Como é envelhecer bem? A arte e os truques de Maria Cavaco Silva, Maria João e Nayma Mingas
Nenhuma tem uma fórmula do tipo "comer uma taça de mirtilos por dia". É sobretudo uma questão de atitude: não sofrer por antecipação, trabalhar para ser feliz, querer ser, não ter medo de rir nem de chorar. Três mulheres de três gerações falam sobre envelhecer, pintar o cabelo, o amor e a morte (...)

Como é envelhecer bem? A arte e os truques de Maria Cavaco Silva, Maria João e Nayma Mingas
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 5 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nenhuma tem uma fórmula do tipo "comer uma taça de mirtilos por dia". É sobretudo uma questão de atitude: não sofrer por antecipação, trabalhar para ser feliz, querer ser, não ter medo de rir nem de chorar. Três mulheres de três gerações falam sobre envelhecer, pintar o cabelo, o amor e a morte
TEXTO: Esta é uma conversa em que se pergunta a idade às senhoras e por isso aqui vai: a manequim Nayma Mingas tem 44 anos, a cantora de jazz Maria João tem 62 e a antiga primeira-dama Maria Cavaco Silva tem 80. O tema é o envelhecimento e a escolha é simples: são três mulheres que, por causa da sua vida pública, estão a envelhecer à frente de todos nós. No fim, depois de falarem sobre viver bem e morrer bem; pintar o cabelo e ir para um “asilo”; máscaras do Congo e eutanásia; fazer trail e ler Séneca; imortalidade e respeito pela Terra; rir e chorar; ter fé e ser ateu; mais os medos e as alegrias que aparecem com os anos e a solidão da viuvez, alguém disse: “Seria impossível ter esta conversa com três homens. ”Igual não seria, isso é certo. Maria Cavaco Silva conta que tem “uma relação amistosa” com a idade e que durante anos se achou parecida com a actriz Audrey Hepburn. Quando o marido, Aníbal Cavaco Silva, foi eleito Presidente, em 2006, sentiu que era olhada como a “imagem-padrão da mulher portuguesa” e preocupou-se um pouco com isso. Mas foi com a avó materna que aprendeu a envelhecer. Maria João diz que nunca pensa no envelhecimento (“juro!”) e que “querer ser” o que é agora é o que a ajuda a não pensar na idade. “Como quero, sou”. Já que tem de morrer, pelo menos que não seja no Verão. Não gosta de falar sobre isso, mas já fez um pedido improvável a um grande amigo. “As pessoas têm de ter o direito de escolha. ”Nayma Mingas tem os pais vivos e por isso ainda é “a filha de”. No caso, de Ruy Mingas, músico (autor do hino nacional angolano), ex-ministro do Desporto de Angola e embaixador em Portugal, e Julieta Mingas, antiga professora de Biologia Celular na Universidade Agostinho Neto, em Luanda. É ela, mas não só, quem leva a conversa para África, onde os velhos morrem em casa e “cota” é uma palavra bonita. Diz que quando o seu cabelo começar a ficar branco, não o vai pintar. Os truques destas mulheres não são servidos em forma de receitas do tipo “x” comprimidos de vitamina B12 ou uma taça de mirtilos por dia. É mais uma questão de atitude: não sofrer por antecipação, trabalhar para ser o mais feliz possível, não ter medo de rir nem de chorar. P: Começo pela Nayma, a mais nova das três. Tem 44 anos e está rodeada por mulheres com metade da sua idade. Sente-se velha?Nayma Mingas (N. M. ): Não, de todo. O peso do envelhecimento tem muito a ver com o ambiente em que estamos. No meu caso, embora as pessoas com quem trabalho sejam muito mais novas do que eu, sei que faço parte da geração que quebrou esse tabu, da geração das mulheres que conseguiu provar que pode continuar a trabalhar como manequim independentemente da idade que tem. P: Como é que se quebrou esse tabu?N. M. : Tem a ver com a surpresa das pessoas quando digo a minha idade. As pessoas acham que eu tenho 30 anos. Ainda hoje o Paulo Macedo [ex-director criativo da Vogue Portugal] me disse: “Miúda, tu não envelheces!” Continuam todos a tratar-me por “miúda”. Perguntam-me se estou conservada em formol… fazem muitas piadas à volta da minha aparência. Mas uma das coisas mais importantes para a longevidade da minha carreira, independentemente da minha aparência, tem a ver com as campanhas internacionais feitas contra a discriminação, a favor da diversidade e a aceitação dos vários tipos de beleza. Isso é muito importante. A própria publicidade mudou. Há 20 anos, lembro-me de ver jovens com 25 anos a venderem cremes anti-rugas e não fazia sentido. Até era desrespeitoso em relação ao cliente. Maria João (M. J. ): Continua. Continua a haver anúncios desses…N. M. : Já não tanto. Até há o resgatar de manequins mais velhas para fazerem essas publicidades. M. J. : É verdade. N. M. : O público já é mais inteligente, já não vai atrás da miragem da beleza perfeita. As pessoas querem ser aceites tal qual elas são. Maria Cavaco Silva (M. C. S. ): Eu já vejo manequins da minha idade, senhoras fantásticas, com a sua idade marcada. . . Acho isso uma grande conquista. P: Hoje há sobretudo o culto do corpo estilizado e asséptico? Esse é o novo preconceito?N. M. : Sim. Vivemos no mundo das redes sociais, muito digital, onde podemos acordar com má cara, mas há uma aplicação que nos tira as olheiras, que nos suaviza a pele e até podemos mudar o cabelo, podemos estar completamente despenteadas e pôr um cabelo perfeito…M. C. S. : …Disto eu não sei nada…N. M. : … E isto cria uma forma de estar na sociedade que é errada. As pessoas estão a habituar-se à perfeição, à vida editável, e isso é mau porque no dia-a-dia as pessoas escondem-se, escondem-se atrás de maquiagens e de muitas formas de estar naturais que devem ser aceites naturalmente. P: Já não há a pressão da juventude eterna?N. M. : Ainda continua a haver, porque as pessoas cada vez mais a procuram. P: Na música há essa pressão?M. J. : Não. Não sinto isso, não senti até agora. Não senti, aliás, nenhum tipo de discriminação neste tempo todo. Sinto-me uma privilegiada. Tive muita sorte, estive sempre rodeada de pessoas incríveis, músicos absolutamente inspirados e que me ajudaram a ser a cantora que eu sou, a música que eu sou. Até agora não sinto, mas não sei se quando ficar mais velha se vou sentir. P: Diz que o seu instrumento “é” o seu corpo e “está dentro” de si. Não tem medo que o corpo envelheça mais depressa do que a cabeça?M. J. : Que os nossos corpos envelhecem mais depressa do que nós, do que nós pensamos e do que nós somos enquanto pensamento e pessoas, isso eu reparo. E reparo nas minhas amigas e nas pessoas à minha volta. Infelizmente é assim. Mas até agora tenho tido essa sorte. P: Como é que trata do seu corpo-instrumento, que truques usa para enfrentar a parte física do envelhecimento?M. J. : Sempre fiz desporto. Desde miúda que faço natação, agora comecei a correr, comecei a sonhar com triatlo, corro trail. Fiz aikido durante 40 anos (agora só parei porque me lesionei)… O desporto é uma coisa maravilhosa para nos mantermos bem. É essa a minha opinião e a minha experiência. Fiz isso com o meu filho: insisti desde sempre que ele fizesse desporto. P: Ele é atleta. . . M. J. : Sim, faz natação de competição e passou ao lado da droga, álcool, fumo. Sou muito fã de desporto e continuo a fazer, custe o que custar. Às vezes levanto-me e penso: “O que é que vou fazer? Vou correr, tenho que ir correr!” Tem de ser, todos os dias, e isso ajuda-nos e dá-nos muitas ferramentas em termos de disciplina, de sacrifício, de esforço, e mantém-nos bem, saudáveis e fortes. E mantém o sangue a correr. P: As cordas vocais envelhecem?M. J. : Até agora, não senti e continuo com esta “vozinha”!… Eventualmente, elas tenderão a envelhecer connosco, estão dentro do corpo…P: O que é que acontece às cordas, já estudou?M. J. : Não, não estudei, nem quero pensar nisso! Até agora, está bem, portanto não quero pensar nisso. Falar de envelhecimento, e debruçar-me muito sobre esse assunto, vai acabar por acabrunhar-me, vou ficar mais perdida. Continuo a fazer tudo o que sempre fiz e sinto-me bem e por isso prefiro não falar nisso, acho uma perda de tempo. P: Acaba de fazer 80 anos. Se pensar nas coisas importantes que aprendeu, o que é que não sabia quando tinha a idade da Nayma Mingas?M. C. S. : Quando tinha a idade da Nayma, estava dar uma grande reviravolta à minha vida. Quase sem sentir e quase sem saber, caiu-me em cima, de pára-quedas. Sei muito mais coisas hoje, mas provavelmente muitas das coisas que sabia quando tinha a idade da Nayma, já esqueci. Há um equilíbrio entre o que se vai limpando, porque é necessário, e o que vamos aprendendo. Continuo a sentir-me como professora, apesar de já estar reformada, mas isso é válido para todas as pessoas: todos os dias aprendemos qualquer coisa e o dia em que não aprendemos há qualquer coisa que falhou. Não creio que seja de ignorar que é importante aprender, mas também será importante desaprender. E é esse equilíbrio entre o aprender e o desaprender que vai continuando e, como a Maria João dizia, talvez haja determinadas coisas que, quando elas aparecerem, logo as enfrentamos. A Maria João disse: “Eu não vou estar já preocupada com isso. ” Lembro-me de uma coisa que o D. Manuel Clemente [cardeal patriarca de Lisboa] me contou há muitos anos, que havia uma senhora que lhe dizia, na parte final da vida, era ele apenas padre: “Ai, padre Manuel, tantas coisas com que eu me preocupei ao longo da minha vida e que não vieram nunca a acontecer!…”. Nunca me esqueci disto, porque isto é muito importante. P: Não sofrer por antecipação…M. C. S. : Não vale a pena estar a sofrer por antecipação. Acabei de fazer 80 anos, mas os meus amigos ainda dizem: “Continuas a ter uma voz de menina. ” [Envelhecer] não quer dizer que a Maria João não vá continuar a ter a sua voz e aquilo que tem feito ao longo dos anos. Ainda há bem pouco tempo a Celeste Rodrigues…P :… que tem 90 e tal anos…M. C. S. : Sim. Eu levei-a a Belém, para uma noite de poesia, e ela foi acompanhada pelo bisneto. O bisneto tocava e ela cantava. E ela dizia: “Tenho de sair de casa, tenho que cantar todos os dias, senão não sou eu, não me sinto bem. ”P: A sua opinião, a sua forma de pensar, mudou com a idade?M. C. S. : Sim, em relação a muitas coisas. Vi aquele filme, achei o filme extraordinário na altura. Agora vou ver outra vez: “Ai não, afinal não é assim tão extraordinário. . . ” Não quer dizer que seja uma questão de exigência… é uma questão…M. J. : … de ponto de vista…M. C. S. : … Não. É estar diferente, encarar as coisas de uma maneira diferente. No meu caso, mais madura. Mas a Maria João dizia — e é verdade — que a cabeça envelhece mais devagarinho. E é uma sorte quando isso acontece, porque depois há todas as doenças com o envelhecimento, as senis, os Alzheimers. Mas quando o envelhecimento é normal e natural, a cabeça vai mais devagar do que o corpo. Às vezes olho para um escadote e digo: “Vou subir. ” E depois digo: “Não, vamos lá tentar…”M. J. : … é melhor não!…M. C. S. : E digo: “Vamos lá tentar… É melhor não. ” E depois começo e concluo: afinal não é tão fácil como parecia. E o meu marido dá-me gritos: “Tu não penses sequer em subir o escadote!” É um risco que se corre com uma certa idade: a pessoa está em casa sozinha, tenho tido muitos exemplos disso, acha que vai, sobe, as coisas correm mal e uma fractura no colo do fémur muitas vezes é mesmo fatal. Portanto, temos de manter o equilíbrio entre a cabeça e o corpo. P: Diz-se que com a idade ficamos mais conservadores e mais de direita — e que isso acontece até às pessoas de esquerda. Como tem sido no seu caso?M. C. S. : Não, não acho. Eu era muito rebelde, mas as minhas colegas aqui [na entrevista] já me disseram: “É tal e qual como eu a conheço. ” Continuo bastante rebelde. P: É rebelde em quê?M. C. S. : Rebelde até nas reacções imediatas, coisas simples do dia-a-dia. Elas estão a dizer que sim [com a cabeça] porque foi nessa linha que elas disseram…M. J. : Foi sempre assim que a conheci, sempre, sempre…M. C. S. : Portanto, não mudei e os meus amigos dizem: “Tu estás sempre na mesma”, nesse aspecto de reagir de imediato, nariz arrebitado, linguinha afiada. . . P: Não é uma mulher ponderada, hoje que tem 80 anos?M. C. S. : Ai, não! Vê, como eu rio?! É que… “Di” jeito nenhum! As duas disseram-me isso. [Nos bastidores], a Nayma disse-me: “Ah, isto é de professoras, porque a minha mãe também é assim. ” Não tem de ser: há professoras muito calmas, muito cordatas, mas eu nunca fui. Não é agora que vou mudar. Mas não sei o que está para me acontecer. P: Quando era pequenina, a Nayma imaginava que ser velha era o quê?N. M. : Para mim, alguém com 40 anos já era muito velha. Tenho uma irmã que é oito anos mais velha do que eu e lembro-me de, a certa altura, olhar para ela, já era uma mulher e eu era ainda uma criança, e de ter jurado a mim mesma que nunca seria igual a ela. Tal era a minha ignorância sobre o crescimento e o desenvolvimento do corpo de uma mulher. Mas para mim ser-se velha nunca foi um termo depreciativo. O mais velho em África é sempre muito respeitado, tanto é que a forma como a palavra “cota” — palavras que vêm de Angola e que foram adoptadas em Portugal — são vistas em Portugal de uma forma… Em Portugal “cota” é ofensivo, para nós é respeito. Hoje já sou tratada por “mãe-grande”, “cota”, por miúdos que têm 18, 20 anos, que conhecem a minha carreira, e por respeito, já me tratam desta forma. Para nós, a pessoa mais velha é a pessoa com mais conhecimento, é a que nos educa, a que nos põe no caminho correcto. Em África, é assim. . . M. J. : É muito verdade, em Moçambique também é assim. M. C. S. : A Europa está um bocado virada. N. M. : A primeira vez que estive num asilo fiquei… não digo em estado de choque… mas em estado de choro. P: Foi em Portugal?N. M. : Sim. Nunca tinha visto os idosos serem tratados assim. P: O que é que viu?N. M. : Vi pessoas abandonadas, o que para nós não existe. Os nossos “cotas” morrem em casa, nós fazemos questão de os ter connosco. P: Em Luanda ainda é assim?N. M. : Sim. Ainda agora estive em Luanda e tive uma situação muito engraçada. Toda a gente ouve falar do trânsito, que é caótico. E eu estava a chegar a casa com a minha irmã, estávamos a entrar na rua da casa dos meus pais, de repente vimos uma senhora a atravessar a rua e eu reparei que estava com muletas. Disse “pára” e saí do carro para a auxiliar. O carro de trás começou a buzinar. No momento em que eles perceberam que eu estava a auxiliar uma senhora mais velha, pararam e começaram logo a pedir desculpa. “Ai, desculpa, desculpa. . . ” É assim que nós reagimos em relação às pessoas mais velhas. P: Não há lares de terceira idade em Luanda?N. M. : Neste momento, não posso dizer que não existam, porque temos muitos refugiados em Luanda, mas quando vim para Portugal, nunca tinha visto um asilo, não sabia o que isso era. M. C. S. : A Nayma chama “asilo” e nós chamamos “lar de terceira idade”. Aqui está a diferença do “cota” em África e do “cota” na Europa e em Portugal. O asilo é uma coisa muito mais negativa. Esta história da língua, para mim que sou professora, é muitíssimo interessante. P: Essa é a principal diferença entre envelhecer em Luanda e em Lisboa: os velhos não estarem sozinhos nos anos finais da vida?N. M. : Talvez. Não quero fazer uma acusação e dizer que todos os idosos são abandonados em Portugal. Talvez se deva ao facto de em Angola termos uma população muito jovem, e por isso cuidamos tão bem dos nossos idosos. A população em Luanda acima dos 65 anos é de 2%. P: É verdade que a pele negra envelhece melhor do que a pele clara?N. M. : Parece que sim. Parece que a melanina tem um peso muito grande na elasticidade da pele. A minha mãe é bióloga, poderia explicar melhor. Estou em crer que sim. Quando me deparo com colegas minhas da minha idade, a pele delas tem uma aparência completamente diferente da minha. Penso que já está provado: quanto mais melanina se tem, mais elástica é a nossa pele e menos tendência tem para envelhecer. P: A Maria João está no meio: se lhe pedisse uma palavra para definir que mulher era aos 20, aos 40 e agora aos 60 anos, qual seria?M. J. : Acho que diria a mesma. Eu sempre achei uma festa fazer anos. Fiz 20, hey! Fiz 30, oh! oh! Fiz 40, ah! Fiz 50, fiz 60, eh! eh! Sempre foi uma felicidade, nunca foi um peso para mim. Sinto-me sempre surpresa quando falamos disto e é a primeira vez que participo numa entrevista em que se fala sobre a idade. Porque eu, realmente — juro! — não penso nisso. Não é que não queira pensar porque tenho medo. Não costumo pensar. Como tudo funciona ainda bem… Olho para trás e vejo que a João dos 20 anos era a mesma coisa dos 30. OK, nos 30 tive o meu filho, portanto, talvez tenha ficado com mais essa responsabilidade, de tomar conta, ajudar a crescer e criar uma outra pessoa, e depois com 50… Julgo que sou a mesma pessoa. Mas se calhar há uma diferença entre aquilo que julgamos e aquilo que somos de facto — e aquilo que queremos. Eu gostaria de manter-me a mesma pessoa, de achar que continuo a ser a mesma João, com os mesmos defeitos e as mesmas qualidades. P: Hoje quer as mesmas coisas que queria há 30 anos?M. J. : Quero ser feliz, quero ser saudável, quero que me deixem fazer as coisas que eu quero, quero ser livre, quero não ter problemas, quero poder amar, não ter problemas para que possa fazer tudo, inclusive amar, porque quando temos problemas, financeiros, por exemplo, não conseguimos nem amar. É isso que eu ambiciono, mas julgo que sempre ambicionei. Quero um dia de sol, quero poder correr, quero que o meu filho esteja saudável, os bichos que eu tenho, os meus amigos…P: Quando vai em digressão — com os concertos, as noites e o peso físico que isso implica — faz coisas diferentes do que fazia há uns anos?M. J. : Não, eu continuo a fazer directas. Uma pessoa chega toda rota ao destino final, mas sempre cheguei toda rota aos destinos finais, porque directas não se fazem, nem agora nem em altura nenhuma. Mas continuo a fazer, tem de ser…P: Não canta a seguir a uma directa…M. J. : Então não!? Tem de ser! Se hoje tenho um concerto em São Paulo e a seguir um em Buenos Aires e se eu não fizer directa já não posso fazer… Não posso fazer o quê?! Claro que vou! Sou viciada em música, eu amo música, e por isso faço estas coisas. P: Quando é que fez a sua última directa em palco?M. J. : Em palco… cantar logo a seguir? Bom, eu arranjo sempre um bocadinho à tarde para desinchar! Para desinchar e para dormir um pouco. Não, não pode ser chegar e fazer o concerto. Isso nem se consegue, porque a voz não sai. Há uma diferença entre aquilo que nós queremos ser e aquilo que somos de facto. Mas o querer ser ajuda. E eu quero ser esta mesma pessoa. Quero as mesmas coisas. Eu quero e, como quero — e isto tem muita força. . . M. C. S. : Querer é poder…M. J. : Como quero, sou. P: No seu caso, faço a pergunta ao contrário: quando tinha 20 anos, como é que imaginou a mulher que seria se chegasse aos 80?M. C. S. : Nunca imaginei. Tenho uma relação bastante amistosa com o passar dos anos…M. J. : . . . “Relação amistosa. ” Não me vou esquecer. M. C. S. : Tenho boas razões para isso. Tenho uma mãe que morreu com 24 anos, com a praga da tuberculose — aliás, a minha avó materna perdeu os dois filhos que tinha. A minha mãe eu não conheci, mas o meu tio, que conheci, morreu dez anos depois com a mesma doença. A vida para mim é um dom, um dom que eu tenho de apreciar, dar muitas graças a Deus, permanentemente. Com 20 anos, eu estava debaixo daquela marca, porque fui criada de uma maneira um bocado calamitosa. Não fui criada com a minha avó. Fui criada com uma mulher da idade da minha mãe, irmã do meu pai, minha tia, em Lisboa, enquanto a minha avó permaneceu no Algarve. A minha avó — e percebe-se: quando eu tinha dez anos, morre-lhe o outro filho — eu espirrava e ela levava-me a Fátima. Costumo dizer: as avós levam os netos ao médico, a minha levava-me a Fátima. Isso fez de mim uma criança um bocadinho frágil, uma criança muito magrinha, assim como a Nayma — agora já sou mais anafadinha —, [uma criança com] um problema que só a Audrey Hepburn, com quem durante uns tempos me achei parecida, é que me salvou, porque a minha avó dizia, quando ela apareceu, muito magrinha. . . P: Uma revelação, Audrey Hepburn…?M. C. S. : Do meu marido eu digo que é parecido com o Cary Grant e ele diz: “A minha mulher era parecida com a Audrey Hepburn. ” Portanto, com 20 anos, tinha essa espada em cima da cabeça. Depois passou-me. Quando cheguei aos 30, já tinha dois bebés e isso saiu-me completamente da cabeça. E depois aos 40 continuei a fazer anos. Continua a ser um presente, portanto eu celebro. Tenho todas as razões para celebrar a vida. Há pouco perguntava à Nayma como é que se envelhece: eu lembro-me que quando a minha avó foi ao meu casamento, não tinha 70 anos ainda, as fotografias mostram uma velhinha, uma velhinha carcomida. P: É a alimentação, o tipo de vida?M. C. S. : Não sei. A minha avó, apesar de ser essa velhinha antes dos 70, viveu até aos 90 e, com esses desgostos grandes, todos os dias a vi dar uma gargalhada e a chorar ao lembrar-se dos filhos que tinha perdido. P: Todos os dias chorava e ria?M. C. S. : Todos os dias chorava e ria. São as faces fundamentais da vida. Uma mulher que chega aos 90 anos, sozinha (o meu avô também já tinha morrido) e que consegue todos os dias dar uma gargalhada, mas uma gargalhada franca, com alguma coisa que alguém dizia, e todos os dias tinha a memória daquilo que tinha perdido. O que tinha perdido nunca a impediu de dar uma gargalhada à vida. Foi ela que me ensinou a envelhecer. P: O seu marido foi primeiro-ministro a primeira vez em 1985 — estamos a falar de 33 anos à frente das câmaras de televisão e sob escrutínio público…M. C. S. : … Pior para ele. P: Isso impôs-lhe uma disciplina particular?M. C. S. : Não. Não me impus nenhuma disciplina. Aliás, falava-se muito nas “gaffes da Maria Cavaco Silva” porque eu continuava a ser a tal criatura…M. J. : … Isso fazia parte do seu charme. M. C. S. : Não pensar, dizer. Não me impus nenhuma disciplina porque isso não tinha a ver com a minha maneira de ser. P: Disciplina no sentido de ter de cuidar de si. . . M. C. S. : Não, não cuidava muito de mim. Tentava apresentar-me arrumadinha, gosto de ser uma velhota arrumadinha. Não me “produzia”, porque não é a minha profissão, a minha é ser professora. Talvez tenha tido mais cuidado quando o meu marido foi Presidente. Enquanto o meu marido era primeiro-ministro, eu trabalhava muito. Mas quando o meu marido foi eleito Presidente, achei que podia ser considerada uma certa imagem da mulher portuguesa e aí já tinha cuidado. Também já era mais velha. P: O que é essa “certa imagem da mulher portuguesa”?M. C. S. : Eu não sabia qual era a imagem da mulher portuguesa. Não há propriamente uma imagem da mulher portuguesa, da mulher inglesa… Eu achava é que as outras pessoas, quando eu viajava — e viajávamos muito — quando olhassem para mim, iam dizer: “Esta é uma imagem-padrão da mulher portuguesa”; “a mulher portuguesa é assim”. Achava eu que eles podiam pensar isso e portanto eu tinha de dar. . . eu dava, no fundo, a imagem daquilo que eu era. . . P: Concordam? Maria Cavaco Silva é a imagem-padrão da mulher portuguesa?M. J. : Acho que sim. N. M. : Também acho que sim. M. J. : E durante muito tempo representou-nos e eu senti sempre orgulho quando olhava para si. M. C. S. : Ai, esta é bonita!. . . M. J. : Sentia-me bem representada. Como mulher portuguesa — enfim, sou meio-meio — sentia-me bem representada por si. P: Para Nayma, o que é “a mulher portuguesa”?N. M. : É uma mulher altiva, por norma fala…M. J. : … pelos cotovelos!N. M. : E é uma mulher muito forte. Nesse aspecto, a mulher portuguesa e a mulher angolana são muito parecidas. São mulheres muito batalhadoras, bastante trabalhadoras, e acima de tudo altivas. O português, de um modo geral, tem esta coisa de falar assim um pouco… de cima. E eu gosto muito desta característica. M. C. S. : A propósito de a Nayma dizer que a mulher portuguesa é altiva, lembro-me de que, na Bulgária, não havia primeira-dama, porque ela não queria, era muito nova, com filhos… e o gabinete [do Presidente] tinha só mulheres, talvez para compensar. Uma delas veio ter comigo — ainda hoje mantemos contacto por e-mail — para dizer: “Sabe o que dizem aqui de si? She walks like a queen. ” Não é que seja mais importante ser rainha… É claro que eu caminhava melhor do que a rainha de Inglaterra caminha actualmente, mas ela continua a caminhar!P: A Maria João está quase a ter descontos nos comboios, nos teatros…M. J. : … Ai, que horror!. . . P: … nos cinemas, nos museus…M. J. : … Ai, que horror!. . . M. C. S. : Recuse os descontos!P: Justamente, é essa a pergunta: vai pedir “bilhete de terceira idade” ou vai fazer de conta?M. J. : Acha?! Nunca!M. C. S. : Tenho uma amiga que fez isso durante muitos anos! Recusou bilhetes mais baratos para não dizer que tinha mais de 65 anos. N. M. : Mas porquê…?!M. J. : Porque estas pequenas coisas acabam por nos influenciar. Uma vez, quando o Mário Laginha partiu um pé, eu andava a empurrá-lo nos carrinhos dos aeroportos, ele sentava-se e eu empurrava. Depois ele precisava de ir à casa de banho e eu dizia: ‘Mário, vai à casa de banho dos deficientes. ’ E ele dizia: ‘Não vou nada. ’ Eu dizia isto para o picar, mas eu compreendo, uma pessoa não quer. . . Nunca hei-de ter esses descontos. Quero lá saber!M. C. S. : Afinal essa minha amiga não está sozinha…N. M. : Eu vou usar os descontos. M. J. : O que é que é isso?!N. M. : Vou, vou. Fiquei tristíssima quando perdi todos os meus privilégios de ter menos de 25 anos. Portanto, quando chegar aos 65, vou aproveitar todos. M. J. : Isso vai influenciar-te…N. M. : Não influencia nada. M. J. : Vais ver. Vais para a fila e ao teu lado estão as pessoas… “nha, nha, nha”…P: A Maria João não sente pressa, não sente que o tempo está a passar e que tem que fazer coisas?M. J. : Ai, não! Não sinto nada disso. Sinto os dias normalmente. Acho que isto acaba por nos influenciar. Se formos para uma fila dos 60, ao nosso lado só estão essas pessoas. Prefiro não. P: Não há filas separadas, é só dizer “tenho mais de 65” e mostrar o B. I. …M. J. : Era só o que faltava, não, não, não! Não, porque eu não me sinto assim e espero que não me façam sentir assim. Tudo o que está relacionado com mais idade e ter mais idade, nunca partiu de mim. Nunca pensei: “Ah, estou mais velha, portanto, oh…!” Já aconteceu, mas vem de fora, alguém que menciona. Apanha-me sempre de surpresa. P: Se calhar a expressão “terceira idade” já não se adequa e está na altura de inventar a “quarta idade”…M. C. S. : Ou quinta e sexta…! O professor Adriano Moreira é da terceira idade?M. J. : A única diferença que sinto dos 20 para agora é que, antes, eu era filha de alguém e depois passei a ser mãe de alguém. Depois de os meus pais faleceram, fiquei “a mãe”, a mãe de alguém. Isso eu senti. Isso foi duro. Deixei de poder dizer: “Oh mãe, eu…” Isso desapareceu. P: Há pouco utilizou a expressão “velhota”. Velhota, velha, idosa, pessoa da terceira idade… Qual é a melhor palavra?M. C. S. : Cada pessoa usa a sua. Eu acho graça à palavra velhota. Terceira idade já não faz grande sentido, como estávamos a dizer. Pessoas como o Adriano Moreira, o Eduardo Lourenço…M. J. : … “Cotinha”… gosto de “cotinha”…M. C. S. : … pessoas com mais de 90 mas que não atiraram a toalha ao chão. Quando digo isso, é por graça. Mas [os anos] estão todos cá. É a tal história do escadote: posso querer subir o escadote, mas se subir pode correr mal e vai doer aqui, vai doer ali, e posso “despencar-me”, como dizem os brasileiros, do escadote abaixo. P: Nas três fases diferentes em que estão, que truques usam para enfrentar o envelhecimento? É a taça de mirtilos diária, é a vitamina B12, é fazer sudoku, desporto, rir e chorar?…M. J. : Comer bem e compreendermos o nosso corpo. Isso é muito importante. Como cantora, preciso de compreender o meu corpo. Como é que ele funciona, o que é que me faz estar cansada, o que posso fazer para melhorar, para colocar a voz bem, o que posso fazer pelo meu corpo. Essa compreensão que eu ganhei, muito por ser cantora e por praticar desporto desde sempre, é muito importante. Se nos compreendermos bem, sabemos ajudar o corpo e a cabeça a caminhar todos os dias. P: Isso exige alguma autocontemplação…M. J. : Não. P: Como é que se faz?M. J. : É viver. Ouvir, ouvir o meu corpo, ver como ele funciona. Dói, não dói, o que falta. P: Estuda os alimentos?M. J. : Agora, sim, tenho cuidados, sou vegetariana. Não é por estar mais velha, é porque tomei consciência da forma como os humanos tratam os animais, que é inadmissível, e causa-me uma dor, uma revolta que é insuportável para mim. A maneira que eu tenho de protestar é não comer carne, não comer peixe, comer coisas saudáveis. Tenho um filho e tenho cães e, portanto, tenho que ir ao talho, porque eles comem carne. Mas se é frango, compro frango do campo, se é ovos, compro biológicos, se é queijo, é biológico. Tento que a minha passagem nesta vida esteja sempre ligada a boas coisas e não à tortura e ao sofrimento. P: Há um estudo que dá como explicação para a extrema longevidade dos japoneses — que têm o recorde mundial de centenários, mais de 65 mil — o facto de terem começado a comer carne. . . M. J. : Eles, se calhar, tratam melhor os seus animais; se calhar, não fazem as barbaridades que nós fazemos. . . P: Os seus truques, Nayma?N. M. : Vou dar uma resposta um bocado cliché, mas acho que tem mesmo a ver com a felicidade. Não troco a mulher que sou hoje pela mulher que era quando tinha 20 anos. Aprendi a estar comigo, a entender-me melhor, aprendi a dizer “não”. Antes, dizia “sim” com muito facilidade, mesmo quando pretendia dizer “não”. E isso deu-me uma serenidade e uma forma de estar, comigo e com os outros, que faz com que me sinta muito mais feliz. Esse é o primeiro passo. Depois, tal como a Maria João, pelo pai que tenho, fui obrigada a praticar desporto. O bem-estar físico é essencial, uma boa alimentação é essencial. Mas a nossa longevidade passa muito por sermos um pouco rebeldes, por termos a capacidade de dizer “não” e gostarmos muito, primeiro, de nós, tratarmo-nos bem. Só assim conseguimos estar bem na sociedade. Eventualmente, ganhar alguns cabelos brancos, que acho bonitos, ganhar algumas rugas. P: Os cabelos brancos serão bonitos, mas noto que todas pintam o cabelo…N. M. : Eu não pinto o cabelo. Já tenho alguns cabelos brancos, mas o meu cabelo é muito escuro. P: Não vai pintar daqui a uns anos?N. M. : Não. Quando a minha mãe pintou o cabelo [para tapar os brancos], eu e os meus irmãos tivemos uma atitude… não agressiva… mas ficámos revoltados, porque achámos que ela tinha de envelhecer naturalmente, com os seus lindos cabelos brancos, que mantém até hoje. Acho que é a melhor forma, aceitarmos o que vem com a idade. Não tenho nada contra os sinais do envelhecimento. P: E a Maria João?M. J. : Acho que fico muito feia com cabelos brancos. Tenho muito pouquinhos, como a minha mãe, mas não gosto de me ver, acho que fico baça, ficamos sem brilho. P: Identifica-se?. . . M. C. S. : Não, não foi tanto isso. A Nayma não vai cumprir, quase de certeza. M. J. : Não vai quê?P: Cumprir…M. J. : Também acho que não. M. C. S. : Vai ficar escrito e gravado e daqui a uns anos vemos!… Começaram a aparecer muitos cabelos brancos quando eu era bastante nova. Tinha uns 30. Quando fiz os 40, disse: “Acabou. ” Comecei por fazer riscas…. Agora, é capaz de ser mais difícil, porque me habituei a não ser baça. M. J. : Castanho é mais bonito do que cinzento. O cinzento é uma cor mortiça. M. C. S. : Há pessoas que ficam muito bem todas brancas. A Barbara Bush, que morreu agora, começou muito cedo, porque teve um problema na vida que fez com que ela, um pouco como a Maria Antonieta — um desastre dos pais e uma filha que morreu com uma leucemia muito bebé e [tudo] isso foi muito próximo — assumisse. Eu achava que ficava bem, não a imaginava de outra maneira. Não era por ter o cabelo branco que parecia mais velha. Mas há uma coisa que eu queria dizer, porque elas não têm experiência: o que nos envelhece, francamente, é a falta de saúde. Agora tive essa experiência: fiz a festa para celebrar os meus 80 anos e, das minhas amigas, quase ninguém pôde estar. Umas tinham morrido, outras estavam doentes ou em lares — os “asilos” — por causa de problemas de saúde graves. O que nos envelhece a sério é quando temos um problema de saúde grave. A saúde é um bem a que eu tenho de agradecer todos os dias. As pessoas dizem: “Mas todos os dias?” Agradeço todos os dias. Quando olho para o espelho de manhã, agradeço. P: Reza todos os dias?M. C. S. : Sim, sim, rezo todos os dias. P: Agradece especificamente o facto de ter saúde?M. C. S. : Agradeço a Deus tudo, mas sabendo que essa é uma das graças. Ter saúde, e o meu marido também, estarmos os dois bem, estarmos os dois um com o outro, porque quando desaparece um… é complicado. P: Fala sobre a viuvez com o seu marido?M. C. S. : Não, não falamos sobre a viuvez, mas falamos muito sobre a doença. E dizemos… O meu marido tem uma coisa que é dizer: ‘Hum. ’ E eu digo: ‘Um, não: dois. ’ E rimos. E dizemos sempre: “Dois é muito melhor do que um. ”P: Isso é uma forma de não falar da morte. . . M. C. S. : Não. É uma forma de agradecer o facto de estarmos os dois ainda. Também não somos assim tão velhos, [mas] sabemos de muitos dos nossos amigos em que já está só um. . . P: Estatisticamente, são sobretudo as mulheres que ficam viúvas. M. C. S. : Porque são mais valentes, lá está, como nós dizemos. M. J. : Sim, somos mais valentes. P: É difícil falar da morte?M. C. S. : É, é difícil falar da morte. Para a minha avó, e para a sua geração, não era. A minha avó nasceu no fim do século XIX e morreu em 1984 — a morte era uma grande naturalidade. As pessoas morriam em casa, na aldeia, fazia-se o velório em casa, era uma grande naturalidade. A nossa contemporaneidade chuta a morte para debaixo do tapete. Mas temos que nos habituar a saber que é para todos. Mas como a Maria João dizia, enquanto estamos bem, temos de aproveitar. Porque sabemos que tudo vai acabar. Para mim, não acaba tudo, porque tenho fé, há um outro lado. Mas não, não é uma coisa que as pessoas… à Maria João é melhor nem lhe perguntar!P: A sua avó não terá lido o Séneca…M. C. S. : Não leu o Séneca!…P: É talvez o filósofo que mais escreveu sobre a morte e que falava, justamente, sobre a naturalidade da morte. . . M. C. S. : A minha avó não considerou natural perder uma filha com 24 anos e um filho com 26. Isso não era natural. Os filhos morrerem à frente dos pais não é natural. E ela, coitada, foi confrontada com isso e passou décadas da sua vida sem filhos. Quando eu nasci, a minha avó tinha 44 anos. P: Outra coisa que o Séneca diz aos amigos é: “Estuda a morte”, “ensaia a morte”. Faz sentido esta ideia de estudar a morte para a recebermos de forma natural — a ideia de saber “viver bem” e saber “morrer bem”?M. C. S. : Depende do que nos acontecer em termos do tipo de doença. . . Eu não gostava nada de morrer num acidente de carro. Era uma morte brusca de mais. Outro dia estava num sítio onde havia vários médicos e um disse: “Eu já decidi: quero morrer com Alzheimer, com um cancro, não. ” E porquê? “Porque com Alzheimer chateio os outros, com o cancro chateio-me a mim próprio. ” Este médico tem esta teoria. Eu não sei. Ninguém sabe. M. J. : Eu espero… já dei por mim a falar com o meu melhor amigo e a dizer: “Um dia que eu fique mesmo toda doente e se vires que eu não tenho safa, tu acaba comigo, ouviste? Porque o João, que é o meu filho, não vai ser capaz. Por isso, tu acaba comigo, que eu não quero isto para nada, por favor. ” Às vezes, nos meus momentos mais lamechas, penso: “Ah, aquelas pessoas que protestaram tanto a meu respeito vão sentir a minha falta e vão estar todas no meu funeral!” Que disparate…M. C. S. : Uma vez estive num debate onde estava o João Lobo Antunes, a Bárbara estava a apresentar aquele livro…P: Na FLAD, sobre imortalidade, da bioeticista Maria do Céu Patrão Neves…M. C. S. : E o João, que morreu novo e que teve um papel muito importante sobre o envelhecimento activo, disse: “Nós não sabemos o que vai acontecer. ” Acho sempre difícil dizer, como a Maria João diz: “Ai acaba comigo”. Sei lá!. . . M. J. : Mas eu estou a torcer [para que haja vida para além da morte]! Seria uma surpresa maravilhosa. Não sabemos. Pelo sim, pelo não, vou tirar o maior partido possível, agora que estou aqui. Não sei se há. Se aparecer, se acontecer outra vida, se continuarmos de alguma forma, será uma bela surpresa. Estou disponível para isso, mas não tenho a certeza. M. C. S. : Certezas não há. Há pessoas que dizem: “Ter fé é uma grande sorte”, mas não. A fé é a interrogação permanente. Estou a ler agora o [padre-poeta José] Tolentino [Mendonça], o retiro que ele preparou para o Papa Francisco [O Elogio da Sede, Quetzal, 2018]. E ele diz isso várias vezes: a crença é uma interrogação permanente, é um grande salto no vazio. Ajuda? Não ajuda? A um amigo que era franciscano, e estava gravemente doente, eu perguntava-lhe isso e ele dizia: “Dá-me impressão que não, que não ajuda, que complica muito, porque nós pomos, talvez, mais questões permanentes do que os ateus. ” Eu acredito e tenho muita fé nessa surpresa. M. J. : Em África é diferente. A vida e a morte estão muito próximas e os mortos coabitam connosco e estão presentes e influenciam-nos e nós sentimos a sua presença. N. M. : Posso falar só por mim? Eu lido muito mal com a morte. Além de gostar muito de estar viva, gosto muito de ter as pessoas que amo à minha volta. Lido muito mal quando perco alguma destas pessoas. Os meus pais, como já passaram dos 70, às vezes gostam de mandar aquelas bocas: “Nós não vamos durar para sempre. ” Nem esse tipo de frases gosto de ouvir. Agora falando de Angola, nós lidamos com os mortos de forma muito respeitadora, são feitas muitas celebrações relacionadas com a evocação do poder de quem já foi, porque acreditamos que eles estão sempre connosco. Recentemente, ofereceram-me uma máscara [de etnia] cuba, do Norte do reino do Congo, lindíssima, que me foi oferecida porque sou coleccionadora de máscaras. Quando fui estudá-la, descobri que é uma máscara de celebração de nascimento e de morte. Até a nossa própria arte liga o nascimento à morte. M. J. : Para nós, europeus — estou sempre a dizer “nós, europeus”, “nós, africanos”, é sempre uma mais-valia, isto de ser moçambicana e portuguesa — mas este peso na Europa, quando morre alguém, será que vem da religião católica? A culpa com que nós ficamos… Um peso, uma coisa horrível. Preferia encarar com uma maior leveza, como os africanos. M. C. S. : Não acho que seja da religião católica. M. J. : É uma pergunta que eu faço. . . M. C. S. : Uma das coisas más de envelhecer é que perdemos muitos amigos e muitos familiares. Acabamos por estar sozinhos. P: Sente essa solidão?M. C. S. : Talvez não sinta tanto porque somos dois, mas isso é difícil. Noto que a própria Igreja Católica e os padres jovens puxam-nos para cima, os funerais têm música, estamos mudando isso. P: Há pouco falou do livro sobre a bioética, que é muito interessante e assustador: sobre como a ciência se prepara para nos dar a imortalidade. Os olhos biónicos, os exo-esqueletos, as impressoras 3D que imprimem órgãos…M. J. : Pensem nesse sonho: uma pessoa está doente e tem um cancro e substitui o órgão, isso é uma boa notícia!M. C. S. : E a cabeça, e o miolo, e o que está cá dentro?M. J. : A nossa alma… é isso?. . . M. C. S. : Não só a nossa alma, mas o cérebro. M. J. : Onde é que fica a nossa individualidade? Aquilo que somos, eu, a D. Maria, a Nayma… se começarmos a substituir tudo?P: Imaginam-se a ter 500 anos?M. J. : Não, mas imagino-me a ter um problema num órgão e substituí-lo. Vou morrer se não o substituir. M. C. S. : Isso já se faz. M. J. : Mas não será para toda a gente. Mais uma vez, a saúde e a imortalidade será para as pessoas que têm posses. M. C. S. : As imortalidades que estão a construir não me interessam. A criogenia, essas partes, esses sobresselentes todos… Se isso fosse possível, já não era uma pessoa. Daqui a 500 anos, era um robô. M. J. : Mas se tiver, de hoje para amanhã – Deus queira que não –, um problema num pulmão, não substitui?M. C. S. : Sim. M. J. : É saber até onde é que vamos substituir as coisas. . . Até à capacidade do nosso bolso!M. C. S. : Já tenho amigos a viver com um coração novo. O seu colega da música, o Salvador Sobral, foi uma alegria. Para um jovem, é uma coisa fantástica. Para uma pessoa de 90 e tal anos, já não sei se será, não sei. M. J. : Será que, quando formos mais velhos, não nos vamos agarrar ferozmente a isto? E todos os dias levantamo-nos e dizemos: “Está um belo dia de sol!”? Eu, quando morrer, espero bem não morrer no Verão. Sentir-me-ia tão triste. Morrer no Outono, ainda vá. Agora no Verão…M. C. S. : A minha mãe morreu na Primavera. N. M. : Não acho nada interessante a ideia de imortalidade. Se o ser humano se torna imortal, o planeta não evolui, vamos ficar com um planeta repleto de pessoas com as mesmas ideias. O interessante da humanidade é a evolução, a diversidade. Podemos, como o Salvador, trabalhar a ciência para salvar os jovens…M. J. : E os outros menos jovens?N. M. : Calma, deixa-me terminar. Eu sempre disse que queria morrer cedo. Acho que o interessante é deixarmos uma história escrita, deixarmos algo. P: É isso que o Séneca diz: “A vida é como as histórias: o importante é como é feita, não se é comprida. Não importa em que momento a acabamos. Pára-a quando quiseres. Mas dá-lhe um bom fim. ”N. M. : Concordo. M. J. : Se pudermos decidir, porque a maior parte das mortes são péssimos fins: doentes, em dor, em sofrimento. A maior parte das mortes que eu vejo são assim. Isso não é nada desejável. Poder aceder à sua morte, poder planear e morrer em beleza, morrer saudável. Eu digo sempre: “Eu vou morrer, mas vou morrer saudável. ” A minha amiga, que fuma, fuma, fuma, diz: “Eu hei-de morrer toda podre. ”P: É a favor da eutanásia?M. J. : Acho que sim. As pessoas têm de ter o direito de escolha. E de decidir. Mais uma vez: nós sabemos de nós. Eu amo a vida, penso que nunca me irá acontecer, a não ser que esteja profundamente doente e em pleno sofrimento. E se eu estiver em pleno sofrimento e se não tiver um caminho para ir, se não tiver… no purpose… nenhum propósito, e se eu escolher, espero que me respeitem. Agora estarem em cima de mim, a proibirem-me, “não, não, não pode porque, porque, porque. . . ” Deixem-me escolher. Mas este é um tema muito profundo. P: E no seu caso?M. C. S. : Sou contra esta visão da eutanásia à escolha, porque muitas pessoas acham que vai ser óptimo, mas o resultado não tem sido tão bom, aquela rampa deslizante tem sido tremenda. Já temos muitos meios, e teremos mais com certeza, para dar uma morte tranquila. Mas também acho que não é neste tipo de conversa que vamos pôr em jogo todas essas…M. J. : …É muito profundo, não há certezas absolutas, não é? É um assunto demasiado delicado, demasiado forte…P: A socióloga Maria Filomena Mónica diz que durante muito tempo se opôs à eutanásia e que o que a fez mudar de opinião foi ver a morte de dois amigos e da sua mãe. M. J. : Há essa pequena coisa. Imaginem-se lá: completamente em pleno sofrimento, não vamos sair dali, temos um cancro terminal, não há um caminho e é só sofrimento a nossa vida, e se eu escolher, se eu escolher em plena lucidez, eu quero terminar isto…M. C. S. : … Se está assim tão mal, a lucidez já não deve estar muito boa. M. J. : E se eu estiver lúcida? Se eu escolher isso, espero que não me venham dizer: “Não vais porque eu acho. . . ”P: Se o corpo está em sofrimento e já nem há lucidez, somos o quê?M. C. S. : Somos uma criação divina que encontrará o seu caminho. A falta de lucidez não nos deixa tomar decisões. Há a decisão, de que os meus filhos estão informados, que é dizer: “Nada de encarniçamentos terapêuticos. ” Mas ainda há muita coisa a fazer para a calma da morte. Tive vários casos a que assisti e percebi que isso foi bom, em que foi possível dar uma morte tranquila. P: Para acabar, se tivessem que escolher um único conselho sobre envelhecer bem, qual seria?Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. N. M. : Para mim, é a felicidade. Começa de dentro para fora. M. J. : Para mim, também. Sermos o mais felizes que conseguirmos. Compreendermo-nos, respeitarmos os outros, respeitarmos a Terra em que vivemos, as outras formas de vida. É a felicidade, realmente. M. C. S. : Talvez recordasse o exemplo da minha avó: conseguir todos os dias ter uma gargalhada e lágrimas, que também fazem parte da felicidade.
REFERÊNCIAS:
De sofá em sofá na Terra Santa
Um casal com um bebé a fazer couchsurfing em Israel e na Palestina? Parece loucura, mas é a forma mais fascinante de viajar. Com a família, à descoberta de templos, praias e iguarias nos sofás de judeus e árabes. (...)

De sofá em sofá na Terra Santa
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um casal com um bebé a fazer couchsurfing em Israel e na Palestina? Parece loucura, mas é a forma mais fascinante de viajar. Com a família, à descoberta de templos, praias e iguarias nos sofás de judeus e árabes.
TEXTO: Todas as manhãs, o velho Youssef vai ao jardim colher ervilhas. Chegado à sala, onde da salamandra ainda emana o calor da lenha da madrugada, coloca as vagens num alguidar e começa a descascá-las para a Lia, a nossa filha de 15 meses. Depois, sentado na poltrona de que é dono e senhor, pega-a ao colo com a suavidade que só os avôs sábios sabem ter e vai-lhe passando, um a um, os grãos verdes brotados em terra palestiniana. Na mesa, há chá, pão e labneh, um dos queijos mais antigos do mundo, temperado em azeite. Estamos em Beit Ummar, uma vila a escassos quilómetros de Hebron, a cidade mais problemática da Cisjordânia, onde os muros da escola têm pintadas as caras dos mártires adolescentes caídos durante a Intifada. Mas em casa de Youssef respira-se tranquilidade. Ele, a mulher e os cinco filhos tratam-nos como parentes, deram-nos um quarto alcatifado e até montaram uma rede de baloiço para a Lia no quintal. Do terraço, a que Youssef insiste em levar-me todos os fins de tarde, vê-se o Mediterrâneo que banha Telavive, que ele bem conhecia quando, enquanto camionista, transportava frutas e legumes para Gaza. Depois da construção da barreira de separação entre Israel e a Cisjordânia, em 2003, o mar ficou reduzido a uma linha no horizonte que só daqui pode vislumbrar. À noite, visitamos a sua filha mais velha e o neto no campo de refugiados de Al-Arroub. Existe há 70 anos: já não é um acampamento, é bairro de tijolo e cimento. Ignorando os dois soldados armados que patrulham a entrada, a Lia e o pequeno Ahmed pulam, descontrolados, nos sofás arabescos. Mais um serão nos territórios ocupados. Nove folhas arrancadas ao calendário e estamos em Netanya, 30km a norte de Telavive, com Gilad, engenheiro hidráulico, a acender uma vela e a entoar um harmonioso cântico para dar com a família as boas-vindas a mais um shabbat, o dia de descanso semanal no calendário judaico. À mesa, a acompanhar uma deliciosa sopa de lentilhas, frango e massa, somos brindados com uma história familiar contada pela mãe de Gilad, que veio nascer a Israel porque os pais fugiram da Alemanha logo nos primeiros anos da ascensão nazi. Foi nessa época, no início dos anos 1930, que os pioneiros sionistas ergueram Netanya a partir de dunas arenosas, irrigaram-na, cultivaram-na e transformaram-na ao longo das décadas numa das maiores cidades de Israel e sede de algumas das principais empresas tecnológicas. Julia, mulher de Gilad, alemã ateia como Ilka, a minha namorada, é relações públicas no Ebay. As três filhas do casal são evidências da ironia da história: judias alemãs, com avós carrascos e vítimas da Segunda Guerra Mundial, falantes de hebraico e alemão. Filhas do Holocausto, mas também de Israel 2. 0. , país que mais incuba startups depois dos EUA. Gilad gosta que o acompanhemos a passear o cão na zona agrícola que circunda a sua vivenda, decorada com dezenas de bandeirinhas de Israel, assinalando o 70. º aniversário da nação hebraica. Explica-nos a complexa engenharia necessária para irrigar esta região árida e, no topo de um barranco, aponta-nos a pujante expansão de Netanya, que com as suas torres espelhadas ameaça transpor a barreira da autoestrada para engolir este arrabalde bucólico e sereno. A cidade, habitada por um mosaico étnico que vai desde eslavos a etíopes, transformou-se numa das maiores estâncias balneares do país. Os seus 14km de costa de areia fina, praias animadas com campos de futebol, basquete, vólei, skateparks, ginásios e esplanadas, são um chamariz para o turismo interno e além-fronteiras, com destaque para russos e franceses. O mar é tranquilo e tépido. Só a silhueta dos arranha-céus nas falésias macula o cenário. Sábado é dia de piquenique. Orgulhoso do percurso do seu país, Gilad leva-nos até aos jardins de Ramat HaNavid, um memorial ao Barão Edmond de Rothschild, que ao adquirir terras a árabes nesta zona, pantanosa e infestada de mosquitos maláricos, se tornou num dos percussores do sionismo - “O Famoso Benfeitor”, como é conhecido. Para além da faceta histórica, o jardim é de uma beleza exuberante, com centenas de espécies de flores, árvores e ervas aromáticas a salpicarem estátuas e fontes aos pés do Monte Carmelo. Lia, que há uns dias brincava com árabes num campo de refugiados, corria agora com três meninas judias diante do túmulo de um dos homens que abriu caminho para a fundação de Israel e para a expulsão dos palestinianos em 1948. Brincar da mesma maneira com israelitas e palestinianos que, geralmente, nunca têm a possibilidade de coexistência. Esse é o privilégio de qualquer criança estrangeira que pisa estas terras. E a forma de mostrar que a inocência vem antes do preconceito. Este acesso à vida familiar de judeus e muçulmanos não estava previsto. Poucos dias antes do voo para Telavive, fomos surpreendidos pelos preços exorbitantes dos hotéis em Israel num mês de Abril carregado de festas e feriados – Pesach (celebração do êxodo dos judeus do Egipto para Israel), Páscoa, Shoah (Dia Memorial do Holocausto) e o Dia da Independência. Íamos viajar um mês e, com aqueles valores, rebentaríamos o orçamento em menos de uma semana. Assim, tivemos de procurar alternativas. O couchsurfing surgiu à cabeça: ambos já o tínhamos experimentado com bons resultados mas, desta vez, íamos com a bebé. Estariam os anfitriões disponíveis para aceitar o choro nocturno de uma criança? Para apanhar os cacos de copos e bibelôs partidos? Na pesquisa, descobrimos que havia um parâmetro “children-friendly”. E que alguns dos anfitriões até tinham catraios em casa. Foram esses que receberam primeiro os nossos pedidos. Sem saber, estávamos a ingressar numa viagem pelos lares da Terra Prometida: a melhor maneira de conhecer diferentes pessoas e culturas, comidas e monumentos, opiniões políticas e religiosas, enfim, entender a viagem. E entreter a Lia. Não foi fácil explicar esta opção aos familiares. Já uma ida à região numa altura em que os telejornais mostravam as manifestações em Gaza era difícil de conceber. Mais ainda, eliminando o conforto para pernoitar em sofás de estranhos. Mas quem já esteve no país sabe que, evitando-se as áreas conflituosas, se trata de uma zona segura. Longe de nós colocar a nossa filha numa situação arriscada. Quanto aos sofás, revelaram-se mais confortáveis do que muitos quartos de hotel. A vasta varanda do apartamento de Moishe Kerber, de 28 anos, era razão suficiente para termos ido a Israel. Fica na Rua Levinski, no sul de Telavive, numa zona marginalizada mas em rápida transformação graças ao processo de gentrificação que se alastra do vizinho bairro hipster de Florentin. Tem três sofás velhos, uma mesa com um tabuleiro de xadrez, várias garrafas de cerveja vazias e plantas em vasos lascados. Mas não era a decoração que a embelezava: era a brisa morna que a varria e os sons que lhe chegavam das buzinas e das melodias do Médio Oriente. A casa de Moishe não estava na lista de receptividade para crianças. Ele, solteiro, produtor de televisão, amante de whisky e bicicletas, acudiu a um pedido de alojamento que publicámos numa página de Telavive no Facebook. Filho de pai russo e mãe americana, cresceu em Indiana, nos EUA, optando por Telavive para iniciar a vida adulta. Frequentou o exército, como todos os israelitas, e participou na guerra em Gaza em 2014. Este era um tema que o incomodava – confessou ter perdido amigos mas não se estendeu sobre as suas acções enquanto militar. Guardava uma bala e óculos de visão nocturna. A sua inaptidão inicial com a Lia terminou com os dois a jogarem futebol no terraço. Telavive é uma bolha de liberdade e de laicismo no Oriente Próximo. À “cidade branca”, património mundial pelos seus edifícios de arquitectura Bauhaus, confluem ateus e pecadores, gays e intelectuais, empreendedores e pacifistas. Podem ser vistos a passear de trotineta e de auscultadores no jardim central da Avenida Rothschild, numa festa bissexual de uma discoteca árabe em Jafa ou de biquínis reduzidos e tatuagens na praia. “A praia é o lugar a que toda a gente vai depois do trabalho”, diz Moishe. “Uns calções de banho e uma prancha de surf fazem parte dos equipamentos indispensáveis a qualquer morador desta cidade. ” É, portanto, o melhor ponto de partida para conhecer a capital de Israel. Um mergulho nas águas cálidas, enquanto a Lia roubava baldes e ancinhos a outras crianças, auspiciava um mês épico. A sul, as praias têm menos gente, enquanto as do norte são mais populares. No milenar porto de Jafa, bons restaurantes de peixe escondem-se em vielas misteriosas, encimadas pela mesquita Al-Bahr (Mesquita do Mar), onde as mulheres dos pescadores árabes rogavam o seu regresso da faina. Após um sumo natural de romã, o passeio prosseguiu no charmoso bairro de Neve Tzedek, que já cá estava antes de Telavive nascer, há 109 anos. Há várias galerias, pequenas livrarias e esplanadas que servem vinho de qualidade. Daí, uma caminhada de 15 minutos levou-nos ao mercado de Carmel, o epicentro da vida comercial em Telavive. Tudo se compra e tudo se vende: morangos carnudos, grão-de-bico para o húmus, pão quente, queijo de cabra e muitos vegetais frescos, com uma prevalência de beringelas. Há ainda t-shirts e quadros com Donald Trump e Vladimir Putin vestidos de mulher. Telavive não perde uma oportunidade para se assumir como capital da tolerância numa região conhecida pelas restrições às liberdades individuais. O Parque Yarkon, a norte, junto aos museus Palmach (história/política) e Eretz (arqueologia) faz as delícias das crianças com dezenas de parques infantis e gaivotas para navegar no rio. Perto de casa, o mercado gastronómico de Levinski oferecia uma excelente selecção de queijos frescos, azeitonas e especiarias e ainda pequenos restaurantes com húmus e falafel divinais. Ao fim da tarde, a esplanada do Toni & Esther enchia-se de clientes ávidos de aperitivos e de cerveja nacional em horário promocional. Moishe chegava do trabalho todas as noites pelas 23h. Sentávamo-nos nos sofás descarnados a discutir a actualidade de Israel em animadas tertúlias sobre política e religião, em que o meu anfitrião me elucidava sobre pormenores para os quais eu não encontrava explicação. Era um dos interlocutores mais isentos e esclarecidos que jamais encontrara no país. Explicou-me as razões de os judeus ortodoxos estarem livres de serviço militar, a simbologia da indumentária das diferentes correntes judaicas (“os sionistas usam quipá azul”), como é que nasceu um batalhão transexual no exército, o que se celebra em cada feriado. Naquela varanda, aprendi mais sobre Israel do que na minha estadia anterior. Escolhemos mal o dia para chegar a Haifa. É feriado, último dia de Pesach, não há transportes públicos e escasseiam os táxis, pelo que tivemos de empurrar o carrinho de bebé encosta acima até ao apartamento de Dima e Schlomit, os nossos cicerones. Há cidades íngremes e depois há Haifa, que só os deuses impedem de resvalar do Monte Carmelo. Felizmente, o casal reconheceu o nosso esforço e premiou-nos com um jantar comemorativo de borrego e arroz de passas regado com vinho branco, na companhia de um par amigo e de Lenny, o miúdo da casa, de dois anos, que logo quis mostrar à Lia a sua tara por pistas de comboios. Da janela, uma panorâmica do mar rubro ao entardecer. Ali perto, o Mosteiro de Stella Maris, sede mundial dos cristãos carmelitas, assinala a caverna onde o profeta Elias se refugiou na sua luta contra os profetas de Baal. É uma igreja pequena mas extremamente bela, hoje local de peregrinação. Logo em frente, chegam e partem os teleféricos panorâmicos para a costa. No entanto, é a mais recente das religiões monoteístas que ocupa um lugar central na cidade: os Jardins Suspensos de Haifa, ou os Terraços da Fé Bahá'í, desfilam do topo à base da montanha, dispondo jardins coloridos e frondosos por socalcos em redor do Santuário de Báb, percussor desta crença nascida no actual Irão. Descalços e em absoluto silêncio, visitámos o mausoléu, pedindo a Báb que a Lia não acordasse aos berros. Lá fora, a vista desfiava-se pelo bairro da Colónia Alemã até ao mar, delimitada por flores e sebes. Tudo evocava harmonia, equilíbrio e limpeza. Com 15% de árabes, Haifa é uma das cidades mais multiculturais de Israel e isso pode ser visto no Fattoush, um ilustre restaurante palestiniano com aroma a açafrão e vapores de narguilé, ou em Wadi Nisnas, o quarteirão árabe, com um mercado tradicional onde fomos surpreendidos por um carro forrado a carpetes e pelos deliciosos knafehs, um doce à base de queijo, pistácios e uma espécie de aletria, embebido em xarope de açúcar. À hora da oração islâmica, um grupo de árabes – rapazes e raparigas, provavelmente cristãos - deliciava-se com uma sandes de bacon, salame e verduras num talho local, acompanhada por shots de whisky trazidos pelo proprietário, Abdulkarim: “Somos árabes israelitas, solidários com a Palestina mas orgulhosos de viver aqui. Principalmente em Haifa, que é uma cidade que aceita todos os povos e religiões”, diz. De regresso a casa, ficámos a saber mais sobre Dima e Schlomit. Ele veio de Moscovo com a família em 1991, depois da queda da União Soviética, enquanto ela pertencia a um clã religioso originário do Médio Oriente. Aquando do casamento, experimentaram o mesmo problema que afecta milhares de casais hebraicos: apesar de se considerar um Estado democrático e secular, só se podem casar em Israel judeus com as origens devidamente documentadas. Schlomit não teve qualquer problema em fazê-lo. Porém, Dimitri (Dima) e os seus parentes tiveram de ocultar publicamente as suas crenças religiosas durante o regime comunista e não tinham como provar que eram judeus a sério. “Nem queria acreditar quando eu e a minha mãe fomos chamados a um tribunal especial para provarmos que éramos judeus. A ela perguntaram-lhe se sabia falar iídiche [a língua dos judeus asquenazes, do leste europeu] e a mim perguntaram-me quando tinha sido circuncidado. É inaceitável”, afirma Dima. Acabaram por conseguir. Muitos não têm a mesma sorte e preferem fazê-lo em Praga ou em Nicósia. Todas as manhãs, Lenny e Lia ficavam a brincar com os comboios e com os gatos e nós podíamos dormir mais um bocado no sofá. O mundo é um lugar estranho. Estávamos no monte Bental, nos Golã israelitas, com vista desimpedida para a Síria. No dia anterior, a 60km dali, tinha havido um ataque com armas químicas. Mas ali as crianças corriam por entre as flores e os turistas pagavam cinco shekels para ver a Síria por binóculos. Dizem que dá para ver vacas a pisarem minas e a irem pelos ares. Da última vez em que estive na Síria já havia armas mas não minas. As pessoas andavam aflitas mas as vacas pareciam em paz. Meio milhão de sírios já não estão. Guerra total. Horas atrás, aqueles céus tinham sido rasgados por aviões israelitas que bombardearam uma base iraniana. Os de Trump seriam os próximos. A fronteira estava em alerta vermelho. Uma cor a que os israelitas estão habituados: há dezenas a fazer caminhadas, jovens a rezar na montanha e visitantes a beber café na esplanada de um restaurante chamado Coffee Annan (nuvem, em hebraico, mas também um trocadilho com o nome Kofi Annan, do ex-secretário-geral das Nações Unidas). Chegámos a este bizarro mundo de carro alugado, depois de passar por Tzfat, um local sagrado do judaísmo completamente colonizado por ortodoxos e com um centro pejado de edifícios antigos e de galerias de arte judaica. Os Golã são uma espécie de Alpes de Israel – remotos, silenciosos e verdejantes. Terra anexada à Síria em 1967, na Guerra dos Seis Dias, e nunca mais devolvida. Contudo, o ambiente é bem diferente do que se vive na Cisjordânia: os israelitas que aqui residem também são considerados colonos mas não são ideológicos e praticamente não há árabes, só druzos, que gozam de alguma autonomia e se adaptaram bem ao jugo de Telavive. Recebemos guarida na pitoresca moradia de Yosefa e Dudi, no kibbutz de El Rom, que por estar implantado a 1000 metros de altitude tem noites frias só combatíveis com cobertores. Os sexuagenários foram criados em kibbutz – comunidades agrícolas de ideologia sionista e socialista – numa época em que todos recebiam o mesmo salário, as colheitas eram divididas pela comunidade e as crianças viviam juntas na mesma casa. “Hoje é tudo diferente”, diz Yosefa, assistente social, com nostalgia. “O lema era 'trabalha o máximo que conseguires, recebe o que houver'. Mas as pessoas viviam neste sistema capitalista e fartaram-se disso. Hoje ainda há resquícios dessa génese mas quase todos têm trabalho fora de El Rom. ” As famílias do casal pertenciam a dois grupos paramilitares rivais – o Haganah e o Irgun – que ofereceram resistência aos britânicos durante a sua vigência na Palestina e desempenharam um papel preponderante no conflito contra os árabes em 1948. Dudi trabalha hoje na construção de jardins, mas na juventude foi cowboy, chegando inclusivamente a visitar ranchos no Texas. Combateu nos Golã na Guerra de Yom Kippur, em 1973, quando estava noivo de Yosefa, e acabou por trazê-la para a reconstrução do kibbutz entretanto destruído. Ficaram até hoje. A hospitalidade e amabilidade com que nos receberam não correspondem ao estereótipo de vaqueiros e de descendentes de milicianos. Yosefa e Dudi são cultos, viajados e foram extremamente dóceis com a Lia, a quem brindaram com o caixote de brinquedos dos próprios netos. Ele, devoto da gastronomia druza, levou-nos ao Sulthan, um restaurante da vizinhança onde comemos a melhor tehina (pasta de sésamo) de que há memória. Apesar das diferenças étnicas e religiosas, Dudi e o dono do estabelecimento eram grandes amigalhaços. No fim, um knafeh de comer e chorar por mais. El Rom era a base perfeita para percorrer os Golã. Em 15 minutos, estávamos nas magníficas Cascatas de Banias, um jorro de água conduzido desde o colossal monte Hermon, onde no Inverno se faz esqui virado para o Líbano e para a Síria. Ficam ao lado das ruínas da cidade perdida de Dan, antigo feudo de Herodes e onde Jesus, escondido nas cavernas, quis saber dos discípulos o que pensavam dele. Estrada acima, as ruínas da Fortaleza de Nimrod, um bastião com mais de 800 anos que viu mais guerras do que Gengis Khan. Entre o nevoeiro e as rochas, os Golã escondem segredos milenares, mesquitas e sinagogas, ruínas, bunkers, medos e glórias. Na cidade druza de Majdal Shams, onde uma intransponível vedação separa Israel da Síria, as famílias druzas afastadas pela Guerra dos Seis Dias costumavam, antes do advento dos telemóveis, gritar de uma montanha para a outra para anunciarem mortes e casamentos. Ainda hoje há quem vá para o vale de megafone. Deixámos os Golã a caminho do mar da Galileia – esse mesmo, onde, segundo a Bíblia, Cristo caminhou sobre a água – a tempo de umas braçadas antes do cair do sol. Uma luz quente coloria as escarpas dramáticas a leste do grande lago. Já sabia que andar sobre a água só estava ao alcance de um predestinado, mas desconhecia o calvário de passar descalço sobre as pedras pontiagudas da orla. Pernoitámos no tapete de uma escola de ioga em Degania, o primeiro kibbutz de Israel, fundado em 1912, quando 10 homens e duas mulheres se fixaram no local anteriormente ocupado por uma aldeia árabe. Amos deixou a chave escondida à entrada e colchões macios preparados para a Lia. Chegou tarde, vindo de um biscate bizarro: actor de pequenos filmes para uma promissora startup que pretende criar uma base de dados com imagens para todas as situações possíveis – desde sequestros a perseguições de carro – para serem usadas nas redes sociais e em publicidade. Uma nova ferramenta para fake news?Após a Lia ter chapinhado nas águas em que Jesus foi baptizado – e onde turistas de todas as latitudes vêm fazer o mesmo – viajámos a tarde inteira paralelos ao impactante Vale do Jordão, uma bênção de fertilidade no coração do deserto. A maioria dos vegetais que abastecem Israel vêm daquelas várzeas e não surpreendem todos os esforços que Telavive despende para desalojar ilegalmente os agricultores palestinianos. Chegados ao mar Morto, procurámos encontrar uma nesga de terra que não estivesse apropriada por privados, de forma a não pagarmos para boiar nas salgadíssimas águas do lago mais baixo do mundo. Impossível! Não importa: o reservatório está a perder continuamente volume e mais tarde ou mais cedo desaparecerá. A experiência valia os 15 euros. Mas dispensava as excursões de turistas russos e príncipes das Arábias que transformaram o banho numa espécie de pista de carrinhos de choque flutuantes. Exceptuando os dias preguiçosos em Beit Ummar, a nossa base na Palestina foi a casa do chileno Andrés Cuche em Doha, um bairro conservador de Belém. Andrés, voluntário pela causa palestiniana na ONG Saint-Yves, é irmão de um velho amigo de Santiago do Chile e rapidamente nos mostrou as mercearias do bairro – onde os vendedores chegam a oferecer peças de fruta – e os sítios para comprar sandes de falafel a um euro no campo de refugiados de Dheisheh, um dos locais mais gaseados do mundo. As noites eram passadas em castelhano a conversar sobre as questões irresolúveis do conflito israelo-palestiniano. Belém é a localidade mais turística da Cisjordânia. No entanto, poucos são os visitantes que ficam a conhecer a cidade: em Jerusalém, são metidos em autocarros e atirados rapidamente para a Igreja da Natividade, suposto local de nascimento de Jesus, e para a Capela da Gruta do Leite, local que a Bíblia indica como o refúgio encontrado pela Sagrada Família durante o Massacre dos Inocentes, cujo chão ficou para sempre branco quando uma gota de leite caiu do peito de Maria, sendo depois transportados de regresso aos hotéis israelitas. Recentemente, a cidade ganhou mais uma atracção para todos aqueles que se interessam pelo conflito. No Walled Off, o hotel que o artista britânico Banksy fundou de frente para a muro que separa a Cisjordânia de Israel, encontra-se um museu interactivo especializado na história da ocupação, em que os visitantes são confrontados com vídeos explicativos, documentos que ilustram o regime de apartheid vivido pelos palestinianos e destroços retirados de casas destruídas. Destaque para um telefone que toca incessantemente: ao atendê-lo, o visitante é confrontado com a mensagem que os soldados israelitas costumam transmitir antes de se apropriarem de uma residência: “A sua casa vai ser destruída devido a fins militares. Tem dez minutos para sair. ” A recepção do hotel conta ainda com várias obras magníficas do próprio Banksy, que assinou numa parede de Jerusalém o famoso stencil de um manifestante a arremessar um ramo de flores. O muro tem frente e verso. Do lado israelita está o Túmulo de Raquel, sepulcro sagrado para judeus, cristãos e muçulmanos, agora interdito aos últimos, destino de peregrinação para devotos da Torah. Na parede palestiniana, desenhos de motivações políticas de vários artistas nacionais e internacionais. Entre milhares de inscrições, aquela que se tornou viral: “Make Hummus, Not Wars” (Façam Húmus, Não Muros). Os donos do restaurante Afteem, refugiados de 1948, seguiram este conselho e fazem a pasta de grão de uma forma sublime. À noite, o bar Bandido é ponto de encontro para cerveja e conversa. Belém revelou-se uma excelente plataforma para visitar outras cidades da Cisjordânia. As carrinhas de nove lugares, única forma comunitária de deslocação dentro das áreas sob controlo da Autoridade Palestiniana, demoram mais de uma hora a percorrer os 30km para Ramallah, mas permitem experienciar o quotidiano da vida palestiniana: a passagem pelos checkpoints, os caminhos sinuosos que se desviam de Jerusalém, as paisagens dramáticas, a proliferação de sucateiras e de ferro-velho, os diferentes paradigmas nas zonas A, B e C, debaixo de diferentes legislações. Em Ramallah, capital de um país sonhado, não perder o Museu Yasser Arafat, onde se encontra o túmulo do antigo líder da Fatah, o anexo em que viveu dois anos debaixo de cerco e fotos e vídeos sobre a resistência palestiniana. Em Nablus, no norte, o queixo cai perante a sumptuosidade das montanhas e o estômago abre-se às tentações do mais tradicional dos mercados. Hebron é diferente de tudo o resto. A história dos povos que acreditam num só Deus começou com Abraão em Hebron. Por isso, é tão disputada e cobiçada: a medina árabe está rodeada por colonatos hebraicos. De um lado e do outro, os apoiantes mais radicais. O Túmulo dos Patriarcas é o único local de culto híbrido: metade sinagoga, metade mesquita. Nele estão as sepulturas de Abraão e Sara, Isaac e Rebeca, Jacó e Lea e até de Adão e Eva. É sítio de poucos sorrisos. Pelo menos, até a Ilka ter coberto a Lia com uma túnica islâmica, provocando gargalhadas entre os fiéis. Antes de partir, um encontro com o pacifista palestiniano Issa Amro, sitiado entre colonatos em Beit Hadassah, um assentamento de sionistas radicais colado ao centro de Hebron. Issa tem pulseira electrónica, 18 casos em tribunal contra ele, maioritariamente por desobediência, e está convencido que não tarda irá preso um ou dois anos. Vive com a família nas instalações da Youth Against Settlement, a instituição que dirige há mais de uma década à revelia da Autoridade Palestiniana e do Estado israelita. “Agora já não nos tratam por nomes mas por números, como os nazis faziam aos judeus”, acusa. “A vida nunca foi tão má na Cisjordânia como hoje. Os colonos estão a viver os seus melhores dias”. Entretanto, a entrevista foi interrompida por Lia, que se veio agarrar às minhas pernas. Olhei para os filhos de Issa e imaginei como seria estar na iminência de ser preso apenas por manifestar a minha opinião. Esses pensamentos assombravam-me quando deixámos Hebron, já de noite. Nenhuma visita a Israel fica completa sem Jerusalém. Mais que qualquer profeta ou mensageiro, aquelas muralhas morreram e ressuscitaram vezes sem conta. Com o propósito maior de mostrar a todos os que não acreditam que a fé existe e há-de engoli-los. Uma voz assalta o agnóstico quando pisa a cidade de Deus: “Podes pensar que todos à tua volta são tolos mas rende-te porque são muito mais que tu. ” Cúpula da Rocha, Muro das Lamentações, Igreja do Santo Sepulcro – são apenas três dos magníficos baluartes que marcam a fé dos homens e a guerra das civilizações. Jerusalém comove e revolta. Ninguém fica indiferente. Nem mesmo quando se vêem aberrações como clérigos a enviar SMS encostados à sepultura de Cristo ou fiéis a gravar vídeos enquanto rezam com a testa no mármore. Uma espécie de alegoria para a chegada de um Deus com ecrã táctil. Na praça adjacente à sinagoga Hurva, no centro de Jerusalém, tivemos uma das raras más experiências da viagem. A Lia tentou aproximar-se de crianças de orientação ortodoxa que brincavam em conjunto mas, assim que se aproximava, eles afastavam-se. Como se tivessem receio. Eu e a Ilka concluímos que, devido à indumentária muito marcada – com as tranças, os chapéus e as saias compridas –, aqueles meninos e meninas, membros de uma comunidade muito fechada, não estavam habituados a conviver com crianças com t-shirts dos Rolling Stones. Acontecimento ofuscado pelo entardecer a partir do Monte das Oliveiras; a velha Jerusalém a surgir de caras por cima da gigantesca necrópole habitada por gatos vadios que saltavam de campa em campa. Mensagem: as pessoas são mortais, Jerusalém é imortal, dos gatos ninguém sabe. A descontracção dominou os últimos dias passados em Herzliya, às portas de Telavive, em casa de Hagay e Keren, de cuja filha Elle a Lia se tornou rapidamente compincha. Passavam as tardes de intenso calor na piscina da marquise. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Dali, voltámos à casa de Moishe, na Rua Levinski, para o último dia antes do voo, marcado para a madrugada. Lamentavelmente, apercebi-me de que tinha perdido as chaves de casa somente quando chegámos ao patamar do quinto andar pelas 22h. Tínhamos tudo dentro do apartamento. Moishe não abria a porta nem atendia o telemóvel. Uma situação tramada que nos podia levar a perder o voo. Entrámos em ansiedade, com excepção da Lia, que dorme mesmo em situações de stress. Pedimos auxílio aos vizinhos do lado, na esperança de se conseguir saltar de varanda para varanda. Era demasiado perigoso. Naquele apartamento, viviam 10 indianos que se disponibilizaram prontamente para tentar abrir a porta com cartões bancários e facas de cozinha. Nada feito! Quando as esperanças começavam a esmorecer, Moishe apareceu. Era 1h da manhã e vinha de um passeio de bicicleta. Deparou-se com dez indianos a esfaquear-lhe a fechadura, dois hóspedes desesperados a bufar diante de uma ventoinha e um bebé a dormir. Não se chateou. Pediu desculpa por ter chegado tarde, não nos deixou pagar a chave e convidou-nos a voltar quando quiséssemos. Já ouviram falar da hospitalidade do Médio Oriente? É isto. Os judeus e os árabes são dos povos mais solidários para os visitantes. Só falta que o sejam uns com os outros.
REFERÊNCIAS:
Arqueólogos nas barbas do "Estado Islâmico"
Quando o “Estado Islâmico” pisou Palmira, cinco jovens arqueólogos portugueses, um belga, uma italiana e dois curdos estavam a salvar um pouco da Mesopotâmia, numa colina do Curdistão, não muito longe da linha da frente. Em vez de bandeiras negras, cachecóis do Benfica. Retrato de um mundo partido, entre guerras. Da nossa enviada Alexandra Lucas Coelho, no Norte do Iraque (...)

Arqueólogos nas barbas do "Estado Islâmico"
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Quando o “Estado Islâmico” pisou Palmira, cinco jovens arqueólogos portugueses, um belga, uma italiana e dois curdos estavam a salvar um pouco da Mesopotâmia, numa colina do Curdistão, não muito longe da linha da frente. Em vez de bandeiras negras, cachecóis do Benfica. Retrato de um mundo partido, entre guerras. Da nossa enviada Alexandra Lucas Coelho, no Norte do Iraque
TEXTO: O comandante Ato apoia-se nos sacos de areia e aponta para o horizonte, uma linha ocre debaixo de um céu azul, cortada por uma coluna de fumo: “Ali é o ‘Estado Islâmico’. ” A que distância? “Um quilómetro vírgula oito”, responde ele, com precisão de carta militar. “Mas em Agosto estavam aqui. ”Aqui é uma trincheira no Norte do Iraque, um dos pontos da longa linha da frente que divide as tropas curdas dos jihadistas. E por toda a parte há sinais de como no Verão passado os jihadistas aqui chegaram. Nas nossas costas, Hassan al-Sham, a aldeia mais perto, está deserta, abandonada, possivelmente minada, e as ruínas da ponte que eles fizeram explodir continuam à vista, penduradas sobre o rio. Os soldados curdos, conhecidos como peshmergas, tiveram de fazer outra ponte até à trincheira. Trincheira mesmo: guaritas, barracas para a troca de turno, barreiras de metal, madeira e sacos de areia empilhados, com espaços para enfiar as armas, fazer mira. Estamos entre Erbil, a capital curda, e Mossul, a maior cidade do Iraque dominada pelos jihadistas. Não exactamente a meio porque Mossul está mais perto. Caminhando em linha recta, chegaríamos aos escombros de Nimrud, a antiga cidade assíria que o “Estado Islâmico” fez explodir como a ponte, só que com mais dinamite, e direito a trailer. Assim acontecera em Mossul, em Hatra, teme-se agora em Palmira. Porque à ficção do “Califado”, mais que imperialista, apocalíptica, não basta arrasar para a frente, “conquistar Roma, ser dono do mundo”, como proclama o “califa” Abu Bakr al-Baghdadi. É preciso arrasar para trás, destruir a história que vai do século XXI ao primeiro islão e a história anterior a ele até não haver história, apagar rostos, figuras, símbolos, templos, e portanto o começo da escrita, da troca de bens, das cidades. Esse começo deu-se aqui na Mesopotâmia, a terra entre os rios Tigre e Eufrates que hoje corresponde à Síria e ao Iraque, sobre a qual conhecemos apenas fragmentos, o pouco que ficou em pé ou foi escavado. Teria sido preciso escavar muito mais, e guerras de várias espécies travaram a arqueologia nesta região, sobretudo na segunda metade do século XX. Mas à actual autonomia curda, sempre em braço-de-ferro com Bagdad, interessa trazer a história ao de cima, afirmar um mapa. E uma das coisas que se aprendem numa colina da antiga Mesopotâmia é como a arqueologia avança através de pequenas sondagens: cortes na paisagem por onde o arqueólogo desce, milénio a milénio, até avistar um mundo. Eis o que estão a fazer durante as próximas semanas cinco portugueses, um belga, uma italiana e dois curdos numa colina junto a Sulaymanyiah, segunda cidade do Curdistão. Quando a repórter os deixou para ir um par de dias à linha da frente, preparavam a logística que implica uma escavação nesta parte do mundo. Começam a conhecê-la: na temporada anterior, em 2013, antes da proclamação do “Estado Islâmico”, acharam uma tabuinha de argila com cinco mil anos que representará o início da economia, comprovando trocas entre Norte e Sul da Mesopotâmia. Não é um pedaço da Epopeia de Gilgamesh, o que representaria o início da literatura, mas isso também não seria impossível, como veremos ao longo desta estadia entre refugiados, soldados, checkpoints, caveiras, cacos de cerâmica, panelões de massa com atum, mais dias sem água do que com água, nunca esquecendo que o Benfica foi fundado em 1904, porque haverá um cachecol pendurado na despensa e outro no frigorífico. Vieram na bagagem deste regresso ao Iraque, agora nas barbas do “Estado Islâmico”. “Ainda bem que o André já levou a estação total”, diz Ricardo, contemplando o monte. Uma estação total é um pesado instrumento de medição que não pode viajar no porão, por ser delicado, nem na cabine, por não caber. André Tomé, 28 anos, o outro director português do projecto, levou-a no cockpit há uns dias. Foi adiantar os preparativos em Sulaymanyiah, incluindo achar uma casa para a equipa, porque a da escavação de 2013 fica num lugar isolado do vale e, com o advento do “Estado Islâmico”, os responsáveis curdos acharam que não era segura. Horas depois, o voo de Istambul, lotado, sobrevoa o Norte do Iraque, passando por cima de Mossul, até descer para Sulaymaniyah, uma profusão de linhas bem iluminadas. O Curdistão cresceu desde a invasão americana de 2003, para os lados e para o alto, muita construção alimentada pelos negócios locais, petróleo, cimento. Dois autocarros modernos escoam os passageiros para um terminal moderno, onde os seis guichets de passaporte estão abertos, apesar de ser meio da noite. As bandeiras são do Curdistão, e basta um carimbo de entrada, nada de visto iraquiano. Só quem fica mais de 15 dias tem de passar depois por outra burocracia, também especificamente curda. É como entrar num país dentro de outro, sensação que os próximos dias só vão confirmar, em todos os sentidos. A autonomia curda é um facto, e um dos bocados em que o Iraque está partido. Mas enquanto se mantiverem os obstáculos internacionais a que o Curdistão seja um país — a começar pela Turquia, onde os curdos rondam um quarto da população —, vai manter-se a hostilidade entre este bocado do Iraque e os restantes, xiitas por um lado, sunitas por outro, tensões fratricidas que explodiram durante a ocupação americana (2003-2011), favorecendo a ascensão do “Estado Islâmico”. Mossul, a “capital” iraquiana dos jihadistas, fica apenas a 80 quilómetros de Erbil, a capital curda. Os militantes do “Califado” só recuaram do cerco a Erbil quando Obama ordenou ataques aéreos, em Agosto. Mas ainda conseguiram detonar um carro-bomba junto ao Consulado americano, e isso aconteceu agora, a meio de Abril. O carimbo nos nossos passaportes diz 7 de Maio, começo da madrugada. Em seguida, passageiros e malas empilham-se até ao tecto num mini-autocarro do tempo de Saddam, porque não se pode ir a pé até ao checkpoint das chegadas. O Curdistão passa o tempo nesta oscilação de quem gostava de ser o Dubai mas continua a ser o Iraque. André está à nossa espera, dois carros para caber toda a gente e lá vamos pelo meio da noite até à aldeia onde fica a casa que, finalmente, depois de várias questões, foi possível alugar. Uma questão “sensível” para a vizinhança era a equipa ser mista, homens e mulheres. Além de trolhas e cientistas, os arqueólogos têm de ser diplomatas, e o facto é que a casa, mais que grande, são duas, portanto os homens vão dormir em cima, as mulheres em baixo. Mas como não há nada lá dentro, André só teve tempo de ir buscar uns colchões à casa antiga e limpar o piso de baixo, onde esta noite toda a gente vai dormir. De resto, o chuveiro há-de ser instalado, o autoclismo também, a sanita é de cócoras e o lavatório às flores, para compensar. Amanhã, ou seja, daqui a pouco, vai ser preciso montar uma casa para dez onde se durma, cozinhe, coma e trabalhe. Além de comprar pás, picaretas, picos, cordas, estacas, carrinhos de mão, uma roçadeira para cortar as ervas da colina, loiça em segunda mão, mesas e cadeiras de plástico, caixas para guardar milhares de cacos de cerâmica, sacos para guardar centenas de ossos humanos, etiquetas, canetas, pincéis, arrobas de arroz e de comida em lata, garrafões de água porque a da torneira, quando há, não se bebe, e ainda trazer o fogão e o frigorífico de 2013 seja em que estado for, porque isto é uma escavação que todos os dias faz contas ao dinheiro. O objectivo é chegar o mais perto possível de Mossul, e isso quer dizer ir primeiro a Erbil. Duas estradas levam lá, uma passando junto a Kirkuk (cidade que era controlada por Bagdad e os curdos acabaram por tomar no meio da disputa com o “Estado Islâmico”); outra pela montanha (ao longo da fronteira com o Irão). Faremos a da Kirkuk à ida e a da montanha na volta. O tradutor contratado é amigo de amigos, chamemos-lhe Adan, quem guia é o irmão. Colinas verdes, fábricas de cimento, boas estradas, uma das vias ainda do tempo de Saddam, a outra já da autonomia curda. Adan fala do medo dos carros-bomba e dos refugiados que não param de chegar, centenas de milhares vindos das zonas que os jihadistas vão tomando no Iraque e na Síria. Rebanhos de ovelhas convivem com fábricas, por exemplo, de gás. Desde casa já passámos dois checkpoints com peshmergas que nos mandam seguir. Um carro de matrícula curda e ocupantes que falam curdo tem mais hipótese de não ser parado. Adan explica que “peshmerga” quer dizer “pronto a morrer”. Os curdos estão sempre a honrar os seus peshmergas, tudo o que possa ser remotamente curdo, aliás. Kirkuk é uma zona rica em petróleo, passamos o mais antigo campo do Iraque, e torna-se claro que há combates a menos de 70 quilómetros quando se multiplicam os checkpoints e nos revistam. Depois, curvando para Norte, nenhum sobressalto até Erbil, que parece tranquila, com a sua cidadela ao alto. As alas do bazar onde se troca dinheiro estão desertas mas cheias de pacotões de notas, porque um dólar vale quase 1200 dinares. Mais movimento na ala da fruta, nêsperas, pêssegos, morangos, menos na dos alfaiates. E ninguém no artesanato. “O movimento caiu para metade desde há um ano”, diz Ali, o jovem vendedor. Vir comprar os tradicionais sapatos feitos à mão, por exemplo, não é uma prioridade agora. Ainda assim, Ali nunca pensou partir. “Temos de nos orgulhar do nosso chão. Quem nos quer tirar o sangue é que tem de ter medo. Se precisarem de mim, estou pronto a combater. ”Meio em obras, e cheia de bandeirinhas curdas, a cidadela tem aquele ar das ruínas demasiado refeitas, modesta herança comparada com outras no Iraque, e sobretudo na Síria. Mas a vista lá de cima abarca todo o horizonte além de Erbil, cidade planíssima, encostada ao deserto. É quinta-feira, o que aqui significa pré-fim-de-semana desde o fim da manhã, altura em que andámos pelo Ministério dos Peshmergas de edifício em edifício, tentando uma autorização para ir à linha da frente. Incontáveis telefonemas depois, ao longo de todo o dia, um amigo de um amigo de Adan dá-lhe o contacto de um comandante que aceita receber-nos no dia seguinte. “Têm sorte porque é sexta-feira, temos algum tempo”, diz o comandante Ato Zibary, cumprimentando-nos no seu gabinete, com fotografia em destaque do presidente curdo Massoud Barzani, que ainda domingo esteve com Obama em Washington. É um acampamento organizado, blindados alinhados cá fora, peshmergas marciais na continência, gabinetes bem mobilados. Zibary, um peshmerga “político”, foi nomeado pela presidência, e a seu lado está o general Dedawan. O batalhão deles controla uma faixa de 35 quilómetros da linha da frente diante de Mossul. Como explica o comandante que uma cidade tão grande tenha caído em quatro dias, mil e tal jihadistas contra 30 mil soldados iraquianos, vai fazer agora um ano? “Erros de Bagdad”, responde Zibary. “A divisão sectária entre árabes xiitas [no governo em Bagdad] e sunitas levou a isto. Agora arrependem-se porque vêem que não conseguem lutar sozinhos. Essa divisão não tem que ver com os curdos, nós somos sunitas mas temos yazidis, cristãos, todos a viverem juntos. ” E se as tropas iraquianas vierem com milícias xiitas, avisa o comandante, os curdos não participarão na retomada de Mossul. “Porque temos a certeza de que as milícias matarão muitos civis [sunitas] em Mossul. ” Mas até à luz verde para a retomada, os peshmergas aguentarão em terra. “A força aérea americana ajuda-nos muito, alemães, canadianos, italianos, franceses. . . Demoram 12, 15 minutos a chegar do Kuwait. ”Retomar Mossul é “uma decisão política”, diz Zibary. “Depende de quando o exército iraquiano estiver pronto, porque nós estamos prontos há muito. Mais: se não fôssemos nós, o ‘Estado Islâmico’ já teria conquistado Bagdad. ”E nisto vão todas as tensões desta amálgama militar: curdos sunitas, árabes sunitas desmotivados, xiitas apoiados pelo Irão e força aérea de Obama e aliados. Um caldeirão de ex-inimigos que agora têm um fim em comum, derrubar o “Estado Islâmico”, quando há dois anos, em alguns casos, estavam a erguê-lo, ao armarem rebeldes sírios jihadistas contra Assad. Há dois anos, nada era pior do que Assad, e hoje nada é pior do que o “Estado Islâmico”, esse Frankenstein gerado pela guerra civil dos dois lados de uma fronteira que já não existe, a que dividia Síria e Iraque. Se na Síria a guerra era contra Assad, e no Iraque entre sunitas e xiitas, hoje há um “estado” maior do que a Grã-Bretanha a meio dos dois países, com uma capital em cada lado (na Síria, Raqqa, no Iraque, Mossul), e à volta está tudo partido. No balanço das intervenções e contra-intervenções estrangeiras desde 2003, dos Estados Unidos à Rússia, da Arábia Saudita ao Irão, é difícil imaginar pior. Zibary, este comandante curdo de 50 anos que combateu Saddam, vê o “Estado Islâmico” como “uma continuação da Al-Qaeda, fortalecida pelos erros de Bagdad” desde 2003: “A América derrubou Saddam, deu o poder aos xiitas e assim beneficiou o Irão. O resultado da invasão americana foi dar o Iraque ao Irão. Todos estes erros levaram ao ‘Estado Islâmico’. ”O general Dedawan acrescenta: “O ‘Estado Islâmico’ junta a experiência de guerra no Afeganistão, na Tchetchénia, do regime de Saddam, da guerra civil síria, dos soldados ocidentais. São o mais forte inimigo da humanidade. ” E olhando bem de frente a repórter: “Se eles derrotarem os peshmergas, você não se sentirá segura em Portugal. Estamos a lutar por si também. ”Cerca de 800 peshmergas revezam-se nesta região, substituídos de dez em dez dias. Há muito fumo no ar, do mato que os soldados queimam para ser mais fácil ver avanços do inimigo. A coluna militar pára junto a um pequeno monte. Os peshmergas saltam dos carros, armas em riste, e marcham pelos calhaus até à barricada. Quem está de turno cumprimenta o comandante e os forasteiros. Na tenda montada junto aos sacos de areia dorme quem fez o turno da noite. O horizonte parece quieto, uma planície árida com areia no ar, muito ao fundo recorte de edifícios. O perigo não são só os tiros, os soldados falam dos veículos que os jihadistas enchem com explosivos e lançam contra as trincheiras. “Há um mês foram duas escavadoras e três Humvees”, conta o comandante. “Foi a meio da noite, em geral atacam à noite, quando chove ou faz nevoeiro, porque aí a força aérea não pode actuar tanto. ” O Humvee é um jipe militar americano, um dos muitos equipamentos que o “Estado Islâmico” arrebatou. “Eles têm armas muito sofisticadas do exército sírio, iraquiano, americano, russo. . . ”De novo a bordo do blindado, o comandante não aceita não como resposta. Teremos de ficar para o almoço no acampamento. Boa comida curda, arroz, frango, sopa, vegetais, azeitonas, frutas várias. Quase um feriado. Falam curdo e farsi, e lutam pela autonomia onde estiverem. Por exemplo, Shilan, 28 anos, perdeu dois irmãos no combate com as tropas iranianas e envolveu-se na causa curda aos 15. “Fui treinada por homens, somos a primeira geração de mulheres peshmergas. Primeiro houve homens que se espantaram, mas agora a presença de uma atrai outras. ”Kani, 27 anos, já combateu contra o exército iraniano e agora está aqui. É casada, o marido está na frente. Elas revezam-se para ir lá, em pequenas temporadas. “Não temos medo, estamos habituadas. ” Sahar, 25 anos, casou mas agora fica por aí, em nome da luta. “Neste momento não queremos ter filhos. ” Uma frase rara num contexto muçulmano. Shilan tem dois filhos, mas só foi uma vez à frente. E a mais bonita, Aiwan, 27 anos, nem pensa em casar. “Sou peshmerga, quero lutar. ” A primeira luta é a independência, mas o “Estado Islâmico” tornou-se uma urgência. “Lutamos contra eles porque somos humanas, é dever de todos. ”Kamal, peshmerga de 47 anos que há muito mora na Suécia e agora voltou para treinar os jovens, fala na força do “Estado Islâmico”. Não é só “terem a experiência de guerrilha com armas muito modernas”. É o ânimo: “O que os distingue é que querem morrer, são suicidas, não batem em retirada. Ficam até à última bala e são impiedosos. ”Ele sabe do que fala, veterano da guerrilha curda antes de todo este conforto de tropas peshmergas com gabinetes e ministérios. “Vivíamos nas montanhas. Só às vezes conseguíamos um pouco de comida. Cheguei a estar 45 dias sem tirar os sapatos. ”Para não falar nos anos 80, quando milhares de curdos foram exterminados pelas tropas de Saddam num genocídio com armas químicas, e milhares de combatentes presos e torturados. Mesmo sem Saddam, Adan continua a não ter boas palavras para Bagdad. Há meses que não recebe a sua bolsa de doutoramento, congelada pelo governo xiita iraquiano. Milhares de funcionários também não recebem os salários. O boom do Curdistão está suspenso no ar, como as centenas de prédios que passamos nos arredores de Erbil, bairros inteiros que ficaram a meio porque entretanto caiu o petróleo, veio a crise e o “Estado Islâmico”. Ao longo da soberba estrada de montanha, Adan e o irmão têm ainda outra memória, a de quando resolveram trepar por estas rochas e descobriram que elas ainda estavam minadas, desde a guerra com o Irão nos anos 1980. Tiveram de voltar saltando de pedrinha em pedrinha, sem pisar o chão. Entretanto, rapazes penduram na estrada faixas em homenagem a combatentes curdos que acabam de ser mortos pelo “Estado Islâmico”. Tiago Costa, 27 anos, o perito nos cacos de cerâmica que veio à frente com André, faz um ponto da situação aos que chegaram depois. Ana já escavou na Síria, Ricardo na Síria e no Iraque, mas João está a estrear-se nesta parte do mundo, e Mustafa Ahmed, o entusiástico estudante que hoje cá está em visita, também quer ser arqueólogo. “O mais importante é pensar isto como algo único, que vale pela própria experiência”, diz Tiago. “Idealmente encontraremos um compartimento cheio de cerâmica, mas não podemos esperar nada. ”A repórter é apresentada a Awaz Shadan, 26 anos, e Zana Abdulkarim, 30, os dois arqueólogos curdos nomeados pelas autoridades locais para viverem com a equipa; a Giulia Gallio, 25, a italiana mais inglesa das redondezas, que não por acaso mora em York, e será a antropóloga responsável pelos ossos; e Steve Renette, 33, o flamengo de barba ruiva que é um dos três directores deste projecto, ao lado de Ricardo e André. Como Steve está ligado à Universidade de Pensilvânia e Ricardo e André à Universidade de Coimbra, institucionalmente isto é uma parceria entre as duas universidades e as duas partes vão-se revezando no financiamento. Para 2015, foi Steve que arranjou o orçamento. Mas os três estão sempre a pensar como viabilizar a escavação no futuro. Esta colina foi pessoalmente escolhida por eles e ninguém aqui recebe salário. João veio apesar de estar planear a sua tese de mestrado, porque queria mesmo trabalhar na região, ajudar os amigos. Os cinco portugueses são grandes compinchas em Coimbra, colegas de turma, de apartamento, de escavações e férias, há anos. Ao fim de dez dias com eles, uma pessoa até pondera voltar a Coimbra. Onze à mesa. Numa comuna deste género só deve haver duas hipóteses, ou o humor ganha ou a falta de humor mata, sobretudo ao fim de um mês a trabalhar 12 horas com hérnias e 50 graus ao sol. Aqui, tanto quanto a repórter verá, até a discreta Giulia tem de tirar os óculos para limpar as lágrimas de rir. Ricardo é o Seinfeld do Mondego, e Zana, o curdo, um viking da stand up, mesmo sentado. Tudo isto sem um grau de álcool, nem na grande noite que espera o Benfica, porque o álcool é uma daquelas “questões sensíveis” na vizinhança. Awaz estreia-se no chá com canela, que se tornará um must da casa. Copos e gente pelo chão da sala, o capitão André abre o saquinho do tesouro, aquele que diz: “KS 13 / 1017 / SF-27”. Traduzindo, KS é Kani Shaie, o nome da colina; 13, o ano do achado; 1017, a camada; SF, Small Findings (Pequenos Achados), e 27 o número do achado. Eis a tabuinha de argila com mais de cinco mil anos que prova como André, Ricardo e Steve escolheram bem a colina: há talvez 5200 anos, um homem rolou o cilindro em relevo que era a sua assinatura, imprimindo num bocado de argila fresca o desenho nítido de veados a serem transportados de barco. À direita, fez uma perfuração, indicando a quantidade, provavelmente dez, algo que ainda não era praticado aqui. Estamos assim perante o começo da burocracia, da contabilidade, da economia: uma factura. E uma factura que aponta para uma relação com a Uruk de Gilgamesh, então a grande cidade da Baixa Mesopotâmia. Talvez a nossa colina tenha sido uma colónia de Uruk e venha a revelar como as primeiras cidades se expandiram para Norte, e porquê. “Nossa colina” porque isto já se tornou uma observação participante. Steve teme pelo chá na vizinhança do tesouro e a tabuinha volta ao saco de plástico. Tiago espalha cacos como quem estuda um puzzle, coadjuvado por Ricardo e João. Mas nada bate a imagem de Giulia no chão, a esfregar uma caveira com uma escova de dentes, incluindo os próprios dentes da caveira. “Podemos ver pela forma da mandíbula que é uma mulher, e devia ser jovem porque os dentes estão bons. ”Este projecto não anda à procura de caveiras, gostaria mesmo de as evitar. O problema é que tendo de escavar de cima para baixo vai ter de lidar com os ossos de todos os defuntos enterrados por cima das camadas milenares, que são as que importam neste caso. E como isto não é um filme do Indiana Jones, nem sequer a época de Max Mallowan, tudo o que um arqueólogo vá achando deve ser cuidadosamente escavado, identificado e guardado, mesmo que não lhe interesse nada e pese nas hérnias e no orçamento. As conversas cruzam-se. Ouvindo que a repórter foi a Lalish, o santuário dos yazidis, Ricardo, que ama os yazidis, explica-nos o problema que eles têm com a alface. Há uma propensão para amar os yazidis nesta equipa. “Lalish é o meu lugar favorito”, anuncia Steve. Entretanto, noutra zona da sala, alguém pergunta se há corda, alguém responde que há corda para dez temporadas, o frigorífico regressa com porta, e o capitão André recapitula os problemas: “Temos de ir tratar do prolongamento dos vistos, temos de ir arrancar as ervas…” Se não chover, porque ameaça. Entretanto, como depois de amanhã temos de ir ao Museu de Sulaymaniyah, e hoje o poente promete, os três directores não querem acabar o dia sem um pulo à colina. Ricardo enfrentará a roçadeira que comprou no bazar. Já inventou até um escudo para as pernas com os cartões de uma embalagem e, como não tem máscara, vai de óculos de sol. De Tasluja, a aldeia onde moramos, à colina da escavação, tudo depende do checkpoint a meio, varia entre 15 e 30 minutos. Há um ponto em que o carro sai da estrada e entra por um caminho com estufas de um lado e do outro. Aí, estamos em pleno vale de Bazian, atravessado desde há milénios, vastidão mansa de colinas verdes, pedra branca e campos de trigo, hoje ensombrada por três cimenteiras que lentamente comem as colinas, com um rugido permanente. A região não só foi pouco estudada, como agora estão a rebentá-la com dinamite. Ao poente já tudo passa de verde a dourado em silêncio. O sol que apareceu no Irão desaparece na Síria, lá adiante, onde os deuses de Palmira hão-de ver chegar bandeiras negras. Estar aqui é escavar contra essa destruição, quase um trabalho de Sísifo, recomeçando de cada vez. Por exemplo, desde 2013, o mato tomou a colina, mas é para isso que serve uma roçadeira. “Kani Shaie!”, exulta André, saindo do carro como se voltasse a casa. Trepamos. Papoilas, trigo selvagem, ninhos de vespas. No cimo há uma pequena árvore, a vista é assombrosa e só de pisar aparece cerâmica. “É uma colina tão pequena que tendem a não lhe dar importância, e agora está toda a gente espantada com o que achámos”, diz Steve. Uma das poucas escavações neste momento no Iraque, uma das únicas portuguesas no mundo. “Em 2013, fizemos um corte para chegar aos níveis mais antigos de forma rápida”, explica André. “E agora queremos expandir cada degrau. ” Ou seja, cada milénio. Com o seu colherim — uma espécie de colher de pedreiro mas em forma de losango e muito mais forte —, André cava entre o terceiro e o quarto milénio a. e. c. (antes da era comum), enquanto Ricardo já anda com a roçadeira a zunir, impávido perante as ervas e pedras que vão saltando. Em meia hora, André e Steve acharam mais cacos do que conseguem trazer nas mãos. “A cerâmica é o nosso melhor amigo [para situar épocas], mas também pode ser o amigo mais aborrecido”, diz André. Escurece, cheira intensamente a erva, o operário Ricardo descansa, antes de logo começar a debater onde vão cortar a terra, abrir mais sondagens. É um diálogo que só arqueólogos podem ter: “Repara, aqui estou no terceiro milénio”, diz um, em pé na encosta. Medem o terreno às passadas, decidem o número de trabalhadores. “Podemos começar com 12”, propõe Steve, prudente: 12 salários a sair do orçamento. E ao serão, no pátio, entre os relatos de uns, bolseiros; outros, professores só metade do ano; outros, desempregados depois de estágios de 600 euros; Ricardo compara arqueologia e astronomia. “Quando olhamos uma estrela, também estamos a ver o passado. São duas máquinas do tempo. ”Kani Shaie é a colina que escolheram, e escavar, o que mais gostam. Talvez não haja outra forma de estar num lugar como o Iraque. Ainda bem que o gabinete é grande, porque, à boa maneira oriental, vai acumulando gente à espera de ser recebida. Pouco depois de nós, chegam três arqueólogos japoneses, que trazem presentinhos, e depois um arqueólogo espanhol, que tem pelo menos uma coisa em comum com todos os portugueses em Sulaymaniyah: é um fã de Cláudio Torres. Mulheres de preto servem copinhos de chá, os sofás são de napa, há fotografias do presidente na parede, lenços de papel na mesa, ao lado de um calendário da Asia Oil. O director desdobra-se. Enquanto André e equipa vão tratar dos vistos, incluindo tirar sangue, ele atende a repórter entre os japoneses e o espanhol. “Nesta região de Suleymaniyah, só houve duas escavações no século XX, uma entre 1947 e 1955, de ingleses, outra entre 1957 e 1959, de dinamarqueses”, resume. “Depois, o regime de Saddam não autorizou mais. Foi por isso que em 2003 abrimos portas e janelas a estrangeiros. Temos vestígios desde a Idade da Pedra ao islão, um espectro muito longo, e tentamos que cada projecto escave um período diferente. ” André, Steve e Ricardo estão focados no terceiro e quarto milénio a. e. c. “É a primeira equipa a trabalhar esta era, muito importante para nós, das primeiras cidades, dos primeiros impérios, a relação entre Norte e Sul, e eles já encontraram muitas coisas. ” Os resultados são publicados por ambas as partes, mas todos os materiais ficam no museu, que neste momento é o segundo mais importante do Iraque (depois do de Bagdad), com destaque para um estupendo fragmento inédito da Epopeia de Gilgamesh recentemente identificado. O edifício, onde há baldes a conter infiltrações, espera ser modernizado em colaboração com a UNESCO. O outro interlocutor dos arqueólogos estrangeiros é o próprio director do museu, Hashim Hawa. A cena do gabinete repete-se quando a repórter lá chega. Cá estão os japoneses, distribuindo presentes, cá está o simpático espanhol. Hashim também é simpático, toda a gente é simpática, ainda vão chegar consultores, funcionários, a mulher do director, e acabou de sair o embaixador da Letónia, o que gera um debate local sobre se a Letónia é a Lituânia. “Queremos focar o museu nas peças achadas aqui”, diz Hashim, depois de atender toda a gente sem perder o sorriso. “Antes, este museu era para mostrar a Mesopotâmia, era como o Museu de Bagdad. Agora, a vinda de arqueólogos estrangeiros é muito boa porque as peças ficam todas aqui e podemos fazer convergir o que sabemos. ” Lido politicamente, isto quer dizer que o Curdistão quer ter um museu curdo, com bom material local, afirmando-se, portanto, num mapa antiquíssimo, além de criar laços internacionais, que simultaneamente vão formando novas gerações de arqueólogos curdos. O “Estado Islâmico”, crê este director, não pode ameaçar isso. “Suleymaniyah está segura. Eles conseguiram tomar Mossul porque contaram com a ajuda das pessoas na região [árabes], que odeiam o governo [xiita] de Bagdad. Aqui ninguém os deixaria ficar, destruir a nossa herança. ”Tobin tinha as malas feitas para se mudar para cá quando o “Estado Islâmico” cercou Erbil, em Agosto passado. Mas não mudou de ideias. É casado com uma arqueóloga iraniana, têm uma filha que se desdobra em inglês, farsi e curdo. Esta parte do mundo foi a que ele escolheu. “Para quem quer estudar a Mesopotâmia, estar no Curdistão é uma prioridade”, diz Tobin. “Cada descoberta que fazemos é um grande salto em frente. ” Enquanto as gigantes Ur ou Uruk, no Sul do Iraque, são escavadas há um século “e ainda sabemos tão pouco”, aqui numa escavação pequena é possível avançar muito. “O ‘tell’ deles é espantoso”, elogia, referindo-se à colina de Kani Shaie, escolhida por André, Steve e Ricardo. “Tell” é o nome que se dá a uma colina artificial, resultado de várias camadas de ocupação humana. “O que eles estão a escavar é o nascimento de uma civilização. ”Tobin acredita que as montanhas curdas vão revelar toda uma outra Mesopotâmia, diferente do que sabemos das civilizações urbanas. “O que estamos a tentar ver aqui são impérios e não cidades. Todas as grandes dinastias vieram das montanhas ou lutaram para controlar as montanhas, de onde o perigo vem. Mas ainda não sabemos que civilização começou nestas montanhas. Acho que foi um tipo de civilização não centralizada, colaborativa, de partilha de poder. ” Em suma: “O federalismo pode ter começado aqui. ”E se o “Estado Islâmico” é “uma ameaça à diversidade”, mais uma razão para ficar. “A destruição deles só torna o nosso trabalho mais importante. Não há futuro estável do Curdistão sem arqueologia. As pessoas precisam de provas para falar de quem são. ”Os trabalhadores contratados são pontuais, o que de repente faz 20 pessoas em cima da colina. Ricardo, que ontem desencantou uma máscara no bazar, põe gasolina na roçadeira, uns enfiam as pás na terra, outros arrancam ervas à mão, todos fazem tudo, erva, terra, pás, baldes. Talvez Portugal não afunde se o futuro da investigação for isto, é a alegria no trabalho. Centenas de pazadas depois, entra em cena o colherim para definir o contorno das pedras, o terreno. É a fase do contacto zoológico: dois escorpiões, uma aranha, um lagarto, assim onde a repórter está. Às 7h30 parece que já passaram horas. O sol queima, talvez nasça uma hérnia. Quando uma pessoa escava de colherim, não há boa posição para as costas, só menos más. Descanso de dez minutos e voltamos a meter o nariz na sepultura. Porque do que se trata aqui, nesta camada de cima, é de várias sepulturas islâmicas, está claro já, pela disposição das pedras. Então, primeiro as pedras à volta do esqueleto são escovadas a pincel e colherim, e depois vai-se escavando com cuidado a terra no meio, tão delicadamente que a certa altura já nem podemos usar o colherim, tem de ser uma colher de sopa e depois uma pequena espátula de madeira. O arqueólogo oscila assim entre a força bruta e o bisturi, fora o que ainda vai lavar, estudar, fotografar, escrever. Aparece um fémur. A seguir, um sapo, vivíssimo, e a seguir um escorpião. Depois da morte não se sabe, mas definitivamente há vida sobre a morte. “Alguns arqueólogos recusam-se a escavar sepulturas por razões éticas”, diz Steve. “Imagina pensares que vais ficar ali para sempre, chega alguém, desenterra-te, põe-te dentro de um saco de plástico. ” Exactamente o que vai acontecer a este esqueleto, quando acabarmos de o escavar, o que demorará dolorosas horas. “A cremação é uma grande coisa!” Mais abaixo, Tiago continua às pazadas, está a escavar há horas. Um arqueólogo sem bolsa e sem emprego pode sempre recorrer à enxada, é um perito (alô FCT). Ao mesmo tempo, também percebe de fotografia em 3D e quadricópteros. Ricardo empunha uns comandos tipo PlayStation e o famoso drone sobe como um insecto. Tem quatro hélices nos cantos e uma câmara na barriga, a missão dele é fotografar a grande altura, mas para quem não sabe parece um zangão extraterrestre. Os rapagões curdos largam as pás, tudo de queixo no ar. Às 9h30 faz-se a refeição que corresponde a um primeiro almoço, já que começámos às 5h. Piquenique de pão com triângulos de queijo, pepino, tomate, fruta, ovos cozidos. Dá meia hora de pausa, à sombra da árvore. As sepulturas multiplicam-se. No dia seguinte, Giulia e João passam horas semideitados a escavar ossos: pá, vassoura, colherim, pincel, espátula e infinita delicadeza. Há ossos que se transformam em pó mal são tocados. Giulia é a especialista, mas João trabalha como se não houvesse amanhã, nada parece pesar-lhe. E Ana está como Tiago ontem, uma heroína de pá, picareta, vassoura, balde, num dos outros níveis que é preciso tratar, além de cozinhar todos os dias para dez, porque no ano passado foi André, e é consensual que ela cozinha melhor. De resto, para lavar loiça e limpar a casa, há uma escala. Steve e André juntam-se noutra sepultura, crânio já exposto. O bom estado dos dentes impressiona. “No século IX, as pessoas comiam um quilo de açúcar por ano”, diz Giulia. “E era açúcar natural, de fruta e cereais. Nós comemos 65 quilos por ano. ”Às 13h, já são oito horas de trabalho, os trabalhadores contratados terminam o dia, mas parte da equipa vai só a casa almoçar e volta, porque há ossos expostos, é preciso acabar de os escavar, fotografar e guardar, para não ficarem abandonados uma noite. Quem não vai lava centenas de cacos de cerâmica entretanto achados, vai comprar mantimentos, resolver a crónica falta de água. Jantar pelas 19h, hora a que Ricardo Seinfeld pode, por exemplo, dedicar o seu episódio de hoje à cimenteira mais vizinha da colina, um gigante mundial que talvez esteja disposto a patrocinar a escavação. Investigou tanto sobre eles que descobriu uma secção de responsabilidade social de que eles próprios nem se devem lembrar. Até Giulia, que de tanto sol e trabalho ficou doente, não come mas ri. Uma casa precária, feita entre as estufas, moscas, calor. As crianças vêm descalças à porta, Saado estende a mão. Tem 25 anos, é ele quem fala inglês porque estudou Engenharia em Mossul. Agora está neste buraco, e é porque não morreu, ao contrário de milhares de yazidis da sua idade, apanhados pela conquista do “Estado Islâmico” na região do Sinjar (Noroeste de Mossul). Saado tinha saído da aldeia onde toda a família vivia e foi ao Sinjar em visita. Calhou lá estar na tarde em que os jihadistas chegaram, “com muitos carros, Toyotas, armas e bandeiras negras”, conta, sentado numa das espumas que à noite fazem de cama, enquanto um irmão mais novo traz um copo com água, depois outro com chá. “Nós não tínhamos armas. Eles primeiro disseram: ‘Têm de levantar uma bandeira branca’, e nós levantámos. Depois separaram homens, mulheres, crianças e disseram a todos que se tinham de converter ao islão. Depois disseram um a um e começaram a matar os homens que diziam que não. ” Falavam em curdo, explica, porque sabiam que eles falavam curdo, mas Saado também ouviu árabe e inglês. “Diziam que nos iam libertar. Libertar do quê?” Viu cortarem cabeças e crianças pequenas serem mortas, guardarem as mais velhas como combatentes. Tudo isto demorou horas, era muita gente. Às oito da noite já estava escuro e Saado decidiu fugir. “Pensei: se ficar aqui vão matar-me com uma faca. Se correr terei duas hipóteses, morrer com um tiro ou escapar com vida. ” Qualquer uma dessas lhe pareceu melhor. Teve sorte, caminhou até à Síria, e por mais sete horas. Mas um dos seus primos foi levado pelos jihadistas para Tal Afar, a ocidente de Mossul. “Disse-lhes que se convertia para se salvar. Não consegue fugir. Há duas semanas falámos com ele e só chorava. Disse que os jihadistas fazem o que querem e as pessoas só ouvem. Obrigam os homens solteiros a lutar. Casou com uma rapariga yazidi para a salvar. ” De ser feita escrava. Saado e família acabaram refugiados aqui, como tantos. Arranjaram trabalho nas estufas de pepino, Saado, a mulher e dois irmãos. Pagam-lhes 80 dólares por mês, para todos. O que ele gostava de fazer? “Ir para fora do Iraque”, responde, sorrindo da pergunta. E não vale a pena perguntar-lhe do que precisa. “De tudo e nada. Veja como vivemos. Sou engenheiro e trabalho nesta estufa. Isto é um país islâmico e yazidis e cristãos não podem viver aqui. ” Mesmo no Curdistão? “Mesmo os curdos às vezes perguntam porque não nos convertemos. ” O governo local defendeu-os de pressões, mas Saado acha que aqui não terão paz. Quer ir para qualquer lugar da Europa ou dos Estados Unidos. A propósito de vida depois da morte, “quem gostaria de ter 70 virgens à espera?”, pergunta João. “Eu não. ” Uma canseira ensiná-las, sobretudo quando se é arqueólogo, e já tem de se saber de geografia, topografia, paleobotânica, antropologia social, sistemas de datação carbono 14, sistemas de informação, digitalização, legislação local, políticas públicas, marketing, cartografia, fotografia, aeromodelismo, roçadeiras, cozinha em massa, e tudo isto sobrevivendo ao “Estado Islâmico”, e à maldição de Tutankhamon. De volta a Lisboa, fazemos um skype para André mostrar mais um caco, que não é mais um caco. É o bordo de uma jarra com três homens, um escorpião, mil anos posterior à tabuinha e, como ela, vinda certamente do Sul. “É uma descoberta muito importante porque, ao contrário do que se pensava, indica que não deixou de haver contactos entre Norte e Sul”, explica André. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para eles, é só o princípio, quem sabe não fazem uma casa lá. A TV curda até transmitiu a vitória do Benfica. Ah, Saado, o yazidi, mais irmãos, já estão a escavar na colina. Ainda acabam em Portugal.
REFERÊNCIAS:
“Num mundo pós-comunista, há muitas pessoas que não sabem viver sem um inimigo”
Podia ser bispo, podia até ser Presidente da República Checa, mas o padre Tomás Halík preferiu manter o exercício do sacerdócio e da docência. Autor de diversos livros, esteve em Portugal para promover o último, que é uma autobiografia. Diante de Ti, os Meus Caminhos. (...)

“Num mundo pós-comunista, há muitas pessoas que não sabem viver sem um inimigo”
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.318
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Podia ser bispo, podia até ser Presidente da República Checa, mas o padre Tomás Halík preferiu manter o exercício do sacerdócio e da docência. Autor de diversos livros, esteve em Portugal para promover o último, que é uma autobiografia. Diante de Ti, os Meus Caminhos.
TEXTO: Em Diante de Ti, os Meus Caminhos, o sacerdote checo Tomás Halík escreve sobre a primeira vez em que esteve em Portugal, há dois anos, e como Lisboa o fez lembrar Praga. Então correu o país num par de dias: Lisboa, Fátima, Porto, Braga e Coimbra. Desta vez, o périplo ficou-se por Lisboa, mas com várias conferências e muitas entrevistas. O motivo é o seu novo livro, publicado pela Paulinas Editora, que o faz reflectir sobre a fé e a razão e a era dos populismos. Este é uma autobiografia que nos leva à República Checa de antes da Guerra, à ditadura, às perseguições comunistas, à Primavera de Praga, à queda do Muro de Berlim e ao regresso da democracia, em paralelo com a sua vida, a vida de um jovem que descobre a religião, que decide ser sacerdote e é ordenado no seio de uma Igreja que vive na clandestinidade, logo, em perigo constante. Nas suas memórias, não esconde que teve crises de fé que o fizeram mergulhar no abismo — “bati no fundo, era ali que Deus estava”, escreve — e que se confrontou com o “rosto repulsivo” do clero, numa clara crítica aos sacerdotes presos aos seus pequenos poderes. Halík foi nomeado por João Paulo II para o Pontifício Conselho para o Diálogo com os Não Crentes, em 1992. Fez parte do ciclo próximo do Presidente Václav Havel, foi seu conselheiro e foi incentivado por diferentes partidos a candidatar-se para o suceder. Em vez disso, preferiu continuar a dar aulas na Universidade Carolina de Praga e a exercer o seu ministério. O filósofo e teólogo católico recebeu o prémio Templeton, em 2014, por “contribuições excepcionais ao desenvolvimento da dimensão espiritual da vida”. Ao longo dos séculos, a Igreja Católica tem sido criticada por não seguir o Evangelho. Agora são os casos de pedofilia e abusos sexuais. Como é que um católico sobrevive a tudo isso sem perder a sua fé?A fé é a confiança de que estamos em boas mãos e que tudo tem um sentido na vida. Às vezes não é fácil descobrir sentido em acontecimentos da nossa vida, do espaço público ou da Igreja. Mas todas as crises são um desafio. Estes abusos são uma tragédia. É como o Holocausto. Depois da Guerra, pudemos perceber que a maioria dos alemães não teve nada que ver com isso, mas que tudo foi feito em nome da germanização e eles tiveram de se confrontar com essa realidade. Na altura, foi feita uma grande reflexão sobre o nazismo. Depois, a Alemanha tornou-se a nação mais democrática na Europa, com uma sensibilidade para o sofrimento das gentes, dos migrantes, etc. Precisamos de algo como isso. Espero que dentro da Igreja reflictamos e que haja um eco profundo. Mas são precisas reformas. Isto não é apenas o colapso de vários indivíduos, é um problema mais profundo. É preciso repensar a nossa antropologia, a atitude da Igreja perante o sexo e também perante o poder, porque não foram apenas abusos sexuais mas também abusos de poder. O Papa Francisco tem falado desse clericalismo. É preciso olhar para a formação dos futuros sacerdotes. Repensar a atitude da Igreja perante o sexo, é permitir que os padres possam casar?Estou feliz por o Papa Francisco ter aberto a discussão desse tabu. Pessoalmente, penso que o celibato é possível, ele nasceu nos mosteiros, enquanto os padres e até os bispos podiam ser homens casados. Penso que no futuro podemos voltar a esse sistema, em que será mais nos mosteiros ou entre os missionários. Por exemplo, eu viajo muito, portanto, seria impossível para mim constituir família e ser responsável por ela. Mas há outras experiências, dentro e fora da Igreja, por exemplo entre os ortodoxos, anglicanos ou evangélicos em que não há problema [os pastores serem casados]. A transformação da energia sexual em espiritual é possível, mas é muito exigente em termos espirituais e psicológicos. Penso que é mais fácil na formação das ordens contemplativas. No futuro, haverá padres casados. Esse tempo está a chegar. E quanto às mulheres? No seu livro, conta que na clandestinidade no seu país houve um padre que ordenou mulheres, o que lhes aconteceu?Foi-lhes pedido que suspendessem a sua actividade. Essa discussão foi fechada por João Paulo II. Temos a experiência das mulheres na Igreja Anglicana no trabalho pastoral, teológico, na pregação, etc. Pessoalmente, consigo imaginar isso, mas respeito a disciplina da Igreja. Não espero que haja uma mudança neste tema no futuro próximo. Deus é que sabe!Ao longo do livro, vai confessando que teve as suas crises de fé. Nesses momentos, deixou de ter fé na Igreja ou em Deus?Todas as crises são uma oportunidade. As mais típicas acontecem na adolescência, quando se perde a fé de criança. Às vezes, a Igreja não tem capacidade de oferecer uma fé mais madura, mas estas crises são uma oportunidade. A minha fé nasceu quando eu era adolescente, antes não tive uma educação religiosa. Aos convertidos acontece por vezes que, depois da euforia da conversão, surge uma crise. A pessoa reconhece que a Igreja tem muitos problemas. Uma das minhas crises mais profundas surgiu antes da ordenação — teria de trabalhar na clandestinidade, debaixo de um perigo constante, além de pensar sobre como conseguiria viver sem uma família — estive em retiro, a fazer exercícios espirituais, foi muito, muito exigente. Mas até os santos passam por essas crises. Outra aconteceu mesmo depois da queda do comunismo, altura em que descobre os pequenos poderes dentro da Igreja. Antes disso, eu cooperei com padres que eram como santos, eram verdadeiras testemunhas da fé, passaram anos em campos de concentração e prisões estalinistas. O meu conceito de Igreja eram esses homens e esperava que todos os padres fossem assim. Eu tinha idealizado a Igreja [à luz desses homens]. E depois da queda do comunismo, tantas possibilidades e tantas oportunidades que havia e o que sucedeu foi um retrocesso e foi difícil para mim. Foi um tempo em que descobri o misticismo, a tradição dos místicos que falam da noite escura da alma, foram eles que me ajudaram a compreender. Os místicos João da Cruz e Teresa de Ávila foram importantes no fortalecimento da sua fé, mas fala também dos exercícios espirituais zen, que já praticou, da sua admiração pelo budismo. São tudo formas semelhantes de chegar a Deus?Não é o mesmo, mas temos mais proximidade na dimensão espiritual mais profunda do que na doutrina. Estudei religião e tenho o contacto pessoal com essas religiões porque depois da queda do comunismo pude viajar muito, visitei todos os continentes e conheci os seus líderes religiosos. É amigo do Dalai Lama?Sim, somos amigos, já estivemos juntos várias vezes e no meu dia de anos recebo as saudações do Papa Francisco e do Dalai Lama! (riso) É muito bom. Eu escolhi a fé cristã, eu decidi ser padre, mas eu tentei outros caminhos espirituais e por isso entendo que o diálogo entre as religiões é muito importante. As diferenças entre as religiões está na doutrina, nos rituais, mas não há assim diferenças tão profundas nas questões éticas. Todas as grandes religiões são escolas que nos ensinam a como superar o nosso egoísmo, como transformar as nossas emoções e como viver em paz com os outros. O mais profundo é a experiência de ficar em silêncio perante o grande mistério que é Deus e aí as semelhanças são grandes. Temos a meditação em silêncio, que é muito semelhante [à das religiões orientais], já temos feito em conjunto. Por isso penso que o ecumenismo a nível espiritual é importante porque toda a actividade e todas as palavras nasceram do silêncio. Hoje as pessoas procuram a espiritualidade fora da Igreja, muitas vezes nas filosofias orientais. Não creio que essas pessoas possam voltar à Igreja, mas esta é um organismo vivo. A grande diferença não é entre os crentes e os não crentes, mas entre os acomodados e os que procuram. Os acomodados são aqueles que estão completamente satisfeitos com a situação da sua comunidade religiosa, e o número de pessoas que está completamente satisfeita com a Igreja está a diminuir. Mas o número de ateus também está a diminuir. Portanto, eu penso que entre os crentes há um grande número que procura um caminho, que procura uma espiritualidade, alguns acreditam em “algo”. São pessoas que costumam dizer: “Eu não acredito em Deus, mas existe algo. ” São a mais vasta religião dos nossos tempos. A Igreja futura depende da capacidade de comunicar com os que procuram e de os acompanhar, o que é diferente das missões clássicas. A ideia não é empurrá-los para as estruturas da Igreja já existentes, mas abrir essas estruturas. No futuro, haverá muitas formas e artes de ser cristão, tal como aconteceu no início dos tempos, quando o cristianismo era muito, muito plural. A comunidade de São Paulo era diferente da de Pedro, etc. ; nos primeiros séculos, havia tantas diferenças entre os cristãos de Roma, os celtas, os germanos, mais tarde, os da Índia e outros. Portanto, havia um grande pluralismo. Depois da separação da Igreja de Ocidente e Oriente, a do Ocidente foi romanizada e a pluralidade foi suprimida. Mas o Concílio Vaticano II veio abrir a Igreja a esse pluralismo, à globalização. A Igreja é muito pluralista e será ainda mais. É muito importante criar um ecumenismo mais vasto: como viver juntos nas nossas diferenças. Por vezes, há tensões dentro da Igreja. Por vezes, o ecumenismo é mais difícil entre católicos do que entre religiões!Os movimentos mais conservadores da Igreja, não sei se a sua dimensão é grande ou pequena, mas são muito. . . Barulhentos! (risos)Exactamente! E conseguem fazer ouvir as suas críticas ao Papa Francisco? Eles fazem uma grande oposição ao Papa, serão cerca de 10%, mas fazem muito barulho, fazem-se ouvir nas redes sociais. O conservadorismo não tem nada de mal, o que tem é o reaccionarismo. João Paulo II disse que a Igreja é um par de pulmões, um é o Ocidente e o outro é o Oriente, e eu penso que os católicos acomodados estão mais focados na tradição — há comunidades que preservam tesouros do nosso passado e isso é importante. Mas há pessoas mais abertas ao futuro, com uma espiritualidade mais flexível. O problema é que os conservadores nem sempre conseguem compreender esta pluralidade, querem ser os únicos donos da verdade, e isso é um problema. São eles os grandes defensores da vida, que dão a cara contra o aborto e a eutanásia? Contudo, defende que a resposta não está em condenar, mas está no amor. Esses temas são importantes, mas não são a mensagem do Evangelho. São uma reacção à revolução sexual dos anos de 1960 e a Igreja ficou demasiado focada na moralidade sexual. Se perguntarem, quem são os católicos, a resposta será: são aqueles que são contra o aborto, a contracepção, a homossexualidade. . . contra, contra, contra. E se perguntarem, então são a favor do quê? Ninguém sabe a resposta, só sabemos que são contra. Por isso, temos de defender a vida, a moral sexual é importante, mas a grande missão do Papa Francisco é descobrir o coração do Evangelho e da cristandade. O âmago é o amor, a solidariedade, a responsabilidade pelos pobres, pela natureza, pela criação, como viver na justiça e na paz. Isto é o que o Evangelho diz. Essa é uma mensagem mais difícil de pôr em prática do que erguer a voz para condenar?Claro que é mais fácil dizer que somos contra, contra, contra. É preciso levar o Evangelho a sério. É uma mensagem muito exigente. A missão do Papa Francisco é muito difícil?Sim, é muito difícil. Admiro João Paulo II e Bento XVI. Conheci-os pessoalmente, foram muito próximos um do outro, são muito importantes na história da Igreja e no confronto com a modernidade. Mas esse tempo acabou e vivemos num mundo pós-moderno, global e plural. E o Papa Francisco é o homem certo para este momento. A sua personalidade, o seu estilo de trabalho pastoral, de comunicar com as pessoas, de falar de questões que eram tabu são uma inspiração. Por isso, estou profundamente convicto de que é a maior autoridade neste mundo dividido. No seu livro e nas intervenções que tem feito, revela uma grande preocupação com o populismo. Não aprendemos com o comunismo e o fascismo?Eles têm muito em comum: o ódio, a visão a preto e branco. O comunismo, o bolchevismo, o fascismo ou o nazismo nasceram por causa da grande depressão e da crise económica na década de 1930. Temos tido crises, mas não tão grandes como aquela — além das económicas, também temos tido as de identidade. É um mundo complicado, onde as pessoas têm medos e ansiedades. Não é fácil encontrar as respostas para este mundo plural. Então, as pessoas procuram um alvo, porque têm medo, estão zangadas, ansiosas. Quem é responsável? Nos anos 1930 foram os judeus e agora são os muçulmanos, os refugiados, a União Europeia, etc. Há um aspecto importante: os meios de comunicação social. Na história, as grandes mudanças de paradigma sempre estiveram ligadas a novos meios de comunicação. Por exemplo, para o protestantismo, foi importante o nascimento da imprensa; a rádio foi importante para Hitler ou Mussolini; e a televisão tornou a política um espectáculo. Portanto, a grande mudança é a Internet e as redes sociais. Apenas uma elite está a beneficiar da globalização, porque as pessoas comuns sentem que são os perdedores, são os novos proletários. Têm acesso às redes sociais mas vivem em bolhas e só vêem informação que confirma os seus preconceitos e demonizam o mundo exterior. Isto é uma tragédia. É o reverso da medalha da globalização, esta divisão, estes pequenos mundos em que as pessoas não comunicam umas com as outras. Os populismos beneficiam desta situação e oferecem-se como messias, como quem vai resolver os problemas. Num mundo pós-comunista, há muitas pessoas que não sabem viver sem um inimigo porque se habituaram a ter um. As redes sociais são as responsáveis pelo crescimento dos movimentos populistas?Não sei dizer se são. Nós, as pessoas, é que somos responsáveis. Não podemos demonizar a tecnologia. Depende de como lidamos com ela e pode ser mal usada. Os novos messias são Duterte, Trump, Orbán ou, mais recentemente, Bolsonaro?São falsos messias. Não podemos dizer que os ditadores são culpados porque mais culpado é o povo que os elege em democracia. O povo é quem tem o poder e deu-lhes poder. Foi o que aconteceu com Hitler na Alemanha ou com o comunismo no nosso país [República Checa], e esse é o problema da democracia quando esta é usada apenas como um mecanismo. Estou profundamente convicto de que a democracia é a cultura de relações entre as pessoas e não apenas o mecanismo das eleições livres, porque esse, já vimos, pode ser mal usado. A democracia precisa de um clima moral. Pessoas como Putin, Trump ou Orbán são o espelho de algo que está errado no nosso coração e na nossa mente. Já falou da comunicação social. E, na escola, como é que se luta contra os populismos? Se eu tivesse a resposta, não teria recebido apenas o prémio Templeton, mas o Nobel! (risos). Uma coisa muito importante é desenvolver o pensamento crítico. Acredito na aliança entre a fé e a razão, foi a mensagem de João Paulo II. A fé sem racionalidade é muito perigosa e dá origem aos fanatismos. Mas a razão sem ética também pode ser perigosa. Nos meus livros, escrevo que a fé e a razão são como irmãs e precisam uma da outra. A economia é muito importante — eu costumo dizer que vivemos no moneyteism, por oposição ao monoteísmo —, mas precisamos do capital social, o capital da confiança e sem isso é cada vez mais perigoso. O testemunho da vossa geração, aquela que foi perseguida no tempo do fascismo ou do comunismo, também deveria servir de alerta para não se repetirem os mesmos erros?E essa é a razão por que escrevi este livro, não para falar de mim, não sou assim tão importante, mas para dar um testemunho, porque foi uma experiência que, por vezes, foi muito difícil e que é um dever nosso oferecer a nossa experiência aos outros. E a Igreja também tem um papel no combate ao populismo?A Igreja deve ser parte de um sistema imunitário da sociedade. No nosso corpo, há células doentes, mas se o sistema imunitário trabalhar bem, essas serão menos perigosas; se falhar, então as células proliferam e pode transformar-se num cancro muito grave. Mas não é só a Igreja [que faz parte desse sistema], também a imprensa livre e as universidades. Acredito que a Igreja tem um papel importantíssimo para fazer a ponte entre o mundo islâmico e o secularizado do Ocidente, que são dois mundos em tensão. Os cristãos têm muito em comum com esses dois mundos — somos uma religião abraâmica, tal como o islão, e fazemos parte do humanismo do Ocidente (este nasceu no seio cristão). Há muitas formas de estes dois mundos dialogarem e a Igreja pode ter essa função. É um enorme desafio. Mas acredita que o Papa Francisco tem esse poder e que lhe é reconhecido pelo mundo?Acredito que tem esse papel, mas não tenho a certeza de que todos compreendam e aceitem esse papel como uma oportunidade. Escreveu que João Paulo II desejava uma Europa unida do Atlântico aos Urales. Putin é o grande responsável por essa Europa não se concretizar?Sou muito céptico em relação à Rússia. Não está ainda preparada para a democracia, pois é muito diferente, em termos culturais [da Europa ocidental]. O país tem uma oposição democrática muito fraca, a imprensa também (muitos jornalistas têm sido assassinados), por detrás do Putin há um forte lobby dos chamados “novos russos” que têm o seu capital no Ocidente, onde os seus filhos estudam, onde compram propriedades, palácios, obras de arte. A ideologia de Putin, que está a ser replicada por Orbán, é muito perigosa. A Rússia tem problemas e investe imenso dinheiro em propaganda — Putin é um ex-agente da KGB, portanto é um conhecedor da importância da propaganda —, fazendo uma guerra verdadeira contra o Ocidente e a União Europeia. As fake news, as mentiras que são espalhadas. O Ocidente não está preparado para levar esta guerra a sério. O alvo são as antigas colónias, as antigas repúblicas soviéticas e satélites. A Rússia nunca aceitou a queda da URSS e tem saudades do império soviético. Estaline é o grande herói de Putin. Portanto, é muito perigoso. O comunismo caiu, mas o imperialismo e o nacionalismo russo continuam de pé. Outro problema é a China, especialmente a campanha que faz na tentativa de nacionalizar as religiões. São dois grandes problemas, porque o caminho do comunismo para a democracia é muito difícil. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A Rússia é um perigo para a República Checa?Sim, claro, porque os russos estão envolvidos em muitas eleições. Vimos isso nos EUA e no nosso país também. Eles usam “cavalos de Tróia” para entrar na União Europeia e na NATO. Eles apoiam os populistas e precisam deles como marionetas para seu interesse. Por isso, apoiam políticos não apenas no meu país, mas noutros, para conseguir que existam tensões. Com essas investidas de que fala e o “Brexit”, a União Europeia (UE) corre o risco de acabar?Não. O “Brexit” foi uma enorme estupidez. Eu estava na Universidade de Oxford para receber o doutoramento honoris causa um dia antes [do referendo] do “Brexit” e falava com os meus amigos professores e todos estavam convencidos de que o “não” iria vencer. Mas o taxista e a empregada do hotel eram pela saída. Mais uma vez, a propaganda resultou. A UE é muito importante e é importante que se mantenha. Mas precisa de reformas, falta-lhe a dimensão cultural e espiritual para criar uma identidade europeia, para dar uma resposta a: “O que é ser europeu?” Não podemos responder apenas com frases feitas e repetidas. Há políticos que usam o catolicismo para dizer que são contra os refugiados porque têm uma fé diferente da nossa ou que são contra os homossexuais. Esse é um mau uso. Mas tenho a esperança num mundo mais ecuménico, mais alargado e cooperante. Nesse mundo, a Igreja pode ser um importante parceiro.
REFERÊNCIAS:
Religiões Cristianismo Budismo Protestantismo
Necrópole mediterrânica
As ideologias esculpidas nos territórios africanos não passam de pérfidas réplicas daquilo que há de pior nos capitalismos europeus do século passado. (...)

Necrópole mediterrânica
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: As ideologias esculpidas nos territórios africanos não passam de pérfidas réplicas daquilo que há de pior nos capitalismos europeus do século passado.
TEXTO: A Europa está de novo a fazer contas à vida, engasgada entre o constrangimento real de um imprevisível superpovoamento e o sentimento de culpa de que não se livra, ao olhar as pregas da História da colonização africana. Em A África Começa mal, René Dumont (ed. D. Quixote) alerta para o primeiro modelo civilizacional (a corrupção mercantil) que os europeus ofereceram aos africanos: no século XVI, os agentes negreiros vendiam armas e álcool aos chefes tribais, corrompendo-os, para que estes lhes oferecessem homens e mulheres a serem integrados no tráfico humano. Foi um bom princípio. Os mapas manipulados em Berlim, em 1885, resultantes do tratado que retalhou África em fatias atribuídas a alguns países europeus, permitiram quebrar as organizações indígenas, eliminaram imensas distinções autóctones e inventaram pátrias onde as não havia. Além disso, impuseram uma lógica civilizacional baseada na “ilusão de que o etnos [europeu] constituía o centro do universo cultural, o núcleo paradigmático de normas, instituições e valores em torno do qual giram, para sua glória, todas as outras culturas como satélites” (Urrutia). Sem darem por isso (exceptuando-se as elites corruptíveis), os africanos ficaram fora do processo histórico de que eles deveriam ser protagonistas — como se sabe, apenas na segunda metade do século XX surgiram os movimentos de consciencialização e de libertação dos povos africanos. “Nada está fora de um território ideológico”, enuncia Jorge Urrutia (Leitura do Obscuro, Uma Semiótica de África, Teorema). E não. Acontece que as ideologias esculpidas nos territórios africanos não passam de pérfidas réplicas daquilo que há de pior nos capitalismos europeus do século passado. Entretanto, tem-se como seguro que a repatriação dos desesperados que atravessam o Mediterrâneo (fugidos às guerras, à seca, à pobreza e ao banditismo), vítimas de redes mafiosas a quem pagam montantes elevadíssimos por documentação que de nada lhes servirá, deverá ser a única saída possível de um complexo jogo em que tudo está em causa: a inclemência de uma Europa que fecha as portas aos outros (e aos seus); a inflexibilidade dos angariadores de migrantes nos países africanos; a severidade das redes mafiosas que garantem liquidez aos bancos europeus e confortam o BCE; a montagem do circo humanitário, gerador de novos empregos filantrópicos e paliativos (e este é um caso de matéria sensível); a indecência das redes de adopção clandestina, de lenocínio e tráfico de menores. Os tempos não estão bons para acusar ninguém, de tal modo estão todos os agentes relacionados. Nem as nossas lágrimas conseguem afirmar que não são as de crocodilo. O Frontex faz o que pode (e seria prudente que a agência pudesse ser ainda dotada de mais meios); os centros de refugiados e a ONU actuam como podem e conhecem-se casos de verdadeira abnegação; as organizações religiosas (especialmente católicas) denunciam as situações. Mas neste cenário, nem os românticos (os que teorizam sobre as razões do caos e imputam à Europa o crime global) nem os pessimistas (aqueles que, no fim de contas, pensam como os românticos, mas sem chorar) têm razão. Não é um tempo para razão. É talvez um tempo para aceitar que o mundo é um lugar terrível, mas merecedor de uma pequena tarefa diária. De resto, é impossível uma leitura do obscuro, sem a sensação de nos enganarmos. Professor
REFERÊNCIAS:
Há um antes e depois do sismo para o património do Nepal
Pelo menos quatro dos sítios classificados como Património da Humanidade pela UNESCO foram atingidos. Templos, pagodes e outro edificado centenário reduzidos a escombros. (...)

Há um antes e depois do sismo para o património do Nepal
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20150501182805/http://www.publico.pt/1693796
SUMÁRIO: Pelo menos quatro dos sítios classificados como Património da Humanidade pela UNESCO foram atingidos. Templos, pagodes e outro edificado centenário reduzidos a escombros.
TEXTO: O devastador sismo que atingiu sábado o Nepal matou mais de 3700 pessoas e deixou mais de 6500 feridos, mas os danos patrimoniais que causou destruíram também parte da memória do país. Pelo menos quatro dos sete locais classificados como Património da Humanidade pela UNESCO foram atingidos e alguns dos monumentos mais importantes do Nepal estão agora reduzidos a escombros. O símbolo imediato da destruição causada pelo sismo de magnitude 7, 8 na escala de Richter, no sábado, é a histórica torre Dharhara (1832), em Katmandu – agora uma pilha de escombros de tijolo com apenas alguns pedaços da sua estrutura branca visíveis, antes uma obra encomendada pela rainha e um promontório há dez anos reaberto ao turismo ao qual se acedia por uma escada em caracol. Com 60 metros de altura, nela morreram pelo menos 60 das perto de 200 pessoas que lá ficaram presas durante o sismo, que há muito se temia que pudesse atingir violentamente a zona oeste do pequeno país devido à sua posição tectónica de risco. Restam apenas, de acordo com a agência de notícias Reuters, dez metros irregulares do edifício que tinha nove andares e um minarete de bronze datado do século XIX. Na praça da torre, o sismo, cujo epicentro se situou a 50 kms de Katmandu, destruiu ainda o templo a Shiva, um pagode majestoso também conhecido como Maju Deval, e outro pagode menor, o Narayan, relata a CNN. Que descreve ainda como agora, entre os destroços e as pedras, um buldózer trabalha entre “testemunhas chocadas e tristíssimas e um sentido de perda insubstituível visual e espiritual”. Locais de culto, mas também de reunião, de comércio local ou de peregrinação para turistas, estes dois templos foram arrasados enquanto outros elementos da praça monumental parecem ter resistido, como é o caso das casas-templo dedicadas a Kumari e a Shiva-Parvati, relata o canal de notícias norte-americano. Já no sábado, o New York Times dava conta da violência com que foram atingidos quatro dos sete sítios classificados como Património Mundial da Humanidade – o templo de pedra em forma de búzio na praça Durbar de Bhaktapur, a escassos quilómetros da capital, toda a praça do século III Durbar em Patan, pavimentada com tijolos vermelhos, a praça Durbar de Basantapur, onde vivia a família real nepalesa até ao século XIX e por fim um dos mais antigos monumentos budistas nos Himalaias, a stupa de Boudhanath – as stupa são estruturas circulares que albergam relíquias budistas. Esta última, que é não só um santuário budista mas também um local onde convergem refugiados tibetanos, está no entanto envolta em relatos contraditórios. O diário canadiano National Post corrobora o New York Times, escrevendo que ficou praticamente destruída, só restando a sua cúpula, mas a CNN indica esta segunda-feira que foi uma stupa próxima que foi arrasada. No mesmo local, a CNN faz o apanhado do que terá resistido: o templo Sundari Chowk, o Krishna Mandir (1637), o Bishwa Nath Mandir (século XVII) , guardado por elefantes de pedra, e o pagode Bimsen Mandir (século XVII). As imagens partilhadas no Twitter por nepaleses e estrangeiros no Nepal mostram isso mesmo: a praça Durbar de Basantapur arrasada, dois dos seus templos são uma pirâmide de escombros. “Parte-me o coração”, twitou o utilizador Funny Gooner. Já a praça de Patan mostra apenas toros de madeira e parte de um pagode de pé, sendo que a estátua dourada do rei Bhupatindra Malla que ali ficava foi também reduzida a pó. A jornalista e realizadora Subina Shrestha, que vive em Katmandu, escreveu esta segunda-feira no Twitter que em Patan são os jovens da cidade que estão a proteger o património arquitectónico. "Não há autoridades para tomar conta da situação", nota. Katmandu fica no sopé dos Himalaias, um vale onde se concentram os sete locais Património da Humanidade que agregam vários conjuntos e complexos monumentais que são testemunhos do cruzamento de várias civilizações e religiões – do budismo ao hinduísmo, passando pelo tantrismo ou pelo edificado dos Newar (indígenas do vale de Katmandu). A UNESCO destaca os três palácios históricos em Katmandu, Patan e Bhaktapur, os dois centros hindus (Pashupatinath e Changu Narayan) e os dois centros budistas (Swayambunath e Boudhanath). Já se sabe que as praças Durbar – o nome dado às praças fronteiras a templos no Nepal – das povoações de Katmandu, Patan e Bhaktapur foram afectadas. Só em Katmandu, a Durbar concentra o complexo de Hanuman Dhoka, que inclui o Palácio Real dos reis Malla e da dinastia Shah. Dos complexos religiosos destacam-se, em Swayambhu, o mais antigo monumento budista do vale, uma stupa; em Bauddhanath está a maior stupa do país. Já em Changu Narayan fica um povoado tradicional Newar e também um exemplar, num templo hindu a Vishnu, de uma das mais antigas inscrições da região, datadas do século V. No que toca a Swayambunath, um mosteiro no cimo de uma colina nos arredores da capital e que é conhecido como o “Templo dos Macacos” devido à colónia de animais que ali reside e que atormenta os visitantes, bem como ao templo hindu de Pashupatinath, ainda não se sabe se sofreram danos. A fragilidade destas estruturas é clara na descrição feita pela UNESCO dos materiais que a compõem: templos “feitos de tijolo cozido, tijolo de adobe [cozido ao sol] e estruturas de madeira”; os povoados Newar são descritos como “únicos” pela sua “ornamentação intrincada” em “tijolo, pedra, madeira e bronze”, exemplos “marcantes” de manufactura e artesania. Em Maru, também na zona de Katmandu, o templo de Kasthamandap, um dos mais antigos pagodes do Nepal, é agora apenas uma pilha de madeira e pedra. “Estava a acontecer uma campanha de doação de sangue; o sismo aconteceu, aprisionando/matando pessoas”, relatava Kashish Das Shrestha no Twitter no sábado. “É uma perda irreparável para o Nepal e para o resto do mundo”, disse à AFP o responsável pelo departamento de História e Arqueologia da Universidade de Madras. “O restauro completo não é possível devido aos extensos danos nos locais históricos do Nepal”, atestou P. D Balaji. No sábado, a directora-geral da UNESCO tinha já enviado condolências e assinalado a perda de vidas e também os “extensos danos, incluindo nos monumentos históricos e edifícios no sítio Património da Humanidade do Vale de Katmandu”, prometendo que a agência das Nações Unidas está a postos para “ajudar o Nepal a reconstruir e a fortalecer a sua resiliência”.
REFERÊNCIAS:
No seu 70.º aniversário, ONU lança roteiro para o mundo perfeito
Cimeira das Nações Unidas vai aprovar uma agenda com 17 objectivos e 169 metas de desenvolvimento sustentável até 2030. (...)

No seu 70.º aniversário, ONU lança roteiro para o mundo perfeito
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 1.0
DATA: 2015-10-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Cimeira das Nações Unidas vai aprovar uma agenda com 17 objectivos e 169 metas de desenvolvimento sustentável até 2030.
TEXTO: Um mundo sem fome nem pobreza extrema. Sem sida, sem malária, sem tuberculose. Com educação básica gratuita para todos. Onde as mulheres não são discriminadas nem agredidas. Onde todos têm acesso a água potável, saneamento e energia moderna. Um mundo com mais renováveis, mais eficiência energética. Com crescimento económico e emprego universal. Em que as cidades e os transportes são verdes. Com mais indústrias e menos poluição. Com os ecossistemas conservados. Em paz e livre da corrupção. É este o mundo idílico que as Nações Unidas aspiram atingir dentro de apenas 15 anos. Está tudo numa ambiciosa agenda para o planeta até 2030, que será adoptada numa cimeira mundial que começa esta sexta-feira em Nova Iorque e que coincide com o 70º aniversário das Nações Unidas. É uma nova e ampla lista de intenções rumo ao desenvolvimento sustentável. Mas há muitos obstáculos para que esta cartilha seja cumprida. Os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável vão substituir os oito Objectivos do Desenvolvimento do Milénio, adoptados em 2000 e que expiram este ano, com resultados mistos. Houve inegáveis avanços. A parcela da população mundial que vive com menos de 1, 25 dólares (1, 11 euros) por dia caiu de 47% para 14%, segundo um balanço feito este ano pela ONU. Nos países em desenvolvimento, a subnutrição diminuiu de 23% para 13%, o número de crianças na escola primária subiu de 83% para 91%, e a população que vive em bairros de lata reduziu-se de 39% para 30%. Mesmo assim, hoje o mundo ainda tem 800 milhões de pessoas em pobreza extrema, 160 milhões de crianças que passam fome, milhões de mulheres que são discriminadas e quatro vezes mais refugiados do que há apenas cinco anos. Os novos objectivos da ONU não procuram apenas emendar o que ainda não foi resolvido – como a fome e a pobreza. Vão mais além e tocam em mais domínios da actividade humana e de uma forma mais detalhada. O resultado é um roteiro pós-2015 com 17 objectivos e 169 metas, que vão das energias renováveis às mortes nas estradas, do trabalho infantil à regulação da banca, dos desastres naturais aos subsídios à pesca. “É ambicioso, quase beirando a utopia, mas realizável”, afirma Pedro Krupenski, presidente da Plataforma Portuguesa das Organizações Não-Governamentais para o Desenvolvimento. “Nunca a agenda do combate à pobreza esteve tão ligada às boas práticas de desenvolvimento sustentável. Esta é a grande novidade”, avalia. A nova agenda é diferente da anterior noutro aspecto: agora o foco são todos os países, quando antes a atenção estava voltada sobretudo para a melhoria das condições de vida nas nações mais pobres. Temas como a desigualdade de rendimentos, a protecção dos ecossistemas ou a adaptação às alterações climáticas aplicam-se também ao mundo industrializado. Garantir padrões sustentáveis de produção e consumo também. “É um dos grandes desafios para os países desenvolvidos: conseguir produzir com menos recursos”, afirma o secretário de Estado do Ambiente, Paulo Lemos, que vai intervir, domingo, numa das sessões da conferência das Nações Unidas. Os novos objectivos da ONU são mais um ponto num processo com quatro décadas, desde a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, em 1972, em Estocolmo. O conceito do desenvolvimento sustentável ganhou força na Cimeira da Terra, em 1992, no Rio de Janeiro. Mas duas avaliações realizadas dez e vinte depois concluíram que ainda havia muito a fazer. Foi na segunda avaliação, em 2012, também no Rio de Janeiro, que se lançou formalmente a ideia dos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável para o pós-2015. Em três anos, chegou-se a um consenso, o que contrasta com as negociações para um novo tratado internacional para as alterações climáticas, que se arrastam há uma década. A explicação está sobretudo no formato daquilo que será adoptado: uma declaração política, que não obriga os países a cumprir as metas. Esta é uma das fraquezas da iniciativa, segundo Pedro Krupenski. “Falta um elemento mais vinculativo. Deveria ser eventualmente um tratado internacional”, explica. “A verificação vai ficar um bocado ao critério dos mecanismos da sociedade civil”. O ex-secretário de Estado do Ambiente Carlos Pimenta, que tem acompanhado a questão do desenvolvimento sustentável desde Estocolmo, aponta outro problema. “As instituições que gerem os global commons [bens globais comuns] estão muito enfraquecidas. Nunca foi tão grande a destruição das florestas ou a degradação dos oceanos”, afirma. “Estou pessimista ao nível da governança global”, completa.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
A vida no Estado Islâmico
O que é ser mulher ou criança no autoproclamado Estado Islâmico? O que se compra e o que falta no território? Como é aplicada a justiça? Três dezenas de pessoas que vivem ou viveram sob o regime extremista dão as respostas. (...)

A vida no Estado Islâmico
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O que é ser mulher ou criança no autoproclamado Estado Islâmico? O que se compra e o que falta no território? Como é aplicada a justiça? Três dezenas de pessoas que vivem ou viveram sob o regime extremista dão as respostas.
TEXTO: As carrinhas brancas saem por volta da hora do jantar, carregadas de refeições quentes para os combatentes islâmicos solteiros da cidade de Hit, no Oeste do Iraque. Equipas de mulheres estrangeiras, que deixaram a Europa e vários países do mundo árabe para se juntarem ao Estado Islâmico (EI), trabalham em cozinhas comunitárias para preparar o jantar dos guerrilheiros, entregue nas casas que foram confiscadas a pessoas que fugiram ou foram mortas, diz o ex-presidente da câmara da cidade. O EI tem atraído dezenas de milhares de pessoas de todo o mundo, prometendo o paraíso na pátria muçulmana que está a erguer nos territórios conquistados na Síria e no Iraque. Mas, na realidade, os islamistas criaram uma sociedade desigual, onde a vida quotidiana é radicalmente diferente para ocupantes e ocupados, de acordo com entrevistas conduzidas a mais de 30 pessoas que vivem ainda no EI ou fugiram recentemente. Os combatentes estrangeiros e as suas famílias têm direito a habitação gratuita, serviços médicos, educação religiosa e até a uma espécie de entrega de refeições ao domicílio, de acordo com os entrevistados. Recebem salários pagos com os impostos e taxas que sobrecarregam milhões de pessoas que eles controlam, num território que agora tem o tamanho do Reino Unido. Aqueles que vivem nas mãos do EI dizem que têm de enfrentar não só a brutalidade dos islamistas — que decapitam os seus inimigos e transformam em escravas sexuais as mulheres que pertencem às minorias — como também uma escassez extrema de vários produtos básicos. Muitos têm electricidade durante apenas uma ou duas horas por dia e em algumas casas a água canalizada fica vários dias sem aparecer. Há poucos postos de trabalho, por isso uma grande parte não consegue pagar os preços exorbitantes dos alimentos, que em alguns casos mais do que triplicaram. Os cuidados médicos são deficientes, a maioria das escolas está fechada e as restrições às saídas para o mundo exterior são impostas pela força das armas. Ao longo dos últimos dois anos, os islamista produziram uma torrente de propaganda sofisticada na Internet, que ajudou a convencer pelo menos 20 mil combatentes estrangeiros, muitos com famílias, a vir de locais tão remotos como a Austrália. A campanha, que é sobretudo veiculada pelo YouTube e pelas redes sociais, mostra uma terra de rodas gigantes e algodão doce, onde as populações locais convivem animadamente com estrangeiros fortemente armados. Mas os entrevistados dizem que as suas vidas no “califado”, onde são governados por homens que impõem uma versão extremista da sharia (a lei islâmica), estão a transbordar de medo e escassez. “Regressámos à Idade da Pedra”, diz Mohammad Ahmed, de 43 anos, antigo funcionário da Liga Árabe de Deir al-Zour, uma cidade perto de Raqqa, a autoproclamada capital dos islamistas, no Norte da Síria. “Antes tínhamos uma casa linda, com chão em mármore e azulejos”, diz Ahmed, que fugiu da sua terra em Junho e que agora vive com outros 20 mil sírios no campo de refugiados de Azraq, na Jordânia. “Durante toda a nossa vida tivemos tudo o que precisávamos. Depois, quando eles chegaram, passámos a cozinhar numa fogueira na rua e a lavar as nossas roupas em baldes. ”Várias das pessoas ouvidas afirmam que na verdade o Estado Islâmico é menos corrupto e oferece serviços públicos mais eficazes, como a construção de estradas e recolha de lixo, do que os anteriores governos sírio e iraquiano. No Iraque, dizem alguns, os militantes sunitas tratam-nos melhor do que o Governo central de Bagdad, dominado por xiitas. Mas nenhuma das testemunhas afirma tolerar os islamistas e todos concordam que uma governação mais eficiente não ajuda a desculpar o comportamento fanático e brutal do EI. “Nós odiamo-los”, diz Hikmat al-Gaoud, o antigo autarca de Hit, de 41 anos. Fugiu em Abril e agora divide o seu tempo entre Bagdad e Amã, na Jordânia. O Estado Islâmico conquistou poder na sequência dos combates na Síria e no Iraque que já tinham deixado de rastos muitas das instituições públicas. Mas as pessoas entrevistadas afirmam que o EI apenas piorou a situação, de formas que poderão ser sentidas durante as próximas décadas — fazendo regredir os progressos alcançados no ensino público, arruinando a infra-estrutura médica, criando um sistema judicial que assenta no terror e expondo toda uma geração de crianças a uma violência, física e psicológica, devastadora e grotesca. Para as mulheres, viver no EI significa frequentemente serem sujeitas a uma linha de montagem que serve para garantir noivas aos combatentes, ou às vezes serem sequestradas e levadas para casamentos forçados. Muitos dos entrevistados apenas quiseram dar o primeiro nome ou recusaram-se a ser identificados fosse de que forma fosse, para proteger a sua segurança e a das suas famílias que ainda vivem em território controlado pelo EI. Foram entrevistados por Skype ou telefone, a partir da Síria e do Iraque, ou pessoalmente, no Iraque, Turquia e Jordânia. Aqueles que falaram a partir de áreas nas mãos dos islamistas fizeram-no correndo grande perigo, afirmando que estes controlam rigidamente o acesso à Internet. Concordaram em falar para poder contar a sua história sobre a vida dentro do “califado” do Estado Islâmico. Quase todos os entrevistados dizem ter testemunhado uma decapitação ou outro castigo igualmente selvagem. É praticamente impossível confirmar estes testemunhos, tal como é impossível verificar as afirmações feitas através do material de propaganda que é editado pelo EI. Os militantes raramente permitem a jornalistas ou outros observadores independentes entrar no seu território e já divulgaram vídeos de decapitações de vários capturados. As entrevistas, conduzidas ao longo de vários meses, foram combinadas bastante ao acaso ou através de contactos mantidos há tempo na região. Apesar de vários activistas terem sido ouvidos, o Washington Post não quis depender deles para estabelecer outros contactos. No campo de Azraq, os jornalistas analisaram os registos de chegadas e procuraram aqueles que tinham partido recentemente das áreas controladas pelo EI. Muitas das conversas duraram duas horas ou mais. Os militantes controlam pequenas comunidades rurais, mas também grandes zonas urbanas, incluindo Mossul, uma cidade iraquiana com mais de um milhão de pessoas. As suas políticas diferem de região para região, por isso não há um estilo de vida único e uniformizado; mas nas entrevistas houve temas que apareceram consistentemente: mulheres, saúde, educação, justiça e economia. (. . . )“A vida no Daesh é um pesadelo todos os dias”, diz uma antiga professora de Matemática que vive em Mossul, usando o nome árabe do Estado Islâmico. “Temos um futuro incerto”, afirma, pedindo para não ser identificada. “Talvez o Daesh nos mate, ou talvez morramos na guerra, ou talvez depois. Aquilo por que estamos a passar agora é uma morte lenta. ”Os islamistas criaram checkpoints para impedir as pessoas de sair. Mas, segundo os entrevistados, há cada vez mais redes de tráfico para ajudar quem decide fugir e estes estão a entrar em cada vez maior número na Jordânia, Turquia, Líbano e nas áreas do Iraque que não estão sob controlo do EI. Responsáveis da ONU afirmam que 60% dos refugiados que atravessaram recentemente a fronteira entre a Síria e a Jordânia fugiam das áreas controladas pelos islamistas. A propaganda apresenta-os como libertadores; num vídeo recente apareciam, armados, a distribuir doces num lar da terceira idade. Mas, segundo as testemunhas, a maior parte da população vê-os como uma força ocupante impiedosa e tenta manter-se à distância o mais possível. “Mesmo que nos cruzemos na rua ou em lojas, não há convívio”, relata um activista que se identifica como Abu Ibrahim al-Raqqawi, natural de Raqqa, e que gere um site chamado Raqqa Is Being Slaughtered Silently. As pessoas de Raqqa, diz, “sentem-se estrangeiras na sua própria cidade”. O EI tem tido algum êxito no recrutamento da população local. As pessoas ouvidas dizem que muitos dos seus amigos e vizinhos na Síria e no Iraque escolheram juntar-se aos islamistas, tornar-se combatentes, professores ou funcionários dos seus gabinetes governamentais. Alguns fazem-no porque acreditam no seu objectivo de unir o mundo sob a sua interpretação radical da lei islâmica. Mas a maioria é por desespero. Em locais onde o preço da comida disparou e muitas pessoas vivem com pouco mais que pão e arroz, alguns homens concluíram que tornarem-se guerrilheiros do EI é a única forma de sustentar a família. “Não há trabalho, por isso temos de nos juntar a eles se queremos sobreviver”, diz Yassin al-Jassem, de 52 anos, que fugiu de sua casa em Raqqa em Junho. “Tantos habitantes locais se juntaram a eles. A fome empurrou-os para o Daesh. ”Peter Neumann, director do Centro Internacional para o Estudo da Radicalização da Violência Política do King’s College, em Londres, afirma que embora os combatentes estrangeiros tenham dado um fôlego ao EI, “a longo prazo, acabarão por se tornar um fardo”. O investigador recorda que as tribos locais revoltaram-se contra a Al-Qaeda no Iraque em meados dos anos 2000 em parte porque viam o grupo como uma organização estrangeira. É da opinião que as pessoas que estão agora sob o controlo do EI poderão fazer o mesmo — sobretudo no Iraque. No entanto, os entrevistados afirmam que o ISIS não poupa esforços no que se refere à supressão de potenciais levantamentos, matando qualquer um que suspeite de deslealdade. Faten Humayda, uma avó de 70 anos que deixou a sua terra perto de Raqqa em Maio e que agora vive no campo de Azraq, é da opinião de que a violência faz aumentar o ódio das populações em relação aos islamistas, mas também cria desconfiança entre os locais. E é mais difícil a qualquer movimento de resistência formar-se quando as pessoas pensam que os amigos e vizinhos podem ser informadores. “Eles põem-nos uns contra os outros”, afirma Humayda. Ahmed, que também abandonou a sua terra nas proximidades de Raqqa, em Junho, adianta que alguns dos combatentes árabes tentam misturar-se com a população local, mas que os europeus e os não árabes nunca o fizeram. E apesar de o EI proclamar que o seu objectivo é proporcionar uma vida melhor aos muçulmanos, parece estar sobretudo concentrado nos combates com os outros grupos rebeldes e as forças do Governo. “Eles foram sempre muito agressivos e parecem zangados”, diz. “Estão ali para lutar, não para governar. ”Na sua tenda de zinco em Azraq, Jassem conta que quando vivia sob o controlo do EI o neto de dois anos desenvolveu um tumor no cérebro. Os médicos pediam quase 700 euros para o tratar. Jassem, que é agricultor, estava sem trabalho desde que os islamistas tomaram a sua vila. Estava desesperado, e por isso em finais de Maio foi implorar pela vida do neto. O EI fez uma proposta: “Eles disseram-me: ‘Se nos deres o teu filho para ele lutar por nós, nós pagamos o tratamento do teu neto’”, recorda. A ideia de ter um dos filhos a combater pelo Estado Islâmico revirava-lhe o estômago, e a ideia de perder o neto despedaçava-lhe o coração. Então pegou na família e fugiu no camião de um traficante. Agora, o filho está a pedir apoio médico às autoridades jordanas para salvar o menino. “Nunca mais vou voltar para a Síria”, diz Jassem, na sua tenda de 5, 5 por 3, 5 metros, olhando para o vazio do deserto jordano. “Já não é a minha Síria. ”I Parte Até que o martírio nos separeAlgures no território sírio controlado pelo Estado Islâmico, uma jihadista holandesa põe um post no Twitter com a fotografia de um cheesecake de bolachas Oreo que acabou de fazer. É uma vívida acção de propaganda que partilha com outros que estejam a pensar viajar para a Síria para se juntar à causa. Mas também tem um toque pessoal islamista: o cheesecake foi fotografado ao lado de uma granada. A cerca de 320 quilómetros para sul, num campo de refugiados da Jordânia onde faz um calor abrasador, Rudeina, de 17 anos, diz que a sua vida no Norte da Síria, numa zona controlada pelo Estado Islâmico, e que abandonou em Abril, era miserável. Morava numa localidade perto da cidade de Raqqa, e conta que durante mais de um ano não saiu de casa, com medo de ser raptada ou forçada a casar com um combatente estrangeiro. “Eles cortaram a Internet, mas nós já nem a queríamos”, diz ela. “Se olhássemos para a Internet, veríamos como as pessoas vivem lá fora. Isso entristecia-nos. Ver o mundo lá fora era mais uma tristeza. ”Na propaganda do EI, a vida das mulheres do autoproclamado califado está repleta de amor, crianças e alegrias domésticas, tais como um bolo de Oreos. Mas a realidade é, frequentemente, bem mais dura para as que abandonam o mundo árabe, a Europa, os Estados Unidos para ir para lá, afirmam especialistas que analisam as contas nas redes sociais ligadas ao EI. Essas mulheres, que geralmente são atraídas por ideias românticas de apoio aos revolucionários e da vida num estado que venera a sua religião, vêem-se rapidamente num sistema institucionalizado, quase uma linha de montagem, que fornece esposas, sexo e filhos aos combatentes. E quando os maridos são mortos, espera-se que celebrem o seu “martírio” e rapidamente casem com outros islamistas. A situação é ainda pior para milhões de mulheres na Síria e no Iraque que viram as suas cidades e vilas ser tomadas pelo EI, revelam os entrevistados, com testemunhos semelhantes a outros dados a organizações de ajuda humanitária e activistas dos direitos humanos. “O nosso maior medo era irmos para uma prisão de mulheres”, conta Rudeina, sentada na barraca de zinco onde agora vive, no campo de Azraq. Recusou-se a dar o apelido por razões de segurança. Diz que os islamistas usariam qualquer pretexto para prender mulheres. “Usam as mulheres prisioneiras como esposas de combatentes estrangeiros. Se fores parar a uma prisão, sabe-se lá o que pode acontecer. ”A mãe, Nabiha, de 42 anos, conta que esse foi o destino da filha de um vizinho, que foi presa por o marido ser soldado do Exército sírio. “Eles disseram-lhe: ‘Ou casas com um combatente ou cortamos-te a cabeça e penduramo-la na praça. ’ Então, ela casou com um combatente e nunca mais soubemos dela. ”De acordo com a ideologia do Estado Islâmico, o lugar da mulher é em casa, a cuidar do marido e a procriar. “O criador decidiu que não há responsabilidade mais digna para ela do que ser a esposa do seu marido”, refere o manifesto “Mulheres do Estado Islâmico”, publicado este ano pela Brigada al-Khanssaa, um grupo feminino do “califado”. O documento foi traduzido para inglês por Charlie Winter, investigador da Quilliam Foundation, em Londres, e oferece a maior descrição feita até aqui sobre a forma como as mulheres são tratadas pelo EI. Determina que as mulheres só devem sair de casa para circunstâncias específicas, incluindo estudar religião ou trabalhar em situações em que as mulheres estão absolutamente segregadas. O manifesto rebela-se contra os valores ocidentais. As mulheres que optam por se juntar ao EI, quer sejam estrangeiras ou locais que acreditam na sua ideologia, parecem aceitar e até apreciar o seu novo papel. Algumas acabam por se casar por amor e apoiam entusiasticamente um sistema que rejeita os ideais ocidentais de moda e beleza. Mas muitas locais acham que as restrições são exageradas, antiquadas e aterrorizadoras, segundo as entrevistas. As regras são particularmente chocantes para as habitantes das zonas urbanas, como Raqqa ou Mossul, onde as mulheres se vestiam modestamente, mas muitas usavam simplesmente um lenço sobre o cabelo, calças de ganga e sandálias. Agora, são obrigadas a usar, em público, véus que lhes cobrem o rosto todo e vestidos, e não podem sair de casa sem a companhia de um homem. Amina Mustafa Humaidi, de 40 anos, fugiu de Raqqa em Maio, e diz que nunca deixava a filha de nove anos sair à rua, com medo dos radicais. “Ouvimos muitas histórias de sequestros de raparigas nas ruas por parte de guerrilheiros estrangeiros”, conta no seu abrigo em Azraq. “Quando eles chegaram, anunciaram que iriam buscar uma rapariga a cada casa e casá-la com combatentes estrangeiros. Nunca aconteceu. Acho que só disseram isso para nos aterrorizar. ”Mas o medo de Humaidi pela sua filha é justificado: o manifesto diz que as raparigas podem casar-se a partir dos nove anos. Para além disso, o EI também tem feito sistematicamente das mulheres escravas sexuais, nomeadamente mulheres e meninas da minoria yazidi no Iraque, referem grupos como a Human Rights Watch (HRW) e a Amnistia Internacional. Os próprios militantes, na sua publicação Dabiq, de Outubro de 2014, anunciaram que mulheres yazidis tinham sido oferecidas a combatentes como “despojos de guerra”. Um documento oficial do EI publicado no final do ano passado definia as linhas mestras de como as escravas devem ser tratadas, declarando que é permitido espancá-las e ter relações sexuais com elas antes de chegarem à puberdade, adianta a HRW. Os pais de Kayla Mueller, uma activista humanitária na casa dos 20 anos que foi feita refém, disseram em Agosto aos jornalistas que a filha tinha sido levada como “esposa” e foi repetidamente violada por Abu Bakr al-Baghdadi, o líder do grupo, de acordo com uma adolescente yazidi que estava com ela. Mueller morreu nas mãos do EI, mas não se conhece a causa exacta da sua morte. Entre os seus próprios membros e milhões de mulheres iraquianas e sírias que vivem nos territórios conquistados, os islamistas criaram uma complexa arquitectura social para garantir aos combatentes um fluxo constante de noivas e escravas sexuais. Quando um guerrilheiro estrangeiro chega ao Estado Islâmico com a mulher e os filhos, recebe uma casa, que geralmente foi confiscada a famílias locais que fugiram ou foram mortas, ou forçadas a sair. As estrangeiras solteiras são obrigadas a ficar numa pensão, onde recebem comida e uma “mesada”, segundo um relatório recente do Instituto para o Diálogo Estratégico, de Londres, que analisou as experiências de dezenas de mulheres estrangeiras seguindo os seus posts nas redes sociais. O investigador Shiraz Maher, do Centro Internacional para o Estudo da Radicalização e Violência Política, afirma que os combatentes solteiros estão autorizados a entrar na pensão, conhecer as mulheres e pedir-lhes que levantem os véus. Se gostarem do que vêem, podem ficar imediatamente noivos. Maher adianta que as mulheres no EI têm alguma palavra a dizer sobre com quem casam, mas não muita. “O processo não é longo”, afirma. “Conhecem-se numa manhã e à tarde estão noivos. ”Ainda assim, e porque as famílias sírias locais mantêm as filhas longe dos jihadistas, tem havido escassez de mulheres para os combatentes. Alguns, incluindo um britânico, queixam-se no Twitter da incapacidade de encontrar uma esposa — um raro sinal de discórdia na abundante propaganda cor-de-rosa. “Alguns destes tipos estão a ficar realmente frustrados”, afirma Maher. Uma mulher que diz chamar-se Shams, uma agente de propaganda online do EI, descreveu o seu casamento na conta de Tumblr. Diz que esteve solteira durante meses na Síria, onde chegou em Fevereiro de 2014, mas que viver assim era “muito difícil” e por isso optou por casar com um combatente, com quem se encontrara duas vezes. Fez um post com uma fotografia sua de véu branco, só com os olhos a verem-se, e o marido com uma camisa de manga curta branca e uma gravata preta muito fina. A legenda: “Casamento na terra da jihad. Até que o martírio nos separe. ” Shams identifica-se como uma médica de 27 anos da Malásia e o marido é marroquino. Postou ainda aquilo que disse ser uma selfie dos recém-casados: um estetoscópio pendurado numa AK-47. Muitas mulheres estrangeiras que vão para o EI sentem-se frustradas porque não partem para casar, mas para lutar, o que é proibido. “Temos vistos várias mulheres que não estão contentes com o facto de não poderem combater e que o expressam claramente”, afirma Peter Neumann. As queixas, adianta, reflectem o fosso entre as sociedades ocidentais — sobretudo da Europa —, onde estas mulheres cresceram, e a sua nova casa, que é moldada pela sociedade islâmica de há 1400 anos. “Obviamente são atraídas pela ideologia medieval, mas, ao mesmo tempo, algumas das suas atitudes são muito ocidentalizadas”, diz Neumann. Erin Marie Saltman, investigadora do Instituto para o Diálogo Estratégico, adianta que a frustração entre as mulheres estrangeiras era visível através dos seus posts cada vez mais duros. “Há mais mulheres agora, e mais mulheres ocidentais, e elas estão na verdade a revelar uma voz mais violenta. ”Muitas, acrescenta Saltman, ficam chocadas por descobrir que a vida no EI está repleta de violência e muita privação, incluindo escassez de electricidade e água potável — longe do paraíso que é apregoado pela propaganda. “Quando chegam ao Estado Islâmico, nunca é aquilo que diz na embalagem”, diz a analista. “Quase são forçadas a radicalizar-se ainda mais para justificar a viagem que fizeram, para justificar terem deixado as suas casas para trás. ”Algumas acabam por ter um papel de quase combatentes nas brigadas policiais femininas que aplicam as regras do EI, controlando sobretudo a forma de vestir das mulheres e as suas actividades. Outras ajudam a revistá-las em checkpoints. Mas, de acordo com o manifesto, as mulheres só receberão ordens para combater se for emitida uma fatwa declarando que a “situação dos muçulmanos é desesperada”. Para Neumann, é inevitável que o EI comece a recorrer a mulheres como bombistas suicidas, como fez, no Iraque, a Al-Qaeda, que deu origem ao Estado Islâmico. Há alguns sinais de que algumas têm já guardados em casa coletes suicidas. O relatório do Instituto para o Diálogo Estratégico cita uma mulher que diz chamar-se Umm Khattab e que, em Dezembro do ano passado, escreveu no Twitter que ouviu tiros em Raqqa e ficou com medo de que a sua casa fosse atacada — de tal forma que, escreveu, “pus o cinto [de explosivos] e tudo”. Por definição, o Estado Islâmico estará quase sempre em guerra, já que o seu objectivo declarado é criar um califado mundial por imposição das armas. Isso significa um ciclo de morte infindável dos seus combatentes e incontáveis jovens viúvas que serão encorajadas a voltar a casar com outros guerrilheiros. Apesar de a maioria dos casamentos no EI parecerem apenas combinações pragmáticas para a procriação, Saltman refere que muitos envolvem, no entanto, laços profundos entre marido e mulher. “Há um elemento romântico, de escape, para muitas destas mulheres”, acrescenta. “Quando se é novo, quando se perdeu a virgindade com alguém, teve-se um filho com essa pessoa, ela torna-se o nosso pilar. Não é o tipo de amor que vemos num filme ocidental sobre adolescentes, mas é uma ligação a alguém. E é um amor muito profundo à sua maneira. ”II PartePara os rapazes, Deus e armas. Para as raparigas, Deus e cozinhadosA guerra fechou a maior parte das escolas na terra de Yahyah Hadidi, em 2013, com o agravamento dos combates entre os rebeldes e o Governo sírio. Hadidi, com um diploma acabado de tirar e uma grande paixão pela Educação, decidiu fazer alguma coisa em relação a isso. Começou a dar aulas de improviso numa escola abandonada do seu bairro, atraindo mais de 50 rapazes e raparigas por dia. Até que, no início de 2014, chegou o Estado Islâmico e ordenou o encerramento de todos os estabelecimentos de ensino. Hadidi ficou desolado e pediu autorização para reabrir a escola, na vila de Manbij, entre as cidades de Raqqa e Aleppo, no Norte. Um combatente saudita, alto e barbudo, disse-lhe que, se queria ensinar, poderia dar aulas de religião na mesquita, apenas a rapazes e sob supervisão do EI. “Eu não podia fazer isso”, diz Hadidi, de 26 anos, que em Julho fugiu da Síria com a mulher e que agora vive no campo de refugiados de Azraq. “Eu queria dar uma educação boa às crianças e não fazer-lhes lavagens ao cérebro. ”O EI arrasou com a educação pública de milhões de crianças, agravando os danos provocados por anos de uma guerra devastadora na Síria e no Iraque, dizem as três dezenas de entrevistados. De acordo com a propaganda do EI, o ensino primário é um pilar da vida quotidiana do autoproclamado califado. Mas estes entrevistados dizem que os islamistas praticamente o eliminaram. Fecharam muitas escolas públicas, e, em alguns casos, reabriram-nas depois de darem nova formação a professores e readaptarem os currículos à sua interpretação extremada do islão. Eliminaram disciplinas como música, arte e geografia. Os testemunhos recolhidos sugerem que o sistema de educação do EI, segregado e desigual, não tem conseguido atrair muito apoio popular. Os jovens deixam de ir à escola e os combatentes estrangeiros enviam os filhos para instituições que os doutrinam. Os testemunhos reflectem largamente as conclusões de analistas que estudam o Estado Islâmico. “O objectivo do sistema de educação é doutrinar as crianças”, comenta Peter Neumann. “Todos os movimentos totalitários, os nazis ou o que for, põem grande ênfase no doutrinamento dos jovens e na formação de uma geração que constituirá a sociedade combativa que eles pretendem”. O EI faz parte da complexa rede de problemas da Síria, e os jihadistas têm desempenhado um papel significativo na regressão de décadas no ensino público. Um relatório de Março da Save the Children concluiu que as inscrições de alunos diminuíram para 50%, quando eram de praticamente 100% antes do início da guerra civil, em 2011. O EI tem tentado afincadamente que as crianças frequentem as suas escolas religiosas, nomeadamente através do uso do “Daesh Bus”. Hadidi refere que os radicais atravessam cidades e vilas num velho autocarro branco e chamam as crianças através de um altifalante, desafiando-as para uma boleia ou para ver desenhos animados num grande ecrã de televisão. Mas quando os miúdos entram, adianta, recebem sermões de islamismo extremista e panfletos para distribuírem aos pais. “Isto é muito perigoso; o nosso país está a regredir 20 anos”, diz Hadidi. “Não só as nossas crianças não estão a receber educação, como estão a ser arrastadas para caminhos errados. Vivíamos numa zona rural e levámos muito tempo a convencer os camponeses pobres a enviarem os miúdos para a escola. E agora isso está a morrer. ”Em vez de aprender a ler e escrever, os rapazes aprendem a lutar. Muitos dos entrevistados adiantam que existem campos de treino militar para rapazes que são na maioria adolescentes, mas onde também se encontram meninos de sete anos. Hikmat al-Gaoud diz que o EI criou um campo de treino para rapazes numa mina de sal abandonada nas imediações da cidade. “Eles levavam-nos durante três ou quatro meses para os treinar e eles regressavam combatentes”, afirma numa entrevista em Amã. “No meu bairro, todos foram, menos o meu filho, que se recusou. ”Gaoud afirma que muitos rapazes sunitas de Anbar se juntaram ao EI devido à sua revolta contra o Governo de Bagdad, dominado por xiitas, que vêem como demasiado próximo do Irão, também xiita. Mas alguns dos entrevistados apontam outras razões. “Para os jovens, não se trata propriamente de ideologia”, diz Mohammad Ahmed, de 43 anos, que vivia numa zona rural perto de Raqqa até fugir com a família para a Jordânia, em Junho. “Vêem os amigos alistarem-se e a voltarem dos treinos com uma AK-47 e com medalhas no peito. Pensam: ‘O meu vizinho agora é importante e eu também quero ser importante’. ”O seu filho de 14 anos, Ziad, diz que pelo menos 50 rapazes da sua escola, que foi encerrada, se juntaram aos militantes. “Adoram ter as suas armas”, comenta Ziad. O Estado Islâmico não atribui muita importância à educação das raparigas, a julgar pelo manifesto “Mulheres do Estado Islâmico”. Satiriza as mulheres ocidentais que se dedicam a “ciências inúteis… que estudam as células cerebrais de vacas, grãos de areia e as artérias de um peixe!”O documento salienta que as mulheres não podem cumprir os seus papéis de esposas e mães se forem “iletradas ou ignorantes”. Mas adianta que a educação das raparigas deve ir dos sete aos 15 anos e focar-se na religião e “aprendizagem de tarefas como têxteis, costura e cozinha básica”. Nabiha, uma mãe de Raqqa, de 42 anos, entrevistada no campo de refugiados de Azraq, diz que os islamistas descobriram que a sua sobrinha estudava numa universidade numa zona da cidade de Homs controlada pelo Governo. Confrontaram-na com isso e ameaçaram executá-la caso a filha não regressasse a Raqqa em 30 dias. “Todos sabemos que esta gente não tem misericórdia, por isso ela mandou vir a filha”, conta. Nabiha conta que os militantes vão porta a porta à procura de pessoas que se tenham licenciado: “Reúnem os diplomas e queimam-nos numa grande fogueira. ”III ParteÉ como se vivêssemos no séc. XVIIIAntes de o Estado Islâmico ter capturado a cidade de Faten Humayda, no Norte da Síria, há quase dois anos, uma bilha de gás propano para o seu fogão custava-lhe o equivalente a 50 cêntimos. Mas quando os islamistas se instalaram, o preço subiu para os 27 euros, obrigando Humayda a cozinhar numa fogueira no quintal. “Antes era um paraíso”, diz, descrevendo a sua antiga vida, passada nas margens do rio Eufrates. Agora está sentada numa barraca de zinco de Azraq, onde chegou com ajuda de traficantes. O Estado Islâmico tem tentado fazer aquilo que a Al-Qaeda e outros grupos jihadistas nunca tentaram sequer: criar um estado, com governo e instituições e uma economia funcional. Apesar de os jihadistas terem algum sucesso de governação, para milhões de pessoas que estão sob o seu comando tem sido impossível encontrar — ou conseguir pagar — comida, combustível e outras necessidades básicas. As entrevistas conduzidas neste campo da Jordânia sugerem que o Estado Islâmico criou um sistema no qual a maior parte dos habitantes locais luta por sobreviver, enquanto os ocupantes têm electricidade e alimentação gratuitas e até produtos importados, incluindo bebidas energéticas, como Red Bull. As pessoas ouvidas referem que é mais fácil encontrar alimentos nas áreas onde se cultivam frutas e vegetais ou onde há pastagens de animais. Mas, com o encerramento das rotas tradicionais de abastecimento devido aos combates, até produtos básicos, como açúcar ou leite em pó para bebé, têm de ser contrabandeados e são terrivelmente caros. A situação é ainda mais grave devido ao número elevado de desempregados. Fábricas e grandes lojas fecharam as portas, por os donos terem fugido ou porque as matérias-primas de contrabando são demasiado dispendiosas. “Eu só cozinhava lentilhas com arroz. Era tudo o que tínhamos”, afirma Amina Mustafa Humaidi, que recentemente abandonou a cidade de Raqqa com a família e que agora vive no campo de Azraq, no deserto jordano, a 65 quilómetros de Amã. Diz que no ano passado o marido foi abatido a tiro pelos combatentes do EI. Depois de ele morrer, a família dele deu-lhe uma panela de pressão eléctrica, mas só tinha uma hora por dia de electricidade. “Quando a electricidade chegava, meu Deus! Eu ia a correr cozinhar”, conta. “Se deixasse passar essa hora, os meus filhos não comiam. Tínhamos frigorífico, mas não podíamos usá-lo. ”Sentada no chão de cimento, Humaidi conta que o filho mais novo tinha nove meses quando os islamistas chegaram a Raqqa, e de repente ela deixou de conseguir encontrar leite em pó para lhe dar. “O Estado Islâmico não trouxe ordem. Trouxe caos”, diz. Os novos governantes também se mostravam contra a ajuda humanitária estrangeira. Em Abril, apareceram fotografias em sites do Estado Islâmico que mostravam islamistas a queimar dois carregamentos de frango vindos dos Estados Unidos e destinados às vítimas da guerra civil síria. Os cuidados médicos e os medicamentos também escasseiam, e muitos hospitais só tratam de membros do EI ou reservam as melhores equipas e equipamentos para eles, segundo relatos de pessoas entrevistadas na Síria e no Iraque. Muitos profissionais de saúde fugiram quando os combatentes do EI chegaram. Agora, se um médico pedir autorização para se deslocar para fora das áreas controladas pelos islamistas, é-lhe exigido que tenha até cinco pessoas a garantir que regressará, dizem testemunhas. Se não voltar, os familiares ou amigos que apresentaram a garantia serão punidos ou mortos. Em Mossul, uma cidade com mais de um milhão de pessoas, os médicos queixam-se de que lhes falta praticamente tudo: radiologistas, anestesias, sangue. “Todas as dificuldades que possa imaginar nós temos”, declarou uma médica iraquiana do hospital de Mossul. A mesma profissional adianta que o hospital deixou de fazer cirurgias preventivas, reservando os recursos somente para as operações destinadas a salvar vidas. Os cortes de energia significam que o hospital tem de depender de geradores, mas muitas vezes é difícil encontrar combustível para eles. Se não houver electricidade para as bombas de água, não há água. “Imagine um hospital sem água”, diz a médica. “É como se estivéssemos a viver no século XVIII. Estou a tentar sair de Mossul, mas tenho uma casa boa, que resultou dos meus 25 anos de trabalho. Não posso deixar a minha casa, é o fruto da minha vida. Mas isto não é vida. ”Para controlar as pessoas que governa, o EI criou governos locais que regulam serviços como licenças de construção ou de pesca. (Pescar com dinamite ou baterias eléctricas é agora proibido. )Nas entrevistas, algumas pessoas referem que os serviços públicos pararam, enquanto outras dizem que o EI os melhorou. Um líder religioso de Fallujah, cidade no Centro do Iraque, que pediu para não ser identificado por razões de segurança, disse numa entrevista por telefone que é contra os islamistas, mas que eles instalaram um governo eficiente. Adianta que criaram gabinetes que emitem licenças de casamento e bilhetes de identidade ou resolvem contenciosos. Funcionários pagos pelo EI varrem as ruas e arranjam geradores que garantem iluminação em algumas ruas, diz. Também instalaram tribunais da sharia [lei islâmica] e uma delegação da Hisbah, uma espécie de departamento da polícia religiosa. “Eles controlam os preços; se alguém subir demasiado os preços, é punido”, afirmou o responsável religioso. Várias das pessoas entrevistadas referiram que nos anteriores governos sírios e iraquianos pediam-se subornos descaradamente, mas que o EI parece ter regras mais estritas contra o recebimento de luvas por parte dos seus oficiais. “As coisas estão bem regulamentadas”, afirma um empresário de Raqqa, entrevistado via Skype, reconhecendo com relutância que alguns dos engenheiros, arquitectos e outros profissionais com habilitações recrutados pelos islamistas em várias partes do mundo melhoraram os serviços. “Já não vemos lixo atirado para o chão como era costume”, exemplifica. Mas também há quem diga que os membros do EI estão muito mais preocupados em combater do que em melhorar a vida do dia-a-dia dos cidadãos. O Estado Islâmico é financiado através do desvio de petróleo, assalto a bancos, extorsão, sequestros, venda de antiguidades no mercado negro — e da cobrança de impostos às populações locais. As pessoas ouvidas pelo WP dizem que costumavam reservar entre 2, 5% e 10% dos seus rendimentos para o zakat, uma contribuição de caridade que os muçulmanos fazem para ajudar os pobres. Mas agora o EI exige que esses pagamentos sejam feitos à própria organização. O activista Abu Ibrahim al-Raqqawi acusa o EI de usar o zakat e outros impostos e taxas para pagar aos seus combatentes e outros estrangeiros que vieram juntar-se ao Estado Islâmico. Os estrangeiros não pagam impostos. Humayda, a avó que fugiu de uma aldeia perto de Raqqa, acusa os islamistas de terem levado 10% da colheita de trigo da sua família, argumentando que era para os pobres. Diz que uma ou duas vezes por ano o EI distribui um carregamento de comida na aldeia e que quem a queria tinha de lutar por ela. “Acho que estão a tentar que fiquemos iguais a eles”, afirma. “E depois dão chicotadas aos pobres que não pagam os impostos. ”IV Parte A lei do medo e da violênciaOs jihadistas arrastaram o homem vendado para a praça central de uma localidade perto de Raqqa. Foi numa sexta-feira, logo a seguir às orações, e o mercado estava a abarrotar de pessoas. Gritaram que ele era um espião do Governo e retiraram-lhe a venda para que todos lhe pudessem ver a cara. Nabiha, uma mulher de 42 anos que fugiu da cidade e vive agora em Azraq, lembra-se de como se sentiu enojada pela forma como os radicais forçaram o homem a baixar-se até um bloco de madeira, daqueles que são usados no abate de ovelhas, e levantaram um cutelo de talhante. “Bastou um golpe”, diz Nabiha, que pediu que o seu apelido não fosse usado por razões de segurança. “O corpo foi para um lado, a cabeça para outro. Nunca me vou esquecer. ”O EI usa o seu brutal e tantas vezes arbitrário sistema de justiça para manter sob controlo os milhões de pessoas que vivem nos seus territórios. Com as decapitações e crucificações públicas de pessoas que podem ser apenas suspeitas de deslealdade, criaram uma cultura de horror e pavor tal que praticamente ninguém tem coragem de contestar. “Para vocês que nos vêem de fora pode parecer tão simples perguntar: ‘Mas por que é que não há mais pessoas a enfrentar o Daesh? Por que é que não se ouvem mais vozes a contestá-los?’”, diz um homem de negócios em Raqqa com quem falámos por Skype e que recusou ser identificado. “Mas isso é porque não são vocês que têm de viver com eles, debaixo das suas ordens. ”Segundo os entrevistados, quem vive sob o jugo do EI está sujeito a um regime extremo de leis impostas pela polícia e pelos juízes, na sua maioria estrangeiros vindos da Tunísia, Líbia, Arábia Saudita, Rússia, França, Grã-Bretanha e outros países. Os relatos são considerados fidedignos e consistentes com as conclusões dos analistas que se têm dedicado ao estudo do EI e de activistas dos direitos humanos. As decisões dos tribunais assentam numa interpretação extrema da sharia. E para algumas localidades é mesmo deslocado um departamento da polícia feminina para reforçar as disposições legais para as mulheres e garantir que nas escolas, nos hospitais e noutros serviços públicos reina a segregação por género. Para todos os que fumam cigarros, bebem álcool, mantêm as lojas abertas durante as horas de oração ou se vestem à ocidental está-lhes reservado serem chicoteados em público — ou pior. Yassin al-Jassem lembra-se bem do dia em que o EI apanhou um adolescente, filho de um vizinho, a fumar um cigarro. “Prenderam-lhe a mão esquerda em cima de um bloco de madeira e com uma enorme faca de talhante deceparam-lhe dois dedos, precisamente aqueles com que segurava o cigarro”, conta Yassin. “Depois, atiraram-no para o meio da rua, entregue à sua sorte. ”Os suspeitos de espionagem ou de colaboração com os inimigos do EI são executados. As mortes acontecem geralmente em dias de mercado ou depois das orações das sextas-feiras, em locais de grande visibilidade, de forma a garantir que um número máximo de pessoas assiste à barbárie. Yahyah Hadidi diz que a principal praça da sua cidade, perto de Aleppo, ficou conhecida como “Praça do Julgamento” por ser o palco de execuções todas as sextas-feiras. “Puseram lá um mastro em forma de L e dependuravam os corpos e as cabeças com ganchos de talho”, diz. “Querem aterrorizar as pessoas. Muitos muçulmanos são boas pessoas e como não pensam como eles são chacinados”, acrescenta. Ahmed Ali Humaidi, 19 anos, fugiu recentemente com a sua família de Raqqa para a Jordânia. Diz que os revolucionários decapitam as pessoas numa rotunda mesmo no centro da cidade e deixam as cabeças penduradas em postes. “A minha vida sempre me correu bem e nunca tinha sentido medo. Mas quando vi o que acontecia, aí pela primeira vez senti medo”, relata. De acordo com alguns dos entrevistados, o sistema de justiça criminal do EI é menos corrupto do que as instituições sírias sob governo do Presidente Bashar al-Assad. E no Iraque houve quem se tivesse juntado ao EI porque os sunitas preferem isso a viver sob o Governo de Bagdad, dominado por xiitas. Hikmat al-Gaoud, o antigo presidente da Câmara de Hit, no Iraque, tem tentado recrutar nómadas sunitas para lutar contra o EI, que diz odiar. Mas acrescenta que há iraquianos que se juntaram aos revolucionários com o seguinte discurso: “O Governo do Iraque não me me respeita, nem à minha mulher e à minha família. Se tiver de andar de mãos dadas com o mal para poder viver a minha vida com dignidade, fá-lo-ei. E o Estado Islâmico é o menor dos dois males. ”Por outro lado, Jassem afirma que o sistema de justiça do EI é caprichoso e abusivo. Diz que três dos seus vizinhos foram mortos porque tinham inimigos que contaram mentiras sobre eles ao Daesh. Uma mulher que vive em Mossul, no Iraque, e que pediu para não ser identificada, diz que recentemente o EI cortou as mãos a quatro rapazes, de 14 ou 15 anos apenas, porque foram acusados de roubar fios de electricidade para conseguirem luz nas suas casas. Em entrevista por Skype, disse ainda que soube de um homem a quem cortaram as orelhas por ter feito queixas do EI. “Tenho medo deles. Olho para eles, com as suas armas e as suas facas, e penso: ‘São uns monstros. Como é que chegaram até aqui?’ Roubaram-nos a nossa cidade”, conclui. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Noutra entrevista por Skype, uma outra mulher de Mossul diz que receia pelo futuro dos filhos, que estão a ser criados e educados a assistir a tamanha violência. “Na semana passada, o meu filho de seis anos roubou um rebuçado ao irmão. E depois disse: ‘E agora, vais cortar-me a mão?’ Preferia já ter morrido a ter de ouvir do meu filho uma coisa como esta”, conta. Recorda ainda como há pouco tempo, quando seguia de carro com a família, se deparou com uma execução. Era tanta gente a assistir que a estrada estava bloqueada. “Comecei a chorar e tapei os olhos dos meus filhos para que não vissem. Não sei como será o futuro deles. Mas não temos condições para fugir. ”Hadidi, que vive numa localidade perto de Aleppo, diz que frequentemente há estrangeiros que militam no EI a chegar à sua loja de telemóveis para o revistarem e verem as suas contas. Depois, vão a casa dos seus clientes para lhes inspeccionar os telefones. Diz que chicotearam um adolescente só porque ele tinha descarregado música para o telemóvel e que executaram dois outros porque descobriram que tinham a bandeira da Síria nos telefones e por isso eram apoiantes do Governo. “Pensam que toda a gente é espia”, conclui. Com Souad Mekhennet, em Marrocos e Berlim, Loveday Morris, Erin Cnningham e Mustafa Salim, no Iraque, Karla Adam, em Londres, e Taylor Luck, na Jordânia. Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
REFERÊNCIAS:
A noite do fim do mundo
Na madrugada de 25 para 26 de Novembro, a água tomou de assalto os arrabaldes pobres que Lisboa não conhecia. Há 50 anos, morreram mais de cinco centenas de pessoas. Mês e meio depois, os jornais calaram-se e o Governo já tinha parado de contar os mortos. (...)

A noite do fim do mundo
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Na madrugada de 25 para 26 de Novembro, a água tomou de assalto os arrabaldes pobres que Lisboa não conhecia. Há 50 anos, morreram mais de cinco centenas de pessoas. Mês e meio depois, os jornais calaram-se e o Governo já tinha parado de contar os mortos.
TEXTO: A noite ia alta quando Joaquim, marido de Maria Emília, voltou do trabalho. O ajudante de camionista parou com uns conhecidos em Castanheira do Ribatejo e ajudava a suportar a porta de um café que a força da água queria deitar abaixo. — Se tu estás aqui a salvar-te e a salvar-nos, que fará da tua família, disse-lhe um amigo. — Mal todos os das Quintas se a água chega à minha família. Apressou-se. Em Quintas, os relógios pararam às 2 horas da manhã. Por essa hora, a água chegou ao tecto do quarto onde Maria Emília dormia. O inferno chegou com a noite. A água ultrapassou os telhados na várzea do pequeno lugar enfiado num vale a meia dúzia de quilómetros do centro de Castanheira do Ribatejo, em Vila Franca de Xira. Na noite de 25 para 26 de Novembro de 1967, as cheias levaram metade da povoação. Contaram-se 94 mortos. Dia 25 era um sábado e até as famílias de fora tinham vindo à terra. A chuva caiu durante todo o dia. Miudinha. À noite abateu o dilúvio. Era madrugada alta, estava muito escuro e poucos se deram conta. Ninguém esperava que a água entrasse, sem aviso, em poucos minutos e levantasse as camas até ao tecto. Lá ficaram as marcas da ondulação, dos berços, dos dedos enlameados à procura de socorro. Mariana Guerra afastou com as mãos a lama para encontrar a trança da irmã. Maria Emília estava junto à porta do seu quarto. Mais à frente, o filho bebé, depois as duas crianças. “Estava um arame entrançado na trancinha dela. Era tudo lodo. Então, limpámos muito bem a carinha. E eu disse: ‘Olha a minha irmã está aqui’. ” Mariana fala da irmã sempre com diminutivos. Às vezes, a fala pausada, fininha, de miúda, demora-se nas descrições. Fica, fixa, a olhar em frente porque ainda hoje consegue ver tudo. Passaram 50 anos. Mariana tem o peixe ao lume e as recordações voltam-lhe de rompante, interrompendo-lhe a serenidade e a preparação do almoço. Quer mostrar as fotos da irmã, que andava a buscar desde manhã cedo. As mãos tremem-lhe tanto como a voz — e o sopro da água a escaldar — ao pegar nos retratos esbranquiçados da mulher bonita e dos seus filhos de cabelos lisos e olhos grandes. Mariana tinha 29 anos quando foi enterrar a irmã de 31. As casas eram velhas, “contavam-se pelos dedos as que tinham condições mínimas”. Não havia esgotos. António Macedo, que ia a Quintas — a terra da mulher — passar o fim-de-semana, não sabe como se chamavam casas a algumas “estruturas enfaixadas”. As telhas não tinham forro, o chão era a terra. “A tromba de água caiu num instante” e o Rio Grande da Pipa encheu com a mesma rapidez. A ponte junto ao cano de Alviela entupiu com o que a enxurrada levara — o campo, que antes era repleto de caniços e oliveiras, ficou despido. A água acumulou-se a montante. As paredes romperam, as casas foram levadas na corrente. Quem se salvou andou a partir muros para mandar embora o que não pedira para entrar. Os corpos foram alinhados à porta da casa onde Luísa Fajardo vivia com os pais. Cada um colocado sobre os taipais de madeira que o pai tinha trazido da fábrica da Ford — que nunca mais voltou a usar. Naquela noite, Luísa, de 13 anos, queria ficar no aconchego da avó, mas esta não deixou. Ficou lá a irmã, um ano mais velha, a dormir na casa na parte baixa do lugar de Quintas, junto ao rio e à escola, a dois passos da ponte. Luísa dormiu na casa dos pais, umas ruas acima. De madrugada, a mãe jurava que ouvia gritar. A luz, instalada na aldeia um ano antes, não deu de si. O pai tentou descer várias vezes, sem que a água e as terras o deixassem. A dimensão das chuvas chegou-lhes com a exclamação de um vizinho. O homem entrou-lhes em casa, resguardando a cabeça num saco de sarapilheira: “Ai Maria, tanta gente morta nesta aldeia. ” Outros foram chegando à medida que o breu desaparecia. “Tinham deixado os seus mortos em casa. Vinham encharcados. E a minha mãe, da pouca roupinha que tinha, ainda assistiu essa gente toda. ”Na manhã em que o sol mostrou o fim do mundo, o pai foi lá em baixo e voltou outro homem. “A casa nem telhado tem, não está lá nada dentro”, descreveu à família. Ficaram as empenas e, na escola, os degraus da entrada. O corpo do avô foi o último a aparecer, nove dias depois, ao pé do Tejo. Nessa noite, Luísa perdeu 28 familiares. E continuou a chover por mais três ou quatro dias. Na madrugada de sábado para domingo, a água inundou rapidamente as zonas baixas da península da capital — de Vila Franca de Xira, Alenquer, Loures, Odivelas a Oeiras — e as histórias repetiram-se: as das famílias refugiadas nos telhados, daqueles que não saíram a tempo, dos que voltaram atrás, dos guarda-fatos caídos, das portas que se fecharam, dos carros arrastados. Foram cheias rápidas: o Tejo e os afluentes subiram três a quatro metros em poucas horas. Morreram centenas — o Estado Novo falou em 462 mortos, os jornalistas Pedro Alvim, Joaquim Letria e Fernando Assis Pacheco contaram perto de 700. (leia a crónica de Pedro Alvim "Os mortos e os fósforos" associada a esta reportagem)Morreram os pobres, que viviam em habitações precárias nos leitos de cheia, construídas ilegalmente enquanto Lisboa crescia para fora da cidade. E os pobres em sorte, que habitavam os andares baixos e as caves, que dificilmente deram pela entrada da água. A lama, que cobriu os destroços e os mortos, pôs a descoberto a miséria. “Os estudantes associativos, a elite política das universidades, comunistas, católicos progressistas, esquerdistas e muitos voluntários atraídos por uma solidariedade que não sabiam ser proibida iam pela primeira vez conhecer o Portugal sobre o qual falavam em abstracto nos panfletos”, retrata o historiador António Araújo. Na manhã de domingo, poucos jornais chegaram ao Ribatejo. “Houve inundações em Vila Franca e o comboio não passou”, disse o ardina do Entroncamento a António Macedo, que saía da beira da mãe para ir ao encontro da família em Quintas. Àquela hora da manhã, a telefonia a pilhas dava conta dos primeiros “três ou quatro mortos” na freguesia dos Cadafais, em Alenquer. Viriam a aparecer corpos até 14 de Janeiro. Por essa altura, o Governo já tinha deixado de os contar. “Chuva e morte: mais de 200 vítimas” titulava o Diário de Lisboa na primeira página de domingo. Nesse dia, cada jornalista foi enviado para o seu lado. Alice Vieira foi para Quintas, nos carros que os estudantes, reunidos no Instituto Superior Técnico, tinham organizado para levar quem quisesse ajudar. À data, tinha 24 anos e era enviada pelo Diário de Lisboa. Três dias depois, “427 mortos” eram confirmados pelo Diário de Notícias. Fontes oficiais chegaram a falar de 462 vítimas mortais. Depois, a censura ligou: “A partir desta hora, não morre mais ninguém”, disse um dos funcionários dos serviços da censura ao jornalista da Rádio Clube Português João Paulo Guerra, amigo de Alice Vieira. “A censura carregou com mão de ferro, cortando notícias, distorcendo informações, impedindo os números certos de ser divulgados”, porque nessa altura o Governo de António de Oliveira Salazar percebeu “que seria perigoso deixar que as pessoas soubessem a dimensão exacta do que estava a acontecer”, conta a escritora. “A censura falava quase de cinco em cinco minutos. ”Desde segunda-feira, dia 27, que enviava telegramas às redacções: “Gravuras da tragédia: é conveniente ir atenuando a história. Urnas e coisas semelhantes não adianta nada e é chocante. É altura de acabar com isso. É altura de pôr os títulos mais pequenos”, cita o trabalho de Francisco da Silva Costa, Miguel Cardina e António Batista Vieira, “As inundações de 1967 na região de Lisboa: Uma catástrofe com diferentes leituras”. Na quarta-feira, determinava-se: “Os títulos não podem exceder a largura de meia página e vão à censura. Não falar no mau cheiro dos cadáveres. Actividades beneméritas de estudantes — Cortar. ”Alice Vieira “só queria gritar às pessoas: ‘Vejam lá o que está a acontecer às portas de Lisboa’”. Como outros jornalistas, via pela primeira vez as “terríveis condições em que muita gente vivia, com casas de construção tão precária que eram incapazes de aguentar o embate das águas, gente amontoada em bairros clandestinos”. Percebeu de imediato que “o que estava a acontecer era a prova da miséria que alastrava no país e isso a ditadura não permitia que fosse conhecido”. “Um lamaçal de perder de vista. A lama dava-nos para cima dos joelhos e a gente punha as mãos na lama e trazíamos animais mortos. E aquilo era um cheiro. Ainda hoje me lembro desse cheiro. ”O cenário, que só se lia nas entrelinhas, foi por fim dado a conhecer aos portugueses, a 2 de Dezembro, nas fotografias que O Século Ilustrado conseguiu publicar. O país nunca soube ao certo quem morreu. Para os autores do estudo sobre as “diferentes leituras” da catástrofe, é seguro falar em “500 mortos”. Na semana seguinte ainda se retiravam corpos “das lamas acumuladas em Algés e se continuava a falar de desaparecidos” que teriam sido levados pelo Tejo. “Nestas situações, e em especial quando os poderes públicos não querem revelar toda a dimensão da tragédia, a imprecisão é grande”. Mês e meio depois, o tema já não vinha nos jornais. Era 1967: a Guerra Colonial ia a meio e faltava pouco menos de um ano para Salazar passar a presidência do Conselho de Ministros a Marcelo Caetano. O Governo atribuiu às cheias uma retórica de fatalismo. Dizia o Ministério de Interior, numa nota oficiosa, que “somente a violência do fenómeno de carácter excepcional” poderia explicar “cabalmente a grandeza dos prejuízos causados”. Os jornais próximos apoiavam o “carácter inesperado da catástrofe”, dando ênfase à “onda de comoção gerada”. Para um desses jornais, o Diário da Manhã, esta “cadeia de solidariedade humana” era o reflexo da “vitória do homem, que a natureza tinha esmagado”. O tempo passou e os autores que se debruçaram sobre o assunto dividiram as culpas. Choveu tanto na noite de 25 para 26 que chegou a um quinto daquilo que choveu no ano todo. E eram anos de chuvas: só no ano anterior (1965-66) houve 20 inundações em Lisboa e foi aquele em que choveu mais (1214 l/m2) num período de 80 anos, entre 1918 e 1998, concluíram Pedro Elias Oliveira e Catarina Ramos, autores do estudo sobre as Inundações na Cidade de Lisboa durante o século XX. Em 2015, Helena Abreu e Ana Paula Torres, entre outras pessoas ligadas à biblioteca municipal de Algés, começaram a escrever as memórias das gentes de Oeiras e que haviam de dar origem ao site Histórias de Vida. As cheias tornaram-se um tema premente, por ser “tão desconfortável e pouco reavivado na memória”. “O facto é que toda a gente tinha um vizinho que fugira à lama, uma amiga que não saia a tempo. E muitos nunca tinham falado sobre isso. Fomos agitar as águas”, caracteriza Helena Abreu. Da recolha de testemunhos, Ana Paula, historiadora, quis uma exploração mais profunda e meteu-se nos arquivos para juntar um contexto às memórias que tinha recolhido. Escreveu um livro – o primeiro livro publicado exclusivamente dedicado aos acontecimentos de 25 para 26 de Novembro de 1967 - e chamou-lhe “As ‘gotas de ar frio’ que inundaram a Grande Lisboa”. O livro estará disponível nas bibliotecas universitárias, nas bibliotecas dos concelhos afectados e numa edição e-book. Porque entende que a “negação do nome é a negação da própria pessoa”, Ana Paula Torres quer agora construir a lista completa de vítimas das cheias de há cinquenta anos. A recessão da actividade agrícola nos 40 anos anteriores deixou os solos nus de vegetação e ao abandono. Consequência da expansão urbana, os terrenos perderam permeabilidade e a água ficou à superfície. Havia “estrangulamentos artificiais” que a impediam de escoar e esgotos igualmente incapazes de a drenar, compila o estudo de Francisco da Silva Costa. Mas o cerne da questão era social. “Na realidade, a água foi muita. Mas se as ‘casas’ (barracas) fossem verdadeiras casas, teriam sido arrastadas pelas águas?”, questionava a 10 de Dezembro o Comércio de Funchal, um semanário crítico do regime. Acossados pelo regime, que os acusava de “perturbarem a ordem”, estudantes e a imprensa não afecta ao salazarismo afastavam a hipótese de o fenómeno natural justificar a dimensão da tragédia. O Solidariedade Estudantil, boletim dos estudantes que se organizaram para apoiar as populações afectadas, deu a conhecer as estatísticas do Serviço Meteorológico Nacional que mostravam que tinha chovido mais no Estoril, uma zona rica de Cascais, onde não houve mortes nem grandes danos materiais. Para o Comércio do Funchal, cita o estudo de Francisco da Silva Costa, a culpada pela maioria das mortes era a “miséria que a nossa sociedade não neutralizou”. “Até na morte é triste ser-se miserável. Sobretudo quando se morre por o ser”, lia-se. Eram “zonas mártires de inundações”, apelidava o Avante!, o jornal do Partido Comunista, então na clandestinidade, na edição de Dezembro de 1967. “As inundações não teriam originado semelhante tragédia se o Governo se tivesse preocupado em resolver da habitação para os trabalhadores, se tivesse cuidado da regulamentação dos rios e da defesa das populações ribeirinhas, se tivesse tomado as medidas de emergência que as circunstâncias impunham. ” “Porque não foram destruídos pelas chuvas diluvianas os bairros residenciais de Lisboa, mas sim os bairros de Urmeira, Olival Basto, Pombais, Quinta do Silvade, Odivelas?”, questionava. A memória colectiva das cheias é escassa. Não há livros publicados. “Não me lembro de a censura ter agido com tanta força noutra altura e isso nota-se”, diz Alice Vieira. “Se as coisas não aparecem nos jornais nem nas televisões, não existiu, não é? As pessoas não se metiam em políticas, como se dizia. Nunca entenderam o que é que aquilo foi. ”A real dimensão da catástrofe “não ultrapassou a espessa cortina da censura”, como nota o estudo de Francisco da Silva Costa, nem mesmo nos anos recentes, quando autores como o geógrafo Fernando Rebelo consideraram as cheias de 1967 uma das três grandes catástrofes em Portugal, juntamente com o terramoto de Lisboa de 1755 e o aluvião do Funchal de 1803. A academia estudou mais os fenómenos meteorológicos e os efeitos no solo do que as consequências sociais e os impactos políticos. E isto, tece a historiadora Ana Paula Torres, que se dedicou ao estudo das cheias no concelho de Oeiras, “é a prova de que esta foi uma das campanhas de silêncio mais eficazes de Salazar”. Vasco Pereira abre a porta de duas voltas e segue de passos rápidos, apoiados numa canadiana, a acender as luzes. Dá a volta à capela de São Sebastião, em Barcarena, e pára depois do altar para apontar para o coro. Era ali, no andar de cima, o quarto dos pais de uma família de sete que “durante anos” viveu na capela. “À entrada, lá ajeitaram as coisas. ” Usavam o pequeno corredor lateral, mas nunca o altar nem o redondo da assembleia daquela igreja agora usada para cerimónias fúnebres. A família perdeu a casa, no Bairro dos Pescadores, para a cheia. Por isso, o padre João — “um canadiano” — ofereceu-lhes a capela por uns tempos. Os filhos ainda casaram por lá. Vasco tinha 35 anos nas cheias. Estava desde os 16 nos bombeiros de Barcarena e já tinha as memórias marcadas pelas explosões na Fábrica da Pólvora. Havia de ver e socorrer outras tantas, mas não há forma de esquecer o domingo da “enxurrada”. “Ninguém sabia o que vinha com a chuva. Mas, quando o domingo passou, os ânimos acalmaram. Olhámos à volta e vimos que afinal em Barcarena não se tinha passado nada de especial. ”Nos dias seguintes, foram recolher e distribuir roupas, alimentos e móveis. Alguns foram ajudar as populações “que acatavam os seus mortos em frente ao Palácio de Queluz”. “Era o ofício dos bombeiros. ” (leia “Às 4h da manhã começaram a chegar cadáveres de homens, mulheres e crianças”, o relatório da corporação de bombeiros de Odivelas nas 48 horas que se seguiram às cheias, associado a esta reportagem)O que não podiam escrever nos seus jornais, Alice Vieira e Fernando Assis Pacheco, acabados de sair do curso de Filologia Germânica, contaram à revista alemã Quick (que saiu de circulação em 1992). “Contámos tudo o que vimos e o que aquilo representava. Aquilo era a falência do Estado. ”A imprensa internacional foi o socorro dos jornalistas nacionais e não escapou, por isso, às amarras do regime. A PIDE interrogou o então correspondente da United Press International, Edouard Khavessian, depois de a agência ter publicado sobre os protestos estudantis contra a inacção do Governo. As estradas em Quintas eram de terra batida, estreitas. Não havia comunicações nem como comprar mantimentos. Os bombeiros foram os primeiros a chegar. Depois, os estudantes. Para Alice Vieira, os bombeiros em Quintas eram iguais àqueles que, um ano antes, tinham estado em Sintra a enfrentar o fogo que consumiu a serra e matou 25 militares. Nem uns nem outros “sabiam como travar aquilo”. “Como se trava uma calamidade destas com tão poucos meios? Sem comunicações. Estava-se preso às cabines. E eles, pobres, nem sabiam bem o que haviam de fazer. ” A GNR e a PSP? “Nada. ”Nos primeiros dias, “as autoridades do regime ficaram paralisadas”. Moveram-se os estudantes, perto de seis mil, uns a pedido das associações católicas, outros pelas suas próprias organizações — entre eles, António Guterres, Diana Andringa, Helena Roseta, José Pacheco Pereira, Marcelo Rebelo de Sousa, Mariano Gago. Aí também os estudantes se aperceberam das condições paupérrimas das populações e da passividade das autoridades. “Não só a mobilização dos universitários foi muito importante, como contribuiu para os universitários verem a realidade do país”, nota Alice Vieira. “Aquilo deu-lhes a imagem do que era o regime. ”Durante duas semanas, os estudantes reuniram-se em Lisboa numa comissão que funcionava na associação de estudantes do Instituto Superior Técnico, da qual fazia parte a Juventude Universitária Católica e associações de estudantes do Porto e Coimbra. Organizaram-se brigadas de estudantes de Medicina que vacinavam contra a febre tifóide, outros limpavam casas e ruas, ajudavam nos funerais, recolhiam e entregavam mantimentos, educavam para a segurança sanitária. No total, compilou o historiador António Araújo, esta comissão deu mais de mil refeições por dia, envolveu 5760 estudantes em 44. 080 horas de trabalho voluntário. E a sua vontade de tirar estes acontecimentos da sombra era quase palpável: a primeira edição do Solidariedade Estudantil, com 10 mil exemplares, esgotou numa manhã. Depois apareceu o Movimento Nacional Feminino, a Cruz Vermelha, a Mocidade e a Legião Portuguesa, as forças armadas. “Andavam por lá freiras e jovens estudantes a lavar casas, nomeadamente em Caneças e em Odivelas”, recordou Raul da Silva Pereira, numa entrevista publicada no livro Habitação e Sociedade. No Natal, a Marinha ainda servia refeições em Quintas. “A dada altura, estava toda a gente lá, mas não como o regime dizia: a nação estava profundamente dividida. De um lado, os estudantes e cidadãos de atitude mais crítica que, não estando inseridos na lógica corporativa do regime, eram logo desacreditados. Do outro, associações do aparelho do Estado”, diz Ana Paula Torres. Há um consenso generalizado: para muitos estudantes, esta foi a primeira tomada de consciência política. Para outros, marcou a ruptura definitiva com o Estado Novo. “Os estudantes saíram da academia e despegaram-se das reivindicações focadas nas questões pedagógicas, na comida da cantina e o preço das propinas, para assumirem um papel de maior intervenção social”, nota a historiadora. António Araújo, no capítulo As cheias de 1967 e o progressismo católico português, na sua tese de doutoramento, vai mais longe: “O movimento de solidariedade teve como efeito não só um conhecimento muito próximo — e dilacerante — da realidade social por parte de milhares de estudantes, como uma politização destes num sentido vanguardista, a ponto de alguns, como Pacheco Pereira e Jorge Simões, afirmarem que foi desde então que o Partido Comunista Português foi ultrapassado no meio estudantil. ” Pacheco Pereira viu um novo país emergir das cheias de 67: “Subitamente, apercebemo-nos de que em Portugal havia gente que vivia na miséria e que todas as estruturas que a deviam proteger não funcionaram. ”Depois, “o regime acordou”. “Os seus ministros multiplicaram-se em reuniões e visitas aos concelhos mais atingidos” — Américo Thomaz, o Presidente da República, foi a Quintas —, fizeram-se inquéritos nas juntas de freguesia, montaram-se postos informativos e atribuíram-se subsídios, enumera Ana Paula Torres. A Cruz Vermelha e a Fundação Calouste Gulbenkian reconstruíram estradas e bairros — por isso se chama Gulbenkian a rua onde Mariana Guerra mora desde 1972. E, recorda António Araújo, “chegaram donativos dos governos britânico e italiano, do principado do Mónaco, e o general De Gaulle chegou a contribuir com uma ‘dádiva pessoal’ de 30. 000 francos”. Espanha ofereceu mil doses de vacina contra a febre tifóide e uma subscrição do Diário de Notícias, em conjunto com a da Cruz Vermelha, arrecadou 25 mil contos de receita. Seguiram-se leis para alterar o regime jurídico dos terrenos e impedir a construção em leitos de cheia. Só aí se tornou “obrigatório o licenciamento dos terrenos privados situados nas zonas críticas e das obras neles inseridas”, prossegue Ana Paula Torres. O “ensinamento da catástrofe” revelou-se “fundamental na legislação portuguesa”, não resolveu tudo, mas permitiu diminuir as “vulnerabilidades” face ao risco de cheia rápida, acreditava o geógrafo Fernando Rebelo. Quando choveu com a mesma intensidade em Novembro de 1983 e em Fevereiro de 2008, a destruição repetiu-se, mas a crise “esteve longe” da de 1967, reparou o especialista no estudo “Um novo olhar sobre os riscos: O exemplo das cheias rápidas em domínio mediterrâneo”. José Saldanha Matos, especialista em hidráulica, também não tem dúvidas de que as cheias de 1967 “aumentaram a consciencialização e o controlo” sobre as construções em zonas de risco. “Há 50 anos, as pessoas tinham muretes na linha de água que foram levados pelas cheias e criaram autênticas barragens e impediram a água de circular. O que já não é possível”, muito à custa das normas da directiva europeia contra as inundações — Directiva-Quadro Água, da criação de zonas especiais e de planos para mitigar os efeitos das alterações climáticas, nota. Os perigos agora, numa região densamente povoada como a da capital, são outros. É certo que as precipitações intensas vão sempre ocorrer — e ainda é muito difícil de prever quando — e “a sua gravidade vai aumentando à medida que o território ocupado também aumenta”. É maior a “cascata de efeitos”, na expressão usada pelo especialista: nos serviços públicos, nos transportes, nas telecomunicações e na energia. E a permeabilidade dos solos cai “drasticamente” com a ocupação intensiva. A continuar esta tendência de o betão tirar lugar ao solo infiltrável, as águas das chuvas vão ficar cada vez mais à superfície e, com isso, “correr mais rápido”. “Agora, acontece que a mesma precipitação dá um efeito mais grave”, sublinha José Saldanha Matos, um dos autores do plano geral de drenagem de Lisboa. Em Quintas, na manhã de domingo, outros corpos foram acatados no largo junto à fonte, onde escadas e portas serviam de maca. Eram lavados, levados para o cemitério. A maioria nunca constou nas contas oficiais. O que o regime não fez, Luísa Fajardo e um amigo, morador em Quintas, quiseram fazer: o registo de todos os que ali perderam a vida, com os seus nomes, idades, famílias. “Foi a nossa forma de dar um nome e dignidade àqueles que perdemos”, os mortos “que Salazar não quis nem ouvir falar”, explica Luísa. “Lembro-me de ouvir: tem cuidado, vê lá o que dizes. Depois da dor, ainda havia o medo. ”Luísa mora na casa que fora dos pais — na altura, de chão de terra sob a telha vã (sem forro). Encostada a um armário com vasos de flores, de camisola de tons rosa, suspira ao fim de uma lufada de recordações. Fizeram-se os funerais. Retirou-se a lama. Limparam-se as ruas. Reconstruíram-se as casas em lugares mais altos — a povoação migrou uns metros para cima. Dificilmente se limpou a memória. Facilmente Luísa se lembra da irmã: é um cheiro, é um toque, é uma expressão mais arrebitada, é o frio, é a chuva. Os novembros “são um desastre”. Não há dia em que não volte àquela noite. “A minha mãe a ficar sem uma filha e sem os pais no mesmo dia foi muito doloroso. Se eu já era adulta porque trabalhava desde os 11 anos, aí eu tive de ser mesmo mulher. Só não o imagina quem nunca perdeu ninguém. Ela ficou de rastos a vida toda. ”Apoio psicológico era coisa “que não se usava”. E 50 anos depois há quem nunca tenha conseguido fazer o luto. “Quanto mais anos passam, mais vincado fica. E a mim estava a acontecer-me isso. A saudade era cada vez maior. ” O tempo não curava e, há poucos anos, Luísa procurou ajuda para não se “aninhar” na tragédia. Ficou melhor. Há dois anos não teria falado connosco. Em 1967, os apoios tardaram. Quando chegaram, foram aproveitados “por quem tinha cabeça para tudo — quem não tinha passado por nada”. Nenhum governo ou associação alguma vez lhe voltaram a falar de ajuda. “Quem procurou procurou, quem não procurou passou e toda a gente se esqueceu”, diz Luísa. “Aos 63 anos, estou a aprender a conseguir viver com isto. Sarou um bocadinho, não curou. Há quem nunca venha a fazer o luto. E é assim. É o país que temos. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Este ano, a terra está seca, pedrosa. Quintas é castanha e verde, com casas brancas, mas mesmo assim parece a Luísa que Novembro chegou mais cedo. De uma maneira ou de outra, a tragédia de Pedrógão Grande e os incêndios de 15 de Outubro entraram naquele lugar e aparecem nos discursos de todos. Até do Presidente da República que, a propósito da divulgação dos nomes das vítimas do incêndio de Pedrogão, recordou como, “há 50 anos, era possível haver tragédias e nunca ninguém percebia bem quais eram os contornos”. Mas Luísa só consegue comparar o “sufoco e uma falta de comunicações tão parecida”. António Macedo fala “na mesma solidariedade” dos portugueses. Alice Vieira recorda a “mesma sensação de ver o mundo a acabar”. Antes das cheias, Mariana Guerra achava que Quintas era um lugar “bonito, de quintais arranjadinhos, com um larguinho que era lindo”. A beleza era também das pessoas — “mesmo sem ser de sangue, era tudo uma família”. Agora, o lixo amontoa-se nos terrenos ao abandono e contorce a memória. “Se aquilo estivesse limpinho, a gente pensava que elas tinham ido trabalhar. Uma pessoa pensava nelas e pensava bem. Assim é uma tristeza. ”Esta reportagem encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO
REFERÊNCIAS:
Entidades GNR PSP
A história do maior conflito na cúpula do capitalismo português do pós-25 de Abril
A guerra entre o Grupo Queiroz Pereira e o Grupo Espírito Santo veio abalar fortemente uma relação de oito décadas. Envolveu irmãos, primos, parceiros. Esta é a história da batalha entre os dois titãs. (...)

A história do maior conflito na cúpula do capitalismo português do pós-25 de Abril
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 1.0
DATA: 2018-08-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: A guerra entre o Grupo Queiroz Pereira e o Grupo Espírito Santo veio abalar fortemente uma relação de oito décadas. Envolveu irmãos, primos, parceiros. Esta é a história da batalha entre os dois titãs.
TEXTO: A guerra entre o Grupo Queiroz Pereira e o Grupo Espírito Santo veio abalar fortemente uma relação de oito décadas. Envolveu irmãos, primos, parceiros. Terminou agora, com a mão do Banco de Portugal, que quis impedir uma grave perturbação no sistema financeiro, que certamente traria consequências à economia. Esta é a história da batalha entre os dois titãs. As batalhas entre accionistas são o terror de qualquer grupo empresarial e as mais mortíferas são as que ocorrem entre irmãos de sangue. E esta foi uma guerra típica familiar. Uma guerra entre “tios”, irmãos e primos Queiroz Pereira. Uma guerra sem diabos nem santos. Uma guerra de interesses e onde o combustível, como quase sempre, foi o dinheiro. Mas os conflitos à volta do Grupo Queiroz Pereira têm vários anos e reflectem um outro dado: a ascensão e a perda de influência do Grupo Espírito Santo. Um núcleo importante do poder económico privado com posições em grandes empresas e que a dada altura acreditou (diz-se) que poderia controlar a Semapa, hoje o maior grupo industrial português. Quando os problemas financeiros, as polémicas — algumas associadas a investigações policiais — e as lutas pelo poder dentro do Grupo Espírito Santo se tornaram evidentes, Ricardo Salgado deixou de ter condições para se manter no Grupo Queiroz Pereira (dono da Semapa, que agrupa a Secil, Portucel, Soporcel e Inapa). E assinou um pacto de separação de águas com Pedro Queiroz Pereira (PQP), pondo fim a uma parceria empresarial de oito décadas. Ricardo Salgado, em processo de sucessão, já não se podia dar ao luxo de ter um corpo estranho (o próprio PQP) na cúpula do Grupo Espírito Santo, com 7% do capital (e ainda muita informação, poder arbitral e capacidade de influenciar). A Revista 2 revela agora os detalhes dos bastidores desta disputa que se travou entre os dois grupos — uma história cheia de incidentes e omissões. Há 12 anos, Pedro Queiroz Pereira, presidente do Grupo Queiroz Pereira (GQP), interrogou Ricardo Salgado sobre quem eram os verdadeiros donos da Mediterranean (uma sociedade luxemburguesa que agregou três offshores, com presença forte na Semapa) e que o BES representava. O industrial conta que sempre ouviu a explicação: “Pertencem a investidores que não querem ser conhecidos, são discretos. ” Não ficou elucidado. Dez anos mais tarde, a resposta de Salgado continuava a mesma. E dois dias depois de PQP ter recusado nomear um delegado da Mediterranean para os órgãos de gestão das holdings familiares, por desconhecer a sua verdadeira titularidade, o BES assumiu, finalmente, o controlo. Foi a gota de água que fez transparecer a discórdia. Se a acção de Salgado foi táctica ou outra coisa, não se sabe. Mas na Semapa (com actividade nas áreas do cimento, do papel e pasta de papel e do ambiente, e a jóia da coroa do Grupo Queiroz Pereira) estas movimentações accionistas são conhecidas como “o assalto à diligência”. PQP foi, nos últimos dois anos, o general das tropas anti-“investida” de Salgado, com um lugar-tenente, Fernando Ulrich (à frente do BPI, que detém 10% da Semapa e que assessorou PQP) e um oficial, José Maria Ricciardi (presidente do BES Investimento, BESI, e opositor assumido de Salgado na família Espírito Santo). Queiroz Pereira acusa Salgado de o ter “iludido” para prosseguir um plano paciente e sistemático para dominar a Semapa, que reconstruiu após a morte do seu pai, Manuel, fundador do Grupo Queiroz Pereira em 1940. Já os círculos próximos de Salgado garantem que o banqueiro nunca quis mandar na Semapa e procurou ainda, por razões de afinidade histórica, proteger as irmãs Margarida Queiroz Pereira Simões e Maude Queiroz Pereira Lagos. Estas, por sua vez, não vendo os seus interesses particulares salvaguardados, recorreram a Salgado, em períodos distintos do tempo, para se defenderem do irmão. Há acções judiciais a correr entre todos, mas sem acusações de ilícitos ou de roubos. Os detractores de PQP não lhe contestam o mérito, mas o caminho que escolheu para dominar: não ouviu ninguém, atropelou quem quis. O industrial discorda: nunca adquiriu para si uma única acção do grupo que herdou. E insiste no argumento central: “O meu pai deixou aos filhos uma empresa, que eu multipliquei infinitamente…” O Grupo Queiroz Pereira tornou-se líder industrial e o maior exportador nacional em valor acrescentado. Em 2012, o volume de negócios da Semapa foi de cerca de dois mil milhões de euros (1, 5 mil milhões de pasta e papel). A Revista 2 ouviu os círculos próximos dos intervenientes e personalidades independentes. Apenas PQP, antes de os acordos com o BES e a família terem sido firmados nas últimas semanas, aceitou comentar aspectos históricos do grupo. Já os restantes actores (BES, Maude Lagos e os primos Carrelhas, accionistas minoritários), por intermédio dos seus advogados e assessores, declinaram abordar o conflito que minou uma relação que remonta às primeiras décadas do século passado. Da fundação à revolução1937. Datam daí os primeiros contactos entre os grupos Queiroz Pereira e Espírito Santo. Manuel Queiroz Pereira, filho de Carlos Pereira, accionista do Banco Comercial de Lisboa, cruzou-se com Ricardo Espírito Santo Silva (avô de Salgado e de José Maria Ricciardi), herdeiro do proprietário da Casa Bancária Espírito Santo. As duas instituições funcionavam paredes meias na Rua do Comércio e decidiram avançar para a fusão. “O Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL) foi desde o primeiro momento presidido por figuras do Grupo Espírito Santo, pois o meu pai, ao contrário dos irmãos Espírito Santo, apresentava-se como industrial. Mas houve sempre um grande entrosamento entre eles”, sublinha, 73 anos depois, PQP. Era, portanto, o começo de uma bela amizade… mas com percalços. Ora, o primeiro desentendimento entre as duas famílias deu-se, na década de 1930, quando Oliveira Salazar decidiu, por decreto, criar uma indústria nacional de refinação e se concertou com Ricardo Espírito Santo numa “parceria-público ou privada”: a Sacor, de capitais públicos e onde o BESCL tinha uma posição, destinava-se a assegurar 100% da refinação e 50% da distribuição de crude. Assim que a Sacor estivesse a funcionar, a capacidade de distribuição da Sonap ia reduzir-se de 40% para 25%. Como a Sonap era detida por Manuel Queiroz Pereira (em conjunto com Manuel Boullosa), o industrial foi surpreendido e não gostou de ver o banqueiro desalinhar dos seus interesses particulares, pois era accionista do BESCL, para além de administrador. Formado em Ciências Económicas e Financeiras de Lisboa, com 17 valores, Ricardo Espírito Santo era mais do que banqueiro. Era polifacetado, mecenas, amante de Amália, era ainda um homem de poder e de grande influência política — visitava Salazar todos os domingos à tarde. “Era brilhante, uma figura proeminente que marcou uma época”, enquanto “o meu pai, embora muitíssimo respeitado, era discreto”, considera PQP. 1937. 17 de Maio. Sain o quê? A Manuel Queiroz Pereira, o nome Martin Sain nada dizia, mas a dupla Salazar e Ricardo Espírito Santo vão envolver na construção da Sacor este romeno, refugiado em Paris. Nesse ano, o Estado concedeu alvará à Redeventza, de Martin Sain, para construir em Cabo Ruivo uma unidade de refinação e de distribuição de petróleo. 1939. 1 de Setembro, início da Segunda Guerra Mundial. Visitar São Bento era um direito reservado a um núcleo restrito. O pai de PQP foi ter com Salazar: “O custo da refinaria [Sacor] está a ser pesado e a deixar ‘comissões’ em todo o lado, Martin Sain não é pessoa fiável. ” De onde vinha o poder de Sain? Com olhar malicioso, o ditador respondeu: “Saiba Vossa Exa. que empreendimentos desta grandeza [Sacor] não se fazem com meninos de coro. ”1949. A 5 de Março, nas vésperas do renascimento da Europa pós-guerra, nasceu, em Lisboa, Pedro Queiroz Pereira, cinco anos depois de Ricardo Salgado (Cascais). Um período que coincidiu com a primeira grande vaga de industrialização do país (obras públicas, barragens, electrificação), a que se seguiram os planos de fomento. A receita é sempre a mesma. Para promover a modernização da economia, Salazar criou o Banco de Fomento Exterior que entrou no capital da Sodim (hoje da família Queiroz Pereira) para construir, em Lisboa, o primeiro hotel de cinco estrelas. E pediu a Ricardo Espírito Santo que juntasse empresários para levar por diante o plano. Após a morte do banqueiro, em 1955, Manuel Queiroz Pereira ficou encarregue de executar a obra. 1960. Os dois sócios da Sonap, Manuel Queiroz Pereira e Boullosa, estão numa encruzilhada porque defendem estratégias diferentes para a empresa e decidem separar-se. O que, na prática, se traduziu numa grande zanga. Amigo de Manuel Queiroz Pereira, o novo presidente do BESCL, Manuel Espírito Santo Silva, aceitou financiar-lhe a compra da posição de Boullosa, pois estava convencido de que este aceitaria vender a sua parte. Mas com o industrial dos petróleos não se brincava, era mais esperto do que imaginavam. Boullosa meteu-se num avião e foi ao estrangeiro levantar os fundos que lhe faltavam. Acabou por ser Manuel Queiroz Pereira a deixar a Sonap. O volte-face deu sururu na época. José Roquette, ex-banqueiro do BES e hoje empresário da Herdade do Esporão, tinha na altura 23 anos e acabara de chegar ao BESCL para assessorar tecnicamente o presidente. E ainda se lembra “que era suposto que fosse o sr. Queiroz Pereira a ficar com as acções, pois tinha mais património [do que Boullosa] e o BESCL era o grande banco. Era alguém de peso na administração, muito activo”. Com a acumulação de capital resultante do negócio da Sonap, o relacionamento entre os grupos Queiroz Pereira e Espírito Santo vai aprofundar-se. A partir daí, o industrial começou a diversificar os negócios sectorial e geograficamente e investiu não só em África, como no Brasil, o que era invulgar na época, mas ajudará o grupo a resistir fora de Portugal após a revolução. 1970. No poder, Marcelo Caetano procurava vias para liberalizar a economia. “Como havia uma clara intenção de forçar o aparecimento de um concorrente no sector dos cimentos dominado por Champalimaud [dono da Siderurgia Nacional], o Rogério Martins [secretário de Estado da Indústria de Caetano] ficou satisfeitíssimo quando o Queiroz Pereira, com capacidade financeira, requereu a instalação de duas novas unidades”, evoca agora Torres Campos, à época director-geral da Indústria. “Ele [Rogério Martins] queria usar a concorrência para contornar o condicionamento industrial, aprovou com o argumento de que ia quebrar o monopólio do Champalimaud. ” E foi assim que a família Queiroz Pereira se envolveu na área dos cimentos, que perdeu com a revolução. Vinte anos depois, PQP voltaria aos sectores da celulose e do cimento, onde a família já tinha estado, ganhando um pouco dos dois. 1971. “Pêquêpê” era amante de ralis e o curso no Instituto Superior de Contabilidade e Gestão estava a ficar para trás. Tinha 23 anos quando foi mobilizado para cumprir o serviço militar em Angola, onde se encontrava no 25 de Abril. Pertencia à elite burguesa da época, que circulava entre Lisboa e Cascais. “A casa dos Queiroz Pereira era a melhor do Restelo [vendida à Embaixada do Brasil depois da revolução], sem comparação com nenhuma das outras e eram todas boas”, recorda um ex-vizinho, hoje no mundo dos negócios, que ainda se lembra de que “os filhos Queiroz Pereira tinham ‘bombas’ em casa que nunca estacionavam na rua como acontecia com as restantes famílias ricas”. E acrescentou: “‘Pêquêpê’ era o segundo filho, um enfant terrible, mas encantador com os amigos, a quem, ainda hoje, gosta de proporcionar boas coisas. ” Onde uns viam um enfant terrible, outros olhavam para um miúdo determinado. Conta Pedro Roriz, ex-jornalista da área automobilística, que o conheceu no Colégio Militar, com 12 anos, “quando já era um desportista, um excelente jogador de futebol”: “Apesar de ter um estatuto que lhe permitiu começar num plano elevado, agarrou no grupo do pai e tornou-o no maior grupo industrial que para mim é o importante. Não vendeu, não fechou, expandiu. Que importância tem ter sido aventureiro se ao chegar a hora da verdade se superou?”1973. No final deste ano, se em África o conflito se agudizava, em Portugal verificava-se uma grande aceleração monopolista. Na revista Análise Social, o académico Américo Ramos dos Santos refere no artigo “Desenvolvimento Monopolista em Portugal” que, entre 1968 e 1973, o núcleo do poder económico era formado por 14 famílias, onde pontuavam os nomes Espírito Santo, Mendes de Almeida, Queiroz Pereira. Um espaço de cruzamentos. Em 1972, PQP casou-se “para a vida” com Maria Rita Mendes de Almeida, de quem tem três filhas [Filipa, Mafalda, Lua]. Nesse ano, em retaliação ao apoio norte-americano a Israel, os Países Exportadores de Petróleo aumentaram em 300% o preço do petróleo. As bombas de gasolina, em Portugal, encerravam ao fim-de-semana. Um dos capitães de Abril, Sousa e Castro [13/3/2000], contou ao PÚBLICO: “Nas vésperas do 25 de Abril, assisti, no supermercado militar, a uma bulha entre clientes para ver quem chegava primeiro às prateleiras. ” “Um factor que ajudou a acelerar a Revolução”, explicou. Relançamento do grupo1974. 24 de Abril. O que em Janeiro valia uma nota de 100 escudos custava agora 133. Na madrugada de 25, na Escola Prática de Cavalaria de Santarém, os relatos contam que o capitão de Abril Salgueiro Maia discursou: “Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados sociais, os corporativos e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! […] Quem não quiser sair fica aqui. ” O batalhão marchou para a capital. Manuel Queiroz Pereira assistiu em casa, em Lisboa, à rendição de Caetano no Largo do Carmo. Manuel Alfredo de Mello, filho de Jorge de Mello do Grupo CUF, estava, então, na dupla condição de militar e filho de industrial [PÚBLICO 13/3/2000]: “Pensou-se que a mudança se reflectiria sobretudo nas saídas de Américo Thomaz e de Caetano. E as declarações de Spínola indicavam que a descolonização ocorreria progressivamente, não se prevendo para a economia grandes rupturas. ” Puro engano. 22 de Agosto. Eis um papel que o povo não imaginaria um ano antes: os ricos sofriam. Excluídos do coração do novo poder, os homens do Estado Novo procuraram refúgio na Confederação da Indústria Portuguesa para se reorganizarem como força viva. Só que a revolução andava a passo de galope e, por esses dias, o Copcon foi ao Ritz buscar Manuel Queiroz Pereira, detendo-o na Polícia Judiciária, até ao dia seguinte. Foi libertado por indicação de Spínola, de quem era amigo. Pouco depois, partiu para Paris, onde se manteve até 1982, entregando ao sucessor natural, o filho mais velho, Manuel, a condução dos negócios em Portugal. Em Outubro, PQP continuava destacado em Angola, quando chegou a Luanda Rosa Coutinho, conhecido por “almirante vermelho”, dada a proximidade ideológica ao PCP. “A ordem era desarmar e nós fazíamos buscas nos musseques com o objectivo de desarmar os pequenos comerciantes portugueses brancos”, evoca agora PQP. 1975. 14 Março. Depois de as chefias e de os gestores dos grupos Mello e Espírito Santo terem sido detidos, a revolução obrigava: foram decretadas as nacionalizações, abrangendo o Grupo Queiroz Pereira. Na imprensa, na televisão e na rádio, circulavam notícias de sabotagem económica, de fuga de capitais para o estrangeiro. PQP que, entretanto, voltara para Lisboa, estava na sede da Cimianto (hoje Semapa), na Avenida Fontes Pereira de Melo, quando chegou a 5. ª Divisão das Forças Armadas. “Levaram-me a minha casa com ordem do Otelo [Saraiva de Carvalho] para abrir o portão, à frente do qual tinham estacionado três viaturas para impedir a saída dos tanques que diziam estar lá escondidos”, revive PQP, quase 40 anos depois. O jovem movimentava-se em terreno inimigo e percebeu o sentido da metáfora: “As pernas tremem como varas verdes. ” Foi o que sentiu ao subir a rampa do jardim, seguido por um cabo que lhe tocava na espinha com o cano de uma metralhadora Uzi: “Nem me digas que o teu pai não roubou tudo isto ao povo, senão é que descarrego mesmo. ” Durante três horas, insistiram que “eu estava a esconder as armas para fazer a contra-revolução”. Quando entraram na garagem, “viram uns pneus próprios de ralis, parecidos com os usados pela Jeep, e perguntaram-me: ‘Onde estão os ‘Jeeps’ da contra-revolução?’” Explicou-lhes: “Eu e o meu irmão participamos em ralis. E identifiquei-me como o ‘Pêquêpê’. O clima aliviou. Os cabos viraram ‘uns tipos porreiros, epá Pêquêpê. . . ’ e já não revistaram mais nada. ”O Brasil adivinhava-se o passo seguinte. “O meu pai acreditava na minha capacidade de empreender e de desenvolver e financiou-me um negócio de café que comecei com 20 mil pés e que chegou aos anos 90 com mais de três milhões. ”Final de 1975. No estrangeiro, a cúpula do GES tentava reagrupar-se. Manuel Ricardo vai procurar o sogro, Fernando Moniz Galvão, e o velho aliado Manuel Queiroz Pereira. “Depois do 11 de Março, o sr. MQP já estava fora e tinha as bases financeiras de suporte para se manter no estrangeiro, mas também para garantir ao GES, entre 1975 e 1984, resistir fora de Portugal e manter-se numa posição que lhe permitiu regressar mais tarde”, sublinha José Roquette. 1976. Manuel Ricardo Espírito Santo perguntou ao industrial com que percentagem pretendia ficar no capital da ES Control, a “mãe” de todas as holdings do Grupo Espírito Santo. O industrial respondeu: “Por mim, não quero nada. Se vos der jeito, posso ficar com o que entenderem. ” E ficou nessa altura com 10, 7% da holding, uma posição que vai estar, 37 anos depois, no epicentro das batalhas entre os dois grupos familiares. Entretanto, fruto das nacionalizações, o Estado assumira cerca de 40% da Sodim (dona do Ritz) e, quando os privados recompraram as acções, Manuel Ricardo Espírito Santo procurou o industrial: “Nós ficámos com a maioria dos activos financeiros que nos ajudou a recuperar, mas o controlo da Sodim deve ficar consigo. ”Já se sabe que Manuel Queiroz Pereira era um homem do Estado Novo. Um dia, um amigo do filho mais velho encontrou-o em Paris e ouviu o desabafo: “Não vale a pena investir em Portugal, aquilo não tem futuro. ” Só que o exílio não era forçosamente o paraíso e o industrial nunca cortou o cordão umbilical com Portugal. Já falava no regresso, continuava a ser um capitalista produtivo. Cada visita de Manuel Queiroz Pereira a Portugal era sentida como um calvário. Um dia disse a Frederico da Cunha, casado como uma Espírito Santo, hoje a trabalhar na Semapa: “‘Venho cá por obrigação, mas não gosto de cá estar, isto atormenta-me. Não gosto de pensar que existem pessoas inteligentes a colaborar com tudo isto. ’ Era de uma enorme lealdade aos seus princípios e severo com o incumprimento da ética. ” Pertencia a uma geração de valores muito fixos e, por exemplo, morreu sem perdoar a António Spínola o ter assumido o marechalato após o 25 de Abril. 1980. A época, por enquanto, é ainda de escassez de liquidez para a família Espírito Santo, que não tinha reconstruído o grupo. Uma irmã Espírito Santo procurou Manuel Queiroz Pereira para lhe perguntar se estava interessado em adquirir-lhe as suas acções da Sodim. Ele concordou, mas avisou-a: “O máximo que posso pagar é 3500$00 por acção. ” Mais tarde, pediu novo encontro com a parceira de transacção. Em causa estava o seguinte: “O Beirão da Veiga [ligado ao Grupo Espírito Santo] telefonou-me porque também quer vender as acções do Ritz. Mas, em vez de 3500$00, pede mais 500$00. Como há três meses te paguei 3500$00, toma lá o cheque com o diferencial. ”1983. Manuel Queiroz Pereira morreu com 77 anos e deixa os quatro filhos surpreendidos com os activos que herdam, nomeadamente em cash. Entre os irmãos Manuel e Pedro Queiroz Pereira, havia uma rivalidade expressa nas corridas de automóveis: “Mêquêpê” era mais veloz do que “Pêquepê”, e mais charmoso do que o mais novo. E era no mais velho que o pai via o garante da perenidade do grupo. Quando morreu, a mãe, Maud (sem e), na altura com 61 anos, entregou-lhe os destinos das empresas. Mas os dois irmãos combinaram repartir entre si responsabilidades. Manuel (com 36 anos) sugeriu a Pedro (com 34 anos) que gerisse os activos industriais (Cimianto, que tinha sido em parte nacionalizada depois do 25 de Abril), enquanto ele se manteria à frente da Sodim (Ritz e negócios imobiliários). O mais novo aceitou. Naquela discussão, as mulheres estiveram fora da equação. Tal como noutros grupos familiares (Mello ou Espírito Santo), o industrial também não programara as duas filhas Maude e Margarida para serem líderes — o que pode lançar alguma luz sobre as tensões que mais tarde se vieram a verificar entre irmãos. Um colaborador do pai recorda uma frase que terá ouvido: “Dizia que não gostava de ver a Maudezinha e a Margarida, que eram novas e vistosas, aparecerem na empresa de mini-saia, porque desorientavam o pessoal. ”As irmãs não ficaram quietas. Depois de um braço-de-ferro, travado na década seguinte, Margarida vendeu as suas acções na Semapa e foi lançar empresas. A mais velha, hoje com 63 anos, continuou ao lado de Pedro. Ao Expresso [122013], Joana Lemos, a sua assessora de imprensa, também ela ligada aos desportos motorizados, esclareceu recentemente, já depois de os dois irmãos terem firmado o acordo: “Maude trabalhou ao lado do irmão, patrocinou a sua gestão e contribuiu para a construção do grupo tal como existe hoje. ” Em Londres, onde vive actualmente a herdeira, entretanto separada do empresário João Lagos, mais do que “mágoa”, os amigos asseguram que o sentimento é de “injustiça”. 1992. Tal como no Grupo Queiroz Pereira, com a morte do patriarca, também no Grupo Espírito Santo, com a morte de Manuel Ricardo Espírito Santo, se abriu um novo ciclo. A família elegeu Ricardo Espírito Santo Salgado, que será o artífice de uma estratégia sustentada numa rede empresarial complexa. A partir de holdings sediadas na Suíça e no Luxemburgo, as operações do grupo invadem zonas nevrálgicas da economia. Fontes próximas do presidente da Semapa — o activo mais relevante do Grupo Queiroz Pereira — recordam que nos anos 1990, e apesar da presença do GQP no GES, “quando o Ricardo Salgado formou a primeira administração do BES não convidou Pedro Queiroz Pereira, optando por ir buscar outros empresários”. O que foi lido nos círculos próximos do presidente da Semapa como uma desconsideração não esquecida. Construir um grupo industrial estava a tornar-se uma fixação para PQP, na altura com 43 anos. E quando, em 1993, foi constituída a Semapa, já tinha em vista participar na privatização da Secil. “Ele [PQP] chegou do Brasil com ganas de reconstruir o grupo, muito na imagem do pai, a quem citava como seu inspirador”, observa José Manuel Galvão Teles, o advogado que o apoiou nesse período. Quando o Governo anunciou a venda da Secil, não hesitou. Numa primeira fase, o irmão Manuel, mais reservado, levantou questões, mas acabou por aceitar. E se os irmãos Pedro e Maude queriam dar um passo em frente, a mais nova, Margarida, não se convencia [Expresso 1995]. 1993. O Grupo Queiroz Pereira está prestes a sofrer o seu segundo rombo que levou a nova mudança de liderança. Um dia, durante uma reunião de trabalho para preparar as obras de reformulação do Ritz, Manuel, a quem tinha sido diagnosticada uma leucemia e que estava a ser acompanhado num hospital em Paris, recebeu um telefonema a informá-lo de que PQP era compatível para o transplante e que devia partir imediatamente. Mas não vai resistir à intervenção, e a 4 de Março morreu na capital francesa. A mãe Maud voltava a estar perante o dilema: a quem entregar a chefia do grupo cujo controlo o marido quis deixar aos filhos, seus continuadores? A uma equipa profissional (family office)? Mas como PQP mostrava empenho, Maude aconselhou a mãe a confiar a gestão ao irmão, o que a deixa hoje com amargos de boca. A irmã Margarida debatia-se com o problema: tem 20% das holdings do grupo — Cimipar, Cimigest e Sodim — mas não tinha comprador. Só os irmãos podiam estar interessados. A família pediu-lhe paciência. Ela deu-lhes 15 dias. Margarida tinha então 40 anos e pressa. O advogado Carlos Adrião Rodrigues surgiu, pouco depois, com acções das holdings em seu nome, a convocar assembleias gerais e a gerar burburinho. Quando lhe perguntavam por que não vendia, resistia: “Estou muito interessado nos cimentos. ” Anos depois, Margarida informou os irmãos de que tinha recomprado a posição a Adrião Rodrigues. 1994. Com a privatização da Secil a rolar no mercado, o industrial procurou Eduardo Catroga, ministro das Finanças. E apresentou-se com o carimbo de garantia de idoneidade, acompanhado de dois colaboradores da Semapa, Frederico da Cunha e Alberto Falcão, ex-colegas de Catroga no grupo Mello. O ex-ministro relata à Revista 2 o que ouviu: “[PQP] Veio assegurar-me que estava a fazer todos os esforços para conseguir uma engenharia financeira que lhe permitisse disputar a Secil. ” Catroga respondeu: “Vejo com bons olhos, pois a lei das privatizações define que o processo deve contribuir para fortalecer os grupos portugueses. ”A meio do negócio, a irmã Margarida apareceu a levantar obstáculos, conforme divulgou então o semanário Expresso. Catroga lembra-se: “Pedro pediu para voltar a falar comigo para garantir que, apesar do conflito com a irmã, tinha a engenharia financeira praticamente montada e que não seria isso que o impediria de adquirir a Secil. ”19 de Abril. Com a privatização concluída, PQP está em condições de arrancar com a primeira vaga de desenvolvimento do grupo pós-25 de Abril. Venderá, pouco depois, 49% da Secil à CRH (grupo irlandês de materiais para construção) para se capitalizar. Mais tarde, vai querer recomprar as acções, e entrou numa bulha com os irlandeses. Em 2011, para recuperar o domínio da Secil, por sentença de um tribunal arbitral, PQP teve de pagar 574 milhões de euros à CRH. O primeiro stress entre Pedro Queiroz Pereira e Ricardo Salgado remonta a meados da década de 1990. Uma das cláusulas do sindicato bancário (grupo de 11 bancos que financiaram PQP na compra da Secil, liderado pela Caixa Geral de Depósitos e pelo BES) impedia os accionistas da Semapa, com acções hipotecadas aos bancos credores, de as venderem até o empréstimo ser liquidado. O BES tinha uma posição no grupo. “Três meses depois do acordo, Ricardo Salgado mandou transferir as acções para os fundos de investimento geridos pelo banco e que pertencem aos clientes”, conta PQP. “O sindicato bancário podia ter-nos exigido o pagamento integral do empréstimo, uma vez que tinha sido violada uma cláusula do contrato”, acrescenta. O que disse Salgado? “Que se tratava de um movimento sem importância, pois preferia ter a posição da Semapa em fundos de investimento geridos pelo BES. ” Ou seja: o banco não aplicava fundos directamente e mantinha poder de decisão. 2000. Este foi um ano em que todos gostavam de ter Ricardo Salgado como amigo. Com os canais de liquidez oleados, o BES estava a beneficiar de uma época de prosperidade e tornava-se um núcleo importante do poder económico privado, com influência na sociedade e no Estado. As forças políticas PS, PSD, PP sempre conviveram bem com o BES, aí recrutando governantes (três exemplos: os ex-ministros da Economia Manuel Pinho e António Mexia, e o social-democrata Miguel Frasquilho). Em 2012, ao PÚBLICO, depois de ter apoiado em simultâneo Sócrates e Passos Coelho, o banqueiro justificou-se: “O BES relaciona-se com todos os partidos e limita-se a ter um relacionamento institucional com os governos. ”Assistiu-se nesta fase à construção de posições do banco em grandes empresas como a PT e a EDP (acções que agora tem estado a alienar). Tudo isto a par e passo com os negócios em Angola, em áreas estatais, via Escom (uma holding instrumental do GES, que há dois anos está em processo de venda ao Estado angolano). Data também desse período a conexão do BES aos donos da Ongoing — Nuno Vasconcellos e Rafael Mora —, instrumentos de uma estratégia de poder. Os jornais falavam, então, em mexidas nos bastidores para entregar à Teixeira Duarte (TD), que já possuía 18%, o controlo da Cimpor. Mas PQP não andava distraído e surpreendeu ao aliar-se à suíça Holcim para lançar uma oferta pública de aquisição (OPA) sobre a cimenteira portuguesa. No dia da OPA, informou o BES de que seria o espanhol Banco Santander o líder do sindicato bancário, mas que salvaguardara para o BES a posição de co-líder. E justificou-se dizendo que os bancos portugueses não tinham balanço para o financiar. No BES, o acto de “independência” de PQP foi lido como traição. Quase seis décadas depois da aliança entre Salazar e Ricardo Espírito Santo, na Sacor, PQP viu a cena repetir-se. O poder isolava-o. Havia sinais de movimentações partindo do ministro das Finanças Joaquim Pina Moura para que Ricardo Salgado encabeçasse a resistência à OPA de PQP sobre a Cimpor. Verdade ou imaginação? O BES surgiu, pouco depois, a apoiar a francesa Lafarge na compra de 17% da cimenteira nacional, o que contribuiu para a OPA ser travada. 2001, 31 de Dezembro. Foi num quadro de consolidação da influência do Grupo Espírito Santo na economia portuguesa que se vão dar, daqui em diante, várias transacções à volta do Grupo Queiroz Pereira. Nesse ano, o BES elevou o capital em 500 milhões de euros, com as acções a negociarem-se a 14 euros cada. A herdeira mais nova de Manuel Queiroz Pereira não tinha, evidentemente, digerido o conflito com os irmãos. No restrito mercado da banca de investimento, falava-se à boca pequena que, por troca das acções das holdings do Grupo Queiroz Pereira, a irmã mais nova, Margarida, assumira cerca de 2% do BES. No meio, havia crédito da instituição. Uma operação de 30 milhões. Por enquanto, ainda nada se saberá. 2002. Suspeitas fundadas. Por carta, Margarida comunicou aos irmãos que vendera as suas acções, sem revelar a identidade do comprador. Daí a alguns dias, o BES surgiu, em nome de terceiros, a representar a Gaunlet, a Allord e a Relcove, que tinham adquirido as posições da herdeira mais nova. Uma das rotinas dos parceiros empresariais são as reuniões periódicas. Numa delas, logo a seguir, PQP questionou Salgado sobre o verdadeiro interesse das três offshores na Semapa, ao que foi esclarecido: “Disse que não estavam nem vendedoras, nem compradoras, nem tão-pouco queriam tomar posição estratégica no nosso grupo. ”2004. Agora, era a Portucel/Soporcel que aparecia na mira da Semapa. Pela frente, na privatização de 30% da empresa, PQP tinha Belmiro de Azevedo, com 29%. Sabendo do passado do engenheiro em matéria de confrontos, o industrial quer evitar desentendimentos. “O eng. Belmiro de Azevedo disse-me que não ia à operação e eu pedi-lhe se ele me vendia as acções, o que acabou por fazer”, conta agora PQP. A compra de 60% da Portucel dará origem ao segundo salto de crescimento da Semapa após o 25 de Abril. 2005. Bancos, seguradoras, fundos de investimento giravam, agora, em roda livre. Para o ex-governador do Banco de Portugal Jacinto Nunes, “o sistema financeiro, em especial o anglo-saxónico, entrou numa coboiada que permitiu o endividamento que deu a bolha que estourou em 2008”. Foi precisamente a um fundo australiano artificialmente capitalizado, o Babcock & Brown, que, antes de o ano terminar, PQP vendeu a Enersis, uma start-up criada em 1998 dentro da Secil. Um negócio que lhe rendeu uma mais-valia de 377 milhões de euros. Quatro anos depois, o Babcock & Brown faliu e arrastou para o fundo os pensionistas australianos. 21 de Dezembro. Oito meses depois da eleição como primeiro-ministro, na agenda de José Sócrates entrou o tema PQP. Circulavam rumores sobre a possível construção da fábrica da Portucel no estrangeiro, o que o levou a convidar o industrial para um pequeno-almoço em São Bento. Eram 8h da manhã quando entrou na residência oficial do primeiro-ministro, acompanhado de um dos seus braços-direitos, José Honório. Tinha à espera um batalhão de assessores, incluindo o ministro Manuel Pinho, e o presidente do ICEP, Basílio Horta. O que pode haver de mais convincente?PQP lembra como Sócrates foi direito ao assunto: “Dizem-me que quando comprou a Portucel se obrigou a fazer a fábrica em Setúbal. ” Ele contestou: “Se lhe dizem isso, então dizem-lhe mal, sr. primeiro-ministro. Mas diga-me onde consta, pois quero cumprir com as minhas obrigações. ” Em simultâneo, o industrial confirmou que “a fábrica podia ir ou para a Alemanha ou para o Brasil”. Sócrates não gostou do que ouviu e esgrimiu o argumento extremo: “Se não fizer cá a fábrica, eu coloco em causa a privatização. ” PQP não resistiu, lançou a ameaça do tribunal: “Se preferir essa via, daqui a 15 anos encontramo-nos a ver quem tem razão. ”O industrial questionou a audiência: “Porque hei-de ficar em Portugal, se posso estar na Alemanha, no coração do consumo?” Quem esteve presente assistiu à cena. José Honório avançou com uma lista de exigências com 49 pontos. “Para a Auto Europa, o Estado fez um porto e a Portucel, enquanto exportadora líquida, até é mais importante. A nova fábrica dará origem à saída diária de 500 camiões de contentores. Mas as estradas de Mitrena são estreitas, sem condições para escoar a mercadoria. ”Sócrates insistia na unidade em Setúbal. “Se o sr. primeiro-ministro sentir coragem para dobrar as forças vivas, eu farei aqui a fábrica. ”Já fora de São Bento, PQP deu indicação ao colaborador para mudar a agulha do investimento para Portugal. Oito anos depois, diz PQP, “é verdade que Sócrates não cumpriu os pontos todos, mas o que me motivou foi ver a grande vontade dele em que a fábrica ficasse cá e em resolver os obstáculos. Subsídios? Recebia em qualquer dos lados”. PQP afirma-se como “o industrial” português2006. Este foi um ano em que os lucros da Semapa recuaram de 164, 3 milhões (em 2005, a venda da start-up Enersis gerou uma mais-valia substancial) para 91, 3 milhões. Mas os sete executivos da Semapa receberam 18, 199 milhões de euros, ou seja, uma média de 2, 6 milhões por cabeça. Uma medida que acabou por gerar controvérsia. 2007. Muito antes de PQP e Maude entrarem em litígio, já os primos Carrelhas (filhos de uma tia de PQP), minoritários nas holdings familiares, tinham desencadeado as hostilidades. Carlos Pardal (casado com uma herdeira Carrelhas) questionou, entre outras coisas, as orientações do presidente do grupo, nomeadamente devido às elevadas remunerações aos gestores. Ora, os investidores minoritários vivem o eterno drama: não têm veleidades de chegar ao poder para impor caminhos favoráveis (dividendos, bónus, nomeações). E ou vendem ou são bem remunerados. A estratégia de PQP passava por não distribuir o grosso dos dividendos pelos accionistas, retendo-os nas empresas (Portucel e Secil). Uma fonte do sector argumentou que “um dos problemas dos accionistas é quererem garantir dinheiro imediato, o que é legítimo, mas não olham para as estratégias a longo prazo”. Ainda assim, um operador de bolsa diz que “quem entrou no início na Semapa tem tido um retorno médio anual de 20%”. Para quem acompanhou as lutas dentro da Semapa, foi em meados de 2007 que começou a ser equacionado um novo capítulo de confronto. PQP voltou a tentar apurar quem se escondia por trás das três sociedades representadas pelo BES. Porém, chegar à verdadeira titularidade de qualquer offshore é como procurar uma agulha num palheiro. A sede do BES, na Avenida da Liberdade, no 15. º piso, onde Salgado tem gabinete, era o ponto de encontro semestral. Foi aí que PQP lhe transmitiu a vontade do seu grupo em adquirir as acções detidas pela Gaunlet, a Allord e a Relcove. Segundo o industrial, o banqueiro disse nada poder fazer, pois as acções não pertenciam ao BES, que era o mero gestor, e os proprietários não estavam vendedores, nem queriam ser conhecidos. A partir daqui, há novos registos de contactos, mas até haver uma clarificação os dois vão continuar a brincar ao jogo do gato e do rato. Antes do fecho de 2007, as três offshores juntaram-se na sociedade luxemburguesa Mediterranean. Salgado não baixava a guarda. PQP invoca que ele lhe repetiu que “a Mediterranean pertencia a investidores ingleses e noruegueses”. As evasivas de Salgado deixavam o industrial da Semapa “nervoso” e vão contribuir para o conflito que vai estourar daí a quatro anos. 2008. Entretanto, os sobrinhos Manuel e Matilde, filhos do irmão mais velho Manuel, vão afastar-se das três holdings familiares, vendendo as suas acções e entregando a gestão da fortuna a um family office. Mas tornam-se accionistas directos da Semapa e da Portucel, onde se fazem representar por um executivo, Vítor Gonçalves. “O Pedro tem sido bom para os garotos [os sobrinhos], de quem gosta e a quem procurou proteger os interesses, mesmo quando, na família, tentaram voltá-los contra ele”, refere um amigo dos irmãos Queiroz Pereira, que declinou identificar-se, por não querer tomar partido no diferendo familiar. E lembrou: a 5 de Março de 1993, “dia em que o irmão Manuel foi enterrado, em Lisboa, é o dia em que o Pedro e o sobrinho Manuel fazem anos”. 2009. 6 de Novembro é uma data que PQP dificilmente esquecerá, pois representou a sua consagração pública como “o industrial” português. Nessa manhã, o Presidente da República Aníbal Cavaco Silva estava em Setúbal a participar na inauguração da nova fábrica da Portucel/Soporcel e preparava-se, também, para condecorar o patrão da Semapa com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Industrial. Num discurso comovido, perante o Presidente e os colaboradores, PQP assumiu-se como o vértice da pirâmide: “Sou eu que a recebo [condecoração], mas ela é oferecida a todos os meus colaboradores, entre eles, o Carlos Alves e o José Honório. ”Do pai, PQP reteve: “O problema não é os ricos terem muito dinheiro, o problema está na utilização que dão aos recursos ao seu alcance. Uns usam o dinheiro para produzir mais desenvolvimento, mais postos de trabalho e arriscam; outros dizem: já tenho o meu, quero lá saber. ” Conclui: “Eu não sou assim. ” “Hoje, se o pai ressuscitasse, tirava o chapéu ao filho mais novo, em quem nunca acreditara”, refere agora um ex-ministro do pós-25 de Abril que se cruzou com o industrial. E remata: “Ele reconstruiu o grupo com bom senso, aproveitando as oportunidades e rodeando-se dos melhores. ”O BES/GES era uma peça importante da engrenagem e, entre 2009 e 2012, no meio de grande confidencialidade, tornou-se um accionista do Grupo Queiroz Pereira (sustentado num esquema complexo de três holdings, Cimipar, Cimigest, Sodim, que se cruzam entre si com o mesmo objectivo: a Semapa geradora lucros) com maior peso do que os irmãos Maude (8%) e Pedro (8%), mas não da mãe Maud, aliada de PQP. Naquele período, o GES reforçou a sua presença na Cimigest (de 20% para 40%) e na Sodim (20%), as únicas onde estava presente, o que lhe permitiu dominar indirectamente cerca de 20% da Semapa. Um dos “vendedores” foi Joe Berardo, mas o movimento derivou da execução de dívida ao BES. 2011. Antes de o ano terminar, PQP comunicou aos accionistas da Cimipar (onde o BES não estava e que era detida em 40% por PQP, 40% por Maude Lagos e 20% pelos Carrelhas) que ia alienar 10% da Cimigest à Sodim (posição contabilizada em 36 milhões). A razão? A Cimipar (capital social de um milhão) estava falida, com dívidas ao BES e a PQP e a Maude de 30 milhões de euros. Uma transacção que vai mudar a relação cordial entre investidores. Mas passou um ano até que o BES, Maude e os Carrelhas argumentassem que os equilíbrios internos tinham mudado. Estala a discórdia2012. Em Janeiro, o presidente da Semapa executou a venda por 17 milhões de euros e pagou dívida ao BES. A transacção foi aprovada por todos os administradores das holdings e teve luz verde em AG. “O Pedro pensou: tenho de controlar o meu grupo, que herdei do meu pai e que expandi em mais de 90% e tenho de ‘afastar’ toda a gente”, diz um dos intervenientes do conflito. “E foi tomando decisões sem ouvir ninguém. Mas sem pagar o prémio de controlo. ” Uma tese que as hostes de PQP contestam: “O industrial tem desde sempre a mesma posição accionista da irmã, a Cimipar estava falida e a operação foi aprovada pela Maudezinha. ”Nos primeiros meses do ano, o industrial continuava determinado em descobrir quem estava por trás da Mediterranean. A irmã Maude colocava questões e ele temia, agora, ser surpreendido com uma acção hostil dos seus accionistas (BES, Maude e Carrelhas). Semanas antes de a Cimigest eleger os novos órgãos sociais (onde a sociedade luxemburguesa estava representada pelo BES), PQP procurou Salgado: “Pergunto-te uma última vez: quem são esses senhores da Mediterranean que representas e que nós não conhecemos?” O banqueiro repetiu o que sempre lhe dissera e PQP pediu-lhe que fizesse chegar aos “clientes” uma oferta. Ora, o banqueiro é redondo a falar, binário a actuar: se interessa ao BES, faz, se não interessa, deixa cair. Para mostrar que a Mediterranean não estava vendedora, explicava: “Eles não querem receber propostas, nem ser conhecidos, são discretos. ” Aos ouvidos do parceiro industrial, o disco estava riscado. As palavras de pouco servem sem gestos persuasivos. O episódio faz parte dos processos judiciais a correr no quadro da guerra accionista. A meio de 2012, semanas antes da data da reunião magna da Cimigest, PQP começou a deixar cair sinais de que não reconduziria Rui Silveira, o gestor do BES, indicado por Salgado para representar a Mediterranean. Antes do encontro, o BES comunicou o desejo: a Mediterranean queria nomear um delegado para a gestão. PQP reagiu à patada. “Não conheço os senhores da Mediterranean e sem os conhecer, não meto ninguém no board. ” O recado estava dado. Junho de 2012. O mistério ia ser esclarecido. Nas vésperas da AG da Cimigest, o GES comunicou, então, que ia adquirir a Mediterranean. O industrial propôs-se formalizar uma oferta, em nome do grupo, e dirigiu uma carta ao líder do GES, António Ricciardi. Pouco depois, Ricciardi notificou o mercado de que a Espírito Santo Resources (holding para os negócios financeiros) tinha assumido a Mediterranean. Hoje, PQP não perdoa a Ricardo Salgado o pecado capital de lhe ter “escondido”, ao longo de dez anos, que o BES era o verdadeiro proprietário das sociedades accionistas, o que “se traduziu”, do seu ponto de vista, “num plano” secreto para dominar a Semapa. Por seu turno, os círculos do banqueiro alegam que a suposta “ocultação” partiu de um “pedido da Margarida”, isto, apesar de, em 2003, a herdeira ter informado os irmãos de que deixara as holdings familiares. Do lado do BES, “a tese conspirativa de PQP” sobre a eventual tentativa de domínio da Semapa é contestada: “Se fosse assim, porque é que Manuel Fernando Espírito Santo lhe vendeu acções da Sodim?” A isto uma fonte da Semapa encolhe os ombros. Final de 2012. Depois de ter sido o único grande banco a dispensar a recapitalização com verbas públicas, o BES começava a dar sinais de vacilar. O impacto da crise financeira e económica prolongada, as exigências regulatórias e as orientações seguidas na instituição, com excesso de exposição ao imobiliário, tiveram consequências: aumento do crédito malparado, maiores imparidades (perdas potenciais). O cenário impediu Ricardo Salgado de ser “generoso” com a família e obrigou-o a desacelerar os financiamentos às empresas do grupo. Tal como o PÚBLICO noticiou a 18 de Setembro, entre 2008 e 2013, em alternativa ao apoio do BES, a gestora de fundos do grupo recorreu aos clientes da instituição para financiar em larga escala (2, 2 mil milhões de euros) a área não financeira através de dois fundos, o ES Liquidez e o ES Rendimento. Uma via polémica. Já este mês, a 12 de Dezembro, o The Wall Street Journal veio dar grande ênfase ao tema na primeira página do seu site. Há uma certa unanimidade na interpretação: Ricardo Salgado esteve sempre ao lado das duas irmãs de PQP, alegando uma parceria histórica entre as duas famílias e uma relação pessoal. A cumplicidade manteve-se quando Maude Lagos entrou em rota de colisão com o irmão. E no último mês de 2012, Salgado e Maude assinaram um acordo de tag along (um mecanismo de protecção dos investidores minoritários), que garantiu a cada uma das partes que, em caso de venda das suas acções da Cimigest e da Sodim, a outra teria o direito de acompanhamento ao mesmo preço e em idênticas condições. A fronteira entre a obsessão e a necessidade de conhecimento pode parecer, às vezes, um pouco turva. O industrial acreditava numa coisa: que no seu “gabinete” Ricardo Salgado tinha uma aliada, a sua irmã Maude Lagos. Dentro da Semapa, à volta de PQP, fala-se no “assalto à diligência”. Sendo accionista do GES (7%), o industrial sabia das divisões internas e que a família Espírito Santo sofria o impacto da mudança do ciclo económico. E preparou-se para um braço-de-ferro. Por essa altura, realizou-se uma reunião no conselho superior do GES onde PQP participou (apesar de não integrar a estrutura) e que estabeleceu a normalização do relacionamento entre os dois grupos. 2013. Nos primeiros meses do ano, são desencadeadas negociações. Salgado sugeriu, então, um pacto parassocial, onde reconhecia a liderança de PQP na Semapa, mas queria ter decisão em matérias estratégicas. O plano foi chumbado. Em contrapartida, PQP avançou com uma oferta de aquisição das acções do GES nas holdings familiares, que este recusou. O BES exigiu-lhe um prémio de controlo. Mas a capacidade de manobra de Salgado estava diminuída e a partir daqui PQP vai jogar os trunfos todos. É corredor de automóveis, talvez não se importe, por vezes, de passar fora da curva, de ir até ao limite do risco. Uma tese que recusa com irritação: “Não tem que ver com os automóveis, é da minha natureza, da capacidade de formar equipas, de ter sócios, da vontade de empreender. Nunca pus em risco os activos do grupo, o que seria extremamente arriscado era não ter feito nada. ” Insiste sempre: “O meu pai deixou aos filhos uma empresa, que eu multipliquei infinitamente, sem pedir um único euro aos accionistas, nunca houve um aumento de capital. Fiz tudo com o pêlo do cão [e dívida], com o que sobrou do 25 de Abril. ”Entretanto, a Cicleleader, sociedade dos primos Carrelhas, enviou uma carta ao industrial com um conjunto de questões sobre a operação do ano anterior, de venda, pela Cimipar, de 10% da Cimigest à Sodim. A resposta foi enviada em 15 dias. Só nessa altura é que os Carrelhas perceberam que a operação mudara a configuração accionista. Depois disso, formou-se uma “aliança” de interesses entre o BES, Maude e Carrelhas. A guerra com PQP tornou-se inevitável. Os momentos que se vão seguir são de grande litigância: a troika accionista disparou com 14 providências cautelares a pedir a anulação da venda das acções da Cimigest à Sodim. Foi num quadro de aceleração que a 24, 28 e 29 de Maio , se sucederam as AG inflamadas no Grupo Queiroz Pereira e que resultaram na destituição de Maude Lagos dos órgãos sociais e no seu afastamento da Sodim, onde geria o Ritz e o Hotel Villa Magna, em Madrid. Em paralelo, continuavam as negociações que serão acompanhadas até ao final, do lado do BES e de Maude, por Francisco Cary, do BESI, e pelo advogado Luís Cortes Martins. Maude Lagos foi também assessorada por Gabriela Martins. Por seu turno, PQP atravessou-se com Fernando Ulrich (o BPI tem 10% da Semapa), que há quase duas décadas mantém com Salgado (de quem é, aliás, primo) uma relação distante que resultou de uma concentração falhada entre os dois bancos. Ricardo Pires e Miguel Ventura, colaboradores de PQP, acompanharam Ulrich. Já os Carrelhas indicaram o advogado Tito Arantes Fontes. Julho. No dia de aceitação do grau de Doutor Honoris Causa, entregue pelo reitor do ISEG, Ricardo Salgado surgiu a mostrar grande respeito pela família Queiroz Pereira e pelas tradições “como parte do código genético do GES”. Setembro. A comunicação social é por vezes usada como arma. Os adversários da Semapa, no GES, alegam que à mesa das negociações o industrial deixou um aviso: “Ou me dão o que eu quero, ou ponho uma equipa a colocar tudo nos jornais. ” Inquirida sobre o tema, a Semapa negou-o. Mas todos terão sido “cúmplices” em esgrimir o mesmo argumento da comunicação social. A 31 de Agosto, os conflitos internos no GQP começaram a ser descarregados no espaço público, depois de as primeiras acções e providências cautelares terem caído nos tribunais. O Expresso noticiou: “PQP é acusado pela irmã Maude de controlar ilegalmente o grupo. Este diz que o GES quer ficar com a Semapa. ”7 de Setembro. Ricardo Salgado estava de visita aos balcões do BES nos Açores quando mandou testemunhos de boa vontade: “O grupo quer ser parte da solução e não do problema. ” Só que o BES preparava-se para descer à terra e juntar-se aos outros bancos para divulgar prejuízos (381 milhões de euros). Outono. As maratonas negociais são um traço das guerras familiares. No Verão, o governador Carlos Costa dirigiu avisos a Salgado para que chegasse a acordo com PQP, de quem recebera mensagens com “muita informação”. E em Outubro, no pico da tensão accionista, o Mercedes topo de gama cinzento metalizado do industrial foi visto a estacionar à porta do BdP. PQP estava acompanhado de um colaborador “carregado” de documentação. Mau sinal. Os dois reuniram-se com o vice-governador Pedro Neves e o director José Queiró, com a supervisão prudencial. Uma fonte da instituição garantiu que do encontro nada transpareceu. Só que, a partir dali, Carlos Costa já não podia ignorar que tinha os dossiers em cima da mesa. O vice-governador chamou Salgado ao BdP a quem pediu esclarecimentos, que este terá dado. O BdP queria impedir que do confronto nascesse uma vulnerabilidade para o sector financeiro. Em paralelo, o primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, pediu a Eduardo Catroga que colaborasse no consenso. Nesse período, existiu ao mais alto nível uma preocupação real de que do conflito pudesse resultar uma perturbação muito grave em dois dos maiores grupos portugueses, GQP e GES, com impacto na economia e, por arrastamento, na população. Um risco que não foi perceptível para a opinião pública porque, meses depois, Salgado e PQP assinaram o acordo. Accionistas celebram a pazFinal de Outubro. Nesta fase, já as hostilidades tinham ultrapassado a mera dimensão da Semapa. Com a ida do industrial ao BdP, o núcleo duro dos problemas de Salgado passou a estar no coração do GES, onde se travava (e trava), em surdina, um combate entre primos direitos. A atitude desafiante de PQP, accionista do GES, com poder arbitral, contribuía para a estratégia anti-Salgado do presidente do BESI. Ricciardi e PQP têm, ainda hoje, uma relação menos infectada e, por vezes, assumem, nos negócios, estilos de actuação de pit bulls. Num contexto de luta de poder pela liderança do GES/BES, a acção de Ricciardi culminou (já depois do acordo entre Salgado e PQP) em declarações públicas de falta de confiança no presidente do banco, isto, horas depois de o Jornal de Negócios ter publicado um trabalho sobre a sucessão de Salgado — “O golpe de Estado ao estado de golpe no GES”. A família percebeu rapidamente que o diferendo, ao ser dirimido à vista de todos, arriscava tornar-se o folhetim do ano. E 24 horas depois retirou-o do espaço público com um comunicado assinado pelos dois primos direitos. Mas é evidente que as movimentações internas continuam e que o BdP está a vigiar o que se lá passa. Finalmente, o acordo entre Salgado e Queiroz Pereira. O caminho que estava a ser trilhado já não interessava a nenhuma das partes. E beneficiou do “dedo” de Ricardo Abecassis Espírito Santo Silva, amigo de PQP, a viver no Brasil. Dizem que foi o luso-brasileiro que ajudou a desatar o consenso. Mas que foi José Maria Ricciardi quem apareceu a carimbar a paz. Parceiros há 80 anos, os grupos Espírito Santo e Queiroz Pereira selaram um pacto de separação de águas (o BES saiu do GQP e o GQP saiu do GES). Os Carrelhas aproveitaram e saltaram fora. Mas Maude Lagos só apertou a mão ao irmão um mês depois. Há uma pergunta legítima: sem as divisões accionistas, sem as polémicas (Escom, Submarinos, Sobreiros, Monte Branco, Operação Furacão, Álvaro Sobrinho, escutas telefónicas, venda de acções da EDP, revisão da declarações fiscal por parte de Salgado, escutas a Ricciardi) e sem as contingências financeiras no GES, PQP teria tido margem de manobra para impor a saída do parceiro? Dificilmente. Se o cenário fosse mais favorável, presumivelmente, não haveria guerra interna no GES, os escândalos envolvendo Angola já teriam sido compensados de qualquer maneira. O mais provável é que Salgado ou não fechasse o acordo tão rapidamente ou forçasse PQP a vender as acções ou, ainda, que optasse por ficar na Semapa. O fim dos tumultos entre PQP e o GES, tal como o Expresso já divulgou, implicaram que PQP escrevesse uma carta ao BdP a garantir que as suas dúvidas sobre a má gestão do Grupo Espírito Santo estavam sanadas. E o BdP já pediu esclarecimentos ao BES para saber quais os efeitos patrimoniais do acordo com PQP. Os mercados financeiros admitem que num futuro não muito distante se possa abrir outro capítulo, quando os três irmãos e os dois sobrinhos forem chamados a lidar com a herança da matriarca, Maud Queiroz Pereira, com 99% da Vertice e 30% da Sodim. De fora do acordo entre os dois irmãos e tal como defendeu Maude Lagos, ficou a Quinta de Vialongo, no Ribatejo, avaliada em muitos milhões de euros e onde cada herdeiro de Manuel Queiroz Pereira detém 25%. A mãe é a usufrutuária. Mas não é provável que o poder de PQP (que tem tido desde o primeiro momento o apoio da mãe, de quem é, aliás, muito próximo) seja de novo posto em causa. O industrial é, assim, aparentemente, o vencedor da guerra. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Problema? Qual problema? O mundo dos negócios é mesmo assim. O acordo entre PQP e a troika accionista (BES, Maude Lagos, Carrelhas) trouxe entre 150 e 180 milhões de euros e um compromisso: o silêncio. Hoje, quem ouvir qualquer uma das partes, em público, não pode deixar de ficar com a sensação de que a guerra nunca existiu. Oficialmente, a paz chegou, portanto. Nada de mais enganador. Nunca pedi um único euro aos accionistas, nunca houve um aumento de capital. Fiz tudo com o pêlo do cão, com o que sobrou do 25 de Abril PQP Partilhar citação Partilhar no Facebook Partilhar no Twitter PUB
REFERÊNCIAS: