ali. O facto de este livro e os outros seis que escreveu terem sido autopublicados digitalmente e pouco lidos está no âmago desta história e do seu desejo de morrer. Williams passou anos a escrever esses livros ao mesmo tempo que mantinha um blogue e uma página no Facebook. Fiquei a saber de tudo isto a partir do meu portátil, procurando, cada vez mais freneticamente, as pistas sobre que tipo de pessoa envia emails a estranhos a comunicar que se vai suicidar. Numa conversa, semanas depois, com Christine Moutier, directora clínica da American Foundation for Suicide Prevention, confirmou-se que isto não é nada habitual. As pessoas que pensam em suicidar-se geralmente não pedem ajuda a estranhos escrevendo-lhes a anunciar a sua decisão. Isto era obra de alguém rebuscado, narcisista e megalómano. Mas na noite em que o email chegou as minhas perguntas eram urgentes: ele estava a falar a sério? E o que esperava que eu fizesse? Sem eu saber, estas mesmas perguntas estavam a ser feitas pelos outros escritores que olhavam incrédulos para os seus computadores. A minha pesquisa levou-me aos posts solitários de Williams, que aparentemente nunca tinham sido visualizados. Longas peças sobre o coração humano, a literatura, a cultura americana comparada com a cultura japonesa, o papel da tecnologia na vida moderna — tudo sem ter recebido qualquer comentário. Quando voltou a publicar essas peças no Facebook, seguiam-se ocasionalmente meia dúzia de likes. Era um William Loman [personagem de Arthur Miller, um homem solitário que tenta suicidar-se várias vezes] com WiFi, a exigir que lhe prestassem atenção. Ninguém prestava. E foi isto, dizia ele, que o levou até àquele email e ao seu suicídio iminente. “Em todos os meus anos de escrita, só um livro meu foi publicado, uma peça produzida e talvez meia dúzia ou mais de artigos de opinião publicados em jornais”, escreveu Williams. “O meu principal trabalho — três livros filosóficos e cinco romances que saíram daí — passaram despercebidos. E no entanto, porque eu acho que eles são particularmente importantes para nós neste momento fulcral da história da humanidade, escrevo aqui sobre eles para que com a vossa gentileza e a minha boa sorte possam sobreviver um pouco, possivelmente passados para outros leitores e serem considerados valiosos e úteis para uma geração no futuro. ”Ele já tinha desistido de tentar. Naquela noite, pela primeira vez na minha vida adulta, eu não tinha a mais pálida ideia sobre o que fazer em relação àquela situação. Nenhum instinto. Nenhum caminho que eu sabia ser duro ou arriscado, mas que seria o certo. Poderia ser apenas um grito para chamar a atenção de alguém com um sentido de humor perverso. Chamar a polícia não era uma opção porque ele estava no Japão, eu em Maryland e não falo japonês. Mandar-lhe um email poderia ser colocar-me, a mim e à minha família, numa situação potencialmente arriscada, embora retrospectivamente eu não tenha bem a certeza da razão pela qual achei isso. Williams referiu um artigo sobre ele no Washington Post na década de 1970. Tal como tudo o resto no email, eu queria que fosse mentira. Não era. Uma busca rápida no arquivo e 3, 95 dólares depois lá estava ele no ecrã. A fotografia a preto e branco que acompanhava o artigo, publicado na secção Estilo e escrito pelo jornalista Michael Kernan a 24 de Maio de 1972, mostrava o mesmo Williams que agora sorria no seu blogue. Tinha vinte e poucos anos, um sorriso largo, as mãos confiantemente pousadas nas ancas, à frente dos portões da Casa Branca. Tinha vindo entregar uma mensagem ao Presidente Richard Nixon, com um livro autografado. Isto chamou a atenção de Kernan, mas como ele morreu em 2005 não ficou claro porquê. Kernan descrevia Williams como um jovem bronzeado e magro, que escalou o monte Whitney, andou à boleia em dois continentes e atravessou o Sara num camião argelino com ovelhas. Aqui estava o arquétipo do jovem idealista. Um professor de liceu de Hollywood de 24 anos que tinha passado 106 dias a caminhar do cais de Santa Mónica [na Califórnia] à Casa Branca [na outra costa dos EUA]. As palavras de Williams para Kernan eram sinceras e amáveis, apesar de ter lamentado que não tenha havido mais jornalistas a aparecer a esperá-lo. “Acho que o Nixon não percebe porque é que ainda há revolta no país”, disse Williams ao jornalista. “Acho que a filosofia por detrás do Governo e instituições americanas está errada e eu queria explicar porque é que precisamos de mudar. ”“Isto é algo que eu tenho de exprimir”, adiantava. “Pode ser que ninguém se interesse, mas tenho fé nas pessoas. ”Quatro décadas mais tarde, a sinceridade deu lugar à resignação. Williams conclui o seu email com esta frase: “Não lhe estou a pedir nada, apenas espero que ao lançar este apelo as ideias possam de alguma forma sobreviver. Acredito nas ideias e em que elas podem realmente mudar o destino da humanidade. ”Pelo menos, algo da fé de há quatro décadas sobrevivera. Depois de ficar sentada na cama a traçar o seu percurso, fiquei irritada. O egoísmo de alguém que larga esta confusão psíquica no colo de uma total desconhecida era demais. E por quê? Porque a sua escrita e as suas ideias não tinham recebido a atenção que ele achava que merecia. Aquela escrita não era particularmente notável. Volumes inconsistentes sobre filosofia e natureza, e a sua visão do mundo, articulados mas desinteressantes. Ele queria dar que pensar mas ficou a um passo de provocar um revirar de olhos. Depois de ficar sentada na cama a traçar o seu percurso, fiquei irritada. O egoísmo de alguém que larga esta confusão psíquica no colo de uma total desconhecida era demais“Quem faz uma coisa destas?”, perguntava a mim própria. Fechei o meu computador. Fui dormir. Cerca de dez horas depois, a meia dúzia de redactores que enfrentava o mesmo dilema abordava-o de maneiras diferentes. Em Tóquio, um jornalista do Post enviou um email a uma mulher a que Williams se tinha referido na sua mensagem. E também notificou a polícia local e a embaixada dos EUA. Na China, um repórter do Post fez o mesmo, reenviando o email de Williams para a mulher e pedindo desculpa por estar a incomodá-la. “Não sei porque é que ele me contactou”, escreveu, fazendo eco de uma coisa que se tornava um tema entre a relutante fraternidade de repórteres que tentavam descobrir como responder ao email. Na sua casa na zona de Washington, o jornalista do Post Paul Farhi tinha a televisão ligada ao mesmo tempo que lia os seus emails naquela manhã. Abriu a mensagem de Williams. O tema não lhe era estranho, uma vez que pessoas muito próximas dele se tinham suicidado. De todas as respostas — medrosas, a desculpar-se, descrentes, tímidas — a de Farhi era a mais directa. O jornalista veterano não teve medo de se relacionar com Williams. Não viu nenhum risco resultante de nada a não ser a falta de um gesto, por isso respondeu-lhe imediatamente. “Não o conheço a si nem à sua vida ou trabalho, mas peço-lhe fortemente que reconsidere o desejo de acabar com a sua vida”, escreveu Farhi. “Pode já não ter nada para dar a este mundo, mas este mundo ainda tem coisas para lhe dar a si. Pode não estar a sofrer, mas certamente provocará sofrimento com a sua partida. Digo isto como alguém cuja vida foi profundamente afectada por aqueles que partiram precocemente. Ligue imediatamente para um amigo, um familiar, um padre, um médico ou ‘para qualquer outra alma caridosa’”, implorou-lhe Farhi antes de se despedir, desejando-lhe “paz e força para continuar a tentar”. O que impressionou Farhi foi o tom racional e calmo de Williams. Ele escreveu como se tivesse “pesado os riscos e os benefícios”, afirma. Estava controlado, mas claramente desesperado. “A outra parte da minha reacção é óbvia: ‘Mas por que raio me estás a contar isto? Quem sou eu para ti?’”Farhi nunca teve resposta e passaram-se meses até sabermos o que aconteceu a Williams. Em New Jersey, a romancista Dara Horn abriu o email e ficou irritada. “Parecia um ataque emocional”, diz. Ocorreu-me que “ataque emocional” era o que estava mais próximo da minha própria mistura entre raiva e ansiedade quando recebi a mensagem. “Achei que isto era muito injusto”, continua Horn. “‘Leia este livro ou eu mato-me. ’ Pode ser que essa não fosse a sua intenção, mas foi isso que eu senti. . . De repente, sou responsável se esta pessoa morrer. ”O grito de chamada de atenção de Williams fez lembrar Horn da leitura de um livro que ela tinha feito uma vez com o romancista Michael Chabon, que escreveu vários best-sellers. Alguém perguntou a Chabon, autor de Wonder Boys (sobre um escritor que tenta acabar o seu difícil romance), o que é que ele gostaria que fosse escrito na sua lápide. “Lembro-me de pensar que aquela pergunta era tão parva”, conta Horn. “Não por ser mórbida. Mas a assunção por trás dela. Como escritores, aquilo que escrevemos é que é o nosso legado. ”Mas Horn, que está na casa dos 30 anos, reconhece que tem tido sorte por ter leitores interessados no seu legado. Aos 66 anos, Williams não tinha. Entre os receptores dos emails, eu e Horn somos uma espécie de excepção, por não sermos jornalistas do Post. Mas, no email que me enviou, Williams referiu um artigo de opinião que escrevi para o jornal em 2013 sobre a resposta do país ao massacre de Navy Yard. Quando perguntei a Horn qual era a sua teoria sobre como Williams tinha chegado ao seu contacto, ela não soube responder imediatamente. Mas depois lembrou-se de um artigo que escreveu no Post e que foi publicado no mesmo dia que o meu sobre o impulso da nossa sociedade de catalogar cada momento das nossas vidas na Internet. Questionava o objectivo disto tudo com o título: “Quando guardamos todas as memórias, esquecemos as que são especiais. ”Horn perguntava-se se não estaríamos próximos dos faraós egípcios que se preparavam em peso para a vida depois da morte para provar o seu valor. “Porque é que despejar informação nos parece tão atraente e necessário?”, escreveu Horn. “Talvez seja o medo da mortalidade. ”A 29 de Março de 2013, Williams publicou um post no blogue intitulado “Pensamentos sobre o meu legado enquanto escritor”, que deixa pistas sobre o seu próprio despejar de informação e um vislumbre da sua tendência para oscilar entre a consciência de si próprio e o seu narcisismo. Dizia detestar a autopromoção e depois virava-se para as redes sociais tornando-se o seu próprio publicitário. Jurava não ser arrogante, mas escrevia: “Como é que vejo o meu trabalho no esquema geral das coisas? Suponho que de duas maneiras: o que deixei para trás e o efeito que terei nos outros. ”Quando recebeu o email de Williams, Horn decidiu contactar a embaixada americana no Japão depois de pensar como “convencê-lo do contrário”. Ligar para a embaixada fê-la sentir-se pequena, diz. Mas foi um passo simples que nem sequer me ocorreu. Na verdade, só quando escrevi sobre esta história é que finalmente lhes liguei. Um responsável do consulado americano disse-me que é frequente americanos morrerem no estrangeiro. Os suicídios acontecem. Há depois um processo. Depois de momentos de desordem e caos pessoal, seguem-se horas e dias de ordem. Não podia confirmar se Williams tinha morrido ou se tinha havido algum suicídio. Quando acordei, na manhã seguinte, voltei a fazer-me a mesma pergunta: “Quem faz uma coisa destas?” Mas desta vez cheguei a uma resposta. Alguém que precisa de ajuda. Censurei-me por ter ido dormir sem ter feito nada. Se Williams tivesse estado à porta de minha casa ameaçando matar-se, eu teria chamado a polícia. Se um membro da minha família ou amigo pedisse ajuda a estranhos, eu gostaria que alguém o ajudasse. A ameaça de suicídio, só por ter chegado num ecrã, não me conferia a hipótese de não intervir. Mandei uma mensagem privada através do Facebook a uma mulher que partilhava o apelido de Williams e que interagiu com ele em alguns dos seus posts no Facebook. Nos comentários parecia amável, respondendo animadamente a actualizações, incluindo fotos dele sozinho em locais cénicos no Japão. Expliquei a situação, desculpei-me pelo conteúdo da minha mensagem e fechei o computador. Durante a noite tinha nevado, a ponto de fechar Washington. Eu e a minha filha de quatro anos fomos para a rua brincar, fazer anjos na neve naquela manhã cinzenta e nevosa. Quando estava deitada, olhei para cima e pensei em Williams. Fechei os olhos na esperança de que não acontecesse o pior. Passaram-se dias até ficar a saber que aconteceu o pior. Foi pela sobrinha de Williams, com quem comuniquei por Facebook. Numa mensagem enviada oito dias depois, agradeceu-me por lhe ter contado do email que ele enviara. O tio, disse ela, tinha-se realmente suicidado, saltando de um prédio horas depois de o enviar. Meses mais tarde, dei esta notícia ao editor literário do Post, Ron Charles, tal como dera a todos os outros receptores do email que contactei para escrever este artigo. Charles tinha aberto a mensagem de manhã quando rondava pela casa de roupão. No meio do monte habitual de emails, a mensagem de Williams chamava a atenção de forma arrepiante. Charles identificou um tipo de desespero, ainda que numa forma particularmente extrema, que vê com regularidade na sua qualidade de “porteiro” daqueles que pretendem tornar-se o próximo fenómeno editorial. Quando meses mais tarde nos encontrámos para conversar sobre o email, confessou que o desespero é uma das razões pelas quais já nem atende o telefone. “Cada vez há mais pessoas desesperadas por atenção a escrever e nós simplesmente já não temos essa atenção para dar”, afirmou. “Independentemente de quão ricos ou educados nos tornamos, só temos 24 horas. E, com toda a gente a promover-se em todas as redes sociais possíveis, todos tão desesperados por sermos lidos com atenção, eu incluído, com todos nós a viver e morrer por um clique na nossa história, este é um exemplo extremo e terrível do que toda a gente sente: ‘Porque é que não estão a olhar para mim?’”É de uma estranheza sem precedentes que na nossa cultura actual praticamente qualquer pessoa consiga publicar um livro. Antes, autopublicar significava reunir fundos para pagar uma vaidade. Cópias baratas chegavam numa caixa e ficavam sem ser compradas durante anos na sala de estar do autor. Agora, a Internet torna a autopublicação quase imediata, com apenas alguns cliques. Há casos excepcionais em que a fama se segue a esses cliques, sendo o mais notável o da E. L. James e As Cinquenta Sombras de Grey, que vendeu mais de 100 milhões de exemplares em todo o mundo. Mas para a maioria dos autores, simplesmente, não há resposta. O próprio Williams, num post, recordou ter ficado ligeiramente destroçado há alguns anos depois de uma pequena editora ter publicado um dos seus livros, The Water Book, e de este não ter recebido qualquer atenção. Talvez os colegas do trabalho e amigos tenham vacilado por causa do preço, disse ele. Numa altura em que os livros se vendiam a 10 dólares, o seu custava 29, 95. Acabou por vender ou dar 60 cópias antes de deixar um caixote com os livros nos degraus de uma livraria durante a noite. “As pessoas que conseguem fazer dinheiro com a venda de livros que auto-editam acabam por criar nas outras expectativas irrealistas”, afirma Charles. “E isso também é incentivado por nós, os media, porque escrevemos histórias sobre os poucos autores famosos que publicaram eles próprios os seus livros e se tornaram best-sellers. ”Como a maior parte dos que receberam o email de Williams, Charles interrogou-se se aquela seria uma piada de mau gosto. “Mas, mesmo que fosse falso, era um penoso grito de ajuda”, comenta. Sem saber que já era tarde demais, reencaminhou-o para a mulher citada na mensagem. No outro extremo, a mulher, Keiko Sato, sabia que era tudo menos um embuste. Sato era ex-mulher de Williams. Durante décadas ouvi-o falar de suicídio, intercalado com o desejo de que a sua escrita fosse conhecida. “Eu sabia que mais cedo ou mais tarde ele o faria”, diz Sato, falando-me por telefone numa tarde a partir da sua casa em São Francisco. Esta professora de Japonês conheceu Williams na década de 1970 quando ele era seu aluno e estavam os dois nos seus 30 anos. Casaram-se e ficaram juntos durante várias décadas antes de, devagar e amistosamente, se afastarem e Williams lhe pedir o divórcio. Recorda o ex-marido como um filósofo, um pensador, um escritor não apenas de palavras mas também de música. Um professor de Inglês popular, com alunos que o adoravam. A família dela no Japão continuou amigável, apesar de poder correr com ele por se ter divorciado. Tinha-lhe sido diagnosticado um cancro na próstata um ano antes de morrer, mas não fez qualquer tenção de se tratar. Cerca de oito meses antes de se suicidar, anunciou no seu blogue que tinha cancro e fez referência a uma conversa com um amigo 25 anos antes. No seu livro digital Love Letter to Japan, diz que essa conversa ocorreu com um primo. “Eu disse-lhe: ‘Quando achar que o meu trabalho está terminado, será uma boa altura para morrer. ’ E agora acho que o meu trabalho está terminado, por isso está na altura de morrer. ”Apesar de Sato ter lido os seus romances — um foi iniciado assim que o anterior estava terminado, recorda — nem sempre os admirava. Num deles, escrito depois do divórcio, havia detalhes terríveis e íntimos sobre a sua vida. “É uma questão de privacidade”, comenta. Testemunhou as décadas de frustração por a sua escrita não ser reconhecida. Recorda-se de já em 1983 ele ter dito que se não tivesse sucesso era bem capaz de se suicidar. Entre 1988 e 1992, quando o casal vivia em Seattle, houve um período particularmente agudo de depressão. Mas nas últimas mensagens que ele lhe enviou, em finais de 2013, Sato ficou surpreendida com a mudança. “Acho que no final ele não estava deprimido”, afirma. “Queria terminar o seu trabalho. Sentia que tinha conseguido o que realmente desejava fazer na vida, ainda que a sua escrita não fosse reconhecida. ”Um amigo de Williams no Facebook deu ecos disso mesmo num comentário na sua página no dia em que ele morreu. “Ontem, ele escreveu um post de que aquele seria o seu último dia na Terra”, escreveu o amigo, referindo-se a Williams pelo seu pseudónimo. “Para muitas pessoas, isto pode ter sido uma crise emocional, mas qualquer pessoa que conhecesse Katry perceberia que isto tinha sido uma coisa pensada durante muito tempo. ” Elogiou-o como um professor excelente e altamente respeitado, bem considerado pelos colegas, um homem com qualidades e uma grande calma, com capacidade de se relacionar com os outros e, o que para Williams seria o mais importante, um escritor. Apesar de Sato e Williams terem mantido contacto por email três ou quatro vezes por ano, há dez anos que ela não o via. Quando recebeu o email suicida, ligou para o hotel onde ele vivia no Japão para que um empregado fosse ver se ele estava bem. Não mencionou a palavra “suicídio”, referiu apenas que estava preocupada com ele. Williams estava bem, afirmou Sato. No dia seguinte, começou a receber uma quantidade anormal de emails de estranhos enviados de vários sítios do mundo — os jornalistas que tinham recebido aquele que era realmente o seu último mail. Na caixa correio electrónico estava uma mensagem do consulado americano dando conta de que Williams tinha morrido, conta. Saltou do telhado do seu hotel. Sato contactou o irmão dele, Albert, na Califórnia. A família não foi buscar as cinzas porque ele tinha deixado uma nota a indicar que queria ficar no Japão. (Albert Williams não quis prestar declarações para este artigo. ) O irmão enviou-lhe alguns dos objectos do ex-marido, que achou que ela gostaria de ter. Será que Sato carrega alguma culpa por este último capítulo da vida de Williams?“Eu não podia impedi-lo de morrer”, diz. “Ele é o tipo de pessoa muito independente e quando decide uma coisa é quase impossível demovê-lo. ”Encontro algum conforto nisto, vindo da mulher que o conhecia melhor do que ninguém. O que ligava Ron Charles, Dara Horn, Paul Farhi e eu era a crença de que poderíamos ter feito alguma coisa. Sato dizia-nos que não teria feito diferença. Dada a diferença horária e a distância, e o seu passo audacioso de enviar emails a jornalistas que não tencionavam sinceramente intervir, parece plausível que a mensagem não fosse um pedido de ajuda, que ele não tivesse qualquer esperança de desencadear uma missão de salvamento internacional. É possível que o que ele realmente queria — o que lhe importava mais do que a própria vida — era que finalmente se falasse da sua escrita. Ao longo da sua vida enquanto escritor, “ele tentou quase de tudo”, conta-me Sato. “Então, esta talvez fosse a sua última esperança. Que alguém reconhecesse que aquela pessoa era um escritor e que valia a pena perceber o que ele tinha para dizer. ”Mas Moutier, da American Foundation for Suicide Prevention, não dá tanto conforto. “O mito é as pessoas acharem que se alguém está mesmo inclinado a matar-se nada a deterá”, afirma. “Mas isto é incorrecto sob vários aspectos. Não diríamos isso sobre outro tipo de doença com consequências fatais. E, em segundo lugar, contraria a prova de que quando as pessoas conseguem ultrapassar este apelo intenso [de morrer], muitas vezes sentem vontades diferentes depois. ”Moutier refere a nossa tendência moderna de partilharmos demais e, ironicamente, nos isolarmos na tecnologia. Falámos sobre o facto de o último apelo de Williams ter sido feito a estranhos. Confessei que fiquei relutante de responder ao email, por medo de correr algum risco ou parecer tonta. É possível que o que ele realmente queria — o que lhe importava mais do que a própria vida — era que finalmente se falasse da sua escrita“Como americanos, temos muito pudor em intervir porque temos medo de nos estarmos a intrometer ou ofender”, diz. “A nossa cultura não ajuda porque nos diz que somos todos ilhas, responsáveis por nós próprios. É um fenómeno esquisito, acho, por causa dos nossos ambientes electrónicos. A condição humana faz de nós criaturas sociais e pedir ajuda assim foi a sua forma de se ligar. ”Não passa despercebido que ao escrever sobre o suicídio de Williams lhe estou a dar aquilo que ele desesperadamente queria. Esta história vai tornar-se agora parte da sua narrativa digital. Provavelmente será lida por muito mais pessoas do que qualquer coisa que ele tenha escrito ao longo dos seus 66 anos. Será dissecada, receberá likes e será partilhada ou deitada para o lixo. Seja como for, esta peça conseguirá uma coisa que Williams queria quando carregou no botão “enviar” do email na manhã em que se suicidou: resposta. Reconhecimento. “Tudo o que escrevi na minha vida escrevi para si”, escreveu ele no último ano de vida numa entrada do blogue intitulada “The end of the road” [O fim da estrada]. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Se acabar por ser como um presente de Natal que não desejamos, peço desculpa. Tentei dar-lhe aquilo que pensava que precisava, não o que queria. ”
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Religiões Budismo Judaísmo
PS no mercado secundário da política: Euforia nos mercados
Mais uma semana atípica na bolsa da política. O PS investiu tudo no mercado secundário, comprando as acções especulativas do PCP e do Bloco de Esquerda. Será um capital seguro para António Costa ou é golpe de Estado e bancarrota certa, como histerizam a PàF e os comentadores. (...)

PS no mercado secundário da política: Euforia nos mercados
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento -0.3
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Mais uma semana atípica na bolsa da política. O PS investiu tudo no mercado secundário, comprando as acções especulativas do PCP e do Bloco de Esquerda. Será um capital seguro para António Costa ou é golpe de Estado e bancarrota certa, como histerizam a PàF e os comentadores.
TEXTO: O meeting mais revolucionário da história do neoliberalismo começou há dias na estátua do touro de bronze de Wall Street, um dos sítios mais encantadores que o dinheiro pode comprar. Porque ali, debaixo do comprido par de cornos, não faltava dinheiro: os corretores da bolsa de valores, as agências de notação, os bancos de investimento sentiam-se tão ricos e de “cofres cheios” como aquele país europeu com 130 por cento do PIB de dívida pública e défice de 7, 2 por cento. De Nova Iorque até à capital desse extraordinário país, Lisboa era uma simples linha recta por cima do Atlântico. Todos os presentes engoliram, na banquinha do passeio, um hot dog e uma coke para selarem um compromisso de proximidade momentânea (a taxa de juro zero) com os seres humanos do mundo que têm mesmo de trabalhar para viver. Alguns até deixaram gorjeta ao dono da banquinha de cachorros-quentes, mister Frank Assis, descendente de portugueses que um dia foram tentar a sorte na terra das oportunidades. Depois, subiram a um arranha-céus tão alto, mas tão alto, que a sala de reuniões era mais secreta do que uma cave de ladrões. O presidente da mesa da histórica reunião foi o ex-presidente do banco Lehman Brothers. A acta Bloomberg da reunião descreve, aliás, um voto de aclamação unânime dos participantes — ao banco — pelo empreendedorismo pioneiro na crise mundial, ao ter sido “o primeiro, em Setembro de 2008, a falir abnegadamente pelo futuro cumprimento do nosso plano, finalmente!, em Outubro de 2015”. Na mesa, como vogais, estavam os representantes das empresas de subprime Fanny Mae e Freddie Mac que, ao serviço do mercado de hipotecas, conseguiram o que se pensava impossível, “arruinar a economia e contaminar o mundo inteiro com uma fantástica bolha imobiliária” e “que pagaram a sua independência com uma inesperada e brutal intervenção do Estado federal americano, que inclusive impôs limites aos salários dos gestores”. Os representantes das agência de notação financeira Standard & Poor’s, Moody’s e Fitch aplaudiram de pé e logo tentaram subir qualquer coisa do lixo para a nota triplo AAA, e descer outras do AAA para lixo, mas a mesa pediu que se refreassem, “com todo o respeito que me merecem três instituições de rating que souberam, como ninguém, inflacionar e atribuir méritos e avaliações estapafúrdias a produtos tóxicos que se estava mesmo a ver no que iam dar, sem prejudicar as indemnizações milionárias aos seus responsáveis, ficando todos nós — e aqui sabemos que nós significa mesmo só nós, os mercados — a ganhar”. Leu-se então o resto da lista de presenças:— Bear Sterns, Washington Mutual Inc. , P. P. Morgan Chase & Company, Insurer American International Group Inc. , Merril Lynch & Co. , Goldman Sachs. . . — Presente!, gritaram todos, alegres como rapazes no basebol. — Proponho ainda um voto de pesar ao nosso irmão Barings, banco-herói desta luta, que pereceu em Inglaterra na maior solidão e injustiça. Paz à sua alma!— Paz à sua alma!Desataram a berrar como corretores depois de tocar o sino do Dow Jones, ali ao lado. — Silêncio! Bom, sabemos por que é que estamos aqui. Meus amigos, quem me ajuda? A luta foi dura e longa, mas valeu a pena, não é verdade?— Sim, termos estado uns tempos a roer ossadas até voltarmos ao bife do lombo. — Termos admitido a entrada de “mecanismos de freios e contrapesos”, ih, ih. — Termos visto o aparecimento da supervisão, blá-blá. — Termos fingido que a crise não chegaria à Europa e rebeubéu, pardais ao ninho. — A Europa ter fingido que estava tudo bem porque o mercado se auto-regulava, bilu-bilu-bilu. — Termos aturado a conversa de que existe um “braço monetário contra a economia real”, hello, duh, claro que existe, LOL. . . — Termos visto milhões de pobres a pagar a austeridade e outros a comprar por tuta e meia empresas privatizadas à pressa!— Terem-nos chamado gananciosos, desleixados, criminosos, incompetentes!— Incompetentes nunca!, guincharam. — Sim, incompetentes nunca, porque nós sabíamos desde o princípio o que estávamos a fazer. A vitória foi difícil mas é nossa!Neste momento fez-se silêncio, como numa escola onde entra um tipo armado. O ex-presidente do Lehman Brothers suspirou:Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. — Fizemos tudo bem. Ele primeiro disse que “não pode substituir-se aos partidos na formação do governo”. E que é fundamental uma “maioria parlamentar estável”. Queridos amigos. Está para breve a conclusão do nosso maravilhoso plano: só para vermos a cara do Presidente da República Portuguesa a dar posse a um governo do PS, Bloco de Esquerda e PCP já valeu a pena termos desencadeado a crise financeira mundial! Aquela cara será impagável. — Ah, ah, ah, ah!!!— A cara do Cavaco Silva vai valer ouro!— Eu dou-lhe um triplo AAA!Nesse momento entraram duas figuras. Pelos vistos, tinham chave em Wall Street. — Mas o que é isto, meus senhores?— Ahhh. . . Pedro Passos Coelho, Paulo Portas. . . ahhh. . . — Foi para isto que fizemos o esforço da PàF, para sermos traídos pelos mercados? Arghhhh, grunf, snif. . . — Dêem-lhes um copo, rápido. Vá lá Pedro, sorri. Isto é tão, mas tão divertido! Com o PS, estamos sempre bem, não percebes? Paulo, por favor, não saltes dessa janela, eu sei que gostas de clássicos dos anos 30, mas é muito alto.
REFERÊNCIAS:
Alexis do Mito Trágico Tsipras: Um protagonista em agonia
Herói, traidor, corajoso, cobarde, digno, vil, charmoso, patético, simpático, tontinho, inteligente, estúpido, calculista, ingénuo, visionário, louco, leão, cordeirinho, vitorioso, derrotado. A lista de atributos de Tsipras vai continuar. Morto ou vivo. (...)

Alexis do Mito Trágico Tsipras: Um protagonista em agonia
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Herói, traidor, corajoso, cobarde, digno, vil, charmoso, patético, simpático, tontinho, inteligente, estúpido, calculista, ingénuo, visionário, louco, leão, cordeirinho, vitorioso, derrotado. A lista de atributos de Tsipras vai continuar. Morto ou vivo.
TEXTO: Das cinzas da União Europeia, ou melhor, da “União Europeia”, quer dizer, da “‘União Europeia’” (esta ““‘União Europeia’”” vai levar com aspas em cima até confessar que não passa de grande mentira), irá nascer o quê? Das cinzas da Europa deverá nascer um novo mito. Ou então não vai nascer. A gente sabe lá, o que é que aconteceu entre o fecho desta página de jornal e os últimos segundos em Atenas, enquanto a lemos? Está lá o divino Parténon em mármore, cá em baixo a lojeca de sandes ainda tem carne no espeto? Em Berlim, continuam a comer-se boas salsichas, senhora Merkel, senhor Schäuble? Os contribuintes alemães continuam a pagar os preguiçosos do Sul? Boa ideia a vossa de pôr a Grécia cinco anos fora do euro. Claro que ideia é contar em anos de Plutão, cada volta ao Sol dura 248, 5 anos terrestres: dá mais tempo de Grécia fora do euro do que um Reich tem mil anos. Esta semana, com a sonda New Horizons, temos fotos nítidas do planetinha gelado nos confins do sistema. Plutão também foi planeta, depois baniram-no uns tempos, mas voltou à “união solar” como planeta-anão. Pagou juros astronómicos, mas conseguiu. Qual é o problema dos gregos?Já agora, porque não pôr antes a Alemanha cinco anos de fora do seu ideal de Vingança sobre povos inteiros? Uma ideia bonita para comemorar os cem anos da I Guerra, os 70 anos do fim da II Guerra e os 15 anos do início do outro desastre, o euro. Alexis Tsipras: o homem que assinou um acordo no qual não acredita porque lhe encostaram “uma faca ao pescoço”. Que, antes, achou boa ideia pôr o povo a responder a questões vitais com um referendo. O protagonista da peça perguntou ao coro o que ele acha da vida, mas veio o deuteragonista (a segunda personagem numa tragédia), a Alemanha, que vingou o atrevimento. A Grécia teve de aceitar uma punição cruel, um acordo recessivo que não tem qualquer hipótese de funcionar económica, financeira e socialmente, como toda a gente sabe. Tsipras, o protagonista, entrou em agonia. Quer dizer “luta suprema”. O momento em que alguém se debate com a morte. Como dizia Sófocles, que inventou o teatro com duas personagens em palco: “Porque o tempo do ser vivo é breve, mas sob a terra o morto escondido vive um tempo eterno. ” Também disse, em antecipação do sonho da Europa Unida: “Nenhuma mentira envelhece no tempo”. Em resumo, os grandes mistérios da ““““‘União Europeia’”””” e das suas “maratonas negociais” serão estudados, nos milénios futuros, como hoje estudamos os mitos gregos. São contos confusos mas graves. E por falar nisso: está um bocado farto de comparações entre as histórias da Grécia Antiga e a realidade contemporânea, não está? É que já não se pode, pois não? Tsipras seria um astuto Ulisses que imaginou o cavalo de Tróia mas a coisa correu mal e não sei quê, conversas que já deram o que tinham a dar, vamos parar com estas secas, não é? Claro que sim. Bom, só mais algumas, que isto tem a sua graça. Advertência de cinema e série de televisão: qualquer semelhança entre as personagens e factos dos mitos e o senhor Tsipras e o senhor Schäuble são meras coincidências. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. : o rei da Frígia (noutras versões, da Syrizia) resolveu testar a omnisciência dos deuses e roubou os manjares divinos, como o néctar e ambrosia, que dão a imortalidade. Depois, ofereceu um festim em que lhes deu a comer o seu filho Pélope Varoufakis, com quem se incompatibilizara. Quando Schäuble, ai, quando Zeus se apercebeu disto, Tântalo foi lançado ao Tártaro, que é mau para os dentes e para as máquinas de lavar Siemens e Bosch. Doido de fome e de sede, com os bancos fechados há semanas, o rei desafiador viveu para sempre em suplício, mergulhado em água até ao pescoço (no sítio em que se espetam as facas). Quando baixava a cabeça para beber, a água escoava-se, quando estendia os braços para os frutos em cima (da política agrícola comum), estes afastavam-se com o vento. Em suma, algo aparentemente tão próximo é inalcançável. Tão perto e tão longe. Mais do que uma tragédia, uma chatice. : o titã astuto e inteligente, farto de ver um Zeus rancoroso em cadeira de rodas a tratar mal os homens, devolveu o fogo à humanidade. Isto é, o conhecimento, as artes, a vontade de viver, a possibilidade de não estar condenado a pagar dívidas e gorduras de boi aos bancos toda a vida. Criou com isto maus fígados aos alemães, que reuniram 18 deusinhos em Bruxelas e o condenaram a ficar preso a uma rocha. Todas as manhãs uma águia vem comer o fígado de Prometeu (o nome quer dizer Antevisão, mas anteviu mal), e todas noites o órgão lhe renasce a uma taxa que vai para os 15 por cento nas maturidades mais longas. Ou mais, ou mais, depende da reacção das bolsas. : o mais astuto dos mortais conseguia sempre enganar a Morte e Merkel, até que um dia foi posto a carregar uma pedra monte acima e, chegado ao cume, sem qualquer explicação dos credores e investidores, a pedra rola sempre por ali abaixo, quase arrastando Varoufakis, que felizmente tem a mota ligada. Significa todos aqueles esforços infinitos que não levam a lado nenhum, isto é, a dívida da Europa do Sul à “““““‘União Europeia’”””””.
REFERÊNCIAS:
À volta da mesa todos somos críticos
Chamam-se foodies e reúnem-se online na Zomato, a plataforma que criou uma comunidade em torno de restaurantes e comida. (...)

À volta da mesa todos somos críticos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Chamam-se foodies e reúnem-se online na Zomato, a plataforma que criou uma comunidade em torno de restaurantes e comida.
TEXTO: Há pouco menos de um ano, Rita da Nova procurava no Google informações sobre a sala de refeições da Mesquita de Lisboa. Queria ver o menu e ter noção de quanto podia custar uma refeição. Ia na quinta página de resultados e isso significava já pouca esperança de encontrar informações como menu, preços, se tinham ou não. Mas na descrença da quinta página do Google encontrou numa das entradas um nome que nunca tinha visto: Zomato. Registou-se logo, tinha a empresa acabado de arrancar em Portugal, a 9 de Abril do ano passado, para cobrir a área da grande Lisboa, do centro a Torres Vedras, Oeiras ou Loures. Rita, de 23 anos, entrava numa rede social a que se adere como a qualquer outra e onde há informações sobre ementas, horários de funcionamento, contactos. Aí avaliam-se restaurantes de 1 a 5, escrevem-se críticas, mas também se partilham fotografias dos pratos, comentam-se as opiniões de outros utilizadores, seguem-se outras pessoas e somam-se seguidores. “Ainda não havia muita gente registada e a minha tendência foi fazer reviews de todos os sítios onde já tinha estado. Acaba por ser uma competição connosco próprios: em quantos sítios já estive?”, lembra Rita desses primeiros tempos de Zomato. “Há uma altura em que te fartas um bocadinho e depois se calhar voltas a estar uma noite inteira a escrever. Depois olhava para o relógio e pensava ‘espera lá, isto é um disparate, estou a perder a minha noite nisto’. ”Entretanto moderou-se, passou-lhe a febre inicial. “Eu não levo isto assim tão a sério. . . não faço ideia de quantas reviews escrevi, não faço ideia de quantas fotos tenho, nem quantos seguidores. ” Tem 132 opiniões sobre restaurantes, 563 fotografias e 650 seguidores. Estes números fazem dela uma das mais assíduas utilizadoras da Zomato Portugal e uma super foodie de nível 10 — os utilizadores têm pontos segundo o número de reviews escritas e de fotos adicionadas. “Faço-o pela experiência da escrita — escrevo muito e em várias frentes. Alio duas coisas de que gosto: ir a restaurantes e escrever”, explica. “É o meu gosto por partilhar histórias: vou, tenho uma experiência e depois conto-a. ”Nos utilizadores mais acérrimos há em comum a ideia da experiência: não é só a comida, é tudo o que está a acontecer em torno dela e que está a proporcionar um momento. É esse momento que se procura hoje em dia, quando se sai para jantar fora, explica Miguel Ribeiro, director da Zomato Portugal. E, no entanto, a génese da empresa não tem nada que ver com a ideia da vivência do restaurante. Em 2008, em Deli, na Índia, Deepinder Goyal e Pankaj Chaddah, dois jovens consultores, trabalhavam num quinto andar, numa cidade onde o hábito é o de encomendar refeições para serem entregues no escritório. Eram demasiado preguiçosos para se meterem no elevador, chegarem ao rés-do-chão e olharem para as ementas de uma cafetaria que havia naquele mesmo prédio. Depois a comida ser-lhes-ia entregue na secretária, mas ideal era mesmo que nem precisassem de sair da cadeira para fazer o pedido. Com um pequeno esforço acabariam com esta trabalheira do sobe e desce: digitalizaram os menus da cafetaria e colocaram-nos na intranet da empresa. Agora era só ligar e pedir. Todo o escritório começou a usar. Ao fim-de-semana davam umas voltas pela zona e recolhiam mais menus para juntar à tal pasta. Quando outras empresas mostraram interesse em ter acesso às ementas, os dois viram a oportunidade de negócio. Conseguiram um investimento de 1 milhão de dólares, abriram a Zomato, nessa altura apenas uma plataforma de acesso a menus de restaurantes com informações sobre serviços de entrega e take away. A história da rede social que lhe está associada vem mais tarde, em 2013, no mesmo ano em que a Zomato chegou a Portugal (mas só começou no activo em 2014), um país sem a cultura da entrega de refeições no local de trabalho, mas onde tudo o que é importante se passa à mesa, diz Miguel Ribeiro. “Portugal é um país bastante app savvy: tudo o que sejam novas tecnologias, plataformas, aplicações, nós queremos conhecer, testamos e usamos com alguma frequência. Uma aplicação deste tipo veio em bom momento: depois da crise, as pessoas estão a querer sair cada vez mais, e quando saem querem ter uma experiência como deve ser. ”Em Setembro de 2013, a Zomato recebeu um investimento de 37 milhões de dólares da Sequoia Capital para se expandir e instalou-se em Portugal. Foi a oportunidade para desenvolver uma plataforma que, para além de reunir informação, quer motivar a comunicação entre os utilizadores: surgiu o “feed de foodies, um facebook para apaixonados pela comida”, descreve Miguel Ribeiro. Passou a ser possível ver onde andam a comer os utilizadores que fazem o check in em determinado sítio, ver as fotografias do que comeram ou da vista que se tem da mesa onde se sentaram, comentar as reviews, conhecer pessoas. Esta nova forma de usar a Zomato foi estreada internacionalmente, ao mesmo tempo que se lançou a plataforma portuguesa. “Isto mudou tudo: em todo o mundo, passámos de 300 mil visualizações por dia para 1 milhão, no espaço de um mês e meio”, conta o director. Por mês, a Zomato tem 80 milhões de visitas, a nível global. Depois de chegar nesta versão mais avançada à área da grande Lisboa, a plataforma começou a alterar-se com a equipa portuguesa, inicialmente de 15 pessoas, hoje de 33: reforçou as componentes de rede social — fotografias, check in — e fez nascer funcionalidades como as colecções: listas organizadas pela equipa de conteúdos e que reúnem para rápido acesso os estabelecimentos com wi-fi, ou com sumos detox, e uns quantos com comida fora de horas. Os temas das listas mudam ao longo do ano e à medida que os utilizadores fazem sugestões — em Maio, por exemplo, criaram a colecção dos melhores sítios com caracóis. Há ainda duas listas em constante actualização e que fazem parte da rotina dos utilizadores mais frequentes: os restaurantes do momento e o que há de novo na cidade. Até que cada nova ideia para o produto português (integradas mais tarde nas plataformas de outras cidades) chegue aos ecrãs dos computadores e smartphones, é preciso um intenso debate entre Miguel Ribeiro e os directores indianos. A ideia das colecções, por exemplo, surgiu de um pequeno pormenor que o português se lembrou de alterar. “A barra de pesquisa dizia ‘pesquisa’ e eu achava que as pessoas não sabiam o que escrever ali, então mudei para ‘apetece-me’. ”Neste momento, Miguel Ribeiro estica um pouco mais a corda com o Zomato. XXX — Food Porn, uma área onde se reúnem as melhores fotografias dos utilizadores. A princípio os responsáveis indianos não ficaram muito confortáveis com a palavra porn: “Na Índia eles são diferentes. . . isto ainda não está como eu quero”, diz Miguel, que vai continuar a insistir. Mafalda Beirão, de 25 anos, já escrevia no seu blogue sobre os restaurantes onde ia antes de aparecer a Zomato e foi por isso que conheceu a equipa: convidaram-na a visitar as instalações. Copiou para a aplicação as reviews que tinha feito no blogue Um Malmequer, iniciado em 2008, e é a par da sua página pessoal que continua a usar a plataforma, embora escreva por vezes críticas mais pequenas só para a Zomato. Convidar bloggers para conhecer as instalações foi a maneira de fazer circular o nome Zomato pela Internet. Depois chamaram-se os utilizadores mais assíduos, como continuam a fazer, um ano depois. Todas as semanas há algum desconhecido que entra pelas salas amplas onde uma equipa muito jovem, com uma média de 25 anos, actualiza as informações sobre os restaurantes, faz listas, segue de perto os foodies. Todos à volta de uma grande mesa dizem olá a quem entrar, em modo descontraído. É bem possível que se chegue na altura em que se ouvem músicas dos Santamaria ou de qualquer outra portuguesa dos anos 2000. “Ao princípio podia parecer esquisito chamar alguém para nos vir conhecer ou beber um café — tínhamos de ir sempre dois, para não parecer nada de esquisito. Começámos com bloggers, tirávamos fotografias, partilhávamos e isto tornou-se tendência: outros utilizadores também queriam vir tirar uma fotografia com o staff”, conta Miguel. Os grandes utilizadores, heavy users, começaram também a ser convidados e, neste momento, a lógica que Miguel Ribeiro quer instalar é a de um escritório aberto a qualquer pessoa que queira tocar à campainha, conhecer a casa e dar sugestões. “Isto não é assim nos outros países, mas vai começar a ser”, diz sobre esta proximidade com os utilizadores que a equipa portuguesa cunhou e que faz com que qualquer foodie mais ávido saiba dizer o nome de dois ou três membros da equipa e já tenha sido convidado para meet ups, os jantares que reúnem foodies, donos de restaurantes, chefs e equipa. Esta lógica de contacto directo com o utilizador está na base do case study que a Zomato Portugal é dentro da Zomato internacional, diz o director. “Nas entrevistas da altura do lançamento, o CEO dizia que no primeiro ano íamos chegar a meio milhão de visualizações [em Lisboa] e eu dizia-lhe: ‘Estás a passar-te. Isto é Lisboa, não é Deli. ’ Afinal estávamos os dois a passar-nos. Atingimos um milhão de visualizações em Lisboa e estamos a passar dos 150 mil utilizadores. ”Agora a Zomato internacional já não vive sem a portuguesa, pelo menos no que toca à Europa: sempre que é preciso lançar a plataforma noutro país, há uns quantos membros da equipa portuguesa que se põem a caminho. “O primeiro país com um director local foi Portugal, quando fui contratado. Começámos com equipa 100% nacional e alguma ajuda da Índia. Isto resultou muito bem. Empacotámos este processo e agora levamos para os outros países. ” Esta estratégia, explica, permite perceber melhor, desde o início, os hábitos dos utilizadores à mesa: na Índia criam-se menus para toda a vida, mas em Lisboa há o prato do dia que requer uma actualização constante das informações; além disto, nenhum indiano adivinharia que no Verão é imperativa uma lista dos melhores sítios para comer caracóis. Mafalda Beirão usa a aplicação principalmente quando quer ter o blogue actualizado com os sítios mais trendy, ou quando procura algum sítio novo para jantar. Não usa muito o lado de rede social, não segue muita gente e não cultiva o hábito de ler críticas para passar o tempo. O gosto pela comida não é uma coisa antiga. “Nunca fui de gostar de comer. Tenho vindo a aprender e tem ajudado esta moda e boom de restaurantes que temos tido. Incentiva-me a querer conhecer sítios diferentes”, conta e explica que foi o facto de ver outros bloggers a escrever sobre restaurantes que a levou a fazer o mesmo. “Não gosto de ir com a obrigação de ser supercrítica e atenta a tudo porque depois vou escrever”, afirma. “Sou bastante benevolente. Custa-me sempre atribuir a pontuação. Mas gosto de ser muito específica porque quando eu procuro restaurantes não gosto de ler críticas de duas linhas: ‘Não gostei, a comida estava fria. ’ Não é o suficiente. Às vezes até sou exaustiva porque gosto de partilhar a experiência toda”, explica a super foodie de nível 9, especialista nos restaurantes do Saldanha. A partilha da experiência é aquilo de que todos os foodies estão à procura. Mas o que é a experiência? Pedro Mota, consultor de tecnologia, 25 anos, responde que tem que ver com “o facto de vivermos na sociedade do espectáculo: quando vamos a um concerto, não queremos só ouvir a música, queremos ver o espectáculo. Quando comes um prato, não são só os ingredientes, é o restaurante, a maneira como és recebido, o tipo de pessoas que estão à tua volta — estar num restaurante a comer uma coisa deliciosa e ter alguém a dizer asneiras atrás é a pior coisa que pode acontecer”. Procura não ser destruidor: “Tento deixar uma crítica construtiva. Mas às vezes é difícil e ficas mesmo zangado com o que pagas. Há sítios em que a relação qualidade/preço justifica que faças uma crítica mais agressiva. Há aqueles que te servem uma bolinha de carne pequenininha e cobram pela vaca inteira e sais de lá mesmo irritado. ”Pedro Mota abre a página da Zomato logo de manhã, assim que chega ao trabalho, tal como abre o email ou o Facebook. Dá por si a ler reviews: para descobrir lugares e adicioná-los à lista dos que quer conhecer — uma funcionalidade que a plataforma também tem —, porque quer planear o fim-de-semana, ou porque gostou do estilo que outro foodie, que na maioria das vezes não conhece de lado nenhum, usou na escrita. “Deve haver umas três pessoas que conheço na Zomato. Há uma data de pessoas que sigo e me seguem, mas que não conheço: tem-se liberdade de interacção”, explica, lembrando que esta não é uma rede social de contacto, como o Facebook, que usamos para estar perto de amigos. É uma rede de comunidade, onde as pessoas se conhecem e juntam em torno de uma mesma afinidade. “Eu sempre gostei de cozinhar, de comer e portanto para mim é natural. E é quase como ser um bom cidadão”, brinca. Algumas vezes os restaurantes respondem às críticas, geralmente com simpatia, diz Mafalda Beirão. É este feedback que os vai fazer melhorar o negócio, explica Miguel Ribeiro. Para já, o plano da Zomato é continuar a ganhar tráfego e a catalogar exaustivamente o distrito de Lisboa — têm agora 87% da zona coberta. Vendem já publicidade dentro do site a alguns restaurantes e têm um serviço de consultoria para clientes — cerca de cem. Cada um ganha um painel de controlo online na página da Zomato para que o gerente acompanhe o impacto da rede no seu negócio: o número exacto e a média de pessoas que visita a sua página na Zomato ou oportunidade de resposta a todas as opiniões dos foodies. Alexandra Gameiro, dona do restaurante Volver by Chakall, no Lumiar, foi a primeira a estabelecer parceria com a Zomato, em Junho, porque confiou no projecto. “É uma maneira de estar a par do que se passa no mercado e de afinar pormenores”, diz. “Não consigo apontar uma alteração profunda que tenha feito por causa das opiniões dos utilizadores, mas há detalhes, chamadas de atenção pontuais que para mim são importantes. Por exemplo, se mais que uma pessoa refere que há pouca iluminação, se calhar tenho de repensar isso. ”A Zomato ajudou também a que um público mais jovem conhecesse o restaurante, diz Alexandra Gameiro, e acrescenta que foi por causa da aplicação que alguns dos clientes encontram o restaurante. “Não temos a porta aberta numa rua de passagem, numa zona turística ou de escritórios. Quem vem cá tem de saber onde estou e ao que vem. ” Quando pergunta aos que vê chegar pela primeira vez como descobriram o Volver, ouve com cada vez mais frequência: Zomato. Nos restaurantes Moules também se sente que há quem venha “porque ficou curioso com as fotografias do Zomato, com o banner de publicidade que está sempre a mudar, ou por causa das críticas”, explica Filipa Seabra, que valoriza a proximidade com a plataforma. Dos três restaurantes do grupo Moules, dois já receberam encontros e foodies: “Sentamo-nos à mesa com eles e é um momento de lazer, mas também de trabalho em que as pessoas aproveitam para fazer perguntas. Vamos explicando como surgiu o conceito, as receitas, porque abrimos mais restaurantes. No fundo, é uma acção de charme. É uma maneira de estarmos disponíveis para esclarecer e mostrar o que oferecemos. São encontros altamente produtivos e rentáveis”, explica Filipa. Para criar mais feedback e para dar a conhecer o seu negócio, há restaurantes que oferecem convites que a Zomato distribui pelos seus heavy users, “aqueles que sabemos que vão dar a sua opinião clara e sincera”, explica Miguel Ribeiro. Mafalda Beirão já se sentiu muito bem tratada em situações em que levava o convite da Zomato na mão, mas também já foi despachada. “Acho que acabo por ser mais crítica. À partida já sabem que dali pode sair uma review. Mas não exagero, escrevo o que aconteceu. Mesmo quando me tratam pior ou melhor, nunca sei até que ponto aquilo não é mesmo o atendimento deles, em vez de uma consequência de eu ter convite. ”Para Rita da Nova, o tratamento fica logo “completamente diferente: sou tratada nas palminhas”. Por isso gostou que um dos restaurantes tivesse pedido que não dissesse que ia pela Zomato ao fazer a marcação. Queriam testar o serviço. O Volver recebe convidados da Zomato no seu restaurante. Esta é mais uma forma de Alexandra desmistificar ideias feitas sobre um restaurante que tem um chef famoso. “O Chakall é uma pessoa carismática e há quem goste e quem odeie. O convite é uma maneira de conhecerem outro lado do Chakall”, diz Alexandra que atingiu a pontuação de 4, 9 em 5 na Zomato e sente a pressão de a manter. Paulo Duarte Silva, de 41 anos, diz que quando é convidado tem “a preocupação de estar mais atento a outras coisas para tentar ser justo na avaliação, o que não invalida que seja igualmente crítico”. Antes da Zomato, na lista de contactos do seu telemóvel havia uns 100 números de restaurantes. O facto de a página da aplicação dar, em poucos cliques, acesso ao mapa e à marcação do telefone do restaurante foi uma das razões para ficar “instantaneamente fã”. Hoje, menos de um ano depois, “não há nada que funcione mal na aplicação, mas há áreas a melhorar, por exemplo a área do gamification [estímulos aos utilizadores para que não parem de usar a aplicação ou para que usem cada vez mais]. As pessoas que gostam mais desta componente de jogo são mais levadas por ela. Mas se as coisas não forem bem feitas, acabamos por afastar outros que não respondem tanto a estes incentivos”. Paulo fala especialmente da subida de níveis como encorajamento a que se escrevam mais críticas. Foi isso que o fez, ao início, relembrar boa parte dos sítios onde já tinha estado e escrever sobre eles. “Normalmente não sou um produtor de conteúdo nas redes sociais, como entrei tão cedo achei piada ao facto de ainda haver poucos utilizadores e reviews. Comecei a colocar a minha opinião e rapidamente percebi que estava a escalar no ranking dos utilizadores com mais reviews [este top desapareceu, entretanto]. Cheguei a estar nos 20 primeiros, que era o meu objectivo. ”“Antigamente, o gastrónomo tinha aquela imagem erudita, quase snob. As pessoas estão a aprender a escrever: vejo como os outros escrevem, consigo adaptar a minha linguagem a isso e vou evoluindo”, observa Miguel Ribeiro. “Nesta fase temos pessoas que escrevem extremamente bem, outras que estão a aprender e outras que escrevem pessimamente, mas que põem ali o coração. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Numa plataforma onde restaurantes de topo e espaços da moda convivem com cafés de bairro de balcão de alumínio, fala-se de tascos com toda a legitimidade e de como também estes sítios podem oferecer “a experiência”. Rita, Pedro, Mafalda e Paulo concordam: o que interessa é a relação entre espaço e o preço que se está a pagar. “Quando se vai a um tasco, vai-se mentalizado para um tasco”, resume Pedro. Nas suas reviews, Rita pode começar na situação que a levou ao restaurante e acabar nos pontos de cozedura: “É que é preciso ter cuidado quando aquilo que se serve é proteína fumada, já que haverá sempre um ponto de confecção ideal que não deve ser ultrapassado, sob pena de se estragar tudo”, lê-se numa das opiniões da foodie que se apresenta como “nazi no que toca ao atendimento”. “A comida até pode ser uma porcaria, o sítio até pode ser o maior tasco à face da terra, mas se as pessoas forem simpáticas, chegarem com um sorriso e estiverem felizes a atender, sou toda deles e volto as vezes que forem necessárias. ” Rita desvenda o segredo assim.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave cultura ajuda carne comunidade social vaca
Açúcar. O grande vilão
Entrou para a lista negra dos maus alimentos mas foi o consumo excessivo que fez dele o mau da fita. (...)

Açúcar. O grande vilão
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.8
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Entrou para a lista negra dos maus alimentos mas foi o consumo excessivo que fez dele o mau da fita.
TEXTO: Está há séculos na despensa, mas, de repente, passou a ser alvo de perseguição. Chamaram-lhe vilão, compararam-no a uma droga, culparam-no pelo aumento da obesidade, da diabetes, das doenças cardiovasculares, das cáries que assaltam os dentes das crianças. Colocaram-lhe um imposto, em países como a Finlândia e França, ameaçaram fazer o mesmo em Portugal. O açúcar, que transforma refeições sem interesse em iguarias, actor principal de sobremesas, passou a estar na lista negra dos alimentos. Multiplicam-se os estudos, as teorias, a literatura. Os consumidores preocupam-se, a gigante indústria alimentar segue-lhe os passos e procura alternativas para adoçar a comida e manter as vendas. Na verdade, a culpa não é dele. É dos excessos. Do consumo desenfreado e camuflado através de refrigerantes, molhos processados, pão, salsichas, comida para bebés, um sem-número de produtos já preparados que usam esta matéria-prima para dar sabor e prolongar o prazo de validade. O mundo engordou, foi longe de mais. Há, por isso, cada vez mais pessoas a tentar colocar um ponto final nesta relação de longa data. Eve O. Schaub, escritora americana, embarcou num desafio com a família (marido e duas filhas) e decidiu não consumir açúcar durante um ano. A experiência, relatada no livro Year with no sugar, terminou numa noite de Ano Novo. “Claro que ficámos à espera da meia-noite e comemos um doce quando o relógio deu as 12 badaladas, mas na verdade foi… anticlímax! Não gostámos assim tanto. De facto, percebemos ao longo do tempo que perdemos a nossa apetência por sobremesas cheias de açúcar. E quando queríamos comer um doce preferíamos algo mais subtil como um sorvete de fruta”, conta por email à Revista 2. A maior descoberta que a família de Eve fez foi ter consciência da presença maciça de açúcar na comida que consumia todos os dias. “Está em três quartos dos produtos do nosso supermercado local [em Pawlet Vermont] e consumimos quase metade do açúcar em alimentos que não são tão óbvios como os refrigerantes ou as bolachas. Funciona para realçar sabor, preserva e é barato, por isso, encontramo-lo em molhos para saladas, caldo de legumes, manteiga de amendoim, maionese. A lista continua — não há quase nada em que a indústria alimentar não ponha açúcar. E contabilizámos quase 54 tipos diferentes, desde xarope de milho a sumo de uva orgânico evaporado”, descreve. “De repente, estamos a comer a sobremesa ainda antes de chegar ao final da refeição. ”Eve inspirou-se no endocrinologista Robert Lustig para fazer a experiência e o discurso do médico americano, que se dedica há duas décadas a tratar crianças obesas, não é meigo. O açúcar é um veneno. “[No caso do tabaco] demorou muito tempo, mas as indústrias não podem envenenar pessoas em massa para sempre”, disse, numa entrevista ao britânico The Guardian. “Temos de fazer algo quanto a isso ou não haverá cuidados de saúde. De facto, não haverá sociedade”, sentencia. O mesmo discurso tem Jamie Oliver, chef reconhecido pelas suas campanhas por uma alimentação saudável nas escolas britânicas. “O açúcar é definitivamente o próximo perigo. É o próximo tabaco. E a indústria deve ser taxada tal como a do tabaco ou qualquer outra que possa destruir vidas”, disse recentemente, citado pelo Daily Mail. 40% é quanto se estima que dispare a procura mundial de açúcar até 2023 devido ao aumento do consumo na China e em África. Os números dão que pensar. O consumo diário de frutose — açúcar que se encontra naturalmente na fruta e em alguns legumes mas cujo consumo excessivo é perigoso, já que é convertido em gordura pelo fígado — duplicou nos últimos 30 anos em países como o Reino Unido, Estados Unidos ou Índia. Estima-se que a procura mundial de açúcar dispare 40% até 2023 devido ao aumento do consumo na China e em África. Por cá, segundo o INE, cada português come 30, 3 quilos por ano, o valor mais baixo desde 2008/2009 (34 quilos). Índia, União Europeia, China, Brasil e EUA são os maiores consumidores mundiais desta matéria-prima, cuja procura tem crescido mais de 2% ao ano. “Não é um alimento necessário, dá-nos energia e rigorosamente mais nada. O que sabemos é que há uma franja da população que o ingere para lá do que é aceitável. E a fonte de açúcar que mais nos preocupa são as bebidas: sumos, refrigerantes, néctares, chás gelados. Há crianças que bebem mais do que uma lata por dia”, diz Nuno Borges, nutricionista da direcção da Associação Portuguesa dos Nutricionistas. Maria Paes de Vasconcelos, também nutricionista, recorda que o açúcar faz parte da gastronomia há muitos séculos (os indianos foram os primeiros a extrair o suco da cana por volta de 500 a. C. ) e, por isso, não faz sentido bani-lo por completo. “É útil no adoçar de alguns alimentos que, pelo seu sabor ácido ou amargo, podem ajudar quem quer consumi-los”, como o iogurte e alguns citrinos, café ou legumes. Numa alimentação saudável, “faz todo o sentido incluir o açúcar em dias especiais e também nos dias normais se se usar com parcimónia: não se fica viciado por se beber café ou comer iogurte apenas com açúcar!”, continua a nutricionista. As recomendações quanto à quantidade de açúcar que devemos ingerir por dia não são claras porque “falam em açúcares simples totais, que incluem os do leite e da fruta”, descreve Maria Paes de Vasconcelos. A Organização Mundial de Saúde recomenda que o consumo não ultrapasse 10% das calorias ingeridas por dia, idealmente menos de 5%, “o que equivaleria a 25 gramas de açúcar para um adulto saudável — quatro pacotinhos de seis gramas”. “O melhor é usar o mínimo”, acrescenta. Uma coisa é certa: as calorias que provêm dos açúcares são designadas por calorias “vazias” e com pouco interesse nutricional. Não precisamos deste ingrediente, mas alguém com um peso normal e uma vida saudável pode consumi-lo de forma equilibrada. Ainda assim, as novas tendências de comida saudável têm trazido cada vez mais alternativas, supostamente naturais e menos processadas. Do xarope de ácer ou de milho, passando pela geleia de arroz. Filipa Range, que criou a Cozinha Verde, empresa de comida vegetariana, acrescenta bananas maduras, tâmaras biológicas ou açúcar de coco à lista de ingredientes que usa na confecção de bolos e sobremesas. Procura alimentos mais naturais desde que há dois anos mudou a sua dieta alimentar. “No início comia tudo desde que não fosse de origem animal. Mas à medida que ia comendo mais fruta e legumes comecei a sentir menos necessidade de comer coisas processadas e refinadas. Foram pequenos hábitos que deixei, como bolos de pastelaria, por exemplo. Passei a fazer eu as sobremesas e a sentir-me mais saudável”, conta. Em termos nutricionais, diz Nuno Borges, xaropes de arroz, milho ou agave são outras formas de consumir açúcar. “Trocá-lo por mel não tem vantagem nenhuma. São outros açúcares, não são adoçantes artificiais”, esclarece. Nesta última categoria, entram o aspartame ou o acessulfame K que, refere Maria Paes Vasconcelos, “são muito seguros” para quem quer reduzir os açúcares da alimentação. Na lista dos adoçantes artificiais entra a stevia, que a indústria de bebidas tem usado cada vez mais para substituir o açúcar. Contudo, a opinião sobre os adoçantes não é consensual. Albino Oliveira-Maia, que dirige a Unidade de Neuropsiquiatria do Centro Clínico Champalimaud, adianta que “começa a haver evidência de que essas substâncias não são inócuas”. “Mecanismos não totalmente conhecidos podem passar por efeitos na flora intestinal e mesmo os adoçantes artificiais poderão ter um efeito nocivo para a saúde”, aponta. Filipa Range não os usa. Prefere as geleias ou a fruta e sublinha que o que está em causa é a redução das quantidades, ao ponto de hoje já não lhe saber bem comer um bolo demasiado doce. “Já não tenho tanta necessidade. Sei bem o que é precisar de comer qualquer coisa com açúcar, antes não tinha atenção. Quanto mais comemos, mais vontade temos de comer”, ilustra. A jornalista brasileira Cláudia Pas Bjorgum, autora do blogue Sabor Saudade e a viver em Trondheim, na Noruega, relata a mesma experiência. “A sensação de bem-estar de viver sem açúcar foi instantânea e ainda que seja difícil deixar de comer, com o tempo o paladar se ajusta e passamos a não gostar mais do sabor doce, passa a ser enjoativo”, conta, numa entrevista à Revista 2 por email. Cláudia, que está a fazer doutoramento sobre agricultura biológica, teve hipertiroidismo, uma doença auto-imune que só conseguiu controlar depois de deixar de consumir açúcar. Continuou a comer fruta, mas em menor quantidade, e sentiu melhorias “instantâneas”. Encontrar alternativas é difícil porque “nada se compara ao açúcar”. “É muito versátil, dá vida a tudo na cozinha, molhos, carnes e doces, por isso a busca por alternativas é ingrata. Depois de alguns fracassos, desisti do processo. E hoje a única alternativa que uso é stevia em gotas para adoçar uma série de cremes, chantilly, pudins, iogurtes e gelatinas”, conta. Cláudia não recomenda o uso de xaropes naturais (ricos em frutose) e olha para a questão de uma forma prática. “Sinceramente, acho um disparate procurar alternativas. A busca por substitutos acaba alimentando o vício do doce e o que queremos é reordenar o paladar e deixar de gostar de doce. O melhor é comer uma fruta e se contentar”, diz, acrescentando que cada pessoa deve encontrar “o seu próprio caminho”. “Hoje, se quero um doce, como um doce de verdade, mato a vontade e depois policio-me. Mas a verdade é que já não consigo mais comer muito doce. Uma mordida num chocolate já me alivia por um bom tempo. ”Com ou sem excesso de peso, a “restrição ao consumo é difícil de uma forma transversal”. E é no cérebro que tudo se passa. “O açúcar é bom e temos tendência a repetir as coisas de que gostamos. Há determinados neurotransmissores e áreas cerebrais que parecem estar envolvidas no reconhecimento de algo que para nós é agradável. São designadas ‘zonas ou substâncias do prazer’. E há um destes neurotransmissores que tem sido mais estudado: a dopamina”, explica Oliveira-Maia. O consumo de álcool, heroína e cocaína aumenta a concentração de dopamina no cérebro e o mesmo se passa com o açúcar. “Os comportamentos são diferentes, mas têm aspectos em comum, no seu efeito no sistema nervoso central”, continua. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Acho um disparate procurar alternativas. A busca por substitutos acaba alimentando o vício do doce e o que queremos é reordenar o paladar e deixar de gostar de doce. O melhor é comer uma fruta e se contentar. ”O especialista lembra que já houve alturas em que a cocaína e substâncias semelhantes eram usadas legalmente em produtos comuns para estimular o consumo (como nos refrigerantes) e hoje o seu uso é ilegal. “O açúcar é um motivador bestial. É muito fácil para qualquer pai cair na tentação de o utilizar como forma de motivar o filho a fazer determinada tarefa. O sal e a gordura também podem ter esse estímulo. E o estímulo mais forte para motivar comportamentos são alimentos ricos nestas substâncias como um bolo ou batatas fritas”, exemplifica. Albino Maia acredita por isso que, mais cedo ou mais tarde, a regulamentação mais apertada vai chegar, mas não a proibição total. Na casa de Eve, comer doces passou a ser uma excepção, tal como beber um copo de vinho. As crianças, de seis e onze anos, não tiveram margem para recusar o fim das guloseimas em casa, mas podiam comer em festas de anos desde que, depois, contassem à mãe. “Quando lhes falei do projecto, começaram as duas a chorar. Esse foi o dia mais difícil de toda esta experiência. Mas passei a fazer-lhes os lanches para a escola e quando alguém lhes oferecia doces sem estarem na nossa presença dei-lhes liberdade para escolherem. Sem culpa, nem repercussões. A única condição era dizerem-me. Por vezes, e para espanto meu, elas decidiam mesmo não aceitar os doces”, conta.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
O almoço está cru!
Germinados, desidratados, leite de amêndoa, queijo de caju, pizzas, bolonhesa — comer tudo cru não significa comer apenas saladas de tomate e alface. (...)

O almoço está cru!
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento -0.28
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Germinados, desidratados, leite de amêndoa, queijo de caju, pizzas, bolonhesa — comer tudo cru não significa comer apenas saladas de tomate e alface.
TEXTO: A luz dentro do restaurante Bem-Me-Quer, na Av. Almirante Reis, em Lisboa, não é suficiente para uma boa fotografia, por isso é preciso levar os pratos lá para fora. Mas, por uma vez, não há o risco de a comida arrefecer enquanto o fotógrafo procura o melhor ângulo. Podemos esperar calmamente. É que o almoço, preparado por Márcia Brandão de Almeida, é todo à base de alimentos crus. Dias antes, Márcia tinha, durante uma hora e meia, tentado explicar as vantagens de uma alimentação crudívora, mas no final concluíra que a melhor forma de mostrar que não se tratava de monótonas refeições de alface e tomate era preparar-nos um almoço cru (no crudivorismo, pode-se usar a temperatura mas não ultrapassando os 40 graus). Por isso, voltámos ao Bem-Me-Quer onde a proprietária, Paula Cascais, e Márcia nos esperavam com uma refeição completa. Havia, para começar, uma sopa feita com abacate, sumo de cenoura, piri-piri e alho, e decorada com sésamo, coentros, pimento vermelho e coco. Depois, uns rolinhos de folha de arroz, recheados com cenoura e pepino cortados em tiras muito finas e acompanhados por um molho grosso de amendoim. O prato principal era uma “pizza”: na base, uma primeira camada de cajus amassados com picante e manjericão, outra de tomate desidratado com agave (um adoçante de origem vegetal) e coentros, e por fim uma de “queijo de caju”, feito com caju, tâmaras e água. Na cobertura, pedaços de tomate, pimento, azeitonas e cogumelos que tinham estado numa marinada de limão e agave. Para sobremesa, Márcia tinha preparado uma mousse de abacate com cacau (o aspecto era o de uma mousse de chocolate escuro). E como bebidas para acompanhar a refeição havia duas opções: um leite de amêndoas (com pasta de amendoim e polvilhado com canela), ou um sumo verde, de couve, mas “adoçado” com maçã e cenoura. Aqui estava, portanto, a demonstração prática daquilo que ela tinha descrito: diferentes ingredientes, sabores variados, uma refeição que não deixava ninguém com fome, pratos visualmente apelativos e, objectivamente, muito saborosos. “É óbvio que a comida também pode ser cozinhada, mas tem muito mais valor crua porque mantém os nutrientes”, diz Márcia, brasileira casada com um português, formada em Economia e durante muitos anos funcionária da PT. “Quando a minha mãe morreu, achei que a vida era muito curta para a gente não fazer aquilo de que gosta. E voltei a estudar. ” Este novo percurso levou-a a abrir, na Margem Sul, uma clínica de medicinas alternativas. “Em todas as consultas, apanhava-me a dar receitas. Você tem colesterol? Coma mais beringela, quanto mais crua melhor. Os meus receituários eram meia dúzia de medicamentos e uma quantidade incrível de receitas. ”Percebeu que em Portugal as pessoas “não vêem o alimento como medicamento”. E decidiu aprofundar esse caminho. Começou a fazer workshops com receitas. “Fui das primeiras em Portugal a fazer o sumo verde”, conta. “Você faz um sumo azul, amarelo, cor-de-rosa às pintinhas e as pessoas acham óptimo. Se põem um sumo verde em frente delas acham um horror. Eu tive de arranjar maneira de não ser horrível”. Inspirou-se no brasileiro “suco da luz do sol”, com maçã, pepino e folhas verdes. “A maçã adoça, e as pessoas adoram. ”Quando começou com a clínica, em 1999, “não era nem vegetariana”. Até porque, no Brasil, foi “criada com churrasco”, do qual ainda hoje tem “uma memória emocional”. Depois, a pouco e pouco, foi alterando a alimentação, deixando a carne — “se consigo substituir a proteína da carne, para quê continuar a comer carne?”. Em casa, a ideia não teve tanto sucesso. “O meu cão alinha mais na minha conversa do que o meu marido e os meus filhos, porque adora maçã e cenoura”, diz rindo. Percebeu que não podia impor a sua vontade e por isso continuou a cozinhar carne e peixe, mas para si adoptou uma alimentação “99% crua”. Complicado? Nem por isso, assegura. A alimentação crudívora tem como base fruta, legumes, frutos secos e os grãos e sementes germinados. Para usar estes, é preciso pô-los a germinar com dois dias de antecedência, mas Márcia tem um argumento pronto para quem achar que isso é trabalhoso. “Quando você sai de casa, não deixa o frango a descongelar? Lógico. Se não vai ter de o cozinhar congelado ou pô-lo no microondas. É exactamente como funciona para mim. ” Há, no entanto, alguns truques. “O nosso microondas é a quinoa, que germina em 15 minutos. ”Mais difícil é inventar nomes para estas comidas. A solução acaba por ser chamar-lhes alguma coisa parecida com os pratos tradicionais — nos seus workshops, Márcia faz coisas como “macarronada à bolonhesa” ou “lasanha de grão-de-bico” e uma das receitas que se encontra no seu blogue Leite da Terra (leitedaterra. blogspot. pt) é a do pão essénio, um pão de trigo integral germinado desidratado ao sol, que, explica, tem “menor teor de glúten”, além de que “o amido cru não se transforma em acrilamida, substância muito danosa à saúde, presente em todos os produtos à base de trigo assado”. Veja-se, por exemplo, o caso do leite. “Emocionalmente, o leite faz parte da cultura ocidental. Tenho um projecto de alimentação saudável nas escolas e já me tentaram trucidar porque estou tirando o leite e outros alimentos que eles consideram fundamentais”, conta. “Vou ter de arranjar um substituto que tenha o mesmo aspecto. Eu faço um leite de amêndoas divino. Mas ao baptizá-lo como ‘leite’ já estou criando uma imagem na cabeça das pessoas. Tenho problemas em baptizar o meu alimento. Bebida de amêndoa? Lembra-me amarguinha. É complicado. ”Mais complicado baptizar do que fazer, portanto. A receita do leite de amêndoas para fazer em casa é uma entre diversas sugestões de leites alternativos do livro As Receitas da Mafalda (Porto Editora, 2014), de Mafalda Pinto Leite. Autora de vários livros de receitas e de um blogue de grande sucesso, o Dias com Mafalda, que se transformou também num programa de televisão, não segue uma alimentação inteiramente crua, mas integra alguns dos princípios do crudivorismo no seu quotidiano. Foi no Natural Gourmet Institute for Health & Culinary Arts, em Nova Iorque, que teve o primeiro contacto com a Raw Food, através daquele que é um dos grandes gurus do movimento, Matthew Kenney. “Achei fantástico e surpreendeu-me que pudesse ser tão delicioso”, diz, numa conversa telefónica com a Revista 2. Depois, no Maui (Havai), esteve no restaurante Manna Foods, onde fazia tartes cruas, que tinham como base frutas, nozes, cajus. “Aí nem sequer usávamos a desidratação” que é uma das técnicas base da cozinha crua. “Mas no Havai é fácil porque há uma grande quantidade de legumes e frutas frescas todo o ano. ”Em Portugal, é mais complicado. “Portugal é frio no Inverno, e não é fácil encontrar muitos ingredientes”, diz, sublinhando que, idealmente, estes “devem ser todos locais, sazonais e biológicos”. Além disso, nos restaurantes quase não existem alternativas. “Como uma salada? É que são tão fracas que não dá vontade. E até os supermercados bio têm pouca oferta. ”Portugal é frio no Inverno, e não é fácil encontrar muitos ingredientes, que idealmente devem ser locais, sazonais e biológicos”Apesar disso, com a ajuda do clima, no Verão consegue ser “100% raw”. Garante que não é fundamentalista em relação a estas coisas (embora reconheça que, como geralmente acontece com toda a gente, passou por uma “fase de fundamentalismo”), mas há algumas das quais se foi desabituando, como o leite. “Faço sempre o leite de amêndoa e os meus filhos bebem e adoram. ”Depois de uma passagem por Londres, regressou aos Estados Unidos, desta vez para Nova Iorque, onde trabalhou com Matthew Kenney, que descreve entusiasticamente — “alguém que consegue transformar legumes, fruta e nozes num prato delicioso é um génio”. Passou pelo restaurante The Plant (onde ficou desiludida com algumas coisas, nomeadamente um uso excessivo dos desidratados, que acabam por se tornar “muito intensos”) e pela secção de pastelaria de outro espaço de comida crua, o Pure Food and Wine, de Sarma Melngailis. Recentemente, voltou à Califórnia e confirmou que ali a dieta crua “é cada vez mais seguida”. “As pessoas já perceberam que os alimentos processados fazem mal à saúde e cada vez mais querem prevenir a doença. ” Só lamenta que este conhecimento não seja acompanhado pelas escolas, “onde ainda estamos na pirâmide alimentar”. “Acredito que funciona para algumas pessoas, não para todas”, diz Sarah Maraval, outra portuguesa que se dedicou à Raw Food e formou a empresa Green Chef, e que também fez a sua formação nos Estados Unidos com Matthew Kenney. Depois de anos a trabalhar na área da publicidade, percebeu que, para além do stress, estava a alimentar-se mal. Começou a preocupar-se com o que comia. “O meu foco hoje é a comida para a saúde, mas de maneira que não seja um castigo. ”Tinha sido vegetariana, mas quando olhava para os pratos vegetarianos ou vegan achava tudo “muito castanho, muito escuro”. Com Kenney, chef que aplicou a sua formação base francesa à cozinha crua, e que dá grande importância à estética dos pratos, Sarah percebeu que as coisas podiam ser mais interessantes. “Durante algum tempo fiz uma alimentação completamente crua, mas fi-lo porque estava na Califórnia, e inicialmente o meu corpo teve alguma dificuldade em ajustar-se. Mas o facto é que sempre tive problemas de estômago, dores, e enquanto fiz uma alimentação 100% crua nunca as senti. ” Recorda que passou por uma fase em que se sentia inchada, e relaciona-a com um “processo de limpeza do corpo”. Depois, “a partir da quarta semana”, começou a sentir-se muito bem. Passou a dar workshops e faz consultoria para mostrar às pessoas que esta alimentação pode ser interessante e variada. Tem estudado os produtos portugueses para criar mais receitas adaptadas à realidade em Portugal — dá o exemplo do leite de amêndoas. “É uma alternativa fácil e em Portugal temos imensas amêndoas óptimas. ” Tem de explicar muitas vezes que não é nutricionista, mas, porque percebeu que as coisas estão inevitavelmente ligadas, decidiu fazer o curso de Nutrição, e está a estudar mais profundamente a ligação entre a alimentação e o cancro. Qualquer crudívoro vai concordar que é difícil encontrar nos restaurantes portugueses comida adaptada ao seu gosto. Voltamos ao Bem-Me-Quer, onde iniciámos esta reportagem. Paula Cascais é das poucas pessoas que disponibilizam a opção de pratos crus no seu restaurante. Tudo começou quando lhe apareceram dois clientes estrangeiros que pediram comida crua. “O meu restaurante já tem pratos vegetarianos, vegan, sem glúten, mas crus? Nunca me tinham pedido. ” Improvisou e “eles saíram contentes”. Mas, diz, “a mim soube-me a pouco”. Foi quando tentou aprender mais sobre crudivorismo que se cruzou com Márcia Brandão de Almeida e o projecto Leite da Terra. “Fui fazer o workshop, que desmistificou todas as minhas ideias sobre comida fria e estranha. ” Descobriu que “os pratos cozinhados podem ter um paralelo nos crus” — como por exemplo a “lasanha de espinafres”, feita com courgette, gaspacho de tomate, nozes e avelãs, ou os “queijos” feitos com caju triturado com azeite e flor de sal — e que “manusear os alimentos crus ajuda-nos a respeitar mais o que estamos a usar”. Apesar do apoio de Márcia, que durante um período estava todas as segundas-feiras no restaurante, a maior dificuldade foi mesmo convencer os clientes. “As pessoas pediam pouco os pratos. ” Por isso, hoje já não estão habitualmente na carta, embora possam sempre ser pedidos. “Não há ainda muita gente, mas há cada vez mais informação, e uma tendência para perguntarem mais”, conclui Paula. E o que pensam os nutricionistas deste tipo de alimentação? Tanto José Camolas, do núcleo de Endocrinologia do Hospital de Santa Maria, como Pedro Carvalho, da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto, dizem que “se estivermos a falar de legumes, hortaliças e frutas, temos alguns benefícios [em ingeri-los crus] porque cozinhados perdem vitaminas que são solúveis na água”. Em princípio, “cozinhar pode reduzir a densidade nutricional do alimento”, mas isto não é generalizável porque “se se tratar de alguém que sofra de uma doença intestinal, cozinhar pode facilitar o processo digestivo e de absorção”, sublinha Camolas. Há o risco de haver um consumo energético excessivo se a pessoas se centrarem apenas em determinados grupos alimentares. "Pedro Carvalho acrescenta outro factor: “A acção da temperatura e da destruição mecânica das paredes celulares dos legumes (sopa, puré de legumes, esparregado, etc…) permite igualmente tornar mais disponíveis alguns compostos como os carotenóides. Nestes, convém inclusivamente adicionar alguma gordura à preparação de modo a facilitar a absorção, porque são compostos lipossolúveis. ”Muita atenção, contudo, com a carne e o peixe crus (em princípio, os crudívoros são vegans, portanto a questão não se coloca, mas há casos em que não são), alerta o nutricionista do Hospital de Santa Maria. “A temperatura altera a matriz proteica e a carne perde a sua estrutura com mais facilidade, por isso o estômago tem de produzir menos ácido para a digestão. ” O tempo de digestão de carne crua pode estender-se até às seis ou sete horas. Ou seja, “estamos a duplicar o tempo de digestão, com a correspondente sobrecarga gástrica”. O caso do peixe é um pouco menos complicado e pode ajudar se se fizer uma espécie de cozedura a frio com ácido, usando lima, por exemplo, como acontece com o ceviche peruano. Uma dieta só baseada em fruta e legumes pode ser algo incompleta, refere Pedro Carvalho, mas se forem incluídos “produtos lácteos, frutos gordos, sementes e peixe e carne (mesmo que sejam apenas sushi e carpaccio) já temos uma variedade maior e um risco menor de desenvolver alguma carência nutricional”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas o principal alerta de José Camolas é para que não se inicie este tipo de alimentação sem ter suficiente informação sobre os equilíbrios entre alimentos e as reacções do próprio corpo. “Há o risco de haver um consumo energético excessivo se a pessoas se centrarem apenas em determinados grupos alimentares. Nos cereais, é importante saber usar as técnicas de germinação, para poderem ser digeridos. Sabemos por exemplo que o magnésio é o elemento central da clorofila, mas tem de ser na quantidade certa, em excesso não é indicado. ”A verdade é que ainda “sabemos muito pouco sobre a composição de alguns alimentos”. E a dúvida que tem é se quem decide ser crudívoro está totalmente consciente desta complexidade. “Se as pessoas se dispõem a dominar as técnicas deste tipo de cozinha, os riscos não serão muitos”, diz, mas, acrescenta, “se calhar na maioria dos indivíduos não existe esta predisposição”.
REFERÊNCIAS: