Embora mais escondido, o sexismo continua a existir nas universidades portuguesas
Socióloga Maria do Mar Pereira publica livro em que conclui que há comentários sexistas e homofóbicos nos corredores da academia portuguesa. (...)

Embora mais escondido, o sexismo continua a existir nas universidades portuguesas
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 9 | Sentimento 0.166
DATA: 2017-08-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Socióloga Maria do Mar Pereira publica livro em que conclui que há comentários sexistas e homofóbicos nos corredores da academia portuguesa.
TEXTO: Se é homem e chora, está a reagir como uma mulher. Ou se é mulher e tem um “grande” decote, alguém vai comentar. Ou ainda, se se interessa por temas relacionados com género é porque é homossexual. Estes são alguns dos comentários ou situações sexistas que a socióloga Maria do Mar Pereira diz existirem nas universidades portuguesas, como revela no livro Power, Knowledge and Feminist Scholarship: an Ethnography of Academia (ou Poder, Conhecimento e Investigação Feminista: Uma Etnografia da Academia), apresentado esta quinta-feira no simpósio “Sexismo nas Universidades Portuguesas”, no Centro de Cultura e Intervenção Feminista (CCIF-UMAR), em Lisboa. Já se tinham realizado estudos sobre a discriminação de género nas universidades portuguesas, como a diferença de salários entre homens e mulheres ou a percentagem de mulheres que ocupam cargos de gestão nas universidades. Mas Maria do Mar Pereira, que actualmente é investigadora e docente na Universidade de Warwick (no Reino Unido), quis saber como é que nas instituições portuguesas se falava sobre as questões de género e como eram tratados investigadores e estudantes em relação a este tema. “Interessava-me perceber quais eram as representações do sexismo na universidade em Portugal”, conta ao PÚBLICO Maria do Mar Pereira. E o que é o sexismo? “As pessoas pensam que é apenas a discriminação das mulheres, mas, na realidade, significa mais do que isso”, responde. “É uma discriminação que tem como base ideias de como devem ser os homens e as mulheres. Esse sexismo é aplicado tanto a homens como a mulheres que não encaixam nas ideias do que é um comportamento certo para um homem e para uma mulher. ” Um dos exemplos que dá é a associação da masculinidade à virilidade. Como tal, iniciou um projecto em 2006, no seu doutoramento, com financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Entre 2008 e 2009 fez entrevistas a quase 40 docentes, investigadores e estudantes – tanto homens como mulheres – de oito universidades de Norte a Sul do país. E também fez entrevistas a pessoas fora da faculdade, como a trabalhadores da FCT: “Têm uma visão que é um pouco diferente da de quem é cientista e quem é estudante. ” Observou também mais de 50 eventos e reuniões públicas ou fechadas na área das ciências sociais e das humanidades. Anos mais tarde, entre 2015 e 2016, voltou a entrevistar 12 das pessoas já estudadas. Ao longo do seu trabalho, alguns dos comentários mais frequentes foram sobre a depilação das mulheres ou sobre o uso de um “grande decote”. Ou até mesmo em sala de aula, quando alguém disse: “Alguma verdade deve haver quando se diz que os homens são melhores do que as mulheres. ” Maria do Mar Pereira explica que essa pessoa teve a intenção de fazer uma piada, mas há algo mais complicado por trás: “Há muita investigação que demonstra que o humor é usado pelas pessoas para dizerem coisas em que acreditam e para não serem responsabilizadas”, explica. Maria do Mar Pereira fala-nos também do “duplo padrão”, em que um mesmo comportamento de um homem ou de uma mulher é avaliado de forma diferente. “Um exemplo no meio académico é quando os homens criticam o trabalho de colegas são considerados inteligentes. Quando uma mulher critica o trabalho de outras pessoas, é considerada problemática, má e ressabiada. ”Estas situações existem em todos os sítios da universidade: durante a tomada de decisões, nas salas de aula, em congressos, em reuniões entre professores e alunos, nos corredores, nas redes sociais, nas associações de estudantes ou nas praxes. A que conclusões chegou? “Existe sexismo diário entre docentes, entre estudantes, em todos os níveis e em todas as dimensões da vida universitária. ” E ainda explica, num comunicado de imprensa, que hoje há um maior reconhecimento das questões de género no discurso oficial das universidades, que é mais cuidado e igualitário, o que não se verifica na vida universitária mais quotidiana. E considera que isso pode afectar directamente a carreira de quem passa pelo sexismo: “Conheço casos de pessoas que não completaram os seus cursos ou que tiveram de sair de instituições, porque não viam maneira de ver resolvido e castigado o assédio sexual a que estavam sujeitas. ”Para a socióloga, o sexismo é mais invisível nas universidades porque são considerados espaços de liberdade, de questionamento da sociedade e de meritocracia. “Somos capazes de acreditar que [o sexismo] aconteça nas empresas, mas de alguma maneira pensamos que os cientistas são mais críticos ou educados. A verdade é que o estudo demonstra que há sexismo, tal como noutras áreas da sociedade, e que esse sexismo se torna mais invisível, precisamente porque estamos à espera de que não exista nas universidades. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O que se deve fazer então? “Acho que não é possível esperar que as universidades façam espontânea e voluntariamente qualquer coisa para resolver estas questões. ” Para a investigadora, a estrutura das universidades é demasiado fechada e renova-se pouco. Portanto, esta é uma questão que deve envolver o governo, as secretarias de Estado, os movimentos sociais e os media, para que se promova o debate público e se criem medidas. Além disso, devem ser feitas campanhas para tornar visível este tipo de situações. E dá uma sugestão para as disciplinas nos cursos: “Parece-me fundamental que se encoraje o debate das questões de género dentro dos programas de licenciaturas e mestrados. Por exemplo, em Inglaterra, no meu departamento [de Sociologia] é obrigatório que toda a gente das ciências sociais faça uma cadeira sobre género. ”Quanto ao livro, foi publicado pela editora internacional Routledge, já tinha sido apresentado na sua universidade este ano e em Agosto vai ser lançado no Brasil. É possível comprá-lo por um “preço exorbitante”, como diz, por cerca de 28 euros em e-book e em papel por 102 euros. Estará disponível na biblioteca do CCIF-UMAR e de algumas universidades portuguesas. Para que, sublinha Maria do Mar Pereira, o sexismo nas universidades seja mais visível e combatido.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens cultura mulher homem género estudo sexual mulheres homossexual feminista assédio discriminação
Todos os corpos, todos os amores
British Queer Art 1861-1967, na Tate Britain, explora uma complexidade de histórias, vidas e identidades por descobrir e contar. Ou como um conjunto de figuras, num mundo distante das movimentações LGBT, criaram um espaço de liberdade e de expressão para as suas obras e vidas. (...)

Todos os corpos, todos os amores
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 9 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-22 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20170622080857/https://www.publico.pt/n1775379
SUMÁRIO: British Queer Art 1861-1967, na Tate Britain, explora uma complexidade de histórias, vidas e identidades por descobrir e contar. Ou como um conjunto de figuras, num mundo distante das movimentações LGBT, criaram um espaço de liberdade e de expressão para as suas obras e vidas.
TEXTO: Esta exposição, British Queer Art 1861-1967, é um princípio. Aqui, no sentido de corresponder não ao estabelecimento de uma teoria e de uma definição do que foi a arte queer em Inglaterra, mas o de uma tentativa não tanto de mapear documentos, imagens e objectos mas de explorar a complexidade de um conjunto de histórias, vidas e identidades que estão por descobrir e contar. Trata-se de uma exposição histórica porque se fixa num período marcado por dois acontecimentos determinantes: a abolição da pena de morte por sodomonia em 1861 e a descriminalização parcial do sexo entre homens em 1967. E trata-se de uma exposição local porque se concentra na produção artística produzida em Inglaterra durante aquele período. Ainda assim é um caso interessante de como um conjunto de figuras, ainda distantes da forma que os movimentos LGBT irão assumir posteriormente, conseguem criar um espaço de liberdade e de expressão não só para as suas obras, mas também para as suas vidas. Este é um dos pontos mais interessantes da exposição da Tate Britain: não se concentra tanto na maneira como a identidade de género de diferentes artistas era expressa numa pintura, numa escultura ou num poema, mas no modo como para estes autores as suas obras artísticas foram instrumentos de criação de uma identidade. Ainda que possam fixar limites cronológicos e geográficos, a história que aqui se conta é uma história complicada de sexualidades e desejos a maior parte das vezes escondidos e dissimulados. Se com os universos sociais e artísticos de nomes como Virginia Woolf ou Oscar Wilde é fácil estabelecer uma relação, na maior dos casos ela está velada e, por isso, como explica a curadora Clare Carlow, esta é uma história difícil de contar porque, disse ao The Guadian, as obras demonstram atitudes muito diferentes que vão desde a ansiedade à celebração. E dá como exemplo a pintura de Walter Crane (1845-1915) de 1877, O renascimento de Vénus: “A mulher de Crane não queria que o marido pintasse e visse modelos femininas nus, por isso em vez de uma modelo para a sua deusa do amor ele usou um modelo novo bem conhecido chamado Alessandro di Marco. Mas este truque desmorou-se quando o pintor Frederick Leighton viu o trabalho na primeira exibição da pintura da Galeria Grosvenor naquele ano e gritou: ‘Mas meu querido, isso não é Afrodite, é Alessandro!’, supostamente acrescentando que, na luz do sol italiana, o menino passou por Venus. ” Esta história é interessante porque numa era que condenou as mulheres por se exporem despidas diante dos artistas, é o corpo masculino que assume o lugar central nesse universo sensual e formal feminino que inspirou tantos artistas. Tate Britain. Até 1 de OutubroE que a arte seja lugar de articulação de desejo e sensualidade é também o que dá fama a outra pintura famosa nesta exposição em que a artista se auto-representa enquanto contempladora de um nu feminino. Auto-Retrato com Nu [Self Portrait with Nude, 1913] de Laura Knight (1877-1970), foi vista muitas vezes como perigosa, repelente e vulgar, nas palavras de um crítico do Daily Telegraph. Trata-se de uma obra com qualidades formais evidentes, como a invulgar utilização de cores, a sobreposição de diferentes planos espaciais, a composição complexa em que a artista usa um jogo de espelhos para representar o seu próprio atelier e a sua actividade de pintora. No entanto a Royal Academy recusou-se a expor a pintura, ainda que depois em 1936 fizesse desta artista a primeira mulher a receber o estatuto de membro permanente. A recusa baseava-se não tanto em questões artísticas, mas no modo como se tratava de uma obra crítica em primeiro lugar da proibição vigente em Inglaterra que impedia as estudantes de participarem nas aulas de modelo vivo: em contraste com o seus colegas homens, tinham de pintar os corpos a partir de representações e obras pré-existentes e esta pintura é um claro desafio a essa norma por colocar no espaço do atelier de uma artista um corpo nu feminino a ser pintado; em segundo lugar, através da duplicação de corpos, Auto-Retrato com Nu pode ser entendida como lugar de desejo feminino e da sua afirmação. Outro exemplo desta codificação do desejo é Bathing (1911) de Duncan Grant (1885-1978, onde a representação do corpo masculino se caracteriza por um enorme erotismo. Esta pintura, feita a partir de um convite de Roger Fry para as salas do Borough Polytechnic (agora London South Bank University), surge na exposição não só como expressão do modo como o artista vivia abertamente os seus amores masculinos apesar de viver com Vanessa Bell e ter tido com ela uma filha, mas também por ser uma importante figura do Grupo de Bloomsbury: artistas, escritores e intelectuais conhecidos por viverem numa zona de Londres que deu nome ao grupo, mas igualmente porque as suas posições políticas foram determinantes na definição e discussão contemporâneas do femininos e da sexualidade. Não se tratou de um grupo formal, mas de um colectivo de amigos (os nomes mais famosos são Virginia Woolf, John Maynard Keynes, E. M. Forster e Lytton Strachey) que viviam, estudavam e muitas vezes trabalhavam em conjunto, rejeitando as convenções sociais da vida victoriana e regendo-se por ideias de liberdade, amor e criatividade muito próprias. Apesar do envolvimento em organizações políticas (Virginia Woolf foi uma voz fundamental no movimento sufragista) não se tratou de um grupo activista, mas a maneira como viviam as suas vidas, e isso transparecia no seu trabalho, tornou as suas obras marcos de resistência e elementos fundamentais na definição e representação de modos de vida diferenciados — como por exemplo a aceitação do amor entre sexos iguais. É importante o modo como a exposição realça estas outras presenças e não se concentra excessivamente na figura de Oscar Wilde — acusado de indecência pública em 1895 — como representante único das vozes dissidentes do conservadorismo vitoriano. Apresenta outras formas e outras modalidades de dissidência artística e política. Claro que Wilde é central nesta história de amores proibidos e na luta política pelo poder de auto-determinação, mas importa perceber que as tensões presentes no seu caso não são exclusivas do amor homossexual, mas atravessam todos os géneros. Não que esta seja uma exposição acerca das políticas de género, mas ela resulta da expressão artística em tornar possível todos os corpos, todos os amores, todas as sensibilidades. É significativo neste contexto a presença de Claude Cahun (1894-1954), artista de origem francesa que mudou o seu nome de Lucy para Claude, não sem antes ter experimentado ser Douglas, como forma de encontrar na indistinção de género o seu território de presença. A certa altura afirma que o neutro é o único género que lhe serve e é esta ideia de singularidade, com a consequência filosófica e política de negar o pensamento binário masculino ou feminino, que caracteriza a sua obra. Como os seus famosos auto-retratos fotográficos surrealistas em que Cahun vai sendo soldado, ninfa, modelo, figura andrógena, auto-retratos estes que, não só devido aos seus temas mas também à sua forma, estética e motivos, são importantes contributos para a reflexão do uso da fotografia como documentação da realidade e construção da identidade. Uma pintura de Henry Scott Tuke (1858-1929), pertencente à primeira geração de pintores ingleses abertamente gay, chamada Os críticos (1927), é particularmente interessante no contexto da relação entre expressão artística e a representação de género. Mostra dois homens, um deles despido e outro em tronco nu, que em terra olham (admiram?) um terceiro dentro de água. O nu masculino e a sua eroticização não é estranho na obra deste pintor. O que torna esta pintura um elemento determinante na construção da narrativa da exposição é o modo como o seu título nos reenvia para a questão do modo este tipo de tema artístico implica não só um desafio das normais sociais, mas um importante questionamento das políticas da representação, bem como das regras seguidas na construção do cânone da história da arte: os críticos evocados no títulos não são elementos distantes, mas estão implicados no interior da cena da pintura e são um dos seus elementos. À relação da distância e autoridade dos críticos a pintura propõe uma relação de proximidade, cumplicidade e igualdade. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Esta é uma exposição importante porque é um imenso contributo para uma história, ainda por fazer, das políticas e expressões de género na história da arte. Mas também porque impede a naturalização da maneira como estes artistas e estas obras se ligam a vivências e consciências que não podem ser eliminadas por mais que os seus autores e obras façam agora parte do panteão dos reconhecidos com obras avaliadas e comercializadas por milhões. A exposição termina com Francis Bacon e David Hockney porque em ambos os casos já não há qualquer ambiguidade no modo como destemidamente preenchem as suas obras com conteúdos homoeróticos. Mas é preciso não esquecer que as mesmas razões que nos levam hoje a considera-los paradigmáticos e centrais na história da arte ocidental, são as as mesmas que fizeram, por exemplo, uma exposição de Bacon em 1955 ser investigada por obscenidade e o trabalho de Hockney descrito como propaganda homossexual. Não se trata de fazer do contexto histórico e social dos autores elemento único de determinação das obras de arte e negar a autonomia da arte. Mas porque as coisas que os artistas fazem constituem não uma história de coisas mas uma história do mundo é importante não esquecer as narrativas que alimentam e motivam essas obras e que, em alguns casos, são o seu conteúdo. É importante insistir no texto político e dissidente existente em muitas construções artísticas e resistir a uma história da arte apressada, mais interessada em produzir clássicos instantâneos, como escreveu Allison Gingeras, para um mercado de arte global do que em compreender, com rigor, as diferentes dinâmicas criativas na sua relação com o mundo.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte homens filha mulher social sexo igualdade género mulheres corpo sexualidade homossexual gay lgbt ansiedade
Dia Mundial da Saúde Sexual assinala-se hoje pela primeira vez
O Dia Mundial da Saúde Sexual assinala-se hoje pela primeira vez e tem como objectivo trazer a debate problemas como a falta de acesso a serviços de aconselhamento, a discriminação em questões de orientação sexual ou a mutilação genital feminina. (...)

Dia Mundial da Saúde Sexual assinala-se hoje pela primeira vez
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 9 | Sentimento 0.375
DATA: 2010-09-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Dia Mundial da Saúde Sexual assinala-se hoje pela primeira vez e tem como objectivo trazer a debate problemas como a falta de acesso a serviços de aconselhamento, a discriminação em questões de orientação sexual ou a mutilação genital feminina.
TEXTO: Em Portugal, a Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica (membro da Associação Mundial de Saúde Sexual) e a Associação para o Planeamento da Família (APF) juntaram-se “na luta mundial pelo reconhecimento e implementação da saúde sexual e dos direitos sexuais”. O director executivo da APF, Duarte Vilar, explicou que “é fundamental o aparecimento deste novo dia”. As questões da saúde sexual e dos direitos humanos no campo da sexualidade é uma matéria muitas vezes falada na comunicação social, mas “o facto de haver um dia no ano reforça o debate”, considera. Para o responsável é necessária a análise sobre os “direitos das pessoas na sua vida sexual, as violações que ainda existem [em Portugal] e outras sobre a liberdade sexual, como a mutilação genital feminina, a falta de acesso a educação sexual ou a serviços de saúde que possam prestar ajuda a pessoas que estejam a passar por dificuldades de tipo sexual e que no nosso país são muito raros, quase inexistentes”. Aliás, esta é a área apontada como “um problema bastante relevante” em Portugal. “Se falarmos de educação sexual nas escolas ou fora de escolas, houve avanços significativos”, mas em termos dos serviços de aconselhamento e terapia sexual registou-se “uma involução porque houve encerramento de períodos de serviços ou mesmo de serviços que prestavam cuidados nessa área”, afirmou Duarte Vilar. A discriminação em relação às questões da orientação sexual e da homossexualidade é outro aspecto referido, tal como a mutilação genital, um problema que “não é acentuado em Portugal” e pode não ocorrer no país, mas “há testemunhos de casos de mulheres e crianças vítimas desta prática” e que vivem em território nacional. Para as associações nacionais, em Portugal “falta ainda conquistar” a generalização da educação sexual em meio escolar, a lei da identidade de género não discriminatória, o acesso mais eficaz ao planeamento familiar de pessoas de meios desfavorecidos, a eliminação da violência de género e violência doméstica ou a inclusão de conteúdos programáticos sobre sexualidade humana na formação de base de profissionais de saúde e educação.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos lei humanos violência campo educação ajuda social género sexual mulheres doméstica sexualidade feminina discriminação
Os Emmys foram um jogo Netflix contra HBO... e no fim ganhou A Guerra dos Tronos
Uma noite marcada por um pedido de casamento em palco: os Emmys deram 23 prémios a cada um dos dois grandes "canais" concorrentes e foram um espectáculo entre o poder do blockbuster dos dragões e o poder da comédia feminina da Amazon The Marvelous Mrs. Maisel. Veja a lista dos principais vencedores. (...)

Os Emmys foram um jogo Netflix contra HBO... e no fim ganhou A Guerra dos Tronos
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento -0.4
DATA: 2018-11-13 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma noite marcada por um pedido de casamento em palco: os Emmys deram 23 prémios a cada um dos dois grandes "canais" concorrentes e foram um espectáculo entre o poder do blockbuster dos dragões e o poder da comédia feminina da Amazon The Marvelous Mrs. Maisel. Veja a lista dos principais vencedores.
TEXTO: A noite dos Emmys saldou-se com mais uma vitória de A Guerra dos Tronos e a distinção unânime da comédia da Amazon The Marvelous Mrs. Maisel nas principais categorias – e o que é que isso diz sobre a televisão hoje? Que depois de, em 2017, o streaming ter conquistado o primeiro Emmy de melhor série dramática com The Handmaid’s Tale, fenómeno semelhante se produziu este ano na comédia. E diz-nos que a revolução Netflix já está no mesmo patamar que o modelo de distribuição convencional e conseguiu, nesta 70. ª edição dos Emmys, tantos prémios quanto a suspeita do costume há 17 anos, a HBO. Mas sobretudo confirma que na televisão ninguém pára os blockbusters: mesmo não estando há mais de um ano no ar, a fantasia de dragões e gelo criada a partir dos livros de George R. R. Martin foi a mais premiada. A cerimónia dos Emmys que decorreu na madrugada desta terça-feira em Los Angeles não foi uma noite de grandes afirmações sobre o estado da arte nem sobre os muitos temas que trespassaram este pequeno grande meio. E não por falta de tentativas, mas lá iremos. A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas Televisivas rematou uma noite longa com a entrega do Emmy de Melhor Drama à série A Guerra dos Tronos (HBO/SyFy/TVSéries), cuja ausência no ano passado (dada a sua tardia data de estreia) permitiu em parte a vitória de The Handmaid’s Tale (Hulu/Nos Play), que era também a sua mais forte concorrente em 2018. Também distinguiu Peter Dinklage como actor secundário na mesma série – o prémio para melhor actriz secundária numa série dramática foi para Thandie Newton, pela sua prestação em Westworld (HBO/TVSéries). O melhor actor dramático foi Matthew Rhys pela última temporada de The Americans (FX/Fox Crime), série que também recebeu o prémio de argumento mas que viu Keri Russell perder para Claire Foy, que no seu último ano como rainha em The Crown foi premiada como melhor actriz dramática. A real série Netflix foi também distinguida pela realização de Stephen Daldry. A comédia foi uma das duas secções dos Emmys em que a dispersão da noite teve a sua excepção, com The Marvelous Mrs. Maisel a dar o prémio de melhor série à Amazon, de melhor actriz a Rachel Bresnahan, de melhor actriz secundária a Alex Borstein e de melhor argumento e realização a Amy Sherman-Palladino. A autora da popular Gilmore Girls tornou-se assim na primeira mulher a acumular esses dois Emmys. Bill Hader e Henry Winkler venceram respectivamente como protagonista e actor secundário da nova série Barry (HBO/TVSéries). A outra categoria que viu os prémios concentrarem-se foi a de série limitada, com a favorita American Crime Story: O Assassinato de Versace (FX/Fox Life) a ser distinguida pelo protagonista Darren Criss e pelo realizador Ryan Murphy, que subiria ao palco perto do fim da cerimónia também para recolher o Emmy de Melhor Série Limitada – batendo Genius: Picasso (National Geographic), Godless (Netflix), esta consolada pelos prémios de actuação para Jeff Daniels e Merritt Wever, e outras séries ainda por estrear em Portugal. Contra o favoritismo de Laura Dern pelo filme The Tale (HBO/TVCine), Regina King recebeu o prémio para a actuação de uma actriz numa série limitada, por Seven Seconds, também Netflix. O serviço de streaming receberia ainda o prémio de escrita por Black Mirror, pelo episódio USS Callister, batendo, entre outros, David Lynch e Mark Frost por Twin Peaks. Last Week Tonight, de John Oliver (HBO/RTP3), bateu Trevor Noah ou Stephen Colbert, e Saturday Night Live foi a melhor série de variedades. Mas, posto tudo isto, um dos pontos altos da cerimónia foi mesmo o pedido de casamento do realizador Glenn Weiss, que dirigiu os últimos Óscares e aproveitou o seu Emmy para surpreender a namorada e mergulhar uma plateia de estrelas em ovação e lágrimas, gerar uma leva de alertas noticiosos e pôr o Twitter em alvoroço romântico. “O melhor momento da noite”, para o Guardian, suplantou em parte os momentos criados pela Academia e pelos anfitriões da cerimónia, Colin Jost e Michael Che, para serem memoráveis. E distraiu momentaneamente o grande público do que fica no fim do fogo-de-artifício que enfeitou o número musical de abertura – as contas e os jogos de poder entre canais e produtores, mas também o futuro da televisão. “Com os contributos espantosos das pessoas nesta sala, podemos manter a televisão durante uns cinco, seis anos no máximo”, brincava Colin Jost. Os Emmys são os prémios mais importantes da televisão norte-americana, mas também uma cerimónia e uma academia que lutam contra o desfasamento – entre o meio televisivo, as suas audiências e as novas plataformas, entre as séries nomeadas e/ou premiadas e sua popularidade ou valorização crítica. Já lhes foi apontada falta de frescura, pela omissão dos produtos mais disruptivos (este ano, por exemplo, não houve grandes nomeações para Twin Peaks nem vitórias para Atlanta, por exemplo), e já foram pretexto para um estudo do Katz Media Group que, em 2017, o ano de The Handmaid’s Tale, concluía que a maioria dos americanos nunca tinha visto ou sequer ouvido falar de grande parte das séries nomeadas, devido à ausência de séries dos canais generalistas nesse panteão (a excepção este ano foi This is Us mas Uma Família Muito Moderna ou A Teoria do Big Bang não constaram da lista). Os prémios da indústria televisiva constituem, no fundo, um espelho polido da situação actual da televisão, e é aí que entra A Guerra dos Tronos, a série que, sendo da televisão por subscrição, e ainda por cima premium, é um arrasador fenómeno de massas que mal voltou a entrar na corrida levou os prémios que pertenceram à dura série The Handmaid's Tale no primeiro ano de presidência Trump e três semanas antes da eclosão do movimento MeToo. Foi em parte sob as suas sombras que decorreu uma noite partilhada com “as muitas pessoas talentosas e criativas que ainda não foram apanhadas”, como brincou o apresentador Michael Che no número inicial da cerimónia, e com os “milhares na audiência e com as centenas em casa”, como resumiu o outro apresentador, Colin Jost. A sombra do dragão parecia tímida, só com dois grandes prémios, mas a noite terminou mesmo como o célebre aforismo do futebol segundo o qual são 11 contra 11, mas no fim ganha sempre a eficaz máquina da Alemanha – neste caso, a eficaz máquina de A Guerra dos Tronos, que em 2019 chegará ao fim depois de anos de domínio, e que com 45 Emmys já é a série mais premiada de sempre. Com os seus nove prémios em 2018 (as contas finais incluem também os Emmys atribuídos na cerimónia prévia Creative Arts), permitiu em parte que as contas continuassem equilibradas para a HBO – ou empatadas. A histórica casa de Os Sopranos ou The Wire e a nova morada online de Black Mirror ou The Crown receberam 23 Emmys cada depois de, pela primeira vez na história, o Netflix ter tido mais nomeações para os Emmys (112) do que a HBO (108). A Amazon levou mais oito prémios, todos de The Marvelous Mrs. Maisel (cinco na cerimónia desta noite e mais três nos Creative Arts), para o campo do streaming, a que se juntaram os quatro do Hulu, somando um total de 35 distinções para estes novos grandes produtores de TV que tanto investem – é célebre a revelação de que o Netflix gastará 6800 milhões de euros em conteúdos contra os dois mil milhões de um canal incumbente como a HBO. A NBC foi a terceira estrutura mais premiada, com 16 Emmys. Nos últimos dias, escreveu a imprensa especializada, as festas dos Emmys e os mais de cem eventos de promoção para a cerimónia foram dominadas pelas conversas sobre as mudanças no sector, desde as grandes fusões Disney-Fox até às consequências do vendaval de denúncias de casos de assédio, como a saída do poderoso Les Moonves da presidência do canal generalista CBS. Mas na cerimónia propriamente dita os temas foram outros – a ausência de referências directas ao Presidente dos EUA, as mensagens sobre género e a comunidade LGBTQ de Ryan Murphy, e sobretudo a diversidade. Celebrou-se o grupo de nomeados mais diversificado de sempre – “estamos um passo mais perto de um Sheldon negro”, brincaria Kenan Thompson no número musical que dividiu com Kate McKinnon, Kristen Bell e Titus Burgess, entre outros –, e constatou-se que isso é uma trémula vitória – “vêem, não havia nenhuma e agora há uma”, diriam sobre a primeira nomeação para uma actriz de origem asiática no drama, para Sandra Oh, por Killing Eve (BBC America). Os prémios nas principais categorias (vencedores a negrito)Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Os que “amam” muito os touros e os torturam e matam
Acabar com as touradas, com a tortura dos touros para satisfação sádica das massas, é um passo no bom sentido. (...)

Os que “amam” muito os touros e os torturam e matam
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 Animais Pontuação: 21 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-11-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Acabar com as touradas, com a tortura dos touros para satisfação sádica das massas, é um passo no bom sentido.
TEXTO: A ideia de que ser a favor ou contra as touradas é uma questão de liberdade de expressão é um absurdo. Ser a favor ou contra as touradas é uma questão de civilização e, por muito que a palavra esteja gasta, nós sabemos muito bem o que é. É o mundo frágil que nos faz viver melhor, mais tempo, com menos violência do que no passado. É completamente frágil e contraditório, muitas vezes anda para trás e poucas vezes anda para a frente, mas representa o melhor da vida possível, feito por um olhar humanista sobre as coisas, que inclui condenar, limitar, punir a violência. É o mundo em que há direitos humanos, em que os homens e as mulheres são iguais, é o mundo em que as mulheres e as crianças são protegidas da violência doméstica, é o mundo em que o direito de viver de forma livre o sexo é garantido, é o mundo em que a tortura, a pena de morte, o genocídio são condenados, é o mundo em que há liberdade religiosa, de opinião, política, etc. , etc. Sim, é verdade que é também o mundo em que tudo isto não existe, mas escolham. Pode não ser o mundo que temos, mas é o mundo que desejamos. Os animais não podem ter “direitos” equiparados aos direitos humanos, mas faz parte de uma sociedade humana que valorize a ética e combata todas as formas de violência olhar para os animais com um sentimento de especial proximidade que está para além da domesticidade. Os movimentos a favor dos animais, ou melhor, os movimentos contra a crueldade com os animais, fazem parte da tradição humanista dos séculos XIX e XX. A ideia central era que o modo como tratamos os animais era um sinal de como tratávamos os homens, a crueldade contra os animais era um sinal de uma violência institucionalizada que não se limitava aos animais, mas se estendia aos homens, mulheres e crianças. Não me estou a referir a nenhuma das variantes radicais modernas dos direitos dos animais que fazem parte da moda dos nossos dias. Não é isso, não tem que ver com aviários, nem com matadouros, nem com as mil e uma formas de industrialização da produção de alimentos, algumas das quais ganhavam em ser menos cruéis. Nem com a caça. A caça tem um valor económico, e tem um papel no controlo das espécies, e é cada vez mais moldada pela lei de modo a que o seu carácter lúdico seja subordinado a estas necessidades. Tem que ver com as touradas. Podem dar as voltas que quiserem, mas as touradas são a exibição pública da tortura de um animal, que é esfaqueado para enfraquecer e depois, no caso das touradas de morte — que todos os defensores das touradas desejavam poder ter sem limitações —, ser morto. As touradas vivem do sangue, da dilaceração da carne, do cansaço até ao limite e da morte. Podem ter todos os rituais possíveis, ter toda a “arte” de saracotear à volta de um bicho, mas as touradas não são uma arte, são a exibição circense de um combate desigual entre homens e animais, cuja essência é a sua tortura para gáudio colectivo. Não é um combate de iguais. Na verdade, os combates de cães e de galos — proibidos não se sabe porquê à luz da permissão das touradas — são muito mais um combate entre iguais do que o homem de faca e o touro sem armas a não ser os chifres, que muitas vezes são embolados. Mas é o sangue e a morte que fazem o espectáculo e, ao serem um espectáculo, são um sinal de barbárie. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O argumento da tradição também não é argumento. Se há coisas que a tradição encobre é um vasto conjunto de práticas que felizmente hoje são consideradas inaceitáveis, desde a violência doméstica à discriminação dos homossexuais, à excisão feminina, à pena de morte, à legitimação da tortura. Se aceitamos que a “tradição” por si só legitima a violência e crueldade, então podemos voltar ao “cá em casa manda ela e quem manda nela sou eu” e toca de lhe bater. Os argumentos dos defensores das touradas são a versão portuguesa dos argumentos da National Rifle Association nos EUA, que também se identifica como uma “associação de direitos civis” e usa o argumento da tradição para justificar uma sociedade banhada de armas e em que a violência dos massacres é sempre culpa de outra coisa que não sejam as armas. As histórias ridículas de como os defensores das touradas “amam os touros” (sic), de como prezam a valentia dos animais, de como o “touro bravo” enobrece os campos do Ribatejo, para depois ser trazido à arena de tortura e morte como se esse fosse o seu destino teleológico, a cultura machista da “coragem” perante os mais fracos (o touro é o mais fraco dentro da praça), devem pouco a pouco envelhecer no passado. É isso mesmo que chamamos civilização. O mundo em que vivemos é duro, desigual, injusto, violento. Quem saiba história sabe que não há maneira de o tornar limpinho, higiénico, pacífico, nem em séculos, quanto mais numa geração. Mas acabar com as touradas, com a tortura dos touros para satisfação sádica das massas, é um passo no bom sentido. Porque senão vivemos na pior das hipocrisias em que matar ou tratar mal um cão e um gato pode levar à prisão — e bem —, mas em que no meio de cidades e vilas de uma parte do país podemos aplaudir a tortura, o sangue e a morte.
REFERÊNCIAS:
O corpo de Jota Mombaça é um manifesto
Escreve e faz performance das suas ideias em torno das relações entre monstruosidade e humanidade, “estudos kuir”, justiça anti-colonial... fica-se com a impressão de que não apenas devorou teoria com a urgência de quem quis sobreviver, mas que esta lhe atravessou o corpo. Esteve na Bienal de Berlim com uma performance, está este domingo na Foz do Porto. (...)

O corpo de Jota Mombaça é um manifesto
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: Escreve e faz performance das suas ideias em torno das relações entre monstruosidade e humanidade, “estudos kuir”, justiça anti-colonial... fica-se com a impressão de que não apenas devorou teoria com a urgência de quem quis sobreviver, mas que esta lhe atravessou o corpo. Esteve na Bienal de Berlim com uma performance, está este domingo na Foz do Porto.
TEXTO: Convidada a participar na Bienal de arte contemporânea de Berlim para uma leitura-performance, Jota Mombaça, 27 anos, nascida e criada no Nordeste do Brasil, nómada a residir actualmente em Lisboa, define-se a si mesma como "bicha não binária". Afável, exuberante e frágil, vestida com uma túnica que lhe serve para para confundir definições e revelar um corpo tatuado, recusando qualquer tipo de normatividade, vem ao nosso encontro uma guerreira temível que dispara com a acutilância das palavras. Fica-se com a impressão de que não apenas devorou teoria com a urgência de quem quis sobreviver, mas que esta lhe atravessou o corpo. "Pode um cu mestiço falar?" é um título de um texto seu em que se apropriava o título de um ensaio da filósofa indiana Gayatri Spivak, "Podem os subalternos falar?". A resposta, provocadora, era não. Jota Mombaça não só escreve como faz performance das suas ideias, trabalhando em torno das relações entre monstruosidade e humanidade, "estudos kuir", justiça anti-colonial, redistribuição da violência, ficção visionária e tensões entre arte e política nas produções de conhecimentos do "Sul-do-Sul globalizado". Para uma nova geração de artistas, activistas, investigadores e curadores investidos no debate sobre a descolonização, que está a atravessar um apogeu nas artes, tornou-se impossível pensar a questão do racismo sem cruzar as dimensões de classe social ou de identidade de género. "Não há lutas unidimensionais porque não há vidas unidimensionais", diz Jota Mombaça, citando a afro-americana Audre Lorde (1934-1992). Há diferenças decisivas entre o debate actual e o momento histórico da luta pela independência das colónias ou da segunda vaga do feminismo (que ficou conhecida no contexto português através do julgamento do livro Novas Cartas Portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa). Diferenças de origens de classe, em que os combates estiveram associados a uma classe média-alta urbana que protegia o privilégio do acesso à universidade. Diferenças de horizontes teóricos –? o marxismo era a narrativa de fundo e o "povo" era a categoria abstracta para a qual tudo se remetia – e de práticas culturais – a poesia era a arma central para escapar à censura. O corpo de Jota Mombaça é, por si só, um manifesto e torna evidente o que entretanto mudou. Encontrá-la é ter a sensação de que algo tem andado invisível no debate público, nas vozes e nos corpos autorizados a falar (ela utilizará a noção de "lugar da fala" para situar e questionar em permanência quem fala, de que posição e para quem). E digamos sem rodeios, vem aí um tremor de terra. A mudança situa-se desde logo no interior mesmo da linguagem utilizada. Pouco fica de pé. Se é evidente que Jota Mombaça deve muito aos estudos queer e pós-coloniais das últimas décadas, e tratando-se de autores na maior parte dos casos ainda por traduzir, será então ela que vai "entortar" os conceitos e adaptá-los à sua experiência de um país ex-colonizado. Assim, queer tornar-se-á cuir, e Jota identifica práticas populares de desobediência sexual e de identidade género que já existiam (como os terreiros de candomblé queto, em que participantes conjugam códigos femininos e masculinos) muito antes de serem teorizados pela categoria global do queer. Mas quando pensaríamos que esta lógica de digestão local poderia remeter para precedentes que passariam pelo manifesto antropofágico brasileiro (1928), Jota dispara: "A antropofagia foi uma lógica de devoração e eu pratico uma lógica de vómito. O poeta Oswald de Andrade [1890-1954] integra ainda uma forma de colonialismo interno, trata-se de uma elite branca, com acesso exclusivo à arte e com uma imagem idealizada do sujeito racializado. Há uma ficção da democracia racial, quando a negritude foi sendo aniquilada pela pobreza e miscigenação. A filósofa e psicanalista Suely Rolnik, investigadora em São Paulo, lembra que o capitalismo financeiro devora tudo e pratica uma antropofagia zombie, criando uma hiper-flexibilidade do sujeito e impedindo subjectividades – para ela não são apenas necessárias resistências macropolíticas mas também uma micropolítica do desejo, porque de outra forma se reproduz o inconsciente colonizado pelo capitalismo e volta tudo ao mesmo lugar. "Há que desenvolver uma ética própria, uma política do cuidado, recusando o banquete que nos é imposto. Comer aquilo que nos potencializa e vomitar o projecto genocida cristão do corpo colonizado". Jota Mombaça, que este domingo, às 19h30, na Praia do Homem do Leme (Foz do Porto) fala sobre Dor, Dívida, Dilema: O que significa descolonizar, a convite do Teatro Experimental do Porto, foi também convidada pela Bienal de Berlim a escrever um texto fundamental no catálogo (Por uma greve ontológica) que tem a impetuosidade crítica habitual da autora, próxima de um manifesto, mas introduz uma melancolia inusitada. Partindo da impressão de que o seu trabalho é uma fuga para se "salvar de algo do qual não posso ser salva" e fazendo por escapar às estatísticas dos corpos negros queer confrontados com a violência ou a morte (numa das suas tatuagens lê-se "A gente combinamos de não morrer", citando uma das autoras brasileiras que mais admira, Conceição Evaristo, nascida numa favela de Belo Horizonte). O texto resume uma lógica de exploração das contradições e conflitos que distingue a sua escrita – não se limitando a criticar posições dominantes mas também posturas supostamente críticas – para interrogar a forma como a arte contemporânea (e as bienais) obriga os corpos e as vidas negras queer a transformarem-se no tema do trabalho, sendo que estes corpos já são determinados por estruturas de poder lhes extraem subjectividade. E recusa-se a estabelecer uma narrativa heróica sobre as lutas destes corpos e vidas quebrados para evitar que isso se torne a condição para ter acesso ao mundo da arte. "O que não quer dizer que eu entre num fetichismo do-it-yourself, o meu trabalho está atravessado por instituições". Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A melancolia parece surgir de uma constatação lúcida, já evocada por José Esteban Muñoz (1967-2013), investigador de performance e teórico da desidentificação (enquanto forma de oposição à identidade), quando sublinhava estar consciente de que o devir queer ainda é uma utopia. "O futuro é um privilégio", diz Jota, e talvez por isso cite no seu texto a escritora afro-americana de ficção cientifica Octavia E. Butler – outra das autoras reverenciadas por esta nova geração – procurando extrair o futuro desta lógica de utopia, partindo da negritude. Numa conferência no Rio de Janeiro, Jota Mombaça criticou o princípio estandardizado de fluidez de género, acrescentando que no contexto de precariedade generalizada que combate, o seu género "não flui, como é possível?". Interrogou-se ao anunciar a sua transição de identidade de género: "Embora eu saiba identificar a estrutura da qual me afasto, fugindo ao projecto arbitrário da masculinidade" (a obrigação de uma concordância entre identidade e sexo de nascença), "prossigo sem coordenadas para saber onde isso me pode levar e, portanto, tropeço (…). Pensar na transição e na descolonização a partir de uma perspectiva abolicionista requer pensar e deslocar provisoriamente a questão sobre o que vou passar a ser, abrindo espaço para outras questões: como desfazer o que fazem de mim?". No contexto lisboeta, Jota Mombaça tem escrito e participado em plataformas que estão a abrir espaços para o debate da descolonização, marcado recentemente pela polémica gerada em torno da designação do museu das "descobertas" ou da estátua do Padre António Vieira. "A reciclagem 'pós-colonial' dessa personagem, amparada pelo imaginário amplamente difundido da colonização portuguesa como branda e, particularmente, do referido padre como tendo sido uma figura sensível à humanidade das gentes que viviam nas terras do que hoje chamamos Brasil, atesta de maneira contundente a hegemonia do lugar de fala branco-colonial como infraestrutura dos regimes de verdade". Encontrou vozes aliadas em projectos lisboetas como Buala ou a rádio Afro-Lis, ou na colectânea de poetas e autores negros Djidiu – A Herança do Ouvido, incluindo nesta rede de afinidades o jovem poeta queer Daniel Lourenço – interessado por formas de neuro-dissidência em saúde mental e tecendo críticas ao capacitismo – ou a investigação do Nicholas Mirzoeff na Universidade Nova sobre culturas visuais de protesto. E atribui um valor histórico às duas conferências em Lisboa de Grada Kilomba, artista e investigadora lisboeta a residir em Berlim (e que está também a participar na Bienal), em que esta considerou "uma profunda negação" a relação da subjectividade portuguesa com a "ferida colonial". Jota é extremamente crítica em relação à invisibilidade para a qual estão remetidas as vozes negras neste debate. "Quando uma pessoa branca diz 'usar seu privilégio' para 'dar voz' a uma pessoa negra, ela di-lo na condição de que essa 'voz dada' possa ser posteriormente metabolizada como valor, sem com isso desmantelar a lógica de valorização do regime branco de distribuição das vozes". E assume que a dificuldade para quem pratica a dissidência está em preservar as sementes de pessoas ainda por existir, que terão de se inventar a si mesmas a partir daquelas que foram historicamente negadas.
REFERÊNCIAS:
Religiões Candomblé
Feministas despem-se em Notre Dame para festejar saída do Papa
Entraram na catedral e despiram-se como é característico do movimento Femen. (...)

Feministas despem-se em Notre Dame para festejar saída do Papa
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-04-29 | Jornal Público
SUMÁRIO: Entraram na catedral e despiram-se como é característico do movimento Femen.
TEXTO: Oito feministas do movimento Femen entraram na Catedral de Notre Dame, em Paris, França, e despiram-se para festejar a saída de Bento XVI. As jovens entraram discretamente, ao lado dos habituais turistas, envergando longos casacos escuros que despiram no interior do local de culto católico. Junto a três dos nove novos sinos, provisoriamente no chão de uma das naves da catedral, as raparigas despiram-se e mostraram os seus corpos onde escreveram mensagens como "Não ao Papa", "Não à homofobia", "Crise de fé", "Adeusinho, Bento!". As feministas chocaram os visitantes. "Este é um local sagrado, vocês não devem despir-se aqui", disse uma turista francesa. Poucos minutos depois, as manifestantes foram obrigadas a sair do edifício pelos responsáveis do local de culto, o que não as impediu de continuar a gritar e a cantar "Confiamos nos homossexuais" – em inglês "in gay we trust" uma variante da frase "in God we trust", ou seja, "em Deus confiamos" – e "Sai, homofóbico". O movimento Femen é conhecido por, desde 2010, se manifestar de peito descoberto da Rússia à Ucrânia, passando por Londres e pelo Vaticano, quando, por exemplo, o Papa reza o Angelus, ao domingo, ao meio-dia. Em Setembro, instalaram em Paris o "primeiro centro de treino" para o "novo feminismo".
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave gay feminismo homofobia
Convenção condicionada por fora
Na semana em que a deputada Mariana Mortágua brilhou no Parlamento ao fazer PSD e PS recuarem nas subvenções dos deputados, o BE fecha-se no Pavilhão das Olaias para decidir o futuro que não depende só de si. (...)

Convenção condicionada por fora
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Na semana em que a deputada Mariana Mortágua brilhou no Parlamento ao fazer PSD e PS recuarem nas subvenções dos deputados, o BE fecha-se no Pavilhão das Olaias para decidir o futuro que não depende só de si.
TEXTO: O futuro do Bloco de Esquerda, muito provavelmente, depende pouco da IX Convenção que hoje se inicia em Lisboa e joga-se sobretudo na dinâmica eleitoral que se criar entre este partido e a tentativa de uma "candidatura cidadã" subscrita por 241 personalidades que esta semana foi anunciada. Uma iniciativa que tem como suporte legal a estrutura do novo partido, Livre, e que reúne o Manifesto e a Renovação Comunista. Não tanto porque esta nova formação surja como substituto do BE do ponto de vista político, mas porque eleitoralmente pode gerar uma dinâmica que, ao agregar votos, acabe por contribuir para a erosão eleitoral do BE. Na semana em que a deputada Mariana Mortágua brilhou no Parlamento ao fazer PSD e PS recuarem nas subvenções dos deputados, o BE fecha-se no Pavilhão das Olaias, em Lisboa, para decidir se continuará a ser coordenado por uma solução paritária composta por Catarina Martins e João Semedo ou se volta a uma liderança de tipo tradicional com Pedro Filipe Soares. Esta diferença no que são as caras de topo da direcção para o exterior não é uma diferença menor – assim como são diversos o tom e a abordagem ideológica. Pedro Filipe Soares, que surge como herdeiro da linha UDP, chega a afirmar: “Esse horizonte socialista continua à nossa frente. ” Já para Catarina Martins e João Semedo, “Socialismo é o novo regime feito de todas as emancipações”. É verdade também que há pequenos matizes nas moções – como a defesa por Catarina Martins e João Semedo de que a rejeição do Tratado Orçamental seja submetida a referendo. Mas ambas as moções, na prática, defendem o mesmo: a desvinculação do Tratado Orçamental, a reestruturação da dívida pública, a nacionalização da banca, a rejeição da austeridade europeia, a reforma fiscal com tributação de empresas, a nacionalização dos bens comuns privatizados e defesa dos sectores públicos estratégicos como a água, a protecção dos serviços públicos de saúde, educação e Segurança Social, a revisão da legislação laboral com reposição de direitos, o aumento do emprego e dos salários, a criminalização do enriquecimento ilícito e o combate à corrupção, o respeito absoluto pela paridade (50/50) a, igualdade de género, a adopção por gays, a saída de Portugal da NATO. Só que o BE que chega a esta convenção é um BE desgastado, fraccionado, fechado sobre si mesmo – a viver numa lógica de sobrevivência em reacção ao afastamento de alguns fundadores e à própria incapacidade de renovação geracional, exibindo também o abandono cada vez mais acentuado da cultura de abertura ao diálogo político. Reflexo desse desgaste é a saída dos militantes que pertenciam à Política XXI e que estão no Fórum Manifesto. Uma ruptura que deixou em minoria a linha política que junta herdeiros do PSR e da Política XXI e que no início de 2013 criaram a tendência Socialismo, protagonizada por Francisco Louçã, João Semedo e José Manuel Pureza. É o confronto entre estes e a Associação UDP que se joga na IX Convenção, na qual Pedro Filipe Soares surge com 262 delegados eleitos contra 256 de Catarina Martins e João Semedo – e em que poderão ser decisivos os 90 delegados eleitos pelas outras moções. Ora, mais do que estas lutas internas no BE, o que determinará o futuro deste partido, repetimos, é a sua capacidade de atrair eleitores em 2015. Este jogo passa-se no exterior do Pavilhão das Olaias e tem como parceiro o novo Livre e a capacidade inegável que Rui Tavares teve de congregar em torno de si intelectuais e personalidades de esquerda que estão para além do próprio Livre, do Fórum Manifesto e da Renovação Comunista. Assim, entre os promotores da “candidatura cidadã” do Livre estão nomes mais ou menos expectáveis como Ana Drago, Daniel Oliveira, Rogério Moreira, Cipriano Justo, Paulo Fidalgo, Carlos Brito, Henrique de Sousa, Fernando Sousa Marques, Carlos Luís Figueira, José Manuel Tengarrinha, Luísa Mesquita, Florival Lança, Ulisses Garrido, Isabel do Carmo, Pilar del Rio, Luís Moita, José Reis, Ricardo Paes Mamede, Eugénia Pires, Sandro Mendonça e Boaventura Sousa Santos. Mas estão outros que não são tão previsíveis, como é o caso de Viriato Soromenho-Marques, Ricardo Sá Fernandes, São José Lapa, Luísa Costa Gomes, Mário Laginha, Júlio Machado Vaz, Alexandra Lucas Coelho, Jorge Wemans, Augusto M. Seabra, André Freire, Miguel Vale de Almeida e Pedro Bacelar de Vasconcelos. Já para não falar de alguns jovens ainda sem proeminência pública, mas que representam uma renovação geracional e intelectual. A questão é saber até onde será atractiva para o eleitorado esta proposta liderada por uma nova geração, nascida depois do 25 de Abril, que não está enredada nas teias das rivalidades velhas de 40 ou 50 anos entre o PCP e a extrema-esquerda, e que parece não ter medo de partilhar o poder e de tentar condicionar uma governação do PS à esquerda.
REFERÊNCIAS:
E se Donald Trump fosse Donna Trump? A piada “transfóbica” do Daily Show
O programa humorístico está a ser a acusado de reduzir as pessoas transgénero a um dichote. A publicação no Twitter foi apagada. (...)

E se Donald Trump fosse Donna Trump? A piada “transfóbica” do Daily Show
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: O programa humorístico está a ser a acusado de reduzir as pessoas transgénero a um dichote. A publicação no Twitter foi apagada.
TEXTO: O The Daily Show está a ser acusado de ter feito uma piada transfóbica para atingir Donald Trump. A publicação foi feita a 17 de Maio, data em que se celebra o Dia Internacional contra a Homofobia, no Twitter — e entretanto apagada, após a chuva de críticas. Na conta do programa humorístico no Twitter, transmitido no canal norte-americano Comedy Central, foi publicada uma pergunta com resposta múltipla. “Que notícias serão reveladas na quinta-feira entre as 17h e as 18h?”, perguntava-se, com as seguintes opções de resposta: “Trump usa a Constituição como um guardanapo no KFC”; “Comey lança um ‘álbum visual’”; “Ivanka pede imunidade”; e, por fim, “Donald Trump anuncia que agora é Donna Trump”. Foi esta última opção que gerou alguma controvérsia, sobretudo na comunidade LGBT, por dar a entender que a mudança de sexo é uma condição degradante e, portanto, que pode ser usada enquanto piada. O tweet foi entretanto apagado mas houve quem o registasse e voltasse a divulgar pelas redes sociais. Vários utilizadores do Twitter consideraram a piada ofensiva e transfóbica. Since they, like the people they make fun of, are deleting tweets now: The Daily Show making a joke at the expense of trans people. pic. twitter. com/73S3MuLl5M“Isto teve piada até que acabou à custa de um grupo marginalizado”, escreveu um utilizador do Twitter. “Ponham-me à frente do Daily Show. Qualificações: nenhumas, mas pelo menos não vou fazer piadas más à custa das pessoas transgénero”, publicou outra pessoa. “Uma piada sobre transgéneros? A sério? Em 2017? O que raio aconteceu ao Daily Show?”, questiona outro utilizador do Twitter. @TheDailyShow Do better Daily Show. Trans people are not punch lines. ??Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. @TheDailyShow Haha you're right daily show. Someone transitioning is definitely as crazy as the other things on this list@TheDailyShow This was funny until it ended at the expense of a marginalized group. #DroppedTheBallAinda assim, o actual apresentador Trevor Noah – que sucedeu, em 2015, a Jon Stewart e que não estará obrigatoriamente relacionado com a gestão das redes sociais – já tem sido elogiado por ter entrevistado, no decorrer do último ano, a actriz Laverne Cox e a vocalista Laura Jane Grace, ambas trangénero. De qualquer modo, esta não é a primeira vez que o programa recebe reacções negativas às suas piadas (sobre o aborto, por exemplo) e o próprio Trevor Noah foi acusado de ter tweets antigos que faziam troça de situações que envolviam mulheres, judeus ou violência doméstica.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave aborto violência comunidade sexo mulheres doméstica lgbt homofobia
Uma geração a tentar sair de Gaza para dizer: "Sou de Gaza"
O quotidiano de Gaza é definido pelos limites do território. Mas no meio da destruição e da densidade urbana, a Internet funciona. A ligação ao exterior traz possibilidade de trabalho, e há startups a sair do grupo dos “empreendedores mais duros” do mundo. (...)

Uma geração a tentar sair de Gaza para dizer: "Sou de Gaza"
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: O quotidiano de Gaza é definido pelos limites do território. Mas no meio da destruição e da densidade urbana, a Internet funciona. A ligação ao exterior traz possibilidade de trabalho, e há startups a sair do grupo dos “empreendedores mais duros” do mundo.
TEXTO: Hala Olwan e Iyad Altahrawi são jovens e ambiciosos num lugar de enormes dificuldades para quem é jovem e ambicioso: a Faixa de Gaza, um pequeno território cercado, de onde é difícil (alguns dirão: quase impossível) sair, onde os bens que entram são restritos e rigorosamente revistos, onde há electricidade apenas quatro horas por dia, onde quem governa é o movimento islamista Hamas. Hala sente que a sua vida é ainda mais complicada por ser mulher. Mas tem um plano e está a segui-lo com rigor. Vai fazer “tudo o que conseguir, e ainda “mais um pouco” para tentar “realizar um sonho quase impossível”: sair de Gaza e conseguir um emprego fora. Já Iayd fez o percurso de sonho de Hala e regressou: saiu para estudar nos EUA e na Alemanha, trabalhou em Frankfurt, mas largou um emprego para voltar, ajudar e trabalhar com os “empreendedores mais duros do mundo”. Iyad Altahrawi está no espaço dos Gaza Sky Geeks, uma incubadora de startups, academia de código, aconselhamento a freelancers e espaço de coworking, um oásis de electricidade, energia e optimismo no meio de Gaza. A decisão que tomou é sempre questionada — a maioria das pessoas está a tentar fazer o oposto. Iyad não desvaloriza as dificuldades, nem para si próprio — “É verdade que às vezes estou encurralado em Gaza e não consigo sair” — nem para o trabalho. “Trabalhamos num ambiente muito incerto”. Mas desde que regressou, há mais de um ano, nunca se arrependeu, garante. “Gosto de acordar e ir para o trabalho todos os dias”, sublinha. “As pessoas são muito activas e ambiciosas. Toda a gente está a tentar conseguir chegar a qualquer lado”, diz. Nos Gaza Sky Geeks tem possibilidade de ajudar e fazer mesmo a diferença. “Este é um local de esperança e ambição. ”A um sábado às 9h30 da manhã (é o segundo dia do fim-de-semana na região) já há uma série de pessoas sentadas na sala comum de coworking, de café e computador à frente. O espaço tem quadros com frases motivadoras de figuras inspiradoras de Harry Potter a Rocky Balboa (“Não é uma questão de quão forte consegues bater, é quão bem consegues aguentar ser atingido e continuar em frente”). O caos de Gaza, as buzinas e burros, o pó e os checkpoints do Hamas ficam lá fora. Aqui há um bulício, mas mais organizado: “Não trabalhes duro, trabalha de forma inteligente”, diz outro cartaz. O inglês é a língua franca, mas há também informação em árabe. Iyad Altahrawi é responsável pelo programa de incubação e aceleração nos Gaza Sky Geeks e trabalha de perto com as equipas de startups e mentores. Está prestes a começar um programa de aceleração de 16 semanas com workshops, metas semanais, e um dia de demonstração para apresentação a investidores. A Internet é uma das infraestruturas boas de Gaza, o território tem muitos jovens qualificados. O programa Gaza Sky Geeks (GSG) começou em 2011, com financiamento da organização de ajuda dos EUA Mercy Corps e da Google, para aumentar o conhecimento de tecnologia, e foi tendo cada vez mais ofertas e programas, para aproveitar o potencial do trabalho em software. Iyad explica que Gaza tem potencial, por ter grande “talento tecnológico”, de se tornar um exportador de trabalho na área como é a Índia. A dificuldade em trabalhar com hardware (quase nada entra em Gaza; apesar disso, há uma série de pessoas a trabalhar com impressoras 3D, contornando a falta de materiais com peças antigas e vídeos de instruções do YouTube) também leva a que a maior parte das pessoas da área se dediquem antes ao software. E com os GSG a conseguirem ter pessoas a participar em competições internacionais e ganhar prémios, Iyad garante: “Tenho a certeza que lá fora somos conhecidos pelo nosso trabalho. ”Mas nem tudo o que é virtual funciona só em meio virtual. Se é possível contrariar o não ter matérias primas oferecendo serviços, a dificuldade em viajar afecta muito as hipóteses de crescimento. É que os donos do dinheiro “não investem em ideias”, diz Iyad, querem sim “conhecer as pessoas, ver como trabalham”. Existe o Skype, mas neste caso não funciona. Muitas vezes há oportunidades fora, mas o ritmo das autorizações de Israel é incomparavelmente mais lento do que o ritmo das oportunidades. E do Egipto é ainda mais incerto. Os dois países bloqueiam o território invocando razões de segurança; organizações de defesa dos direitos humanos dizem que o bloqueio é ilegal e que serve como “castigo colectivo”. Face a tudo isto, importa “nunca desistir”, diz Sara Alafifi, do programa de mentores e comunicação. Mesmo que a taxa de saída dos empreendedores para mostrar trabalho, ou de formandos para estágios em empresas internacionais, seja “de 5%”, eles vão tentar sempre aumentá-la. Mesmo que não haja lógica aparente nas decisões, e que a saída de uma pessoa possa ser aceite numa vez e rejeitada na seguinte, “vamos aprendendo”. A aposta é na maior antecedência possível, e na flexibilidade de todos — “nem que seja preciso adiar”. Por exemplo, recentemente a Google aceitou adiar seis meses um estágio de um formando dos GSG até chegar a autorização para a viagem. Acabado o estágio, novo problema — o regresso também teve de ser adiado (as entradas são quase tão incertas quanto as saídas). Mas o estágio foi feito. Outro problema é a falta de opções de pagamentos: o PayPal, sistema quase universal, não opera na Palestina. Por isto e por tudo o resto, explica Sara Alafifi, é que aqui estão “os empreendedores mais duros” do mundo. Porque estão habituados a trabalhar num local onde tudo pode acontecer, a contornar todos os imprevistos, a encontrar uma solução para todos os problemas. O chavão de não haver dificuldades e sim desafios a superar é verdadeiro aqui, todos os dias. Mas também porque é possível trabalhar arduamente, ser óptimo, e perder uma ou várias oportunidades. É preciso saber lidar com a incerteza, com a frustração. “Fazes o mesmo que pessoas em todo o mundo estão a fazer — e devia estar a resultar. Mas estás em Gaza, por isso tens de trabalhar mais. E ter paciência”, explica Sara Alafifi. Sara nota que em todo o mundo as mulheres trabalham mais e em Gaza trabalham ainda mais. Mas aqui nos Gaza Sky Geeks, “se há coisa que não há, é falta de ajuda para mulheres”, sublinha. Elas são 53% em todos os programas, e a percentagem sobe na parte das startups: 58% são fundadoras ou parte das equipas. Os casos de maior sucesso saído dos GSG são startups de mulheres — Nour Abuzaher é uma delas, a sua empresa MomyHelper, de ajuda a mães árabes, que obteve um segundo lugar numa competição de startups em Istambul (para onde teve autorização de Israel para ir — já para outro concurso na Califórnia não conseguiu) e financiamento de uma business angel (como são chamados investidores relativamente pequenos) do Dubai. Nour teve a ideia para um serviço de aconselhamento de mães árabes depois de ser mãe. “Na altura estava fora de Gaza, não estava perto da família, e não sabia lidar com o meu bebé — queria fazer tudo o possível para dar tudo ao meu pequenino”, conta. Começou a partilhar no Facebook algumas das ideias para o seu “pequenino”, como chama sempre ao filho (hoje com três anos). Recebeu muitos comentários e mensagens privadas de mães que não conhecia a pedir a sua opinião para dificuldades e problemas. “Eu não podia responder, não sou especialista”, nota. Percebeu que havia ali uma necessidade. Leu que as mães árabes têm uma percentagem de depressão comparativamente alta. E que apesar de haver rede e de apoio familiar, o mundo já não é o mesmo do da sua mãe e avó. Assim começou a trabalhar numa aplicação para aconselhamento profissional fácil e discreto para mães árabes — telefónico, sem imagem, o que é importante sobretudo se o especialista for um homem. A empresa foca-se no mercado do Médio Oriente e Norte de África, mas Nour conta que mesmo sem ter esse mercado como target, tem utilizadoras da Alemanha ou Áustria. Nour sublinha que muitas mulheres sempre trabalharam em Gaza — embora as profissões mais típicas fossem como professoras ou enfermeiras. Mas “a situação mudou muito nos últimos cinco anos”, explica. As dificuldades económicas fizeram com que muitas famílias já não vejam com maus olhos que as mulheres trabalhem e ganhem dinheiro. “Cada vez há mais mulheres a sair, trabalhar, fazer voluntariado — há uma percentagem que não pode, é verdade, mas é cada vez mais pequena. ”Voltando a Sara al-Afifi e à sua tour algo acelerada de tudo o que os Gaza Sky Geeks têm para oferecer, ela sublinha a parte direccionada para as mulheres: clubes de código para mulheres (“a maioria não é encorajada na universidade a seguir esta via), reuniões regulares com mulheres que têm startups, brunch às segundas-feiras com mulheres inspiradoras e sempre que há mentoras internacionais também é organizado um encontro. “Algumas das visitantes internacionais ficam espantadas e dizem que aqui é melhor para as mulheres do que em Silicon Valley”, diz Sara. “Os homens é que às vezes acham que estão a ser discriminados. ”A Internet é o trabalho de uns, mas é também uma linha de ligação ao exterior. A pouca distância da sede dos Gaza Sky Geeks está o café Al-Baqa. É uma curtíssima viagem de carro, que pode ser chamado com uma app, que permite partilhar viagens com amigos. “O seu capitão chegou”, anuncia a app — desenvolvida por uma startup saída dos Gaza Sky Geeks. Da janela do carro vêem-se os muros cheios de graffiti, a cúpula dourada da mesquita de al-Aqsa, em Jerusalém, desenhos alertando para o perigo de colisões nos cruzamentos, onde se amontoam carros e carroças e se buzina para passar. O café é uma grande esplanada sobre o mar e vai enchendo à medida que a tarde passa com grupos de amigos que se encontram. Hoje, a estudante Mais Abu Shawish tem um sorriso especial quando anuncia: “Tive o meu último exame: finalmente acabei e posso fazer o que quiser!”, diz. “Estava mesmo stressada”, acrescenta, deixando-se cair na cadeira e pedindo um sumo cor-de-rosa, que condiz com o seu hijab florido. Mais (lê-se Maiz) tem 23 anos e está a acabar o curso de inglês e francês na Universidade al-Azhar — a cerimónia de fim de curso, à americana, ainda está para vir: centenas de alunos vestirão o seu fato com um pormenor de padrão de lenço palestiniano, e chapéu e tudo, para receber os diplomas. O contraste entre a cerimónia e o muro da Universidade é grande: lá foram sendo pintados os retratos dos manifestantes mortos por atiradores furtivos israelitas nos protestos da Marcha do Retorno, que começaram a 30 de Março. O muro só teve espaço para os primeiros — acabaram por morrer 110 manifestantes, a maioria dos tiros (o Exército disse que atingiria quem quer que se aproximasse da barreira que divide Gaza de Israel). Mesmo antes de ter o diploma na mão, a prioridade de Mais é trabalhar. “Preciso de ser independente financeiramente — explica —, porque já tive uma oportunidade de estudar fora e os meus pais não me deixaram”. Nem todas as famílias aceitam que as jovens mulheres viajem sozinhas. Se vai resultar ou não, não faz ideia. Ela oscila entre o pessimismo (“não sei como vai ser, parece que as portas estão todas fechadas”) e o optimismo (“talvez um dia consiga fazer muita coisa!”). O futuro, Mais sabe que vai ser diferente do que é hoje. “Nada fica igual. Não quer dizer que vá ficar melhor, mas igual, não fica”, garante. Esta estudante é “apaixonada por tudo o que é diferente” e por isso tem amigos, que fez online, em todo o mundo. “Os meus amigos mais próximos são os que vivem mais longe”. Um budista, um homossexual, em Gaza não conhece ninguém assim (pessoas de outras religiões há apenas cristãs, uma pequena minoria, “homossexuais talvez haja, sim, mas escondidos”). Estas amizades surgiram num grupo para poliglotas de que Mais fez parte. Fez, no passado, porque a dada altura houve um encontro na Califórnia e ela não foi porque não conseguiu autorização, apesar da pressão de responsáveis do grupo. A ausência foi o motivo para a sua saída. “Um problema das ligações externas de Gaza é que muitas pessoas não percebem o que passamos aqui. ”Tais como: a falta de electricidade; ter electricidade em períodos de quatro horas que não são sempre os mesmos; não saber quando há ou não; não saber, desde há cerca de dez anos, o que é um fornecimento de electricidade normal. As implicações mais óbvias: não se pode ter nada no frigorífico que se estrague em mais do que um dia; ter problemas caso se precise de medicamentos que necessitam de frio; ter a casa às escuras à noite durante longos períodos; ou ter luz eléctrica só de madrugada; ficar frequentemente com o telefone ou o computador sem bateria; a roupa por lavar, ou por passar; ter os elevadores parados (e há muitos prédios altos em Gaza); ler ou estudar à luz de velas ou lanternas. Não ter alívio para o calor no Verão. Estar em casa sem electricidade “é como estar num filme de terror”, diz Tarek, 21 anos, estudante de Engenharia, especialização em Metalomecânica, que se junta mais tarde ao grupo de Mais no café à beira-mar. Estar fechado, à noite, horas a fio, no escuro. . . “é horrível, não consigo explicar. ” “Se é para falar de electricidade, então vamos falar do efeito psicológico”, diz por seu lado a advogada Fatima, 25 anos, que entra na conversa. Fatima é uma das sortudas: tem um contrato de seis meses — “O que é o melhor que se consegue arranjar aqui. ” Mas recusa-se a viver de acordo com o horário aleatório da electricidade. Se há pessoas que deixam todos os interruptores em casa ligados para terem a certeza que acordam quando regressa a luz, e que assim conseguem não falhar as quatro horas quando estas calham a meio da noite, ela faz o contrário. “Já não consigo lidar com isto, então, vivo sempre na escuridão”. “Já estou habituada, foram sete anos a estudar sem luz” — às vezes fora de casa, às vezes com uma lanterna, ou mesmo à luz de velas. Mas isto não quer dizer que não tenha um desejo profundo de ter algumas horas mais de electricidade: “Penso muito que as coisas podem mudar. Sobretudo nos dias de calor, penso em como seria bom ter uma ventoinha”. Mas há dez anos que a situação não muda. Fatima fez uma única concessão à electricidade: tem um carregador de bateria para o telefone; mesmo assim, às vezes fica sem bateria. Por isso muitos jovens estão cada vez mais tempo fora de casa, na universidade, ou no café, onde geradores vão carburando a combustível e com uma ou outra interrupção, asseguram uma quase normalidade. Estar num destes cafés ao pé do mar, então, é a maior escapatória possível, ter um horizonte além do emaranhado de prédios da cidade. É uma sensação, imaginária, porque a Marinha israelita assegura o cerco no mar e nunca seria possível sair por ali. E como a electricidade não chega para tudo, também não chega para tratar os esgotos, e assim, muitas vezes estes são descarregados sem tratamento directamente no mar. Mas num sítio onde não há quase nada para fazer, não ir ao mar, não deixar as crianças nadar, está fora de questão. O máximo é evitar as zonas de descarga directa. Da esplanada do Al-Baqa vêem-se os miúdos, gritos entusiasmados, a lutar com as ondas, a brincar com o vaivém do mar. Ao longe parece tudo bem; ao perto vê-se que a espuma não é branca. Muitos destes jovens falam inglês como se tivessem saído de um intercâmbio nos Estados Unidos — mesmo que a maioria nunca tenha ido a nenhum lugar a mais de 20 quilómetros de onde estão. A fluência que têm espelha o seu esforço — é a chave para a tão ansiada saída. Hala Olwan é o exemplo máximo disto: tem 21 anos, estuda Literatura Inglesa na Universidade Al-Azhar, nunca saiu de Gaza, mas fala como se estivesse numa série de televisão americana, velocidade, entoação, ritmo, entusiasmos e tudo. Hala está na sala da casa da sua família, onde hoje estão também a mãe, os quatro irmãos (“os macaquinhos”), e uma amiga. É num terceiro andar e foi possível subir de elevador porque estamos numa hora em que há electricidade. Enquanto falamos, a mãe serve Coca-Cola já fresca de uma hora no frigorífico, e vai supervisionando o carregar de uma bateria que parece de automóvel, e depois outra. Estas vão guardar alguma electricidade, que depois é usada, com um conversor, para ver televisão, carregar um telefone, ter luz para ler à noite. Isto diminui a vida útil dos aparelhos, mas é melhor do que só os puder usar às horas de fornecimento. É impossível escapar a este tema em Gaza. Mas não é só a electricidade, e ter de planear toda a vida à volta daquelas quatro horas de energia — é ter de “lidar com as expectativas sociais em relação às mulheres”, o que é, sublinha Hala, “uma questão de cultura e não de religião” (ela usa o véu islâmico). Feminista, lança-se num desabafo sobre o poder dos homens sobre as mulheres, o facto de os maridos serem quem decide tudo, de haver violência doméstica. Ela não quer valer menos, não quer submeter-se, não quer ser “uma mulher em Gaza”. “Sou muito ambiciosa”, diz, “tenho um plano, e vou fazer tudo o que puder para conseguir este sonho quase impossível” — sair de Gaza. O plano inclui esmero no estudo — tem de ser excelente porque quer concorrer a uma bolsa e tem de estar entre os melhores para a ganhar. Vai procurar tudo o que é preciso saber sobre as bolsas disponíveis, cruzar toda a informação que conseguir, e vai fazer uma candidatura que lhe dê as melhores hipóteses. Não quer pôr a hipótese de não resultar. “Nós fazemos tudo e até mais qualquer coisa”, diz, falando de si — e de repente, está a falar também dos habitantes de Gaza em geral. “Passámos por três guerras e estamos a sobreviver. ” Olha para a amiga, que está ao lado, toca-lhe no braço, e sai-lhe uma exclamação sentida: “Oh-my-God! Tenho tanto orgulho de ser palestiniana!”Mas quer ser uma palestiniana fora. Às vezes demora muito tempo a ter uma ideia do que isto poderá ser. Abier Almasri, por exemplo, saiu de Gaza pela primeira vez aos 31 anos. Foi há dois meses. Sentada num pátio de um antigo e clássico restaurante da cidade, Abier, que trabalha em pesquisa na organização de defesa de direitos humanos Human Rights Watch, ainda se emociona ao falar disso. Contar esta história é um misturar de relatos de restrições práticas, suspenses burocráticos e sentimentos tão fortes que a fizeram rir e a seguir chorar e tudo ao mesmo tempo. As restrições são a parte mais fácil de contar, embora leve tempo: nunca se sabe se a autorização dada por Israel se vai manter até ao momento em que se passa realmente para o lado de lá; quem sai pode levar pouco mais do que roupas (muitas pessoas optam por levar sacos de plástico transparente com roupa). Pasta de dentes, champô, maquilhagem: nada disto pode passar. Pior, para quem trabalha: não é possível levar computadores portáteis. No caso de Abier, como a viagem era para uma reunião da Human Rights Watch em Nova Iorque, ainda havia o visto para os EUA — que tinha de ser pedido em Amã (Jordânia) e nem acreditou quando conseguiu. Depois vem a parte mais difícil de relatar. “Viajar mudou-me”, diz Abier, gestos calmos interrompidos por entusiasmos repentinos. “Porque se és daqui e viajas para outro sítio, percebes que mereces uma vida melhor”. Porque em Gaza “as pessoas estão com tanta falta de empregos, de salários, de seis ou oito horas de electricidade — já nem sequer pensamos em 24. . . estamos tão preocupados em ter os cuidados de saúde de que precisamos se ficarmos doentes”, diz. “Estamos tão ocupados com isto que nem pensamos no futuro. Mas nós merecemos esta vida melhor e este futuro”. Sair é “respirar um ar de liberdade”, diz Abeir. “Só me apetecia dizer a toda a gente: ‘eu sou de Gaza! Sou de Gaza!’ “, conta, a sorrir. “Gravei vídeos para me lembrar da sensação. Não consigo descrever, é impossível pôr em palavras. ”Sair “é mágico”, dizia na esplanada Tarek, o estudante de engenharia. “É como se flutuasses no ar”, gesticula, com saudades. Sair é achar estranho que lugares estejam todos iluminados durante a noite “só porque é bonito”, que não haja barulho de geradores para suprir a falta de energia, nem haver um balão do exército israelita a recolher imagens, é andar por um aeroporto e comentar que este é — “de certeza, pessoal!” — maior do que Gaza. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Apesar de tudo isto”, dizia ainda Tarek, “Gaza não é um inferno como as pessoas possam pensar — também é bonito”. Aponta para o mar. E olhando depois as pessoas em volta no café, em conversas animadas em grupo ou em família, ou a dois, mais recatadas, termina: “O mais importante é o espírito. ”
REFERÊNCIAS: