Um novo Brasil musical digerido a três
Wado, Mahmundi, Tatá Aeroplano formam um Bloco que actuará durante três semanas em Lisboa, Ílhavo e Porto. É “um Brasil novinho, suave e sem estereótipos”, como lhe chama Wado, a mostrar-se em Portugal. (...)

Um novo Brasil musical digerido a três
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 7 | Sentimento 0.068
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Wado, Mahmundi, Tatá Aeroplano formam um Bloco que actuará durante três semanas em Lisboa, Ílhavo e Porto. É “um Brasil novinho, suave e sem estereótipos”, como lhe chama Wado, a mostrar-se em Portugal.
TEXTO: No Carnaval brasileiro, "bloco" é um termo que serve para designar um conjunto de pessoas que desfila num grupo mais ou menos organizado, frequentemente identificado por um traje comum. Parte, portanto, de um sentido colectivo e comunitário que a produtora Arruada pede de empréstimo para apresentar um ciclo com várias datas por Lisboa (Musicbox), Ílhavo (Centro Cultural) e Porto (Passos Manuel) dedicado a três figuras em afirmação da nova música popular brasileira: Wado, Mahmundi e Tatá Aeroplano. Wado, ligeiramente menos desconhecido do público português, volta esta quarta-feira para o ambiente lisboeta onde gravou parte do seu penúltimo álbum, Vazio Tropical, com produção de Marcelo Camelo e Fred Ferreira (Banda do Mar, 5/30), entusiasmado por sentir que a sua participação em Bloco reforça a intuição de que está “no caminho certo”. “Não tem como não se encantar em constatar que represento o Brasil fora do meu país”, diz ao PÚBLICO. “E esse Bloco representa um Brasil novinho, suave e sem estereótipos, é Brasil sem ignorar o que acontece agora no mundo, são sambas e ijexás [ritmo ioruba] tortos defendidos por nossa geração. ”E logo se apresta a traçar um retrato rápido dos três participantes, falando de Mahmundi como “uma menina muito nova que tem ganhado muitos prémios no Brasil e desfila uma música sintética e misteriosa”, enquanto aos seus olhos Tatá Aeroplano “é filho da tropicália paulista de Rogério Duprat, irreverente e de escolhas estéticas muito bonitas”. Wado não enjeita mesmo olhar-se ao espelho: “Sou um maluco que já fiz de tudo pela minha paixão pela música brasileira, do funk carioca ao samba. ” Em comum, arrisca, os três têm “um digerir Brasil e um regurgitar um outro Brasil”. No seu último álbum, 1977, Wado regurgita um Brasil misturado com um leque de referências como Jack White, Fleet Foxes, Phoenix, Beck, Vampire Weekend e Radiohead, confessa. “É um disco expansivo e estou louco para mostrar ele para vocês”, acrescenta, lembrando que, apesar dessa matriz anglo-saxónica, 1977 documenta também o seu encontro com os portugueses Samuel Úria e O Martim, numa “ponte Portugal-Brasil-Portugal que tem sido cada vez mais usada". "E esse diálogo ainda nos vai dar muito aqui e aí. ” Wado está quarta-feira em Lisboa, quinta-feira em Ílhavo e sexta-feira no Porto. Um fraquinho por Rita LeeTambém Mahmundi, nome de palco de Marcela Vale, confessa ter uma dieta musical além-fronteiras. Habitualmente tida como seguidora da pop electrónica dos anos 80 – “Falam disso aqui no Brasil, porque fica mais fácil de compreensão”, esclarece –, o seu norte tem sido o movimento chillwave (Animal Collective, MGMT, Neon Indian). “O meu foco foi fazer músicas sensoriais”, resume em resposta por email, “mas sempre amei os anos 80, então ainda fico feliz com a comparação. ”Mahmundi não esconde igualmente a sua devoção por mulheres “fortes e ousadas como Joni Mitchell, Feist e Karen Carpenter”, embora tenha um fraquinho muito particular pela conterrânea Rita Lee, que considera “sempre à frente do seu tempo”. Da cantora brasileira, aliás, costuma cantar em palco uma versão de Corre corre que talvez interprete nas três datas portuguesas (8, 9 e 10 de Abril, Lisboa, Ílhavo e Porto, respectivamente). Amiga de adolescência do cantor Silva, Marcela foi fazendo a sua formação musical enquanto trabalhava no Circo Voador, uma das mais importantes salas de espectáculos do Rio de Janeiro. Essa experiência foi fundamental para “organizar os milhões de pensamentos” dispersos que tinha sobre a música que queria fazer. “Foram seis anos de muito trabalho, muitas histórias e música, o que só veio reafirmar a minha paixão por tudo isso e fortalecer a minha pesquisa”, confessa. O trabalho funcionou então como uma expansão do vocabulário musical de uma cantora e instrumentista que cresceu graças à Igreja, onde “podia usar e tocar instrumentos, já que não tinha dinheiro para comprar”. Canções confessionaisAgora, a música de Mahmundi é um efervescente caldeirão de referências, presente de uma outra maneira na sonoridade dos Cérebro Eletrônico. A banda de rock tropicalista formada em 2002 por Tatá Aeroplano, com nome de baptismo que não esconde a filiação assumida em Gilberto Gil – “Uma referência musical intensa para mim”, admite Tatá ao PÚBLICO –, desde cedo reclamou uma misturada de fontes de inspiração como cinema, arte dadaísta e literatura fantástica, pontos de partida assumidos para o álbum Vamos Pro Quarto, registado durante um fim-de-semana chuvoso no interior de um chalé.
REFERÊNCIAS:
O flamenco pessoal de Rosalía é cru, primário e magnífico
Celebrada como revolucionária do flamenco, é, aos 23 anos, uma das mais fulgurantes revelações da música espanhola dos últimos tempos. Lós Angeles, soberbo disco de estreia gravado com Raül Refree, trá-la a Portugal pela primeira vez, ao Theatro Circo, em Braga. (...)

O flamenco pessoal de Rosalía é cru, primário e magnífico
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 7 | Sentimento 0.292
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Celebrada como revolucionária do flamenco, é, aos 23 anos, uma das mais fulgurantes revelações da música espanhola dos últimos tempos. Lós Angeles, soberbo disco de estreia gravado com Raül Refree, trá-la a Portugal pela primeira vez, ao Theatro Circo, em Braga.
TEXTO: Foi num concerto de homenagem à cantaora e baillaora Maruja Garrido, organizado pelo jornalista musical Luis Troquel no barcelonês Mercat de les Flors, que Raül Fernández Miró viu e ouviu pela primeira vez Rosalía. Mal chegada aos 20 anos, há algum tempo que Rosalía Vila se vinha tornando um fenómeno nos tablaos (locais destinados aos espectáculos de flamenco) catalães, cantando com um fogo na voz e no corpo que começavam a atrair rapidamente atenções e a transpirar para fora do pequeno circuito da região. Raül Miró, cujo nome artístico traz atrelada a alcunha “Refree”, um dos mais reputados produtores da cena alternativa espanhola, já se havia envolvido com o flamenco de Rocío Márquez, além das mais notadas colaborações com Lee Ranaldo, a rapper La Mala Rodríguez e, em especial, com Sílvia Pérez Cruz. Mas logo percebeu que havia algo de muito singular naquela entrega vulcânica de Rosalía. Troquel, investido de um espírito casamenteiro, apresentou-os passadas algumas semanas e, talvez por receio de estragarem tudo ou por mera cautela e sedução mútua, os dois foram criando uma cumplicidade musical através de várias sessões de audição, em que partilhavam gostos e descobertas, mas não se atreviam a colocar a voz e a guitarra pelo meio. Pode dizer-se que, lentamente, foram criando um clima. Sem pressas, para não tornar demasiado precoce e vulgar a vontade crescente de arriscarem um tema. Embora o interesse pelo flamenco e pela música negra fosse então aquilo que mais os aproximava e apaixonava em cada uma das sessões, ouvindo e discutindo Kendrick Lamar, Kanye West, Niña de los Peines ou Lole y Manuel com o mesmo entusiasmo, quando finalmente se lançaram a tocar uma canção juntos escolheram I see a darkenss, de Bonnie “Prince” Billy, possivelmente porque estava longe o suficiente daquilo que andavam a cozinhar para que não houvesse qualquer indício de compromisso envolvido. “Recordo-me de que gostávamos ambos da música e eu acabei por lhe propor que a tocássemos”, conta Rosalía ao Ípsilon no Pabellón Mies van der Rohe, em Barcelona, semana e meia antes de se estrear em palcos portugueses esta sexta-feira, no Theatro Circo, em Braga. “Ele foi para o piano, improvisou um pouco os acordes, começámos a tocar e foi tudo muito fluido. Quando terminámos, ficámos os dois calados durante um bocado. E creio que em seguida fui para casa. ”Autoria: Rosália Universal MusicTornou-se mais ou menos evidente a partir desse momento que os dois teriam de construir alguma coisa sólida em conjunto. O silêncio era sinal de que a música preenchia tudo, estava para além do que pudesse ser discutido e era de tal forma assertiva que dispensava quaisquer argumentos adicionais. “O Raül é como uma liberdade, sempre, uma liberdade a que também estou ligada, porque também sinto a música assim”, explica a cantora. E Refree é uma liberdade porque não é um típico guitarrista de acompanhamento do cante jondo, acerca-se do flamenco a partir de um lugar assumidamente impuro, carregado de um travo sul-americano e de uma rudeza rockeira, revelando-se a escolha perfeita para uma estreia de Rosalía que poderia muito bem fechá-la na tradição flamenca mas que amplia muitíssimo o seu raio de acção. Tanto assim que a imprensa espanhola, rendida ao seu aparecimento fulgurante este ano com a edição de Los Ángeles, a etiquetou como uma “revolucionária do flamenco”. Não é um epíteto a que a cantora dê especial importância. Prefere até afirmar a sua independência total em relação às opiniões – “e há muitas, que tanto podem dizer isso como o seu contrário”, desvaloriza com uma segurança pouco sintonizada com os seus 23 anos –, atribuindo aquilo que há de distinto no seu canto à sua queda de pára-quedas no meio. “Não sou uma cantaora no sentido clássico da palavra, porque não venho de uma família de dinastia flamenca, nem sequer se ouvia flamenco em minha casa e, por consequência, aquilo que faço é inevitavelmente diferente. E permito-me também fazer colaborações que uma cantaora clássica nunca se permitiria, quero ter a liberdade de poder fazer tudo quanto me faça crescer como música. ”Essa liberdade e essa disponibilidade de pisar terrenos dificilmente calcorreados por uma cantaora tradicional encontram-se tanto na sua colaboração com o rapper C. Tangana como no tema final de Los Ángeles, a versão de I see a darkness que abriu as comportas para o jorrar do “mano a mano” que definiu o seu trabalho com Raül, e que encontramos em disco numa interpretação devastadoramente bela, de deixar o corpo suspenso em cada arrepiante sílaba. O flamenco era algo longínquo na vida de Rosalía quando, aos 13 anos, ao sair das aulas e se juntar a alguns amigos para uma tarde passada num parque da cidade, foi surpreendida por esse modo hoje tão popular de ouvir música que consiste em escancarar as portas de um automóvel e deixar que a música se faça escutar num volume considerável. Acontece que alguns dos seus amigos, naturalmente mais velhos, abasteciam os estudantes de flamenco nestas deambulações pós-escolares. Foi então que Rosalía teve a sua epifania pessoal. “Quando ouvi Camarón, ouvi a voz mais bela e mais verdadeira que alguma vez tinha escutado na minha vida”, recorda. “Pareceu-me que essa música – que descobri graças a Camarón – era algo que nunca tinha ouvido, mas que me era muito familiar. ”Não é exagero dizer que a vida de Rosalía tomou um rumo diferente a partir desse dia. Nesse mesmo momento, em que a voz de Camarón a invadia, decidiu que aquela seria a sua linguagem e mergulhou de imediato numa cuidada e obsessiva investigação de todas as gravações e todos os artistas de flamenco a que conseguiu deitar a mão. O passo seguinte recorda-o como a notificação da família que queria aprender e estudar por sua conta, “começar a ir a aulas com maestros flamencos, estudar todo o tipo de música, técnica lírica e muito flamenco”, uma vez que identifica no género as fundações para a música queria fazer. Depois foi uma questão de ahondar, de aprofundar os estudos, licenciar-se em interpretação de flamenco para “estudar todos os cantes em detalhe”. Los Ángeles, apesar de conter uma riqueza e abrangência musicais muito mais vastas do que o flamenco, nasce em consequência directa desse estudo – que, na verdade, Rosalía escavou ainda mais fundo na preparação do disco. E isto porque, logo no início do percurso com Raül Refree, ficou acordado entre os dois que o álbum deveria levantar-se em torno de uma ideia central. Essa ideia acabaria por tomar a imagem e as palavras da morte, tema que prolifera livremente pelas letras do flamenco e que se tornou o mote para a exaustiva investigação posterior que a cantora levou a cabo, durante dois anos, “escutando muito flamenco, muitos discos, investigando, falando com amigos flamencólogos, pedindo-lhes livros, procurando livros descatalogados, visitando bibliotecas especializadas, viajando para sul, procurando cassetes em segunda mão, na internet”. Foi desse reportório mais ou menos remoto que veio o alinhamento de Los Ángeles, trabalhado com toda a minúcia e com muito pouca pressa, cujo título tanto alude a um imaginário espiritual de anjos que aguardam as almas para as acolher no céu, quanto aponta para a cidade californiana, essa terra que “pariu artistas como Kendrick Lamar e The Doors”, uma forma subtil de Rosalía também se confesar impura. Porque se há temas mais tangentes ao flamenco como Día 14 de Abril ou Por mi puerta no lo pasen, Catalina mistura coordenadas e aproxima-a da Lhasa de La Llorona; Nos quedamos solitos dá-se ares de ranchera e até de pop; Te venero sugere um fundo medieval ao mesmo tempo que se aproxima do mundo musical de Sílvia Pérez Cruz – Raül gravou Granada em duo com Pérez Cruz, não o esqueçamos; e Si tú supieras compañero quase desliza na sua delicadeza. E tão depressa a voz cresce e soa a um vendaval, quanto raia o silêncio e é toda candura. Certo é que Rosalía não se nega a ironia paradoxal de cantar a morte num disco que, para todos os efeitos, anuncia a sua chegada e o seu nascimento para um público vasto – por muito que há vários anos cante nos tablaos e a riqueza do seu percurso inclua, por exemplo, uma participação como cantaora no espectáculo A Journey Beyond Time da companhia multidisciplinar catalã La Fura dels Baus, apresentado em Singapura. “Se nos fixarmos no dia-a-dia”, contrapõe, “a morte é algo que está presente a toda a hora e à medida que o tempo avança todos os momentos vão morrendo, estamos sempre a deixar coisas para trás, estamos sempre a construir e a destruir, a morrer e a viver. E, se nos damos conta disso, podemos sentir a morte muito próxima e deixa de ser um tabu. ”Los Ángeles parte de muito material tradicional e de música muito antiga no histórico do flamenco, uma forma que Rosalía encontrou para contrariar a dificuldade de se descobrir nas lojas espanholas qualquer registo que mantenha alguma relação com o passado do género sem deixar de se reclamar uma criação do presente, e para reivindicar a perfeita actualidade destes textos e de um flamenco que é, muitas vezes, olhado como música de museu e presa das suas próprias regras. Para Rosalía, a sua abordagem pessoal – reforçada pelo jeito pouco ortodoxo de Raül abordar cada tema – significa também um combate aos clichés e um compromisso com a sua aposta em “avançar para novos lugares – nem melhores, nem piores, apenas diferentes”. A prova de que a tradição e o experimentalismo – que é para ela sobretudo “uma postura” – podem conviver sem acidentes dentro de um disco é a construção de Los Ángeles a dois. O som cru e quase selvagem de voz e guitarra é uma herança que ela quis desenterrar das origens do flamenco, quando o género “ainda não estava codificado de todo e era de impulsos, muito visceral”. “Queria reivindicar essa forma primária, imperfeita e brutal de tocar. Hoje, com todas as possibilidades de estúdio, por vezes o flamenco e outras músicas tendem apenas para o bonito. As primeiras gravações de flamenco têm muitas imperfeições, apenas com voz e guitarra porque toda a emoção já está contida na melodia vocal e no ritmo e na harmonia do instrumento. Não faz falta mais nada, não faz falta qualquer artifício. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ouvir Rosalía é ter a certeza de que não há mesmo nada mais que aqui faça falta. Olhamos à volta, para o espaço escolhido pela cantora para a entrevista, por se sentir atraída pelo minimalismo e a sensação de recolhimento da arquitectura de Mies van der Rohe, e as peças encaixam-se sem esforço. Cada um dos elementos destaca-se sem esforço. Tal como a voz da catalã clama por um cenário despido para derramar todo o seu encantamento. O Ípsilon viajou a convite do Theatro Circo e agradece ao Pabellón Mies van der Rohe a cedência do espaço para a sessão fotográfica.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte género estudo corpo circo negra cantora
O que havia antes do Big Bang era uma grande fábrica de pirotecnia
O humor pode ajudar a lidar com as dificuldades da investigação científica. Talvez seja por isso que alguns cientistas escrevem artigos cómicos, ao estilo das publicações científicas. Ou então, é sem querer. Uma boa gargalhada não dá um Nobel, mas pode valer um Ig Nobel. (...)

O que havia antes do Big Bang era uma grande fábrica de pirotecnia
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 7 | Sentimento 0.107
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: O humor pode ajudar a lidar com as dificuldades da investigação científica. Talvez seja por isso que alguns cientistas escrevem artigos cómicos, ao estilo das publicações científicas. Ou então, é sem querer. Uma boa gargalhada não dá um Nobel, mas pode valer um Ig Nobel.
TEXTO: “Há pelo menos tantas pessoas na ciência com um sentido de humor bem desenvolvido como em qualquer outra disciplina. ” Quem o escreveu foi o biólogo Ralph Arnold Lewin, que ficou conhecido por ser “o pai da genética das algas verdes”, o que pode ter alguma piada, se o imaginarmos a passear todo o ADN de uma alga verde num carrinho de bebé. Talvez por estar farto de tentar mudar as fraldas a algas, em 1983, já depois dos 60 anos, publicou um artigo com o título Humor na literatura científica, numa revista científica muito séria, chamada BioScience, que ainda hoje publica artigos muito sérios. Lewin conta que a maior parte dos artigos humorísticos que encontrou na literatura científica se enquadram, mais ou menos, no campo da biologia. E propõe uma explicação para que haja tantos biólogos divertidos: “Talvez seja porque a natureza tenha produzido tantas criaturas engraçadas — o rinoceronte, o flamingo, o louva-a-deus (…), já para não falar de alguns protozoários absolutamente ridículos. ”Artigos cómicos nas revistas científicas não são uma coisa assim tão comum como as piadas publicadas no Diário da República. Mas Lewin encontrou várias descrições humorísticas de espécies imaginárias, tal como uma monografia de 34 páginas acerca da ave Eoornis pterovelox gobiensis, publicada em 1926, por um autor que usou o pseudónimo Augustus Fotheringham. A ecologia, a fisiologia, a anatomia e a evolução da ave são todas descritas e ilustradas com detalhes meticulosos, embora falsos. A publicação surgiu depois de uma conferência na Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, onde um suposto cientista com uma barba falsa a apresentou pela primeira vez. Um outro exemplo aconteceu em 1962, quando foi publicado um livro inteiro sobre uma suposta nova ordem de mamíferos, os Rhinogradentia, animais com estranhas particularidades nasais, alguns com o nariz articulado (imagine que consegue dobrar e mover o seu nariz como se fosse um braço: o jeito que não daria, por exemplo, quando os óculos estão a escorregar; ou para travar rapidamente uma inopinada fuga de muco nasal). O autor, que usou o nome fictício Harald Stimpke, contou que encontrou estes estranhos animais no arquipélago das Hi-lay. Mas não se apresse para o Google Maps. De acordo com Stimpke, todo o arquipélago foi inundado por uma onda gigante, tendo-se afundado pouco depois de ter completado a sua magistral descrição dos Rhinogradentia. Estes falsos animais acabaram por ser incluídos num guia de 1979 sobre mamíferos, não sendo claro se o autor desse manual para alunos universitários percebeu a piada. Mas o absurdo pode atingir um patamar ainda maior. Foi o que aconteceu no artigo publicado na edição de 1 de Abril de 1972, na revista científica Veterinary Record, acerca da veterinária dos animais de peluche, pomposamente descritos como a nova espécie Brunus edwardii. Nele pode ler-se que “63, 8% das famílias têm um ou mais desses animais” e que “é forçoso que se conheça mais sobre as suas doenças”. A necessidade de estudar os sintomas médicos em ursos de peluche foi enfatizada pelos autores. Às vezes, os artigos humorísticos publicados em revistas científicas podem ter um propósito relevante. É o caso de uma série de artigos acerca do monstro do lago Ness, publicada em 1972 e 1973, na revista Limnology and Oceanography, que divulga princípios ecológicos importantes. Tendo em conta o tamanho do lago e a exposição solar, pode estimar-se a quantidade de plâncton que poderia estar disponível para alimento. Sabendo o tamanho dos monstros, poder-se-ia estimar quantos lá poderiam viver. Caso existissem, claro. Mais recentemente, em 2011, foi publicado na Acta Neurochirugica, uma respeitável revista de neurocirurgia, um artigo que faz uma avaliação dos traumatismos cranianos ocorridos nos 34 livros do Astérix, através de sinais indirectos, como olhos esbugalhados. Sem qualquer surpresa, os autores concluíram que o grupo sociocultural mais atingido são os romanos (63, 9% das vítimas) e que os gauleses causam a maioria dos traumatismos (87, 1%), metade dos quais sendo da responsabilidade directa da dupla Astérix e Obélix. O artigo foi acompanhado por uma nota do editor, que explica a sua publicação com a necessidade de alertar para os factores de risco associados a traumatismos cranianos, nomeadamente a importância do uso de capacete. Mas nem toda a gente percebeu a piada. Um irredutível grupo de jornalistas ingleses resolveu fazer notícias sobre o assunto, como se fosse mesmo a sério. Vários leitores indignados deixaram comentários chocados com o desperdício de dinheiro dos contribuintes em tão disparatada investigação. O primeiro autor do artigo, o médico Marcel Kamp, veio a público esclarecer a questão. Mas ninguém ligou, e a notícia acerca dos cientistas idiotas que fazem investigação sobre assuntos inúteis acabou por correr mundo. Outro exemplo notável de sentido de humor na ciência foi protagonizado pelo mestre da ficção científica Isaac Asimov. Em 1947, então com 27 anos, já era um autor reconhecido. Para além da ficção, por essa altura andava também às voltas com a ciência. Como parte do seu doutoramento em Bioquímica, Asimov precisava de dissolver cristais de catecol em água, coisa que acontecia instantaneamente. Ocorreu-lhe que, se os cristais de catecol fossem ainda mais solúveis, dissolver-se-iam ainda antes de a água ser adicionada. Também andava preocupado com a escrita da sua tese. Não sabia se era capaz de escrever suficientemente mal, de modo a entregar uma tese com um estilo aceitável para os académicos, pois há vários anos que escrevia profissionalmente. Com estas ideias a fervilhar na cabeça, decidiu escrever um falso artigo científico, para praticar o tipo de má escrita que considerava necessária para a tese. Para tema escolheu um composto imaginário, inspirado no seu trabalho com o catecol, a que chamou tiotimolina: era tão solúvel que se dissolvia 1, 12 segundos antes de a água ser adicionada. Enviou-o para a revista Astounding Science Fiction, impondo que fosse publicado sob pseudónimo, pois receava que o júri de doutoramento não achasse piada. Mas o editor não cumpriu o acordo e incluiu mesmo a prestigiada assinatura de Asimov. Felizmente, o júri de doutoramento teve mais sentido de humor do que Asimov previa: tanto aprovou a sua tese como ainda lhe fez uma pergunta sobre a tiotimolina. Asimov voltou ao tema anos mais tarde, com um novo artigo intitulado As Aplicações Micropsiquiátricas da Tiotimolina, no qual mostrava como se podia usar a tiotimolina para avaliar algumas perturbações mentais. Considerando que a solubilidade da tiotimolina dependia da determinação da pessoa que juntava a água, no caso de pessoas com personalidades múltiplas, algumas partes da tiotimolina dissolviam-se antes das outras, como consequência das suas diferentes personalidades. Escreveu ainda, em 1959, uma comunicação ao 12. º Encontro Anual da Sociedade Cronoquímica Americana, uma organização que evidentemente ainda não existe, com o título Tiotimolina na Era Espacial. Neste mostrava-se preocupado com o facto de a União Soviética poder ter tecnologia capaz de antecipar vários dias a dissolução de grandes quantidades de tiotimolina. Além dos falsos artigos científicos, escritos com fins humorísticos, há casos em que verdadeiros artigos científicos têm realmente piada. Para premiar esses trabalhos de investigação que primeiro nos fazem rir e depois pensar, desde 1991 que a revista humorística Annals of Improbable Research atribui os Prémios Ig Nobel, contrapontos humorísticos dos Nobel. Por exemplo, em 2008, o Ig Nobel da Economia foi para uma equipa de investigadores que estudou a relação entre o ciclo sexual feminino e as gorjetas das dançarinas de striptease que fazem actuações ao colo dos clientes (lap dance). Num artigo publicado na revista científica Evolution and Human Behavior, concluem que elas ganham gorjetas mais elevadas quando estão na ovulação. Este trabalho mostra como a investigação exige sacrifícios, se pensarmos nas longas horas que os três autores, todos do sexo masculino, tiveram de passar em estabelecimentos de striptease. Os Ig Nobel premeiam por vezes investigadores muito empenhados, como é o caso do físico de origem russa Andre Geim, que em 2000 ganhou o Ig Nobel da Física “pela levitação magnética de um sapo” e, em 2010, o Nobel da mesma disciplina, pela descoberta do grafeno, uma forma de carbono que consiste numa monocamada de grafite. Por cá, a glória da ciência lusa não se esgota com o Nobel da Medicina de 1949, atribuído a Egas Moniz. Em 2018, um grupo de investigadores portugueses ganhou o Ig Nobel da Química, por provar que a saliva é um bom produto de limpeza, tendo publicado as suas conclusões numa revista científica em 2013. A responsável pelos poderes de limpeza é a alfa-amilase, uma enzima que há na saliva, que é uma espécie de máquina de partir açúcares que faz parte do nosso sistema digestivo. Tem graça, mas também dá que pensar. Nesta linha das secreções humanas, o meu estudo preferido de todos os tempos é um artigo publicado em 2002 na revista Archives of Sexual Behavior, segundo o qual o esperma é um antidepressivo para as mulheres: alunas (293) de uma universidade de Nova Iorque preencheram dois questionários, um acerca da sua vida sexual e outro que avaliava sintomas de depressão. Os dados sugerem que as mulheres que contactam regularmente com esperma no seu sistema reprodutivo têm menos sintomas de depressão, o que pode dar ideias para as melhores (ou piores?) frases de engate de sempre. … E não entra. ” A piada é do norte-americano Brian Mallow, que se auto-intitula o primeiro comediante científico do planeta. É inspirada numa estranha experiência conceptual proposta pelo físico austríaco Erwin Schrödinger, em 1935. Dentro de uma caixa fechada está um gato, um frasco de veneno e um martelo capaz de o partir graças a um dispositivo radioactivo, que obedece à teoria quântica. A vida do gato fica descrita por uma sobreposição de estados quânticos, isto é, existe simultaneamente em dois estados diferentes. Essa indeterminação só é levantada quando se observa: então, ou está vivo ou está morto. Por isso, antes de abrirmos a caixa, e de acordo com uma das interpretações da teoria quântica, o gato estará simultaneamente vivo e morto. Segundo uma afirmação da conhecida figura pública Lili Caneças, “estar vivo é o contrário de estar morto”. Portanto, Schrödinger e Caneças produziram pensamento acerca deste tema. E o pensamento dos dois colide! Não é o único par improvável de pensadores. De acordo com Niels Bohr, físico e excepcional bípede nascido no século XIX, “as previsões são sempre muito difíceis, especialmente acerca do futuro”. João Pinto, popular jogador do Futebol Clube do Porto no final do século XX, retomou esta ideia quando declarou que “prognósticos, só no fim do jogo”. Podem fazer-se piadas com a ciência, ao estilo do stand-up comedy. Foi isso mesmo que fizeram, de 2009 a 2014, os Cientistas de Pé – um grupo de comédia constituído por investigadores científicos, coordenado por mim e pelo actor Romeu Costa –, como esta, da autoria da bioquímica Sofia Leite, que reflectiu acerca do sexo dos escorpiões:Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Para um escorpião macho, sexo é deixar pacotes de esperma no chão e esperar que a fêmea os encontre e se sente em cima deles. Prático: assim não há necessidade de o macho e a fêmea se encontrarem para ter sexo. ‘Querida, fui para os copos com os amigos, mas deixei o esperma em cima do frigorífico. . . Mesmo ao lado do do João. ’”A química Ivette Pacheco procurou ganhar a simpatia do público para a investigação com modelos animais: “A esperança de vida de um ratinho fora do laboratório são cinco anos. Dos que trabalham connosco: 12 dias e 20 minutos. ”E, para terminar, uma piada do biólogo Bruno Pinto acerca da origem do Universo: “Se o Big Bang foi uma grande explosão a partir da qual se formou o Universo, então o que havia antes do Big Bang era provavelmente uma grande fábrica de pirotecnia. E o que existe para além dos limites do Universo é, provavelmente, um paraíso fiscal, para onde os extraterrestres corruptos enviam dinheiro. ”
REFERÊNCIAS:
A viagem do bacalhau desde o mar da Islândia até à mesa de Natal dos portugueses
No projecto For Cod's Sake, o fotógrafo açoriano Pepe Brix seguiu o rastro do bacalhau islandês desde a captura até à exportação. Regressou com uma conclusão: “O carinho com que o povo islandês olha para o mar é raro, único.” (...)

A viagem do bacalhau desde o mar da Islândia até à mesa de Natal dos portugueses
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: No projecto For Cod's Sake, o fotógrafo açoriano Pepe Brix seguiu o rastro do bacalhau islandês desde a captura até à exportação. Regressou com uma conclusão: “O carinho com que o povo islandês olha para o mar é raro, único.”
TEXTO: Imersa nas águas geladas que circundam o aglomerado de terra ebuliente que dá corpo à ilha da Islândia, vive, oculta, uma criatura que o fotógrafo açoriano Pepe Brix apelida de “ouro malhado”. É “um ícone de sobrevivência” e “a principal moeda da economia islandesa”, desvenda, em entrevista ao P3. Falamos, claro está, do famoso bacalhau da Islândia — aquele que tem o verdadeiro dom da ubiquidade na noite da consoada em Portugal. Brix voou em direcção a Reiquejavique, pela primeira vez, em Fevereiro de 2016, com o objectivo de realizar um documentário que seguisse o rastro do bacalhau islandês desde a captura até à exportação. Fez-se à estrada com pouco dinheiro no bolso e “sem um único contacto”, confessa. Sob frio gelado, permaneceu horas a fio no cais do porto da capital, nutrindo a esperança de conseguir abordar os pescadores à chegada da faina e partilhar com eles o seu plano. Assim conheceu Guðmundur, um pescador que lhe deu boleia na sua embarcação até Kópavogur, a aldeia onde vive. A engrenagem estava em movimento e só se deteve no início de 2017, o ano em que terminou a série fotográfica For Cod’s Sake. “Nesta primeira viagem, aproveitei para explorar o processo da pesca, observar a forma como gerem os recursos e a forma como os pescadores interagem entre si”, recorda. As frotas pesqueiras, garante, são modernas, seguras, extremamente limpas e organizadas. As saídas para o mar raramente se estendem por mais de seis dias — uma realidade bem distinta da que Brix experienciou a bordo do bacalhoeiro português Joana Princesa, na região da Terra Nova, em 2014. “Quando os portugueses embarcam, fazem-no por vários meses, permanecendo em mar alto sem contacto com terra durante todo esse tempo”, explica. Essa diferença reflecte-se ao nível da relação laboral. No caso nacional, Brix observou um “grande fosso” entre tripulantes de convés e oficiais. “Era visível ao ponto de dormirem em andares separados e comerem em salas diferentes”, descreve. Já “a bordo do Steinnun, Earling, o capitão do navio, comia à mesa com a restante tripulação e vinha frequentemente ao parque de pescas analisar o pescado e ajudar nas tarefas destinadas aos tripulantes de convés, mesmo que não fosse seu dever”. O conceito de pesca sustentável é omnipresente no seio da comunidade piscatória. Brix vai mesmo mais longe, afirmando que as noções de sustentabilidade e de respeito pela natureza estão bem vivas na cultura islandesa. “O carinho com que o povo islandês olha para o mar é raro, único”, observa. A ideia de competitividade não está afastada da comunidade piscatória, mas é facilmente relegada para segundo plano quando em causa está a possibilidade de desperdício. “Um dos episódios mais marcantes que vivi a bordo esteve relacionado com a partilha de recursos”, introduz. “O barco em que navegava capturou mais bacalhau do que aquele que tinha capacidade de armazenar no seu convés. Naquele momento, libertar o peixe não o pouparia de morte certa e, por isso, o capitão da embarcação decidiu contactar o barco mais próximo do seu, para que se fizesse uma transferência. Esse era de uma empresa concorrente. Naquele momento, tudo ficou claro para mim: o mais importante era o peixe, era evitar desperdício. ” Brix tem dúvidas que algo semelhante pudesse acontecer noutras paragens. O processamento do peixe, que decorre ainda em alto mar, e, posteriormente, em fábricas especializadas, assume também um papel relevante no que concerne o grau de qualidade do produto a exportar. Nas fábricas, trabalham sobretudo polacos, filipinos, bósnios e sérvios, que são atraídos pelos contratos estáveis e pelos salários generosos. “Apesar dos invernos intensos e dos longos dias de escuridão, são os islandeses que ocupam as vagas a bordo. O pescador, além de ser muito bem pago, é também muito respeitado pela sociedade islandesa. Existe mesmo orgulho em ser pescador. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A exportação de bacalhau fresco é feita sobretudo com destino à Bélgica e ao Luxemburgo; o bacalhau congelado segue, geralmente, para o Reino Unido, onde é utilizado para a confecção do famoso fish and chips. Os mercados português e espanhol, que em termos de volume são mais expressivos, têm uma característica particular, que é a preferência pelo bacalhau salgado. “A salga do bacalhau surge, historicamente, da necessidade de o pescador o conservar durante a longa viagem entre as águas geladas onde é pescado e o local onde será consumido”, explica. Na Islândia, o bacalhau vive nas proximidades e é, por isso, consumido fresco. “Portugal é, há várias décadas, o principal cliente do bacalhau islandês”, remata. O fotógrafo e videógrafo Pepe Brix é natural da ilha de Santa Maria, nos Açores; considera “natural” o seu interesse pelo mar — um tema que trabalha consistentemente desde que iniciou a sua carreira fotográfica. “Aprendi que existem muitas semelhanças entre a Islândia e os Açores”, refere, “quer ao nível da paisagem, quer ao nível do temperamento dos ilhéus". E explica porquê: "Nós, açorianos, somos pessoas introspectivas, melancólicas, muito ligadas ao mar; os islandeses são exactamente como nós. ” Mas não exactamente como Brix, cuja história familiar é digna de um romance. “Os meus avós paternos eram ambos artistas de circo. Ambos estrangeiros: ele grego, ela italiana. Conheceram-se no Porto, no Palácio de Cristal, num encontro circense. Apaixonaram-se e mudaram-se para os Açores, para São Miguel. Abandonaram, naturalmente, as lides do circo e o meu avô decidiu dedicar-se à fotografia. Abriu, em 1946, o estúdio FotoPepe. O meu pai seguiu-lhe as pisadas — tal como eu. ” O fotógrafo de 34 anos publicou, desde 2015, cinco trabalhos em vídeo e fotografia na revista National Geographic, todos eles relacionados com o tema do mar e da pesca. Foi vencedor do Prémio Gazeta também em 2015.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte cultura comunidade corpo princesa circo
De Rabo de Peixe, com orgulho
Muita coisa está a mudar na maior comunidade piscatória dos Açores. Aquela que já foi a freguesia mais pobre do país mostra hoje que é muito mais diversa — e exibe, orgulhosa, a sua identidade. (...)

De Rabo de Peixe, com orgulho
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: Muita coisa está a mudar na maior comunidade piscatória dos Açores. Aquela que já foi a freguesia mais pobre do país mostra hoje que é muito mais diversa — e exibe, orgulhosa, a sua identidade.
TEXTO: O sol já começava a baixar quando chegámos à festa de casamento de Telma e Nuno. O pai, José Vieira, armador da vila de Rabo de Peixe, na costa norte da iIha de São Miguel, Açores, tinha-nos desafiado a passar por lá — a festa acontecia num sábado, a meio do Festival do Caldo de Peixe. Hotel de cinco estrelas, salão cheio, gente bem-disposta, vestidos vaporosos, azul-claro, verde-água, rosa delicado, cabelos enrolados em elegantes penteados, um ou dois caracóis a soltarem-se, os noivos a serem fotografados nos penhascos, contra o mar, ao fundo. É esta a imagem que José Vieira gosta de dar de Rabo de Peixe, da sua comunidade, do local onde sempre viveu, que é a sua vida, a da sua mulher e dos seus dois filhos. Está, como muita gente aqui, cansado da imagem que, dizem, é constantemente repetida pela comunicação social, que insiste em apresentar a vila piscatória como “uma das mais pobres do país”, cheia de problemas sociais. Não é assim, diz José Vieira e repetem outras pessoas com quem conversámos ao longo de quatro dias. Um dos que mais se têm empenhado em mudar essa imagem de Rabo de Peixe é Ruben Farias, responsável pelo Clube Naval e organizador do Festival do Caldo de Peixe. Encontramo-lo na manhã de quinta-feira, um dia antes do início do festival, ocupadíssimo com os preparativos de última hora — a tenda onde vão ser servidos os vários caldos, o palco onde os músicos vão tocar, a coordenação dos voluntários que virão ajudar. Mesmo assim, tira alguns minutos para nos dar uma explicação introdutória do que é hoje Rabo de Peixe. A imagem mais icónica da vila, e que se repete em todas as reportagens, é a das ruas de casas pintadas com cores vivas, que descem até ao porto de pesca. Mulheres sentadas nos degraus das portas à conversa, crianças que correm por todo o lado, entrando e saindo das casas, miúdos mais crescidos, em calções e tronco nu, que jogam cartas sentados no meio da rua ou dão mergulhos no cais, homens nos cafés, gente a falar muito alto (parecem discussões, mas geralmente não são) — a impressão que temos é de que a vida aqui acontece mais fora de portas do que dentro das casas. Esta é a maior comunidade de pescadores dos Açores, com o maior porto de pesca do conjunto das ilhas (representa 12, 5% do pescado a nível regional), uma vila com uma cultura muito própria, por vezes difícil de perceber por quem chega para uma visita rápida (o sotaque açoriano cerrado dos habitantes também não ajuda ao fluir das conversas). Junto ao porto, na zona dos armazéns, há homens e rapazes a preparar as artes de pesca, a pôr os iscos, a consertar as armadilhas. “Há quem defenda que esta comunidade mantém os mesmos genes da pirataria de 1500”, brinca Ruben Farias. “Se derem uma volta aqui, talvez encontrem alguns ameríndios, alguns árabes. E há quem diga que, sendo a costa sul a zona que foi povoada naturalmente, tudo o que não era prestável foi empurrado para a costa norte e foram essas pessoas que encontraram aqui um cantinho e cá ficaram. Estes são os rabo-peixenses. Esta é a história, que espero que não seja verdade, mas o facto é que há uma comunidade piscatória aqui há muito tempo, pelo menos há 400 anos, que acaba por sentir na pele o peso da falta de formação. ”As coisas começam, lentamente, a mudar. E é isso que vamos descobrindo ao longo destes dias. No entanto, a pesca continua a ser a actividade principal, o centro da vida da vila e, ao mesmo tempo, motivo de orgulho para ela. Nesta comunidade piscatória de cerca de 4 mil pessoas (2 mil a trabalhar na pesca, 80 armadores), descreve Ruben, há “embarcações que fazem uma pesca costeira com sustentabilidade económica, que são de pessoas que simplesmente descobriram que têm de ser empresários”, mas há também “quem não consiga quebrar os laços familiares e pensar como empresário, e, por isso, com os mesmos meios não atinge os mesmos fins”. Refere-se aos armadores que vão dando emprego a amigos e familiares, muitas vezes por solidariedade ou por pena, para os ajudar, e que, assim, põem em risco a viabilidade económica da sua actividade. E que, depois, muitas vezes, entram na “lógica do pedinte”. Existem, segundo Ruben, três realidades: os palangreiros, “que têm sucesso, com barcos até 12 metros, que conseguem ficar dois dias na água e que, com a arte de pesca do palangre de fundo, apanham espécies mais nobres”; os luleiros, que “vão à pesca com linha de mão, com barcos mais pequenos, que fazem a pesca de salto e vara do atum ou de lulas, e têm um estilo de vida equilibrado”; e os chicharreiros, “que são os que vão de barco durante a noite e só puxam uma rede, e entre esses, sim, há casos gritantes, levam muitas pessoas no barco e têm de dividir o lucro por todos, o que dá quase nada a cada um”. Em termos geográficos, a vila também se organiza de acordo com estes “grupos”, com as três ruas principais que vão dar ao porto a ser ocupadas pelas vivendas dos donos dos barcos, e, em redor, os bairros sociais, mais pobres. Existe depois a “parte de cima”, habitada por uma classe média-alta. No passado, já houve uma divisão grande entre as duas partes da vila, marcada pela estrada regional: para cima eram “os homens da terra”, muitos dos quais chegaram à região durante o “ciclo da laranja”, no século XIX, continuando depois a dedicar-se à agricultura, e para baixo os “homens do mar”. “Há 20 anos, ninguém do mar ia à terra. Um pescador que fosse encontrado num café podia ter problemas, podia haver pancadaria”, recorda Ruben. Havia dois clubes de futebol, duas bandas de música e até duas festas do Espírito Santo, a da Beneficência e a da Caridade. “Hoje”, garante, “as coisas estão diferentes e a integração é plena” e até o tradicional baile dos pescadores (a que iremos assistir durante o Festival do Caldo de Peixe) é já imitado pelos “da terra”. Estamos a meio da conversa com Ruben Farias quando chegam José Vieira (o pai da noiva do início desta história) e o filho, Sandro, 22 anos. Vêm contar a sua história, que é a de um armador que venceu na vida, passou momentos difíceis mas orgulha-se do que conseguiu, do barco, da vida da pesca e de, hoje, o filho, depois de terminado o 12. º ano, lhe ter seguido as pisadas e sair também para o mar, à frente dos seus homens, que ao todo são 15, oito no mar e sete em terra. “O meu avô já tinha barco, o meu pai teve dois, depois eu comecei com o meu e agora o meu rapaz quer dar seguimento”, conta José Vieira, recordando que teve de deixar a escola quando tinha quase 14 anos — “eu queria estudar, mas o meu pai disse que não, não vais estudar, vais é para o mar”. Sandro fez o 12. º, mas “desde puto” que sempre gostou do mar e da pesca. “Houve uma altura, quando acabei o 9. º ano, em que não queria ir mais para a escola, queria dedicar-me por completo à pesca, mas os meus pais disseram que não. As pessoas que deixam de estudar cedo para se dedicar à pesca não é para serem armadores, é para serem apenas tripulantes. É uma coisa que já vem da educação em casa. ” Muitos, explica Sandro, começam a namorar, a namorada engravida, sai da escola e o rapaz tem de sair também para começar a trabalhar e sustentar a família. Mas, também no que diz respeito às mulheres, as coisas começam a alterar-se em Rabo de Peixe. Lurdes Baptista, que encontramos ao final da tarde sentada a uma das mesas corridas no Festival do Caldo de Peixe, nunca foi uma mulher igual às outras. “Estou há 40 anos na pesca, mas era um caso raro”, conta. “No início, era muito criticada, agora não, mulheres como eu já são bem vistas, valorizadas. ” Veio “da terra” mas casou com um pescador. “Sou do concelho de Lagos, era camponesa mas virei pescadora. Cheguei a ter de chamar a polícia para poder trabalhar, para poder ir para o mar, tudo porque os homens não me queriam ver no ramo da pesca. ”Mas ela — conhecida entre os pescadores como “a Baptista” — nunca desistiu. E sempre teve uma coisa muito clara: “As mulheres não se valorizam porque pensam que quem está trabalhando está ajudando os maridos. Eu não. No meu caso não era ajudar o marido, eu estava a trabalhar, trazia rendimento para casa. Hoje penso: tanto que eu fui criticada e agora só falta pegarem-me ao colo. Já me vêm pedir opiniões, querem saber o que eu acho disto ou daquilo. ”Sentado ao lado de Lurdes está outra mulher pescadora, Maria de Fátima Garcia, fundadora da associação de mulheres Ilhas em Rede. “Sou pescadora-mestre, trabalho com o meu marido, saio no barco diariamente. ” E que tipo de trabalho faz no barco? “Todos, desde a manutenção, o abastecimento, a pesca, carga e descarga em lota. Faço o trabalho que qualquer homem faz. ” Mas, ao contrário de Lurdes, garante que nunca se sentiu discriminada, o que atribui essencialmente ao facto de ser do Faial, onde “as mentalidades já são diferentes”. Em 2016, Lurdes Baptista andava no mar, como sempre, e sofreu “uma tragédia”: “Perdi a minha embarcação, que significa que perdi a minha vida toda, os meus rendimentos. ” Com o apoio de muitos amigos conseguiu reerguer-se e, depois disso, houve quem a desafiasse a criar uma associação para ajudar os outros. “Sempre andei atrás dos meus direitos, sempre fui muito activa, por isso, chegou um dia em que disse ‘vamos avançar’. ”Nasceu, vai fazer dois anos, a associação Sete Mares. Com que fim? “Os nossos pescadores e armadores têm dificuldade em perceber as leis, as medidas. A gente ajuda nisso, dizendo ‘vá fazer isto’, ‘olhe que aquilo é proibido. ” Cátia Botelho, 35 anos, vice-presidente, explica com mais detalhe: “Há a parte da legislação e a parte burocrática, às vezes até ajudamos a ler uma carta que eles não entendem. Além do apoio da logística do mar, muitas vezes damos apoio na logística familiar. ”A Sete Mares não é uma associação apenas de mulheres (ao contrário da Ilhas em Rede) mas também tem ajudado a valorizar o papel destas. O problema, diz Cátia, é que “há muitas mulheres ligadas à pesca mas escondidas, que têm vergonha de dar a cara”. Não são muitas, como Lurdes ou Maria de Fátima, a sair nos barcos para o mar (nas nove ilhas dos Açores contam-se pelos dedos da mão) mas há muitas em trabalhos de apoio. Cátia confirma que a cultura está a mudar. “Já se começa a ver raparigas de 20 anos com carta de condução, as mentalidades começam a abrir-se não só da parte delas mas dos maridos, das mães. Já se vê algumas com 16, 17, 18 anos que querem ir estudar. ” O problema, diz, é que há ainda uma “política do miserabilismo” em que “convém a muita gente dizer que Rabo de Peixe é pobre”. E, afinal, até que ponto a freguesia que se cansou de ser sempre associada à ideia de pobreza é ou não pobre? Continua a ser a freguesia portuguesa onde há mais beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI), o que, segundo Ruben Farias, se por um lado ajuda a reequilibrar as desigualdades, traz outros problemas, levando por vezes os armadores a terem dificuldade em encontrar homens para trabalhar, porque o que se paga num barco pode ser menos do que o RSI. Por outro lado, é comum ver-se Mercedes e BMW à porta das casas e, muitas delas, no interior, não só dão confortavelmente para as famílias alargadas (muitos filhos casam e ficam a viver com os pais), como estão equipadas com boas televisões e aparelhagens, sinal de que, como diz José Vieira, “quem sabe gerir a vida da pesca vive bem”. Artur Moniz é filho de pescador mas representa um dos exemplos de uma nova geração que, ao contrário de Sandro, decidiu seguir um caminho diferente — mas nunca se afastando muito da sua terra. É guia turístico da Tiko Adventures, empresa que tem como lema “seja um local, não um turista”. “Desde miúdo que sempre gostei de viajar, sempre tive aquele bichinho de sair daqui. Por isso, vivi noutros países, inclusive em Inglaterra, onde passei três anos. Sempre fui fascinado por línguas e poder mostrar aos outros a beleza que é a minha terra… isto para mim não é trabalho, é prazer. ”Nos passeios que faz por São Miguel, inclui uma passagem por Rabo de Peixe. “Tento mostrar às pessoas o que é fazer parte da comunidade. Levo os meus clientes lá abaixo, ao cais, mostro como é que a malta trabalha com o peixe, como é que se fazem os apetrechos, tudo o que está por trás da cultura da pesca, os dias que se passam no mar, sem ver a família, as condições adversas do clima, e isto acaba por valorizar um bocadinho mais o trabalho dos pescadores. ”Infelizmente, acrescenta, o estigma associado a Rabo de Peixe ainda é grande — sobretudo entre os portugueses, e até entre os açorianos. “A primeira coisa que me dizem é: ‘Oh pá, Rabo de Peixe, mas aquilo é superperigoso, vais trancar o carro, não é? E uma das coisas que eu faço de propósito é precisamente deixar o carro destrancado com a máquina fotográfica, a carteira, o tablet, tudo dentro. Até hoje nunca tive problemas. ”Acredita que uma das suas funções como guia turístico é “desmistificar a ideia que as pessoas têm sobre Rabo de Peixe”. Aponta a rua à nossa frente. “Tem fama de ser uma das favelas dos Açores, quando na realidade olhamos e é BMW, Mercedes, toda a gente tem um iPhone. Não percebo como é que uma zona assim é considerada a mais pobre de São Miguel. Não faz sentido nenhum. ”Uma visita a Rabo de Peixe precisa, talvez, de algum enquadramento. Ruben Farias ri-se enquanto esclarece: “As pessoas falam alto por natureza, é a forma que têm de se expressar. Os primeiros 30 segundos não são para ligar. ” Artur Moniz acha que “o que as pessoas não percebem relativamente a Rabo de Peixe é o sentido de comunidade, que é uma coisa que noutros sítios já se perdeu”. Um exemplo, que, na sua opinião, exige alguma explicação: o grande número de cafés que existem na vila. “Muita gente passa aqui e diz: ‘Essa gente não trabalha, passa a vida no café. ’ Mas, se pensarmos um bocadinho, eles saem para a pesca e depois é natural que se juntem no café, onde se continua a manter a tradição antiga de repartir o salário. ” O barco regressa a terra, o peixe é levado até à lota e, pouco depois, o dinheiro já está na mão do armador, “que reúne a tripulação no café ou em sua casa, para fazer a divisão do quinhão”. É na lota que encontramos Gilberto, de 26 anos, luleiro. Falamos com ele no final do leilão das lulas, que acontece todos os dias às 14h, e ele conta-nos como gosta do seu trabalho e da vida em Rabo de Peixe. “Já fui para o estrangeiro, estive na América, mas não gostei. Voltei. Ando seis, sete horas no mar, e gosto do que faço. ” O que é que torna Rabo de Peixe especial?, perguntamos-lhe. “As pessoas dão-se bem, os pescadores são todos amigos. ”Mas é preciso preparar o futuro. Luís Rodrigues, director Regional das Pescas, pensa nisso. Em primeiro lugar, explica, por causa da sustentabilidade e da necessidade de preservação dos recursos marinhos. Os pescadores já se queixam de que há menos peixe e, apesar das quotas e dos períodos de defeso, é preciso, defende Luís Rodrigues, pensar em diversificar as actividades ligadas ao mar (a adaptação de embarcações de pesca de forma a que possam também levar turistas é um dos seus projectos). Uma das medidas que tomou desde que assumiu o cargo foi levar perto de cem pescadores de Rabo de Peixe de volta aos bancos da escola, alguns inicialmente contrariados, mas que, diz o responsável pelas pescas, acabam por reconhecer a importância desta formação, que passou a ser obrigatória para obterem a cédula de pescador e poderem andar no mar. “Os Açores têm pouco peixe, porque não temos uma plataforma continental, as águas são logo muito fundas”, alerta Luís Rodrigues. “Por isso, gostava que nem mais um euro fosse utilizado para aumentar o esforço de pesca. Antigamente, o investimento era todo em barcos e portos, mas eu quero investir na formação das pessoas. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A par disso, está a trabalhar, juntamente com pessoas como Ruben Farias, para a valorização de espécies menos utilizadas — o Festival do Caldo de Peixe serve precisamente para, a partir de um prato muito popular praticamente em todas as ilhas dos Açores, mostrar o potencial de peixes que valem muito pouco em lota. Assim, esperam Luís, Ruben, Artur, Lurdes, Cátia, José, Sandro e outros em Rabo de Peixe, as coisas vão começando a mudar e a imagem negativa da freguesia poderá começar a dissipar-se. Numa vila tradicionalmente muito virada para si mesma, a abertura a outras pessoas e outras ideias tem vindo a ajudar à mudança. Como diz Cátia, da Sete Mares: “Muito vai do convívio com pessoas como nós, que vimos de fora, temos outras experiências e que lhes dizemos: ‘Vocês têm de estar preparados para outras realidades, a vida não é fácil, não é só o que vai desta praça para baixo até ao mar, a vida é enorme. ’”O P2 viajou a convite do Festival do Caldo do Peixe do Clube Naval e da Associação de Pescas de Rabo de Peixe
REFERÊNCIAS:
Étnia Árabes
Na Europa, Marisa Matias tenta fragilizar os “tubarões” que nadam pela direita
João Lavinha, o número dois da lista do Bloco às europeias, quer dar força à esquerda num Parlamento Europeu que "pende para a direita". (...)

Na Europa, Marisa Matias tenta fragilizar os “tubarões” que nadam pela direita
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 7 | Sentimento 0.092
DATA: 2014-05-15 | Jornal Público
SUMÁRIO: João Lavinha, o número dois da lista do Bloco às europeias, quer dar força à esquerda num Parlamento Europeu que "pende para a direita".
TEXTO: Marisa Matias, a cabeça de lista do BE às eleições europeias, já estava quase rouca antes do início oficial da campanha eleitoral. Ou nem tanto. A sua voz é grave e não pára de fazer perguntas. A dez dias das eleições, a eurodeputada partiu de Telheiras, em Lisboa, esta quinta-feira pelas 8h00, com uma visita ao porto de pesca de Sesimbra na agenda. E outra mais difícil, à Associação Portuguesa de Familiares e Amigos de Doentes de Alzheimer, em Lisboa. Até Sesimbra, a viagem da caravana bloquista serve para preparar o dia. A actual eurodeputada lê jornais, comenta notícias, pára nas páginas de economia. E demora-se no telemóvel. A manchete do PÚBLICO Dois em cada três votos dos grupos europeus do PS, PSD e CDS são iguais merece-lhe um comentário, depois de dar razão ao candidato da CDU, João Ferreira, que tem repetido essa mensagem na campanha eleitoral: “Em matéria orçamental, PS e PSD estiveram em sintonia absoluta, aí votam sempre da mesma maneira”. Depois, acrescentou: “Aliás, os relatores das sanções automáticas [para os limites de dívida e de défice], que podem ir até 2% do PIB, foram os eurodeputados portugueses Elisa Ferreira e Diogo Feio”. Quando o carro pára em Sesimbra, Marisa demora-se uns minutos com os assessores. Antes, maquilha-se para “tapar olheiras”. Passam alguns minutos das 9h00 e o sol à beira-mar já não perdoa. O cheiro é forte. No Porto de Pesca Artesanal há sapatas a secar ao sol. Lá dentro, no frio, peixe-espada preto, sobretudo, cação e também tubarão. No sector das pescas, “quem tem levado a melhor são os tubarões”, dirá mais tarde como metáfora. A coligação Aliança Portugal vinha a caminho de Sesimbra e Marisa Matias sabia disso: “Vai estar aqui o Paulo Rangel, eu sei. A direita, no Parlamento Europeu, disse que bateu o pé a Angela Merkel. Mas, na verdade, o que fez foi pisar a pesca, a pesca artesanal, a capacidade de decisão em termos das quotas a pescar. Estamos dependentes de um modelo que serve os países nórdicos, mas que não serve países como Portugal". Antes, Marisa Matias faz perguntas. Sobre investimentos, distribuição do pescado, encomendas diárias. “Nós não podemos falar com eles enquanto estão a trabalhar, é isso?” A resposta é negativa e a candidata prossegue para as alegações finais. "A Alemanha, que não tem quotas de pesca, manda mais do que um país como Portugal", lamenta. Com elogios à nossa costa e um paradoxo: “Nós temos a maior zona económica exclusiva e no entanto temos quotas de pesca muito inferiores a países que têm uma zona económica exclusiva também muito inferior". De volta à capital, os panfletos com a inscrição “não há memória de uma causa assim” anunciam uma visita difícil à Associação Portuguesa de Familiares e Amigos de Doentes de Alzheimer. João Lavinha, o número dois da lista do BE, acompanha a eurodeputada. O antigo director do Instituto Nacional Ricardo Jorge quer contribuir nestas eleições para “dar força à esquerda numa Europa que pende para a direita”. Na sede no Casal Ventoso, que inclui um centro de dia, Marisa Matias conhece muitas das pessoas pelo nome porque esteve ali várias vezes, quando preparou o relatório de estratégia europeia contra a doença. Os doentes, mais mulheres do que homens, fazem exercícios físicos e cognitivos. Pintam com guaches, jogam com peças de madeira coloridas, vêm televisão. Mas a movimentação de jornalistas e câmaras de televisão altera-lhes, manifestamente, a rotina. A doença provoca uma deterioração progressiva e irreversível de diversas funções cognitivas. São 153 mil doentes, em Portugal, para três delegações regionais e alguns núcleos de apoio, diz a candidata. “Somos um dos poucos países da União Europeia que não tem Plano Nacional de Alzheimer. É urgente que haja. Uma das recomendações da Estratégia Europeia de Combate ao Alzheimer é que haja planos nacionais em todos os países”, afirmou. Para o futuro, a cabeça de lista do Bloco deixa a esperança de que Portugal se empenhe em ser bom aluno no que toca ao Alzheimer: “O que se exige é que a estratégia europeia seja cumprida e que Portugal tente desta vez, a este respeito, ser bom aluno. Que não seja só bom aluno para aquilo que nos faz mal. Seja bom aluno para respeitar também os direitos e a dignidade".
REFERÊNCIAS:
Iluminados pelo fogo
Pedro Costa fez do Museu de Serralves um lugar de reencontro com o cinema, com o mundo dos deserdados e esquecidos e com aqueles que cuja companhia preserva e cultiva: amigos, vivos e mortos. Pedro Costa - Companhia faz o espectador entrar em labirintos, corredores, memoriais, iluminado por vozes e gestos que são os de uma humanidade comum. (...)

Iluminados pelo fogo
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: Pedro Costa fez do Museu de Serralves um lugar de reencontro com o cinema, com o mundo dos deserdados e esquecidos e com aqueles que cuja companhia preserva e cultiva: amigos, vivos e mortos. Pedro Costa - Companhia faz o espectador entrar em labirintos, corredores, memoriais, iluminado por vozes e gestos que são os de uma humanidade comum.
TEXTO: Há onze anos, Pedro Costa concluía uma conversa com uma exortação dirigida ao museu (podemos lê-la no catálogo da exposição Pedro Costa, Rui Chafes: Fora! = Out!). Que este devia ser ousadia e felicidade, e citava os filmes Cézanne e Uma Visita ao Louvre (2004), de Jean-Marie Straub e Danièle Huille e Bando à Parte (1964), de Jean-Luc Godard. Diante do corredor que começa Pedro Costa Companhia, no Museu de Serralves, essa ousadia é solicitada a quem chega, pois, para entrar, tem de correr o risco do escuro, sondar o espaço. Descemos o corredor, o corpo parece imobilizar-se, enquanto, ao fundo, a cena final de Trás-os-Montes, de António Reis e Margarida Cordeiro avança veloz, cresce, agiganta-se ao rimo do silvo e do fumo do comboio. A sensação é de vertigem e reminiscente desse encontro, absolutamente solitário, na sala escura que as imagens iluminam: com o espanto do cinema. Organização: Museu de Arte Contemporânea de Serralves Comissário(s): Nuno Crespo e João RibasEsta é primeira grande experiência de Pedro Costa Companhia, exposição que, dedicada ao cineasta português, pode ser vista como uma colectiva, uma exposição de um grupo, um grupo de amigos. Artistas, pintores, poetas, cineastas, actores e actrizes, uns vivos, outros mortos, representados nas obras. Todos, aqueles que ele escolheu para lhe fazer companhia: Pablo Picasso, Robert Bresson, António Reis, Walker Evans, João Queiroz, John Ford, Jeff Wall, Jacques Tourneur, Maria Capelo, Andy Rector, Jean-Luc Godard, Max Beckmann, Paulo Nozolino, Jacob Riis, Rui Chafes, André Cepeda, Charlie Chaplin, Robert Desnos, Ventura. Quando se fala de amizade, está-se a falar, inevitavelmente, do mundo, do mundo a que o museu deve a sua existência, e que existe fora das paredes brancas. E para Costa esse mundo é o dos deserdados, dos esquecidos, dos homens e das mulheres comuns, daqueles que o progresso calca, imparável, na sua marcha. Antes desse encontro com o comboio na noite de Trás-os-Montes, há um retrato de um homem negro, pintado por Théodore Géricault (1791- 1824). É o mesmo que pudemos ver em Cavalo Dinheiro (2014). A exposição começa assim, numa pintura. Desse retrato, aparecerão outros na parede do corredor, de personagens e actores do mesmo filme, em impressões fotográficas. Ventura, Vitalina, Tito e, talvez, o de Tom Joad, interpretado por Henry Fonda, em As Vinhas da Ira, de John Ford. Entre o retrato pintado por Géricault e estas projecções, quais pinturas rupestres iluminadas pelo fogo, o espectador descobre outra entrada para Pedro Costa Companhia. Num labirinto, feito de corredores, passagens, vultos e imagens, luzes, sombras. Um cenário reminiscente do cinema expressionista alemão do século XX, com os seus ângulos e volumes. Nas paredes deste cenário labiríntico, só há uma acção. A do encontro do espectador primeiro com o cinema que Pedro Costa ama, e num segundo momento com a carta de Robert Desnos a Youki (que o cineasta transfigurará em Juventude em Marcha), o desenho de Pablo Picasso e um trabalho de Andy Rector. Detemo-nos no encontro com o cinema. Em televisores encastrados nas paredes, vêem-se excertos de filmes, que condensam momentos e acções cujos significados não perdem, ainda hoje (e talvez sobretudo hoje), o seu poder de revelação. Entre muitos, três: o encontro do vagabundo de Luzes da Cidade, de Charlie Chaplin, com a mulher que finalmente o pode ver (“Yes, I can see now”, diz ela), o discurso de Josiah Doziah Gray (Joel McCrea), em Stars in My Crown, de Jacques Tourneur que, dirigido ao coração dos outros, impede um assassinato racista ou as palavras lancinantes do pedófilo e assassino Hans Beckert (Peter Lorre), que suplica em M (1931), de Friz Lang, pelo reconhecimento da sua própria humanidade. Na mesma conversa, mencionada no início deste texto, Pedo Costa disse temer a presença dos televisores nos museus. Pois, ei-los, a fazer aparecer esse cinema, como uma forma arcaica e quase perdida de ver e narrar o mundo. Em excertos, fragmentos, memórias de vozes e palavras, gestos e acções que nos assombram. São eles, miniaturizados, reduzidos (como se protegidos pelas paredes do museu, como se não restasse outra coisa que esse exílio, o do arquivo) que rodeia, que protegem a sala de Alto Cutelo, uma instalação que Costa havia mostrado em 2012, no Carpe Diem e na galeria do Palácio Galveias, no âmbito do DocLisboa 2012. No ecrã, grande, alto, Ventura canta as dores da partida e da emigração. Evoca a história do homem que parte, da mulher que fica, dos filhos, da terra que deixou para trás. Noutro ecrã, os vulcões soltam lava e fumo (são imagens de A Ilha do Fogo, de Orlando Ribeiro). Portugal, Cabo Verde, Lisboa, o trabalho, a exploração dos homens pelos homens, a contingência da política e da história iluminam, à volta da qual circulam as histórias do cinema. Entretanto, a escuridão do corredor atenuou-se. O olhar habituou-se à luz e à sombra, e assistimos à primeira “conversa” entre artistas: um conjunto de peças de Rui Chafes e a instalação Filhas do Fogo, de Pedro Costa. Suspensas do tecto, as esculturas, finas e pesadas, desenham um bailado, que parece apontar ao céu, com os rostos, projectados nos ecrãs, das mulheres que ficaram, para trás, com os seus mistérios na Ilha do Fogo. As histórias, as personagens libertam-se da narrativa, no espaço. Este já é outro cinema, mas ainda é a exposição, o trabalho de Pedro Costa. A questão do trabalho, mais exactamente de como representar, filmar, fotografar os outros, respeitando-os, na sua irredutível dignidade, surge na aparição do livro Let Us Now Praise Famous Men (1941) de James Agee e Walker Evans, que documenta e retrata a vida quotidiana de trabalhadores rurais e pobres do Sul dos EUA, durante a Grande Depressão. Numa pequena sala, vemos os retratos de Allie Mae Burroughs e Floyd Burroughs, as casas, os objectos, os alpendres, mas é nas questões que James Agee, crítico e escritor, levanta no prefácio, pressente-se outra afinidade com Pedro Costa que não passa por temas ou conteúdos, mas tem a ver com a atitude em relação ao método de trabalho, à representação do outro, ao destino das imagens, aos princípios que presidiram à sua realização. Agee tem pudor em apelidar de “Arte” o livro e as suas imagens. Não serão estes dilemas familiares ao cineasta? Não é apenas uma sensibilidade comum às coisas que o torna amigo de Evans e Agee, mas também dúvidas, hesitações, questões que enfrentou na companhia dos outros. Uma família que se foi construindo e consumindo ao longo de três décadas e que podemos ver nas séries de fotografias, alusivas às rodagens dos filmes (de Sangue, em 1989 até Vitalina Varela, em 2018). Estão lá os retratados (Inês Medeiros, Canto e Castro, Pedro Hestnes, Vanda Duarte, Zita Duarte, Ventura) como aqueles que retrataram: Martin Schafer; Mariana Viegas, Richard Dumas, Marta Mateus, o próprio Pedro Costa. É desta galeria que descemos ao segundo piso, onde nos aguarda uma clareia banhada pela luz natural. Aqui não se mostram filmes, mas pinturas de paisagens de Thomas Gainsborough, João Queiroz e Maria Capelo, ou antes retratos de paisagens, algumas das quais deixam entrever vestígios da presença humana. É o momento mais desequilibrado da exposição, porque a luz queima o escuro da outra sala, impedindo o espectador de ver Puissance de La Parole, de Jean-Luc Godard. Como se a luz e escuridão, a pintura (na sua impassibilidade) e cinema (na sua ruidosa agitação) tivessem dificuldade em habitar, lado a lado, o mesmo museu. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Passado este desencontro, percorrem-se corredores e becos, passagens, descobrem-se acessos a salas, como a que reúne Paulo Nozolino e Pedro Costa, amigos de muitos anos: de um lado, fotografias, silenciosas, quase sem tempo e sem lugar, do outros, sons e imagens em movimento que reconhecemos do Bairro das Fontainhas. Fotografia e cinema, ambos testemunhos mundanos de sítios e pessoas. Entretanto, adensam-se rumores e ecos do que ainda está para vir e ver. A fragilidade e o sofrimento humanos ganham sentido na fotografia de Josef Koudelka, realizada em 1968 na Checoslováquia, e num desenho do artista expressionista alemão Max Beckmann, intitulado Descida da Cruz, mas são os gritos e a música de uma cena de Give Us This Day, de Edward Dmytryk que despertam a atenção, que assustam, que afligem. Ela torna visível o drama dos homens que construíram os arranha-céus de Nova Iorque, outro Ventura entre tantos Venturas na história da humanidade. Pedro Costa insiste em lembrar que o cinema também esteve ao serviço os homens comuns, quando os libertou, pela ficção, do olvido, quando dramatizou as suas vidas: “Vejam. Não se esqueçam”, segreda. Esta frase ganha uma força mais intensa diante da instalação das fotografias de mulheres, homens, crianças, famílias que Jacob Riis realizou em 1890 no início do século XX, nos bairros mais pobres de Nova Iorque. Numa sala escurecida, cada imagem ocupa uma coluna, pedindo para ser vista individualmente, a uma escala humana. É um memorial coletivo que a fotografia tornou possível e em que cada imagem, ressuscita, por instantes, no encontro que o espectador lhe proporciona, as figuras fotografadas. Memorial que temos de atravessar para ver Sweet Exorcist. E aí voltar a escutar o medo de Ventura, o medo de que será esquecido, de que ninguém o lembrará. E, então damo-nos conta, de que Pedro Costa, na companhia dos seus amigos, vivos e mortos, não só não o esqueceu, como o salvou, se não com felicidade, certamente com a ousadia de quem correu, acompanhado, pelas salas do museu.
REFERÊNCIAS:
Os elefantes começam a sair da sala. Ou a entrar
A doutrina Obama é liderar com o apoio dos aliados e privilegiar a diplomacia. (...)

Os elefantes começam a sair da sala. Ou a entrar
MINORIA(S): Asiáticos Pontuação: 2 Animais Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: A doutrina Obama é liderar com o apoio dos aliados e privilegiar a diplomacia.
TEXTO: Os cubanos gostam mais de Obama ou dos irmãos Castro? A pergunta seria inconcebível num país em que o regime comunista sobreviveu (mal) ao fim da Guerra Fria, sem o apoio soviético e com o embargo americano. Já não é. Uma sondagem encomendada pelo Washington Post revela que os cubanos gostam mais de Obama e do Papa Francisco do que de Raúl Castro ou mesmo Fidel. Não havia sondagens antes do início do fim da inimizade entre Cuba e os EUA, conseguida pelo Presidente americano em finais do ano passado. É um gesto de enorme simbolismo, que vai permitir aos Estados Unidos encontrar um lugar muito mais confortável na cimeira das Américas que hoje começa no Panamá e na qual Cuba vai participar pela primeira vez. A reconciliação cubana não tem o alcance estratégico do acordo obtido em Lausanne sobre o programa nuclear iraniano. Mas vai mudar muitas coisas. O embargo dos EUA era um resíduo tóxico da Guerra Fria, que acabou por funcionar a favor do regime castrista e servir a retórica populista de vários governos latino-americanos. Agora, seja qual for o caminho para o restabelecimento de relações entre os dois países, os cubanos acreditam que vão chegar melhores tempos. O elefante estava na sala mesmo sem estar presente. O longo aperto de mão de Obama a Raúl Castro na cerimónia de despedida de Mandela, em Joanesburgo, causou a maior das perplexidades. A explicação acabou por surgir quando os dois Presidentes anunciaram publicamente que estavam dispostos a virar a página. Obama prometeu estender a mão aos inimigos. “Na base do interesse mútuo e do respeito mútuo”. O método utilizado para Havana ou para Teerão foi o mesmo. Garantir secretamente que a outra parte estava interessada num entendimento e aplicar a “diplomacia do telefonema”. Tomou a iniciativa de telefonar a Castro para uma longa conversa. Quando Hassan Rohani, o moderado Presidente iraniano, foi eleito no Verão de 2013, outro telefonema, igualmente inédito, abriu as portas à negociação. Depois dos anos de George W. Bush e do “momento unipolar da América”, o seu sucessor deu garantias suficientes aos seus inimigos de que o seu objectivo não era o “regime change”. As guerras no Iraque e no Afeganistão foram um exemplo de que o poderio militar está longe de resolver tudo. A doutrina Obama é liderar com o apoio dos aliados e privilegiar a diplomacia. Quando chegou à Casa Branca, Obama tinha duas guerras para acabar, mas tinha, em primeiro lugar, de fazer frente à crise económica brutal que sucedeu ao crash de Wall Street e levou à maior recessão desde a Grande Depressão dos anos 30. Hoje, a economia americana volta a aquecer os motores. De novo, a liderança científica e tecnológica consegue restituir algum brilho à maior economia do mundo. Foi um erro de cálculo de amigos e de inimigos acreditar que o declínio americano era inevitável. As grandes economias emergentes que acreditaram que tinha chegado a sua hora, voltam as fazer as contas. O Brasil descobriu que o crescimento económico assente no preço das “commodities” não é sustentável. O preço baixou e o modelo de desenvolvimento de Dilma, apoiado no intervencionismo do Estado e no consumo interno, fracassou. Há pouco mais de um ano a Presidente brasileira cancelou uma visita oficial a Washington em protesto contra as escutas da NSA. Percebeu depressa que não tinha sido uma boa ideia e passou os últimos meses a tentar remarcar a visita. Os tempos em que o Brasil de Lula se considerava no topo do mundo já passaram. Sem a presença de Cuba, cabia a Hugo Chávez o papel de acusador-mor dos Estados Unidos, tarefa que desempenhava na perfeição. O estado da economia venezuelana vai obrigar Nicolás Maduro a moderar o discurso e a perder protagonismo. Raul Castro estará presente para compartilhar a ribalta com Obama. Muitas das críticas feitas à falta de atenção do Presidente aos seus parceiros do hemisfério ocidentais são justas. A América Latina é um continente em paz, em forte contrastes com o resto do mundo, mas tem pela frente o enorme desafio de combater um nível de desigualdade sem paralelo, que só o crescimento permitirá. Hoje, em todos os continentes, as virtualidades do modelo americano são desafiadas pela crescente presença chinesa. A batalha económica é igualmente importante.
REFERÊNCIAS:
Quem diria que há mais de 245 milhões de anos um réptil já dava à luz
Encontrado na China em 2008, o fóssil de um Dinocephalosaurus trouxe uma grande novidade: um antepassado distante dos crocodilos já não chocava ovos. (...)

Quem diria que há mais de 245 milhões de anos um réptil já dava à luz
MINORIA(S): Asiáticos Pontuação: 2 Animais Pontuação: 7 | Sentimento 0.5
DATA: 2017-02-15 | Jornal Público
SUMÁRIO: Encontrado na China em 2008, o fóssil de um Dinocephalosaurus trouxe uma grande novidade: um antepassado distante dos crocodilos já não chocava ovos.
TEXTO: Afinal, já havia alguns répteis arcossauromorfos que davam à luz as crias há cerca de 245 milhões de anos. Enganaram-nos bem, estes répteis marinhos extintos que pertencem a um grupo que mais tarde deu origem aos dinossauros, às aves modernas e aos crocodilos. Até agora, pensava-se que chocavam os ovos, tal como as aves e os crocodilos. Mas um fóssil encontrado na China não deixou que esta questão ficasse em claro na história evolutiva. Tudo graças à posição da cabeça de um embrião “dentro” do fóssil. De pescoço bem longo e formados por um grande número de vértebras cervicais, um grupo de répteis arcossauromorfos do género Dinocephalosaurus nadava pelas águas superficiais do Sul da China há mais de 245 milhões de anos. Estávamos no Triásico, período geológico entre há 235 e 195 milhões de anos. Este animal marinho andava sempre em busca de presas em pleno mar. Aliás, a forma como as comia é uma pista importante para o que virá a seguir. O arcossauromorfo começava por comer a cabeça e depois o corpo das presas, para conseguir digeri-las melhor. Mas voltemos ao presente, ou à forma como este réptil, entre os antepassados distantes das aves, dos crocodilos e de dinossauros extintos, voltou ao presente. Em 2008, um fóssil do género Dinocephalosaurus foi encontrado em escavações no Geoparque Nacional de Luoping, na província de Yunnan, no Sudoeste da China. Cheio de calcário, o fóssil estava dividido em três blocos, devido ao desgaste provocado por solo. Feita a descoberta, foi levado para os Serviços Geológicos da China, em Chengdu, para ser preparado e estudado. É aqui que entra Jun Liu, paleontólogo da Universidade de Tecnologia de Hefei, na China, e dos Serviços Geológicos chineses. Foi ele que preparou o fóssil. A preparação terminou em 2011 e foi então que o paleontólogo teve uma grande surpresa: “Fiquei tão empolgado quando vi pela primeira vez que o fóssil tinha um embrião dentro de si. ” Mas com o entusiasmo vieram também as dúvidas: “Não tinha a certeza se este embrião era a última refeição do réptil ou uma cria ainda por nascer. ” Esta questão não foi resolvida de imediato. Jun Liu estava a preparar também a sua tese de doutoramento e foi para a Austrália durante um tempo. Apenas voltou à China e ao réptil em 2014 – e, até 2016, tentou perceber se o embrião estava por nascer ou se era uma presa. Olhou com atenção para o embrião e onde estava alojado. Reparou que estava na caixa torácica do réptil e tinha a cabeça para cima, virada para a garganta do arcossauromorfo. Ora, como vimos, as presas comidas por estes répteis estavam com a cabeça para baixo, porque comiam primeiro a cabeça e depois o resto do corpo. Portanto, o embrião dentro do arcossauromorfo ainda estava por nascer. Isto quer dizer que estes répteis já desenvolviam o embrião dentro se si, tal como acontece com as cobras e os lagartos. Juntamente com colegas que ajudaram a desvendar este fóssil, Jun Liu publicou este trabalho na revista Nature Communications. “É a primeira prova de sempre de que um grupo de animais, que antes só se pensava que chocava ovos, afinal dava à luz”, afirma ao PÚBLICO Jun Liu, acrescentando que, até agora, só se conheciam arcossauromorfos que punham ovos 50 milhões de anos mais novos do que o Dinocephalosaurus. Mais questões foram levantadas com este trabalho: como é que o sexo dos arcossauromorfos era determinado? Hoje em dia, sabe-se que répteis, como os crocodilos, determinam o sexo das crias através da temperatura do ninho, enquanto as aves e os mamíferos o determinam geneticamente. Para resolver este enigma, Chris Organ, biólogo da Universidade Estadual do Montana (EUA), especializado em paleontologia e genética, foi contactado para ajudar a desvendar esta questão. Assim, foi possível perceber que o arcossauromorfo definia o sexo das crias através da genética. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Já em estudos anteriores havia sido observado que a determinação do sexo tinha sido facilitada pela passagem da terra para a água dos animais amniotas (animais cujos embriões estão rodeados por uma membrana amniótica) e pela evolução do parto. A nova descoberta trouxe agora ao de cima uma peça essencial para perceber o processo evolutivo que os amniotas tiveram de fazer para “reinvadir” os habitats existentes em mar aberto. “No mar aberto, as temperaturas são relativamente estáveis. Este tipo de ambiente beneficia os amniotas, que dependem das temperaturas para determinarem o seu sexo. Portanto, os répteis que determinam o seu sexo geneticamente adaptam-se melhor ao mar aberto”, explica Jun Liu. “A nossa descoberta reforça a hipótese de que a determinação do sexo é facilitada pela transição da terra para a água dos amniotas e pela evolução do parto”, acrescenta o paleontólogo. Esta nova descoberta traz assim mais pistas sobre a reprodução deste grupo de arcossauromorfos e da própria evolução dos amniotas. Mais uma vez, algo que pensávamos tão certo, como um réptil antepassado das aves e dos crocodilos a chocar um ovo, foi quebrado. Quem diria…
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
China registou aquele que será o primeiro caso de transmissão humana do vírus H7N9
Conclusão de estudo após análise de caso de pai e filha registado na China em Março deste ano. (...)

China registou aquele que será o primeiro caso de transmissão humana do vírus H7N9
MINORIA(S): Asiáticos Pontuação: 2 Animais Pontuação: 7 | Sentimento 0.125
DATA: 2013-08-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: Conclusão de estudo após análise de caso de pai e filha registado na China em Março deste ano.
TEXTO: Em Março passado, na China, um homem foi infectado com o vírus da gripe das aves H7N9 depois de ter visitado um mercado. A filha, que o acompanhou desde os primeiros sintomas e durante a sua hospitalização, contraiu o mesmo vírus. A diferença é que a mulher não teve contacto com estes animais. Ambos morreram. Seis meses depois, um estudo revela que este terá sido o primeiro caso de transmissão do vírus de pessoa para pessoa. Até então, tudo apontava que os seres humanos eram infectados após o contacto com aves de capoeira. Em Maio, uma investigação feita por cientistas chineses, divulgada pela revista Science, revelava que “o vírus emergente da gripe humana H7N9 é infeccioso e transmissível entre mamíferos”. Até então a possibilidade de ter ocorrido uma transmissão humana não tinha sido confirmada. Esta quarta-feira, o British Medical Journal avança que no caso registado em Março, na China, a transmissão do H7N9 terá sido feita do pai, que esteve em contacto com aves num mercado, para a filha, que apesar de não ter estado próximo destes animais contraiu o vírus. Isso só terá sido possível por ter estado exposta ao H7N9 que tinha infectado o pai, um homem com 60 anos e com um historial de hipertensão. O homem manifestou os primeiros sinais da doença – febre, tosse e dificuldades respiratórias – seis dias depois de ter estado em contacto com as aves. Durante todo esse período e enquanto esteve hospitalizado, desde o dia 11 de Março, a sua filha esteve sempre presente e sem qualquer protecção contra uma possível infecção. Seis dias após ter tido o último contacto com o pai, a mulher, de 32 anos, desenvolveu os mesmos sintomas atribuídos ao H7N9. Foi internada a 24 de Março. A doente morreu a 24 de Abril devido a uma falha múltipla de órgãos, a mesma explicação para a morte do pai, dez dias depois. Análises realizadas às duas vítimas revelaram duas estirpes do vírus geneticamente quase idênticas. Quarenta e três pessoas que tiveram contacto directo com ambos foram também analisadas. Apenas uma delas revelou sinais de uma infecção ligeira mas sem a presença do vírus H7N9. “Estas descobertas sugerem que o potencial da sustentabilidade genética pode ser um dos determinantes e que o vírus da gripe aviária, como o H5N1, são mais facilmente transmitidos entre indivíduos com uma ligação genética”, assume a investigação divulgada esta quarta-feira. A equipa de cientistas chineses conclui, assim, que “a infecção da filha resultou provavelmente do contacto com o pai durante uma exposição desprotegida, o que sugere que neste grupo o vírus conseguiu transmitir-se de pessoa para pessoa”. O relatório sublinha, no entanto, que a “transmissibilidade [do vírus] é limitada e não-sustentável”, já que não houve um surto após os primeiros casos reportados. “Ameaça do H7N9 ainda não passou”Num editorial que acompanha a investigação, James Rudge e Richard Coker, da London School of Hygiene and Tropical Medicine, consideram que esta descoberta não significa que o H7N9 esteja mais perto de se adaptar totalmente aos humanos. A dupla realça que o número de casos de infecção pelo vírus “caiu abruptamente desde Abril, sem casos registados durante várias semanas” apesar de existir a possibilidade de o vírus ressurgir no Outono. O estudo da equipa chinesa “pode não sugerir que o H7N9 não está perto de se tornar na próxima pandemia” mas alerta para a “necessidade de permanecermos extremamente vigilantes: a ameaça que o H7N9 apresenta não passou e todo”, acrescentam. O novo vírus da gripe das aves surgiu em Março, em Xangai. Em pouco mais de um mês, alastrou para outras regiões da China, infectando, segundo os dados da Organização Mundial da Saúde, mais de 130 pessoas, das quais 37 morreram. Desde Abril, não houve registo de novos casos.
REFERÊNCIAS:
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