Agosto começa com esculturas de luz e videomapping em Sintra
O AURA está de volta ao centro histórico de Sintra com dez obras de arte luminosas. De 1 a 4 de Agosto. (...)

Agosto começa com esculturas de luz e videomapping em Sintra
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.4
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: O AURA está de volta ao centro histórico de Sintra com dez obras de arte luminosas. De 1 a 4 de Agosto.
TEXTO: Videomapping, instalações audiovisuais interactivas, esculturas de luz e obras biomiméticas. Um enorme globo terrestre e um oceano habitado por animais de plástico. O AURA Sintra está de volta ao centro histórico da vila de 1 a 4 de Agosto. No total, são dez as obras que se apresentam nesta quinta edição, num percurso luminoso que começa na Volta do Duche e termina junto à Quinta da Regaleira. O festival dá início a um ciclo de programação artística que termina em 2021, dedicado à “conexão entre a arte da luz e o meio ambiente” e à forma como “humanos e não humanos se relacionam numa multiplicidade de interdependências”. Em destaque, estão obras como GAIA, do artista britânico Luke Jerram, conhecido pelos trabalhos em grande escala no espaço público e cujas obras integram a colecção do Metropolitam Museum of Art, em Nova Iorque, e a Wellcome Collection, em Londres. Com sete metros de diâmetro, GAIA apresenta uma imagem de satélite em 3D da NASA da superfície terrestre. Já Torsten Muhlbach planta um arco-íris no Jardim dos Castanheiros, Alfred Kurz vai pôr um coração a bater na chaminé do Museu Ferreira de Castro, enquanto os artistas Oskar&Gaspar, Grandspa'sLab, Matthieu Tercieux e Kosuta ocupam fachadas e muros da vila classificada como Património Mundial pela UNESCO. Em videomapping e projecções interactivas, os visitantes poderão fazer desabrochar flores sobre um muro, participar numa mostra de “apocalipses, colisões planetárias e catástrofes naturais de grande escala” ou vislumbrar um oceano distópico, onde habitam “milhares de resíduos plásticos” que, por vezes, “animam-se e aglomeram-se em forma dos seres marinhos” que um dia ali viveram. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O percurso termina com Nasci Nasci, do colectivo português Error-43, no Patamar dos Deuses, junto à Quinta da Regaleira. A escultura biomimética em grande escala explora “o que aconteceria se colocássemos um novo organismo tecnológico dentro da natureza e de que forma poderia um sistema beneficiar o outro”. Ou como a natureza pode servir de inspiração “para encontrar no devir soluções de esperança”. Além das dez obras que compõem o percurso do festival, a quinta edição traz como novidade a criação de um lounge, uma estrutura em cúpula com dez metros de diâmetro onde vai ser apresentada uma programação de vídeo e áudio e projecções a 180 graus. No sábado, das 16h às 19h, há ainda três talks com alguns dos artistas presentes no festival. O festival ilumina as ruas de Sintra de 1 a 4 de Agosto, das 21h às 24h. O acesso é gratuito.
REFERÊNCIAS:
Entidades UNESCO NASA
Rir de barriga cheia com Miguel Esteves Cardoso e Ricardo Araújo Pereira
Juntámos ao almoço dois escritores que aliam o humor a um apetite voraz. Miguel Esteves Cardoso, cronista gastronómico, e Ricardo Araújo Pereira, amante da cozinha na óptica do utilizador, explicam por que é que comer tem muita graça. (...)

Rir de barriga cheia com Miguel Esteves Cardoso e Ricardo Araújo Pereira
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.324
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Juntámos ao almoço dois escritores que aliam o humor a um apetite voraz. Miguel Esteves Cardoso, cronista gastronómico, e Ricardo Araújo Pereira, amante da cozinha na óptica do utilizador, explicam por que é que comer tem muita graça.
TEXTO: É a apenas a terceira vez que Ricardo Araújo Pereira (R. A. P. ) está com Miguel Esteves Cardoso (M. E. C. ), e a admiração é muita e é mútua. Os primeiros dez minutos são passados a trocar elogios. Mal se senta, R. A. P. dá um exemplo de um ensinamento do mestre. “Uma vez perguntei ao Miguel: ‘Como é que sabes que os melhores tremoços são ali, os melhores pastéis de nata são acolá, os melhores. . . ?’ A resposta dele foi imediata, nunca mais me esqueço: ‘Eh pá, tens de comer muita merda. ’”A mesa larga a rir, mas M. E. C. faz uma pausa, aguardando o silêncio para uma confissão. Continua a estar de acordo com o princípio, mas já não o pratica. “A dada altura, uma pessoa começa a pensar que só tem mais uns quantos anos de vida, e deixa de comer merda. Já não como merda. ”A prova está ali à nossa frente. O cardápio e o local do almoço foram escolhidos com cuidado e antecedência. Dias antes, quando estávamos a combinar o encontro, M. E. C. pedira-me uma lista dos possíveis restaurantes onde decorreria a conversa. “Mostra lá a tua valiosa lista”, escreveu-me, por email. Dediquei-me à tarefa como se fossem alegações finais da tese de doutoramento e enviei uma dezena de hipóteses. M. E. C. não se comoveu. “Só posso se vocês fizerem o favor de vir almoçar ao Neptuno, na Praia das Maçãs”, ripostou. E assim foi. E ainda bem. Sobre a toalha estão camarões da costa com sal de Castro Marim, uma garrafa de Chablis 2017 (“um vinho a sério”) e outra de Perrier com um líquido de cor dourada. “Lá dentro tem azeite de Portalegre, que nós trazemos de casa”, explica MEC, sentado na esplanada, mesmo em cima do areal da Praia das Maçãs. Além do azeite, praticamente todos os ingredientes do almoço foram trazidos pelo escritor, como sempre acontece ali. O Neptuno é uma segunda casa de M. E. C. e de Maria João, sua mulher, e os donos do restaurante permitem-lhes levar de tudo o que há de bom para comer no mundo, incluindo um molho picante importado do México em bidões. O cuidado que o cronista do suplemento Fugas, do PÚBLICO, põe na preparação das suas refeições, a dedicação na investigação do melhor que se pode levar à boca, não significa que leve a comida a sério, enquanto tema ontológico. Nisso, contrasta com a cultura reinante em Portugal, onde a maioria dos críticos de restaurantes opta por uma abordagem mais técnica ou histórico-cultural. José Quitério, que escreveu no Expresso — e é o crítico português mais respeitado dos últimos 40 anos —, começava quase sempre as suas crónicas com uma referência à topografia da zona do restaurante. Já reformado, em entrevista sobre o ofício à jornalista Alexandra Prado Coelho, neste jornal, haveria de justificar: “A crítica gastronómica pode ser vista como uma coisa de hedonistas de segunda classe que querem é comer e beber, glutões e beberolas. É preciso demonstrar que não é, que isto tem um conteúdo cultural. Quem se preocupa com estas coisas não é nenhum selvagem que só pensa em comer e beber. ”Ricardo Araújo Pereira preocupa-se com estas coisas mas não tem pudor em assumir-se como um “selvagem”. Admite que não é um conhecedor, antes aparece numa longa tradição de “tipos com uma inclinação humorística que partilham o gosto por enfardar”. Cita Sir John Falstaff, personagem de William Shakespeare, um glutão boémio, amante de capões, que desafiava as autoridades dietéticas e religiosas comendo e bebendo como um animal. E também François Rabelais, que um século antes fizera nascer Pantagruel e Gargântua, criaturas grotescas e cómicas, caracterizadas igualmente por um apetite excessivo. Mas há mais autores e mais recentes e em língua portuguesa: o brasileiro Luís Fernando Veríssimo, por exemplo, vem à baila; em Portugal, Luís de Sttau Monteiro, que assinou uma coluna no suplemento A Mosca, do Diário de Lisboa, entre 1969 e 1971, é outro exemplo de um escritor para quem a comida era assunto literário e pândega. Sttau Monteiro, como aliás Miguel Esteves Cardoso, foi moldado pela cultura anglo-saxónica e isso pode explicar o seu registo mais descontraído, na senda de outros escribas gastronómicos contemporâneos. Talvez porque sem o peso do catolicismo, e menos sensíveis ao problema da fome dos povos do Sul, alguns dos mais influentes críticos de restaurantes norte-americanos e ingleses continuam a recorrer ao humor. São os casos de Pete Wells, do New York Times, de Jonathan Gold, do Los Angeles Times (que morreu há quatro meses), ou de Jay Rainer, do The Guardian — três nomes grandes que falam de cozinha de uma forma que muitos portugueses considerariam leviana. M. E. C. põe as coisas nestes termos: “As pessoas em Portugal levam a comida muito a sério. E depois são muito agressivas umas com as outras. Não dá para o humor porque a discussão normalmente é violenta. Os portugueses dizem assim: ‘Eh pá, tu não sabes o que é um cozido! Um cabrito, tu sabes lá o que é um cabrito! Essa porcaria que estás a comer não é um cabrito! Não percebes nada do assunto!’”, concretiza. Na sua cabeça está uma agressão recente. “Um amigo meu mandou-me calar porque estava a comer uma caldeirada. ‘Cala-te, foda-se, estou a comer uma caldeirada! Estás a rir-te, isto não é para rir. ’”Os empregados de mesa vão pousando pratos e pratinhos. Beterraba laminada, batatas cozidas, couve, grão. Tudo biológico, tudo acompanhamento para uma dourada magnífica, mais de dois quilos de bicho. “Eles receberam o peixe fresco hoje, da lota de Peniche. Estava gorda, via-se pelo cachaço”, diz M. E. C. , que a prefere cozida. Mais tarde há-de chegar ainda um chicharro enorme, este grelhado. R. A. P. está impressionado e é o mais faminto. Assume-se como alguém que escreve pontualmente sobre comida “mais na óptica do utilizador ou mesmo do javardo”. Mas consegue apreciar o sabor, distingue o bom do bonito. “Há tempos fui a um supermercado e trouxe umas cenouras que eram uma coisa linda. Nem parecia que tinham crescido debaixo da terra. Chego a casa, trinco uma e a sensação que tenho é que se eu trincasse a embalagem onde a cenoura vinha a experiência não teria sido muito diferente. Não sabiam a nada. ”Apesar de estar magro, o humorista diz ter um gordo dentro dele. M. E. C. desconfia. “Tu sempre foste magro. ” R. A. P. rebate. “Não, não. Houve ali um momento em 2009 em que me deixei ir. Já pesei mais de cem quilos. ”Essa degradação física aconteceu durante as gravações de Gato Fedorento Esmiúça os Sufrágios, um talk-show diário sobre as eleições legislativas desse ano. “O tempo estava bom e tal e nós mandávamos vir o almoço de um restaurante da zona. Fosse qual fosse a ementa, para mim era sempre bacalhau primeiro, qual amuse-bouche, e a seguir o prato do dia que houvesse. ”Os efeitos foram notórios, mas não imediatamente reconhecidos pelo próprio. Depois da maratona televisiva, R. A. P. teve umas merecidas férias. E foi só então que se confrontou com a sua imagem, cortesia de um paparazzo. “O hotel tinha um fotógrafo e ele fotografou-me à socapa naquelas cadeiras da piscina. Quando vi a minha própria pança naquela fotografia. . . parecia o Douro vinhateiro, com os socalcos. Nessa altura, pensei: ‘Tenho de fazer alguma coisa. ’”E fez. Hoje, Araújo Pereira está seco, parece um espeto na sua camisa branca aprumada. Antes de vir para o almoço, tinha estado a praticar kickboxing, modalidade que pede alimento. Pressente-se que talvez preferisse ao peixinho cozido algo mais substancial, como uma cabidela, o prato favorito, comida que lhe recorda a infância no Norte do país. M. E. C. quer saber mais sobre essa fase, as suas férias quando criança, é um perguntador e um ouvidor — e Araújo Pereira tem revelações para fazer. A avó de R. A. P. é de São Martinho de Coura, perto de Paredes de Coura, no Minho, e ele passou muito tempo a ir buscar água à nascente e a ver bater maçarocas na eira. Isso explica que a comida de que mais gosta possa ser designada por uma palavra apenas, como é tradição no Minho. “Hoje em dia, a minha mulher leva-me a restaurantes em que o prato é descrito em dez linhas e eu sinto que não tenho habilitações literárias para comer aquilo”, diz, contrapondo: “Na terra da minha avó é: rojões, cozido, cabidela. Basta uma palavra. ”O tema da nomenclatura dos pratos não é de agora, todavia. Fora já assunto para Sttau Monteiro. Numa das suas crónicas da rubrica “A Melga no Prato”, o escritor e jornalista analisou uma omelete “com duas rodelas de pickles de beterraba (o pickles é uma invenção inglesa, a beterraba de origem portuguesa. . . ), algumas azeitonas negras (portuguesíssimas) e uma folha de alface saloia”, servida no restaurante do hotel Ritz. “Pois que nome julgam os leitores que a casa deu a este prato?”, questionava, indignando-se. “Nada mais, nada menos do que omelette à americana. ” No final, a conclusão óbvia: “É claro que, se tivesse posto o nome omelette arménia, ovos à moda da Síria ou fritada de ovos caucasiana, ninguém teria dado pela diferença porque no fundo as omeletes sem recheio só podem pertencer a uma de duas espécies: as bem-feitas e as malfeitas. ”Grandes escritores foram também gastrónomos espirituosos. “Uma sobremesa sem queijo é como uma mulher bonita sem um olho. ” Jean Anthelme Brillat-Savarin“A pescada frita tinha uma camada de gordura brilhante e espessa. A posta reluzia como um espelho e, olhando-a de frente, uma pessoa podia até contar os pontos negros do nariz. ” Mark Twain“O carácter de uma raça pode ser deduzido simplesmente de seu método de assar a carne. ” Eça de Queirós“A longo prazo podemos vir a descobrir que a comida enlatada é uma arma mais mortífera do que a metralhadora. ” George Orwell“Também no mundo da comida há muitos restaurantes que já não são apenas restaurantes. São um conceito. Invariavelmente ficam na moda, invariavelmente o serviço é demorado, invariavelmente a comida é uma porcaria, invariavelmente acabam por fechar. ” Lourenço Viegas“É uma moda inexplicável esta que consiste em contaminar a preciosa Água das Pedras com mistelas de framboesas, limão e ginseng. Constitui um desperdício — lá está — monumental. É como encher a Torre de Belém com vasos de sardinheira. ” Miguel Esteves Cardoso“Numa mesa de portugueses, come-se, recordam-se refeições passadas e projectam-se refeições futuras. E obtém-se tanto prazer da comida como da conversa sobre comida. ” Ricardo Araújo PereiraDesignações curtas não significam pouca comida. Já se viu que R. A. P. está mais do lado dos heróis cómicos do que dos super-heróis trágicos, que nunca aparecem a comer na ficção, seja literária, seja cinematográfica. “A gente não vê uma história a dizer: ‘Depois o Batman foi almoçar. ’ Isso nunca existe, nunca. ” A razão — desconfia — é da ordem da escatologia: tem que ver com “o final do processo digestivo” ou, se se preferir, “com cocó”. As personagens cómicas sempre gostaram de fazer piadas com cocó. “Os super-heróis trágicos não desejam revelar que passam por esse processo, enquanto os heróis cómicos apreciam a celebração da caca”, explica R. A. P. Exemplo: “Num dos livros do Pantagruel, a mãe dele engole pipas inteiras, com a casca e tudo, e o Rabelais, projectando o que vai acontecer, diz: ‘Ah, la belle matière fécale. ’”Neste momento, o casal na mesa ao lado larga uma gargalhada. Ricardo Araújo Pereira vira-se para aquela mesa e pede desculpa pelo despropósito do tema. “Já vi que estamos a interferir com o vosso almoço. ”A dourada aparece servida nos pratos, livre de espinhas, em lombos suculentos. O Neptuno é um restaurante clássico, com um serviço clássico. Não inventa. É um restaurante de praia que sabe tratar o peixe. Não tem marketing, não precisa de contar histórias, tendência da restauração moderna que Miguel Esteves Cardoso renega. “Agora chegam à mesa e dizem: ‘Sabe qual é a história deste prato?’ Como se todos os pratos tivessem de ter uma história”, lamenta, fazendo notar: “Muitas vezes, essas histórias são escritas por agências de comunicação. O chef diz: ‘Eu não tenho paciência para escrever a história. ’ E a agência escreve-a. Eu oiço aquilo e só penso: ‘Eh pá, cala-te, deixa-me comer. ’”O problema não é só o artifício comercial, mas a qualidade da própria história. M. E. C. recorda uma delas. “O chef contava que estava em Londres e teve esta ideia: ‘Quando chegar a Lisboa, vou fazer um fish and chips. ’ Ora, isto é uma história?! Não. Isto é uma imitação!”R. A. P. concorda e mostra apreço pelo típico empregado de mesa. “Há muitos, muitos anos que eles são filósofos da linguagem. O ‘queria já não quer’, por exemplo, é um grande clássico. ”Todos concordam que o talento de servir está em perceber o cliente, o seu estado de espírito. Não se impor mas estar disponível. Os bons empregados tanto podem entregar pratos, sem mais, como dar corda. M. E. C. exemplifica com a “formalidade elástica” dos empregados do Gambrinus, o restaurante de luxo das Portas de Santo Antão, em Lisboa. “Se lhes disseres que a tua mulher te deixou, eles ficam contigo. E isto é preciso proteger. ”Esta ideia de que há coisas na cozinha que é preciso preservar, que é preciso preservar o Gambrinus, foi também referida de forma eloquente por José Quitério. Numa crónica no Expresso, o crítico circunspecto escreveu um parágrafo sobre o assunto cheio de ironia. “Há coisas que é preciso saber não mudar. Aliás, se por hipótese absurda algum pintalegrete pós-moderno tivesse a ousadia de exibir no Gambrinus cozinha molecular, ou tecno-emocional, ou de extracto similar, a gargalhada viria lá de dentro e ribombaria por toda a rua. ”Hoje, na restauração moderna tudo está diferente. Mas não se pode dizer que não haja tentativas de comédia. Os empregados são menos protocolares. Brinca-se com o nome dos pratos. Procura-se o espanto. Servem-se azeitonas que são manteigas, manteigas que são azeitonas. Os pratos tradicionais apresentam-se como arte plástica. “Às vezes, há coisas. . . No outro dia, fui a um desses restaurantes de alta cozinha a que a minha mulher me leva e puseram-me na mesa uma ampola”, conta o humorista, aduzindo que o empregado apresentou o prato como “a nossa caldeirada”. “Era uma coisa de vidro, com um quadradinho de peixe. A gente pôs aquilo na boca, sorveu o líquido turvo que estava lá dentro e comeu o quadradinho. Fiquei de facto com a sensação de ter dado uma garfada numa caldeirada. Mas nessa altura questionei: ‘Onde está o resto do tacho?’”M. E. C. dá uma gargalhada. “Perguntaste mesmo onde está o resto do tacho?” R. A. P. confessa. “Não perguntei, porque estava a fingir que era uma pessoa civilizada. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Sendo um amante da restauração tradicional, M. E. C. abre um parêntesis para louvar a cozinha de José Avillez. “Deram-me uma vez a comer um bocadinho minúsculo de leitão e era como se tivesse comido um leitão inteiro. Já o cozido era uma couve e passou-se o mesmo. Aquilo é magia”, elogia. R. A. P. também já foi ao Belcanto, o restaurante mais conceituado do chef. “Ele põe uma espécie de tosta com três pintinhas de molho e diz: ‘Frango assado!’” M. E. C. anui: “E sabe mesmo àquilo. Uma pessoa tem de se render. ”É tudo muito bonito, mas nem sempre causa a sensação de satisfação que um autor cómico pretende, o tal rejubilo de barriga cheia dos heróis boémios e bonacheirões. A graça, o humor, quando falamos de cozinha, pode ser uma coisa muito material, muito fisiológica. Já a terminar o almoço, Miguel Esteves Cardoso contempla, saciado, o mar revolto em frente. Ricardo Araújo Pereira põe a mão no estômago, medindo o volume, e remata. “Parte do encanto disto é uma pessoa, no fim, dizer: ‘Eishhhhhh. ’”
REFERÊNCIAS:
O ginásio também pode ser uma clínica
O acompanhamento é personalizado, não são admitidos grupos de treino com mais de dez pessoas. Aqui não entra só o personal trainer, mas também o médico, o fisiologista do exercício, o fisioterapeuta e outros profissionais de saúde. (...)

O ginásio também pode ser uma clínica
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: O acompanhamento é personalizado, não são admitidos grupos de treino com mais de dez pessoas. Aqui não entra só o personal trainer, mas também o médico, o fisiologista do exercício, o fisioterapeuta e outros profissionais de saúde.
TEXTO: Foi no ginásio que Ana Prates, 36 anos, se lesionou numa aula de grupo. Depois disso, decidiu optar por um treino diferente. Não é a única. Actualmente, existem diversos ginásios que são mais do que espaços onde se pratica exercício físico, ou seja, funcionam quase como clínicas. Além do professor ou do personal trainer (PT), existem ainda médicos, fisiologistas do exercício, fisioterapeutas e outros profissionais de saúde que, em conjunto, descobrem qual a melhor prática de exercício para cada cliente – seja ou não doente. Por exemplo, no espaço BeeLife, em Lisboa, todos os clientes têm uma consulta com um médico fisiatra antes de iniciarem o treino. Este avalia a condição física e o que é necessário melhorar. Depois, juntamente com um fisiologista do exercício, constroem um plano, que é administrado por este último. O mesmo acontece na Clínica das Conchas, na mesma cidade. Para Afonso Pescado, fisiatra no BeeLife, esta sinergia é essencial. Explica que o médico consegue perceber uma patologia, mas não qual o melhor exercício ou movimento para a tratar. É aí que entra o fisiologista do exercício. “Aqui optimizamos recursos. O objectivo é pegar naquela hora que a pessoa tem para o exercício e fazer com que desfrute ao máximo, atingindo da melhor forma os objectivos a que se propõe”, explica. Os serviços disponibilizados e as valências dos profissionais das chamadas “clínicas de exercício” podem mudar de espaço para espaço, mas o objectivo é sempre o mesmo: adaptar o exercício a cada indivíduo, algo que, de acordo com os profissionais, só se consegue se as aulas forem individuais ou para grupos reduzidos. No BeeLife, as turmas têm no máximo dez pessoas; no centro clínico do Axis Wellness, em Viana do Castelo e em Ponte de Lima, são oito; e na 360 Clínica do Exercício, em Lisboa, o número não excede os três alunos por aula. Para os profissionais destes espaços a razão é óbvia: “Num ginásio tradicional [que dá aulas a dezenas de pessoas ao mesmo tempo] não se consegue o grau de especificidade que o nosso ginásio consegue oferecer”, informa Eduardo André, fisiologista do exercício na 360 Clínica do Exercício. “Faço exercício mas sinto apoio. Têm sempre cuidado com as minhas limitações e, se for necessário, adaptam os exercícios”, testemunha Ana Prates, que há dois meses frequenta o BeeLife. Álvaro Santos, personal trainer e dono de um espaço com o seu nome, em Lisboa, também faz referência a alunos que trazem lesões de ginásios. “Tenho tantos… [Nestas situações] temos de preparar as pessoas, [através do exercício correcto], para o seu dia-a-dia. A ideia é fazer com que vivam mais tempo, mas com saúde e qualidade de vida”, defende. Desde Maio deste ano que a Direcção-Geral de Saúde (DGS) passou a implementar as consultas de actividade física. Romeu Mendes, director-adjunto do Programa Nacional para a Promoção da Actividade Física (PNPAF), explica ao PÚBLICO que a ideia do Serviço Nacional de Saúde (SNS) “é dar uma solução concreta de exercício físico para o doente”. O responsável refere ainda a necessidade de aproximar os profissionais de saúde aos do exercício físico, uma vez que “existe uma falha de comunicação [entre ambos] no [SNS] – mas há sistemas privados que funcionam muito bem”. No entanto, com tanta diversidade de espaços e profissionais, como garantir ao consumidor que está, de facto, no sítio correcto? De acordo com Romeu Mendes é essencial que quem prescreva exercício seja “um médico com pós-graduação em medicina desportiva” ou então um fisiologista do exercício, “com uma licenciatura em ciências do desporto e uma pós-graduação em exercício físico e saúde”. Para o restante acompanhamento, “o ideal é haver uma equipa multidisciplinar – quem fica sempre a ganhar é o cidadão”, garante. Como nem toda a gente tem disponibilidade para pagar um ginásio com este tipo de oferta – os preços começam nos 49 euros e são feitos orçamentos à medida de cada cliente –, Romeu Mendes informa que existem já 12 projectos-piloto a funcionar no país, em centros de saúde. Nestes, a prescrição é feita pelo médico em conjunto com o fisiologista e tendo em conta as possibilidades económicas de cada um. “Tenho preferência por enviar os doentes para sítios onde conheço o currículo dos profissionais. No entanto, tenho de pensar que só porque as pessoas não podem pagar um ginásio, isso não deve ser impedimento para que lhes prescreva exercício. Tem é de ser adaptado”, defende. O director-adjunto do PNPAF acrescenta que, em certas situações, a pessoa pode treinar sozinha, desde que sejam dadas indicações muito claras; e dá o exemplo da marcha para quem tem diabetes de tipo 2. “Não prescrevo esse exercício sem antes explicar que é preciso levar uma garrafa de água, ir sempre acompanhado, não andar nas horas de maior calor… A ideia é detalhar o que se deve fazer, quais os principais erros e ao que se deve ter atenção”, aconselha. E resulta? Romeu Mendes refere casos de vários doentes com diabetes de tipo 2 que deixaram de tomar medicação graças a fazerem o exercício prescrito e acompanhado. “Mas, como é claro, terão de continuar a praticar exercício e uma alimentação saudável para não voltar à medicação”, salvaguarda. Também Marco Santos, fisiologista no Axis Wellness, dá o exemplo de um cliente com hipertensão que deixou de tomar medicação graças à actividade física – “mas sabe que terá de continuar os nossos exercícios”, aconselhou, na altura. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A partir de Dezembro de 2017, a DGS começou a aplicar guias de aconselhamento em centros de saúde. Este projecto-piloto pretendia que o médico de família fizesse um aconselhamento breve de exercício físico através de guias digitais, que poderiam ser entregues aos doentes. Entre Setembro e Dezembro de 2018, 5443 utentes receberam este tipo de aconselhamento, num total de 63. 817 utentes avaliados, refere a Lusa. A partir de Maio, o que começou a ser aplicado foi a consulta de actividade física. Texto editado por Bárbara Wong
REFERÊNCIAS:
Tempo Maio Dezembro Setembro
Das casas viradas ao contrário ao lobby com banheiras: o humor está no design
Andamos a fazer casas com humor ou o humor vem depois com os habitantes das casas? Fomos ver o que arquitectos, designers e decoradores andam a fazer em Portugal. (...)

Das casas viradas ao contrário ao lobby com banheiras: o humor está no design
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Andamos a fazer casas com humor ou o humor vem depois com os habitantes das casas? Fomos ver o que arquitectos, designers e decoradores andam a fazer em Portugal.
TEXTO: Por mais estranho que pareça, até uma sanita por estrear esquecida no meio de uma sala em obras num antigo palacete, no Porto, pode arrancar gargalhadas quando o motivo da conversa é o humor. Por causa daquele objecto, a designer de interiores Nini Andrade Silva começa a desfiar o novelo da história do projecto WC Boutique Hotel, em Lisboa, onde estão banheiras na recepção e a farda dos funcionários é um robe e uma toalha na cabeça. O humor está um pouco por toda a parte, que o diga o arquitecto Manuel Graça Dias, que projectou um edifício em forma de golfinho, em Chaves, que também arrancou gargalhadas durante o processo de construção; ou que recuperou o velho teatro Luís de Camões, na Ajuda, em Lisboa, onde tem desenhos de ilusão óptica em grande escala. Ou que o diga Sheila Moura Azevedo, que projectou apartamentos, no Porto, que têm frases típicas como “laurear a pevide”, “picar o ponto”, “apanhar uma rosca” ou “correr as capelinhas”. O que é tudo isto senão sentido do humor na arquitectura, no design de interiores e na decoração?Quando Nini Andrade Silva partiu para o projecto do WC Boutique Hotel, em Lisboa, disse logo à equipa: “Enlouqueçam! Porque enlouquecer é não querer raciocinar dentro da caixa, é pensar em algo diferente. É no meio dos disparates que nascem as grandes ideias”, conta, enquanto solta uma gargalhada. Foi também num momento de boa disposição que a Culto a encontrou debruçada sobre dezenas de amostras de tecidos de luxo com as mais variadas cores e feitios espalhadas em cima de uma mesa. “Parecia mesmo uma barraca de feira pela diversão e pelo gozo que é tocar e sentir os tecidos. Só que estes são de luxo”, reforça por entre risos. Ficou quase tudo escolhido, até o mobiliário deste futuro cinco estrelas Vila Foz Hotel & Spa, num centenário palácio da Avenida Montevideu, na zona mais chique da Foz do Porto, e que deverá abrir as portas no próximo ano. Este projecto não deverá ter tanto humor como o WC Boutique Hotel, em Lisboa, ou o Hotel Teatro, no Porto. Dos momentos divertidos no processo criativo, a equipa da designer de interiores também não se livra. Estão lá. Trata-se de fazer coisas sérias com boa disposição. “Gosto de ser conhecida pelo sentido de humor nos trabalhos. Sem isso não vale a pena. Mas rir não é gozar”, salvaguarda. A madeirense, que até já foi distinguida com o grau de oficial da Grande Ordem do Infante D. Henrique, cresceu numa casa cheia de gargalhadas, com muito humor, teatro e cantorias. Em pequena, quando fazia disparates, a mãe dizia-lhe: “Pareces uma garota do Calhau. ” O nome pelo qual eram conhecidas as crianças desfavorecidas, das praias do Funchal. E os calhaus foram ficando de tal modo entranhados que é neles que se inspira para dar forma às peças de mobiliário e pinturas que cria. “Há sempre um calhau na minha vida”, diz em tom de brincadeira Nini, que também apoia a Associação Garota do Calhau para ajudar crianças desfavorecidas do arquipélago. “Sempre que vou para um projecto, lembro-me das histórias do meu tempo de miúda e dos teatros que fazia”, recorda. A madeirense é reconhecida mundialmente por contar histórias em cenários de luxo, com um estilo em que tudo é pensado ao mínimo pormenor. E o humor é um requisito para trabalhar nos seus ateliers de Lisboa e do Funchal, onde também abriu o Design Centre Nini Andrade Silva, no edifício do Molhe — Fortaleza da Nossa Senhora da Conceição, que foi a casa de Gonçalves Zarco, o navegador português que chegou à Madeira. Recentemente recebeu o Prémio da Inovação Hoteleira de Portugal pelo projecto do Hotel Palácio do Governador, em Lisboa. Em 2017 foi nomeada pelos International Hotel and Property Awards para o WC Boutique Hotel e no ano anterior venceu o Óscar do Turismo para o Hotel Palácio do Governador, o World Travel Awards na Categoria Europe’s Leading Design Hotel para o The Vine Hotel, na Madeira. Já no andar de cima do palacete portuense, sentada na soleira da varanda de uma das salas, a designer de interiores vai dizendo que “as emoções são para ser sentidas à flor da pele ou, diríamos antes, [no caso do WC Boutique Hotel] à tona da água!”. Nini inspirou-se numa situação que viveu quando, há muitos anos, estava num dos elevadores das Torres Gémeas, em Nova Iorque. Ela, de vestido de noite, alguns homens de smoking, e um deles destacava-se por estar de robe. “Então pensei: ‘Isto é tão engraçado que um dia vou fazer uma coisa que não tenha nada que ver. ’” E assim foi. “Costumo dizer que, quando vou a um hotel, vou logo ver a casa de banho”, conta. Quando os proprietários do hotel lhe pediram um projecto diferente, a designer respondeu: “Fazer um WC. Deveria ser espectacular!”, lembra entre risos. “E a cliente perguntou-me: ‘WC?! Mas o que quer dizer com isso?’ Eu respondi-lhe que as pessoas, em vez de dormirem nos quartos, dormiriam numa instalação sanitária. A cliente olhou para mim e disse: ‘Confio em si!’”A partir dali, Nini teve carta-branca. Resultado? “Começámos a enlouquecer completamente. . . ”, ri-se. “Só o nome WC já dava vontade de rir. Um dia, um taxista comentou que era um nome horrível e perguntou-me: ‘Ó minha senhora, quem é que faz uma coisa dessas?’ E respondi: ‘Eu!’” A designer convidou-o a entrar e o homem ficou espantado como tantas pessoas que “entram e pensam que é um spa e depois, quando se apercebem de que é um hotel, ficam entusiasmadíssimas, bem-humoradas”, revela. A designer levou tão a sério a decoração que, no dia da inauguração do hotel, foi de pijama e de rolos na cabeça. “Foi tão engraçado andar assim no meio das pessoas de fato. Dava-me imensa vontade de rir”, lembra divertida. Perdida de riso fica também quando entra no Hotel Teatro, na Baixa do Porto, antigo Teatro Baquet, e vê a fotografia de uma plateia na parede, com a sua cara e de outras pessoas relacionadas com a obra “em cabelos, corpos e roupas de outras pessoas. Era para ser posta no chão, mas a meio da noite acordei e pensei: ‘Então vão andar por cima das nossas caras?’” E foi parar à parede. Por ali há um charriot com roupas de peças de teatro, cedidas por Filipe La Féria. “É engraçadíssimo ver os hóspedes a vestirem as roupas e a rirem-se”, afirma. Divertido sim, mas é caso sério porque o projecto venceu, em 2011, o melhor design de interiores de Portugal e da Europa nos European & Africa Property Awards. E a brincar a brincar, com algum humor, Nini vai somando prémios, como aconteceu com o Hotel The Vine, na ilha da Madeira, inspirado no tema do vinho e nos elementos naturais do espaço em que se insere. “Foi um dos hotéis com que ganhámos mais prémios”, recorda, lembrando que “é muito engraçado porque as banheiras têm o formato dos antigos carros de bois e os lavatórios de um carro de cesto da Madeira, os que descem do monte para a cidade do Funchal”, diz por entre risos. Os pavimentos das áreas sociais e dos duches têm calhaus das praias da ilha. Com um brilho nos olhos, Nini lembra o processo do Hotel Movich Buró 26, na Colômbia, e como se vestiu a preceito de colombiana, de saia e chapéu “volteado” para a apresentação do projecto no país. “Queria mostrar o que tinham de bom, a cultura colombiana. E estava com uma vontade tremenda de rir”, conta, recordando as caras sérias de quem a ouvia. Então, pôs música e dançou. Se aquilo corresse para o torto, não havia volta a dar. Correu bem e ficou com o projecto da cadeia de hotéis colombiana. Os chapéus lá estão numa das paredes, assim como muitos outros motivos da região, como o artesanato e os tapetes em materiais locais. Não há regras no humorPara a designer de interiores Gracinha Viterbo, “a vida sem humor não faz sentido e é sempre bom saber viver com ele à nossa volta, inclusive na decoração”. Afinal, diz, “um bom profissional tem de saber incutir emoções nos seus espaços e o humor é, sem dúvida, uma dessas emoções”. Foi em 1979 que a mãe, Graça Viterbo, abriu um atelier no Estoril. Em pequena, Gracinha sonhava seguir-lhe os passos e, para isso, foi estudar para Londres. Depois de uns anos fora, voltou a Portugal, e hoje assume a direcção do Viterbo Interior Design. Nos últimos anos, a designer de interiores tem sido reconhecida e premiada. Já ganhou o International Property Award para a melhor casa de luxo europeia; já foi distinguida com o Andrew Martin Interior Design Award, os conhecidos Óscares da decoração. No seu trabalho, o humor entra e “sem regras”. “Pode ser uma palavra, uma frase num néon num lugar improvável, almofadas com frases irónicas ou palavras provocadoras, gravuras ou arte desafiante e rebelde”, descreve. Como a imitação de uma tartaruga gigante na parede e de um cão enorme no chão, ou uma cadeira com o formato de uma mão. Ou uma almofada em forma de boca e uma estatueta de um macaco que é um candeeiro. “Um detalhe aqui e outro ali que desafie o humor nos espaços mesmo mais sérios”, sublinha a designer de interiores. Podem ser uns pormenores mais discretos do que outros, “mas que fazem parar e reagir, sorrir até, e sentir”, continua. O mais engraçado é, afinal, “a surpresa de encontrar o improvável na normalidade”. Como acontece em muitos dos seus projectos em vários pontos do mundo, como em Angola, Singapura ou Tailândia, em todos Gracinha Viterbo conta uma história. Também a conta na sua recente loja Cabinet of Curiosoties, no Estoril, que tem dez salas, galeria, antiquário e um espaço com objectos diferentes, “peças curiosas e improváveis, muitas delas rebeldes, únicas e com muito humor”. Mas também se pode tropeçar no humor na execução da decoração. “As instalações de projecto são sempre os momentos mais fortes e memoráveis para a minha equipa”, refere, lembrando uma cliente “muito divertida” para quem decorou uma penthouse em Banguecoque e que pôs toda a equipa a dançar. Ou as viagens em que leva artesãos e criativos ao estrangeiro. São tantas as “situações engraçadas” que Gracinha Viterbo confessa que davam um livro. “Mas tornar real o que, durante meses, é um sonho é muito especial na profissão”, resume. Mais a norte, no Porto, a designer Sheila Moura Azevedo, do ShiStudio, em Matosinhos, encheu sete apartamentos para alojamento local, na Rua de Trás, com frases típicas como “laurear a pevide”, que significa ir arejar, “picar o ponto”, que é visitar a namorada a casa dela, ou “andar no laréu”, que é passear. Outros apartamentos estão baptizados com “apanhar uma rosca”, que é o mesmo que uma bebedeira, ou ainda estar na “amena cavaqueira”, que é ter uma agradável e animada conversa com alguém. Todas elas entram logo no ouvido de tão divertidas que são. “A história por trás deste projecto é já de si engraçada”, conta a designer de interiores. Esta é uma daquelas artérias portuenses muito antigas e apertadas. Os hóspedes corriam o risco de ir à janela e dar de caras com roupas nos estendais a uma curta distância, e de ouvir as divertidas frases típicas sem as perceberem. O melhor era contornar a situação. E Sheila Moura Azevedo começou, então, a questionar-se: e se usasse as expressões nos apartamentos, para não causar estranheza? Podiam ser um cartão-de-visita para o turista que acaba por, de uma forma bem-humorada, viver dentro de portas uma experiência única do Porto e das suas gentes. “Se o espaço fosse requintado ou demasiado neutro, a surpresa dos hóspedes à chegada poderia ser nefasta para as pontuações nas plataformas de aluguer”, pensou. Solução? “Trazer o Porto verdadeiro, popular, das vendedeiras, dos frequentadores das tascas, dos misteres tradicionais, para dentro dos sete apartamentos”, recorda Sheila. Baptizou cada um dos apartamentos com uma expressão popular e decorou-os com objectos, frases nas paredes que tivessem tudo que ver com elas, como cestas, chapéus, pratos de barro, capelinhas, ou um estendal na recepção e as cabeceiras feitas de liteiras ou de vime natural. Sheila desenhou ainda cadeirões, cabeceiras, mesas de apoio. Com muita criatividade e humor, os mesmos trunfos que usou no projecto dos Genuine Oporto Apartments, outros quatro apartamentos para alojamento local, no Porto, também com divertidas frases inscritas nas paredes. Como “Ó freguês, oh p’ra estas pencas tão gordinhas e boas!”, “Ai que rica sardinha”, “Ó meu rico São João” e “das tripas coração”. Até porque, para Sheila, “o humor é fundamental em tudo na vida, e na decoração não seria diferente”. Qualquer ambiente, por mais elegante ou mais descontraído que seja, pode, então, ser pautado por elementos com algum humor mais subtil ou, como neste caso, mais evidente. Existe humor no design e na decoração em Portugal? Sim, respondem as designers de interiores. “É frequente vermos espaços com elementos humorísticos. Especialmente em hotelaria, restauração e comércio”, diz Sheila Moura Azevedo. Gracinha Viterbo acrescenta: “Somos um país com uma imensa herança artística e criativa. Cada vez mais se está a ganhar confiança em sair da caixa e ser original. ” Crê mesmo que Portugal está, “cada vez mais, na crista da onda do design internacional”. A este propósito, Guta Moura Guedes, da Experimenta Design, recorda à Culto quando a Experimenta Design criou a marca de design português Designwise. “Parte do briefing que entregámos aos designers apelava ao humor, algo que também guiava a escolha que fazíamos de peças já existentes no portfólio dos designers. ” E assim foi. Com as Juicy Boobs, dos Dasein, que eram um espremedor duplo, os lençóis Couple, de Isabel Machado e Filipe Pinto, que tinham imprimido uma fita métrica, para medir o espaço de cada um na cama. Guta Moura Guedes lembra ainda a colecção que a Experimenta Design criou para a Corticeira Amorim, Materia, que tem peças com sentido de humor. “Como o Pino, do designer Daniel Caramelo, que é um pequeno objecto de forma antropomórfica com um coração, onde se podem espetar alguns pioneses em locais estratégicos ou simbólicos, ao verdadeiro estilo vudu”. Ou o Furo, do designer Fernando Brízio, que é uma taça de cortiça assente em duas dezenas de lápis de cor. “Tem as extremidades afiadas viradas para fora, que podem servir para desenhar ou para riscar o móvel onde pousam”, descreve, entusiasmada. É importante haver humor no design? Para Guta Moura Guedes, “não é importante nem obrigatório, é puramente opcional. É um estilo, uma forma de encarar o design como outra qualquer”. Só que as peças bem-humoradas, divertidas, continua, “desanuviam-nos, alegram-nos, trazem-nos mais possibilidades e dinamismo do que outras mais ‘silenciosas’”. Para a curadora, “o humor desestabiliza, movimenta, e quando está presente no design pode ter uma enorme eficácia, pois aproxima-se das pessoas de um modo muito rápido e fica perto, no seu dia-a-dia”. Basta o nome da peça ou o texto que a acompanha. “Outras vezes é a combinação dos materiais, a inovação no modo construtivo”, realça. Porque, afinal, o humor é muito subjectivo e, como tal, sublinha, “nunca há garantia de que ele seja visto da mesma forma por todos”. Também há as cores mais bem-humoradas, as mais claras e brilhantes. “Mas não esquecer o preto e a importância milenar do humor negro. . . ”, conclui. Mas o humor está só na decoração de interiores? Então e no edifício propriamente dito quando construído, a sua arquitectura pode ter humor? Foi o que o arquitecto Francisco Rocha investigou para a sua tese de mestrado do curso de Arquitectura na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. Quis saber se realmente havia humor na arquitectura, porque “normalmente [esta] não está associada a este estado de espírito”, elucida Francisco Rocha ao telefone a partir da Suíça, onde trabalha desde que terminou o curso. “São quase cinco séculos de história de arquitectura que apresentam traços de humor”, refere. Entre os muitos arquitectos que estudou, estão Álvaro Siza Vieira, por exemplo, que “recorre a elementos puramente arquitectónicos para pautar as suas obras de ‘travessuras’ delicadas. Portas, janelas, pilares, escadas são usados como veículo de emoções, por vezes inesperadas”. Ou Eduardo Souto de Moura, que, diz, “se deixa envolver por inspirações não exclusivas da arquitectura. E projectou uma casa invertida”. Depois de estudar 25 obras de arquitectura, o jovem concluiu que há humor na arquitectura. “Podem ser coisas discretas que as pessoas não vêem logo”, sublinha Francisco Rocha, que descobriu que o humor também pode ser mais uma ferramenta que o arquitecto tem na abordagem ao projecto, além, por exemplo, do programa, das necessidades do cliente, vistas, exposição e declive do terreno, entre outras. “Defendo que o sentido de humor, que é das coisas mais subjectivas que existem, pode contribuir para um projecto”, sublinha. Pode ter as suas funções de habitar com toda a segurança, mas pode perfeitamente ter algum sentido de humor mais ou menos visível a olho nu, porque ocorre durante o processo criativo ou de construção. Por vezes, pode também ser uma forma de resolver um problema ou obstáculo que surge durante o processo. Como aconteceu, por exemplo, ao seu orientador de tese, o arquitecto Manuel Graça Dias, que se riu bastante com o projecto do edifício Golfinho, de habitação e comércio, em Chaves. Decidiu-se pela forma de golfinho para contornar a questão do terreno onde iria ser edificado, numa curva junto a uma rotunda. “Criei, então, um edifício curvo, mas depois, num dos lados, passava um ribeiro, e fiz uma curva para dentro para fugir ao ribeiro. Depois parecia mesmo a cabeça de um golfinho”, graceja Graça Dias. “Na outra curva parecia o rabo deste animal. Isto foi uma maneira bem-disposta de resolver o problema. O cliente ficou tão entusiasmado”, recorda, por entre risos. As pessoas começaram a chamar-lhe o “edifício do golfinho”, e assim ficou. A dada altura da obra, continua, “ouvia-se dizer ‘já fizemos o rabo e a cabeça e já só faltam as duas postas do meio!’, e riam-se”. O que é isto senão sentido de humor? “Brinca-se na arquitectura, não no sentido de brincar com a vida das pessoas que vão para lá viver, mas pode-se, sim, dentro do processo criativo, ter boa disposição e até surgir alguma graça”, afirma. O importante, clarifica, “é não fazer da arquitectura um drama de uma seriedade absoluta”. Mas depende da maneira de ser de cada arquitecto, claro. Pode ser uma atitude durante o processo criativo, como, por exemplo, aconteceu no velho Teatro Luís de Camões, na Ajuda, em Lisboa, e que foi feito em co-autoria com o seu colega de gabinete, Egas José Vieira — os dois são autores do Pavilhão de Portugal na Expo de Sevilha. “Divertimo-nos imenso a fazer este projecto”, recorda. O objectivo era modernizar o edifício para conforto do público e de quem trabalha no teatro; e, ao mesmo tempo, preservar o clima naif de teatro do século XIX. “É um teatro pequeno e tentámos aumentar o espaço de recepção do público”, recorda. Para isso, foi posto um desenho clássico com cubos para criar uma ilusão óptica, “o que introduz uma nota de surpresa”. “Chegaram a perguntar-nos: ‘Então o sítio é pequeno e vocês fazem um desenho grande?’, e isso tem um certo humor”, continua. Uma característica que também se evidencia quando mantiveram as escadas antigas, que eram difíceis de subir, e por cima dessas colocaram umas mais cómodas. “Foi uma brincadeira que fizemos com a questão do património, a de manter a traça original do edificado, e depois fica o paradoxo entre o antigo e o moderno”, elucida. Os arquitectos também se decidiram pela pintura às riscas, de amarelo e preto, como se fossem fitas de aviso, em todas as passagens em que é preciso baixar a cabeça para passar. E são muitas. Posto isto, Graça Dias defende que “o humor é contrariarmos um pouco o senso comum, não deixar que as verdades absolutas sejam encaradas como tal”. Pode-se fazer uma obra com a máxima seriedade e depois no atelier haver momentos de bom humor, com uma frase que é dita ou uma situação que acontece. “Até sair do atelier, um projecto demora muito tempo e podemos ser surpreendidos com momentos de boa disposição em que um problema pode ser resolvido de uma forma divertida”, continua. “A arquitectura implica tantas considerações que, muitas vezes, é difícil concretizar. Há muita burocracia e por vezes obstáculos que é preciso relativizar que só mesmo com sentido de humor”, defende o arquitecto Alvarinho Siza Vieira, que com dez anos já desenhava com precisão. O filho do conceituado arquitecto Siza Vieira diz que “há momentos em que temos de ter uma atitude de sublimação e de graça”. Foi o que fez na Casa Fez, onde vive e cujo nome foi buscar à toponímia da rua onde se situa. E que se chama assim porque o arquitecto tudo fez, desde o projecto à gestão da obra. “O que, por si só, é irónico”, graceja. Siza Vieira desenhou os puxadores, as portas e os corrimãos do edifício. “Só poderia rir e responder com algum sentido de humor à complexidade de todos os obstáculos” que foram surgindo, durante o processo da construção da casa. E fê-lo “com simbologia, recorrendo à figura do arlequim através de uma abstracção geométrica”, elucida. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “O arlequim é uma espécie de auto-retrato. ” Assim como o corpo humano tem cabeça, tronco e membros, também o edifício está organizado em casa, atelier e centro de arte. A casa é onde vive. Esta encaixa-se com o espaço do atelier e, por fim, a terceira área é a do Centro de Arte, que já tem uma associação por trás. “Há espólios da família, meus, da minha mãe e do meu pai”, explica. São documentos e obras de arte que podem ser apresentados ao público em exposições temporárias, mas também são organizadas visitas de estudo para estudantes, críticos e fotógrafos. Esta forma de o arquitecto reagir com humor vai, então, ao encontro da tese de Francisco Rocha de quem sim, há humor na arquitectura. E que é possível levar a boa disposição mesmo quando se trata de coisa séria.
REFERÊNCIAS:
Sabem aquela em que o Seinfeld e o Obama entram num Corvette de 1963 para irem beber café?
Na série Comedians in Cars Getting Coffee, Jerry Seinfeld e convidados dividem o protagonismo com carros da colecção do comediante ou escolhidos por ele. Os nossos holofotes recaem sobre algumas das peças de culto mais extraordinárias da série. (...)

Sabem aquela em que o Seinfeld e o Obama entram num Corvette de 1963 para irem beber café?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Na série Comedians in Cars Getting Coffee, Jerry Seinfeld e convidados dividem o protagonismo com carros da colecção do comediante ou escolhidos por ele. Os nossos holofotes recaem sobre algumas das peças de culto mais extraordinárias da série.
TEXTO: Jerry Seinfeld poderia ter sido apenas mais um entre os milhares de humoristas que fazem stand-up nos clubes nova-iorquinos. No entanto, em 1989, a sitcom que adoptou o seu nome mudou o rumo da sua carreira, tornando-o uma das caras mais conhecidas do humor norte-americano — melhor: do acutilante humor tipicamente nova-iorquino. Seinfeld, onde assumia uma personagem que era uma versão de si próprio e que contava com as inesquecíveis prestações de Julia Louis-Dreyfus (a neurótica Elaine), Jason Alexander (o inseguro George) e Michael Richards (o extravagante Kramer), teve nove temporadas, ao longo das quais somou dezenas de prémios. Terminou em 1998 com o estatuto de série de culto, aclamada pela crítica e pelo público, mas o seu maior feito foi ter transformado Seinfeld numa espécie de marca e de o tornar uma cara familiar um pouco por todo o mundo. O que poucos fora do circuito televisivo saberiam na época sobre Jerry Seinfeld é que ele era também um apaixonado por automóveis, ao ponto de ter hoje uma das mais valiosas colecções dos Estados Unidos. Catorze anos depois do fim da sua série homónima, o humorista decidiu voltar à TV, unindo as suas duas paixões e juntando à receita uma pitada de um ingrediente recém-descoberto — “Nunca tinha bebido café durante toda a minha vida adulta até há uns anos”, confessaria já este ano à também humorista e apresentadora de televisão Ellen DeGeneres, uma das convidadas de Comedians in Cars Getting Coffee e que retribuiu a gentileza levando Seinfeld ao seu programa, visto diariamente por uma média de 3, 9 milhões de pessoas nos EUA. “Experimentei e pensei ‘eis uma bebida fantástica e que te põe tão conversador’, e daí pensei ‘porque não faço um programa com humoristas a beber café e a ficarem conversadores?’. ”Ideia tonta, diriam uns. Sim, talvez. Mas, atenção, estamos a falar de Seinfeld (2-em-1, entre o homem e a personagem). Portanto, qualquer ideia tonta é uma ideia com potencial, como saberá qualquer fã do actor e da série. Assim sendo, obviamente, esta ideia do comediante, enquanto bebia um dos primeiros cafés da sua vida, tinha tudo para ser um sucesso. Trouxe para o cenário automóveis, alguns de culto, e transformou o Comedians in Cars Getting Coffee num êxito com direito até a polémicas — arrancou na plataforma Crackle em 2012, uma concorrente da Netflix, amealhou prémios e, inesperadamente, migrou para a plataforma-mor do streaming de séries, a própria Netflix, no ano passado, mesmo a tempo da estreia da 10. ª temporada (cereja no topo do bolo: com um dos produtores iniciais a processar Jerry Seinfeld). São já dez anos de humor feito de duplas inesperadas e de automóveis de encher o olho, escolhidos pelo próprio Seinfeld de entre a sua colecção, ou emprestados por especial favor (já que se trata de peças históricas) sempre a pensar na personalidade do seu convidado. A estreia, a 19 de Julho de 2012, não poderia ter outro convidado: Larry David, o génio da comédia contemporânea que, em conjunto com Seinfeld, deu à luz o formato de sucesso dos anos 1990. O automóvel eleito encaixa na perfeição naquilo que Larry David procura num meio de transporte: “Gosto de carros que pareçam brinquedos”, confessa, enquanto se deixa conduzir pelas ruas de Los Angeles num Volkswagen Carocha “Split Window” de 1952, em azul-celeste brilhante. Com um motor de quatro cilindros e uma potência de 25cv, o Carocha pode muito bem entrar hoje na categoria dos brinquedos. Porém, o seu projecto não foi propriamente uma brincadeira: o veículo, concebido para ser acessível após a Segunda Guerra Mundial, apresentou-se logo com uma motorização tão competente quanto económica e com uma construção irrepreensível. As poupanças chegavam de formas engenhosas, como aquela que lhe dá o nome “Split Window” — o óculo traseiro apresenta-se dividido por, como Jerry explica, ter sido feito a partir de duas peças para que o fabricante conseguisse poupar dinheiro. O carro perfeito, confessa Seinfeld, para pessoas que, “como eu, vêem a verdadeira humildade no que não está lá”. Um detalhe de fazer girar cabeças: os piscas mecânicos inseridos nos pilares B, junto às portas, que denunciam que de humilde o carro tem pouco. Afinal, trata-se da versão mais equipada do modelo, a Export, com um valor estimado em torno dos 30 mil dólares (cerca de 26. 350 euros). Se Larry David inspirou Seinfeld a escolher um carro-brinquedo, Alec Baldwin levou-o a procurar um desportivo para “tipos que não querem ser incomodados”, talvez levado pela postura muitas vezes imperscrutável do actor que tem arrancado gargalhadas pelo mundo fora com as suas participações no Saturday Night Live, em que veste a pele do Presidente Donald Trump. O Mercedes-Benz 280 SL vermelho de 1970, especialmente cedido por um concessionário nova-iorquino de clássicos, é alimentado por um motor de seis cilindros em linha, com injecção multiponto, de 2, 8 litros, que, logo nos primeiros segundos do episódio, revela o seu génio pela sonoridade do arranque, tão suave quanto agressivo. A debitar 170cv às 5750 rpm, este roadster, de capota de lona preta, admite uma velocidade máxima de 200km/h. O 280 SL é a derradeira evolução do modelo apresentado em Genebra, em Março de 1963, e descrito pelo director técnico da empresa alemã, Fritz Nallinger, como “um carro desportivo muito seguro e rápido” capaz de proporcionar “um elevado grau de conforto em viagem”. Em 1967, a Mercedes-Benz conseguiu, por fim, o que tanto almejava, ao introduzir um motor maior e com mais potência, ajustando o binário máximo para os 244Nm. A informação sobre a colecção de automóveis de Jerry Seinfeld não é pública nem fácil de encontrar, mas, e ainda que no fim de cada programa haja agradecimentos a empresas específicas sobre o empréstimo dos veículos, há suspeitas de que a grande maioria seja propriedade da chancela Seinfeld. Uma coisa, porém, é certa: os Porsches lideram a valiosa lista e o humorista tem a maior colecção do emblema nos EUA. Por isso, não admira que surjam em quase todas as temporadas: entre oito modelos apresentados, escolhemos quatro carros “especiais” ou “perfeitos”. O primeiro foi um exemplar resgatado à propriedade da polícia holandesa — um Porsche 356 SC Cabriolet de 1966, ainda com o pirilampo azul bem visível e que instala a dúvida. “Por que razão é que a polícia holandesa de 1960 sentia que precisava de Porsches descapotáveis para fazer o seu trabalho?. . . ”, desabafa Jerry, ainda antes de receber o seu convidado: Barry Marder, comediante de stand-up e, sob o pseudónimo de Ted L. Nancy, autor da colecção de livros Cartas de Um Louco (em Portugal com edição Gradiva), cuja primeira edição contou com o prefácio assinado por Jerry Seinfeld. O 356 foi construído para ser leve, ágil, apresentando motor e tracção traseiros. Com apenas duas portas, poderia ser “servido” com coupé de tejadilho rígido ou com capota de lona. Em 1966, a Porsche já descontinuara a produção, substituindo este pelo icónico 911, mas uma encomenda especial da polícia holandesa — dez 356 cabriolets — levou a marca a criar uma série especial. Foi precisamente com o especialíssimo 911 Carrera RS que Seinfeld recebeu Seth Meyers, na época um dos argumentistas de Saturday Night Live e que hoje tem um programa em nome próprio: Late Night with Seth Meyers, ocupando o lugar de Jimmy Fallon, que, por sua vez, se senta agora na cadeira que pertenceu durante anos a Jay Leno em The Tonight Show. “Há qualquer coisa neste carro que o torna perfeito”, desabafa Jerry, que não esconde o carinho extra pelo automóvel que estreou a produção em massa de um carro de corridas. “É o carro de um tipo morto; comprei-o a um tipo que morreu e não vai voltar a ser vendido enquanto eu não morrer; este carro não muda de mãos sem que alguém morra. ”Se este era um Porsche especialíssimo, o que se seguiu não lhe ficava atrás: na terceira temporada, Seinfeld convidou o conceituado apresentador televisivo Jay Leno para dar uma volta no seu 356/2 de 1949, originalmente produzido pela austríaca Porsche Konstruktionen GmbH e construído à mão numa serraria em Gmünd. A maioria das peças tinha origem Volkswagen, mas a carroçaria ganhou uma aerodinâmica pouco comum para a época, tanto pela forma como pelos detalhes, como os puxadores que surgiam recolhidos no interior das portas. O emblema regressaria na quinta temporada, logo no episódio de estreia, com um 718 RSK Spyder de 1959, para receber o humorista e actor Kevin Hart, conhecido entre nós pela sua participação em filmes como Polícia em Apuros (2014) e Central de Inteligência (2016). O RSK Spyder não é, como o comediante explica, automóvel para o dia-a-dia. É um carro de corridas e uma espécie de experiência da Porsche que pretendia provar que os pequenos motores (1, 5 litros com 150cv) em pequenos carros (apenas 562 quilos) também podiam ser rápidos nas pistas. Para Seinfeld, o propósito pode ser muito mais básico: “Se se quer dar uma volta de carro apenas pelo prazer da condução, acho que este é o melhor carro que existe para o efeito. ”Enquanto os Porsches apresentados por Jerry Seinfeld se destacam pela potência, há outros carros que se tornam vibrantes pela falta dela. É o caso do incontornável 2CV, de 1950, com motor boxer de dois cilindros, refrigerado a ar, com uns incríveis nove cavalos de potência, que compensa com uns parcos 500 quilos que se tornam fáceis de empurrar, como o comediante exemplifica no episódio em que recebe Gad Elmaleh, o comediante e actor francês de origem marroquina que dobrou a voz de Seinfeld no filme A História de Uma Abelha (2007). Desenhado para conseguir transportar em segurança cestas de ovos pelas irregulares estradas francesas em meados do século passado, o 2CV, diz Jerry Seinfeld, agrada “por ser tão francês”. Gad Elmaleh confirma que esta terá sido uma boa escolha: “Há tantos filmes antigos franceses com este carro; em todos os filmes franceses, as freiras conduzem isto. ”Talvez não pegue à primeira — e até a porta traseira se abra sozinha em andamento —, mas o 2CV, apresentado ao mundo no Salão de Paris de 1948, tornou-se extremamente popular na Europa pela sua racionalidade, tendo atingido um número de exemplares produzidos impressionante: mais de 3, 8 milhões de unidades, entre 1948 e 1990, altura em que a sua produção já estava restringida à fábrica de Mangualde. A Citroën regressou já este ano, com um SM de 1973. O coupé de elevada performance, nascido de uma parceria com a Maserati e premiado nos EUA (onde o 2CV não conquistou grande consideração), serviu de cenário para o encontro com Dave Chappelle, actor de stand-up, que também tem o seu próprio espaço na rede Netflix. Em oposição às linhas fluidas francesas, Jerry Seinfeld levou ao seu programa vários exemplares germânicos de traços mais contidos. Caso do BMW 2002tii (o 2000 reflecte a cilindrada do carro; o dígito 2, o número de portas), modelo que conseguiu abrir as portas do mercado norte-americano à marca bávara, tão importante para a sua sobrevivência. Apresentado como um dos seus carros favoritos do início dos anos de 1970, o BMW 2002 é descrito como um automóvel “divertido, desportivo, lógico”, tal como a sua convidada: a comediante Kathleen Madigan, que traz consigo o amigo Chuck Martin. Outra estrela da companhia foi o BMW 507 de 1957, um dos modelos mais icónicos de Munique, que actualmente atinge números surpreendentes em leilões que podem atingir os dois milhões de euros. Na realidade, o automóvel, que foi dos objectos mais bem conseguidos, com uma qualidade surpreendente até ao mais ínfimo detalhe, revelou-se um fracasso: foram produzidas apenas 252 unidades, uma vez que a empresa alemã depressa percebeu que não havia forma de ter lucro com este excepcional veículo. A excepcionalidade encaixava na perfeição com o seu convidado: o oscarizado actor alemão Christoph Waltz, de Sacanas sem Lei (2009) ou Django Libertado (2012). Já da Suécia, o Volvo 1800S de 1967, com motor de quatro cilindros e 115cv, foi apresentado como um automóvel para “durar para sempre”, assim como o humor da convidada: Tina Fey, estrela do Saturday Night Live e da sitcom Rockefeller 30. Num programa americano, com personalidades americanas, não poderiam faltar carros associados à cultura americana, e alguns destes habitam o imaginário também dos europeus. Caso do espectacular DeLorean DMC-12, que levou os actores Christopher Lloyd e Michael J. Fox em viagens no tempo, e Seinfeld a convidar o actor Patton Oswalt, com quem contracenou na sitcom Seinfeld, para um café. O automóvel, ainda que inicialmente construído em Belfast (Irlanda), só foi possível com o financiamento de capitais americanos. O sucesso comercial não foi animador — e o facto de deixar a dupla apeada pode explicar o fracasso —, mas o veículo mantém até hoje um carisma muito particular. “Ideal para alguém se fazer notar. ”Outra máquina que faz sonhar o Velho Continente é o Mustang, cuja comercialização deste lado do Atlântico arrancou já neste milénio. Contudo, os Mustang destacados por Seinfeld estão longe dos automóveis que hoje se passeiam, inclusive, por estradas nacionais. Por exemplo, com o actor e produtor Bill Burr, criador da sitcom animada F Is for Family na Netflix, Jerry tirou da garagem um Boss 302 de 1970: uma sinfonia de potência apoiada num bloco V8 a debitar 290cv. O modelo acelerava dos 0 aos 100km/h em 6, 9 segundos, o que, para 1970, eram valores de respeito. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O Corvette Sting Ray de 1963 não é um carro americano qualquer: é, segundo Seinfeld, o carro “mais fixe” que a indústria americana já produziu. Em azul-prateado com um interior azul e “uma espécie de forro escuro e arroxeado”, vive de um motor V8 de 5, 4 litros a debitar 250cv (com variantes que podiam ir até aos 360 cv). Jerry Seinfeld escolheu-o para um episódio com um convidado especial, que, não sendo comediante, “já disse um número suficiente de frases hilariantes para estar habilitado a participar neste programa”: Barack Obama, que na altura (Dezembro de 2015) ocupava a Casa Branca. Mas ir beber café com o então Presidente neste carro estava fora de questão, e entra em cena o automóvel presidencial: “A Besta”, um Cadillac assente numa estrutura de um tanque militar, com alguns equipamentos especiais, como bancos aquecidos e contacto directo com submarinos nucleares. Depois de uma conversa tão animada quanto séria, regada por um café de saco feito pelos próprios, ainda voltam a tentar sair do perímetro da Casa Branca com o Presidente ao volante do Corvette Sting Ray — mas nada feito. É que no programa, como actualmente nos automóveis, o divertimento é essencial, mas a segurança está em primeiro lugar.
REFERÊNCIAS:
No Porto, há uma antiga Drogaria renovada em forma de bar
Hoje é um bar, outrora era uma drogaria. Mas nem tudo mudou: ficou a rusticidade e a genuinidade do antigo espaço. De Portugal para os portuenses, aqui não se vende nada com selo estrangeiro. (...)

No Porto, há uma antiga Drogaria renovada em forma de bar
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.1
DATA: 2019-06-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Hoje é um bar, outrora era uma drogaria. Mas nem tudo mudou: ficou a rusticidade e a genuinidade do antigo espaço. De Portugal para os portuenses, aqui não se vende nada com selo estrangeiro.
TEXTO: Os pregos e os parafusos ficaram — desta vez não para venda, mas enraizados nas paredes. Também a ferrugem, a madeira antiga e a pedra que cobre as paredes são a primeira coisa que salta à vista de quem entra no Drogaria Bar. Porque Maria e Paulo quiseram que assim fosse. “Interpretámos o espaço para reaproveitar o que existia”, conta Maria Marcelino, 33 anos, designer de moda e agora proprietária do Drogaria. Abriram portas em Fevereiro, depois de um longo ano de obras. O espaço, onde antes se vendiam produtos químicos e ferragens, passou a ser o local ideal para “beber um copo”, descreve Maria. Ambos clientes da antiga drogaria, sempre gostaram de “novos desafios” e aproveitaram a oportunidade para “pôr em marcha um wine bar”. “Tivemos pessoas a dizer-nos que viam aqui uma frutaria biológica. Nós vimos um bar”, conta Paulo Vieira, 50 anos, também proprietário. As obras avançavam, “a história aparecia” — e foi preciso “assumi-la” e “preservá-la”. “Tapar as paredes com pladur” nunca esteve nos planos de Maria e Paulo. O “metal ferrugento” passou a ser “parte integrante do projecto”. O soalho, porque “estava muito destruído”, foi substituído por outro, mas com o mesmo “traço do século passado”. O antigo tornou-se novo — “e não há mal nenhum nisso”. “É o que dá carácter ao espaço”, lembra Maria. E Paulo concorda: “A beleza do espaço está no que é a sua arquitectura. ”Contrariamente à necessidade de investimento no turismo que hoje se vive no Porto, o projecto de Paulo e Maria nasceu “de raiz para portugueses”. “Nós queremos fidelizar o português. Obviamente que por arrasto aparecem cá muitos turistas”, aponta o proprietário. No entanto, o espaço também se faz de portugueses: no Drogaria não se vendem bebidas que não sejam feitas em Portugal. O rum é da Madeira, o gin do Alentejo. São bebidas mais convencionais, mas outras opções não faltam. Para os mais corajosos, há o Hidromel, o Licor de Medronho e Mel ou a Aguardente Velha das Caves São João. Para quem não se quiser atrever, o típico Licor Beirão faz justiça ao português. Os preços variam entre os dois e os oito euros. O vinho, vendido ao copo ou à garrafa, chega ao Drogaria de todos os cantos do país. Dos Açores, do Douro, da Bairrada, do Alentejo, do Algarve e do Porto, não faltam opções para os apreciadores de um bom verde, branco, tinto ou rosé. Directamente do Douro, pode provar um copo do branco Pouca Terra (3€), do tinto Muros da Vinha (2, 50€) ou do rosé Muxagat (4€). Já do Alentejo, um copo de Mirra ou de Virgo, a 3, 50€, não pode faltar. Se quiser viajar até aos Açores, pode experimentar o Curral Atlantis ou o Magma, que apenas se vendem à garrafa, a 23 e 32€, respectivamente. As cervejas — Topázio, Ónyx e Loba — são artesanais e custam entre 1, 80 e 2, 50€. Os refrigerantes, Brisa e Laranjada, vêm directamente da Madeira e dos Açores e a única água que se vende no Drogaria é a da Castello. Para quem quiser algo mais arrojado, os cocktails da casa (entre os 7 e os 8€) são uma boa opção. Os animais são recebidos de braços abertos no Drogaria BarO espaço é apenas interior, não havendo espaço para a colocação de uma esplanada exteriorApesar de ser um wine bar, Maria e Paulo quiseram incluir alguns petiscos, “não demasiado complexos”, para acompanhar a bebida. As tábuas – de queijos (9€), de enchidos (9€) ou mista (14€) — são as primeiras a constar da lista. Mas o prémio de maior variedade vai para as tostas. Há para todos os gostos: tosta de queijo e tomate com orégãos (4€), tosta de queijo da ilha com pickles de cebola roxa, nozes e mel (4, 50€) ou até tosta de punheta de bacalhau e pasta de azeitona (6€). Se preferir algo mais simples, as azeitonas e tremoços marinados (1, 50€) são uma alternativa. No Drogaria também encontra trabalhos de autores portugueses. O móvel logo à entrada, “uma das imagens de marca” mantida por Maria e Paulo do antigo espaço, tem em exposição várias peças artísticas. “Quem quiser expor, pode propor. Mas tem uma estética muito própria, não entra aqui qualquer trabalho”, explica Maria Marcelino. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os que visitam o Drogaria elogiam a “genuinidade” e a “rusticidade” do espaço, o facto de ser “bonito e confortável” e “sem formalidades”, mas sentem falta de uma esplanada. Ainda assim, Maria deixa o convite: “Temos simpatia, boa música e o ambiente é harmonioso e convidativo. ” O Drogaria Bar tem capacidade para 40 pessoas sentadas, sem esquecer que também os animais são bem-vindos. Rua de Santo Ildefonso, 220 - PortoTel: 914 054 410Instagram: @drogaria_barHorário: de terça a quinta, das 18h às 24h; sextas e sábados, das 18h às 2h. Texto editado por Sandra Silva Costa
REFERÊNCIAS:
Tempo Fevereiro
Saladas torradas
Já acordo a pensar no prato do pequeno-almoço. Tem um tomate para cortar à mesa, oregãos secos (dos selvagens), folhas de manjericão acabadas de arrancar, azeite de Portalegre, pão fresco e um coro infantil de queijos brancos. (...)

Saladas torradas
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Já acordo a pensar no prato do pequeno-almoço. Tem um tomate para cortar à mesa, oregãos secos (dos selvagens), folhas de manjericão acabadas de arrancar, azeite de Portalegre, pão fresco e um coro infantil de queijos brancos.
TEXTO: É nesta altura, princípio de Julho, que o tomate começa a ficar bom e tão irresistível que altera completamente os nossos pequenos-almoços, que deixam de ser de Inverno e passam a ser de Verão. Já acordo a pensar no prato do pequeno-almoço. Tem um tomate para cortar à mesa, orégãos secos (dos selvagens), folhas de manjericão acabadas de arrancar, azeite de Portalegre, pão fresco e um coro infantil de queijos brancos: queijinhos frescos de ovelha, feta de mergulho, requeijão e bolas de mozarella de búfala. A Maria João descobriu que o feta fica bem com a mozarella — tempera-a e tudo, dispensando o sal. Num prato no meio da mesa fica a mozarella rasgada à mão, o feta em pequenos muros destroçados, o tomate sem pele nem sementes, temperados por pouco azeite (que pode ser grego), orégãos e manjericão. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O pão é da Assafora, carcaças estaladiças do Mucifal, pão de centeio que vem de Lisboa, da padaria Gleba. É um luxo ir mudando de pães à medida que se come. Uns torram-se, outros não. Alguns levam manteiga e a combinação da manteiga com o azeite sabe melhor por parecer proibida. As combinações são muitas, começando pelo pa amb tomáquet que se vai sujeitando às variações que vão apetecendo. São saladas de tomate e queijos brancos em torradas molhadas com azeite. Não pertencem a nenhum país — pertencem a vários. Só precisam, aqui em Portugal, do pão português feito em padarias das verdadeiras que rareiam cada vez mais e não precisam de se chamar padarias "portuguesas" por não serem.
REFERÊNCIAS:
Os edifícios de José Adrião não levam ponto final
Espaço público, também muita recuperação, projectos de baixo custo, outros para fundos imobiliários, faz-se de tudo no lisboeta atelier de José Adrião. Liberdade, flexibilidade, mas também imperfeição servem para falar de arquitectura — “porque as arquitecturas perfeitas não precisam de pessoas, bastam-se a si próprias”. (...)

Os edifícios de José Adrião não levam ponto final
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Espaço público, também muita recuperação, projectos de baixo custo, outros para fundos imobiliários, faz-se de tudo no lisboeta atelier de José Adrião. Liberdade, flexibilidade, mas também imperfeição servem para falar de arquitectura — “porque as arquitecturas perfeitas não precisam de pessoas, bastam-se a si próprias”.
TEXTO: Estamos a caminho da Trafaria, vila na margem sul do Tejo quando o rio se encontra com o Atlântico, para visitar uma recuperação feita pelo arquitecto José Adrião para um casal de clientes que simboliza o trabalho que o atelier gosta de fazer. Que se pode sintetizar por uma sucessão de palavras que Adrião rabiscou numa folha antes de receber recentemente um prémio de arquitectura e que agora recorda à laia de introdução de uma das várias obras de baixo custo do seu atelier: “Informalidade, flexibilidade, mistura, imperfeição; procurar a felicidade e não a beleza, actuar sem preconceito. ”Vamos ver a casa que o atelier fez para Abed Abdeljawad, palestiniano, e Annelien, holandesa, mais os filhos Karam e Emilie, que há três anos aterraram em Portugal vindos de Dublin à procura de um sítio para viver. Ele designer, ela funcionária de uma ONG, pesquisaram no Google Earth e no Google Maps e puseram um “X” sobre a Trafaria. Compraram um pequeno edifício quase em ruína, apareceram no atelier com esta história, disseram à equipa de arquitectos que tinham um orçamento pequeno e que era igualmente importante que o processo de construção corresse sem tensões, que fosse uma coisacool. “Só queríamos ter um lugar para dormir e começar as coisas a partir daí”, explica Abed, que nos recebe nesta casa situada na Avenida Bolhão Pato, com os dois filhos pequenos; Annelien está em viagem. O espaço cheira a férias, sublinha José Adrião, principalmente neste primeiro dia do ano de muito calor, porque a praia está perto, mas também porque é uma arquitectura desenhada para uma vida normal, descontraída. Às camadas do arquitecto — que virou a casa para o pátio traseiro, transformou o piso térreo numa só divisão e ainda conseguiu construir um sótão onde pôs os quartos e a casa-de-banho —, o casal acrescentou a sua camada, como o trabalho que fez no pátio traseiro, depois de a obra já ter acabado. As paredes de tijolo em ruína de um anexo onde estão vários objectos pendurados são o cenário ideal para o que se vê da grande sala da pequena casa, também o local onde se cozinha e se faz as refeições. Abed e Annelien cortaram muitas coisas do projecto para diminuir o orçamento da construção, mas nunca desistiram da janela com mais de quatro metros de largura e outros tantos de altura que dá para o pátio das traseiras com as paredes em tijolo maciço a desfazerem-se. “As pessoas entram aqui e dizem ‘uau!’ quando descobrem o espaço por dentro”, explica Abed. Quando lhe pedimos para definir o trabalho do atelier José Adrião Arquitectos (JAA), o designer palestiniano, 36 anos, começa por usar a palavra “abertura”: “Aqui toda a gente se sente convidada. Os meus filhos chegam à sala de manhã, pegam nas coisas que estão à vista na cozinha e tomam o pequeno-almoço sozinhos. É o arquitecto que torna a vida confortável. ”José Adrião está satisfeito com o que vê um ano depois de a casa ter sido inaugurada. “Está lindo. Já há relva e vocês fizeram um trabalho fantástico com o anexo em ruínas. É isto que estava a tentar explicar quando falo sobre a importância da imperfeição em arquitectura, sobre a importância do acaso”, afirma, dirigindo-se à jornalista. O arquitecto e o seu atelier onde trabalham mais dez pessoas — “sozinho não se faz nada” — incorporam a sua visão do mundo nos projectos, a sua maneira de estar em sociedade. “Gosto de pensar que contribuo para um ambiente democrático e para a consolidação destes mesmos princípios. Acredito que a arquitectura pode, de maneira muito simples, trabalhar a partir destes pressupostos, a liberdade, a inclusão, a igualdade. [Acredito] numa arquitectura produzida a partir de um entendimento da Carta dos Direitos Humanos, criando iguais circunstâncias de uso para todos”, afirma, voltando às palavras em que reflectiu quando recebeu, este mês, o Prémio FAD Cidade e Paisagem, o mais relevante prémio ibérico de arquitectura. “Dessa ideia de perfeição já resultaram coisas horríveis, como as arquitecturas produzidas pelos regimes autoritários. Para nós, a imperfeição torna as coisas mais humanas. Revejo-me muito mais numa arquitectura que tem um carácter informal, aberto, flexível, e que aceite algumas imperfeições. É mais fácil um utilizador relacionar-se com um espaço desse género do que com uma arquitectura que tenta ser perfeita e que é um sistema fechado. As arquitecturas perfeitas não precisam de pessoas, bastam-se a si próprias”, afirma. Desenhar uma praça numa cidade é o sonho de qualquer arquitecto. Desenhar uma praça em Lisboa debaixo de um viaduto não é para qualquer um. Mas quem conhece o trabalho de José Adrião não pode deixar de achar que há projectos que têm a cara do arquitecto mesmo antes de nascerem no chão da cidade. É o caso da requalificação da Alameda Manuel Ricardo Espírito Santo, em Benfica, que para criar este novo espaço público de Lisboa trabalhou coisas tão diferentes como a esplanada do Califa, uma instituição entre os cafés lisboetas, um inesperado maciço de exóticas tipuanas, árvores originárias da América do Sul, mas também realidades menos poéticas como um parque de estacionamento que até agora albergava 500 carros ou o espaço disponível debaixo do viaduto da 2ª Circular. A intervenção que começa na alameda estende-se até ao Centro Comercial do Fonte Nova, do outro lado do viaduto, que com as suas torres desenhadas em betão e azulejo branco se destaca pela qualidade arquitectónica acima da média. Convidado pela Câmara Municipal de Lisboa em 2015, no âmbito do programa Uma Praça em Cada Bairro, foi este o projecto premiado com o Prémio FAD Cidade e Paisagem: “Achei espectacular trabalhar debaixo de um viaduto em Benfica, porque podemos fazer mais experimentação. As outras praças são na cidade consolidada e aí não seria possível experimentar tanta coisa. ” O júri do Prémio FAD sublinhou, exactamente, que “a questão da representação democrática no espaço público é uma das mais complexas da sociedade ocidental” e louvou a nova praça desenhada fora da cidade histórica. O atelier, acrescentou, foi capaz de integrar a adversidade de uma área urbana sob um viaduto com um pesado trânsito rodoviário. Estamos mais uma vez na Praça Fonte Nova, desta vez numa segunda-feira a meio da tarde, faltam poucos dias para o Verão começar. Voltámos cá várias vezes, desde que começámos esta reportagem no Inverno, quando o frio ainda afastava as pessoas dos grandes bancos com curvas sinuosas, capazes de criar dentro da praça com 3, 5 hectares sete pequenas “ilhas”. É o que José Adrião lhes chama e comportam funções diferentes, desde um parque para cães, até à fonte evocada na toponímia da praça. “É muito importante ir várias vezes ao sítio quando estamos a desenvolver um projecto. O sítio dá muitas respostas para o trabalho do arquitecto. Temos de ir de manhã, à noite, ao fim-de-semana, porque tem ocupações completamente distintas. ”Ao contrário do Inverno, hoje ainda não se acenderam as luzes que iluminam as copas das tipuanas, que dão um tecto mágico à praça quando a noite cai. Ao contrário dos domingos, onde passam mais bicicletas na ciclovia e alguns ciclistas aproveitam para fazer uma pausa, parece haver mais carros parados no parque de estacionamento, que ainda subsiste embora reduzido, porque hoje é dia de trabalho. “O estacionamento passou a ter metade da capacidade, porque foi impossível tirá-lo todo. A preocupação das pessoas é mesmo estacionamento, estacionamento, estacionamento. . . Foi uma luta e houve muita negociação. Há imensos grupos de pressão, as vozes na cidade são muito diferentes”, comenta Adrião, acrescentando que a Praça Fonte Nova guarda vários desejos de cidade lá dentro, alguns deles contraditórios, dos skaters ao donos dos cães. “Conseguiram passar de 500 para 250 lugares e a perspectiva é que o tamanho do parque de estacionamento encolha mais com o passar do tempo, porque no futuro haverá menos carros nas cidades. Os skaters disseram-nos que não queriam skateparks mas antes skatear a cidade. E concluímos que o pavimento em betão muito liso seria o melhor para todo o tipo de usos, dos skaters às cadeiras de rodas ou aos carrinhos de bebé. ”Numa das primeiras visitas ao espaço com que ia trabalhar em Benfica, o arquitecto ficou intrigado com o facto de a Estrada de Benfica se transformar em Rua Prof. José Sebastião e Silva debaixo do Viaduto da 2ª. Circular para depois reaparecer novamente, mais à frente, como Estrada de Benfica. “Como as ruas e as estradas não desaparecem assim, começámos a perceber quão complicada e interessante era a zona. Aqui, neste sítio, havia um sistema de quintas muito rico, que ainda se vê num mapa do princípio do século — falámos com pessoas que ainda se lembram desse Benfica rural e agrícola, era a Quinta das Rosas, a Quinta dos Leões, a Quinta das Flores. ”Foi nos anos 60 que a construção do viaduto da 2ª. Circular arrasou com todo este sistema de quintas de produção agrícola em terras férteis, servidas pela Ribeira de Alcântara, entretanto encanada. A nova praça é uma plataforma, um interface unido pelo betão afagado do pavimento, que trabalha sobre a memória deste sistema e sobre os problemas a resolver, incluindo os parques canino e infantil, mas também realidades mais ligadas ao desenho do chão, como o alargamento dos passeios na zona junto ao Califa, ou a integração das tipuanas que surgiram aqui nos anos 80 e dão a sombra necessária à praça. “Claro que a nova praça não repõe o sistema, mas consegue unir as duas Estradas de Benfica separadas pelo viaduto. ” Desenharam também uma fonte, que é verdadeiramente “nova” e procura atenuar o barulho dos carros, homenagem à que desapareceu, ironicamente, com a construção do Centro Comercial Fonte Nova. “A fonte é muito lúdica, porque os miúdos podem tomar banho aqui no Verão. Nunca sabem de onde vai sair a água. Ela cria mesmo uma ilha onde as pessoas estão sentadas à volta mais ou menos hipnotizadas pelos jogos de água. ”Mas das vezes que fomos à Praça Fonte Nova ainda não foi possível ver a água a jorrar da fonte, faltando também instalar dois quiosques para completar a obra. É nas ilhas que se encontram os jardins propriamente ditos, tudo o que foi decidido pelo programa preliminar ou que, entretanto, foi pedido pela população de Benfica. Os bancos com formas inusitadas que criam as sete ilhas são a imagem de marca da Praça Fonte Nova. “Nunca tínhamos desenhado bancos para um espaço público. Há quatro módulos: o recto, o curvo, a cadeira, a espreguiçadeira. As pessoas não precisam de os usar de forma passiva, mas podem escolher a maneira como se querem sentar ou deitar. ” É preciso pormos os pés para cima para nos conseguirmos encostar nas espreguiçadeiras. “Mas será que aquilo que pensamos e desenhamos vai ser usado da forma como estamos a prever? Será que o desenho potencia os usos?” — interroga-se. Antes da Praça Fonte Nova, a intervenção de espaço público mais conhecida de José Adrião é a famosa Rua Cor-de-Rosa (2011), no Cais do Sodré. O projecto, como o nome indica, que teve como cliente uma associação de comerciantes locais, quis tornar mais definitivo a decisão inicial de pintar o pavimento de cor-de-rosa, gesto que antes do concurso de arquitectura ser lançado com o convite a seis equipas de arquitectos servira apenas aos estabelecimentos nocturnos para testar a área a intervencionar. “Decidimos repintar a rua de maneira menos efémera e tornámos a intervenção mais gráfica com os limites brancos. Tornámo-la um pouco mais permanente e chamámos-lhe Rua Cor-de-Rosa para não se confundir com a Rua da Rosa no Bairro Alto. ” O nome também se tornou sinónimo de uma movida nocturna que se queria mais inclusiva em Lisboa. Não digam ao arquitecto, porém, que o atelier tem feito mais espaço público ultimamente. “Querem sempre pôr-nos numa redoma! Ou somos os das intervenções efémeras, com os projectos para a Moda Lisboa ou com o projecto Magnólia, de iluminação de Natal, que também nos deu um prémio FAD em 2012. Depois éramos os da reabilitação com o Prémio Vilalva e agora somos os do espaço público com o novo Prémio FAD para a Praça Fonte Nova. Mas gostamos de trabalhar com todos os temas, o nosso atelier faz tudo. ”Estamos no centro de Camarate para José Adrião explicar como nos projectos de baixo custo, como aqueles que fez para a Câmara Municipal de Loures, onde procurou sistematizar o espaço público para criar bons passeios, não é obrigatório usar materiais de segunda. Antes pelo contrário, numa zona deprimida, descaracterizada pelo atravessamento do Eixo Norte-Sul e fustigada pelo barulho da passagem dos aviões, o atelier optou por usar um lancil de pedra com 20 centímetros de espessura, um remate mais nobre para um espaço público que quer ser capaz de refazer o centro histórico de Camarate à volta do Largo da Igreja de Santiago. “Não poupámos nos materiais, porque o lancil em pedra calcária é investimento para durar. ” E, tal como no projecto para o centro histórico de Loures, que considera ser da mesma família do de Camarate, também foi usado um pavimento em betão pré-fabricado desenvolvido numa parceria com a cimenteira Secil. Antes de deixarmos Camarate ainda vamos espreitar uma das muitas azinhagas da zona, porque o trabalho de campo nunca está terminado e o objectivo da segunda fase do projecto, que terá início no final do ano, é unir estes antigos caminhos rurais que ainda se mantêm e são pitorescos. A pretexto de uma buganvília que impede a passagem do carro, acabamos dentro da Casa de Repouso dos Motoristas de Portugal, que dá o nome a uma das azinhagas, para perceber quem são as pessoas que atravessam todos os dias estas vielas rústicas e hão-de justificar a sua requalificação junto da Câmara de Loures. Se o interesse por projectos de baixo custo é uma das características do trabalho de José Adrião, essa é uma atitude que também tem contaminado as muitas reabilitações que o atelier já fez, mesmo a que lhe deu o Prémio Vasco Vilalva 2012 e o Prémio FAD de Interiorismo 2012 pelo projecto para a esquina da Rua dos Fanqueiros com a Rua da Conceição, em plena Baixa lisboeta, uma recuperação de um prédio pombalino já muito adulterado e a sua adaptação a apartamentos para aluguer de curta duração, conhecido como Baixa-House (o atelier chama-lhe Fanqueiros 81). “Este projecto já tinha começado em 2007, mas nessa altura a única coisa possível era o restauro integral, permitindo poucas alterações, e havia imensos projectos à espera de serem aprovados na câmara de Lisboa. Até ser definido o Plano de Pormenor de Salvaguarda da Baixa Pombalina em 2011, não era possível pôr três apartamentos por piso em vez de dois e instalar um elevador como o projecto propunha. ”O que a Baixa-House começou a fazer há sete anos, integrando os vários tempos de uma forma visível, parece mais banal hoje, mas não o era em 2011, como notou a Fundação Calouste Gulbenkian, responsável pela atribuição do Prémio Vilalva, que considerou a intervenção “um exemplo de boas práticas numa zona em que a reabilitação urbana é especialmente sensível”, salientado “a coerência entre o projecto de arquitectura e a decoração do edifício, em especial no aproveitamento ou reutilização de materiais e objectos”. “Num prédio com data de 1780, recua-se até onde?” — pergunta o arquitecto. “Voltamos ao início, quando não havia casas-de-banho ou vidros nas janelas mas só portadas? Dissemos à câmara que queríamos aceitar todas as camadas e acrescentar mais uma, infra-estruturas contemporâneas de água e electricidade, mais o elevador, e resolver as questões térmicas da cobertura. ” Quanto à nova camada, acrescentada agora, tem a certeza de que não será a última. “Temos a consciência clara que as obras estão em aberto. Não é tanto por gostar do conceito de obra aberta, que também gosto, mas porque a arquitectura é mesmo assim. Não gostamos de pôr um ponto final num edifício. ” A Baixa-House defende que as partes de tempos diferentes podem viver em simultâneo. “Não é preciso homogeneizar. Não há um tempo perfeito, nem é preciso procurá-lo. A co-existência de vários tempos num edifício é muito interessante. ”À entrada da Baixa-House, mesmo no início das escadas, aponta para a guarda e respectivo corrimão que começam com um desenho dos anos 40 antes de se ligarem à mesma estrutura mais antiga do edifício original. Não foram substituídos, nem corrigidos, e a colagem de linguagens diferentes marca o espírito da obra — aceitar a heterogeneidade do edifício e minimizar os custos. “Há muita gente a querer investir em Lisboa, mas há muitas equipas preparadas. Durante a crise ganhou-se competência e há muita gente a fazer boa reabilitação. Se fosse nos anos 80 e 90 estávamos tramados. Há dez anos a reabilitação não era considerado ‘arquitectura’. Fomos sempre habituados desde a escola a construir de raiz. Mas nós gostamos de trabalhar todos os temas e, no fundo, tudo é reabilitação. ” Hoje, acrescenta, mesmos os agentes imobiliários, para quem a reabilitação era secundária, já pensam de maneira diferente. No Largo do Stephens, junto ao Cais do Sodré, ganharam um concurso lançado por um privado, um fundo imobiliário alemão, em que os honorários pagos aos arquitectos não entraram na discussão para ganhar o projecto. Trata-se de fazer apartamentos de luxo, ou “prime”, nas palavras do arquitecto. “O processo está a ser bem conduzido. Antes, um fundo imobiliário achava uma chatice ter que contratar um arquitecto para apresentar um boneco à câmara. Agora já não é visto como um empecilho e o arquitecto é procurado para valorizar o património. Está a acontecer pela primeira vez em muitas décadas. ” Mesmo quando trabalha nestes apartamentos de luxo, o atelier não sente necessidade de usar torneiras ou interruptores topo de gama. O luxo tem a ver com luz, espaço, pé-direito alto. ”Mas nem sempre a procura de potenciar o que está no sítio, revelar o que já existe, é o elo mais forte de uma reabilitação, como podemos ver na Casa da Severa, equipamento cultural para a Câmara Municipal de Lisboa, ou na Casa dos Prazeres, a casa que José Adrião fez para si próprio. Neste dois casos, ficaram só as fachadas, porque as pré-existências também não têm que ser sagradas: “Se não há arquitectura que parta do zero, também é preciso usar as pré-existências de forma bastante descomplexada. Na Casa do Prazeres e na Casa da Severa, os interiores estavam em péssimo estado. No primeiro caso, se deitasse a fachada abaixo e fizesse um edifício de raiz a câmara obrigava a que o edifício fosse dois metros mais baixo, porque tinha que alinhar pela média dos outros edifícios da rua. ”Quem chega do Martim Moniz ao Largo da Severa, percorrendo a Rua do Capelão, percebe que a Casa da Severa (2012) conseguiu transformar um pequeno larguinho da Mouraria, desenhado ao mesmo tempo pelo atelier de Tiago Silva Dias, o objectivo de um programa da Câmara de Lisboa dedicado à reabilitação da Mouraria e do percurso até ao Castelo. Um pequeno edifício, com seis habitações distribuídas por três pisos mais sótão e onde terá vivido a fadista Severa no século XIX, foi transformado num equipamento cultural através de uma reabilitação que optou por demolir todo o interior sem condições de habitabilidade, e alterar substancialmente a fachada virada ao largo. Como o edifício tem a particularidade de estar solto em relação ao resto da típica malha urbana da Mouraria, podendo ser percorrido a toda à volta, a reabilitação reafirmou a sua presença isolada — quase como se de uma igreja se tratasse —, fazendo-se agora a entrada principal pela empena virada à praça. “A empena era praticamente cega, havendo pequeníssimas aberturas de ventilação. Resolvemos fazer uma escadaria exterior, que funciona como um prolongamento do interior, e a entrada faz-se agora pelo primeiro andar em vez de se fazer ao nível da rua. O edifício passa a ser activador da praça, transformando todo o Largo da Severa num equipamento público. É daí que vem a luz e o som. ”Lá dentro, onde há uma sala que pode atingir os 6, 5 metros de altura, além de uma cozinha, instalações sanitárias e arrumos, funciona agora a casa de fados Maria da Mouraria, explorada pelo fadista Hélder Moutinho, cuja decoração para turista parece não tirar partido do espaço. Mas o programa, lembra o arquitecto, era para um espaço diurno. Foi por ter visto a Casa da Severa que Frederico e Miguel Alexandre pediram ajuda para reabilitar um espaço mais acima, nuns escassos 20 metros quadrados do n. 54 da Rua João do Outeiro. “Foi por causa da Casa da Severa que a Mouraria se transformou, os portugueses não se aproximavam daqui”, diz Miguel Alexandre. “Isto aqui não tinha nada, era uma tragédia. ”José Adrião indica um dos bancos de pau, encostado aos azulejos brancos das paredes, para espreitarmos a vista dali. Agora, depois da porta alargada, o interior já consegue integrar a paisagem do centro histórico, que se prolonga através de uma esplanada exterior. “Aqui sentados já vemos o Convento da Graça lá em cima. Dantes não se via nada. ” A ajuda do atelier passou por gestos tão simples como este de ampliar uma porta, por encontrar também o nome adequado para o espaço e uma identidade gráfica — chama-se Jasmim da Mouraria — e por escolher uma trepadeira da mesma planta para colocar ao lado da porta pintada de azul vivo do café-bar. O atelier e os dois irmãos já têm novo projecto juntos, um restaurante mais acima na Mouraria. A casa que José Adrião fez para si próprio em Lisboa, a que chama a Casa do Prazeres, foi incluída na Colecção A Casa de Quem Faz as Casas (distribuída pelo PÚBLICO em 2016), livro com autoria de Maria Milano e Roberto Cremascoli. Situada em Alcântara na Rua Gilberto Rola, a poucos passos do atelier JAA, é uma síntese do trabalho do arquitecto e da sua maneira de viver: “A casa não é compartimentada, praticamente não tem portas, e permite diferentes utilizações dos espaços. Espaços abertos, disponíveis, onde tudo pode acontecer; espaços absolutamente versáteis”, lê-se no livro sobre a Casa do Prazeres, acrescentando-se que o atelier tem vindo a desenvolver uma reflexão sobre os mecanismos do habitar contemporâneo, de um novo habitar. “A sequência nos percursos internos de uma casa deve permitir um efeito de constante surpresa, e a compartimentação deve estar predisposta a mudanças funcionais, não havendo uma predefinição do modo como cada espaço deve ser utilizado. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Todos os espaço se misturam, deixando de fazer sentido átrios e corredores, como tem ensinado ao atelier a casa pombalina. “Não existem zonas com funções únicas: uma biblioteca pode invadir o espaço da cozinha, que por sua vez se abre sem barreiras para uma zona de trabalho, que é também um lugar de convívio”, continuam Maria Milano e Roberto Cremascoli, que chamam ao arquitecto “um arqueólogo da cidade sedimentada”, capaz de inscrever a sua camada sobre muitas outras, o tal tempo contemporâneo que é apenas mais uma camada e que, na máquina do tempo, há-de passar a ter também ela que ser reabilitada. Nesta zona da cidade que ainda funciona como uma aldeia, e onde é possível encontrar a porta da Casa dos Prazeres muitas vezes aberta, talvez porque se foi ao atelier buscar qualquer coisa esquecida, talvez porque se foi ao restaurante em frente encomendar um cozido à portuguesa para o almoço. A Rua Gilberto Rola é agora um corredor entre a casa e o atelier, a cidade transforma-se na casa de José Adrião.
REFERÊNCIAS:
Do sonho de Apichatpong Weerasethakul irrompe o pesadelo
Retrospectiva das instalações e vídeos do cineasta tailandês: a luz, o sonho e as memórias da história política da Tailândia no Núcleo de Arte - Oliva Creative Factory, em São João da Madeira. (...)

Do sonho de Apichatpong Weerasethakul irrompe o pesadelo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Retrospectiva das instalações e vídeos do cineasta tailandês: a luz, o sonho e as memórias da história política da Tailândia no Núcleo de Arte - Oliva Creative Factory, em São João da Madeira.
TEXTO: Apichatpong Weerasethakul está inquieto. Percorre, a passo rápido, uma das salas do segundo piso do Núcleo de Arte - Oliva Creative Factory, em São João da Madeira, para falar com um técnico. Não está satisfeito com o som de um dos trabalhos de Serenidade da Loucura, uma retrospectiva do seu trabalho para lá do cinema. Sim, o espectador não vai encontrar aqui os protocolos e a duração dessa arte, mas instalações, vídeos. Obras que contagiam outras obras por meio da música e da luz, processos feitos objectos, peças que nasceram de filmes, mas que não são filmes, diários escritos por uma câmara de vídeo. Pese embora o problema com o som, o cineasta tailandês não parece desconfortável no meio deste ambiente. Palma de Ouro em Cannes, em 2010, com O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores), autor de longas-metragens como Febre Tropical e Síndromas e um Século bem recebidos pela crítica, é alguém familiarizado com os trânsitos entre o cinema e os domínios mais experimentais do filme. Em meados dos anos 90 do século passado, estudou no Instituto de Arte de Chicago onde teve a oportunidade de conhecer a produção cinematográfica de Maya Deren, Andy Warhol ou Bruce Baillie (de quem seleccionou obras no contexto de um programa organizado em 2016 pela Cinemateca Portuguesa). Vale a pena especular se o seu interesse pelo sonho, por certos estados fisiológicos e mentais, que marcam o seu cinema, terá tido origem nesse período. “Talvez, não pensei muito nisso”, responde. “Mas o meu primeiro filme foi realizado em Chicago, em 1994. É um primeiro esboço da minha descoberta da luz. Usei uma pequena câmara vídeo e explorei os efeitos da luz e do tempo sobre o meu corpo”. O filme tem o título de Bullet e abre a exposição em que o visitante mais familiarizado com a obra de Apichatpong reconhecerá: rostos, paisagens, vozes e sons. Já o menos conhecedor, poderá deixar-se conduzir, ou não, por aquilo que a exposição oferece, aceitá-la como experiência. Como a melodia de guitarra do vídeo Sakda (Rousseau), vídeo que homenageia o filósofo Jean-Jacques Rosseau, ou as estranhas aparições de um cão que deambula pelas paredes da sala. Num e noutro trabalho, assomam tópicos que se associam ao universo de Weerasethakul. A relação entre o homem e natureza – a que o actor Sakda Kaewbuadee alude num monólogo inspirado no filósofo suíço – o animismo, a reencarnação. Ou o fantástico, a propósito da imagem do cão que, em termos formais, recorda a aparição de outro animal em Febre Tropical. “Sim, são duas animações, mas esta faz parte da instalação vídeo The Palace que apresentei em 2008 em resposta à colecção do Museu Nacional do Palácio de Taipé, em Taiwan. É uma colecção repleta de obras de arte e artefactos muitos antigos, a maioria trazidos da China pelo político e militar Chiang Kai-shek” [líder do governo nacionalista de Taiwan]. O cão, pintado de vermelho, que circula nas paredes, diz o cineasta, representa um ser indiferente ao valor que damos às coisas, mas sem o contexto do museu transforma-se, também, num fantasma, numa presença que desestabiliza o encontro com as outras obras. Chega mesmo a reflectir-se, a “entrar” em Windows (1999), um dos trabalhos emblemáticos de Serenidade da Loucura. Artista(s): Apichatpong Weerasethakul São João da Madeira. Oliva Creative Factory. Rua da Fundição, 240 22-06 a 02-09. Terça a domingo das 10h30 às 18h00. 2€Apichatpong não foi o primeiro cineasta, nem será o último, a abraçar as possibilidades oferecidas pela arte contemporânea. Depois das experiências no domínio do cinema experimental, deixou-se seduzir, no âmbito da cena artística tailandesa, pelos cruzamentos que aí se verificavam e dissolviam as fronteiras entre a sala de cinema e a galeria, o tempo linear do filme e a memória, mais precária, da experiência da instalação. “Essas fronteiras ainda estão lá”, sublinha, “mas vão-se tornando mais fluidas. Não procuro diferenciar os dois registos, mas, ao mesmo tempo, não quero abandonar as regras do cinema. Preciso delas, como também preciso, por vezes, de me libertar delas. A liberdade total, em termos artísticos também se pode tornar aborrecida. Não procuro um equilibro, não se trata disso, mas de um gosto por movimentos de avanço e de recuo. Ter uma sala de cinema, com uma certa lógica e as regras do tempo linear, continua a ser desafiador”. Devolva-se o desafio a Apichatpong Weerasethakul. Fará sentido descrever esta exposição como cinema? “Ah, não sei. Essa é uma pergunta para ficar no ar, sem resposta”. Volte-se a Windows. O primeiro filme realizado em vídeo pelo artista, que captura um fenómeno natural observado entre uma janela, um ecrã de televisão e uma câmara. Há semelhanças formais com algum cinema experimental americano (por exemplo, Wavelength, Michael Snow), mas o que sobressai é a projecção da luz sobre o espaço e os corpos – adivinhava-se já chegada de Fever Room, espectáculo apresentado no Teatro São Luiz há dois anos no âmbito do festival Temps d'Images, em Lisboa – e a representação visual de experiências ou estados interiores como o sonho e alucinação. O sonho continua a ser um estado e uma experiência a que o cineasta regressa de modo recorrente. Descobrimo-lo evocado na projecção circular Memoria, Boy at Sea, trabalho inédito realizado no oeste da Colômbia com a participação do ator canadiano Connor Jessup, ou em One Water, vídeo em que a actriz inglesa Tilda Swinton recorda, diante da câmara, os seus sonhos. Num e noutro trabalho, vêem-se imagens, mensagens sobrepostas, superfícies em movimento, películas translúcidas que parecem perder qualquer relação com a realidade. As paisagens físicas mesclam-se com imagens inventadas pela tecnologia, os rostos desaparecem. É como se Apichatpong procurasse reificar, representar, tornar visíveis num espaço público experiências que são absolutamente privadas. “Sim, é isso que faço, mas com uma intenção específica e a partir da minha biografia. A meu ver, há um elo biológico entre o sonho e o cinema. Precisamos de estar no escuro para experimentar a luz. Por isso, necessitamos do cinema. Acredito que há um benefício biológico que retiramos dessa experiência. A relação entre o fogo e as sombras traz-nos um certo sossego, precisamos dela. Quando era mais jovem tinha dificuldades em distinguir os filmes dos sonhos. As luzes dos relâmpagos em filmes fantásticos, a luz do sol num dia chuva, as imagens de tempestades são coisas que ficaram na minha memória e que voltam aos meus trabalhos. Quando vejo filmes, noto que o meu antigo fascínio pela irrupção inesperada da luz não desapareceu”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Há alguma violência sublimada neste fascínio, como se do sonho também irrompesse o pesadelo. O título da exposição, Serenidade da Loucura, fazendo a alusão a um dualismo composto de dois estados aparentemente contraditórios, aponta nesse sentido. Nas salas, os acordes da guitarra que saem de Sakda (Rousseau) concorrem com os sons de explosões, tiros, vozes dispersas. E a memória individual e a introspecção vão-se confrontando se com a memória colectiva e a realidade pública. A história política da Tailândia, com os traumas provocado pela repressão militar, introduz-se, conduzida por obras como Ashes, Nabua Song ou Fireworks (Archives). Este último é um dos trabalhos que melhor sintetiza a prática artística de Weerasethakul. Filmado no templo Wat Sala Kaew Ku em Nong Khai, pequena cidade na fronteira entre o Laos e a Tailândia, celebra a figura de Luang Pu Bunleua Sulilat, fundador do templo e o artista que fez as esculturas que o adornam, baseadas em fantasias, contos populares e mitos políticos. Acusado de ser comunista durante a Guerra Fria, Sulilt refugiou-se em Laos onde continuou a resistir, exponho as suas esculturas vernaculares, reflectindo sobre o amor e a vida, as lendas e a reincarnação. O cineasta lembra o artista popular, salvando do esquecimento as vítimas anónimas do regime militar, mas sem impor ao visitante qualquer tipo de teoria ou verdade. Sobre uma tela de transparente, a projecção liberta as imagens nas paredes, nos volumes da sala e nas silhuetas dos espectadores. O filme manifesta-se tridimensional e intangível no espaço, constituído pelos movimentos dos actores que durante noite passeiam pelo templo entre a luz e a sombra, sob as explosões do fogo-de-artifício. É um filme que habita, com fantasmas e mortos, aquela sala e que nos deixa entrar. A memória da Tailândia não se apaga, mesmo quando o cineasta afasta a possibilidade de um regresso ao país para fazer longas-metragens. “Para fazer curtas, pequenos projectos, sim, mas não para realizar filmes que impliquem outros meios de produção, equipas maiores. Não creio que haja condições para tal. Se a ditadura acabar, talvez volte. Entretanto, sinto-me bem na Colômbia, onde estou a escrever o guião para o meu próximo filme. É muito desafiante trabalhar com as memórias dos outros, lidar com a situação história de outro país, com seu quotidiano mais mundano. Escutar as suas histórias e pô-las em contacto com minhas”. O cineasta prefere não adiantar muito mais sobre o novo filme, em vez disso prefere apontar para Haiku, uma série de vídeo diários que realizou com a sua câmara digital portátil. Neles estão imagens que inspiraram, como estudos ou apontamentos visuais, uma boa parte da sua cinematografia. Desfilam alusões a Febre Tropical e O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores. Estes diários não se reduzem a processos de um trabalho; com o auxílio do digital, materializam memórias de situações, experiências, viagens que o cineasta decidiu partilhar. Entre o pessoal e o colectivo, o fazer solitário e o mundo, Apichatpong Weerasethakul manipula a luz aproximando o cinema das experiências da mente e do corpo. Como se o cinema pudesse trazer à luz os seus sonhos, pesadelos e memórias.
REFERÊNCIAS:
Patríck Dewaere: violência doce
É uma das solidões do ciclo da Cinemateca Feios Porcos e Maus - Um Olhar Europeu. Insolente, frágil, de uma “violência doce”, como caracterizou Alain Corneau que o dirigiu no alucinante Série Noire, Patrick Dewaere suicidou-se há 36 anos. Mas não desapareceu. (...)

Patríck Dewaere: violência doce
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.35
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: É uma das solidões do ciclo da Cinemateca Feios Porcos e Maus - Um Olhar Europeu. Insolente, frágil, de uma “violência doce”, como caracterizou Alain Corneau que o dirigiu no alucinante Série Noire, Patrick Dewaere suicidou-se há 36 anos. Mas não desapareceu.
TEXTO: Contou o realizador Alain Corneau (1943-2010) que a seguir a ter mostrado pela primeira vez ao actor Patrick Dewaere (1947-1982) o resultado daquilo que tinham andado a fazer, Série Noire (1979), Dewaere lhe fez uma pergunta a seguir ao silêncio que se instalou após o visionamento: porquê tantos grandes planos dele no filme?Era inusitada, achou o realizador, essa indagação sobre (o que pareciam ser. . . ) decisões técnicas e formais. Mais tarde, explicou Corneau, percebeu a inquietação do intérprete: ao ver-se, Dewaere sentira que atravessara o espelho para o outro lado de si e o filme deixava disso um registo irreversível — podemos ser tentados a dizer hoje que Série Noire contém o anúncio de algo irreversível. Se se consultarem os registos das entrevistas que rodearam a estreia de Série Noire, sente-se nos protocolos de voyeurismo e resguardo entre quem pergunta e quem responde, entre os filtros promocionais e jornalísticos, uma palpável malaise. Série Noite, um dos títulos do ciclo Feios, Porcos e Maus — Um Olhar Europeu na Cinemateca Portuguesa, é o melhor filme de Corneau, é o melhor do actor (e o melhor de muitos dos que nele participaram), mas não é um filme que as filhas de Patrick Dewaere, Angele Herry-Leclerc (argumentista; a mãe é a actriz Miou Miou) e Lola Dewaere (actriz; a mãe é Élisabeth Malvina Chalier), gostem de ver para se aproximarem do pai que quase não conheceram. Dewaere suicidou-se aos 35 anos, tiro de espingarda na boca, numa tarde de 1982, depois de um almoço com o realizador Claude Lelouch. O actor e o realizador trabalhavam a personagem de Marcel Cerdan para o filme que Lelouch preparava sobre os amores do pugilista com Edith Piaf (condição sine qua non imposta por Lelouch: que Dewaere se metesse no ginásio e largasse a heroína). Em Série Noire ficavam então indícios: dos trabalhos e malefícios das personagens sobre um actor, de um excesso de investimento, de uma desordem que tinha licença para matar. Trinta e seis anos depois da morte do actor, vários documentários e biografias depois (entre as quais a de Christophe Carrère, de 2017, com o pouco cerimonioso título Patrick Dewaere, l’écorché, “o esfolado”), as revelções sobre a relação turbulenta com a mãe (o filho abandonou o apelido materno Maurin e adaptou o de Waëre de uma bisavó) e as feridas íntimas (a descoberta de que o pai não era o mesmo pai dos irmãos; a violação por um familiar em criança, contada do livro de Carrère e confirmada em depoimentos do amigo Gérard Depardieu) alargam as explicações, se é que isso pode ser logrado, sobre o que foi trabalhando esse suicídio. Dizem Carrère ou Depardieu que a infância foi matando Patrick Dewaere, não foi só o cinema o serial killer – “liberto” das drogas pesadas nos últimos meses de vida, estaria mais à mercê dos seus fantasmas. E no entanto. . . Veja-se o genérico de Série Noire, o no man’s land sobre o qual o actor se entrega aos seus solos. Toda a démarche do filme de Corneau é permitir a Dewaere bailados sobre o vazio. É largar Dewaere no (seu) vazio. É criar vazio à volta de Dewaere. As primeiras imagens — funcionam como um motivo que não se despegará do filme, é a sua música interior, um grito que se ouve o tempo todo — não podem deixar de ser experimentadas, sobretudo hoje, como um jogo perigoso e como um presságio. Vemos uma personagem, que é um mitómano e um neurótico (e um assassino: “J’ai vraiment envie de tout foutre en l’air”), a “representar” para preencher o seu vazio, sem qualquer reserva de solidariedade, empatia e moral. O filme permite que essa ficção seja ocupada pelo jogo de um actor com os seus limites, uma performance a brincar com o fogo. Série Noire criou com isso a sua mitologia: a alucinante sequência das três cabeçadas da personagem na chaparia do carro (Dewaere chegou ao set e disse a Corneau que não queria protecção para o que ia fazer, mas não poderia repeti-lo, tinha de ser filmado à primeira. . . ) e aquela em que a personagem suspende a respiração debaixo de água na banheira (o realizador e a equipa também ficaram sem respirar, sem saber o que Patrick queria conseguir). Série Noire, o encontro de Corneau com o território amoral e inumano do americano Jim Thompson (adapta A Hell of a Woman), deixando-se abalroar pela paranóia da Nova Hollywood (assumidamente, o Mean Streets de Scorsese), é o momento incendiário do magnífico quarteto do início da sua filmografia: Le Choix des Armes, 1981, Série Noire, 1979, La Menace, 1977, Police Python, 1976. Aí criou híbridos do film noir de Hollywood, tradição gótica, alemã/austríaca (Siodmak, Wilder, Preminger, Lang. . . ), e da tradição francesa, psicológica (tal como exercitada por Julien Duvivier ou Jacques Becker). É um filme alucinante. De uma violência comovente. Quando Corneau disse sobre o seu intérprete que era homem alheio à brutalidade, e que por isso podia estabelecer uma “relação doce com a violência”, que deixava de ser algo de animalesco para ser um rasgão, agarrou a fragilidade de Dewaere, actor de uma geração que, com o Maio de 68 e com as experiências do mítico Café de la Gare (de onde vieram também Miou Miou ou Coluche, e por onde passou, sem se comprometer, Depardieu), quis pintar com cor e insolência a França a preto e branco imobilizada pelo boom económico do pós-guerra. O sucesso de Les Valseuses (Bertrand Blier, 1974) oficializou o fenómeno: viam-se actores a “representar” como não se via no cinema francês, brutalizando o ecrã (para muitos, foi o último rasgo de revolução que por ali aconteceu). Havia o fino e insolente bigode de Dewaere. Que, mesmo quando dava romantismo à mitomania das personagens, sinalizava igualmente uma desadequação, uma neurose (disso se alimentava um filme benigno de 1976, F. . . comme Fairbanks, de Maurice Dugowson — ausente do ciclo —, que, sendo uma história de amor com Dewaere e Miou Miou, foi rodada no momento em que o casal da vida real se separava, ficando a ficção impregnada dessa ruptura que foi a catástrofe da vida do actor). A violência nunca era escamoteada. Dewaere foi sempre ressentido, triste. Nunca pediu licença para se espatifar. Depois de Série Noire, apresentou-se a Claude Sautet de cara limpa. Com Un Mauvais Fils (1980), um e outro queriam fazer coisas diferentes. O realizador de Vincent, François, Paul. . . et les autres (1974) abandonava com esse filme a (lindíssima) série de retratos de grupo da pequena burguesia em perda da França de Pompidou. Obra recolhida, de tonalidades zurlinianas (mas o francês Sautet é, à sua maneira, um italiano), história de um pai e de um filho proletários sem palavras para exprimirem os sentimentos, anuncia as solidões dos filmes finais do realizador, com aquelas personagens retiradas do retrato social e do mundo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Dewaere aparecia contido, depois das explosões de Série Noire. Com a personagem de um toxicodependente a tentar conter a sua doença, travava um “diálogo” íntimo — é um filme de um desespero calado — com os movimentos de adicção e abstinência que sacudiam a sua existência. A recepção a Mauvais Fils, contudo, foi um dos episódios publicamente mais turbulentos da vida do actor: a imprensa boicotou entrevistas em solidariedade para com um jornalista do Journal de Dimanche que Dewaere esmurrara — porque, segundo o actor, não tinha respeitado o acordo de manter em off a informação que lhe passara sobre um passo importante (casamento) na sua vida privada. Alguém diz em Un Mauvais Fils: sair da droga? Sair para onde? Foi um dos últimos grandes filmes de Dewaere. A versão mais vital da sua insolência experimentara-se em La Meilleure Façon de Marcher (1976), de Claude Miller, que pode ser uma das descobertas do ciclo. Começa por fixar Dewaere e Patrick Bouchitey, que interpretam dois monitores de uma colónia de férias, a um espaço imobilizado e reconhecível: um é o “macho” (adivinhem quem. . . ), o outro é o “sensível”. Depois, com a cumplicidade dos actores, desencadeia a destruição do cliché, planeando uma guerra de subentendidos e de explicitações, jogos de poder e de tortura — a partir do momento em que uma personagem apanha a outra vestida de mulher. Com isso desprende-se de La Meilleure Façon de Marcher uma sensação de ameaça. E um júbilo de libertação. As personagens, e o filme, chegam a vias de facto num baile mascarado, há faca sem alguidar, mas a justeza de tom é ainda hoje de invejar. Foram esses os inícios da raiva e solidão de um actor que o cinema francês nunca premiou nas seis vezes que o nomeou para um César, cujo desaparecimento não conseguiu substituir e que se chamou Patrick Dewaere. Programação completa aqui
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