Souto de Moura põe Bragança a conversar sobre arquitectura
Arquitecto é o homenageado na edição deste ano do Plast&Cine, que decorre esta sexta-feira e sábado. Hoje encontra-se com Álvaro Siza, numa sessão moderada por Ana Sousa Dias. (...)

Souto de Moura põe Bragança a conversar sobre arquitectura
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DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Arquitecto é o homenageado na edição deste ano do Plast&Cine, que decorre esta sexta-feira e sábado. Hoje encontra-se com Álvaro Siza, numa sessão moderada por Ana Sousa Dias.
TEXTO: O premiado arquitecto português Eduardo Souto de Moura é o homenageado do Plast&Cine 2017, um certame que, esta sexta-feira e sábado, põe Bragança a conversar sobre arquitectura e a fazer arte pública, de acordo com a organização. Hoje e amanhã, Bragança junta Souto de Moura e Álvaro Siza, os dois arquitectos portugueses distinguidos com o prémio Pritzker, além de vários outros convidados, e promove exposições, conferências, espectáculos, envolvendo também a comunidade local. Esta será a segunda vez que a cidade transmontana acolhe o Plast&Cine, depois de, em 2015, a pintora transmontana Graça Morais ter sido a homenageada no evento, resultado de uma parceria entre a Câmara de Bragança e a Editorial Novembro - Edições Cão Menor. Há sete anos que o Plast&Cine homenageia, em cada edição, uma figura das Artes e a sua obra com eventos que permitem revisitar o espólio e o legado artístico e a interacção de diferentes públicos, contando para o efeito com a presença do homenageado. O Plast&Cine homenageou, em 2009, Emília Nadal; no ano seguinte José Rodrigues; em 2011, Cruzeiro Seixas; em 2012, Roberto Chichorro; e, em 2013, Júlio Pomar, tendo as primeiras edições decorrido na cidade de Lamego. Eduardo Souto de Moura é a personalidade em destaque nesta edição em Bragança, cidade onde assinou dois projectos de espaços culturais emblemáticos, nomeadamente o Centro de Interpretação da Cultura Sefardita do Nordeste Transmontano e o Centro de Arte Contemporânea Graça Morais. Estes dois equipamentos culturais localizam-se na Rua de Abílio Beça, que é já conhecida como "a rua dos museus". É no Centro de Arte Contemporânea que vão decorrer alguns dos eventos previstos para estes dois dias. Hoje será inaugurada a exposição Eduardo Souto de Moura - Proporção e Desígnio, e realizar-se-á a iniciativa À conversa com Souto de Moura e Siza Vieira, conduzida pela jornalista Ana Sousa Dias. Entre os dois eventos, está também programada uma visita ao Centro de Interpretação da Cultura Sefardita. A homenagem começa, contudo, na rua, em plena praça da Sé, a zona central da cidade que acolherá uma exposição de arte pública realizada pelos alunos das escolas e por utentes das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) de Bragança. Das escolas e das IPSS da cidade surgiram também outros trabalhos sobre o homenageado que podem ser visitados na exposição, a inaugurar no Centro de Fotografia Georges Dussaud. Esta edição do Plast&Cine conta com a colaboração da Atarqui, a Associação Transmontana de Arquitectos, que preparou a exposição Arquitectura na Rua, apontada pela organização como "um dos momentos altos do evento". Trabalhos da autoria de 14 arquitectos vão ser mostrados em expositores, nas montras e fachadas de lojas comerciais do centro da cidade, segundo a organização. Outro dos destaques desta edição fica reservado para o segundo dia do programa com a conferência Conversas de Arquitectos, no Centro de Arte Contemporânea Graça Morais. A iniciativa "vai tratar da arquitectura tradicional na actualidade, sem esquecer os temas que são caros à região como Pombais do Nordeste Transmontano, Construção sustentável /ecológica e Reboco/revestimento tradicional, entre outros". Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A obra de Souto de Moura no Centro de Arte Contemporânea de Bragança será o tema da conferência de encerramento, precedida pelo lançamento do livro PLAST&CINE 2015 Graça Morais, Vida e Obra, alusivo à homenagem feita, em 2015, à pintora transmontana. O Plast&Cine 2017 encerra com o espectáculo teatral Variações de António, no Teatro Municipal de Bragança.
REFERÊNCIAS:
Fortaleza de Peniche deverá ser um museu nacional da resistência
Proposta do grupo consultivo prevê a concessão de espaços para restaurante e cafetaria, mas não para uma pousada. (...)

Fortaleza de Peniche deverá ser um museu nacional da resistência
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Proposta do grupo consultivo prevê a concessão de espaços para restaurante e cafetaria, mas não para uma pousada.
TEXTO: O grupo consultivo nomeado pelo ministro da Cultura para encontrar uma solução para o futuro da Fortaleza de Peniche chegou à conclusão de que este monumento nacional não deve ser parcialmente transformado numa pousada, como previa o Revive, o programa criado pelo Governo tendo em vista a recuperação do património para fins turísticos. A fortaleza, diz o documento entregue esta segunda-feira ao ministro, deve ser, prioritariamente, afectada a um museu, mas a proposta prevê também a existência de restaurante, cafetaria, auditório e posto de turismo cultural. A Fortaleza de Peniche, cuja construção recua até ao século XVI-XVII, deve grande parte da sua fama a ter guardado a mais infame prisão política do Estado Novo, onde foram presos durante 40 anos os opositores ao regime ditatorial. Foi aqui que se deu a célebre fuga de Álvaro Cunhal, secretário-geral do PCP. A "afectação prioritária à função museológica", acrescenta o documento de 14 páginas, passa por um projecto capaz de se afirmar "como testemunho vivo da repressão nas prisões do regime fascista, mas também da luta pela liberdade e a democracia", permitindo "sobretudo às novas gerações um contacto directo, pedagogicamente orientado, com essas realidades e memórias". Ao mesmo tempo, "a recuperação e requalificação da Fortaleza de Peniche para esse fim é um acto de justiça". Foi com estes dois pontos que depois de receber a proposta o ministro da Cultura se comprometeu. "O que diz respeito à nossa parte é o museu nacional da resistência – se lhe quisermos assim chamar, depois veremos o nome –, e a recuperação patrimonial", explicou ao PÚBLICO Luís Filipe de Castro Mendes. O museu terá "uma dimensão nacional", mas para já é prematuro definir se o termo significa a sua integração no organismo da Cultura responsável pelos museus nacionais, que é a Direcção-Geral do Património Cultural. Para o modelo de gestão, o grupo defende "a criação de uma entidade gestora" da fortaleza, com "modelo e mandato legal" definidos, que tenha a "participação da administração central, local e outras entidades". Pediu também a designação "de uma comissão específica para a instalação do núcleo museológico". O presidente da Câmara Municipal de Peniche, António José Correia, sublinha ao PÚBLICO que o documento apresentado ao ministro pelo grupo de trabalho foi aprovado por unanimidade. A expectativa deste independente eleito pela CDU (PCP e Os Verdes), que está no seu último mandato, é que seja anunciada alguma coisa ainda em Abril, no mês da liberdade, a partir do "conjunto de pistas de utilização" avançado pelo grupo de trabalho. Mas avisa: “Sem dinheiro não se compram melões. ”“O grupo fez uma proposta ao ministro. Para lá do que o grupo propôs fazer, estou expectante com o que o Governo quer fazer. Ou seja, o que vai fazer com base nos contributos que recebeu. ” A unanimidade que o grupo foi capaz de encontrar, ressalva, não se reflectiu na Câmara Municipal de Peniche, onde o PSD votou contra a proposta apresentada no documento — por “não dar qualquer garantia de financiamento” e “não deixar claro” que entidades assumirão a gestão, justificou à Lusa o vereador social-democrata Filipe de Matos Sales. Actualmente, apesar de aí estar instalado o Museu Municipal de Peniche, com um núcleo dedicado à resistência ao fascismo e outro às artes da pesca, a Fortaleza de Peniche apresenta partes muito degradadas. Num orçamento preliminar feito no passado, a Câmara de Peniche avançava com 5, 5 milhões de euros só para obras de conservação. O projecto museológico, defende o grupo, deve incluir as diversas fases históricas da fortaleza e abrir-se à "criação de um núcleo de actividades e negócios ligados ao mar", albergando, nomeadamente, "uma incubadora de empresas ligada à economia do mar, atraindo startups associadas à indústria do surf e desportos de ondas, pesca, biologia marítima e turismo". Sobre a vertente tecnológica ou das startups ligadas ao mar, o ministro da Cultura diz que “há muitas ideias”, mas que os dois grandes objectivos do Ministério da Cultura são “o museu” e “a conservação do monumento, que tem a ver com a fortaleza seiscentista e com a memória da resistência contra o fascismo e a luta pela liberdade”. “A parte cientifica-tecnológica e a das startups ligadas ao mar são ideias excelentes, mas isso é melhor perguntar aos meus colegas da ciência e da economia, porque todos os planos são bem-vindos. "Avanços e recuosFoi em Setembro do ano passado que o Governo de António Costa anunciou a inclusão do projecto de adaptação da Fortaleza de Peniche a pousada no Programa Revive, que pretende concessionar cerca de 30 monumentos degradados a investidores privados durante períodos de 30 a 50 anos, tendo como contrapartida a sua reabilitação, num investimento previsto de 150 milhões de euros. Um mês depois, em Outubro, foi entregue uma petição na Assembleia da República, defendendo que a decisão punha em causa “a preservação da memória histórica do que foi o regime fascista e a luta pela liberdade, bem como as funções e características do monumento”. Já em Novembro, o Forte de Peniche acabaria por ser retirado do Programa Revive. Nessa altura, o presidente da Câmara, que defendia a instalação de uma pousada na fortaleza, apresentou o seu protesto junto do ministro da Cultura, lamentando que a fortaleza fosse retirada do programa sem uma contraproposta. Já este ano, o Ministério da Cultura nomeou o grupo de trabalho que agora apresentou esta proposta, com o objectivo de apresentar possíveis usos para a fortaleza. O grupo, presidido pela directora-geral do Património, é constituído por dez pessoas, quatro das quais foram nomeadas pelo ministro da Cultura (Adelaide Pereira Alves, do PCP; Alfredo Caldeira, do Arquivo e Biblioteca da Fundação Mário Soares; Gaspar Barreira, ex-preso político e cientista; e José Pedro Soares, ex-preso político e membro da União dos Resistentes Antifascistas Portugueses). Além de Paula Silva, os representantes da administração pública são Jorge Leonardo, chefe do gabinete do ministro da Cultura, Hernâni Loureiro, adjunto do mesmo ministro, Inês Sequeira, representante da Secretaria de Estado do Turismo, e António José Correia, presidente da Câmara de Peniche. Este último indicou ainda o historiador João Bonifácio Serra. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O documento entregue pelo grupo tem ainda um último capítulo dedicado ao financiamento e ao modelo de gestão da fortaleza. Defende-se que é preciso executar o que já ficou previsto em sede de discussão do Orçamento de Estado para 2017, quando foi aprovado um plano urgente de reabilitação da fortaleza (apesar de isso não ter tido qualquer expressão no orçamento). Os peritos querem “um programa plurianual de financiamento para a recuperação e valorização da Fortaleza de Peniche, bem como uma rúbrica orçamental em sede de Orçamento de Estado destinada à gestão pública do complexo da fortaleza”. Na construção de um orçamento destinado à gestão do museu, prevê-se como “outras fontes de financiamento” a concessão de espaços, ao lado do mecenato, do crowdfunding, dos fundos comunitários, do orçamento municipal e da bilhética. O ministro diz que o projecto "não é para se fazer num espaço curto de um exercício orçamental": "Posso dizer é que este ano vamos fazer alguma coisa e que certamente entre as tarefas que temos está a elaboração desse orçamento plurianual. " Com verbas, "embora haja muitos números a circular", Castro Mendes não se quer comprometer.
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Partidos PSD PCP
No Museu do Dinheiro, Luís Silveirinha transfigura uma iconografia
No Museu do Dinheiro, Luís Silveirinha transfigura uma iconografia, fazendo nascer imagens de outras imagens. (...)

No Museu do Dinheiro, Luís Silveirinha transfigura uma iconografia
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: No Museu do Dinheiro, Luís Silveirinha transfigura uma iconografia, fazendo nascer imagens de outras imagens.
TEXTO: O Museu do Dinheiro tornou-se um lugar em que os artistas mostram e fazem o seu trabalho. O mérito é de Sara Barriga (coordenadora do núcleo do museu), da sua equipa, e, claro está, dos artistas: Pedro A. H. Paixão, Teresa Milheiro, Pedro Valdez Cardoso e Nuno Henrique, aos quais se junta agora Luís Silveirinha (Campo Maior, 1969), com o seu paciente e generoso trabalho de desenho. Chama-se Arquivo, o projecto em que reinterpreta as moedas do museu, recorrendo a materiais que têm acompanhado a sua obra e objectos que, pela primeira vez, integram o seu fazer. Há, portanto, uma continuação e, em simultâneo, um desvio. Luís Silveirinha experimenta formatos e escalas distintas, diferentes modos de relação com as obras, abrindo o seu gesto a uma conversa com outra iconografia: a da numismáticaNo contexto actual da arte portuguesa, o desenho de Luís Silveirinha aparece peculiar, dir-se-ia mesmo, raro. Sopra contornos de monstros, de figuras humanas, de símbolos, de seres mitológicos, plantas e animais. É redondo, cheio, comunicativo, tão cheio de sombras, como de formas nítidas, tão acessível, em termos de estilo, como fugidio, pois não se completa, não se fecha. Como refere João Silvério, curador da exposição, Luís Silveirinha é um artista que parece remeter-nos para outro tempo, para referências passadas. Ouse-se, então, mencionar artistas cuja vizinhança Luís Silveirinha poderia partilhar: Joaquim Rodrigo, Pedro Proença, William Kentridge, Fátima Mendonça, Pedro AH Paixão. Vizinhança com intervalos, clareiras, distância. Artista(s):Luís Silveirinha Museu do Dinheiro, Lisboa, Quarta a Sábado, de 23 de Março de 2017 a 10 de Junho de 2017 das 10h às 18hSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No Museu do Dinheiro, Luís Silveirinha estudou uma selecção de moedas e transfigurou-as sobre o papel, evocando com a memória, imagens mentais que resultaram não apenas dessa pesquisa, mas, igualmente, de outros desenhos, de outras exposições; há um bestiário, um vocabulário fantástico que desagua no Museu do Dinheiro. As efígies, as figuras, os símbolos, as tipologias, que ele descobriu (como se fossem desenhos perdidos, pinturas rupestres tapadas pelo negro), fazendo revelar o lápis de cera na tinta-da-china, resultaram de um processo de desenho que faz e liberta imagens. Esse deleite, quase obsessivo, marcara Impulsão, na galeria Alecrim 50, em Lisboa, no ano passado. Aí com um trabalho de sobreposição e revelação, acrescentou e fez novos desenhos sobre páginas de um Atlas Mundial. Esta inclinação para o palimpsesto retoma em Arquivo. Também aqui faz imagens de outras imagens, também aqui destrói objectos para deles fazer obras artísticas. Em Arquivo, Silveirinha confronta-se com a presença do simbolismo da moeda. Em frente do antigo altar-mor da Igreja de S. Julião (onde o Museu do Dinheiro está instalado) o espectador vê um conjunto de peças circulares assentes sobre plintos. Têm as superfícies gravadas com desenhos e embora possam ser rodados com as mãos, estão ali para serem vistos: o movimento é limitado. Já o conjunto de trabalhos que, na sala, surgem suspensos do tecto solicitam uma aproximação distinta. Construídos a partir de discos em vinil (em formato LP), apresentam dois lados, mas não rodam, nada os faz girar. Sem os elementos que lhes atribuíam uma autoria ou história, são objectos anónimos que o desenho destruiu antes de salvar. É como se Luís Silveirinha, contra o desgaste ou a ameaça do esquecimento, lhes devolvesse uma nova vida, acrescentando-lhes o seu, nunca fixo, sempre imprevisível reportório visual. Noutro trabalho, o desenho reaparece no papel, com guache sobre capas de discos, formando uma profusão de formas circulares que vão ocupando toda a superfície. Imagens de medalhões, moedas, objectos circulares. Tal acumulação dissolve-se ou reduz-se nos dois desenhos de maior dimensão, intitulados “Avareza” e “Fortuna” que podem ser vistos no coro alto, no segundo piso do museu. O espectador será tentado a estabelecer uma relação de sentido entre estes conceitos e os estranhos seres que habitam os desenhos. E a tentação é compreensível. Os traços, as sombras, o carácter
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave campo negro
O lugar-comum é uma arma de destruição maciça
Nuno Carinhas e Nuno M. Cardoso encenaram Os Últimos Dias da Humanidade, obra-prima de Karl Kraus, evitando domar o monstro feito das vozes da sociedade vienense que na sua atroz banalidade ajudaram a conduzir à I Guerra Mundial. (...)

O lugar-comum é uma arma de destruição maciça
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DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nuno Carinhas e Nuno M. Cardoso encenaram Os Últimos Dias da Humanidade, obra-prima de Karl Kraus, evitando domar o monstro feito das vozes da sociedade vienense que na sua atroz banalidade ajudaram a conduzir à I Guerra Mundial.
TEXTO: Subiu esta quinta-feira à noite ao palco do Teatro Nacional de S. João (talvez seja mais exacto dizer que subiu à plateia, coberta para o efeito por uma plataforma onde decorre toda a acção) a primeira parte de Os Últimos Dias da Humanidade, do escritor austríaco Karl Kraus, uma peça que o próprio autor estimava só poder ser representada num teatro de Marte, já que o público terrestre não a conseguiria suportar, quer pela sua desmedida extensão, quer por ser feita das palavras que geraram a guerra e, por isso, ser “sangue do seu sangue”. Das 209 cenas da versão original, os encenadores Nuno Carinhas e Nuno M. Cardoso, com a colaboração de Pedro Sobrado e João Luís Pereira, do departamento de edições do TNSJ, seleccionaram cerca de metade, que em alguns casos sofreram ainda cortes significativos. Mesmo assim, o que resta chega para seis horas de representação, divididas em três partes — Esta Grande Época, Guerra é Guerra e A Última Noite — e obriga um já de si considerável elenco de 21 actores a desdobrar-se em quase 200 personagens. Até 18 de Novembro, as três partes em que se reformataram os cinco actos da peça original (aos quais se somam um prólogo e um epílogo) ir-se-ão revezando no Teatro São João, estando depois prevista para dia 19 uma verdadeira prova de resistência para actores e espectadores, com uma interpretação integral que, incluídos dois intervalos, durará nada menos do que oito horas, das 15h às 23h. No sábado anterior, dia 12, o tradutor de Os Últimos Dias da Humanidade, António Sousa Ribeiro, a jornalista Cândida Pinto e os historiadores José Pacheco Pereira e Rui Bebiano participarão na conferência Laboratórios do Apocalipse, organizada pelo TNSJ e moderada por Bruno Monteiro. Após a guerra, Kraus recusou várias propostas de produção da sua gigantesca peça, mas ele próprio escreveu mais tarde uma dramaturgia abreviada, na qual prescindiu de um par de personagens que aparecem quase sempre em diálogo e são recorrentes ao longo do texto: O Eterno Descontente, espécie de alter-ego do autor, e O Optimista, que dá ao primeiro as deixas para os seus discursos. Nuno Carinhas nota que também seria possível fazer o contrário e reduzir a dramaturgia aos diálogos do Eterno Descontente e do Optimista, mas ele e Nuno M. Cardoso não seguiram nenhum destes caminhos e propuseram-se “respeitar o lado monstro da obra”. Isto é, cortaram, mas tentando não sacrificar a espantosa diversidade de registos do texto, uma variedade que não reside apenas na profusão de vozes convocadas, mas no catálogo de formas dramáticas que a peça integra: “Há coisas que vão do drama burguês a um teatro épico avant la lettre, mas também alegorias ao estilo do teatro medieval, com cavalos que falam e forças naturais que intervêm”, nota Pedro Sobrado. Os ensaios só começaram em Agosto, um tempo francamente curto para os actores interiorizarem esta imensa colagem de vozes numa peça que, sublinha Nuno M. Cardoso, é “feita de fragmentos, de vozes, sem evolução das personagens”. Mas a pré-história desta encenação pode situar-se em Junho de 2013, quando os dois encenadores levaram ao Serralves em Festa leituras de Os Últimos Dias da Humanidade. Mais tarde, ao dinamizar no TNSJ um projecto chamado Ginásio de Actores, Nuno M. Cardoso pôs estudantes de teatro e jovens profissionais a trabalhar com o texto de Kraus, e muitos deles acabaram neste elenco, a contracenar com um núcleo de actores mais experientes. Kraus disse que, nesta peça, quis pôr o seu tempo entre aspas, isto é, quis citá-lo literalmente. As falas mais deliciosamente inverosímeis são quase sempre transcrições fiéis de jornais, cartas e outros documentos da época. Um bom exemplo disso é Schalek, uma correspondente de guerra inebriada com a frente de batalha (interpretada por Sara Barros Leitão), que se limita a repetir, enquanto personagem, o que a jornalista real escreveu nas suas reportagens. Numa das cenas desta primeira parte, a intrépida Schalek pergunta a um tenente cujo sargento acabou de morrer: “Ora diga-me, em que é que está a pensar agora, o que é que lhe vai na alma?”. Soa-lhe familiar? Esta é definitivamente uma peça que não se recomenda a jornalistas demasiado susceptíveis. Para lá do pretexto do centenário da I Guerra e do gosto de Nuno Carinhas por peças “não muito acabadas, com impurezas”, foi também a óbvia actualidade do texto que motivou “os Nunos”, como algum do pessoal do TNSJ se refere economicamente à dupla de encenadores. “Isto não está localizado na História, tem ecos muito presentes”, observa Carinhas, argumentando que, cem anos depois, as questões de cidadania que Kraus levanta, ou a sua crítica aos meios de informação, não perderam pertinência. E lembrando que “uma frase muito ouvida na peça é ‘foi lá acima e desenrascou-se’”, sugere que também “nessa movida de interesses e oportunismos não se vê mudança nenhuma”. António Durães, a quem coube a dura tarefa de dar corpo ao Eterno Descontente — é o único dos 21 actores que só desempenha um papel —, concorda que “a actualidade da peça é assustadora” e que isso não facilita a vida aos actores. “É que, no confronto com o passado, estamos constantemente a falar do presente, as coisas estão a acontecer”, observa. Mas se o presente se intromete no passado, há também o reverso da medalha: “Cem anos na história da humanidade não significam nada, mas para nós, que estamos a fazer esta peça, é um tempo longínquo, que fica muito para trás das nossas vidas, de que nos esquecemos, e trabalhar este material, trazer esta história novamente para a nossa mesa, comer com ela, conviver com ela, não é fácil”. Vendo no Eterno Descontente, cujas falas tanto se resumem a breves tiradas irónicas como se estendem por dezenas de páginas de indignada retórica, ���uma extensão do próprio Kraus”, Durães atribui à sua personagem o papel destinado ao Coro nas tragédias gregas. “O Eterno Descontente chega, reflecte, previne, adivinha, e se há dom que o Kraus teve foi o de ser capaz de antecipar muitas das coisas que nos atormentam há cem anos”, diz o actor, para quem uma das ideias centrais da peça é de que a decadência da linguagem é uma das causas da guerra. “A humanidade tornou a linguagem uma coisa imediata, sem pensamento, e isso facilita que a seguir à palavra suceda um gesto qualquer que dá azo a um conflito”. Há, de resto, um diálogo em que o Optimista pergunta ao Eterno Descontente se “está então em condições de estabelecer uma relação palpável entre a língua e a guerra”, e este responde que “aquela língua que mais se cristalizou na frase feita e no lugar-comum também tem a disposição para achar irrepreensível em si própria tudo aquilo que, nos outros, é digno de reparo”. O tradutor da peça, António Sousa Ribeiro, professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que já tinha publicado uma primeira versão parcial de Os Últimos Dias da Humanidade na Antígona, e que agora concluiu e reviu o seu trabalho para esta encenação (a edição integral irá ser publicada pelo TNSJ), confirma que “aquilo que Kraus interpreta como degradação da linguagem é um fio condutor fundamental” da peça, e lembra que já quando o autor lançou a sua revista, Die Fackel, em 1899, assumira como programa “drenar o vasto pântano dos lugares-comuns”. E Kraus, acrescenta, “vai associar cada vez mais ao jornalismo este empobrecimento da linguagem, que destrói a imaginação, tornando os seres humanos capazes de ouvir falar das piores atrocidades sem compreenderem o que estas representam para as pessoas concretas e dispondo-os para a violência e para aceitação passiva da guerra”. Mas Kraus também não poupa os muitos escritores e intelectuais austríacos do seu tempo que alinharam na incendiária retórica nacionalista, e que figuram na peça com os seus próprios nomes. Uma das cenas mais divertidas da primeira parte é o diálogo entre O Assinante [do jornal Neue Freie Presse, que Kraus abominava], interpretado por João Cardoso, e a personagem do Patriota (Marcello Urgeghe), a propósito do poeta Hans Müller (Miguel Loureiro), que em Berlim “deu uma beijoca em plena rua a um simples soldado”, e que escrevia entusiásticos artigos da frente de combate confortavelmente instalado em Viena. “Naquele contexto”, diz Sousa Ribeiro, “a cultura tornou-se uma arma de destruição maciça”. Para o tradutor de Os Últimos Dias da Humanidade, Kraus é o maior autor satírico do século XX, e a sua sátira, explica, combina as duas grandes tradições do género, a que vem de Horácio, centrada na ironia, e a sátira indignada, de cariz patético, que remonta a Juvenal. Essa alternância entre ironia e pathos está bem presente no espectáculo do TNSJ, onde momentos divertidíssimos e tiradas da mais fina ironia convivem com alguns discursos inflamados do Eterno Descontente, que escarnecem sem pretender provocar o riso. Nesta encenação, e ao contrário do texto original, a acção começa já depois do assassinato do arquiduque Francisco Fernando, com um extenso telefonema em que o director de protocolo da corte austro-húngara, Nepallek, se diverte a lembrar ao seu interlocutor tudo o que foi feito para garantir que o funeral do herdeiro do trono tivesse o mínimo de pompa possível. É um notável one-man show do actor Pedro Almendra a abrir esta primeira parte, que inclui várias outras cenas hilariantes, como a do professor Zehetbauer (um dos vários papéis de João Castro), que põe a turma a cantar o hino patriótico Cuidai do Turismo!. É também no primeiro acto que está a cena em que Kraus dá um tom mais caricatural à sua crítica da imprensa, com três repórteres que recebem a actriz Elfriede Ritter (Teresa Arcanjo), recém-chegada da Rússia, e usam as suas palavras para a pôr a dizer o contrário do que efectivamente disse. Se na primeira parte o palco, montado sobre a plateia, é uma plataforma simples, que os espectadores vêem de cima, a partir da tribuna e das frisas, mas também de uma estrutura erguida no extremo oposto da sala (os actores estão sempre, por assim dizer, entre dois fogos), na segunda parte o cenário complica-se com a introdução de uma série de estrados, que servem para simular uma visita (ela própria simulada) às trincheiras, mas também, por exemplo, para hierarquizar no espaço os vários estratos da sociedade vienense. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Autoria: Karl Kraus Encenação: Nuno Carinhas, Nuno M Cardoso Cenografia: Nuno Carinhas Tradução: António Sousa Ribeiro Desenho de luz: Wilma Moutinho Música: Jonathan SaldanhaO momento mais notável desta segunda parte é provavelmente a conversa de quarto entre o conselheiro Schwarz-Gelber e a sua esposa. Num ensaio incluído no manual de leitura da peça organizado pelo TNSJ, Robert Calasso cita esta cena como exemplo de “comicidade aterradora” e não hesita em afirmar: “Nenhum dos grandes dramaturgos do século XX concebeu algo de comparável. E talvez só Ernst Lubitsch tivesse podido filmá-lo adequadamente”. No terceiro acto, prepare-se para um discurso do Eterno Descontente que é tão longo que se achou melhor que Durães o dividisse com outros actores, e também para o alucinado final, onde Kraus dá voz a cavalos e cães, a soldados mortos e até a um filho por nascer. E, cumprido o apocalipse, a última voz a ouvir-se é, claro, a de Deus, que diz apenas uma pequena frase, que não repetiremos aqui, embora Ele próprio estivesse a repetir o imperador alemão Guilherme II.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra humanos violência cultura filho género espécie corpo assassinato cães
Para onde fica a guerra, Brad Pitt?
Com Máquina de Guerra, David Michôd inspira-se na história verídica de um general caído em desgraça, interpretado por Brad Pitt, para falar do mundo de hoje. (...)

Para onde fica a guerra, Brad Pitt?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Com Máquina de Guerra, David Michôd inspira-se na história verídica de um general caído em desgraça, interpretado por Brad Pitt, para falar do mundo de hoje.
TEXTO: “Tive sempre consciência de que a maioria das pessoas viu os meus dois filmes anteriores em casa”, diz pragmaticamente o realizador australiano David Michôd, 44 anos. “Há algo de extraordinariamente libertador em não ter de ver a minha carreira depender do dinheiro que faço no primeiro fim-de-semana de exibição. É quase garantido que mais gente vai ver este filme do que viu os meus dois outros filmes” — a sua estreia, Reino Animal (2009), sobre uma família criminosa de Melbourne, tornou-se um filme de culto que em Portugal se estreou com quatro anos de atraso; o segundo, A Caçada (2014), nem chegou a estrear-se por cá. Máquina de Guerra, recém-estreado no serviço Netflix, foi inteiramente financiado pelo gigante americano do streaming, sem passar pelos grandes estúdios nem ter tido estreia em sala. Não é o primeiro filme produzido directamente pela Netflix, mas é o filme que melhor desenha as ambições do serviço a subir à “primeira liga”: uma longa-metragem de grande perfil e orçamento confortável, com Brad Pitt, uma das poucas vedetas globais dos nossos dias, no papel principal, e a presença de Tilda Swinton, Ben Kingsley ou Meg Tilly em papéis secundários. É uma narrativa ficcionada a partir da história verídica do general Stanley McChrystal, enviado para o Afeganistão para “vencer a guerra” e responsável pela “escalada” de tropas americanas, que caiu em desgraça depois de uma reportagem demasiado reveladora de um jornalista da Rolling Stone (o falecido Michael Hastings, cujo livro sobre a “semana de campo” que passou com o general serve de base a Máquina de Guerra). Por questões legais, a personagem chama-se aqui “Glen McMahon”. Máquina de Guerra é o tipo de filme que Hollywood ainda vai financiando quando tem um nome de peso no cartaz — aqui é Pitt, mas poderia ser George Clooney ou Matt Damon —, sobretudo na categoria cada vez mais esquiva do “filme de prestígio” apontado aos Óscares. Mas é significativo que tenha contornado, desde o início da sua produção, o sistema tradicional. David Michôd diz que, mesmo sabendo que o filme nunca foi pensado para ser visto em sala (apesar de ir ter uma estreia restrita em alguns territórios), “isso não mudou nada”. “É um filme que talvez não tivesse sido financiado pelos grandes estúdios no clima actual. O que eles estão a produzir não sai de um tipo muito limitado. E o que eu quis fazer com Máquina de Guerra era algo tonal e formalmente invulgar, politicamente contencioso. ”Ao longo de 15 minutos de conversa, Michôd, antigo jornalista e crítico que adaptou ele próprio o livro de Hastings, repetirá várias vezes ter querido fazer um filme de guerra “que abrangesse todo o seu absurdo, o seu horror e a sua brutalidade, que fosse ao mesmo tempo uma sátira mas fosse também escuro e negro e brutal”. É uma insistência que tem algo de conversa de marketing bem ensaiada; Michôd não se pode ter esquecido das sátiras que foram sendo feitas desde os tempos da Guerra Fria e sobretudo no pós-Vietname, desde o Artigo 22, de Mike Nichols, a Três Reis, de David O. Russell. Mas é verdade que o que ele tenta em Máquina de Guerra não é coisa que Hollywood arrisque muito. O tom quase coloquial do filme, que começa como sátira escarninha “contado ninguém acredita” para escorregar aos poucos para “tragédia de um homem ridículo”, está mais próximo do meio-termo entre a comédia e o drama que Adam McKay atingiu com A Queda de Wall Street. Filme que, não por acaso, também era baseado num best-seller que contava uma história verídica e também era oriundo da mesma produtora — a Plan B Entertainment de, surpresa!, Brad Pitt. Não é um acaso: foi a companhia, conhecida pelo seu apoio a autores em ascensão (Barry Jenkins com Moonlight, Steve McQueen com 12 Anos Escravo, James Gray com A Cidade Perdida de Z), que desenvolveu o projecto e que convidou Michôd a realizar. “A verdade é que eu andava há muito tempo à procura do projecto certo para falar das guerras do Afeganistão e do Iraque”, confessa o australiano. “Mas não conseguia encontrar uma história que eu quisesse contar, e que também soubesse que ia conseguir ser produzida. Foi aí que a Plan B me enviou o livro de Michael Hastings, e eu soube imediatamente como o adaptar. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A definição de Michôd é “esquizofrenia tonal” — “tem que ver com comprometer-me a fundo com ambos os tons do filme e não os tentar misturar num único. O filme é, em parte, sob a desconexão entre as altas instâncias militares e as tropas no solo, e isso implicava mantê-los separados, em mundos diferentes. O Brad e os actores que interpretam a sua equipa tinham de estar num mundo, o que implicava correr riscos, sobretudo ao nível da comédia; os actores que interpretam as tropas no terreno em Helmand tinham de estar num outro mundo, num filme de guerra sincero. O meu papel era manter esses dois tons independentes e depois, na montagem final, equilibrá-los de uma maneira que não traísse nenhum. Ia ser um desafio, mas era o modo perfeito de fazer um filme que não fosse só sobre a loucura da guerra, mas também sobre o mundo em que vivemos. ”Michôd insiste bastante nessa ligação, até porque Máquina de Guerra tem muito em comum com Reino Animal — são filmes sobre as “bolhas” insulares em que grupos muito íntimos, de famílias criminosas a unidades militares, se deixam isolar. “De certo modo, essa ideia da bolha é um dos temas que dou por mim a tratar”, admite o realizador. “A maneira como alguns tipos de personalidade interagem uns com os outros acaba por formar um todo que pode escorregar muito facilmente para a ilusão. Isso parece-me aliás uma das questões centrais na instituição militar americana, em parte porque é uma organização tão gigantesca que há bolhas a formarem-se constantemente. Mas interessava-me sublinhar que esse mundo militar em que a personagem do Brad vive tem muitos paralelos com as vivências pessoais de cada um de nós. Eu próprio, em dados momentos da minha carreira, dei por mim no plateau em pânico, em stress, a perguntar-me por que raio estou a fazer isto, a sentir-me prisioneiro da minha própria ambição. Mas sei porque estou a fazê-lo. Porque tomei uma decisão, há 20 anos, de fazer do cinema a minha carreira, e não sei que mais fazer com a minha vida. E é a mesma coisa com o general McMahon. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra campo negro homem animal pânico
Raul Brandão: a outra modernidade que a geração de Orpheu ensombrou
Apreciado no seu tempo, pouco lido nas gerações seguintes, agora a ser recuperado, o autor de Húmus prenunciou o expressionismo e, à sua estranha maneira, foi tão experimental como Álvaro de Campos. (...)

Raul Brandão: a outra modernidade que a geração de Orpheu ensombrou
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento -0.12
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Apreciado no seu tempo, pouco lido nas gerações seguintes, agora a ser recuperado, o autor de Húmus prenunciou o expressionismo e, à sua estranha maneira, foi tão experimental como Álvaro de Campos.
TEXTO: Nascido há 150 anos na Foz do Douro, numa família de pescadores, Raul Brandão frequentou o Curso de Letras, mas acabou por enveredar por uma tranquila carreira na burocracia militar, da qual se reformou com o posto de capitão, e que nunca teve dificuldade em compatibilizar com uma presença assídua nos jornais e revistas da época. Escreveu ficção, teatro, livros de viagens, memórias, dialogou com os movimentos literários do seu tempo, conviveu na juventude, em Leça, com o grupo de António Nobre, foi depois íntimo de Teixeira de Pascoaes ou Aquilino Ribeiro, e ainda privou com admiradores bastante mais jovens, como Vitorino Nemésio ou José Rodrigues Miguéis. Casou-se aos trinta anos e adquiriu, logo depois, a sua muito amada Casa do Alto, uma quinta em Nespereira, Guimarães, onde se radicaria definitivamente a partir de 1912, ainda que continuando a passar temporadas regulares em Lisboa. Fez uma viagem a Itália com a mulher, em 1906, com regresso por Paris e Londres, e já para o final da vida, em 1924, passou dois ou três meses nos Açores e na Madeira, visita de que resultaria o livro de viagens As Ilhas Desconhecidas (1926). Morreu relativamente novo, aos 63 anos, de um aneurisma da aorta. Foi desta pacata vida burguesa – um percurso profissional sem sobressaltos, uma reputação literária sólida, um casamento que parece ter sido bastante feliz – que emergiu um dos livros mais radicais e mais ferozes de toda a literatura portuguesa: Húmus, uma obra inclassificável, difícil de comparar com qualquer outra, uma experiência limite, um combate metafísico com o absurdo da existência, uma descida textual a esse abismo informe que a humanidade procura a todo o custo preencher com hábitos, rotinas, ninharias. “Todo o trabalho insano é este: reduzir a vida a uma insignificância, edificar um muro feito de pequenas coisas diante da vida. Tapá-la, escondê-la, esquecê-la”, escreve Raul Brandão em Húmus, que abre com uma frase depois retomada de várias formas ao longo do livro: “Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste. . . ”. Da geração que precedeu a de Orpheu – era 21 anos mais velho do que Fernando Pessoa –, Brandão fez parte desse grupo de autores finisseculares de forte influência simbolista a que pertenceram António Nobre ou Camilo Pessanha, nascidos, como ele, em 1867. E não seria muito difícil arrumá-lo como um autor do período se não se tivesse dado o caso de ter escrito Húmus, que ele próprio considerava a sua obra mais importante, e que reescreveu por duas vezes. Mas Húmus veio desarrumar tudo, sabotar todas as possibilidades de catalogação. “É uma experiência única, uma coisa totalmente experimental, tão experimental como o que estavam a fazer Álvaro de Campos ou Almada Negreiros”, diz o ensaísta Pedro Eiras, cuja tese de doutoramento relaciona Brandão com Pessoa, Herberto Helder e Maria Gabriela Llansol. “Brandão vira as costas ao Orpheu, Pessoa finge que não o lê, e vice-versa, não há ali comunicação possível”, resume Eiras, observando que, no entanto, Húmus é publicado no mesmo ano em que Almada lança a revista Portugal Futurista”. Um acaso que lhe parece mais significativo do que o muitas vezes lembrado ano comum de nascimento que Brandão partilha com Nobre e Pessanha. Se a história literária não fosse, como a outra, escrita pelos vencedores, talvez o autor de Húmus pudesse hoje ser visto como o pioneiro de uma outra via do modernismo português. Um caminho que o afastou de Orpheu e das vanguardas a cuja eclosão ainda pôde assistir, mas que o aproximou de um expressionismo, com a sua tónica na visão interior do artista, que estava a surgir na Alemanha e nos países nórdicos, e que provavelmente o autor português mal terá conhecido. Mas “se se ler uma página do Húmus ao lado de uma tela de Munch [o pintor expressionista norueguês de O Grito], é absolutamente nítido que uma permite comentar a outra”, argumenta Eiras. O ensaísta Luís Mourão, autor de Um Romance de Impoder. A Paragem da História na Ficção Portuguesa Contemporânea – e especialista na obra daquele que é talvez o romancista com uma mais assumida dívida a Raul Brandão, Vergílio Ferreira –, vai ainda mais longe do que Eiras no modo como distingue Húmus de toda a restante produção do autor. “Acho que há dois Raul Brandão: um é o autor de Húmus, que é uma obra ímpar, o outro escreveu as memórias, os livros de viagens, tudo o resto”. Poderá então considerar-se que, não obstante a sua extensa obra, Brandão partilha paradoxalmente com Nobre e Pessanha a circunstância de ser autor de um livro único? A diferença, diz Mourão, é que o Só e a Clepsidra são, respectivamente, Nobre e Pessanha, ao passo que “Húmus é maior do que Raul Brandão”. É “aquele tipo de obra que constitui um ponto-limite de alguém, um combate com todos os fantasmas, uma coisa que só se faz uma vez na vida e que pode destruir uma pessoa”. E “nada do que vem depois pode ir mais longe, só resta recuar, e Brandão até recua bem”. Tanto Mourão como Eiras assinalam a influência do autor de Os Possessos, mas ambos acham redutor ver em Brandão uma espécie de Dostoievski português. E o primeiro também se revê pouco nos que querem fazer do escritor português um antecessor do nouveau roman. “É uma coisa que se diz para mostrar que Húmus sobrevive muito bem na contemporaneidade, mas que acho que passa ao lado do essencial”. Outra perplexidade nunca resolvida é a de saber se Húmus é um romance. O grande biógrafo de Brandão, Guilherme de Castilho, sugere que a evolução do romance moderno, com Joyce ou Proust, veio permitir, a posteriori, que Húmus pudesse ser visto com naturalidade como um romance, um reconhecimento a que os seus primeiros leitores não tinham acesso. Mesmo assim, Eiras resiste a chamar-lhe romance, e sugere que o que Brandão faz em prosa só estava então a ser feito na poesia, “que começava a prescindir de contar uma história”. E se há algumas breves peripécias em Húmus, “elas só lá estão para serem avariadas”, defende ainda o ensaísta. “Ao fim de duas ou três páginas, suspendem-se no momento em que o leitor esperaria um desenlace”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Brandão aprendeu bastante com Eça de Queirós, mas ao contrário dos Maias, onde no final se trata de saber se Carlos “dorme com a irmã ou não dorme, e sabemos que se dormir é a catástrofe”, em Húmus “não há nada que decida coisíssima nenhuma”, observa Eiras: “Os mortos ressuscitam? Não importa. O inferno é cancelado? Tanto faz. E quem são os vivos e quem são os mortos? E quem é o sujeito? E o tu a quem o narrador se dirige continuamente? Não fazemos a menor ideia”. O que mais interessa o ensaísta é justamente esta “avaria do discurso”, “uma coisa totalmente nova, que ninguém tinha feito desta forma”. “Não creio que Raul Brandão fosse um romancista, como o Aquilino, e acho que até podíamos olhar para o Húmus como um longo poema em prosa”, diz Mourão. Eiras concorda: “Até em termos rítmicos, há ali um trabalho formal que o aproxima da poesia”. E se Mourão evoca o Húmus de Herberto Helder, o livro de 1967 em que este parte dos materiais de Brandão para construir o seu próprio poema, como “prova definitiva de que há dois Raul Brandão”, já que “seria impossível fazer o mesmo com qualquer outra obra do autor”, Eiras acrescenta que Herberto demonstrou também na prática que Húmus era poesia. Teríamos assim um último paradoxo: um autor que mais ou menos escreveu tudo menos poesia – ou que apenas compôs alguns negligenciáveis poemas versificados –, talvez tenha sido afinal, mais do que qualquer outra coisa, um grande poeta.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte mulher espécie casamento
O fim do mundo não veio, mas a carreira de Carlos Roa acabou
Titular da Argentina no Mundial 1998 e cobiçado pelo Manchester United, deixou o futebol para se preparar para o apocalipse (...)

O fim do mundo não veio, mas a carreira de Carlos Roa acabou
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Titular da Argentina no Mundial 1998 e cobiçado pelo Manchester United, deixou o futebol para se preparar para o apocalipse
TEXTO: Ele estava no auge da carreira quando decidiu abandonar o futebol. A razão? Preparar-se para o fim do mundo. A religião sempre teve um papel central na vida de Carlos Roa, internacional argentino que, aos 29 anos, recusou propostas milionárias e desapareceu durante alguns meses. O tempo passado em isolamento, nas montanhas, permitiu ao guarda-redes “ficar mais próximo da família”. Quando sentiu falta do futebol, regressou “relaxado e feliz” – mas o tempo dele já tinha passado, e a carreira não voltaria a ser o que era. Carlos Roa não teve um início fácil: estreou-se no campeonato argentino aos 19 anos, pelo Racing Avellaneda, mas numa digressão de Verão a África adoeceu com malária e seria transferido para o Lanús. Aí, viria ser treinado por Héctor Cúper, e isso foi o melhor que lhe aconteceu. O clube lutou pelo título, Roa era titular e, quando Cúper se transferiu para o futebol espanhol, levou o guarda-redes consigo para reforçar o Maiorca. A aventura europeia começou em 1997-98 e, nessa primeira época, o emblema das Baleares chegou à final da Taça do Rei: perante o Barcelona, o Maiorca marcou primeiro, mas permitiu a igualdade e a partida só foi decidida nos penáltis. Carlos Roa travou os remates de Rivaldo, Celades e Luís Figo, ainda marcou com sucesso uma das grandes penalidades, só que não conseguiu evitar que o troféu fosse para a Catalunha (mas teve depois a desforra quando conquistou a Supertaça espanhola). Veio o Verão e Carlos Roa juntou-se à selecção argentina para o Mundial 1998. Titular indiscutível na equipa de Daniel Passarella, não sofreu qualquer golo na fase de grupos e voltou a ser decisivo nos penáltis, perante a Inglaterra, nos oitavos-de-final. Em mais um capítulo desta rivalidade, o prolongamento não desfez o 2-2 e nas grandes penalidades Carlos Roa defendeu os remates de Paul Ince e David Batty para garantir o apuramento. Nos quartos-de-final, a albiceleste seria batida pela Holanda. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Roa era um herói nacional e na época 1998-99 foi eleito o melhor guarda-redes do campeonato espanhol. Havia sobre a mesa uma proposta milionária do Manchester United, mas o guarda-redes tinha tomado a decisão de abandonar o futebol para dedicar-se a “transmitir a palavra de Deus”, como pastor da Igreja Adventista do Sétimo Dia. À semelhança de outros crentes, acreditava que a mudança de milénio traria o fim do mundo. A camisola 13 do Maiorca (“O 1 é Deus, a criação, e o 3 porque Cristo ressuscitou ao terceiro dia”) deixou de ter dono, Roa libertou-se de todos os bens e retirou-se para lugar incerto. Passou uns meses numa localidade isolada nas montanhas, mas sentiu a falta do futebol e voltou. Só que já era tarde. Perdeu o lugar no Maiorca, depois rumou ao Albacete na II Divisão e, em 2004, foi forçado a parar de jogar quando lhe detectaram cancro nos testículos. “A mim, que sou vegetariano, não bebo, não fumo, não tomo nada”, disse na altura ao El País. Conhecido como “alface”, devido à sua dieta estritamente vegana, Carlos Roa despediu-se dos holofotes. Agora com 48 anos, é treinador de guarda-redes no Chivas de Guadalajara. E já não pensa no fim do mundo. * Planisférico é uma rubrica semanal sobre histórias de futebol e campeonatos periféricos. Ouça também o podcast
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave igualdade vegetariano
Fermentar alimentos “é um acto de resistência”
Mudar o mundo, uma fermentação de cada vez — é isto que propõe Sandor Katz no livro Os Segredos da Fermentação, que acaba de ser lançado em Portugal. É uma bíblia do tema, com muitas receitas de fermentados de todo o mundo. E é, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a vida e a política. (...)

Fermentar alimentos “é um acto de resistência”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Mudar o mundo, uma fermentação de cada vez — é isto que propõe Sandor Katz no livro Os Segredos da Fermentação, que acaba de ser lançado em Portugal. É uma bíblia do tema, com muitas receitas de fermentados de todo o mundo. E é, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a vida e a política.
TEXTO: À primeira vista, Os Segredos da Fermentação parece ser um livro de receitas que promete ensinar-nos a fazer uma enorme quantidade de coisas que, apesar de muito diferentes umas das outras, têm em comum o facto de serem fermentadas — do pão da massa-mãe, a chutneys e conservas, vinho e cerveja, picles e kimchi, iogurte e queijo, miso e tempeh. Algumas destas coisas fazem parte das nossas vidas desde sempre — o que é que pode haver de mais básico para a nossa alimentação do que o pão, o queijo ou o vinho? —, outras tornaram-se moda no Ocidente nos últimos anos, como o kimchi, de origem coreana, ou o tempeh. Alguma coisa aconteceu que levou a uma redescoberta deste tipo de processos, que implicam uma outra relação com os alimentos. O norte-americano Sandor Ellix Katz, autor do livro, há muito que mergulhara neste universo e percebera a sua riqueza. Agora que o assunto começa a interessar a muito mais gente, ele leva anos de avanço — daí que Os Segredos da Fermentação, que acabam de ser editados em português pela Lua de Papel, se tenham transformado numa obra de referência (lançado pela primeira vez há 15 anos, tem agora uma nova versão muito mais completa) — não só pelo enorme trabalho de recolha de formas de fermentação de alimentos por todo o mundo, mas também porque, curiosamente, é muito mais do que um livro de receitas: é uma reflexão sobre o que representa, afinal, a fermentação nas nossas vidas. Ele próprio se confessa surpreendido com a procura que o seu trabalho tem tido. “Será possível que este interesse que muitos amigos consideraram arcaico, esquisito ou até nojento quando começou a desenvolver-se, se tenha tornado interessante para tanta gente?”, interroga-se no início do livro. Sandor Katz foi diagnosticado com VIH e em 1999-2000 começou a tomar medicamentos antirretrovirais, facto que é determinante para esta história. Não é por acaso que o livro começa com uma dedicatória a Jon Greenberg, “querido camarada da ACT UP [movimento activista que alerta para o fenómeno da sida e do VIH e pressiona os Governos para que apostem na investigação e na procura de curas]” que, escreve Sandor, foi quem o “apresentou pela primeira vez à ideia de coexistirmos de forma pacífica com os micróbios em vez de lhes declararmos guerra”. Daí que a ideia da vida e da morte e da relação entre as duas percorra o livro. Numa entrevista por email a Sandor Katz, perguntamos se também o vê assim e como é que chega a temas tão profundos, partindo de algo aparentemente simples. “A fermentação é um processo profundo”, responde-nos o autor. “Ela consome plantas mortas e matéria animal e recicla os nutrientes de formas que permitem a existência de mais animais e plantas. Gosto de ligar os lados mais práticos da fermentação às suas implicações mais vastas. ”Na altura em que soube que tinha VIH, Sandor vivia numa comunidade onde se dedicava à agricultura, à jardinagem, à cozinha e, conta no livro, até construiu uma casa “por menos de 10. 000 dólares, usando sobretudo materiais recuperados ou colhidos localmente”. Foi aí que começou a fazer o seu próprio queijo, com leite que ia buscar às cabras, e o seu pão, com massa-mãe. Gradualmente, a fermentação foi-se tornando mais importante na sua vida, até se transformar numa saudável obsessão, que o levou a ser convidado, em 1998, para dar um primeiro workshop sobre como fazer chucrute. A certa altura, escreve, estava transformado num “professor e conferencista internacional”, falando sobre fermentação numa altura em que esta se começa a transformar num tema em voga — “citado como última tendência alimentar, como se o pão, o queijo, a cerveja, o vinho, o chocolate, o café, o iogurte, o salame, o vinagre, as azeitonas, o chucrute e o kimchi não existissem já”. O que é que explica que nos tenhamos afastado de algo que durante toda a história da humanidade foi fundamental na alimentação?, perguntamos-lhe. “As pessoas só começaram a recear a fermentação no século XX, quando os primeiros triunfos da microbiologia, identificando patogénicos associados a doenças específicas, as levaram a associar bactérias com doenças”, responde ao P2 por email. “Agora, a ciência reconhece que vivemos num mundo de bactérias e a nossa maior protecção perante o reduzido leque de bactérias que nos podem deixar doentes são as comunidades saudáveis de bactérias que existem em nós e à nossa volta. ”“Infelizmente”, explica outra activista da área da alimentação, Sally Fallon, na introdução do livro, “os alimentos fermentados desapareceram praticamente da dieta ocidental, o que constitui uma grande perda para a nossa saúde e a nossa economia”. É aqui que o tema, que já tinha um lado filosófico, se torna também político. Perguntamos a Sandor se concorda que o livro tem uma mensagem política ou, colocado de outra forma, se há algo de político no acto de fermentar. “Sim. Não apenas a fermentação, mas todas as formas de produção de alimentos tornaram-se políticas no mundo em que vivemos, em que a comida é feita em massa a partir de sementes patenteadas em quintas-fábricas, para depois ser ultraprocessada e ultra-empacotada. ”Defende, portanto, que “cultivarmos os nossos alimentos e usarmos métodos tradicionais para os transformar e preservar tornaram-se actos de resistência”. Além disso, acrescenta, “a fermentação é uma metáfora poderosa para a mudança social — as ideias estão sempre a fermentar e, quando as condições estão reunidas, essas ideias que fermentaram lentamente podem espalhar-se e impor-se”. Quem quiser lançar-se na arte da fermentação tem neste livro toda a informação necessária, explicada da forma mais prática possível. Um exemplo, na secção dedicada ao iogurte: “É preciso uma cultura-mãe para fazer iogurte. Pode comprar culturas liofilizadas, comprar qualquer iogurte comercial que contenha culturas vivas ou procurar uma cultura tradicional. Se usar um iogurte comercial como cultura-mãe, assegure-se que diz ‘contém culturas vivas’ no rótulo para se assegurar que não foi pasteurizado depois da fermentação, matando as bactérias. ”Relativamente às culturas tradicionais de iogurte, Sandor apresenta uma lista de fontes no final do livro e conta até que há uma loja em Nova Iorque que “faz um iogurte delicioso usando a mesma cultura-mãe que os fundadores da loja trouxeram da Europa do Leste há mais de 100 anos”. No capítulo dedicado aos vinhos, começa com hidromel ao estilo etíope, passa por vinhos de fruta, de flores, champanhe de gengibre ou sopa de borras de vinho. Quem quiser arriscar na área das farinhas pode experimentar umas “panquecas de massa velha da fronteira do Alasca” ou o injera, o pão esponjoso etíope (bom para acompanhar o guisado de batata- doce e amendoim, cuja receita o autor também inclui no livro). Apesar do seu entusiasmo pelo tema, Sandor aconselha moderação quando lhe perguntamos se se pode comer alimentos fermentados em grandes quantidades. “O grande valor na nutrição é a diversidade. Não é por uma coisa ser boa que só se deve comer isso. Comam vegetais e fruta frescos. E comam diferentes tipos de fermentados com moderação. ”Uma das coisas que o têm fascinado nesta viagem de descoberta é a enorme diversidade de alimentos fermentados que existe por todo o mundo. “A transformação microbiana da nossa comida é inevitável, e pessoas inteligentes em todo o mundo desenvolveram métodos de guiar essa transformação para criar alimentos mais deliciosos, mais digeríveis, mais estáveis, em vez de os deixar decompor. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para quem possa ter dúvidas sobre os sabores que vai encontrar, deixa, nas suas respostas, um conselho: “As coisas mais deliciosas do mundo são fermentadas: chocolate, café, queijo, carnes curadas, azeitonas, picles, condimentos… Se um fermentado particular tiver um sabor ou textura que não sejam familiares, tente misturá-lo com algo neutro, que dilua um pouco o sabor. A maior parte dos fermentados pode ser forte ou mais suave. Talvez seja melhor começar por uma versão suave. ”Depois… é começar a revolução. No final do livro, Sandor fala da “reencarnação cultural” e cita Jacob Lippman, pioneiro da microbiologia, que descreve os microorganismos como “o elo de ligação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos” e explica que, “sem eles, os cadáveres acumular-se-iam e o mundo dos vivos seria substituído pelo reino dos mortos”. Por isso, no final, Sandor fala da sua própria morte e pede: “Coloquem-me apenas numa cova na terra, sem caixão, por favor, e deixem-me decompor depressa. ”E conclui: “O poder afirmador destes alimentos básicos encontra-se em profundo contraste com os alimentos sem vida e industrialmente processados que enchem as prateleiras dos supermercados. Inspire-se na acção de bactérias e leveduras e faça da sua própria vida um processo transformador. ” Porque, quer queiramos quer não, we are living in a bacterial world.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte guerra cultura comunidade social alimentos animal
Pôs a raiva numa pintura e agora mandou-a fora
João Viola e Dina Duarte dedicaram-se a ajudar os vizinhos depois dos incêndios. Fizeram reuniões em casa, organizaram voluntários, procuraram ajuda junto de empresários e vão inaugurar um memorial em Nodeirinho. Fizeram disso a sua vida no último ano. O PÚBLICO esteve com eles nos últimos meses e conta-lhe como esta comunidade recupera o dia-a-dia. (...)

Pôs a raiva numa pintura e agora mandou-a fora
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento -0.7
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: João Viola e Dina Duarte dedicaram-se a ajudar os vizinhos depois dos incêndios. Fizeram reuniões em casa, organizaram voluntários, procuraram ajuda junto de empresários e vão inaugurar um memorial em Nodeirinho. Fizeram disso a sua vida no último ano. O PÚBLICO esteve com eles nos últimos meses e conta-lhe como esta comunidade recupera o dia-a-dia.
TEXTO: A luz do fim da tarde torna tudo mais negro, mesmo que os fetos e os rebentos de eucaliptos tenham despontado ainda no Outono. Finalmente, já a Primavera cheirava, começaram a aparecer os primeiros melros na aldeia do Nodeirinho, em Pedrógão Grande. “Achávamos que tinham morrido os grilos todos. ” Mas não. Chegaram primeiro os corvos, que “dão um certo sinal”, depois uma águia, depois um melro, depois um grilo e outro, e outro. O som dos animais que o acompanhava e lhe dava ânimo e alento foi regressando aos poucos. Sentado na cadeira de madeira, que pediu a um amigo para esculpir a partir de uma árvore queimada, João Viola olha em volta – o que se ouve é um “silêncio ensurdecedor”, apenas entrecortado por um ou outro chilrear tímido. Está cansado. De manhã tinha pegado no seu bombo, percorrido uns quilómetros até chegar a um monte na serra da Lousã, ali à beira da vila vizinha de Castanheira de Pêra, para com o som seco daquele instrumento chamar as forças vivas da terra, em que acredita. O fogo matou a fauna agarrada à flora, perdeu-se biodiversidade; sobreviveram os resistentes e as aves migratórias que agora, neste início de Primavera, começam a espreitar. Muitas não ficam. A comida ainda lhes deve saber a cinza, e ainda não há coelhos nem cobras. Viola não desiste. Vai espalhando no carvalho centenário que lhe sobreviveu à porta, bem como na figueira e nas oliveiras que lhe restam, taças com cereais para chamar animais. No incêndio, de que Viola escapou na N236-1, “sobreviveu o ganso”. Qual mascote da resistência desta casa que, de janelas abertas naquele dia, viu o fogo poupá-la graças à teimosia do vento que levou as chamas para alguns metros mais à frente. No meio da tragédia, que chegou com nome de downburst, João e Dina tiveram “sorte”. Foram poupados nos seus bens. Por isso, pegaram nas forças que tinham para ajudar outros, a quem as forças faltaram. “Decidimos que devíamos ajudar todos aqueles que perderam as suas coisas, devíamos lutar por isso. Era a nossa missão”, conta João. Fizeram parte da Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande (AVIPG), que abandonaram no início do ano, e agora ajudam amigos e vizinhos por conta própria. “Estas árvores chegaram esta semana”, contava João em Março, quando preparava uma plantação com voluntários. Tem sido assim a vida por aquelas aldeias. De vez em quando chega um autocarro de voluntários de empresas que fazem acções de solidariedade. Mas falta muito. Falta tanto. Faltam muros por pintar, árvores por cortar, eucaliptos para arrancar pela raiz, árvores para plantar e crescer, casas por reconstruir – casas de segunda habitação e casebres que albergavam a lenha e os animais a que todos chamam “barracões”. Passa mais um mês. 17 de Maio de 2018. A paciência existe, mas fraqueja. A porta desta casa onde as flores, o incenso e as pinturas são reis está aberta, sem sequer precisar da chave na porta. À hora marcada entram a Fernanda, a Gina, o Paulo, a dona Cassilda, a Adelaide… São 18 ao todo em volta de uma mesa, onde os profiteroles contrastam com as palavras de desamparo. “Não vamos já pensar numa catástrofe”, diz Viola aos seus vizinhos do Nodeirinho, que lançam dúvidas para o debate. Falta ainda cortar as árvores em torno da aldeia. A lei fala em 50 metros de limpeza, mas querem 100, não vá o diabo voltar a tecê-las. Mas como? Ainda há donos por identificar e decisões por tomar. A Associação Raiz Permanente oferece braços aos fins-de-semana, porque são todos voluntários. Dois fins-de-semana depois lá estariam, oferecendo a força braçal, a tratar de um terreno para o memorial que será inaugurado neste domingo, 17 de Junho, em homenagem às vítimas da aldeia. No meio das dúvidas naquela reunião de habitantes do Nodeirinho na casa de João e Dina, há quem diga que vai cortar as oliveiras, se a lei assim o obriga. “Não!”, gritam de supetão. Nada disso. A legislação não manda cortar árvores de fruto. A campanha agressiva que foi lançada pelo Governo no início deste ano foi fazendo caminho, mas também por aqui foi sendo mal interpretada. Os problemas repetem-se. “Eu tinha um barracão que ardeu [e para o reconstruírem pediam] que o meu marido se inscrevesse na Segurança Social – um homem com 88 anos ia colectar-se?”, questiona, encolhendo os ombros uma das habitantes da aldeia. Ao lado tem um casal que, já na reforma, tinha a sua casinha por ali, mas a residência oficial era em Grândola e continuam sem ter telhado naquela aldeia. Questionam o porquê de não haver ajuda para segundas habitações. Não há. E não se prevê que haja. O assunto tem sido recorrente em conversas com o município e o presidente da câmara não tem respostas. “Esperamos que a Assembleia da República se pronuncie para ajudar a reconstrução das segundas habitações”, respondeu Valdemar Alves a um deputado municipal da oposição que o questionou na assembleia municipal, em Fevereiro, sobre o dinheiro que a câmara recebeu. A resposta, além do esperar pelo Parlamento, foi um talvez. Ou um deixar “escoar tudo aquilo que possa vir do Governo e de outras entidades”, porque, depois do “dar, dar, dar” do início, deixaram de chegar tantos donativos à câmara. Nessa altura, a câmara tinha 289 mil euros numa conta. “Este dinheiro está aqui. O executivo [da câmara] ainda não decidiu. Temos de ver em termos de lei, do regulamento do Revita, o que vamos fazer. Gostava muito que este dinheiro fosse para ajudar os barracões… mas todos”, defendeu o presidente da câmara. A verdade é que o tempo foi passando e há ainda muitas respostas por dar. Mais tarde, em Maio, soube-se que um dos bombeiros de Castanheira de Pêra que sobreviveram ao acidente na N-236-1, Rui Rosinha, recebia uma pensão de 267 euros. A notícia chega àquela casa para onde convergem muitos dos que têm perguntas ainda sem respostas. O telefone toca. Dina está a tentar arranjar forma de lhe construírem uma casa. Já tem quem a faça, mas não consegue desbloquear a cedência do terreno. Pouco depois sabe da situação de um ferido grave de Pedrógão e promete falar com um empresário para ver se consegue arranjar forma de se construir uma casa adaptada à nova situação de quem fica limitado na mobilidade e precisa de deslocações constantes para tratamentos. Já falou com o seu contacto no Ministério do Trabalho e Segurança Social, que procura responder caso a caso aos problemas fora da norma que vai recebendo. Os feridos graves são aqueles com quem Dina se preocupa mais agora, porque estavam ausentes da terra quando Pedrógão Grande estava debaixo dos holofotes e por isso, acredita, não receberam tanto apoio quanto deveriam. “São os que sofreram mais. Sofreram na pele uma dor… e sofreram mais pela ausência, não estavam cá”, lamenta. Aos poucos esta comunidade vai renascendo, não sem problemas, dificuldades, queixas, cobiças ou injustiças. Há conversas de quem se queixe de ter casas construídas à pressa em comparação com os “palácios” que foram edificados pela Gulbenkian, que, quase pelo mesmo preço por metro quadrado, fez casas adaptadas aos moradores, diferentes das que ficaram queimadas. Mas naquela noite de Primavera, já com as estações do ano volvidas depois da tragédia, as maiores dúvidas estavam viradas para o futuro. O projecto Aldeias Seguras, anunciado pelo Governo, começa a dar os primeiros passos, mas ninguém sabe muito bem como vai ser por ali. “O problema é que estamos em Maio. O que fazer?”, questiona Adelaide, uma das habitantes da aldeia que dá aulas de formação para estrangeiros na AVIPG, uma das actividades que a associação desenvolveu ao longo do ano, assim como formações em agricultura biológica. “Agora vimos um incêndio e se calhar não vamos reagir como reagíamos antigamente. Antes, ardia ali na ponta do cabeço e vinham os bombeiros ou esperávamos que viessem. Agora, estamos traumatizados”, diz João Viola. Os vizinhos concordam. Querem saber se, afinal, há novidades do programa lançado pelo Governo, inspirado num que foi desenhado pela AVIPG. “Temos de ter um sítio seguro e temos de ter tempo de salvar os nossos animais”, lança um dos habitantes. A interrupção soa de chofre: “Salvar as pessoas já é bom. ” Naquela terra, salvarem-se as pessoas tinha sido muito bom. E é isso que lhes continua no pensamento – o receio de um dia se voltarem a deparar com o mesmo cenário. Durante o último ano, João saiu de casa todos os dias e via aquele manto negro. Chegava a Pedrógão Grande e tinha de tratar do verde do jardim municipal de que cuida. O saltitar entre o desalento e a esperança pelas cores dava-lhe voltas à cabeça. “Chegou uma altura em que eu não conseguia ver o verde. Aquilo que era vida estava a perturbar-me um bocado”, conta. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. João, que perdeu amigos e vizinhos, mas escapou fisicamente ileso, assume que tem tido dificuldades em lidar com a situação. Cultor de várias artes, homem de vários talentos, refugia-se nas pinturas que quer fazer de todas as pessoas da aldeia, nas sessões de xamanismo ou nos tratamentos com taças tibetanas, mas os sentimentos vão por lá ficando. Foi ele quem pintou a placa ardida com a indicação do nome da aldeia e quem espalhou olhos “vigilantes” pintados um pouco por toda a parte. Mas isso não foi suficiente para exprimir a revolta que tinha dentro de si. “A dada altura a doutora Ana disse-me: ‘Você é artista, ponha a sua raiva numa pintura. ’ E eu pintei a raiva. ” A pintura em tons de laranja, verde, preto foi feita olhando-se ao espelho: “A minha feição de raiva é o que lá está. ” Era o que lá estava, na verdade, quando Viola falou em Março. “Um dia a Dina disse-me: ‘Tira-me isso daqui que me está a deprimir. ’” E a raiva do João acabou. Foi deitada fora, tapada, mudada, nas camadas de tinta verde que foi pintando por cima, o mesmo que espera ver acontecer agora àquela pequena aldeia de Nodeirinho, que perdeu 11 dos seus. Este domingo terá um memorial erguido à beira da fonte de água onde se salvaram quase 20 pessoas naquela noite. Na base de duas pedras altas que simbolizam um Deus protector e os protegidos estará uma frase do livro do Apocalipse, que andou na cabeça de João no último ano. “Eis que faço novas todas as coisas. ” Desde então, as gentes de Pedrógão têm feito todos os dias novas todas as coisas.
REFERÊNCIAS:
“É como se fosse uma cicatriz para o resto da vida”
Dois técnicos de emergência hospitalar, uma médica, uma psicóloga, um enfermeiro. Estavam ou foram chamados ao serviço pelo INEM para acorrerem a Pedrógão Grande no dia 17 de Junho. Um ano depois contam ao PÚBLICO o que viveram, o que sentiram e o que fizeram para ajudar quem precisava. (...)

“É como se fosse uma cicatriz para o resto da vida”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Dois técnicos de emergência hospitalar, uma médica, uma psicóloga, um enfermeiro. Estavam ou foram chamados ao serviço pelo INEM para acorrerem a Pedrógão Grande no dia 17 de Junho. Um ano depois contam ao PÚBLICO o que viveram, o que sentiram e o que fizeram para ajudar quem precisava.
TEXTO: Saíram de Coimbra com a missão de ajudar, mas o fogo foi inimigo. Travou-lhes o caminho, obrigou-os a esperar, a procurar alternativas. Enfrentaram o medo, a frustração, a impotência de querer e não conseguir. Pedrógão Grande, 17 de Junho de 2017: 66 mortos, 253 feridos, 863 intervenções psicológicas, cerca de 500 casas e 50 empresas destruídas. Carlos Diogo, Sara Rosado, Liliana Temudo, Nuno Marques e Paula Neto vestem azul e branco, as cores do INEM. Pedrógão faz parte deles, é mais uma aprendizagem de quem lida com a dor dos outros todos os dias. Tornou-os mais resilientes. “O ideal passou a ser o possível e o que existia foi o que foi feito”, diz Sara Rosado, psicóloga do INEM. “É isso que nos dá tranquilidade, saber que, no meio daquela destruição que não conseguíamos evitar, fizemos o possível. ”Carlos é técnico de emergência pré-hospitalar (TEPH), com funções de coordenação. Não estava a trabalhar, foi chamado a meio da tarde para um incêndio de grandes proporções na zona de Pedrógão Grande. Ia para o posto de comando montado em Escalos Fundeiros. Ligou ao colega Pedro Santos e foram os primeiros a ir para o local. Deixaram o Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) de Coimbra com a indicação de uma bombeira ferida. Pelo caminho ouviram a comunicação de mais três feridos, vítimas de um acidente de carro apanhadas pelo fogo. O trajecto que em marcha de emergência leva 25 minutos precisou de 50 ou mais. “Quando chegámos ao primeiro cruzamento de Castanheira de Pêra, na Nacional 236-1, já não nos deixaram cortar. ” Seguiram pelo IC8, mas ao nó da Graça, antes de Pedrógão, já a polícia cortara a estrada. Eles podiam passar, por serem carro de emergência. “As chamas estavam muito altas, decidimos sair e voltamos em direcção a Castanheira por uma estrada paralela à 236. ”Carlos não tem a certeza, mas pensa que algumas das pessoas que morreram na estrada poderão ser as mesmas que os ajudaram a encontrar o caminho. Lembra-se da cinza fina a cair, das golpadas de calor. “Tenho a perfeita noção que escapámos por um triz”, que atrás deles tudo se fechou numa cortina de fogo. Escalos Fundeiros está cercada e Carlos e Pedro seguem para a zona industrial de Pedrógão, para onde foi o posto de comando. Não se recorda de mais horas, a não ser que chegou perto das 19h00. Pedro fica no posto de comando, Carlos começa a articular com todas as entidades que estão no terreno. Pede reforços: “Ambulâncias, médicos e montar um posto médico que de certeza ia ser preciso. ” O posto, que ficou no Centro de Saúde de Pedrógão, recebeu muitos feridos durante a noite e madrugada. Da tarde se fez noite, da noite se fez madrugada, da madrugada se fez dia. Não há uma linha do tempo. Lembra-se do menino de quatro anos, queimado, que chega transportado pelo carro conduzido pelo comandante distrital da Protecção Civil da zona Centro. “A criança vem para os meus braços, basicamente… Tínhamos lá a equipa do helicóptero que tinha sido chamada para os feridos do acidente. Não conseguiu ir para Figueiró dos Vinhos, contornou o incêndio e aterrou junto a nós. ”Estabilizaram e entubaram o menino, que foi transportado para o hospital. Está vivo. Foi a primeira vez que Carlos prestou assistência a uma criança queimada. É esta a primeira imagem que tem quando recorda Pedrógão. A voz treme. Perguntou por ele nos dias seguintes, como perguntou pelo bombeiro Rui Rosinha, de quem é amigo. Sabia que era grave. Chegam informações de “aldeias cercadas, feridos, casas que arderam com gente lá dentro”. O ambiente pesa no posto de comando perante um “sentimento de impotência de não chegarmos a essas pessoas”. Os meios estão a caminho, mas o fogo complica a chegada. Dizem que vão demorar mais um pouco “porque a estrada está cortada e vão ter de dar a volta por outro lado”. “Vamos com uma missão, só mesmo se não der é que não avançamos mais. É um sentimento de derrota. ” Quem vem de Castelo Branco e Abrantes, chega primeiro. Os outros chegarão à medida que o fogo deixar. Liliana Temudo esteve lá sem estar. No CODU sente a mesma angústia. “É um dia impossível de esquecer. Sempre que falo no assunto, o meu coração bate mais rápido… É como se fosse uma cicatriz para o resto da vida. ” Destaca a solidariedade entre colegas num turno “em que não tínhamos tempo para chorar, desistir, para pensar”. “Queríamos fazer tudo para a ajuda chegar, mas não dependia de nós. Houve falhas de comunicação, dificuldade nos acessos para chegar às vítimas… Foi uma luta desigual. ”Os colegas estavam a receber as chamadas, Liliana fazia o accionamento de meios. Os encaminhamentos para o CODU, via 112 (central da PSP), eram muitos, nem todos a falar de feridos. Do lado de lá da linha havia gritos, choro, relatos de um vento que as fazia levantar os pés do chão. Alguém que dizia que tinha a casa rodeada de fogo e não conseguia sair ou que pedia ajuda porque tinha o pé a arder e não sabia o que fazer. Do CODU explicavam que estavam a tentar enviar ajuda, ao mesmo tempo que ensinavam o que podiam fazer. Toalhas molhadas junto à porta para travar o fumo, arrefecer a queimadura com água do autoclismo, a única que sobrara. “Era o desespero de não saberem o que fazer, de se sentirem abandonadas. E havia o desespero que quem tinha a noção do todo, que as pessoas estavam ali e não havia como fazer chegar os meios”, diz Sara Rosado. “Sempre que fazíamos um accionamento para o local, lembrávamos: condições de segurança primeiro. Tivemos situações em que os meios nos diziam: ‘Estamos a ouvir pessoas a pedir ajuda, está aqui o fogo, mas vamos tentar passar’”. Mas não era possível. A psicóloga Sara Rosado deixou Coimbra, ainda era dia, na unidade móvel de intervenção psicológica de emergência em direcção a Castanheira de Pêra. O IC8 está cortado e o caminho para Pedrógão também já não é viável. Só depois do fogo passar a estrada consegue seguir para Pedrógão. Recorda-se da terra preta, do metal escorrido de uma jante derretida de um carro. Foi com a missão de “criar um espaço que servisse de abrigo, onde as pessoas sentissem segurança e pudessem satisfazer as necessidades básicas como ter informações dos familiares e em que ponto estava o fogo”, um espaço “onde pudessem ventilar as suas emoções”. Ouviu relatos de quem perdeu família ao seu lado, a casa, os animais, que não sabia o que ia encontrar na manhã seguinte, quando fosse possível regressar. E a manhã seguinte foi mais negra que a noite e o regresso às aldeias tão difícil como a saída. Foi preciso reforçar as equipas com psicólogos da Cruz Vermelha, PSP, Polícia Marítima, Exército, Segurança Social e de algumas autarquias. Era preciso trabalhar a integração da perda, ajudar a exteriorizar a dor. Sara foca-se na reconstrução, na resistência de uma comunidade que foi destruída. Recorda um movimento de superação que começou durante aqueles dias, de quem era vítima mas estava a ajudar outros que precisavam. Lembra-se de uma mulher que levou pães e três litros de leite. “Não tinha mais nada em casa, mas trouxe isto para vocês. . . ”, disse-lhes. Também Paula Neto diz que quem lá esteve desde o primeiro momento sentiu mais o espírito de solidariedade do que a crítica. A médica e o enfermeiro Nuno Marques estavam na viatura médica de emergência (VMER). Foram activados como meio de excepção, reforço suplementar accionado em ocorrências de grande escala. As gentes da terra agradeceram-lhes por estarem ali, preocupados com a noite e madrugada que também eles tinham tido. Contaram-lhes que todos os anos há fogo na zona. Mas nunca um como aquele, que varreu tudo e entrou dentro de casas. Falam de um barulho como se a terra se estivesse a abrir. Estavam em Castanheira de Pêra. A partir do momento em que lá chegaram, conseguiram assistir a todas as ocorrências para que foram chamados. Duas dezenas ou mais, fora o apoio no centro de saúde. “Era um pouco de tudo: queimados, trauma, descompensações agudas por causa do fumo, cansaço, stress”, conta Paula. Difícil foi lá chegar. Muitos ajustes no caminho, visibilidade quase nula. Subiram e desceram a serra da Lousã. “Sentimo-nos angustiados por não chegar lá. Não dependia de nós”, refere Nuno, que ia a conduzir. Havia muitos carros na serra e foram surpreendidos por um quase em contramão. Algures pelo tempo cruzaram-se com outra equipa de Coimbra. Havia vítimas a serem transportadas. Tiveram medo. “Estávamos sempre a ver onde estava a linha de fogo. Só a víamos quase em cima. À saída de uma curva, demos com o fogo e tivemos de fazer inversão de marcha. Onde é que ele está? Não tínhamos controlo da situação”, conta Nuno. As placas estavam todas queimadas, mas o que marca é o escuro e o silêncio à medida que passam pelas aldeias. “Lembro-me de só ver o branco de uma igreja e o fogo. Não se ouvia nada, nenhum cão a ladrar, um galo a cantar, um pássaro. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Viram a morte. Passaram por ela “a caminho de outra situação em que se espera fazer alguma coisa”. “Estamos formatados para socorrer as pessoas. Não ficamos agarrados ao que vamos vendo, mas ao que podemos fazer”, afirma Paula. O dia a seguir amanhece negro e tarde. Todos eles regressam a casa na madrugada de dia 19. Receberam apoio, encontraram conforto na família e nos amigos. Liliana diz que ainda está a fazer a sua caminhada. “Dois dias depois do dia 17 houve alguém que me chamou ao gabinete. Foi a grande Sara [Rosado]. Não vou esquecer os gritos, os pedidos de ajuda, o estar fechada numa sala a tentar encontrar estratégias e saber que estradas estavam a circular. Não vou esquecer o olhar da pessoa que estava ao meu lado. A angústia, o medo, a impotência. Apoiámo-nos muito no CODU. Naquela madrugada fui para casa cheirar os meus filhos, para chorar. Não fui capaz”, conta. Mas naquela sala, dois dias depois, com Sara e a outra colega, choraram as três. Estão todos a trabalhar neste domingo, dia 17, à excepção de Sara, que sai de serviço às 8h00 da manhã e de Carlos, que colocou uma folga para não trabalhar domingo. Vai passar em Pedrógão e, se tiver oportunidade, estará com o bombeiro Rui Rosinha. Durante o último ano passou várias vezes no IC8, a estrada principal de onde sai o desvio para Pedrógão Grande. Nunca mais fez esse desvio. Este domingo será a primeira vez.
REFERÊNCIAS: