“Passou por aqui uma guerra. ” Como se cuida de uma comunidade em risco de colapso psicológico
A saúde mental das pessoas afectadas pelos incêndios de há um ano foi tema de discussão ao longo de meses. Os cuidados foram ou não suficientes? E o que foi feito? No último ano, o PÚBLICO foi falando com utentes e com as psiquiatras que coordenam as equipas que fizeram mais de cinco mil consultas. Este é o retrato de uma comunidade em sofrimento prolongado a tentar erguer-se do luto e do trauma. (...)

“Passou por aqui uma guerra. ” Como se cuida de uma comunidade em risco de colapso psicológico
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: A saúde mental das pessoas afectadas pelos incêndios de há um ano foi tema de discussão ao longo de meses. Os cuidados foram ou não suficientes? E o que foi feito? No último ano, o PÚBLICO foi falando com utentes e com as psiquiatras que coordenam as equipas que fizeram mais de cinco mil consultas. Este é o retrato de uma comunidade em sofrimento prolongado a tentar erguer-se do luto e do trauma.
TEXTO: “Não lhe chamem estrada da morte. ” Era Setembro, as festas de Verão tinham sido todas suspensas naqueles três concelhos, mas houve uma que, pela tenacidade das gentes da Moita, Castanheira de Pêra, e pela devoção à Nossa Senhora do Bom Sucesso, se manteve. Era gente triste a dançar com lágrimas, ali mesmo à beira da N236-1, que ficou com um rótulo que ninguém quer ouvir. “Ainda ontem passaram aqui uns turistas a perguntar pela estrada para verem onde morreram pessoas. Não têm vergonha”, ouve-se da conversa entre duas amigas no beiral da igreja onde dizem que se salvou uma família, no trágico dia 17 de Junho de 2017. A conversa constante em torno da estrada e de todos os outros locais onde a tragédia aconteceu é uma faca de dois gumes. Na visão dos psiquiatras que têm acompanhado o evoluir da situação mental dos utentes naqueles concelhos, o facto de as vítimas falarem, contarem o que se passou ajuda-as a conviver com o sentimento de dor, a fazer a “catarse”. Contudo, ouvirem falar de constantes responsabilidades que caem em saco roto e dos rótulos postos a locais onde vivem todos os dias acentua a dor e provoca o reavivar de memórias, que têm de estar guardadas “num sótão”, na parte de trás do cérebro, um lugar onde, quem sofre, só lá vai para as arrumar, nunca apagar. Não havia experiência em Portugal de como tratar a nível psicológico e psiquiátrico uma vasta comunidade fustigada por uma catástrofe como os incêndios do ano passado. Entre-os-Rios tinha sido um trabalho duro (a queda da ponte, em 2001, causou 59 mortos); Pedrógão Grande, Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos elevaram os problemas e riscos para a saúde mental a uma escala nunca vista e que permanecerá por muito tempo. Os especialistas socorreram-se de experiências noutros países, aplicaram muita da literatura que estudaram e admitem falhas, que constituem o pilar das recomendações que servirão de guia para melhorar trabalhos semelhantes no futuro. “Um destes dias oferecemos um galo a um paciente. Todos os dias acordava com o galo que morreu nos incêndios”, conta a psiquiatra Ana Araújo, coordenadora da equipa de saúde mental dos três concelhos afectados em Junho. A alteração da rotina matinal descoordenou as horas de sono daquele doente e o sono é elemento fundamental para a recuperação em saúde mental. Havia quem não dormisse. “Iam para a cama, reviviam momentos com as chamas, havia pessoas que nos descreviam que ouviam os estalidos das chamas, que sentiam o calor. Se a pessoa não dorme bem, tem de ser ajudada a dormir. O sono reparador é fundamental para que tudo o resto seja recuperado”, explica Célia Franco, uma das médicas psiquiatras coordenadora de equipas nos concelhos atingidos pelos incêndios de 15 de Outubro. A intervenção no dia-a-dia da comunidade, com pequenos gestos como a recuperação de animais ou consultas ao domicílio, fazem parte do trabalho que já estava no terreno pelas equipas de Saúde Mental Comunitária, uma experiência dos hospitais universitários de Coimbra em Leiria Norte (nos três concelhos afectados em Junho) e no Pinhal Interior Norte (que abarca os concelhos de Oliveira do Hospital, Tábua e Arganil). O conhecimento prévio do terreno facilitou a intervenção neste último ano. Estas equipas seguem o conhecido “modelo de Avilés”, que herdou o nome da localidade das Astúrias onde está sedeado o hospital que criou este tipo de intervenção, baseada no tratamento de doentes a partir da sua vida em comunidade. Há anos no terreno, estas equipas tinham uma lista das pessoas que acompanhavam com vários problemas, mas os incêndios trouxeram-lhes centenas de outras pessoas, com dificuldades diferentes, sem doença mental anterior associada. Gente com dificuldade em lidar com a dor, o sofrimento, em fazer o luto. No total, foram realizadas cinco mil consultas entre psicologia e psiquiatria, um trabalho considerado “suficiente” por dois inquéritos realizados pela comissão de acompanhamento da população afectada pelos incêndios, presidida por António Leuschner. “Há quem diga que há aspectos que têm sido abordados de forma superficial, não há nada de mais falso. Vamos dimensionar as coisas. As pessoas têm de ser respeitadas no seu espaço. Há pessoas que precisam de ajuda profissional, mas não podem ser obrigadas a tê-la. O processo de luto é muito individual. A natureza individual do luto tem de ser enfatizada”, defendeu. De acordo com o relatório desta comissão, mais de um terço dos inquiridos (750 no total) evidenciava “sintomas de luto complicado”. Para a Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande (AVIPG), houve desde sempre uma confusão entre o “luto” e “trauma”, que fez com que esta associação apresentasse várias queixas ao modo como estava a ser prestado apoio psicológico e psiquiátrico na zona. “Se o luto começa ao fim de meses, o trauma é no próprio dia. Se não se trabalha o trauma rapidamente, ele pode ficar crónico e cada vez é pior. No luto tem de se dar tempo”, diz Nádia Piazza, a presidente da AVIPG, associação que teve a ajuda de outros profissionais em saúde mental ao longo dos meses que discordam da abordagem que foi feita pelas entidades do Serviço Nacional de Saúde. “Nós não somos especialistas em nada: somos vítimas. O que sentimos – e hoje comprova-se – é que nós somos uma comunidade de desastre, com vários níveis de trauma. Não era uma depressão, era um trauma. Foi preciso que as entidades o percebessem e foi a muito custo. Passou por cá uma guerra que durou uma semana”, descreve. A abordagem das equipas de saúde mental foi diferente. Depois do rastreio inicial, que contou com a ajuda dos psicólogos dos Fuzileiros, e que permitiu cruzar listas de pessoas em risco, da ida porta a porta, começando por quem perdeu familiares, foi sendo feita uma intervenção de psicólogos e psiquiatras (se fosse necessário), conforme os níveis de prioridade. “Em termos da comunidade, tentámos de algum modo intervir no sentido de criar mecanismos e actividades com as pessoas que pudessem ajudar a perceber a tragédia, e [ver] como se podia melhorar e evoluir nas situações de desgosto. Criar expectativas positivas, alternativas, esperança [, como o retomar da rotina com o galo]”, diz Ana Araújo. “Agora temos de lhe dar um contexto de normalidade nesta dimensão: não queremos ‘psiquiatrizar’ a sociedade”, acrescenta. O que era melhor para uns não era válido para todos, uma vez que este é um processo muito individual: houve quem estivesse em luto profundo por ter perdido familiares e amigos, quem ficasse em stress pós-traumático por ter vivido os acontecimentos, quem já tivesse doenças mentais associadas, entre outros casos. Por isso, foi decidido pelas entidades do SNS que, depois da abordagem inicial, seria reforçado o trabalho que já era feito pelas equipas de Coimbra. E estas intensificaram a sua presença nos centros de saúde, alargaram as horas de “porta aberta”, em que qualquer pessoa podia pedir para ir a uma consulta, e aumentaram as visitas domiciliárias. Tudo com um reforço destas equipas multidisciplinares, mas que em número deixou a desejar. Foram sempre grupos pequenos com um ou dois psiquiatras, e um ou dois psicólogos, enfermeiros de saúde mental e assistentes sociais. No entanto, se o apoio psicossocial de emergência qualquer um destes técnicos pode fazer, o acompanhamento no tempo é um trabalho que implica um profissional de referência. Um exemplo: a enfermeira de saúde mental de Oliveira do Hospital é técnica de referência de duas centenas de doentes, quando o máximo é de oito a dez. A recuperação em saúde mental tem particularidades que só o tempo foi revelando, ainda mais no caso das pessoas que sofreram com os incêndios, cada qual com uma resposta inicial diferente. “Aquilo que temos percebido é que as pessoas que participaram, que foram pró-activas, acabaram por lidar melhor com a situação do que os que foram mais passivos, que ficaram com mais dificuldade em processar o sofrimento”, conta a médica psiquiatra Célia Franco, coordenadora da equipa do Pinhal Interior Norte. A reacção inicial de ajudar o outro, de tentar recompor a vida foi a “cura” para muitas pessoas, mas escondeu o sofrimento de outras, que só mais tarde se manifestou. Se houve quem aceitasse logo “que estava em sofrimento”, outros só mais tarde, depois de meses a ocuparem-se com outras actividades, “acabaram por reconhecer que precisavam de ajuda”. E para isso ajudou, acredita Ana Araújo, a presença constante dos psicólogos e psiquiatras naqueles concelhos: “Estar aqui diminui o estigma de vir ao centro de saúde procurar ajuda em termos psicológicos e emocionais. ”A braços com o sofrimento e com o trauma causado pelos fogos, muitas destas pessoas enfrentaram esse outro problema, o estigma. Se esta é ainda uma realidade em geral, quando se trata de zonas menos povoadas, esta marca é agravada. “Passou um ano e houve quem não tivesse recorrido à ajuda de psicólogos e psiquiatras. Aqui, é um pouco como ser louco ou ter problemas mentais. Acho que por isso uma grande parte ainda não fez o luto, dedicaram-se à terra [como escape]”, diz João Carvalho Viola. “As pessoas deviam pôr isso de parte e falar com um psicólogo ou psiquiatra. E, se for necessário, tomar medicação também”, diz o pintor e jardineiro da Câmara Municipal de Pedrógão Grande, que recorre às consultas no centro de saúde da vila. Mas nem todas as pessoas tomaram a iniciativa de procurar ajuda. “O que sentimos é que éramos nós que tínhamos de nos dirigir às entidades, passado o momento do porta a porta, de perguntar se as pessoas precisavam de apoio”, diz Nádia Piazza, que ficou preocupada com “quem precisava verdadeiramente de apoio, aquelas pessoas que estão de tal ordem fechadas em si a viver a sua dor que não procuram ajuda, elas rechaçam ajuda”. Depois da primeira reunião geral da associação, conta que se apercebeu que havia quem precisava de apoio e não o estava a ter. “Havia pessoas que iam às nossas reuniões de óculos de sol, não abriam a boca. Na segunda reunião tinham um colapso emocional. Cada vez que fazíamos uma reunião era como se fosse uma terapia de alcoólicos anónimos, alguém contava a sua história. ”Estes casos mais complicados de seguir pelos profissionais de saúde são também aqueles que mais os preocupam. No início, foi importante a facilitação das emoções, para que essa “expressão do sofrimento a posteriori não se transforme em doença”. Quem o conseguiu fazer está, nas palavras de Célia Franco, a “fazer a sua catarse”. “O que me preocupa são os que estão a um canto calados e que não falam com ninguém. A esses é que temos de estar atentos”, diz. Para encontrar melhor estes casos escondidos nos vales e montes, esta médica contou com um parceiro inusitado: o carteiro da vila de Oliveira de Hospital, que nas suas voltas do correio e na troca de palavras à ombreira das portas ia percebendo como estavam aqueles que moram nos recantos mais isolados. Ao ritmo da distribuição das cartas pelas aldeias e pequenos aglomerados, ia avisando ou, em linguagem médica, ia “sinalizando” às técnicas de saúde mental do centro de saúde os casos de risco que encontrava. Essa cumplicidade na comunidade foi um pilar importante para chegar a quem sofria em silêncio. “Uma comunidade que perde muitas pessoas é uma comunidade que está toda em sofrimento e é preciso uma grande interajuda. Há comunidades que são muito resilientes, apesar de tudo, e são capazes de se superar nesta amargura toda que se construiu”, acredita Ana Araújo. Nesse sentimento de comunidade foi muito importante toda a informação dos vizinhos e amigos. Ainda hoje, estas médicas pedem atenção aos “sinais de alarme”. Sinais que podem manifestar-se agora. A passagem do ano da tragédia pode pôr a nu mais algumas situações preocupantes e por isso estas profissionais pedem que as comunidades estejam atentas a alterações profundas de comportamentos. João Viola é um dos elementos que ajudam nesse processo de identificação de sinais de alarme em conhecidos e é, ele próprio, um “pró-activo”. Durante meses ocupou-se a ajudar os vizinhos, tentando afastar o trauma dando cor à aldeia de Nodeirinho, que saiu de Junho pintada a negro. Diz que não quis baixar os pincéis, mas durante algum tempo a vontade de pintar sucumbia ao desalento de não ver os vizinhos e amigos, de não ouvir pássaros e de não ver o verde das árvores a não ser no jardim da vila de Pedrógão de que é o obreiro. “Ficámos todos afectados psicologicamente. Uns disfarçam, outros tentam calcar essas imagens e enganar-se a si próprios. Nós [ele e a mulher, Dina Duarte] andámos até Setembro numa correria. Chegou Setembro e fui-me abaixo e comecei a ressentir-me de tudo. ”Depois da tal “correria”, houve dificuldades acrescidas em lidar com o regresso à normalidade. “Nestas situações há uma primeira fase de reacção aguda em que todos nós somos activados, para nos defendermos destas situações. Daí que as pessoas tenham a tendência de ir apagar os fogos, serem pró-activas [a ajudar os outros]”, conta Célia Franco. Mas depois, foi tudo mais difícil, “sobretudo porque as pessoas queriam criar rotinas e não conseguiam”, acrescenta Ana Araújo. Esta situação é mais grave nos adultos. As crianças passam melhor por estes traumas. No início foi feita uma avaliação nas escolas pelos psicólogos e professores, que tinham indicações para sinalizar uma criança, se houvesse sinais de alarme. “As crianças, regra geral, têm uma capacidade de resposta a situações de stress muito boa, assim os adultos com quem vivem reajam bem. Respostas eventualmente menos adequadas são um sintoma da situação familiar em que as crianças vivem”, explica a psiquiatra Célia Franco. Isso mesmo defende o pedopsiquiatra José Garrido, que numa conferência em Coimbra, em Novembro do ano passado, explicou que “a melhor maneira de ajudar a criança é ajudar o adulto que está com ela”. Há algumas crianças que estão actualmente a ser acompanhadas por psicólogos, porque viveram situações-limite naqueles dias, ou porque sofrem com a perda de familiares. Contudo, os mais pequenos são mais resilientes a catástrofes. “A maior parte das crianças recupera bem das catástrofes, desde que tenha apoio de adultos. O que é preciso é que os adultos expliquem à criança o que está a acontecer. Ainda não vi nenhuma criança em que o incêndio tenha sido a causa do trauma. Foi sempre outra coisa paralela”, defendeu o mesmo especialista durante um encontro para debater a saúde mental das vítimas das catástrofes dos incêndios. No entanto, o estudo Pinhal de Futuro ontem divulgado - uma iniciativa de rastreio e acompanhamento de saúde mental de crianças e jovens dos 6 aos 18 anos nas escolas das áreas afactadas pelos incêndios que deflagraram a 17 de Junho - revela que 7, 9% das crianças e adolescentes de Pedrógão sofre de síndrome pós-traumático. A coordenadora do estudo, Cristina Canavarro, explica que, dos 139 jovens acompanhados, o maior grupo de casos de stress pós-traumático encontra-se do segundo ao terceiro ciclo, ou seja, dos 10 aos 14 anos. Estas crianças apresentam “maior dificuldade de concentração” ou “alguma sintomatologia depressiva” e “ficam com uma espécie de filme mau, que é este dos incêndios, com o medo a ele associado”. A ajudar a retomar essas rotinas – que fazem parte do modelo de Avilés seguido por estas psiquiatras – esteve o longo Verão do ano passado. Pode parecer um contra-senso, mas as voltas da saúde mental não se coadunam com aparentes realidades. “Tivemos dias soalheiros, com temperatura agradável até Dezembro, o que penso que foi protector, porque as pessoas conseguiam ir organizando as coisas”, diz Célia Franco. “É sempre bom ter sol em termos das emoções e da saúde mental. Foi uma mais-valia no ano passado”, acrescenta a colega psiquiatra. O tempo muito quente pode, no entanto, reavivar memórias e trazer ao de cima traumas que estavam debaixo do tapete. “A sirene, qualquer fumo, as pessoas ficam em alerta máximo. Isso arrasta atrás de si as emoções que tiveram há um ano. Se a situação evoluir num contexto de normalidade, esta vulnerabilidade começa a apaziguar-se”, diz a médica de Pedrógão. A colega de profissão de Oliveira do Hospital sintetiza: “Sinto que as pessoas têm medo do fogo e muitas estão a hiper-reagir a qualquer fogueirinha ou situação que implique fogo. Estão fragilizadas. ”A fragilidade manifesta-se de muitas maneiras – nas crianças com a desatenção às aulas ou em reacções mais bruscas, nos adultos com mudanças de atitude. “Nós sentimos que estamos mais desatentos, com flashes. Aqui há dois tipos de pessoas, as que viram e as que imaginam. Não se pode ver um fumo ao longe que se recorda tudo”, diz Nádia Piazza. José Carlos Santos é um dos que viveram muito de perto os incêndios e que sobrevive com marcas na pele que não o deixam esquecer. É um dos cinco feridos graves de Pedrógão Grande, que esteve internado em Coimbra em coma e que passou os últimos meses do ano numa cama nos cuidados continuados na Santa Casa de Pedrógão Grande. Foi aí que recebeu acompanhamento psicológico mais frequente, pago pelos seguros, que o tem ajudado. “Na televisão só passava fogos. Consigo passar ao lado sem me preocupar com isso. Agora reviver… tenho de ir falando. Mas esquecer não esqueço. Vou ficar com as marcas. Falando é que vamos ultrapassando as coisas”, diz. Esta insistência no assunto foi difícil para aquelas gentes. “Este discurso prolongado de quem tem a culpa não ajuda as pessoas. É importante que se apurem responsabilidades, mas que não se fale nisso todos os dias”, diz o professor Leuschner. E, para piorar, aconteceu a vaga de incêndios de 15 de Outubro. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Foi péssimo. As pessoas caíram de novo em si. O não dormir, o estar sempre alerta, o acordar de madrugada”, sintetiza Nádia Piazza. Mais do que as palavras, foram alguns actos ou falta deles que serviam de gatilho para sentimentos mais dolorosos. Além dos incêndios de Outubro, a própria situação nos concelhos do incêndio de Junho arrastou-se mais do que deveria. Em Pedrógão Grande, por exemplo, as placas de sinalética nas estradas e aldeias ficaram queimadas durante 11 meses, foram mudadas no final de Maio. E mesmo antes, muito antes, logo no rescaldo daquela noite, houve muito que contribuiu para a dificuldade em ultrapassar o trauma. “Houve carros que estiveram aqui [Nodeirinho] um mês”; foi “uma semana inteira de funerais”. João Viola: “Nenhum de nós sabia se o que estava a acontecer era real ou um pesadelo. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte guerra concentração mulher ajuda negro comunidade criança doença medo estudo espécie luto vergonha
O início do fim dos tempos anormais
Estamos a viver tempos extraordinários, e é importante termos a noção disso. O BCE já deu os primeiros passos para normalização, e, mesmo depois do Verão de 2019, e devagar, as taxas de juro são subir, subindo com elas os custos das dívidas. É bom estarmos todos bem preparados para o normal. (...)

O início do fim dos tempos anormais
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Estamos a viver tempos extraordinários, e é importante termos a noção disso. O BCE já deu os primeiros passos para normalização, e, mesmo depois do Verão de 2019, e devagar, as taxas de juro são subir, subindo com elas os custos das dívidas. É bom estarmos todos bem preparados para o normal.
TEXTO: Estamos a viver um período extraordinário, e a primeira coisa a ter em atenção é isso mesmo: saber que são tempos anormais. Na sequência da grande crise financeira de 2007/2008, que atingiu em cheio a União Europeia através da dívida pública e de uma arquitectura política e económica imperfeita, os bancos centrais foram chamados a intervir. No caso do Banco Central Europeu (BCE), este reagiu mais tarde do que a Reserva Federal norte-americana, numa lógica de impactos geográficos com diferentes fusos horários, e hoje não deixa de provocar um certo sorriso nervoso o facto de ter chegado a subir a taxa de juro de referência no início de 2011, como se os problemas estivessem a ser resolvidos. Certo é que, com Mario Draghi, o BCE acabou por intervir em força em plena crise do euro, usando medidas convencionais como a descida dos juros mas para níveis inimagináveis (zero) e atravessando novas fronteiras como a compra de dívida pública dos Estados-membros. Na passada quinta-feira, cerca de três anos depois do início da grande intervenção para recuperar a economia europeia, Draghi começou o processo de normalização ao anunciar que deixará de comprar mais dívida no final do ano (mas sem deixar de manter os actuais níveis que detém no seu balanço, algo que terá de ser resolvido no futuro). Isto depois de ter aplicado mais de dois biliões de euros em toda a zona euro, dos quais 33 mil milhões de euros em Portugal (equivalente a cerca de 17% do PIB), ajudando-nos assim a manter o custo da dívida a níveis suportáveis quando as agências de rating ainda nos olhavam de lado (com excepção da canadiana DBRS, algo que vale sempre a pena recordar). A partir de agora, está tudo nas mãos dos mercados, atentos a temas como a evolução da política italiana e à forma de resolver a questão da dívida grega. Temos, depois, a questão das taxas de juro de referência, também elas ligadas à dívida, já que implicam maior ou menor custo do dinheiro. E estas estão em zero há mais de dois anos, mais concretamente desde Março de 2016. Na semana passada, Draghi deu sinais claros de que não haverá alterações pelo menos até ao Verão do ano que vem (curiosamente, a sua saída do cargo vai ocorrer em Outubro). Esta terça-feira, no encontro que se realiza em Sintra, o líder do BCE explicou-se um pouco mais: “Vamos manter-nos pacientes na determinação do momento da primeira subida das taxas de juro e teremos uma abordagem gradual no ajustamento da nossa política a partir daí”, afirmou. Cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém, diz-se, e essa estratégia de prudência face à forma como a retoma da economia europeia se está a desenvolver é a que mais convém a Portugal. É que as dívidas ainda são mais do que muitas, entre Estado, empresas e famílias. Tem havido um esforço geral de redução do endividamento desde 2011, mas é também preciso ter em conta que parte explica-se não por menos procura mas sim por menos oferta de crédito - uma espécie de desalavancagem forçada – e outra é apenas o resultado da limpeza de balanço dos bancos de créditos que nunca seriam pagos – e não porque houve quitação da dívida. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Olhando para o esforço feito, é um facto de que o Estado tem procurado diminuir o peso da dívida - com algum controlo das contas e estratégias como a antecipação dos pagamentos ao FMI -, muitas empresas estão a recorrer mais a financiamento alternativo e não apenas aos bancos – incluindo aqui o reforço ao nível interno, com menor endividamento – e os particulares também estão a fazer melhor as contas depois do susto dos anos da troika de credores e do desemprego a dois dígitos. Neste último caso, é com algum receio que assisto ao preço do imobiliário em zonas como Lisboa e Porto, para quem esteja a comprar casa com recurso aos bancos. Uma análise recente do Banco de Portugal nota que tudo aponta para “a existência de uma ligeira sobrevalorização dos preços” desde o terceiro trimestre de 2017. Desta vez não há tanto crédito a rolar para adquirir casas, porque há muito dinheiro a vir de fora - e algum de dentro - ligado a investimentos no imobiliário (sejam ou não direccionados para o turismo, através do alojamento local), mas é precisamente esse concorrência, influenciadora dos preços em alta, que enfrenta quem está a comprar a sua casa para habitar. “No período recente, o aumento continuado dos preços do imobiliário residencial foi apenas parcialmente acompanhado por aumentos do rendimento disponível das famílias”, evidencia o Banco de Portugal. Tem, também, havido menos restritividade na concessão de crédito, com tudo o que isso significa ao nível de preços mas também de análise de esforço e risco. Voltemos ao início: estamos a viver tempos extraordinários, e é importante termos a noção disso. O BCE já deu os primeiros passos para normalização, e, mesmo depois do Verão de 2019, e devagar, as taxas de juro são subir, subindo com elas os custos das dívidas. É bom estarmos todos bem preparados para o normal.
REFERÊNCIAS:
Entidades TROIKA FMI
Inteligência artificial aprende a ver de outra perspectiva
Sistema desenvolvido pela DeepMind analisa imagens de espaços e objectos e foi capaz de aprender sozinho como seria observar as mesmas cenas de outros pontos de vista. (...)

Inteligência artificial aprende a ver de outra perspectiva
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento -0.6
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sistema desenvolvido pela DeepMind analisa imagens de espaços e objectos e foi capaz de aprender sozinho como seria observar as mesmas cenas de outros pontos de vista.
TEXTO: Um humano que olhe para um muro sabe que do outro lado está, pelo menos, o outro lado do muro. Sabe também que a abertura no muro que vê à sua esquerda estaria à direita se por acaso ele próprio se encontrasse do lado oposto. E também tem a noção de que pode haver algo escondido do outro lado, que não é visível do ponto onde se encontra. Este tipo de capacidade de representação do espaço foi agora desenvolvido num sistema de inteligência artificial, embora de forma mais limitada, por investigadores da DeepMind, a cada vez mais falada empresa de inteligência artificial do Google. A equipa desenvolveu um sistema para que as máquinas possam “olhar” para imagens bidimensionais de um espaço tridimensional com objectos, conceber como seria esse espaço se o estivessem a “ver” de outra perspectiva e reconhecer que determinados pontos de vista podem esconder elementos – tudo num processo que prescinde de explicações introduzidas por humanos. Os detalhes da investigação são publicados nesta sexta-feira, num artigo científico na revista Science, no qual os investigadores defendem que a técnica é um passo na direcção de “máquinas que aprendem autonomamente a compreender o mundo à sua volta”. Os investigadores recorreram a redes neuronais artificiais, uma tecnologia popular de inteligência artificial que é vagamente inspirada no funcionamento do cérebro. As redes neuronais já são frequentemente usadas para identificar os elementos de uma imagem, incluindo por empresas como o Google e o Facebook. Tipicamente, usam descrições humanas para aprender o que são os elementos nas imagens (“uma vaca num prado” ou “um automóvel numa ponte”) e para conseguir detectar elementos semelhantes noutras imagens. O sistema criado pela equipa da DeepMind é composto por duas redes: uma para analisar as imagens bidimensionais e criar uma representação interna do espaço mostrado, e a outra para gerar novas imagens. As imagens que o algoritmo analisou para compreender o espaço não mostravam cenários do mundo real, mas antes cenários significativamente mais simples, que foram criados em computador: salas com algumas estruturas dispersas, como esferas, cilindros e cones. Contudo, as redes neuronais não contavam com a ajuda de uma explicação humana – ninguém dizia aos computadores que um determinado conjunto de píxeis era uma esfera vermelha e que outro conjunto era uma parede preta. Em vez disso, aprenderam sozinhas (através da análise de milhões de exemplos) a identificar elementos como as cores, o tamanho, a textura, bem como a disposição e o número de objectos. A partir daí, quando lhes eram dadas algumas imagens de um espaço tridimensional que nunca tinham visto (nalgumas das experiências, contaram apenas com uma única imagem), as redes neuronais eram capazes de gerar novas imagens que mostravam como seria observar aquele espaço de um ponto de vista diferente (que era determinado aleatoriamente). Estas novas imagens incluíam elementos como a direcção da luz e a projecção de sombras, sem que as máquinas tivessem conhecimento prévio do comportamento da luz ou das regras da perspectiva. Para além deste tipo de salas, os cientistas usaram imagens de labirintos virtuais, o que colocava um desafio mais complexo. Nestes casos, conseguiram treinar o sistema para que gerasse tanto novas imagens do labirinto numa perspectiva de primeira pessoa, como imagens do labirinto visto de cima, semelhantes a um mapa. A tecnologia foi ainda usada para controlar um braço robótico virtual, depois de analisadas imagens do braço e do objecto que este devia alcançar. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Em alguns casos, o algoritmo criado pela DeepMind reconhecia que não tinha informação suficiente. Por vezes, a imagem que a máquina recebia era pouco reveladora – por exemplo, como se estivesse a observar a sala de um ponto muito próximo de uma grande esfera, que escondia praticamente tudo o resto. Nestas situações, conseguia gerar várias imagens (“plausíveis”, dizem os cientistas) para mostrar como eventualmente seria ver a sala de outros pontos de vista. Em algumas experiências, a inteligência artificial colocava objectos novos nas imagens geradas. Fosse um humano a fazer o mesmo e dir-se-ia que estava a adivinhar, ou a imaginar, o que poderia existir nas zonas tapadas. Este sistema “não chega sem as suas limitações”, observa o académico Matthias Zwicker, da Universidade de Maryland, nos EUA, num comentário também publicado na Science. “As experiências estão restritas a cenas 3D simples, que consistem em alguns objectos geométricos básicos. Por isso, continua a não ser claro quão perto está a abordagem deles de compreender ambientes complexos do mundo real, o que a tornaria útil, por exemplo, para implementar um controlo prático de robôs. ”Os investigadores, por seu lado, dizem esperar conseguir aumentar a complexidade das cenas e argumentam que a investigação abre caminho “à compreensão de cenários, à imaginação, planeamento e comportamento sem qualquer supervisão”.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Fisioterapia e enfermagem de reabilitação: a última palavra
Não aspiramos excluir os enfermeiros de reabilitação como a senhora bastonária gostaria de excluir os fisioterapeutas. Eles estão convidados a fazer parte da mudança (...)

Fisioterapia e enfermagem de reabilitação: a última palavra
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Não aspiramos excluir os enfermeiros de reabilitação como a senhora bastonária gostaria de excluir os fisioterapeutas. Eles estão convidados a fazer parte da mudança
TEXTO: Na especialidade, no Parlamento, a 12 de Junho, foi auscultado o parecer da bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, sobre a criação de uma Ordem dos Fisioterapeutas. A resultante é simplesmente. . . "demasiado humana". A senhora bastonária defende que uma Ordem dos Fisioterapeutas não resolverá problemas de precariedade dos profissionais, como já se verifica com os enfermeiros. Irónico, sobretudo vindo de uma bastonária de uma ordem que coloca constantemente os direitos dos últimos acima dos direitos dos pacientes. A senhora bastonária advoga que os fisioterapeutas não são autónomos, ao contrário dos enfermeiros, e em particular dos enfermeiros de reabilitação. Alguns não têm a autonomia desejada, é verdade. E são especialmente esses — nos quais a actividade relativa a um "todo" é traída pela precariedade das prescrições e dos tratamentos parcelares — que mais se parecem com os enfermeiros de reabilitação. Porque estes últimos profissionais representam, precisamente, o subentendimento do "ser humano", praticando o que uma fisioterapia (pós)moderna abandonou há décadas. A fisioterapia de qualidade só pode atingir o seu máximo potencial se existir uma ordem que consagre, delimite, o seu valor maior. Esse valor implica uma continuidade em que o paciente não se separa do "outro", em que o próprio terapeuta é paciente da crónica insolvência do utente, e em que o intrínseco corpo não se divide em parcelas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A senhora bastonária defende que os fisioterapeutas não realizam reabilitação cardíaca ou respiratória. E a maior ignorância não é factual, está na própria divisão da "reabilitação" em especificidades. Ora, o fisioterapeuta genuíno trata todos os sistemas em simultâneo, não divisa "partes" ou técnicas. Não pergunta que método o terapeuta tem mas que terapeuta o método tem. Não há "fortalecimento" ou "alongamento" ou "massagem", há um "ser" em que o corpo fala, o que se "alonga" são as cadeias miofasciais que a vida tolhe, o que se "mobiliza" são as articulações que se intimidam, o que se "fortalece" é a capacidade de fazer frente à adversidade. Existe uma "postura" que nos pede liberdade, uma vontade que demanda coragem. Haja, também, a vontade de libertar e reforçar a fisioterapia, a qual tem o seu correlato nos milhares de fisioterapeutas que se aventuram a desvelar a profissão que já existe nos outros países. Diz, algures, a senhora bastonária que os enfermeiros de reabilitação são uma especialidade única em Portugal. Sim, em Portugal há muita coisa "única". Felizmente existe "evolução" e "terapeutas" que querem mais do que "cuidar". O fisioterapeuta português exige somente o que subsiste em tantos outros países: liberdade para poder libertar e dar ao paciente a razão de cuidar para além do "cuidado". Para isso, é preciso reforçar a componente de um "terapeuta" que ama, que "facilita", que dá com que salvar. O utente de fisioterapia não é um "enfermo", é um agente de um mundo que se dissipa, é um portador da "boa nova", é um companheiro que traslada os limites da ética convencional para abraçar a pura alquimia regeneradora. O terapeuta é um "intérprete", um comunicador do equilíbrio. Não existe para o verdadeiro terapeuta um "outro" que se cuida ou trata, uma "norma" que se perfilha, existe, sim, um "divino" que pretendemos retirar da gaiola. Assustador, não é? Nem por isso. Não aspiramos excluir os enfermeiros de reabilitação como a senhora bastonária gostaria de excluir os fisioterapeutas. Eles estão convidados a fazer parte da mudança, e muitos já aceitaram o convite, há tantos enfermeiros de reabilitação a aprender com fisioterapeutas. Na realidade, é à fisioterapia que estes enfermeiros têm ido buscar todas as últimas actualizações. Mas nem isso evita que ignorem coisas como manipulação vertebral, cadeias musculares, tratamento do neurodesenvolvimento, facilitação neuromuscular proprioceptiva, etc. Mas, pasme-se, o terapeuta serve-lhes comummente de intérprete. Por mim, fá-lo-ia também, os profissionais devem apoiar-se, aprender em reciprocidade, sobretudo com o paciente, porque é este que importa genuinamente. Sejamos nós pacientes dos nossos pacientes, a única ordem plena é a deles, pedimos a nossa para defender a deles, não o ressabiamento que alguns destilam. A senhora bastonária, quando deixar de ser política, quando desistir de iludir os seus enfermeiros enfermos como ovelhas de um objectivo puramente egoísta, está igualmente convidada a aprender com todos nós. E quando estiver, de facto, a aprender com os pacientes, mesmo que não se torne uma terapeuta, talvez consiga, ao menos, tornar-se enfermeira.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos corpo
“A arte é uma revolta contra a História”
Estuário fala do desencontro entre uma família e o Estado em plena crise. É um livro sobre a literatura enquanto tentativa de redenção. (...)

“A arte é uma revolta contra a História”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Estuário fala do desencontro entre uma família e o Estado em plena crise. É um livro sobre a literatura enquanto tentativa de redenção.
TEXTO: À volta de uma “grande mesa de três tábuas” feita para 24 pessoas, sentavam-se as 12 que restavam. Entre elas Manuel Galeano, o patriarca da casa. Todos reunidos à volta de uma carta que anunciava a derrocada económica da família. Edmundo, o mais novo dos cinco irmãos, ouviu e sentiu a urgência de escrever um livro, projecto sobre a “dobra de um tempo” em que viviam todas as criaturas — ele incluído. Esse livro era uma espécie de projecto de redenção pessoal e universal. Foi a sentir essa urgência que “antes de se levantar colocou a mão decepada sobre a mesa, ainda que os seus irmãos, insensíveis aos desastres longínquos, não a vissem”. Esta foi a cena a partir da qual nasceu Edmundo Galeano e Estuário, o mais recente romance de Lídia Jorge. Não é por ela que o livro começa, mas é nela que está génese de tudo. Uma família em ruína económica que volta à casa paterna e a ambição de um homem que perdeu três dedos da mão direita numa missão humanitária e, por causa dessa perda, se vê no “centro de um universo desconhecido”. Lídia Jorge conta: “A ideia para este livro veio quando estava a escrever a última parte de Os Memoráveis [D. Quixote, 2014]. Achei que estava a lidar com figuras representativas de um grande movimento histórico e pensei que queria fazer qualquer coisa no plano mais individual, dos cidadãos, das pessoas comuns, e inventei esta história. ” Escreveu a cena da mesa. “A leitura da carta levou a que todas as figuras se apresentassem. Foi a primeira vez que a mão apareceu na minha cabeça e tive a ideia de que o filho mais jovem tinha uma mão decepada e era aquele quem iria escrever. ”Edmundo é o protagonista de um romance realista que anda próximo do fantástico. A acção decorre em seis meses, mas atravessa os anos da crise económica em Portugal. Estamos, feitas algumas contas, em 2010. Mas a par do tempo real corre outro, mais etéreo e íntimo, dado, por exemplo, pelo avançar da caneta na mão feita só de indicador e de polegar de Edmundo, que com Milene, protagonista de O Vento Assobiando nas Gruas [D. Quixote, 2002], é a personagem mais próxima da escritora. “A Milene, porque tem pensamentos, mas não encontra as palavras. É uma perturbação. Todo o escritor sente isso, uma limitação na linguagem. É a matéria-prima mais plástica de todas, porque está próxima do pensamento, mas que não é suficiente. Daí o desafio, aquilo que Kundera dizia: que pensamos em leveza e depois, quando se escreve, escreve-se com peso. O peso vem de as palavras corporizadas estarem longe do que foi a leveza do pensamento. O Edmundo está numa situação diferente — sente que não encontra a expressão que quer e sonha com o absolutamente grandioso e depois. É um livro de formação, ele faz uma aprendizagem em frente dos leitores. ”Pensa na tal redenção. Quer por exemplo “escrever um livro para avisar a humanidade que tome conta do seu destino”. De forma menos ingénua também Lídia Jorge afirma que não há literatura sem redenção. “O impulso da arte é esse; a arte é uma forma de não deixar morrer e é também um grito contra o mal e contra a desordem, mesmo quando retrata a desordem e o caos. Adorno diz que à luz da redenção a História surge necessariamente deformada”, ou seja, sintetiza a escritora, “toda a arte é uma deformação da História, porque a queremos redimir, porque a queremos salvar”. Edmundo pensa de forma mais grandiosa, épica, ainda não sabe muito. Esse pensamento acciona a escrita, acredita Lídia Jorge, ainda que, depois, muita coisa se desmorone. “O sonho de escrever um livro que contenha a humanidade é o sonho do escritor no início de tudo. Quando se está a escrever, pensa-se assim, que mesmo que seja uma simples história de amor ela terá uma dimensão universal. Mas basta terminar a última página, ser publicado, e percebemos que cada livro é supletivo. A história só é decisiva e universal e grandiosa enquanto a estamos a escrever. Que mil pessoas escrevam da mesma maneira, outras irão escrever muito próximo disso. É isso que Edmundo se pergunta: porque é que havendo tantos livros ainda quero o meu?”É a interrogação de Lídia Jorge. “Temos a ideia de que há um caminho que ninguém poderá fazer por nós, e uma esperança de dizer uma palavra qualquer definitiva que outro ainda não disse; que não sabemos qual é, mas temos a esperança de encontrar no meio do tumulto das páginas uma linha que ilumine, que fique; que seja como o epitáfio do momento por onde se passa. ”Autoria: Lídia Jorge D. Quixote Ler excertoTalvez a salvação ou a redenção de que falava Edmundo seja isso tudo. “Não no sentido metafísico, mas de redenção humana”, esclarece a escritora. “Pode ter o sentido de transcendência, mas não necessariamente. É isso que faz com que a arte saia do curso da História. É uma tentativa de o mundo sair fora da História e criar outra lógica. A arte é uma revolta contra a História. Isso para mim é tão claro! A arte em princípio não tem Deus, faz o caminho às cegas. Por isso é tão próxima dos homens e tão dialogante; não tem um imperativo categórico de que tudo se explica, porque haverá uma transcendência que abençoa o sofrimento, o mal, a traição; abençoa tudo, um sítio onde toda a gente será recompensada. A arte é um caminho às cegas, procurando uma luz que não é absoluta. ”Edmundo ainda não sabe muito sobre esse caminho, mas intui que terá de haver uma beleza na literatura. Procura-a sem saber como a definir, como a achar. O que é a beleza na literatura? A escritora responde: “Não tem descrição. É uma sensação. É o que faz com que uma pessoa depois de encontrar uma frase maravilhosa tenha a sensação de que levita, de que foi transportada para um sítio. Talvez seja uma beleza kantiana, ainda que de Kant eu só tenha lido Kant para Totós, mas reconheço que a beleza é uma resposta contra o mal. Edmundo Galeano também pensa assim. De vez em quando estou lá, com ele. ”E, melhor do que ele, sabe do efeito da cópia. Ele copia o fim da Ilíada, “o livro dos livros”, lê-se no posfácio, “aquele a que todos procuramos acrescentar uma linha, sem nunca conseguirmos”; “o livro que inspira todas as ousadias”. Mas há a presença permanente de outro poema, a Ode Marítima, de Álvaro de Campos, e de muitos livros da biblioteca de Titi, onde se refugia à procura do momento em que um qualquer princípio se revele, enquanto cada elemento da família anda às voltas com as suas tragédias pessoais. Despreza neles o que acha ser uma futilidade e faz cópias. Quer apanhar o tom, um ritmo. “Veja o grande poema Le Cemetière Marin, do Paul Valéry. É um poema ideológico, ou pelo menos de ideias, e, no entanto, Valéry diz que a iniciativa para o poema foi o decassílabo, o ritmo apenas. É o domínio do mais sensível, sensorial, e acabou por se transformar num poema de ideias. Acho que se pode fazer a mão copiando”, afirma Lídia Jorge. E conta que fez qualquer coisa parecida quando era muito jovem. “Tinha uns 17 anos. Não copiava, mas imitava. ” Começou pelos autores do nouveau roman. “No nouveau roman a estética passa muito pela descrição de detalhes na busca do essencial; desistindo do essencial escreve-se sobre o que parece fútil como forma de atingir a profundidade máxima. Eu nem tinha bem esta noção. Lia Marguerite Duras e queria escrever assim. Depois fiz uma descoberta: Faulkner. Li The Old Man e foi uma viragem completa. ” O americano ensinou-a a ir directa ao essencial e que o mundo brutal de onde ele vinha, e ela também vinha, podia estar na literatura. “Um mundo rural, muito primitivo, agressivo, que incluía a vida dos animais e o desprezo de uns pelos outros, tinha assassinos. Era um mundo muito forte, em que as pessoas dependiam da natureza, das estações do ano. Percebi que aquele mundo francês, sofisticado, em que as pessoas comiam delicadamente à mesa e onde havia também a crueldade absoluta, mas dada às pinguinhas, dissimulada, não era o meu mundo. Com Faulkner percebi que podia falar a partir do meu mundo, com os materiais que tinha, os materiais selvagens. ”Em Estuário há isso, não da forma mais brutal ou directa que já lemos em Lídia Jorge. Estamos num presente em que ruralidade e urbanidade se misturam, mas o ADN rural é a marca mais visível. “Posso ter todas as experiências urbanas, mas sei que o mundo urbano é uma condensação de muitíssimos mundos rurais. Aprendi a gramática dos desentendimentos e dos entendimentos vendo o palco do campo, da aldeia. A aldeia é um palco extraordinário para se ver o bem e o mal. Na cidade as paredes não deixam ver a profundidade dos acontecimentos. Na aldeia as pessoas sabem até o que o vizinho comeu; é uma crueldade enorme. Ver isso é uma espécie de ensaio e, quando se faz esse ensaio em criança, a sabedoria analítica dos comportamentos humanos fica para sempre. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A conversa chega aqui porque Edmundo tem um sonho heróico; o sonho quase de um adolescente antes de perceber que o heroísmo é uma coisa diferente do que imagina. Com a família refém do Estado, os bens a serem confiscados, os últimos barcos do pai apreendidos, os irmãos a perderem tudo. E a morte a acelerar a perda. É este o tempo. Não é o tempo de uma decadência. É outra coisa. “Quando era muito jovem, fiquei marcada pelas teorias hegelianas do materialismo dialéctico, mas mais pela dialéctica. Não considero que se viva uma decadência, mas uma crise. A crise tem elementos de decadência, mas também de futuro e prosperidade. Os elementos destrutivos são brutais, mas ao mesmo tempo há os criativos. Estamos perdidos na avaliação. ” E sabe que os mitos se refazem ou reescrevem; está atenta. Mas sublinha que os escritores procuram sempre uma transcendência; pode estar apenas no encontrar da palavra certa, e não num encontro com Deus. Deus talvez não exista ou não existe mesmo. “Magritte dizia: ‘Nesta vida ou na outra pintarei sempre sobre o além. ’ Acho que os escritores fazem isso. É uma pretensão, mas uma pretensão maior. Devemos confessá-lo, para se perceber o limite da nossa ambição e dizer qual é a nossa proposta. A minha proposta é esta, posso não chegar lá, mas como Magritte também digo: nesta vida e na outra, pintarei sobre o além. ”Estuário contém estas reflexões a partir de um narrador próximo da voz de Edmundo e a convocar todas as outras vozes. “É um romance coral”, confirma e escritora, que fala como se o livro já não fosse do seu domínio. É a sua consciência da limitação da linguagem. Mas, no dia muito preciso desta conversa, há mais do que isso: a certeza de um erro. Para mostrar do que fala, abre o livro na epígrafe, lê palavras de Saint-John Perse: “Eleva-se em nós um canto/ que não conhece nascente/ e não terá foz em estuário. ” É dali que vem o título. “Ao traduzir o poema errei uma palavra fundamental. Onde está ‘foz’ devia estar ‘morte’. Pergunto-me como é que, tendo tido tanto cuidado ao traduzir, aquilo ficou assim? O que me terá motivado? É um erro enorme! Não tenho medo de parecer fútil, isso não me incomoda, mas tenho medo de ser fútil, de passar pelo que é essencial e tratá-lo como acidental. Foi o que fiz aqui. É com a palavra ‘morte’ que o livro se entende, ‘não terá morte em estuário’. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte homens humanos campo filho homem adolescente criança medo espécie humanitária
Granito, silêncio e sossego numa aldeia ajuizada
Nas Casas do Juízo é o silêncio que manda, de dia e de noite. Há décadas, viviam na aldeia cerca de três centenas de habitantes, hoje são 17. Há um forno comunitário e muitas histórias para contar. (...)

Granito, silêncio e sossego numa aldeia ajuizada
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nas Casas do Juízo é o silêncio que manda, de dia e de noite. Há décadas, viviam na aldeia cerca de três centenas de habitantes, hoje são 17. Há um forno comunitário e muitas histórias para contar.
TEXTO: Assim que abandonamos a auto-estrada e entramos na nacional passamos pelas aldeias a uma velocidade inferior a 50km/h, o que nos permite ver as casas com tempo, assim como os poucos habitantes que por ali param, nas soleiras das portas. O interior do país está abandonado. É um facto confirmado pelas casas fechadas, pelos velhos que se vêem aqui e ali e que cumprimentamos com alegria. “Boa tarde”, acenamos de dentro do carro e retribuem-nos com saudações semelhantes e um olhar curioso. Somos só uns turistas de ocasião que, por vezes, se deixam enganar pelo GPS e surpreendem-se com o interior das aldeias, aquele que não se vê da estrada. Equivocados, entramos em Souropires — em tempos Soeiro Peres, o nome do senhor daquelas terras. O telefone toca. Há uma hora que deveríamos ter chegado a Juízo e José Pinto Guerra, o empresário que reconstruiu e gere as Casas do Juízo, mostra-se preocupado. “Onde está? Vá em direcção à igreja, do seu lado direito tem o solar dos Távoras, desça, vire à esquerda…”Deixamos de ouvir e ficamos presos à frase “o solar dos Távoras”. Entramos assim numa breve lição de história para contar quem são os Távoras, como caíram em desgraça, embora não saibamos bem se estes serão os mesmos do Marquês de Pombal. Mas o edifício é imponente, monumento nacional, descobrimos depois, e faz-nos atrasar um pouco a chegada à aldeia que fica no Vale do Côa, no concelho de Pinhel, a poucos quilómetros dali. Entramos no Juízo e é fácil dar com o complexo, uma vez que está tudo devidamente identificado; além disso, José Pinto Guerra espera-nos na estrada empedrada, ajudando-nos a estacionar perto da Taberna do Juiz, o espaço de restauração que abriu para servir quer quem fica nas casas, quer quem vem de fora para petiscar. Comecemos do princípio. José Pinto Guerra é do Juízo, saiu para estudar na Guarda, fez engenharia no Instituto Superior Técnico nos anos quentes da revolução — então, pensou estudar fora, mas terminou o curso e trabalhou na Marinha Grande. O tempo passou e recuperou, há 20 anos, uma casa na aldeia. Em 2014, o engenheiro e a mulher regressaram à terra com a ideia de fazer um turismo rural. Foram comprando as casas que pertenciam à família, “aos primos e assim”. A rua separa os dois espaços: de um lado, a casa onde tudo começou, aquela que o casal habita quando está na aldeia, assim como quatro casas que podem ser arrendadas em qualquer altura do ano; do outro lado da rua, está o complexo construído mais recentemente, com mais quatro casas e a Taberna do Juiz, que rodeiam a capela, com um forte Cristo de pedra. “Tentaram roubá-lo partindo-lhe as pernas, mas não conseguiram porque é de granito, muito pesado”, recorda José Pinto Guerra enquanto mostra, orgulhoso, a capela que a família ofereceu à freguesia e onde só se reza missa com autorização do bispo. Rua de São Lourenço Vale do Côa Tel. : 271 401 009/ 927 585 758 E-mail SiteTaberna do Juiz: 916 555 463 Diárias na época alta e fim de ano: entre 85€ (T0) e 240€(T4)O granito domina a aldeia e as casas reconstruídas, por dentro e por fora. “Estava tudo muito degradado, os pátios cheios de silvas. Inicialmente, pensámos só pôr telhados e portas, mas depois tivemos de fazer tudo”, descreve. As oito casas ganharam os nomes dos espaços que antes ali ficavam, como a Casa da Capela, paredes-meias com o recinto religioso; a Casa do Museu, um pequeno T0 construído em torno do engenho de um lagar; a Casa do Telheiro, ao lado de um espaço coberto onde várias mesas e cadeiras convidam a ficar; ou a Casa do Juiz, com grades nas janelas e que se crê terá sido uma pequena cadeia — a aldeia deve o seu nome à possível existência de um juiz na localidade, conjectura o proprietário. Ao todo, as casas, com diferentes tipologias (do T0 ao T4) comportam 30 pessoas. As casas estão apetrechadas com tudo o que precisa para cozinhar no local, do fogão ao frigorífico, e na Taberna do Juiz pode comprar alguns ingredientes para a receita que quer fazer, caso se tenha esquecido de a adquirir na mercearia mais próxima, que não fica na aldeia, mas nas localidades vizinhas. Se quiser ir ao supermercado, deverá ir a Pinhel ou a Trancoso. O empreendimento tem ainda uma piscina coberta, uma estufa e uma quintinha com animais. Quem não quiser cozinhar pode sempre tomar as refeições — o pequeno-almoço (8€/pessoa) ou uma refeição (entre 10 e 15€/pessoa) — na Taberna do Juiz. É lá que tomamos um pequeno-almoço muito completo: do sumo natural aos batidos, dos iogurtes aos cereais, dos pães de sementes à bola de carne, passando pelos biscoitos de manteiga e o bolo mármore caseiro. E também um jantar composto por uma tábua de enchidos e de queijos, uma sopa fantástica de favas (com a casca da leguminosa incluída), alguns petiscos e sobremesa. O silêncio domina a aldeia, de dia e de noite. Há décadas eram cerca de três centenas os habitantes, hoje são 17. Há um forno comunitário, um espaço onde antigamente se punham as ferraduras ao gado, vários poços e muitas histórias para contar com algumas curiosidades como uma oliveira milenar ou vestígios romanos, enumera José Pinto Guerra, que gosta de mostrar o Juízo com tempo e, com a mulher, Isabel, imagina novas actividades para promover a terra. Há tempos recriaram uma merenda como a que os trabalhadores do campo faziam, carregada numa burra; agora já estão a planear a apanha da amêndoa. Isabel é a criadora dos ajuizados, uns bolinhos com amêndoas da propriedade, e da Pinga do Juízo, um licor de figo. O casal não revela o segredo de um e de outro, mas Isabel já anda a magicar uma receita nova para uns biscoitos que possa partilhar com os mais curiosos. De manhã, André e Daniela abrem a Taberna para tomarmos o pequeno-almoço. No final, juntam uma série de panfletos — da Grande Rota das Aldeias Históricas de Portugal, de Pinhel, da Grande Rota do Vale do Côa, do Parque Arqueológico do Vale do Côa. O Juízo fica bem localizado, no cruzamento das rotas das Aldeias Históricas e do Vale do Côa, e Daniela dá uma sugestão de como fazer o melhor percurso para aproveitar bem o fim-de-semana. Obedientes, cumprimos o percurso sugerido. Começamos por Marialva e subimos até ao castelo, continuamos para Vila Nova de Foz Côa e almoçamos doses generosas no restaurante do museu. Aproveitamos para ficar e usufruir da vista sobre o vale do Côa, assim como para visitar o museu, já que para ver as gravuras in loco é preciso marcar com antecedência. “Se quiserem muito ir, também se arranja, mas sugiro voltarem”, diz José Pinto Guerra. Daniela é da mesma opinião e estabelece em que altura deveremos regressar — no Inverno, quando está frio e as casas são muito quentinhas com as mantas e a lareira. O nosso percurso continua em direcção a Castelo Rodrigo, mais uma aldeia histórica, mas antes fazemos um desvio até à serra da Marofa, onde, do alto dos seus mais de 900 metros, há antenas retransmissoras, mas também um Cristo Rei de braços abertos, desde 1956, a olhar para Espanha, lá ao fundo. Depois de Castelo Rodrigo, chegamos a Almeida, seguimos para Castelo Bom e depois Castelo Mendo — tudo na rota das aldeias históricas. Há sugestões para fazer estas rotas caminhando, em BTT ou mesmo em todo-o-terreno. No Verão, além da piscina das Casas do Juízo, existem praias fluviais para descobrir na região. E, com tempo, é possível planear uma viagem de barco ou de comboio pelo Douro. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Terminado o fim-de-semana, concluímos que José Pinto Guerra tem razão, falta tempo para explorar a zona com calma. “Quando precisarem de juízo, venham até ao Juízo”, brinca. As casas são muito agradáveis, com todas as comodidades necessárias para umas férias prolongadas. A limpeza, arrumação dos quartos é feita diariamente. Os espaços primam pelo conforto e no Inverno há lenha para alimentar a salamandra. A piscina é interior e tem um pequeno ginásio, não se esqueça da touca. O silêncio e a vista para o casario contribuem para que esqueçamos o movimento da cidade. Os móveis são sólidos e as camas confortáveis, mas não há coerência na decoração dos espaços. Por exemplo, na Taberna do Juízo há uma parede cheia de pratos pendurados, onde os antigos convivem com os tradicionais e outros de uso comum. O casal reconhece que, por vezes, compra objectos e que pensa se ficarão bem. Muitos não ficam. A Fugas esteve alojada a convite das Casas do Juízo
REFERÊNCIAS:
A Santiago também se sobe de olhos no mar
Nem tanto ao mar nem tanto à terra. A rota de peregrinação histórica agora recuperada sobe o litoral Norte entre o oceano, a serra, os rios, as povoações e o património arquitectónico. O caminho é uno, mas o que se vê lá fora e o que se sente cá dentro é tão diverso quanto o número de peregrinos. Já se adivinha o problema: é vício sem cura ou antídoto. (...)

A Santiago também se sobe de olhos no mar
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nem tanto ao mar nem tanto à terra. A rota de peregrinação histórica agora recuperada sobe o litoral Norte entre o oceano, a serra, os rios, as povoações e o património arquitectónico. O caminho é uno, mas o que se vê lá fora e o que se sente cá dentro é tão diverso quanto o número de peregrinos. Já se adivinha o problema: é vício sem cura ou antídoto.
TEXTO: Não fosse aquela concha de vieira, gorda e rosada, e talvez Nuno Gaspar não estivesse hoje aqui. Talvez nenhum dos quatro ciclistas portugueses descesse agora a rua a alta velocidade rumo a Santiago de Compostela. Há uns anos, o espanto de esperar peixe e ver o pequeno molusco “a esguichar água” no extremo do anzol foi um “sinal” para Nuno. Nunca tinha ouvido falar de vieiras por ali, quanto mais conchas apanhadas à cana. “Foi um chamamento”, diz entre o sério e o gracejo, com a concha sobre a testa, qual farolim, presa aos aros do capacete. “É a terceira vez que faço o caminho e é a terceira vez que a vieira vem comigo. ”Dos quatro, Nuno é o único para quem ter como meta o túmulo do apóstolo não é uma estreia. Já fez duas vezes o Caminho Português Central a partir do Porto. E, agora, desafiou três amigos do BTT a saírem de Lisboa rumo a Santiago, derivando no Porto para o Caminho Português da Costa. Desde o ano passado que a rota se encontra totalmente reabilitada, com nova sinalética ao longo do percurso, desde o Porto até Valença. De sábado a sexta-feira, conta Pedro Vilante, planeiam pedalar entre “90 e 100 quilómetros por dia”, ficando a dormir onde o cansaço dita o fim de cada etapa. Para Nuno, no entanto, há uma paragem obrigatória: visitar o albergue de peregrinos em Caldas de Reyes. “É a minha família galega. ” Há quatro anos, quando ali chegou pela primeira vez, encontrou o proprietário à porta para o receber, a mãe debruçada sobre a janela e a filha sentada nas escadas. Como se estivessem ali desde sempre à espera dele. Foi um sentimento de encontro, de pertença, de empatia. Daqueles que não se conseguem transpor em palavras. “Depois estava lá outro rapaz, que também se chamava Nuno e que também era português, que tinha estragado os sapatos no caminho. ” O dono do albergue apercebeu-se e veio com um presente nas mãos. “Não te deixo sair daqui sem as botas que eram do meu pai”, recorda ouvi-lo dizer. Em Setembro do ano passado, Nuno voltou ao caminho e ao albergue. “Ficámos uns cinco minutos abraçados. Sem falar. ”Desta vez, não devem ficar alojados no albergue. Mas para Nuno aquele reencontro faz tão parte do caminho quanto o caminho em si. Tem de lá ir. Nem que para isso tenha de obrigar os amigos a um pequeno desvio. Depois do abraço, não faltarão mais do que 36 quilómetros para chegarem a Santiago de Compostela. Um instante para quem, naquele momento, já carrega 500 quilómetros nos pedais. “A vida é dura e o caminho também”, resume às tantas um esforço que nem esforço parece ser. E o fim? Qual é a sensação de finalmente vislumbrar a catedral? “Desmanchei-me quando lá cheguei pela primeira vez”, confessa Nuno. “Não faço o caminho pela religião, mas é uma comoção que não se explica. ”Quando encontramos os quatro ciclistas portugueses em Carreço, no concelho de Viana do Castelo, pouco falta para contrariarmos o rio Minho até Valença e terminarmos o Caminho Português da Costa. Espanha começa para lá da ponte metálica e, a partir dali, as principais rotas peregrinas portuguesas convergem num único trajecto assinalado em direcção a Santiago de Compostela. Deste lado da fronteira, o Caminho Português Central é o mais conhecido e aquele que é tido como o mais antigo em território nacional. Os registos históricos remontam-no, pelo menos, ao século XII, altura em que a maioria dos peregrinos fazia o percurso por Braga. Era sede da diocese e a alternativa mais viável. “Até à construção da ponte de Barcelos era difícil atravessar o rio Cávado [na zona mais litoral]”, conta Manuel Araújo, técnico superior do Arquivo Histórico Municipal do Porto. Além de estudar os caminhos de Santiago há cerca de “25 ou 30 anos”, Manuel é peregrino há mais de 20, com muitas rotas jacobinas percorridas. Depois da primeira experiência, garante, “fica-se de tal maneira viciado que não há antídoto para isto”. Com a descida das populações do Norte até à orla costeira e a edificação de uma economia baseada nos recursos do mar, os habitantes devotos das novas povoações fixadas junto ao litoral terão iniciado uma nova rota de peregrinação até Santiago de Compostela. Em vez de alongarem o percurso num desvio pelo interior do país, as populações costeiras e os peregrinos que desembarcavam nos portos marítimos subiam em recta pela costa, partindo de vila em cidade até à travessia ribeirinha final para Espanha. Assim terá nascido o Caminho Português da Costa no século XV. Embora “haja quem diga que até é anterior ao central”, aponta Manuel Araújo. É que o percurso passa junto à igreja paroquial de Castelo do Neiva (concelho de Viana do Castelo), o mais antigo templo dedicado a Santiago fora do território espanhol. De acordo com os registos históricos, terá sido consagrada no século IX, pouco depois da descoberta do túmulo do apóstolo em Compostela e três séculos antes da criação do Reino de Portugal. Esta rota jacobina — que se separa do caminho central no Porto, subindo a faixa costeira por Vila do Conde, Esposende, Viana do Castelo, Caminha — caiu entretanto em desuso e manteve-se esquecida quando, em meados do século passado, as peregrinações a Santiago de Compostela receberam um novo impulso. Enquanto o percurso pelo interior do país ascendia a uma das rotas mais populares até Santiago (a segunda mais concorrida, a seguir ao hiperbólico “Caminho Francês”, que em 2016 foi escolhido por 64% dos caminhantes, de acordo com os dados publicados pela Oficina do Peregrino), o percurso costeiro português não surgia sequer discriminado nas estatísticas oficiais. Há cerca de onze anos, no entanto, os dez municípios atravessados por esta variante do caminho aliaram-se para justificar historicamente o percurso e torná-lo uno, do Porto a Valença. “Esse trabalho começa muito cedo, principalmente com um grupo de técnicos que impulsionou um conjunto de reuniões para tentar promover e descobrir este caminho”, recorda Aurora Viães, vereadora de Vila Nova de Cerveira. Num primeiro momento, assume a autarca, o projecto não recebeu o mesmo “afinco da parte política”. Mas com o passar do tempo “houve um congregar de vontades”. Início: Cais da Ribeira (Porto) Fim: Ponte metálica sobre o rio Minho (Valença) Distância (em território português): 149, 5km Distância total (até Santiago de Compostela): 258km Duração: sete dias até Valença e 12 até Compostela (média de 20km/dia) Concelhos percorridos: Porto, Matosinhos, Maia, Vila do Conde, Póvoa de Varzim, Esposende, Viana do Castelo, Caminha, Vila Nova de Cerveira e Valença Credencial: pode ser adquirida na Catedral do Porto e é necessária não só para aceder aos albergues oficiais como para obter a compostela no final do percurso — para isso, há que a ir carimbando ao longo do caminho (nos albergues, postos de turismo, estabelecimentos públicos e comerciais ou igrejas), pelo menos três vezes por etapa, a fim de confirmar a realização do caminho Compostela: para obter o certificado basta percorrer os últimos 100 quilómetros até Santiago de Compostela (ou 200 quilómetros caso se parta de bicicleta ou a cavalo) Mais informações: www. caminhoportuguesdacosta. comNo ano passado, a candidatura conjunta aos fundos do Norte2020, no valor de quase dois milhões de euros, permitiu “fazer toda a marcação do percurso, colocar as placas de sinalização e criar uma linha de promoção com uma linguagem comum”. O Caminho Português da Costa é agora não só uma rota de peregrinação até Santiago de Compostela, como um site, uma aplicação móvel e um guia impresso, onde é possível encontrar dicas sobre os cuidados a ter antes, durante e depois da caminhada, assim como informação detalhada sobre os trilhos, a localização dos albergues oficiais, além dos muitos pontos de interesse que surgem ao longo do percurso, entre outros dados. Não deixa de ser curioso que a barca de passagem que daria origem à reconstituição histórica e requalificação do Caminho Português da Costa acabe por ficar fora do itinerário principal sinalizado no terreno. Os caminhos de Santiago sempre foram assim mesmo: cada peregrino escolhia fazer a travessia por onde mais lhe convinha, numa intrincada rede de percursos e alternativas possíveis. Ao hiato dos séculos, resistem agora apenas os mais populares ou aqueles cujo traçado foi sendo inscrito na História e escolhido pelas entidades (eclesiásticas ou governamentais) para sobreviver ao tempo. No concelho de Esposende há, por isso, dois trilhos possíveis. O primeiro, mais antigo e de fundação romana, provém de São Pedro de Rates (onde existe um albergue oficial) e percorre zonas rurais até chegar a Fonte Boa, onde antigamente uma “barca por Deus” fazia a travessia gratuita dos peregrinos até à margem direita do rio Cávado. Já o segundo percurso, que hoje integra o itinerário principal, sobe pelas povoações costeiras, da Apúlia às Marinhas (onde fica o albergue seguinte). Um pé histórico no rio, outro no veraneio da areia. É conforme se prefira, portanto. Ou que se faça uma travessia a dois tempos, como foi o nosso caso, já que venceremos o Cávado só para depois voltar atrás e caminhar por entre um pinhal arenoso até Fão. Para José Costa, técnico de turismo da autarquia de Esposende, “a Barca do Lago é o ponto mais importante na história dos peregrinos” no concelho. Motivo que compensa o desvio para subir a bordo de uma réplica da embarcação medieval que deu nome à localidade. Até aos anos 1940, uma barca de carga fez por aqui o transporte de carros e de animais de uma margem à outra. O pequeno barco de passageiros manteve-se até finais dos anos 1970. Em 2007, a ideia de recriar a velha embarcação de madeira para reconstituir a travessia histórica do Cávado entre as freguesias de Fonte Boa e de Gemeses foi a ignição no motor que levaria ao nascimento do projecto de recuperação do Caminho Português da Costa. “Foi a génese. Não fazia sentido pensar este projecto só a nível local”, recorda José Costa. “Tínhamos de fazê-lo numa perspectiva mais alargada. ” A aliança entre municípios vizinhos acabou por expandir-se aos dez concelhos actuais. No entanto, no final do processo, acabou por não ser possível incluir a recriação da barca na candidatura aos fundos comunitários. O empresário e canoísta Belmiro Penetra decidiu fazê-lo a título privado, integrando o projecto na empresa Proriver, especializada em actividades desportivas no rio. “Quando fui [a Santiago de Compostela] houve pessoas que me ajudaram a troco de nada, por isso também é uma forma de retribuir”, conta o antigo atleta olímpico. Em 2006, Belmiro fez parte de uma peregrinação especial: partiram de Esposende em canoa, seguiram a remar até Padrón, já em Espanha; e depois dali a pé até Compostela. “Não tinha ligação religiosa a Santiago, mas fui a três Jogos Olímpicos e vários mundiais e nenhum deles me marcou tanto como o caminho”, confessa. Depois de avanços e recuos e três anos de construção, desde Maio do ano passado que a barca repete a travessia ancestral do Cávado ao ritmo de música medieval. A passagem continua a ser gratuita para peregrinos e muitas vezes acaba por transformar-se em passeio. “Dá-me gozo fazer a voltinha e mostrar a paisagem às pessoas”, conta. Apesar de ser uma travessia mais histórica e bucólica, a maioria dos peregrinos acaba por seguir o itinerário principal. Sobe pelo casario da Apúlia até Fão e dali atravessa a ponte metálica rumo ao centro histórico de Esposende. É o caso de Anna, que encontramos junto ao “caminho das areias”, um pequeno troço arenoso entre pinheiros e campos agrícolas. No Inverno, o trilho torna-se “um bocadinho tortuoso por causa das lamas”, confessa José Costa. Mas, sob o sol da Primavera, nada nos parece mais abençoado que a sombra e o aroma do arvoredo. “Ontem estava muito vento. Era difícil caminhar, porque o vento puxava para trás, mas hoje está agradável”, conta Anna entre os fôlegos da caminhada. Ao terceiro dia, é a paisagem costeira que mais encanta a alemã de 36 anos. “Agora é Primavera, por isso a costa está tão bonita!” Olha em redor e enumera: as flores, a areia, a temperatura, os cheiros. Depois de ter feito o “Caminho Francês”, este parece-lhe “mais fácil” e com “menos pessoas”. “É uma boa opção para principiantes”, defende. Mas Anna está longe de ser nova nestas andanças. Costuma caminhar e fazer escalada com frequência, adora a natureza. “Essa é a razão por que faço isto: para ficar 12 dias na natureza, simplesmente a mover-me de sítio para sítio”, conta. “Podes pensar sobre tudo. Regressar a ti mesma. ” Apesar de ter crescido no seio de uma “educação católica restrita”, Anna não faz o caminho por motivos religiosos. Ao contrário de Michael, que encontraremos dois dias depois no passadiço junto à praia de Moledo. É a fé que move o polaco de 22 anos. Assim que chegou a Portugal foi a Fátima de autocarro. E agora segue em direcção a Compostela com uns peregrinos italianos que conheceu no Porto. O foco dele, confessa, é o caminho. Não há espaço para turismo no programa. No final de cada etapa, visita brevemente o casario junto ao albergue, vai até à igreja e pouco mais. As motivações para caminhar até Santiago de Compostela, no entanto, diferem de peregrino para peregrino. Muitos, como Anna ou os quatro ciclistas portugueses, já não o fazem por devoção religiosa. “Há pessoas que querem mudar de vida, por motivos profissionais ou pessoais. Há quem queira fazer caminhadas culturais, conjugando o caminho com visitas a monumentos. Outros fazem-no pela espiritualidade ou integrados em sessões de ioga. E há quem o faça pela superação pessoal, para provar a si próprio que é capaz”, enumera Paulo Almeida Lopes, gerente da Green Walk, uma empresa especializada em actividades turísticas ao ar livre na região Norte. “Tivemos uma norte-americana em cadeira de rodas, por exemplo. Tinha uma equipa de cinco pessoas a ajudá-la. Fez num mês aquilo que habitualmente se faz numa semana, mas chegou a Santiago. ”Do alto do Templo-Monumento do Sagrado Coração de Jesus, em Viana do Castelo, vê-se todo o miolo da cidade. O labirinto medieval, a esquadria moderna dos novos bairros, os estaleiros. Vê-se o rio desaguar no mar e as ondas a bater suaves nos rectângulos arados. Para onde quer que se olhe, o arvoredo irrompe o cume dos cerros. A varanda do zimbório abarca tudo. E é por isso que aqui estamos, ainda que o caminho não suba ao Monte de Santa Luzia. É que daqui podemos seguir o dedo de Miguel Costa e imaginar o percurso jacobino, do Cabedelo à Areosa. Vem pela antiga estrada real, a cortar a mata na outra margem do Lima, até entrar na cidade pela ponte Eiffel lá em baixo. “Antigamente a travessia do rio fazia-se de barca, junto à capela de São Lourenço”, aponta o técnico de arqueologia da autarquia. Em frente à minúscula igreja, solitária nas areias do estuário, ainda se vêem as estacas da primeira ponte, feita em madeira. Ao chegar a Viana do Castelo, continua Miguel Costa, já no centro histórico, “o caminho respeita as ruas medievais” da antiga cidade muralhada. Entra pela extinta porta das Atafonas e sai pela porta de Santiago, assim nomeada devido ao fluxo de peregrinos que por ali passavam. Entre uma e outra, numa ruela do estreito labirinto, espreitamos o “primeiro albergue de peregrinos” da cidade. O “hospital velho” foi fundado em 1468 para dar guarida a mercadores em trânsito e devotos a caminho de Compostela, depois passou a acolher pessoas desfavorecidas. Tornou-se “velho” com a construção de um outro hospital, o da Misericórdia, erguido um século depois, para lá da porta de Santiago, quando a cidade já transbordava as muralhas. Se o velho hospital está actualmente em obras para ser convertido em espaço de recepção ao peregrino, a igreja da Misericórdia ainda conserva elementos que atestam a passagem secular dos caminhantes devotos, nomeadamente num dos painéis de azulejos. Ao longo do caminho, vamos cruzando pequenos pormenores que testemunham a passagem histórica de peregrinos por ali em direcção a Compostela. “Fomos muito questionados quanto ao rigor [do Caminho Português da Costa], o que obrigou a parte técnica a todo um trabalho de pesquisa histórica para fundamentar o traçado”, admite Aurora Viães. O trajecto marcado no terreno segue, por isso, os estudos feitos sobre a viação que era utilizada antigamente e continua por um ziguezague de vestígios. Conchas de vieira esculpidas na pedra. Alminhas à beira dos trilhos, pequenas capelas, igrejas consagradas a Santiago ou que tenham imagens alusivas à história do apóstolo peregrino. Antigos hospitais ou velhos albergues. É o caso do actual Hotel da Boega, em Gondarém, concelho de Vila Nova de Cerveira. “Desde o século XVII que fazia o apoio ao peregrino”, conta Paula Ramalho, arqueóloga da autarquia, ao apontar uma inscrição talhada na antiga entrada da propriedade. No final da rua agora denominada Caminho de Santiago, a Quinta do Outeiral nascia como “casa de obrigação a passageiros, peregrinos e mendigos”, lê-se na pedra sobre as nossas cabeças. A maioria dos caminhantes desceria depois até Vila Nova de Cerveira, onde o castelo albergava igualmente um hospital junto à igreja da Misericórdia. Lá em baixo, perto do rio, fica uma das travessias possíveis para Espanha. “Na época medieval tinha de ser feito em barca. Hoje é possível atravessar de ferry em Caminha [para A Guarda] ou nas pontes de Cerveira [ligação a Goiã] ou de Valença [em direcção a Tui]. ” A última é, no entanto, a mais utilizada actualmente, uma vez que nos outros casos a continuação dos percursos não está sinalizada em território espanhol. Ao contrário daquilo que o nome pode induzir, o Caminho Português da Costa raramente se abeira da orla marítima. À excepção de um troço entre Póvoa de Varzim e Aguçadoura e, depois, de Vila Praia de Âncora ao areal de Moledo, o trajecto histórico seguia maioritariamente “a meia encosta” ao longo da serra. Por um lado, ia-se de olhos no mar mas suficientemente longe para fugir aos ataques piratas que na altura fustigavam a costa. Por outro, a serra revelava-se não só mais abrigada do sol e do vento violento do Norte, como era mais rica em fontes de água potável. “Temos de pensar o caminho à luz daquilo que também eram as mentalidades e as condições da época”, relembrará Aurora Viães. Por isso, chegados à Areosa, deixamos a planura da faixa costeira para subir por entre os muros altos das quintas, junto à serra de Santa Luzia. “Vamos começar onde termina a estrada de alcatrão”, aponta Nuno Barbosa, guia da Viv’experiencia. A partir daqui, seguimos a sinalética pela antiga estrada real, de ziguezague empedrado, até regressarmos ao alcatrão, já em Carreço. As lajes que pisamos, ora largas, ora em quadriculado de calçada, já são posteriores mas “o traçado é romano”, garante Miguel Costa. “Antes, esta estrada já seria utilizada pelos povos suevos para as trocas comerciais”, conta. Actualmente, o caminho aperta-se pela altura dos muros das quintas, muitas delas abandonadas, com árvores frondosas a pender os frutos gordos à altura do lanche. Junto à Travessa da Saudade, passamos por uma alminha de 1898, “com uma escultura bastante bem conseguida”. E continuamos o trajecto por baixo de pequenos aquedutos medievais que, 500 anos depois, ainda transportam água das nascentes até às quintas. Mais à frente, uma pequena cascata assinala o ribeiro do Pego, com os seus moinhos de rodízios a descer o curso de água. Dos 21 edifícios de pedra, apenas o “moinho da fada” funciona, recuperado recentemente pelo proprietário. Já estamos junto à capela da Quinta da Boa Viagem quando Diego e Spencer passam por nós com as mochilas exasperadas de calor. Conheceram-se ontem e hoje decidiram continuar o caminho a dois. Se o colombiano de 36 anos ruma a Santiago pela fé e pelo desafio desportivo, para o norte-americano de 25 anos o trajecto faz parte do currículo escolar. “Numa das aulas estudámos o livro The Philosophy of Walking, de Frederic Gros. ” E agora toda a turma está a pô-lo em prática. “Terminei o Caminho Francês e como ainda tinha tempo antes do voo para os Estados Unidos e queria vir a Portugal, decidi fazer este também”, conta Spencer Miller. Na verdade, confessa o norte-americano, o plano era percorrer o Caminho Português Central. “Mas perdi-me e acabei por dar neste”, ri-se. No interior da capela amarela, despida de mobiliário, destaca-se uma enorme caravela a balouçar do tecto. Miguel avança uma explicação: apesar de o mar nos parecer longínquo daqui, era tradição os barcos darem um tiro de canhão na direcção da capela “para solicitar as graças de uma boa viagem”. O alpendre largo, aponta ainda o arqueólogo antes de partirmos, revela ser uma capela na rota jacobina. Eram construídos para que os peregrinos pudessem resguardar-se e passar a noite. Num percurso de cerca de cinco quilómetros, já lavámos os olhos de mar, limpámos as mãos no riacho e levámos o aroma dos pinheiros e eucaliptos da montanha. “Além da riqueza patrimonial, que acaba por ser um bocadinho transversal a todos os caminhos que passam pela região Norte, conseguimos ter uma variedade ambiental extraordinária”, defende Aurora Viães. Entretanto, já cruzámos quintas, áreas agrícolas e vacas silentes nos pastos. Já reforçámos o estômago no café central de Carreço. E subimos a Vila Nova de Cerveira para um passeio de barco no Minho. Próxima paragem: Santiago de Compostela. É batota, muita batota, bem sabemos. Mas encaixar em três dias um percurso de duas semanas (ou uma, se viéssemos de bicicleta) só é possível à laia de alguns saltos e omissões. Além de muito percurso ganho à força de motor, admitimos. Mas pese-se o motivo: conhecer parte da diversidade de paisagens e de localidades que o trajecto atravessa, descobrir o que se pode visitar pelo caminho e comer muito e bem — que na Península Ibérica é difícil arrematar por menos. É por isso que, chegados ao final do percurso em território nacional — onde termina a sinalética colocada no ano passado —, partimos directos para Santiago de Compostela. A Tasquinha Rua do Carmo, 23 Porto Tel. : 223 322 145 Email: geral@atasquinha. com www. atasquinha. comÁgua Pé Av. Dr. Henrique Barros Lima, 6 Esposende Tel. : 253 968 519 Email: aguaperestaurante@sapo. ptMaría Castaña Rúa da Raíña, 19 Santiago de Compostela Tel. : (+34) 981 560 137O Peregrino Boega Hotel - Quinta do Outeiral Gondarém (Vila Nova de Cerveira) Tel. : 251 700 500 Email: reservas@boegahotel. com www. boegahotel. comTasquinha da Linda Rua dos Mareantes, A-10 – Doca das Marés Viana do Castelo Tel. : 258 847 900 Email: geral@tasquinhadalinda. com www. tasquinhadalinda. comNo centro histórico, da catedral às ruelas, o ambiente parece muito mais festivo do que o habitual. Não era assim que tínhamos imaginado a chegada ao terceiro local de peregrinação mais importante da tradição católica. Mal vislumbramos peregrinos por entre os grupos de turistas e as dezenas de galegos com cartazes e autocolantes. “Hoje é o Dia das Letras Galegas”, há-de explicar a guia Maria Chamadoira. Por isso, as calles estão cheias de gente que toca e dança música regional, entre copos de cerveja e doses de tapas. A animação é ensurdecedora. Ao final da tarde, já depois de visitarmos o interior da catedral e de subirmos aos telhados do edifício, construído como uma fortificação onde não faltam ameias e torres, descemos à Praça do Obradoiro, ponto de chegada para quem vem pelos caminhos portugueses. É lá que encontramos Rita Simões e Zélia Pedro, sentadas de frente para a fachada, ainda em obras de restauro. Chegaram a tempo da missa das 12h, por isso agora aguardam que a das 19h termine para que os portugueses que conheceram no caminho se juntem a elas nos festejos da chegada a Compostela. “Não falho a missa para agradecer a Santiago o caminho e tudo o que ele me tem dado”, conta Rita. Depois de duas peregrinações a Fátima e de ter feito o Caminho Inglês, a portuguesa regressou a Santiago, desta vez a partir de Valença. “Há muita materialização das peregrinações a Fátima. Tens as carrinhas atrás, apoio na alimentação, camas reservadas. Aqui não”, compara. “Viemos sozinhas, desprovidas de quase tudo, e acabámos por partilhar mais com quem encontrámos. A cultura, a comida, o quarto”, enumera. “Também é uma forma de aliviar o stress do trabalho e desta sociedade. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Hubert Mayer fez todo o Caminho Português da Costa porque “tinha algumas coisas em que precisava de pensar”. Ao fim de duas semanas, traz a compostela na mão e um sorriso rasgado no rosto. “Foi um grande momento finalmente chegar a Santiago de Compostela depois de 12 dias a caminhar”, conta o alemão de 55 anos. “É uma catedral impressionante. ” Hubert começou no Porto, ficou num parque de campismo em Lavra e foi subindo pela Póvoa de Varzim, Viana do Castelo, Apúlia. Os carimbos coloridos da credencial permitem agora relembrar (e confirmar) todo o percurso porque os nomes das localidades, confessa, são “demasiados difíceis” para decorar. “É a primeira vez que faço um Caminho de Santiago. Escolhi este porque li que tinha menos pessoas, demorava apenas duas semanas e começava no Porto, onde já tinha estado e gostei muito. ” Não podia estar mais satisfeito, diz. Do que gostou mais? “Das caminhadas ao longo da costa, das paisagens bonitas, de estar sozinho e pensar muito mas depois também conhecer tanta gente e ouvir as histórias delas”, enumera. “Foi uma óptima experiência. ” Confessa que queria sentir o que era caminhar 20 quilómetros por dia, perceber o que o esforço fazia ao corpo e à mente. “Pensei naquilo que vinha para cá pensar e tomei uma decisão. Foi algo que aprendi durante o caminho. ” Quanto ao corpo, depois das dores do primeiro dia, começou a sentir-se cada vez melhor e agora está “bastante bem”. “Podia continuar a caminhar”, ri-se. “Tenho mais um dia. Sabe como se vai a Finisterra?”Casa do Sardão Avenida de Paço, 769 - Carreço (Viana do Castelo) Tel. : 961 790 759 Email: alberguedosardao@gmail. com Facebook: Albergue Casa do Sardão Preços: 12€ por noite (em camaratas)Feel Viana Rua Brás de Abreu Soares, 222 - Praia do Cabedelo (Viana do Castelo) Tel. : 258 330 330 Email: info@hotelfeelviana. com hotelfeelviana. com Preços: quarto standard a partir de 125€/noiteHotel da Música Mercado do Bom Sucesso, Largo Ferreira Lapa - Porto Tel. : 226 076 000 (info)/ 707 292 707 (reservas) Email: info@hoteldamusica. com www. hoteldamusica. com Preços: a partir de 100€/noiteHotel Meira Rua 5 de Outubro, 56 - Vila Praia de Âncora (Caminha) Tel. : 258 911 111 Email: reservas@hotelmeira. com hotelmeira. com Preços: entre 78€ e 130€ por noite, dependendo da época (desconto para peregrinos: 40€/noite em quarto individual e 50€/noite em quarto duplo)Hotel Suave Mar Avenida Engenheiro Arantes e Oliveira - Esposende Tel. : 253 969 400 Email: info@suavemar. com www. suavemar. com Preços: a partir de 55€ por noite
REFERÊNCIAS:
Um fim-de-semana nas nuvens e a ver estrelas
O festival gastronómico The Art of Flavours foi apenas o pretexto. Passámos três dias na ilha a tentar escapar por entre os pingos da chuva, a comer como se não houvesse amanhã, a ver baleias e golfinhos e ainda a vencer medos com asas. (...)

Um fim-de-semana nas nuvens e a ver estrelas
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: O festival gastronómico The Art of Flavours foi apenas o pretexto. Passámos três dias na ilha a tentar escapar por entre os pingos da chuva, a comer como se não houvesse amanhã, a ver baleias e golfinhos e ainda a vencer medos com asas.
TEXTO: Não há direito: é a segunda noite consecutiva que nos levantamos pelas 5h. Querem-nos na recepção às 5h45, prontos para um café e um croissant rápidos, e uma banana da Madeira no fim, que o pequeno-almoço a sério chegará daqui a umas duas horas e será inesquecível. Não nos enganam. Eis-nos, então, às 6h em ponto a deixar o Belmond Reid’s Palace, no Funchal, e a entrar no jipe que nos há-de levar até ao Pico do Areeiro para um pequeno-almoço nas nuvens. André é o nosso motorista e guia nesta longa manhã. Enquanto subimos pela montanha faz-se valer da sua experiência de ilhéu e vai lançando prognósticos. “Talvez tenhamos sorte, talvez. ” Isto quer dizer que o nevoeiro cerrado que vamos vencendo talvez se transforme em céu limpo quando chegarmos aos 1810 metros (aquele que é o terceiro ponto mais alto da ilha eleva-se aos 1818, assinalados pelo marco geodésico, mas nós ficaremos oito metros abaixo). André sabe que o sol há-de nascer às 7h, e tem tudo controlado ao minuto. Pára o jipe e pede-nos para sairmos. Está um frio cortante, daquele que se entranha até aos ossos. Para ajudar à festa, sopra um vento fresquinho, vale que só a espaços. Acercamo-nos de um miradouro que há-de dar vistas memoráveis, acreditamos, mas para já só assistimos a uma dança de nuvens espessas. Pelo meio delas, de vez em quando rompem umas cores rosadas, tímidas. Cinco minutos, dez, nada. Para aligeirar a frustração, André saca do telemóvel e mostra-nos um nascer do sol de postal. “Era suposto ser assim”, ri-se. Haja boa disposição, que, apesar do frio e do nevoeiro, o cenário consegue ser grandioso. Daqui temos noção do quão verde é esta ilha e percebemos que a chuvinha que agora começa a cair em muito contribui para isso. Descemos mais uns metros e paramos o jipe numa clareira. Já vemos uma mesa montada, cadeiras forradas a branco, e funcionários do Reid’s a dispor travessas de queijo e presunto, pães e croissants, pastéis de nata e queijadas da Madeira. E a chuva continua a cair, agora com mais convicção. Saímos, servem-nos um copo de champanhe Pommery, mas logo invertemos a marcha e procuramos, de novo, refúgio no jipe. Imperturbáveis, os funcionários do hotel trazem-nos chá ou café, doces e salgados e sorrisos divertidos. Confirma-se: este pequeno-almoço será inesquecível. É justamente essa a filosofia do Belmond: fazer com que os seus hóspedes vivam experiências únicas, dentro e fora das paredes do hotel. Se as coisas tivessem corrido como previsto, teríamos tido um pequeno-almoço num quadro idílico que dificilmente esqueceríamos; assim ganhámos uma história bem-humorada para contar. E que também não esqueceremos. Depois disto ainda vamos num passeio off-road pelas entranhas da ilha, mas na verdade viemos à Madeira para participar no primeiro festival The Art of Flavours, organizado pelo Reid’s. A convite do chef Luís Pestana, uma estrela Michelin ao serviço do William, um dos restaurantes do icónico hotel do Funchal, sete outros cozinheiros estrelados mostraram, em duas noites consecutivas, as artes da sua cozinha. Na primeira noite, sábado, participaram numa “Food Party” que decorreu junto à piscina do hotel, num espaço propositadamente decorado para o efeito, a vista de sempre para a baía do Funchal. Entre os convidados de Luís Pestana, que para esta festa que se quis descontraída escolheu servir vieiras, encontravam-se Ricardo Costa e Michel van der Kroft, ambos distinguidos com duas estrelas no Guia Michelin: o primeiro no Hotel The Yeatman, em Gaia; o segundo no ‘t Nonnetje, em Harderwijk, na Holanda. A proposta de van der Kroft recaiu num ravioli com queijo Serra da Estrela, um prato que serve no seu restaurante e que é uma homenagem à sua mulher, a portuguesa Maria do Céu. A avaliar pelas pequenas filas que se formaram junto ao balcão onde Michel cozinhava, este prato é realmente uma aposta ganha. Ricardo Costa, por seu turno, preferiu servir na Madeira um prato de chocos. Davide Bisetto, uma estrela no restaurante Oro, no Belmond Cipriani, em Veneza, apostou num risotto de robalo, enquanto Joachim Koerper, do Eleven, em Lisboa, apresentou cavala. Pedro Lemos, do restaurante homónimo, no Porto, levou vaca velha, uma carne de sabor bem marcado que marinou durante uma semana e cozeu 24 horas. Já Vítor Matos (Antiqvvm, Porto) escolheu servir atum, um dos produtos estrela da ilha da Madeira. Sergi Arola (LAB by Sergi Arola, Penha Longa Resort, Sintra) preparou raviolis com cavala. A oferta gastronómica desta primeira noite do festival The Art of Flavours foi complementada por uma selecção alargada de vinhos e por propostas mais doces, que ficaram a cargo de Pedro Campas, chef pasteleiro do Reid’s. Foi também aqui que descobrimos os chocolates artesanais da Uau Cacau, produzidos por Tony Fernandes a partir de produtos típicos da Madeira, como o vinho, o mel de cana, a banana ou o maracujá. Os bombons de Tony foram para nós a pitanga no topo do bolo. Não há direito: só temos agenda para as 11h30 e despertamos pelas 7h. Descemos ao bar da piscina para o pequeno-almoço pouco depois de as portas se abrirem, às 7h30. É domingo, 10 de Junho, e a manhã está radiosa. Enquanto nos perdemos entre frutas de cores vivas, ovos acabados de fazer e crepes de ananás e coco, o sol envergonha-se e cede lugar, outra vez, a umas nuvens chatas e cinzentas. O apelo do mar, lá em baixo, e da piscina infinita atenua-se e pomos pés ao caminho, até ao centro do Funchal. Passa pouco das 9h, a cidade ainda está a acordar. A caminhada dura 15 minutos, que quase passam despercebidos se formos deitando o olho à Quinta Vigia, residência oficial do presidente do Governo Regional, ao Parque de Santo António, à marina, até nos embrenharmos nas ruelas da zona velha para descobrirmos o projecto de arte urbana “Arte de Portas Abertas”, que arrancou em 2010. De regresso ao hotel, ainda paramos para observar de relance as cerimónias de comemoração do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades. Temos agora uma curta viagem de barco até à Fajã dos Padres, que, no entanto, se torna mais longa porque esta é uma viagem com brinde: quando menos esperávamos, à nossa direita, o mergulho elegante de uma baleia. E daqui a pouco, agora à nossa esquerda, outra vez. É um momento que tem tanto de fugaz como de emocionante. “É uma cria de uma baleia-de-Bryde e provavelmente está perdida da mãe”, ouvimos da tripulação. É também por isso, para facilitar o encontro da cria com a mãe, que seguimos logo viagem. Desta vez, porém, já temos compromissos: um grupo de golfinhos anda aqui por perto e vamos em busca deles. Não tarda a que se deixem ver: mergulham à nossa frente, ao lado, atrás do barco. “Estão a brincar connosco. ” Quem ficar indiferente ao avistamento destes animais, que atire a primeira pedra. Chegamos de coração cheio à Fajã dos Padres, um lugar inóspito na costa sul da Madeira que só se atinge de barco, por um elevador que é um arranhão ocre na rocha e que vemos ao longe e, mais recentemente, através de um teleférico que vence nuns três minutos (uma eternidade) o desnível assustador para quem tem vertigens (é o caso). A fajã tem este nome porque durante mais de 150 anos pertenceu a padres jesuítas, que aqui viveram e aos quais se deve a introdução do vinho Malvasia. Está agora aberta ao turismo e é um lugar especial. Quem cá chega recebe o enquadramento histórico, observa as plantações da quinta gerida pela família Vilhena Mendonça e, no fim, pode provar e ouvir as histórias do vinho da Madeira Malvasia Fajã dos Padres contadas por Mário Jardim Fernandes, um dos proprietários. É ele quem nos recebe na adega, nos serve um copo de 2005 directamente da barrica e nos conta que a produção é curta — o ano melhor foi o de 2006, “com 3000 e tal litros” — e que continua a fazer este vinho “para ir alimentando a alma da fajã”. Durante anos, pensou-se que a Malvasia tinha desaparecido da fajã, na sequência da grave crise vinícola que afectou a ilha em meados do século XIX motivada pela filoxera. Algures nos anos 1980, um funcionário da quinta encontrou um pé, confirmou-se que era de Malvasia e a produção renasceu. É esta alma que Mário quer continuar a alimentar. Almoçamos com vista para o mar, lapas grelhadas e bife de atum, acompanhados por Terras do Avô branco. Já sabíamos que teríamos de subir de teleférico, mas estávamos em negação. É chegada a hora. Apetece resistir, mas dos fracos não reza a história. De teleférico, seja, mas de olhos bem fechados. Só os abrimos lá em cima, quando nos sentimos com os pés bem assentes em terra. Dizem-nos que, enquanto se sobe, a vista é linda e não temos por que duvidar, mas os medos, esses, vencem-se um de cada vez. São 17h50, falta pouco mais de hora e meia para o segundo momento gastronómico do The Art of Flavours. Hoje há jantar com nove pratos no William (“Stars Dinner”) e a azáfama na cozinha é grande. Está tudo em velocidade de cruzeiro, mas ainda assim reina a boa disposição. O anfitrião Luís Pestana faz uma pausa e explica-nos que, para além de ter feito os convites aos cozinheiros, aqui o seu papel é mais de coordenação, para que nada falhe e não haja muita repetição de ingredientes no menu que vai ser servido aos clientes. “Este ciclo pretende dar oportunidade às pessoas da Madeira de experimentarem a cozinha de grandes chefs. A ideia é que cada chef traga um bocadinho da sua identidade, que consiga transmitir a quem nos visita um bocadinho da sua essência, da sua forma de estar na cozinha. ” Para Luís Pestana fica a responsabilidade de “honrar os produtos madeirenses” e de “tentar harmonizar e conciliar os diferentes pratos” de cada um dos cozinheiros. Depois, é só deixar as estrelas brilhar. Das amplas janelas do William ainda se olha para o Funchal à luz do dia quando começa o desfile. É com o berbigão “Nitro”, de Ricardo Costa, que abre a refeição, que há-de prolongar-se por mais de três horas. Segue-se a Saltimbocca 2018 de Joachim Koerper, o cremoso de batata com caviar e foie gras de Sergi Arola, um prato simples mas surpreendente: suave a batata, a contrastar com o sabor marcante do foie, o caviar a balançar o conjunto. Da Islândia veio o lagostim que Michel van der Kroft serviu com jalapeno em três texturas (gelado, mousse e creme) e vinagrete de tomate arbóreo. Lagostim pleno de sabor, gelado muito marcado, mas as duas outras texturas a casarem lindamente com a frescura do bicho e o toque doce do tamarilho. Seguiu-se o ravioli cacio e especiarias, criação de Davide Bisetto, e logo depois o atum rabilho com cogumelos e wasabi de Pedro Lemos. As carnes ficaram a cargo de Vítor Matos, que preparou um “Bosque” composto por pombo (suculento e repleto de sabor), cevadinha e molho de vinho, e de Luís Pestana, que escolheu levar para a mesa wagyu com trufa, foie gras e vinho Madeira. A carne estava perfeita, perfeita e, na opinião de muitos comensais, fechou a noite em beleza. Funchal, Sé, Estrada Monumental, 139 Tel. :291 717 171 Site Preços: quarto duplo a partir de 415€/noite, com pequeno-almoço buffetSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Pedro Campas apresentou a sobremesa “Sabores com tradição”, onde pôs em destaque produtos da ilha como o bolo de mel e o maracujá, e todos os pratos que desfilaram pela passerelle do William foram harmonizados com vinhos Niepoort. O The Art of Flavours, que foi marcado para os dias em que decorreu pela primeira vez o Festival do Atlântico — espectáculo piromusical que acontece durante as noites de quatro sábados deste mês na baía do Funchal — já tem data marcada para 2019: 14, 15 e 15 de Junho. Anote na agenda. A Fugas viajou a convite do Belmond Reid’s Palace
REFERÊNCIAS:
As cerejas também se comem com os olhos (mesmo antes de chegarem)
Com um atraso de três semanas, cai o vestido branco e penduram-se os brincos vermelhos pelos cerejais do Fundão. Nós fomos sobrevoar as flores — e agora deixamos-lhe as cerejas. Simpáticos, não? Renata Monteiro (texto) e Paulo Pimenta (fotos) (...)

As cerejas também se comem com os olhos (mesmo antes de chegarem)
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Com um atraso de três semanas, cai o vestido branco e penduram-se os brincos vermelhos pelos cerejais do Fundão. Nós fomos sobrevoar as flores — e agora deixamos-lhe as cerejas. Simpáticos, não? Renata Monteiro (texto) e Paulo Pimenta (fotos)
TEXTO: Estamos no céu. Mesmo, tanto no sentido literal, como no figurado. Como é que lá chegamos? A bordo de um balão de ar quente. Dizia quem nos fez descolar que cada vez que voa é como esta, assim, “indescritível”. “Mas isso é para pessoas românticas” — e provavelmente também não é o adjectivo ideal para quem tem de descrever a experiência com algum detalhe. “Olá, o meu nome é Aníbal Soares, sou piloto de balão e este é o meu primeiro voo”, apresenta-se. Há alguém que se mexe no cesto para o encarar de frente e tentar decifrar se está ou não a brincar. O piloto segura os últimos segundos de suspense com perícia, não é decerto a primeira vez que tenta esta piada: “Hoje. É o meu primeiro voo hoje, calma pessoal. ” Os sorrisos nervosos de quem verdadeiramente vai ter o seu baptismo de voo desfazem-se em gargalhadas. Missão cumprida. Agora sim, podemos levantar. Eles já estavam à espera quando chegamos ao descampado atrás do edifício que albergava o antigo seminário do Fundão. Os cestos de verga ainda tombados, os panos de nylon a começar a abrir. “Estes já querem ir com o vento”, ri-se o outro piloto, João Rodrigues. E estavam a conseguir: quanto mais tempo passava, mais alto os panos voavam. Vistos dali, ultrapassavam o cume da serra mais alta de Portugal continental, que nos iria acompanhar durante todo o passeio, em terra e no ar, na Gardunha. Focamos o olhar. São dois balões: um primaveril, de pano amarelo, azul, cor-de-laranja, e um verde e branco, mais discreto, as mesmas duas cores que havíamos de ver a dançar lá em baixo, enquanto flutuávamos. Aproximamo-nos mais, decididos a conhecer os gigantes por dentro. “Podemos entrar?”, pedem ao nosso lado. “Não é preciso bater à porta, entrem claro”, responde aquele que viria a ser o nosso piloto, Aníbal, saído do meio do envelope (assim se chama a parte principal do nosso meio aéreo de hoje). Avançamos, directos à garganta, preparados para sermos engolidos. Pelas cores e as sombras parece que entramos dentro de um insuflável para crianças. Parte do tecido ainda está pousado, a formar o chão da tenda enorme que nos rodeia. “Demora vinte a trinta minutos até estar pronto a levantar”, diz-nos, por cima do barulho do ventilador e do vento. “Pensávamos que iam chegar mais cedo, mas afinal ainda temos tempo!”Ups. Os passeios de balão de ar quente, já se sabe, são “perfeitos ao nascer do sol”. De manhã, “começam os sons matinais, e depois ao entardecer é o contrário, vale a pena pelo silêncio e o pôr do sol. ” “E olhe onde o sol já vai hoje”, continua Soares, “a hora ideal seria um quarto para as 7h, o mais tardar 7h. ” Não madrugamos tanto, é a verdade, e são quase nove horas quando entramos no cesto. O vento está de feição, ainda assim um “pouco fraco” para ser considerado perfeito, avalia quem sabe. Verifica-se o variómetro-altímetro, murmuram-se palavras de um rádio para o outro e a chama continua a aquecer o ar no balão. Até que finalmente levantam, um a seguir ao outro, dois pontos de exclamação no céu, a afastar as nuvens. A partir de agora, o piloto só pode decidir quando aterrar: o resto, para onde e a que velocidade vai, cabe aos ventos indicar. É preciso “confiar” neles, mas não tanto quanto é preciso ter “experiência” para se saber deixar ir. Espera-nos uma hora a flutuar sobre as cerejeiras que, por estes dias de Abril, ainda só têm flores para atrair quem espera (ansiosamente) pelas cerejas de Junho. As árvores de troncos muito curtos e ramos anelados três vezes mais longos distribuem-se por corredores estritamente paralelos. Apreciadas de cima, parecem centenas de rebentos brancos. Por vezes, voamos tão baixo que basta esticar um braço para lhes tocar. É nestas alturas (ou melhor dizendo, nestas altitudes) que Aníbal Soares aproveita para conversar com quem segue o balão com o olhar, a mão direita a tapar o sol. “Bom dia! Viemos acordá-la, já viu?”, cumprimenta a dona da casa que parecemos prestes a invadir. De lá de baixo chega um aceno de volta, forte, com vontade. Não é preciso gritar para ser ouvido, já que, tirando os momentos em que o piloto dá “ao queimador” (utilizado para aquecer o ar dentro do balão para o fazer subir), o passeio é tão silencioso quanto o ambiente que o rodeia — e asseguramos que o barulho ali, na serra da Gardunha, distrito de Castelo Branco, não é mesmo um problema. Quem nos guia foi um dos dois primeiros portugueses a ter licença de piloto de balão de ar quente, em 1993. O outro foi João Rodrigues, que flutua um pouco mais à frente e que no final do mês volta para a Tanzânia, onde faz safaris (de balão, claro) no parque nacional do Serengeti. Os dois gostam de olhar para baixo a ver a reacção de quem os aprecia, que agora não vai mais longe do que tirar o telemóvel do bolso para conseguir uma fotografia do céu que eles salpicam. No início, em Évora, quando aterravam “era uma peregrinação”, ri-se o primeiro. “As pessoas vinham a correr ter connosco, vinham de bicicletas, de motoretas. Para elas o balão tinha era caído”, acrescenta o segundo. Uma dessas vezes, Aníbal estava a passar atrás de uma colina, baixinho, e aproxima-se de um agricultor que estava a cavar. “O homem não viu o balão e quando estou mais ou menos a esta altitude [estávamos a passar rente a um telhado] dou ao queimador. O homem olhou para cima, atirou a enxada fora, começou a correr e só se ouvia ‘ai de mim que me vêm buscar, ai de mim’, aos gritos”. Um dos passageiros conhecia-o e chamou-o pelo nome. Foi pior a emenda: “Ai que eles sabem o meu nome e vêm-me buscar!”. Também já testemunhou momentos felizes a bordo, “verdadeiras declarações de amor” (bem avisou que isto era “para os românticos”) e outros que não chegaram a viver felizes para sempre, depois de um pedido de casamento que teve um “não” redondo como resposta. Há sempre humor nas (muitas) histórias que conta. Interrompe-as só para chamar a atenção para alguns pontos que o nosso miradouro de 360 graus, em movimento, nos permite ver. O manto branco efémero dos cerejais numa luta desigual com o manto branco de neve que ainda cobre a serra da Estrela (de onde Aníbal já descolou da zona da torre); as casas cercadas pelos campos cultivados; os campos cercados pelas montanhas de um lado e as estradas do outro; as pessoas a acenarem das casas, dos campos e das estradas; os cães a correrem atrás da sombra do balão. Aproxima-se a hora programada para aterrar e “nós podíamos ficar aqui parados, quase”. Suspensos. Tudo porque o “vento está muito fraquinho” e não parece querer levar-nos para lado algum. “Temos de aterrar num sítio que cause o mínimo impacto negativo”, relembra o piloto, em voz alta, enquanto olha em volta, como uma águia prestes a atacar. E ali está ele. Um rectângulo disforme, comprido. Tem flores, mas são selvagens — e como não vão dar cerejas, está aprovado. Ocasião de relembrar as instruções de segurança: “Virar as costas ao sentido do voo, agarrar as pegas à nossa frente, encostar as costas, flectir as pernas. ” E ficar nessa posição até novas ordens. A aterragem é um sucesso. Saltamos para fora, ainda meio zonzos, passamos pelo meio de um jardim (“desculpe, desculpe”) e vamos em direcção ao outro balão, que agora se espalha pelo chão. Por lá, já há quem tivesse gostado tanto do passeio que queira um só para si. Cada um daqueles balões “anda na ordem dos 60 mil euros, mais impostos”, calcula João Rodrigues, o “elemento mais versátil da equipa” que está também “responsável pela manutenção dos equipamentos”. Estes preços baixam para quem procure um exemplar mais familiar, de lazer, com capacidade para transportar duas ou três pessoas. “Nesse caso consegue-se, em segunda mão, na ordem dos dez mil euros. Novo vai para os 30-35 mil. ” Vimos o entusiasmo esmorecer um pouco (um passeio de balão de uma hora, em Portugal, rondará os 150 euros). Mas os passeios são como as cerejas, tropeçam uns nos outros. Há, por isso, mais do que uma maneira de conhecer bem de perto as árvores que, entretanto, já tiraram o vestido branco e estão prestes a pendurar os brincos vermelhos, que este ano chegam duas a três semanas atrasados, culpa das condições climatéricas atípicas de Março. É esperado que as primeiras cerejas apareçam “em meados de Maio”, nos pomares a sul da Gardunha, onde o fruto amadurece mais cedo, e no início do mês seguinte, a norte. Por isso é que, depois das flores, o turismo do Fundão já só pensa no fruto de Verão. Durante todo o mês de Junho decorrerá nos estabelecimentos aderentes o festival gastronómico “Fundão, aqui come-se bem”, com foco nos “sabores da cereja”. Poderá aproveitar também o próximo mês para apadrinhar uma cerejeira, campanha que este ano tem associados descontos de 15% em várias unidades de alojamento do concelho. Por 20 euros e uma visita por ano, receberá em casa uma cesta de dois quilos de cerejas e a possibilidade de, caso a sua árvore triunfe, ir depois colher os frutos as vezes que quiser. Se quer visitar a região sem compromisso (mas com cerejas) a proposta é alugar um cesto de piquenique e procurar a sombra dos pomares para desfrutar dos produtos regionais (há três cabazes, entre os 20 e os 35 euros). Pode lá chegar de bicicleta eléctrica, por exemplo, seguindo a estrada panorâmica entre as aldeias de Souto da Casa e Alcongosta; de balão de ar quente, já que os passeios deverão voltar a decorrer durante todo o próximo mês; ou de comboio, nas rotas temáticas com vista para os “pomares de cereja em Alcongosta”, acompanhadas por guias-turísticos (todos os sábados, de 25 de Maio a 2 de Julho, parte o comboio da cereja e nos fins-de-semana o comboio turístico). Estão ainda pensadas visitas guiadas, de 1 de Junho a 15 de Julho, em quintas — que poderão ter mais do que um trunfo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Cerca Design House Largo da Praça, 1, Chãos 6230-171 Fundão Tel. : 964 756 466; 275 759 060 E-mail Site Preços: quarto, com pequeno-almoço incluído, a partir dos 75 até aos 125 euros. Villas por 125 eurosA unidade de alojamento admite a estadia de animais de companhia, mediante aviso prévio, com um custo adicional de 15 euros por noite. A primeira vez que a Fugas dormiu na Cerca, o design com burel de cores alegres ainda só tinha pintalgado os quartos do solar antigo, de paredes de pedra, na aldeia de Chãos. Mas desde o Verão de 2016 que a unidade de alojamento aumentou a capacidade com a construção de pequenas villas. São casinhas autónomas, completamente equipadas e de janelas voltadas para um pequeno jardim (sim, de cerejeiras), com a piscina comum a pouco mais que uma mão cheia de passos. Chegamos à que nos estava destinada, com nome de flor da serra da Gardunha, já de noite. Passamos rapidamente pela sala, atiramos a mala para o sofá, atiramo-nos para a cama. Ficávamos já ali, não fossem os cânticos que nos entravam pela janela. Ousamos abrir a cortina, depois a portada — e ainda bem. Decidimos deixá-la assim para acordar com o primeiro raio de sol que ganhasse a luta contra a montanha. Sentamo-nos no chão de madeira, as pernas cruzadas (o telemóvel do lado de dentro), só a ouvir os pássaros e a água a correr. Faça o mesmo se lá for, durante o tempo que for preciso, antes de ir dormir ou logo ao acordar — e, se já for época, roube uma cereja da árvore à sua frente para lhe fazer companhia. Ou duas, ou três. Já se sabe como é que elas são assim que se trinca a primeira. Restaurante Hermínia Avenida da Liberdade 6230-398 Fundão Tel. : 275 752 537 E-mail SitePreço médio por pessoa: 20 eurosA provar: arroz de carqueja, cherovia panada (uma raiz muito popular na Beira Baixa, em forma de cenoura e com a cor do nabo), arroz de míscaros. Para sobremesa: papas de carolo, doce beirão semelhante ao arroz doce, mas feito com carolo de milho ou tigelada (ovos, leite, sopa de açúcar, canela e casca de limão, com a possibilidade de fazer uma variação que inclui licor de cerejas e cerejas). Restaurante As Tílias Rua dos Restauradores, R/C Loja B, 6230-215 Fundão Tel. : 275 772 269 Preço médio por pessoa: 20 eurosA Fugas viajou a convite da Câmara Municipal do Fundão
REFERÊNCIAS:
Na quinta de um old punk
Tim e Hallie trocaram o Reino Unido por Portugal, onde encontraram o ambiente ideal para criarem três filhos. Mas, como num gira-discos, a vida dá muitas voltas. E a deles converteu uma ruína no Sotavento num projecto turístico que reaviva uma região ignorada, ao ritmo da melhor banda sonora do Algarve. (...)

Na quinta de um old punk
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.1
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Tim e Hallie trocaram o Reino Unido por Portugal, onde encontraram o ambiente ideal para criarem três filhos. Mas, como num gira-discos, a vida dá muitas voltas. E a deles converteu uma ruína no Sotavento num projecto turístico que reaviva uma região ignorada, ao ritmo da melhor banda sonora do Algarve.
TEXTO: Se um texto de jornal é algo que se debruça sobre o que é novo e desconhecido, então este texto seria um exercício escusado. Afinal, o que é que ainda se pode contar ou escrever sobre o Algarve mas que ainda não tenha sido dito, gravado ou fotografado? Questão diferente é procurar no Algarve o que sempre lá esteve, à vista de todos, mas por alguma razão permanece ignorado. Nesse caso, emergem milhares de razões para falar do Algarve de novo — e em especial do Sotavento que, durante décadas, se manteve numa espécie de anonimato. Se calhar, ainda bem. A Quinta da Fazenda Nova é um desses sítios que cederam o lugar nas notícias aos habituais chamarizes do Algarve que José Saramago descreveu em Viagem a Portugal como aquele sítio onde “toda a praia que se preze é beach, qualquer pescador fisherman” e onde na estrada “toda a gente tem pressa”. Arruinada pelo abandono, acabou comprada por um casal de ingleses que viram ali um número de telefone e ligaram. Isso foi há cerca de década e meia. O número de telefone ainda ali está, num muro. A ideia era transformar a ruína e aqueles dez hectares de terreno numa casa de família, um sítio onde um casal — ele dono de uma empresa de logística ligada à moda, ela relações públicas — pudesse criar três filhos longe do bulício de Londres e das distracções desnecessárias da vida moderna. Porém, algures a meio do percurso, o projecto ganhou outro corpo e acabou por se converter numa casa de campo, com mais de 400 oliveiras e muita natureza. Quando estava à venda, ninguém viu o potencial que ali se escondia porque, tal como no conto mais famoso de Saint-Exupéry, o essencial era invisível aos olhos. Geograficamente, a quinta está numa fronteira: um dos cantos a oeste confina com a estrada municipal 514 onde há um cruzamento que, de um lado, tem a placa que indica o início do concelho de Olhão e, do outro, tem a indicação de que a partir dali se entra no concelho de Tavira. Historicamente, há outro ponto de fronteira que define o que hoje é uma casa de campo com uma clientela muito fiel e muito internacional — foi quando o coração de Tim ameaçou dar de si, estava ele nos quarentas. A família decidiu travar a fundo, mudou de ritmo e de ares. O lugar chama-se Estiramantens, nos limites da freguesia de Santo Estêvão. É provável que a primeira coisa seja fazer perguntas. Que raio de nome é este? Quem foi o alemão, o holandês ou qualquer outro estrangeiro do Norte da Europa (como muitos dos que têm comprado pedaços do Algarve ignorados pelos portugueses) que baptizou Estiramantens?A verdade é que, tal como o Sotavento — espécie de membro da família algarvia a quem nunca se deu muita atenção —, tanto o lugar como o topónimo são velhos conhecidos. A etimologia do nome pode estar em striga, um termo que remonta ao processo romano de divisão cadastral strigae, que consistia na divisão das terras em talhões verticais, perpendiculares a um eixo horizontal. Outra explicação é o nome ter chegado até nós por via do topónimo moçárabe Estraga Mantens, como explica o geógrafo Luís Fraga da Silva, num texto de 2005 sobre a Tavira romana, e que merece ser lido. Entra-se, portanto, na Quinta da Fazenda Nova com a sensação de que nada é novo e, no entanto, tudo está por descobrir. O ambiente geral casa elementos antigos e tradicionais do Algarve com uma arquitectura contemporânea. A zona residencial ocupa a mesma área da antiga casa da quinta — o casal documentou todo o processo de recuperação e as fotos do antes estão disponíveis para consulta. A entrada é fortemente perfumada pelo alecrim e demais plantas do jardim de aromáticas que abastece a cozinha. “O meu pai foi arquitecto paisagista. Cresci na Escócia, no meio de jardins e natureza”, recorda Tim Robinson, hoje com 52 anos, quando tenta explicar de onde veio a imagem do que hoje está à vista dos hóspedes. A zona de refeições está no que era a cozinha da casa. A lógica do menu está explicada num quadro à vista de todos: “O chef vai ao mercado todos os dias [o de Olhão fica a dez minutos de carro]. Procura ingredientes criados, pescados ou produzidos localmente. Frutas, vegetais e ervas aromáticas vêm dos próprios jardins da quinta. Os pratos variam entre os clássicos portugueses e versões modernas de receitas tradicionais. ”No pátio traseiro, que dá acesso a outras zonas nobres da quinta — uma zona de refeições ao ar livre, uma piscina de água salgada e aquecida, as garden suites —, há um velho forno de pão, com 200 anos (dizem). Foi recuperado. E funciona. Zonas comuns e quartos estão decorados com mobiliário de estilos diversos, repositório de memorabilia de família e outros artefactos locais ou de longe, comprados ao longo de anos na feira de velharias da Fuseta, que se realiza no primeiro domingo de cada mês. Há lofts com camas king size e camas de rede; nas suítes de jardim há camas com dossel em madeira escura, ao estilo Bali, ao lado de armários japoneses ou casas de banho amplas em betão polido com loiça Villeroy & Boch. Toda a decoração é Tim e Halley a baralhar (locais, histórias e épocas) e a dar de novo, sem cedências desnecessárias ao Algarve fashion das praias in e dos campos de golfe ou hotéis sonantes. Uma estante que agora guarda livros e decoração foi no passado um armário de uma fábrica na Índia. Tais incursões a territórios longínquos não desviaram o casal do objectivo principal: recuperar e manter materiais, tradições e o espírito algarvio e português. “Eu percebo que o turismo é importante para a economia portuguesa e a primazia do Barlavento, mas quem quer conhecer o Algarve, as suas tradições, pessoas e a comida tem de vir para este lado, para o Sotavento”, sustenta Tim. “É uma experiência totalmente diferente. Não falem do golfe, de Lagos, Vilamoura. Falem de São Brás de Alportel e a sua Festa das Tochas Floridas. O Algarve tem-se promovido, mas por vezes fala-se de mais das mesmas coisas que há noutros sítios”, prossegue este empresário que, aos 52 anos, está a desenvolver novos projectos na região, agora para Faro, cidade que elege como a next big thing da região. No segundo piso do edifício principal, há uma extraordinária biblioteca com uma colecção de discos em vinil (mais de mil). É a colecção de Tim e justifica por si só uma visita. Ao lado dos discos, dos dois pratos Technics old school, dos auscultadores e das duas poltronas, alinha-se uma não menos numerosa colecção encadernada de revistas The Face, Arena e Smash Hits — uma oferta do pai de Hallie, Nick Logan, que dirigiu tais publicações em tempos idos. Experiência aconselhável: escolher um disco e depois a respectiva edição da revista que fala sobre esse disco. É como pôr a arte e o que se disse dela numa balança e avaliar o peso de ambos, a posteriori. A discografia é ecléctica mas denota o gosto de Tim, que se define como “coleccionador inveterado” — toda a decoração interior já deixava pistas nesse sentido — e que diz “I’m an old punk” (”Sou um velho punk”) quando se lhe pede para escolher um disco (optou por The Cure e Joy Division). Fazenda Nova Country HouseEstiramantens, Santo Estêvão8800-504 TaviraTel. : 281 961 913www. fazendanova. euGPS: N 37º 07’ 15’’ | W 07º 45’ 19’’Alojamento: há cinco opções de quartos (suítes, apartamentos, penthouse, loft suites e uma master suite). Preços: desde 245€ por noite, reserva directa no site (tarifa para Maio/Junho), na opção mais barata (estadia mínima de duas noites), até 1560€ por duas noites (master suite, estadia mínima de 4 noites). Além do mais, considera-se um “purista” — sobretudo quando o tema chega aos azeites, ingrediente que ele próprio produz (cerca de 500 litros por ano), a partir do fruto das centenas de oliveiras que se espraiam pela quinta. Antes da conversa, provou-se um pouco da colheita de 2017 (0, 3 graus de acidez), a acompanhar uma salada à portuguesa com sardinha. O azeite está à venda na recepção, exclusivamente para hóspedes. Numa das paredes da biblioteca está pendurado uma moldura com um texto de Paul Weller, de Junho de 1981, publicado na The Face — e ao lado deste está a carta, com o texto original enviado ao director, manuscrito pelo próprio músico inglês, que pontificou nos The Jam e The Style Council e continuou a reinventar-se a ele próprio, a arte dele e o sucesso junto do público e da crítica numa carreira a solo a partir da década de 1990. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O texto intitula-se O Outro lado do Futurismo e é uma reflexão sobre livros e sociedade, com Aldous Huxley fortemente em pano de fundo. Se a palavra-chave de Fazenda Nova fosse a reinvenção do futuro, este texto poderia ser a cartilha, publicada com 30 anos de antecedência. Mas não é. A Fazenda Nova é apenas a quinta de um “velho punk”, que ali morou (já não mora) e viu com o coração aquilo que os olhos da maioria não foram capazes de ver: um futuro melhor. O sossego. A natureza. A carta do restaurante. A privacidade (15 quartos apenas). As vistas de mar e serra a partir dos terraços. A proximidade a sítios que merecem visita, como o Pego do Inferno (imperdível cascata e lagoa que era objecto de míticas histórias de que não tinha fundo — mas tem, e merece bem um mergulho), o mercado de Olhão, a Fuseta, a ilha de Armona, Tavira. O restaurante não serve jantares ao sábado à noite. Se por um lado se percebe a lógica — é uma noite reservada para sair —, por outro lado deixa sem opção quem não está a fim de quebrar a tranquilidade de um fim-de-semana para sair em busca de um restaurante (recomenda-se a marisqueira O Fialho, em Luz de Tavira; é melhor reservar antecipadamente, por ser muito concorrido, mas a qualidade do peixe merece bem a azáfama). A Fugas esteve alojada a convite da Fazenda Nova
REFERÊNCIAS: