A Europa continua em estado de negação
Num mundo globalizado, as fortalezas são hoje praticamente impossíveis. (...)

A Europa continua em estado de negação
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Num mundo globalizado, as fortalezas são hoje praticamente impossíveis.
TEXTO: 1. “Temos de ir à raiz do problema”. Esta foi, provavelmente, a frase que mais se ouviu na União Europeia nos últimos 15, 20 anos sobre a imigração ilegal com origem na margem sul do Mediterrâneo, vinda também da África subsariana. A “raiz” do problema era, teoricamente, ajudar ao desenvolvimento económico nos países de origem da imigração e tentar resolver os conflitos que obrigavam as pessoas a fugir à guerra. A frase não podia faltar nas conclusões do Conselho Europeu desta quinta-feira: é a única que põe toda a gente de acordo, desde que fique tudo na mesma. Se o seu resultado até agora foi muito limitado, basta olhar para o que se passa no Magrebe, no Médio Oriente e na África subsariana para perceber que a missão se tornou ainda mais complexa. A culpa não é só da Europa, naturalmente. A União fartou-se de insistir na necessidade da cooperação regional. Os países da região só estavam interessados em acordos directos com Bruxelas, de preferência com poucas condicionalidades (nomeadamente, democráticas) e muito dinheiro. A União tem acordos de associação com vários países do Magrebe, mas as convulsões internas limitam os seus efeitos. Hoje, a região está em profunda desordem. Apesar disso, a União Europeia continua a não ter uma política comum para a imigração ilegal e para os refugiados que hoje enfrentam o mar para fugir à morte certa e arriscar a morte apenas provável. “Há alguma coisa de profundamente errado na forma como a Europa trata a imigração ilegal”, escreve Camino Mortera-Martinez, investigador do Center for European Reform de Londres. Nos últimos anos, diz ainda o autor, “a imigração e o asilo criaram uma divisão Norte-Sul dentro da União”. A questão fundamental é que nenhum país quer abrir mão do controlo das suas políticas de imigração. E mesmo a política comum de asilo, adoptada há dois anos por insistência de Bruxelas, é tão pouco ambiciosa que permite que haja países onde 70% dos pedidos de asilo sejam concedidos (a Suécia é um exemplo) e outros, como a Grécia, que apenas os concedam a um por cento. A questão do asilo coloca-se hoje com muito maior premência quando os conflitos na Síria, no Iraque, o caos na Líbia, as crises no Mali, na Nigéria, na Eritreia, fomentadas pelos grupos jihadistas, estão na origem da fuga de milhares e milhares de pessoas em direcção à Europa. 2. Num dos últimos grandes picos de refugiados, em Outubro de 2013, o ainda primeiro-ministro de Itália, Enrico Letta, decidiu lançar a operação Mare Nostrum para fazer frente à catástrofe que esperava os imigrantes deixados à sua sorte pelos “negreiros do século XXI”, como lhes chamou Matteo Renzi. Salvou cerca de 150 mil pessoas. Em Outubro de 2014 apelou ao apoio europeu, que não veio. Suspendeu a missão. Nessa altura, os governos do Reino Unido, da Alemanha e da Holanda chegaram ao ponto de criticar o esforço italiano, acusando Roma de estar a incentivar a vaga de gente que fugia para a Europa. Desde então, o ambiente europeu só piorou, com a emergência de partidos políticos nacionalistas e xenófobos, que colocam a maioria dos governos na defensiva. Foi preciso, agora, mais uma sucessão de catástrofes humanas para levar os governos a sentar-se à mesa em Bruxelas. As medidas adoptadas ontem podem tentar responder a uma situação de emergência, mas o espírito dominante manter-se-á: cada país quer ter a sua própria política, para que tudo fique mais ou menos na mesma. “ Os governos actuais de centro-esquerda ou de centro-direita têm medo [de tomar qualquer posição comum] porque a imigração é um dos mais tóxicos e incendiários tópicos nas políticas nacionais de muitos países da União”, escreve Ian Traynor, editor do Guardian para a Europa. 3. O Conselho Europeu aprovou o reforço da Agência Frontex, responsável pela segurança das fronteiras externas da União Europeia, triplicando o orçamento de 2, 9 milhões mensais. Basta lembrar que o Governo de Roma gastava na operação Mare Nostrum mais de 9 milhões. Os líderes europeus acabaram por aceitar a extensão da sua missão às operações de busca e salvamento. Mesmo assim, esta mudança só foi aceite há dois dias por Londres e por Berlim, que continuavam na mesma linha da “dissuasão”, que muita gente considera como verdadeiramente “imoral”. David Cameron em voz alta. A chanceler em voz mais baixa. O primeiro-ministro britânico, que enfrenta eleições a 7 de Maio, não resistiu à indignação da opinião pública e anunciou o envio de barcos e helicópteros para reforçar a operação europeia, aceitando a sua extensão às operações de salvamento. A Alemanha tem pelo menos a seu favor ser o país que mais vistos de asilo tem dado aos refugiados. Merkel já disse que há ainda espaço para mais sírios. A Suécia bate todos os recordes em termos relativos. A Dinamarca, mesmo ao lado, tem das políticas mais restritivas. Também não é evidente como é que a Europa vai pôr em prática uma missão militar para a destruição dos barcos utilizados pelas máfias na costa líbia. “Como é possível distinguir um barco desses e um barco de pesca normal”, pergunta ainda Mortera-Martinez. A medida mais radical da Comissão, criar um sistema de quotas que distribua os imigrantes e refugiados, não terá sido aprovada. E, no entanto, basta uma conta de dividir para se perceber que o número de pessoas que chegam ao lado de cá, se dividido por 28, ajuda a colocar o problema na sua real dimensão.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte guerra imigração ajuda medo ilegal
Migrantes do navio Aquarius chegam a Portugal em Setembro
O ministro do Interior de Itália acusa alguns países da UE, entre os quais Portugal, de não cumprirem as promessas de acolher migrantes resgatados do mar. (...)

Migrantes do navio Aquarius chegam a Portugal em Setembro
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: O ministro do Interior de Itália acusa alguns países da UE, entre os quais Portugal, de não cumprirem as promessas de acolher migrantes resgatados do mar.
TEXTO: Os migrantes do navio Aquarius que Portugal vai receber deverão chegar em Setembro, num processo que exige procedimentos com Itália, registo das pessoas e resolução de alguns casos de saúde, anunciou esta terça-feira o Ministério da Administração Interna. "O grupo de 50 migrantes provenientes de Itália [recolhidos pelo Aquarius] deverá chegar em Setembro", avançou o Ministério liderado por Eduardo Cabrita, em resposta a questões da agência Lusa. "O processo para a vinda destas pessoas envolve procedimentos por parte do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, em articulação com as autoridades italianas. A deslocação destas pessoas só poderá efectuar-se após o seu registo, além de que existem, nalguns casos, questões de saúde que é preciso acautelar", refere. O ministro do Interior de Itália, Matteo Salvini, citado pela agência EFE, acusou alguns países da União Europeia (UE), entre os quais Portugal, de não cumprirem as promessas de acolher migrantes resgatados do mar que chegam a Itália. Salvini evocou o caso de 450 migrantes que desembarcaram em Julho em Pozzallo, na Sicília, afirmando que, dos seis países que se comprometeram a receber migrantes, apenas França cumpriu o compromisso. "A Alemanha ia receber 50 e acolheu zero, tal como Portugal, Espanha e Malta, enquanto a Irlanda prometeu 20 e também não recebeu nenhum", apontou o responsável italiano. O ministro italiano falava a propósito dos 177 migrantes que estão no navio Diciotti, no porto de Catânia, na Sicília, sem autorização para desembarcar, e ameaçou reenviar o grupo para a Líbia. "Ou a Europa começa a defender seriamente as suas fronteiras e partilha o acolhimento dos imigrantes, ou nós começamos a levá-los para os portos de onde partiram", escreveu Salvini, que é também vice-primeiro-ministro e líder da Liga (extrema-direita), no Twitter. Itália pediu a Malta que recebesse o navio, mas este país recusou e acusou os italianos de terem recolhido os migrantes em águas maltesas "só para os impedir de entrar em águas italianas". Além da articulação entre os dois países, do registo dos migrantes e da resolução de questões de saúde que possam apresentar, o Ministério da Administração Interna português refere que a vinda do grupo do Aquarius também "depende de agendamento de voo em rotas comerciais, o que nem sempre é possível com grupos grandes de pessoas, como é o caso". "Portugal tem vindo a defender uma posição global a nível europeu para a questão do acolhimento de refugiados, mas tem participado em soluções ad hoc a pedido da Comissão Europeia em articulação com França e Espanha", refere ainda. O MAI recorda que 30 pessoas do navio Lifeline, provenientes de Malta, já se encontram em Portugal desde 29 de Julho. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A 14 de Agosto, Eduardo Cabrita disse que Portugal estava disponível para acolher 30 dos 244 migrantes que se encontram no Aquarius e noutras pequenas embarcações que estão a atracar em Malta. "Portugal, Espanha e França articularam-se e, tal como já tinham feito em casos anteriores, mostraram uma disponibilidade comum para acolhimento e Malta autorizou a atracagem do navio. Haverá uma operação semelhante à que foi feita há um mês com o Lifeline", explicou na altura Eduardo Cabrita. A maioria (73) dos 141 imigrantes a bordo do Aquarius são menores de idade e 70% são naturais da Somália e da Eritreia, mas também há cidadãos do Bangladesh, Camarões, Gana, Costa do Marfim, Nigéria, Marrocos e Egipto.
REFERÊNCIAS:
Entidades UE MAI
A grande cowboyada europeia
Um olhar, um gesto, uma maneira particular de mexer as ancas (como nos westerns…) pode ser toda a razão de ser de um plano. É um muito, muito bom filme. (...)

A grande cowboyada europeia
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.4
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20180621140516/http://publico.pt/1835094
SUMÁRIO: Um olhar, um gesto, uma maneira particular de mexer as ancas (como nos westerns…) pode ser toda a razão de ser de um plano. É um muito, muito bom filme.
TEXTO: Valeska Grisebach é uma cineasta que se faz demasiado rara. Western é o seu terceiro filme (e o primeiro a chegar ao circuito comercial português), e interrompe um silêncio de mais de dez anos a seguir às duas óptimas obras iniciais (Mein Stern e Sehnsucht), entre 2001 e 2006. Associada àquilo a que os críticos, nessa época, chamaram a “escola de Berlim” (e que designava mais um ar de família entre cineastas de temas e estilos bastante diferentes do que propriamente um movimento concertado e coerente), ainda é hoje próxima de outro nome dessa geração, Maren Ade, a autora do bem conhecido Toni Erdmann. Grisebach colaborou nesse filme, assim como Ade colabora em Western. Há mais em comum entre os dois filmes, um movimento geográfico semelhante: Toni Erdmann mostrava os alemães (e o seu poder económico) na Roménia, Western mostra os alemães (e o seu poder económico) na Bulgária. Realização:Valeska Grisebach Actor(es):Meinhard Neumann, Reinhardt Wetrek, Syuleyman Alilov LetifovE é isso, o western, título que o filme enverga com uma plétora de significados. Seguimos um grupo de trabalhadores alemães algures nos confins da Bulgária, perto da fronteira, a sul, com a Grécia, que aí se deslocam para trabalhar na construção de uma central hidroeléctrica. Para a maioria deles, tudo aquilo é como território selvagem, longe da lei e da civilização, e o sentimento de superioridade é quase congénito. São como um reflexo distorcido (ou não tão distorcido assim) dos pioneiros que no século XIX avançaram na “conquista do Oeste” americano, convictos duma espécie de superioridade cultural sobre os autóctones – e não é por acaso que um dos gags mais divertidos deste filme (que pode ser descrito como uma comédia muito ao retardador, que faz sorrir no geral sem fazer sorrir em quase nada de particular) envolve uma bandeira alemã (até porque muitos dos habitantes locais se lembra ainda, e conta histórias sobre isso, de quando os alemães marcharam sobre os Balcãs). O olhar de Grisebach é, nesse aspecto, duplamente irónico: dá uma visão, mais ou menos caricatural, do olhar dos alemães sobre a Europa antigamente chamada “de Leste”, e devolve o olhar dessa Europa sobre os alemães. Olhares que não coincidem nem comunicam, e quando comunicam é pela violência e pela prepotência, como na cena do rio em que um dos operários importuna uma banhista. Porque o olhar sobre os alemães é também o olhar de uma mulher sobre os homens, retratados num caldo de violência e bazófia machista, que Valeska se diverte a descrever até nos seus aspectos inadvertidamente (?) homoeróticos (a cena, quase “romântica”, em que cuidam do cabelo uns dos outros). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Podíamos ainda acrescentar as referências aos refugiados (estamos naquele corredor da imigração vinda do Médio Oriente que são os Balcãs) para reforçar a quantidade de “comentário”, sempre obscuro (quer dizer, sem retórica), sempre mordaz, que um filme como “Western” contém. Mas há que falar do seu “herói positivo”, Meinhard (um actor amador, Meinhard Neumann, que partilha o nome real com o da personagem), e que é outra forma de declinar o western, agora como género. Com o seu rosto escavado e endurecido, com o seu bigode nada cool, Meinhard é um misto daqueles heróis proletários que desapareceram do cinema europeu (mas que podia estar num Fassbinder, por exemplo) e de uma allure de cowboy, solitário e lacónico (mais Gary Cooper do que John Wayne), provido de um sentido de justiça e moralidade que o recorta da nuvem dos seus compatriotas (como os cowboys cavalheirescos de antanho, não suporta, por exemplo, ver uma mulher ser maltratada). Valeska oferece-lhe mesmo um cavalo, para que o jogo dos ecos com o western e os cowboys vá tão fundo quanto possível. Meinhard é o único a relacionar-se com o meio ambiente, como naqueles westerns (o Forte Apache ou o She Wore a Yellow Ribbon de Ford, por exemplo) em que uma personagem, para além das pressões políticas e militares, se interessa pelos índios e os trata como iguais. Essa personagem, aqui, é Meinhard, e sem que o olhar sobre ela abandone uma certa duplicidade (há um mistério naquele homem, reforçado pelo laconismo e pelas alusões ao passado) é ela que serve de intérprete do ponto de vista da câmara de Valeska Grisebach, que descobre o território a partir dele e das suas deambulações. Com estes elementos, e num ambiente novo, a realizadora constrói aquele tipo de cinema que já conhecíamos dos primeiros filmes, uma espécie de realismo entre a contemplação e a atenção a “micro-acontecimentos” – um olhar, um gesto, uma maneira particular de mexer as ancas (como nos westerns…) pode, em muitas ocasiões, ser toda a razão de ser de um plano. É um muito, muito bom filme.
REFERÊNCIAS:
Ganhadores e perdedores
É nesta Europa, e nesta França, que Macron — se ganhar, como se espera — vai ser testado. Bonne chance. (...)

Ganhadores e perdedores
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento -0.2
DATA: 2017-05-11 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20170511073519/https://www.publico.pt/n1771196
SUMÁRIO: É nesta Europa, e nesta França, que Macron — se ganhar, como se espera — vai ser testado. Bonne chance.
TEXTO: 1. Haverá uma lição principal a tirar sobre as eleições francesas? A julgar pelo comentário político dos últimos dias, a lição é que “esquerda” e “direita” terão deixado de fazer sentido. Uma divisão “descartada” ou “desintegrada”, escreve-se no Guardian. No Economist sugere-se, mais moderadamente, que “a velha divisão entre a esquerda e a direita está a tornar-se menos importante”. E se não há esquerda nem direita, o que haverá então? Duas fontes diferentes, que só muito raramente deverão estar de acordo, parecem convergir. Enquanto Nicolas Bay, secretário-geral da Frente Nacional, defende que tudo se resume a “patriotismo versus globalização”, o Economist fala numa nova divisão entre "abertura e fechamento". Será esta a divisão? Se sim, até que ponto é nova? E em que consiste? Vale a pena inspeccionar. 2. O tema da “Europa” parece ser aquele em que a divisão tradicional esquerda/direita foi mais obviamente desafiada nesta eleição. A posição genérica dos partidos ou dos eleitores nessa divisão não tem uma relação linear com as suas posições sobre a Europa. Pelo contrário, a oposição à integração europeia cresce quanto maior a distância em relação ao centro. Mais de metade dos eleitores de Le Pen dizem que sentiriam “um grande alívio” se fosse anunciado amanhã o abandono da União Europeia. A percentagem não é tão alta quando olhamos para o eleitorado de Mélenchon, mas é mesmo assim bastante maior do que entre os eleitores de Hamon, Fillon ou Macron. Contudo, isto não é novo. Para a direita radical que emergiu nos anos 80 com alguma relevância eleitoral na Europa — a Frente Nacional, o Bloco Flamengo, o Partido da Liberdade na Áustria e outros —, a luta principal começou logo por ser, nessa altura, por uma “Europa das pátrias”: soberania, supremacia da lei nacional, combate à liberdade de circulação e redução dos poderes da Comissão e do Parlamento Europeu, tudo bastante regado com preocupações conservadoras tradicionais, a segurança e a imigração. A extrema-esquerda europeia também sempre se opôs à integração europeia, mas por razões distintas: a Europa era o cavalo de Tróia do capital, da liberalização económica e da “mundialização”. Ao centro, a viragem europeísta em França remonta também aos anos 80: ao passo que Chirac conduzia definitivamente o RPR para longe do dirigismo económico e do eurocepticismo gaullistas, Miterrand operava a “tournant de la rigueur” em nome da permanência no sistema monetário europeu. Chegados ao final do século passado, em França como na maior parte dos países europeus, mapear as posições “esquerda-direita” dos partidos políticos contra a sua posição sobre a integração europeia resultava numa curva em U-invertido: menor apoio à integração nos partidos dos extremos, maior nos partidos do centro. E nada desde então contribuiu para modificar este mapa. O referendo de 2005 à Constituição Europeia foi um momento particularmente polarizador e clarificador à esquerda: Mélenchon faz campanha pelo “não”, abandona o PS em 2008, apela em 2012 a uma “refundação de uma união monetária democrática e social”, e acaba, agora, com “l’UE, on la change ou on la quitte”. 3. Mas o que torna a integração europeia já não “um tema entre outros”, mas sim naquilo a que Bruno Cautrés chama o “centro de gravidade da vida política francesa”? No início do século, Lisbet Hooghe, Gary Marks e Carole Wilson defendiam a ideia de que, apesar de persistir uma oposição à integração à esquerda, a clivagem europeia tinha-se tornado mais uma clivagem cultural e identitária do que em torno das consequências económicas e distributivas da integração: “a maior reserva de oposição [à integração europeia] vem dos partidos radicais tradicionalistas, autoritários e nacionalistas. ”Mas esse passado recente parece hoje distante. Na noite da sua passagem à segunda volta em 2002, Jean Marie Le Pen já evocava “o povo vítima do euro-mundialismo de Maastricht”, e o seu programa eleitoral falava na “obsessão com a disciplina orçamental”, na “pressão para baixo sobre os nossos sistemas sociais” e na “abertura de fronteiras a importações de baixo custo” causadas por Maastricht. Desde então, a FN foi dando uma crescente saliência aos temas económicos no seu discurso e moveu-se claramente para a “esquerda” no plano redistributivo. Adopta hoje um tipo particular de welfarismo, desenhado para alargar a sua base ao operariado conservador sem perder a pequena-burguesia em que se apoiava inicialmente: um “chauvinismo de bem-estar”, que critica a liberalização económica e defende a progressividade fiscal e a preservação de benefícios sociais, ao mesmo tempo que apresenta a imigração e a integração europeia como “armas ao serviço do capital” e ameaças à sobrevivência do Estado social. Por outras palavras (e em paralelo ao que se passou em muitos outros partidos de direita radical europeus, como mostram Alexandre Afonso e Line Rennwald num estudo recente), o discurso da Frente Nacional fundiu conservadorismo, antieuropeísmo e anti-capitalismo. O seu eleitorado proletarizou-se: na primeira volta destas eleições francesas de 2017, Le Pen alcançou 21, 3% dos votos, mas quase 40% entre o operariado e um terço dos eleitores cujo rendimento familiar é inferior a 1250 euros. Do lado da extrema-esquerda, os “três milhões de trotskistas” que, em 2002, tinham votado em Laguiller, Besancenot e Gluckstein, já eram principalmente movidos por uma agenda “materialista”, não “pós-materialista”, e a sua pertença social predominante era à camada menos qualificada dos assalariados não industriais, aquilo a que já se chamou o “proletariado dos serviços”: trabalhadores administrativos rotineiros no sector público, empregados do comércio ou caixas de supermercado, por exemplo. Nas últimas décadas, os seus números aumentaram, mas não, pelo menos do ponto de vista relativo, os seus níveis de rendimento, condições de vida ou segurança no emprego. Mélenchon parece ter agora herdado e ampliado esta base eleitoral, atraindo o que destes segmentos ainda restava no eleitorado do PS. Apesar de estar certamente menos dependente das classes mais desfavorecidas do que Le Pen, Mélenchon terá mesmo assim triunfado entre os desempregados, e foi o segundo mais votado entre o operariado, os assalariados no sector dos serviços e os eleitores de mais baixos rendimentos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os paralelos com o voto na extrema-direita acabam aqui? Para já, sim. Como dizia Francisco Assis neste jornal, e é verdade, “subsiste um mundo de referências filosófico-políticas a separar a extrema-esquerda da extrema-direita”. E, no entanto, a força gravitacional desta nova clivagem europeia, agora simultaneamente identitária e distributiva, vai-se manifestando nalgumas pequenas grandes coisas, tais como a visível ambiguidade de Mélenchon sobre o tema da imigração nesta campanha, demarcando-se, por exemplo, da receptividade do governo alemão em relação aos refugiados e multiplicando-se em avanços e recuos sobre a liberdade de circulação, o direito de asilo, a cidadania europeia e questões conexas. Como terá dito sob anonimato um quadro da França Insubmissa — um título que, se visto de fora, já é todo um programa —, “é preciso ser realista. Se adoptarmos a mesma linha que as formações de extrema-esquerda, no contexto actual, vamos ser mortos politicamente”. Julgo que percebemos todos perfeitamente. De resto, é este mesmo “realismo” que, com o objectivo de consolidar a sua hegemonia na esquerda, impede Mélenchon de apoiar Macron na segunda volta. 4. Num contexto destes, a candidatura de Hamon foi uma peça de um puzzle perdida dentro da caixa errada. A social-democracia enfrentou vários dilemas ao longo da sua história. Um deles, identificado desde cedo por Lipset no seu famoso Democracia e autoritarismo da classe operária, era o saber como preservar simultaneamente o apoio das classes mais desfavorecidas mas culturalmente conservadoras e o das classes médias com elevadas qualificações e culturalmente liberais. Sucede que, infelizmente para Hamon, este já não era o dilema certo para o PS francês. O seu eleitorado, assim como os dos seus congéneres europeus (o Sul da Europa permanece uma excepção), reconfigurou-se completamente nas últimas décadas, passando a ser composto por uma clara maioria de eleitores da nova classe-média — gestores, profissionais socioculturais e assalariados com altas qualificações na indústria e nos serviços. Não é por estes lados que vamos encontrar os “perdedores” da liberalização económica ou da liberalização cultural. Hamon ofereceu-lhes quase tudo da segunda mas quase nada da primeira. Esta base eleitoral do PS ponderou e migrou em massa para Macron. 5. Num texto publicado em 2014, Paul Statham e Hans-Jörg Trenz?perguntavam o que realmente determina hoje a competição política na Europa: a política da identidade (“who we are”) ou a política dos interesses (“who gets what”)? A resposta que dão é que a maneira como em cada país se foi construindo o conflito sobre as consequências políticas e económicas da crise do Euro tornou a questão identitária e a questão distributiva praticamente indistinguíveis. “Esta crise tornou evidente que ‘what you get’ (redistribuição) está fortemente ligado a ‘who you are’ (identidade)”, seja entre países — credores e devedores, “responsáveis” e “gastadores”, “impiedosos” e “vítimas” —, seja entre grupos sociais no interior de cada país — os ganhadores e os perdedores da “globalização”. E não serve de muito argumentar que uns e outros vivem hoje em sociedades mais prósperas e pacíficas do que viveriam se não tivesse havido “Europa”. Deve ser verdade, mas ninguém vive em contrafactuais, e a privação que conta é quase sempre a relativa. É nesta Europa, e nesta França, que Macron — se ganhar, como se espera — vai ser testado. Bonne chance.
REFERÊNCIAS:
O pior de tudo será desvalorizar os resultados
Se, depois disto, os políticos europeus ainda acreditam que tudo vai acabar bem, então a Europa corre mesmo o risco de ser derrotada. (...)

O pior de tudo será desvalorizar os resultados
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento -1.0
DATA: 2014-05-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: Se, depois disto, os políticos europeus ainda acreditam que tudo vai acabar bem, então a Europa corre mesmo o risco de ser derrotada.
TEXTO: 1. A vaga extremista e populista de direita confirmou-se. Haverá cerca de uma centena de deputados contra a Europa no Parlamento Europeu. O PPE volta a ganhar, embora com perdas. A social-democracia perde menos, mas volta a perder. Se somarmos o facto de a França ter sofrido um terramoto político, os resultados das eleições europeias são um péssimo indício para o futuro europeu. Que será ainda maior se os governos e os partidos europeus caírem na tentação de desvalorizar a vaga extremista, justificando-a com a abstenção ou considerando-a um fenómeno conjuntural explicado pela crise. O problema é que quando um país como a França vê a Frente Nacional vencer as eleições europeias a uma distância razoável da UMP de Nicolas Sarkozy e remetendo os socialistas para um valor quase irrisório, alguma coisa está a funcionar mal não apenas na França, mas no coração da própria União Europeia. A França ficou ainda mas fraca. A Alemanha parece um país de outra galáxia: Angela Merkel soma e segue. E quando a social-democracia, que está na oposição em muitos países, não consegue sequer capitalizar o voto contra a austeridade, então a paisagem política europeia entra necessariamente numa fase nova. 2. A Europa mudou radicalmente desde as últimas eleições europeias, em 2009, quando os líderes europeus ainda diziam que a crise era “americana”. Começou com um problema da dívida soberana dos países mais vulneráveis da periferia. Chegou a contagiar a Espanha e a Itália. Pôs em causa o euro. Criou as condições para o “momento unipolar” da Alemanha. Submeteu os países que tiveram de pedir auxílio a programas de ajustamento violentos. Abriu feridas que se julgavam enterradas para sempre. Há razões de sobra para justificar a onda antieuropeia, cujos partidos não são todos da mesma estirpe, é necessário sublinhar. Alguns reclamam contra a imigração e a globalização (como, aliás, a extrema-esquerda) e querem uma Europa mais fechada ao mundo. Outros são partidos nacionalistas, cuja primeira prioridade é derrotar o próprio projecto europeu. Outros ainda rejeitam o regime democrático, como o Aurora Dourada, que foi o terceiro partido mais votado na Grécia. Não se trata apenas das vitórias que arrecadaram, mas da influência que já conseguirem. Algumas das suas bandeiras foram integradas, mais ou menos disfarçadamente, pelos partidos europeus. Em Londres ou Berlim, aprovam-se novas leis para poder expulsar, não apenas os imigrantes e refugiados que vêm de fora, mas os que imigram de outros países da União e que não têm trabalho. Merkel disse que a “União Europeia não era uma união social”. Com 26 milhões de desempregados, o medo da imigração tornou-se mais fácil. Em Paris, o novo primeiro-ministro Manuel Valls ganhou fama por ter mão dura contra os imigrantes ilegais. Nicolas Sarkozy exigiu a suspensão imediata de Shengen e a redução dos poderes da Comissão. O ministro da Economia do novo governo francês, Arnauld Montebourg (da ala esquerda do PSF e “desglobalizador” assumido), apresentou uma medida legislativa que dá novos poderes ao governo para exercer o “patriotismo económico”. Isto tudo porque a GE (americana) quis comprar a Alsthom (francesa). “Marine já ganhou”, escreveu o Monde. E ganhou mesmo: a Frente Nacional arrecadou 25% dos votos, deixando a UMP muito para trás (21%) e os socialistas numa posição miserável (14%). Nova derrota estrondosa para François Hollande, que não consegue convencer os franceses que há coisas que têm de mudar, mesmo na França. O primeiro-ministro holandês, Mark Rutte (liberal em coligação com os trabalhistas), publicou dois dias antes das eleições uma carta conjunta com o seu parceiro do FDP alemão para dizer que é preciso devolver aos Estados-membros uma boa parte do poder que está nas mãos da União. A campanha andou à volta disso. Geert Wilders, que fez da imigração o seu cavalo de batalha (primeiro contra os islâmicos, depois contra os polacos), teve uma relativa derrota: apenas 12%, menos 6 do que em 2009. David Cameron quis adiar a questão europeia com a promessa de um referendo “dentro ou fora” depois das próximas legislativas. Vergou-se à chantagem dos “eurocépticos” do seu próprio partido. Não lhe serviu de nada. “O que vai fazer casta política que dominou a agenda europeia no último meio século”, pergunta Gavin Hewitt, o analista da BBC para a Europa. “O mais provável é que desvalorize [os resultados doa extrema-direita], chamando-lhes nomes feios e acreditando que desaparecerão com a crise. ”3. O segundo argumento dos partidos europeus é que, mesmo que a extrema-direita aumente a sua representação no Parlamento Europeu (aumentou e de que maneira), a maioria ainda pertence aos partidos pró-europeus (PPE, socialistas, liberais), mesmo que possam descer de 70 para 60% dos eurodeputados. A questão é que as consequências desta vaga extremista vão ser sentidas sobretudo a nível nacional. “Vão influenciar ainda mais as agendas dos respectivos governos e da sua acção no espaço europeu”, diz Jean Techau, do Carnegie Europe. ” “[Os partidos europeus] tenderão a agir cada vez mais em função das opiniões públicas nacionais, dificultando ainda mais o consenso europeu”.
REFERÊNCIAS:
Campanha dos pequenos em todo o país, com alguns a optar só em Lisboa e Porto
Algumas forças políticas sem assento parlamentar apostaram em acções diárias em todo o país durante a campanha, enquanto outros preferiram iniciativas pontuais concentradas em Lisboa e Porto, mas todas com o objectivo de serem alternativa aos grandes partidos. Dos 12 partidos sem assento parlamentar que se candidatam às legislativas, o Livre/Tempo de Avançar, Partido Democrático Republicano (PDR) e PCTP/MRPP foram aqueles com mais visibilidade, ao realizarem várias iniciativas diárias em todo o país durante a campanha eleitoral, que termina na sexta-feira. Em sentido oposto, as forças políticas com menos iniciati... (etc.)

Campanha dos pequenos em todo o país, com alguns a optar só em Lisboa e Porto
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento -0.12
DATA: 2015-10-01 | Jornal Público
TEXTO: Algumas forças políticas sem assento parlamentar apostaram em acções diárias em todo o país durante a campanha, enquanto outros preferiram iniciativas pontuais concentradas em Lisboa e Porto, mas todas com o objectivo de serem alternativa aos grandes partidos. Dos 12 partidos sem assento parlamentar que se candidatam às legislativas, o Livre/Tempo de Avançar, Partido Democrático Republicano (PDR) e PCTP/MRPP foram aqueles com mais visibilidade, ao realizarem várias iniciativas diárias em todo o país durante a campanha eleitoral, que termina na sexta-feira. Em sentido oposto, as forças políticas com menos iniciativas públicas foram o Partido Unido dos Reformados e Pensionistas (PURP), o Partido Popular Monárquico (PPM) e o Partido Cidadania e Democracia Cristã (PPV/CDC), que arrancou na segunda semana da campanha e tem como originalidade não concorrer em Lisboa e Porto. Estreante nas eleições legislativas, o Livre/Tempo de Avançar defendeu, nas últimas semanas, a renegociação da dívida, uma união de esquerda, a regionalização e um fundo de resolução e humanização da insolvência, tendo-se ainda manifestado contra as privatizações. Também a concorrer pela primeira vez, o PDR, que tem Marinho e Pinto como presidente, centrou a sua campanha no combate à corrupção e nas críticas ao PSD, CDS e PS, apesar de ter admitido a possibilidade entendimentos pós-eleitorais para constituir uma maioria parlamentar. Já a campanha do PCTP/MRPP ficou marcada pela suspensão do material de campanha que continha a frase "Morte aos Traidores", depois das objecções suscitadas pela mandatária nacional para a juventude. Após a suspensão da frase, que chegou a ser analisada pela Comissão Nacional de Eleições, o líder do partido, Garcia Pereira, afirmou que esta decisão não isenta os traidores da morte certa. A coligação Agir/PTP fez-se notar pelas fotografias da cabeça de lista por Lisboa, Joana Amaral Dias, tendo defendido um referendo revogatório para "demitir políticos corruptos", durante um protesto em frente à casa de Ricardo Salgado. Por sua vez, o partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) marcou a campanha ao defender um estatuto jurídico dos animais e a abolição de espetáculos com sofrimento ou morte de animais, tendo ainda viajado até ao Tua, no distrito de Bragança, para alertar para o "crime" causado pela construção da barragem. Ao concentrar a campanha na Grande Lisboa e na Madeira, o Juntos Pelo Povo (JPP) assumiu-se, durante a campanha, como um partido que está ao lado do povo ao defender os seus interesses e prometeu e fazer política de forma diferente. Centrada na defesa dos valores "humanista, ecologista e liberal", o Partido da Terra (MPT) defendeu, nas duas últimas semanas, novas políticas metropolitanas de transportes e uma política de consensos na Assembleia da República. Outra estreia nas legislativas é o Nós, Cidadãos!, que pretende ser a voz dos cidadãos indignados no parlamento ao defender um Governo com diferentes forças, destacou-se por denunciar as ilegalidades nas votações dos emigrantes ao admitir impugnar a eleição pelo círculo Fora da Europa. A campanha do Partido Nacional Renovador (PNR) apostou a campanha na questão dos refugiados, ao considerar que o seu acolhimento "põe em perigo" a segurança do país. Assumindo-se um partido que defende a agricultura e o trabalho, o Partido Popular Monárquico (PPM) trocou a campanha nas ruas pelas vindimas no Alentejo e juntou-se à luta dos taxistas contra a empresa de transportes que utiliza a aplicação Uber. O também estreante PURP esteve mais ausente das acções de campanha, mas, durante as iniciativas de apelo ao voto, defendeu os direitos dos reformados e a reposição dos cortes salarias e das pensões. O partido Cidadania e Democracia Cristã, que só no domingo realizou a sua primeira acção de rua na campanha, destacou a protecção da família ao propor a redução do IMI em função do número de dependentes, propinas e alojamento estudantil subsidiados, isenção de taxas moderadoras a grávidas e deslocalização do aborto do Serviço Nacional de Saúde.
REFERÊNCIAS:
Partidos PS PAN PSD LIVRE MPT PPM
A década em que se voltou a exigir democracia na rua
“Movimento das praças” ou “novos novos movimentos sociais”. Seja qual for o nome que se lhe dê, algo de novo aconteceu nesta década, um novo ciclo de protestos herdeiro do Maio de 68, mas distinto dele. Sistemas partidários foram estilhaçados, novas soluções governativas encontradas. “O Manifestante” veio para ficar? (...)

A década em que se voltou a exigir democracia na rua
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: “Movimento das praças” ou “novos novos movimentos sociais”. Seja qual for o nome que se lhe dê, algo de novo aconteceu nesta década, um novo ciclo de protestos herdeiro do Maio de 68, mas distinto dele. Sistemas partidários foram estilhaçados, novas soluções governativas encontradas. “O Manifestante” veio para ficar?
TEXTO: Maio de 1968, Paris: “Sejam realistas, exijam o impossível. ” Março de 2011, Lisboa: “Inevitável é a tua tia. ” O Maio de 68 morreu ou está mais presente do que nunca como referência? Nunca teve a importância que muitos lhe atribuíram? Hoje, revoltamo-nos mais ou menos? Há 50 anos exigíamos direitos cívicos e agora só nos manifestamos por questões materiais? O que nos revolta faz-nos sair à rua ou grande parte do activismo social acontece online?As respostas não são consensuais. Se ainda há muitos que na academia se dedicam aos “longos anos 60” e ao ciclo de protestos que começou na década anterior e só terminou na seguinte, do México ao Paquistão, também já há quem publique investigações sobre a década em que vivemos e a vaga de movimentos sociais e activismo a que assistimos. Movimentos que começaram por responder a uma crise da banca e da dívida e acabaram a pôr em causa a democracia representativa, o capitalismo ultraliberal e a forma como nos organizamos em comunidade, comunicamos, nos movimentamos ou comemos. Era de novo Primavera e 40 anos depois de 68 voltou a ser exigido o impossível. Da Avenida Habib Bourguiba de Tunes às Portas do Sol de Madrid, da Tahrir do Cairo ao Occupy Wall Street, passando pela Avenida da Liberdade e pelo Rossio. Em 2008, falia o banco de investimentos Lehman Brothers. As consequências que muitos recusaram antecipar não demoraram. Bolhas imobiliárias resultaram em casas abandonadas, hipotecas por pagar; um sistema de bolsa com demasiada imaginação e ganância e instituições financeiras foram resgatados com o dinheiro que os governos passaram a dizer não dispor para manter as garantias de um Estado social. Revoltas contra ditaduras desencadeadas pela mistura explosiva de desfavorecidos desesperados e classe média politizada e mantida à margem das decisões políticas. Tudo ajudado pela rapidez com que as redes sociais permitem comunicar, mobilizar e difundir imagens de repressão ou protesto. Uma e outra vez a mesma descrição: “Saí à rua a medo, primeiro não vi quase ninguém, pensei que era um fracasso, depois começaram a aparecer pessoas vindas de todos os lados…”A frase é de Lina ben Mhenni, activista tunisina, mas podia ser do português João Labrincha ou de um dos primeiros espanhóis a acampar no centro de Madrid. É quase igual à que ouvimos em conversa com Alaa al-Aswany, um dos grandes cronistas da revolta egípcia, roubada uma e outra vez pelos militares. Aswany falava do dia em que um milhão fez transbordar a Praça Tahrir do Cairo. Labrincha tem na cabeça o 12 de Março de 2011, data da primeira de várias manifestações, as maiores em Portugal desde o 1. º de Maio de 1974. Para alguns, este ciclo está terminado – outros, como a filósofa Marina Garcés, nascida em Barcelona e a ensinar em Saragoça, olham para o mundo “em insurreição permanente”. Graeme Hayes, investigador na Universidade de Aston, Reino Unido, especialista em movimentos sociais e desobediência civil, acredita pelo menos que os movimentos nascidos do combate às políticas a que chamamos de austeridade se transformou mas permanece de boa saúde e pode ser “remobilizado” assim que for preciso. E esse momento chegará, inevitavelmente. “As contradições do capitalismo não foram resolvidas, as políticas de austeridade não acabaram com os problemas e a crise ainda cá está, latente. Em breve, voltaremos a ser pressionados”, defende Hayes em conversa com o P2. “As críticas à natureza da democracia representativa deixaram marca e foram importantes. ” Hayes já publicou vários artigos sobre os “regimes de austeridade” e o “movimento das praças”. Em Agosto, chegará às bancas o livro Breaking Laws: Violence and Civil Disobedience in Protest, de que é co-autor com as francesas Isabelle Sommier e Sylvie Ollitrault. Se o sociólogo Alain Touraine descreveu aquilo a que se assistiu nos “longos anos 60” – e de que 68 se tornou símbolo – como “novos movimentos sociais”, já há quem chame “novos novos movimentos sociais” ao que vivemos desde o fim da década passada, início da actual, explica Guya Accornero, especialista em sociologia dos movimentos sociais do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE que não gosta especialmente deste termo. “Maio destruiu a hipocrisia moral”, sentenciou um dos líderes da insurreição original, na Universidade de Nanterre, Daniel Cohn-Bendit, que chegou a líder do Grupo dos Verdes no Parlamento Europeu. Para o pai de Antoine Guégan, Gérard, que sem ser estudante acabou quase por acaso a ocupar o campus de Sorbonne-Nouvelle, Censier, foram semanas a falar de “sonhos” e “utopias”, com “toda a gente convencida de que estava a acontecer algo impressionante”. Antoine, 27 anos, a mesma idade que o pai tinha em 68, acaba de passar três semanas no mesmo campus, atrás de barricadas, numa ocupação em protesto contra a nova lei do ensino superior que a polícia antimotim interrompeu a 30 de Abril, um dia antes de Maio. Para este professor em Censier, aluno de doutoramento noutra universidade, pelo menos em França, “a maioria dos estudantes rejeita a aproximação ao Maio de 68”. Acima de tudo, diz, trata-se “da incompreensão face a figuras essenciais do Maio de 68, como Daniel Cohn-Bendit ou Romain Goupil, que se tornaram cães de guarda de [Emmanuel] Macron”. E da convicção de que “a geração de 68 é incapaz de compreender o mal-estar e o descontentamento que atravessa a nossa juventude”. Os jovens que hoje ocupam universidades em Paris inspiraram-se “em alguns dos seus modelos de acção”, tentando, ao mesmo tempo, “afastar-se desta herança pesada”. Quais eram os gritos de 68? Liberdade face a uma sociedade autoritária e conservadora, combate contra as desigualdades e um mundo onde o consumo se impunha como objectivo último, crítica da democracia representativa (com o ideal da democracia permanente ou participativa) e desconfiança face ao poder, a afirmação da autonomia do indivíduo… Solidariedade também, com os operários que em Janeiro tinham erguido as primeiras barricadas e que acabariam por ultrapassaram os nove milhões em greve. E igualdade, não só entre classes mas entre povos. “Somos todos judeus alemães”, gritou-se numa das maiores manifestações de Maio, em Paris, a fazer lembrar o “Somos todos refugiados” dos últimos anos. “Ninguém se apaixona por uma taxa de crescimento”, foi outro dos slogans de 68, a lembrar que os que o fizeram, como os que saíram à rua e ocuparam as praças na presente década, se inscrevem numa história da mobilização social. Que por mais que alguns queiram, o presente bebe do passado e aprende com ele, nem que seja para fazer diferente, para tentar ser mais consequente. Entre uma e outra década, desenvolveu-se o Movimento Antiglobalização ou Movimento de Justiça Global, o combate dos ambientalistas, reanimou-se o Movimento contra a Guerra e o cooperativismo, começaram a surgir iniciativas de economia social. O Maio de 68 também foi uma festa. No pico da crise, as ocupações de praças e as enormes manifestações, os movimentos antidespejo em Espanha ou as revoltas árabes tiveram mais de deprimente do que de festivo, com medidas frequentes a obrigar a um estado de reacção permanente, cargas policiais. . . Mas entre muitas lágrimas e mortos também houve fogo-de-artifício na Tahrir, entre perda de direitos e de qualidade vida, viram-se risos no 12 de Março e ateliers de dança no acampamento dos Indignados. Agora, pelo menos em Portugal, “respira-se melhor”, diz Labrincha. “Há menos fome, menos precariedade, existe uma janela de esperança. Continuamos a ter um desemprego enorme (mascarado) e muita precariedade, mas os pequenos avanços, como a actual solução governativa, ajudam a que haja um espírito menos pesado. Há mais alegria e as dinâmicas são mais de construção do que de contestação”, diz o activista que continua na Academia Cidadã, que co-fundou na sequência do protesto da “geração à rasca”, e se mantém envolvido em diferentes movimentos. Portugal, Espanha, Itália ou Grécia mudaram de forma fundamental nos últimos anos. Em Espanha, o Democracia Real Já! (“o futuro é agora”, gritava-se em 68) e os Indignados deram origem ao que hoje é o terceiro partido do país, o Podemos, de Pablo Iglesias, e as dezenas de movimentos cidadãos que lideram e participam em governos municipais e autonómicos – a eleição de Ada Colau, uma das mais conhecidas figuras da PAH, a Plataforma Anti-Hipotecas que paralisou centenas e centenas de despejos, para a Câmara de Barcelona, foi o expoente desta passagem do activismo à política. Ao mesmo tempo, o renascer da dinâmica de associações de bairros (criadas durante a ditadura) que a crise e o 15-M provocaram não morreu; independentemente do que se possa pensar do processo independentista catalão, sem essa dinâmica de civismo, o referendo ilegal de 1 de Outubro, fortemente reprimido pela polícia, não teria sido possível. Enquanto na Islândia se derrubaram governos e prenderam banqueiros, na Grécia, que sofreu como nenhum outro país europeu a dureza da austeridade, o sistema partidário entrou em colapso, mas o partido que foi farol de toda a esquerda antiausteritária, o Syriza, rapidamente se vergou perante a intransigência da troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional). Em Itália, depois de uma série de primeiros-ministros não eleitos – com o afastamento de Silvio Berlusconi por pressão de Bruxelas e a sua substituição por Mario Monti, no final de 2011, a representar o grau zero da democracia – caminha-se agora para um governo formado pelos mais votados e liderado por um partido populista e fascista, a Liga, em coligação com o Movimento 5 Estrelas, o partido antipartidos e antipolítica – expressão máxima no país do slogan “Não nos representam” do 15-M. O regresso do nacionalismo e do fechar de fronteiras a que assistimos em grande parte da Europa, como na eleição de Donald Trump, são tão consequências da crise como o Podemos, os movimentos Morar em Lisboa ou Stop Despejos! ou o Governo socialista apoiado pelo Bloco de Esquerda e pelo PCP. “Em Portugal, o impacto foi diferente do que em Espanha, onde a cultura de activismo é maior, o que tem que ver com a transição. Mas foi enorme. Sem 12 de Março e Que Se Lixe a Troika, não teria havido ‘geringonça’ e o país não teria o único Governo não austeritário da Europa”, sustenta Guya Accornero. A investigadora e professora lembra que entre os primeiros subscritores do Que Se Lixe a Troika já estavam políticos, como a vereadora da Habitação de Lisboa, Paula Marques. “O movimento integrou actores que dentro das instituições já defendiam e preparavam caminho para novas soluções de governo” – a sua concretização é a grande consequência. Mas Accornero aponta para movimentos relativamente novos, como o Habita e o Stop Despejos!, que “já fazem um trabalho incrível quando o direito à habitação está cada vez mais em risco”. Labrincha fala de um activismo que se abriu, saiu de Lisboa e do Porto, e se atomizou em movimentos que trabalham em diferentes áreas, chegando assim cada vez a mais gente. E sim, também ele, um dos organizadores do 12 de Março, acredita que sem esse dia o Governo actual nunca teria existido. Lembrando os obstáculos enfrentados por menos de meia dúzia de “putos mal chegados a Lisboa” até serem levados a sério e encontrarem pessoas como Raquel Freire e Sérgio Vitorino, especialmente activos no movimento LGBT, que acreditaram neles e, de certa forma, os “validaram”, Labrincha sabe que foi tudo muito rápido. O protesto foi organizado e promovido entre o início de Fevereiro e a data do tudo ou nada, mas na sua cabeça ficou “a sensação de meio ano de trabalho com poucas horas de sono”. O dia 12 de Março, a partida no Marquês de Pombal, as pessoas que chegavam à Avenida da Liberdade pelas laterais, aquela gigantesca massa humana mudou-o para sempre. “Foi o dia mais incrível da minha vida e um momento que recordo até hoje com muita emoção”, descreve. “Foi extraordinário. E foi o momento em que percebi que a minha vida seria dedicada ao activismo. Isso também trouxe um peso, uma responsabilidade, mas que eu tenho prazer em assumir. ”Sem o apoio de gente que não quis dar a cara, mas que os ajudaram a chegar à imprensa e a outros activistas, nada teria sido possível. “Mas também só tivemos o sucesso que tivemos por causa da nossa espontaneidade, por usarmos uma linguagem nova, sem vícios, por tudo o que nos fez ser e parecer algo realmente diferente”, analisa. Depois há o orgulho. Aos 27 anos, idade que tinha em Março de 2011, Labrincha sente que ajudou a “fazer a ponte entre as Primaveras Árabes e os protestos em Espanha”, que começariam em Maio, “ou os movimentos Occupy” em Londres, Washington e, com menos dimensão, em cidades de toda a Europa, ou, mais tarde, o próprio movimento do Parque Gezi, de Istambul. O que nos revolta hoje não é, afinal, assim tão diferente do que revoltava quem fez o Maio de 68. Faltam-nos as estruturas tradicionais, sindicatos e partidos, ganhámos as redes sociais e soubemos reinventarmo-nos. Mas, como lembra Antoine, “o contexto económico degradou-se e a nossa geração só conheceu uma sucessão de crises económicas, políticas, sociais e ecológicas, e é verdade que se instalou um cansaço geral face ao discurso permanente de crise”. Actualmente, e apesar desse cansaço, face “a políticas tão impávidas quanto insolentes e depreciativas em relação à juventude do país”, o movimento estudantil só pode crescer. Hoje, o que mobiliza os estudantes franceses é a lei “que visa excluir as classes mais desfavorecidas da universidade, permitindo ao Estado diminuir o número de estudantes e o orçamento para o ensino superior”. Isto num país que se habituou a ver a sua universidade como “lugar onde todos têm hipóteses de sucesso”. Para Antoine, prova da incompreensão dos políticos “é a repressão policial muito forte, uma violência” que leva os “estudantes a levantar o tom e a procurar novas formas de luta”. Ao mesmo tempo que “demonstra como a democracia francesa está doente”. Habitualmente, a repressão provoca uma escalada dos protestos. Aconteceu em Gezi, quando uma concentração numa cidade se alastrou a 60 províncias; em Atenas (onde foram mortos manifestantes logo em 2008); aconteceu durante algum tempo em Espanha; na Tunísia ou no Egipto. Em Lisboa chegou a haver cargas policiais. Mas a repressão também pode assustar, como a brutal resposta do regime sírio a protestos pacíficos travou movimentos de protesto noutros países árabes. “Se esta situação de força se mantém, eu deveria, para manter a República, tomar, de acordo com a Constituição, outras vias para além do escrutínio imediato do país [legislativas antecipadas]. Em todo o caso, por todo o país, e em seguida, deve organizar-se a acção cívica”, foi o discurso pronunciado na rádio pelo então Presidente Charles De Gaulle, citado por Laurent Joffrin no livro Maio de 68. Uma História do Movimento. Era 30 de Maio e nessa noite dezenas de milhares de gaullistas concentraram-se nos Campos Elísios. “A festa terminou”, escreve Joffrin. Ao agitar o fantasma da guerra civil, De Gaulle “levantou o tabu da morte humana”. “Ninguém até então tinha querido matar; ele fá-lo-ia, se necessário. O Maio de 68 não é uma luta de morte para ninguém. É uma insurreição do verbo. […] Os revolucionários de Maio estão dispostos a tudo menos à verdadeira revolução”, escreve. Na última década morreu-se muito. Na Tunísia, no Egipto, na Síria, no Iémen, na Turquia, mas também na Grécia onde houve mortes às mãos da polícia mas também de frio ou fome. Em Barcelona, nos acampamentos dos Indignados, houve gente a perder a vista com balas de borracha disparadas pela polícia, o que na Tahrir sucedeu com dezenas de activistas e agora voltou a acontecer com uma pessoa, no referendo de 1 de Outubro, na capital catalã. O movimento independentista dos últimos anos que provocou a maior crise política em Espanha desde a transição e a detenção de inúmeros dirigentes políticos acusados de insurreição não se enquadra no movimento antiausteridade ou nos protestos das praças. Mas foi a crise, aliada à descrença no Governo central, que o alimentou. Os mesmos motivos, exacerbados por denúncias de corrupção, má gestão e impunidade que levaram ao nascimento do 15-M e contribuíram para as revoltas que começaram no Magreb. O que a maioria dos catalães quer é o direito a votar sobre o seu futuro político. Claro que nada é assim tão simples. O que alimenta este desejo é a possibilidade de um sonho, de começar de novo, de sentir que tudo é possível, como em 68 ou em Janeiro de 2011 na Tunísia. “O Maio de 68 foi vivido por muitos como o momento zero de choque cognitivo: ‘Tudo é possível’”, diz Accornero. Sobre a Catalunha: “Julgo que isto acontece em momentos em que as pessoas deixam de confiar nas instituições e não há nenhuma força que as mantenha de pé. São momentos de crise, ruptura, incerteza e grandes expectativas. Se nós não reconhecemos as instituições, estas sofrem um abalo. ” Em democracia, as estruturas precisam na nossa confiança para se legitimarem. Ora, muitos catalães deixaram de reconhecer Madrid. Mas a história desta década faz-se precisamente de contestação da autoridade, das instituições, da ideia de inevitabilidade que os políticos, um pouco por todo o mundo, tentaram vender às suas populações. Na Europa e nos Estados Unidos, “desresponsabilizando-se e cedendo o seu poder às grandes corporações e às instituições financeiras, aos mercados”, diz Graeme Hayes. Entretanto, como sublinha Labrincha, o estigma que ainda sobrevivia sobre a ideia de activista ou activismo começou a desaparecer, “apropriado até pela própria publicidade” ou “legitimado”, como lembra Accornero, pela escolha da revista Time para Pessoa do Ano, em 2011, “O Manifestante”. Ao mesmo tempo, defende Hayes, “a desobediência civil, uma técnica de protesto não violento que permite a pequenos movimentos serem mais eficazes e visíveis”, também começou a ser vista cada vez por mais gente como “legítima”, uma forma de sublinhar “que é o próprio Estado que está a abusar da lei”. Em Espanha, isso foi uma constante, das tentativas para impedir despejos executados por polícias aos movimentos criados para recusar pagar um novo imposto, o “euro por receita” (que a Justiça acabaria por considerar inconstitucional), aos médicos que recusaram cumprir a lei que os impedia de atender pessoas em situação irregular. Com consequências como sentenças judiciais a anular leis, juízes a procurarem formas criativas para não fazerem cumprir leis injustas (e contrárias aos direitos humanos), desobedecer passou a ser visto como uma forma de defender a democracia. A desobediência civil, nota Hayes, concretiza-se quase sempre por uma “ocupação de espaço, um reclamar do espaço público, mostrando que se tem legitimidade para o fazer e produzindo diálogo nesse processo”. Trata-se de uma técnica muito “tangível” e que “muitas vezes leva à detenção, o que obriga os envolvidos a explicar-se publicamente” e assim promover a sua causa. Olhando para a desobediência como “uma forma legítima (porque não é violenta) mas de alto risco de praticar activismo”, Hayes lembra que quem o faz “inscreve a sua própria história noutra, que remete para Ghandi e Martin Luther King”. A ocupação do espaço público, a conquista das praças, “é uma forma de dizer ‘isto pertence-nos’”. Face a uma democracia que perdia o demos, “o povo”, o povo recuperou a agora. As decisões importantes nas Portas do Sol eram tomadas por votação de braço no ar, na Tahrir chegaram a organizar-se consultas em urna, na Academia Cidadã tudo se decide por consenso. Accornero fala dos limites de um ciclo de protestos transnacional (e não internacional) em que os temas globais se unem às preocupações locais. Apesar da partilha de experiências e modos de actuação, é difícil pensar num movimento unido em torno de um tema essencial. Antoine também defende que, apesar de haver “um movimento global, é difícil para já antecipar uma convergência de lutas de um ponto de vista mundial”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Hayes lembra que o que de bom saiu da crise de refugiados na Europa foi a criação de um activismo transnacional, com novas ONG e activistas “a perceberem que o Estado-nação não era a forma ideal de luta”. A Academia Cidadã, com sede em Lisboa, integra o Fórum Cívico Europeu que “faz lobby junto dos eurodeputados e da própria Comissão Europeia em temas como políticas de habitação ou a necessidade de democratizar a própria UE e abrir as instituições europeias à participação cívica”. E se Hayes acredita que o “movimento das praças” está aí para ser remobilizado a qualquer momento, Labrincha deixa um aviso: “Imagino que um próximo Governo mais conservador em Portugal deva ter medo. Agora, há raízes e bases que não tínhamos. No momento em que voltar a ser preciso reagir, isso vai acontecer com muito mais força e foco. ” Entretanto, pelo menos na Catalunha, onde o último governo eleito está entre a prisão e o estrangeiro, vai continuar a gritar-se: “As ruas serão sempre nossas. ”Brevemente, em Bruxelas, no Museu da História Europeia, passarão a estar expostos alguns cartazes do 12 de Março, conta Labrincha. Talvez lá vá parar aquele onde se lia “Inevitável é a tua tia”, repto claro e directo aos políticos para voltarem a fazer aquilo que os eleitos deles esperam, decidir, fazer opções ou, simplesmente, fazer política.
REFERÊNCIAS:
Partidos PCP
Extremo ocidental: Na praia, sem nada
De Caminha a Sagres, é possível viajar quase sempre à beira-mar. Durante cerca de 800 quilómetros, até Setembro, vamos percorrer a costa ocidental portuguesa, com uma moto, uma tenda e um bloco de notas. (...)

Extremo ocidental: Na praia, sem nada
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento -0.06
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: De Caminha a Sagres, é possível viajar quase sempre à beira-mar. Durante cerca de 800 quilómetros, até Setembro, vamos percorrer a costa ocidental portuguesa, com uma moto, uma tenda e um bloco de notas.
TEXTO: Havia duas maneiras de fazer esta viagem: de Caminha a Sagres, ou de Sagres a Caminha. A escolha era totalmente livre, parecia-me. Mas logo me fizeram ver que não era bem assim. Seria estranho avançar do Sul para o Norte. Por alguma razão, o normal seria começar no Minho e terminar no Algarve, disseram-me. Por alguma razão, em Portugal, quando alguém parte, parte para sul. Não sei se esta lógica se funda nos habituais trajectos de férias, nos vectores dos fluxos migratórios das últimas décadas, ou nas pulsões ancestrais da Reconquista, mas a verdade é que há algo de libertador no acto de rumar a sul. Quando se progride no terreno, sente-se que cada etapa é uma vitória, uma ascensão a esferas mais limpas e puras. Há um despojamento, um abandono de bagagem, à medida que avançamos para o meridiano, que no entanto é uma miragem que se afasta. O que vem a seguir é sempre experimentado como uma espécie de recompensa. A cada cem quilómetros entramos num novo círculo, pleno de características, marcas específicas inconfundíveis, ainda que ilusórias, definidas pela sua posição geográfica relativa e a direcção de onde se provém. É assim que, a partir de Santa Cruz, nos sentimos chegar ao Sul. A paisagem altera-se, faz-se mais árida e plana, a luz torna-se mais clara. Seguindo pela Estrada Nacional 247, junto às arribas de Ribamar e da Ericeira, parece no entanto ter-se entrado numa zona de transição. É uma área de excepção, diferente, com personalidade de oásis, que liga, ainda que numa estranha atitude de ruptura, os pinhais e as dunas do Norte com as planícies arenosas do Sul. Aqui, ao contrário de quase toda a orla costeira portuguesa, a terra chega verde até ao mar. Há campos agrícolas muito próximos das praias, vegetação densa e fresca cobre o dorso das falésias, que surgem em cortes abruptos, sem transições dunares, ou de plantas de zonas secas, como se o mar aqui tivesse chegado há pouco tempo. Faz lembrar, mais do que outras zonas do litoral português, as Rias Altas da Galiza, ou os tons contrastados da húmida costa cantábrica. É nestes caminhos traçados em terrenos altos, em que, de braços abertos, quase podemos tocar os campos de milho e a água, que nos sentimos seres de vários mundos, capazes de compreender o continente e o mar, a Europa e o Atlântico, e os seus nexos subtis e inquebráveis. A serra de Sintra cria e abriga este mundo de neblinas, e define-o como um pequeno “Norte”, por oposição ao “Sul” da Linha do Estoril. O cabo da Roca marca a divisão. A praia da Adraga, a Praia Grande e a Praia das Maçãs, tal como a Ericeira e todas as estâncias a norte da serra, são húmidas e ventosas, e inauguram até os seus dias de Verão com densos nevoeiros. Se obedecermos ao percurso ribeirinho, saindo da EN246 para as praias de Sintra, e daí tomar a estrada da montanha que vai ao cabo da Roca, desce pelas aldeias da Azóia e da Atalaia até ao Guincho, e daí até Cascais, pode quase sempre observar-se a mudança climática a olho nu. Descendo pela Malveira da Serra, é frequente acontecer sairmos de uma nuvem, como quem aterra numa superfície com luz própria. Depois, se olharmos para trás, lá está a aura de fumo sobre a serra, a nuvem endémica e espessa que nos faz acelerar convictamente para sul. A marginal que liga Cascais a Lisboa é um universo à parte, com os seus superlotados bares de praia, os seus hotéis de luxo e apartamentos de milhões de euros. Também isto contribui para que olhemos a zona como um outro “Norte”, em relação ao “Sul” que é a Costa de Caparica, o Meco e Sesimbra. Nestes raciocínios subjectivos, a serra da Arrábida funciona como a némesis da serra de Sintra. Se esta invoca atmosferas góticas do Norte da Europa, aquela é toda Mediterrâneo, Grécia e Palestina. O percurso a seguir é pela Ponte 25 de Abril, chegando à Costa de Caparica por Cacilhas e Cova do Vapor (ou, em abreviatura preguiçosa, pela auto-estrada directa para a Caparica). Se exceptuarmos o interregno constituído pelo eixo Sintra-Cascais, todas estas praias a sul da Nazaré, designadamente Santa Cruz, Ericeira e Caparica, projectam uma imagem de desleixo, caos urbanístico, falta de estruturas de desporto e veraneio, incúria das autoridades municipais, má qualidade das construções. Que diferença entre estas praias da zona de Lisboa e as de Esposende, Vila do Conde, Francelos, Miramar, Espinho ou Figueira da Foz. Neste capítulo, descer a EN246 depois da Estrada Atlântica da Costa de Lavos significa passar da civilização para a barbárie, e a libertação, claramente, consiste em rumar a norte. A estrada que une a Costa de Caparica à Fonte da Telha dá acesso a praias incríveis, de areais imensos e dunas, ligados sem interrupção. É uma zona ambiental protegida, pelo que não há construção para além dos bares de praia. Mas existe o sinistro parque de Campismo da Caparica, pertencente ao Clube de Campismo de Almada, onde milhares de pessoas vivem em “alvéolos” pegados uns aos outros como num campo de refugiados, e há todo o bairro clandestino da Fonte da Telha. Aqui, em plena zona protegida das Arribas da Caparica, há centenas de casas e barracas, terrenos com caravanas, construções em tijolo e chapa, e até mansões com piscina. Os terrenos ocupados e apropriados são depois vendidos, trocados, aumentados. Há quem vede um espaço, o atafulhe de roulotes e tendas e o arrende à semana, ao mês ou ao ano, a turistas no Verão, ou a novos moradores, expulsos de várias regiões pelo desemprego e a crise. Desde uma série de demolições ocorridas em 1982, as autoridades resolveram deixar em paz os habitantes do bairro da Fonte da Telha, por não ter solução para eles. António Amorim, presidente da Associação de Moradores da Fonte da Telha, e uma espécie de autoridade suprema e informal do bairro, disse-me que está prevista para 2017 uma nova acção na urbanização clandestina, decorrente da aprovação no novo Plano de Pormenor para a zona. Até lá, só pede que asfaltem a única estrada de acesso, para que a “povoação” não viva permanentemente envolvida em poeira. “Aqui tudo é ilegal”, diz ele. “Vivemos com uma espada em cima da cabeça. Nós não mandamos nada. Um ministro pode vir aqui e dar ordem para demolir tudo no dia seguinte. Mas isso não impede as pessoas de tentarem melhorar as suas casas e as suas condições de vida. Por isso fazem obras, prolongam os seus alojamentos, para receberem novos familiares e amigos, que precisam. Mas não são pessoas de fora. São apenas as velhas famílias de pescadores desta terra, e os seus filhos e famílias, que vão crescendo. ”Vivemos com uma espada em cima da cabeça. Nós não mandamos nada. Um ministro pode vir aqui e dar ordem para demolir tudo no dia seguinteHá anos, esta Comissão de Moradores teve alguma força, contactou as autoridades, informou os media. Agora está em decadência. “Os jovens não querem saber de nada, não se reúnem connosco, para resolver os problemas”, diz Amorim, que tem 82 anos e é dono do enorme restaurante Amorim, que começou por ser uma barraca. “Já não conseguiremos resolver nada. Isto não tem solução, por causa das autoridades da zona protegida. A gente desse gabinete não tem nenhuma compreensão pelo que se passa aqui. Querem saber da natureza, mas não querem saber das pessoas. Por isso isto não vai ter nenhuma solução. ”Há anos, um bem-sucedido empreendedor do bairro começou a construir um gigantesco palacete na encosta, decorado com uma colossal escultura de uma ave (talvez uma gaivota, ou uma águia) saindo da parede central. Até a Câmara de Almada, que nunca faz nada quanto às construções que nascem todos os dias, parece ter achado que aquilo era demasiado, e embargou a obra. Resta agora uma ruína em tijolo e cimento, com o enorme o pássaro de asas abertas, em frente do mar. Em poucos lugares do país é tão evidente o contraste entre o esplendor da natureza e a miséria humana. Só muito mais à frente se recupera a harmonia. Só após o estuário do Sado, depois da travessia no ferry-boat para Tróia, seguindo ao longo da costa da Comporta, voltamos a ter ordem e beleza, talvez porque as barreiras naturais reservaram estas regiões para os ricos, ou os muito pobres. A pressão urbana ficou detida nas escarpas da Arrábida, que deixaram para trás a luta pela sobrevivência, a lei da selva, o desespero da concorrência pelos bens escassos, e abrem o caminho para, agora sim, o verdadeiro Sul. Mais uma ilusão produzida pela viagem, agora formada por solidão, planície, casas caiadas, sombras definidas e mar turquesa. O Sul. Uma doçura que só tem equivalente nas praias a norte de Viana do Castelo. Mas aqui há mais distância à nossa frente. Teremos a imensidão da costa alentejana e vicentina, podemos deslizar em paz pelo Sul, o grande Sul português. É um milagre que tudo isto tenha sobrevivido. Onde estão os hotéis hediondos, os prédios encavalitados, as rotundas e os centros comerciais? Nada. Há apenas o necessário, as estruturas que permitem viajar, comer, dormir, habitar. Ou talvez isto seja um exagero, apenas mais uma ilusão do viajante. A sensação, que a moto oferece, de planar sobre uma terra primordial, limpa e cristalina. Tudo isto nos reconcilia com o que ficou para trás. Recobramos a força, aceitamos, com uma espécie de indulgência criativa, o país a que pertencemos, porque existe esta beleza preservada. Nada está perdido, enquanto for possível conduzir uma moto pela estrada a sul de Sines, por São Tormes, ondulando pelas curvas até Porto Covo. Aí, na aldeia que se popularizou e cresceu por efeito de uma canção, encontramos o equilíbrio urbanístico próprio das povoações alentejanas, mesmo quando se trata de construções novas e modernas. Quem, vindo de todas as regiões, escolhe Porto Covo para passar férias, parece animado por uma filosofia, provavelmente extraída do poema de Carlos T. “Venho para cá todos os anos”, diz Carlos Pereira, 48 anos, professor do Porto. O naturismo ajuda a transformar as relações sociais. Ao colocar os preconceitos de lado, elas concentram-se no que é mais verdadeiro e importante. O naturismo é uma grande arma contra a hipocrisiaCarlos, a mulher e a filha vão muitas vezes para a Praia do Salto, uma das várias entre as falésias a norte da povoação. Situa-se entre as praias do Cerro da Águia e Cerca Nova, tem acesso por uma longa escadaria de madeira, e é uma das sete praias oficialmente nudistas em Portugal. Destas, não há nenhuma a norte do Meco (junto a Sesimbra) e da Bela Vista (ao lado da Fonte da Telha). A maioria das praias nudistas, ou naturistas, situa-se na costa alentejana e algarvia. Poucos quilómetros a sul da Praia do Salto, encontramos a das Adegas, contígua à praia de Odeceixe. Ao contrário de todas as outras, que são frequentadas maioritariamente por estrangeiros, jovens “alternativos” e casais acima dos 60 anos, a do Salto é essencialmente uma praia familiar. As pessoas provêm de várias regiões do país, mas conhecem-se, na sua maioria, porque vêm para cá todos os anos, e têm a consciência de pertencerem a um determinado grupo e a um movimento. “Para nós, o naturismo é uma filosofia de vida”, diz Carlota, uma designer de 36 anos que vive na zona de Lisboa. Veio com o marido e os dois filhos, ficará alguns dias, antes de partirem para as outras praias nudistas, ao longo da costa, rumo a sul, até à da ilha de Tavira. “Além da sensação de liberdade, da saúde e bem-estar físico que proporciona, acreditamos que o naturismo ajuda a transformar as relações sociais. Há um convívio diferente entre as pessoas. Ao colocar os preconceitos de lado, elas concentram-se no que é mais verdadeiro e importante. O naturismo é uma grande arma contra a hipocrisia. ”A meio da tarde, a praia está cheia. Não é um areal grande, pelo que não há a dispersão que vemos no Meco, em Odeceixe ou em Tavira. Aqui as pessoas estão próximas e, como se conhecem, falam umas com as outras, dentro de cada grupo, mas também entre grupos. Uma família no centro da praia inclui pais, filhos, avós e uns primos, instalados noutro canto, perto das rochas. As crianças de uma família brincam com as de outra. Os adolescentes de dois grupos juntam-se para jogar cartas, sentados em roda. Todos nus, é claro, embora ninguém repare nisso. Grupos de homens, geralmente acima dos 50 anos, juntam-se à beira da água a conversar. Estão muito bronzeados, integralmente, e não parecem sentir qualquer constrangimento com as particularidades anatómicas de cada um. Há quem se desloque de um grupo para ir meter conversa com outro. Quem se sente junto de outra família, para partilhar o lanche, mostrar uma imagem no telemóvel, ou emprestar um livro, ou uma revista. Os pais brincam com os filhos, crianças ou adolescentes, sem evitar o contacto físico, sem embaraço ou vergonha. Por vezes, ao ver os grupos humanos deitados na areia, com os seus corpos quase sempre imperfeitos movendo-se com naturalidade, vem à cabeça de um repórter ainda muito imbuído de preconceitos da sociedade do pudor a imagem de grupos de animais relaxando à beira da água. Passando a óbvia incorrecção política da metáfora, ela não deixa de sugerir a questão: o nudismo desumaniza-nos?Mark, um holandês de 55 anos que acaba de sair da água com a mulher e a filha de 19 anos, responde à pergunta. “O naturismo devolve-nos a humanidade. Olhe à volta, repare bem. Veja como todo o comportamento é tão humano. ”Mark é um intelectual e um activista. O nudismo é para ele um acto político. “As pessoas vestem-se, na nossa sociedade, para marcar relações de poder e dominação. A origem dos trajes é a necessidade de esconder o corpo da mulher, para manter a posse sobre ele, por parte do homem. Tratava-se de guardar e proteger a propriedade, impedindo a usurpação, por parte de outros machos, e a liberdade da mulher, enquanto ser humano autónomo. E com a simbologia das roupas geriu-se, ao longo da História, todo um tráfico dos corpos e das individualidades. ”Na sequência destas considerações, despirmo-nos é um acto simbólico de revolta. “Note como as pessoas, sem roupa, passam a agir com muito mais autenticidade. Não mostram arrogância e prepotência umas com as outras. Não ostentam poder, mas também não têm medo. É como baixar as armas. As pessoas ficam sem nada, excepto a sua humanidade. É só isso que trazem para aqui, mais nada. E com isso ficam mais ricas. ”Na presença de tal teórico, e vendo como a filha não parece tão descontraída como os pais atravessando nua a praia, por entre os banhistas, aproveito para lhe colocar uma questão que me confunde. Uma vez, numa reportagem com o INEM, vi trazer para a ambulância uma mulher de mais de 80 anos, que tinha perdido os sentidos em casa, devido a uma crise cardiorrespiratória. Quando a mulher foi colocada na maca pelos técnicos de emergência médica, a sua camisa de dormir levantou-se até ao cimo das pernas, deixando as cuecas à vista. Foi nesse momento que a mão daquela mulher, que estava inconsciente, surgiu de repente, das profundezas da sua quase-morte, a puxar freneticamente a saia para baixo. Será possível que o pudor seja uma coisa natural? Mark não se comoveu com a história. “Essa mulher foi condicionada durante toda a vida. Convenceram-na de que perderia a sua dignidade, se o seu corpo fosse visto por alguém. ”É possível ser-se condicionado até à morte? “Sim. Nem a morte nos liberta. É enquanto estamos vivos, enquanto temos forças, que temos de quebrar as algemas. ”O importante não é tirar a roupa. O importante é sermos capazes de nos aproximar uns dos outros sem nada nas mãos, nada no corpoCarmen e Maria, espanholas na casa dos 30 anos, procuram sempre praias nudistas, quando fazem férias juntas. Não fornecem explicações políticas, como Mark, mas a sua lógica parece confirmar a dele. “Como somos lésbicas, aqui sentimo-nos muito mais à vontade. Há sempre muitos casais gay nas praias naturistas, por essa razão. Aqui ninguém nos julga, nem nos sentimos diferentes ou estranhas. ”Tudo se passa como se, eliminadas as roupagens, fossem também neutralizadas as regras e os códigos de comportamento convencionais. Alguém que não está interessando em jogar com essas regras sente-se aqui mais livre. “Aqui somos olhadas como pessoas normais”, diz Maria. “Como pessoas. ”De vez em quando, no cimo das falésias, surgem os inevitáveis mirones, especando em transe pasmado, ou não resistindo a fotografar, com os telemóveis. Neste caso, alguém dá um alerta, e toda a praia desata a gritar e a assobiar. “Não, não! Estás a fotografar o quê? Vai-te embora!” As crianças, em especial, parecem adorar estes momentos. Gritam com orgulho, muito compenetradas do seu papel, as frases que já ouviram gritar, várias vezes por dia. “Vem cá abaixo tirar uma selfie!”São as únicas alturas em que a praia nudista funciona como tribo. Unidos contra um inimigo comum. Chegam a parecer um grupo fechado e preconceituoso, no zelo exagerado com que defendem a sua liberdade. Quando o mirone foge, envergonhado, riem e conversam uns com os outros sobre o caso, com expressões de indignação. “Se toda a gente fizesse nudismo de vez em quando, o país estaria bem melhor”, diz Carlota. “Se as pessoas voltassem à estaca zero, se se despojassem de tudo, voltassem à sua essência, seria mais fácil pensar, resolver os problemas. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Carmen mantém as pernas entrelaçadas nas de Maria enquanto diz: “O importante não é tirar a roupa. O importante é sermos capazes de nos aproximar uns dos outros sem nada nas mãos, nada no corpo. Sermos nós, sem mais nada. ” Carlos, que se aproximou delas, acrescenta: “E ser capaz de vaguear sem horas marcadas pela costa alentejana. ”Só depois do pôr do Sol é que os nudistas abandonam a praia. Um a um, sobem a estreita escada de tábuas. Só um rapaz muito magro, de cabelo comprido, fica no areal. Tem uma pequena tenda, está ali a viver. Aquece uma chávena de chá numa pequena fogueira junto aos rochedos e acena-me, quando por fim também eu começo a subir a escada. Opto por não o entrevistar. Está tudo dito no seu silêncio. É tempo de amarrar a mochila à moto e rumar a sul.
REFERÊNCIAS:
Tsunami na Indonésia matou pelo menos 429 pessoas, e o vulcão continua a rugir
Cães pisteiros, drones e maquinaria pesada estão a ser usados para procurar vítimas soterradas, e há milhares e pessoas em abrigos. Continua a não ser seguro ir para as zonas costeiras, porque pode haver novos tsunamis. (...)

Tsunami na Indonésia matou pelo menos 429 pessoas, e o vulcão continua a rugir
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento -0.25
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Cães pisteiros, drones e maquinaria pesada estão a ser usados para procurar vítimas soterradas, e há milhares e pessoas em abrigos. Continua a não ser seguro ir para as zonas costeiras, porque pode haver novos tsunamis.
TEXTO: Estão a ser usados drones e cães farejadores para procurar vítimas soterradas, e o último balanço feito pelas autoridades é de que pelo menos 429 pessoas tenham morrido por causa do tsunami que atingiu a Indonésia no sábado. Há ainda 1485 feridos e 154 desaparecidos, mas é provável que estes números venham a aumentar. As buscas por sobreviventes continuam até ao final desta semana, ainda que as autoridades locais admitam que a probabilidade de encontrar alguém com vida é “diminuta”. O vulcão Anak Krakatau continua a expelir grossas nuvens de cinza. Foi o colapso de uma parede lateral do vulcão, provocando um deslizamento de terras, que tenha estado na origem do tsunami que atingiu as ilhas de Java e Samatra. Na segunda-feira, as autoridades indonésias confirmaram que este foi o mecanismo que criou as ondas destruidoras. A agência meteorológica diz que uma área de cerca de 64 hectares, o equivalente a 90 campos de futebol, tinha colapsado e caído no fundo do mar. Os socorristas estão a usar máquinas pesadas, cães pisteiros e câmaras especiais para detectar e desenterrar corpos soterrados pela força devastadora das águas e das lamas que arrastam ao longo de uma faixa de 100 km na costa ocidental de Java, diz a Reuters. A destruição é bem visível ao longo da costa, onde ondas de dois metros esmagaram veículos, deitaram árvores abaixo, ergueram grandes pedaços de metal, vigas de madeira e arrastaram móveis e objectos que estavam nas habitações e deixaram-nos espalhados nas estradas e nos arrozais. A busca deverá em breve ser estendida mais para Sul. “Há vários locais que pensávamos que não tinham sido afectados, mas estamos a chegar a zonas cada vez mais remotas, e na verdade há muito mais vítimas”, disse Yusuf Latif, porta-voz da agência nacional de protecção civil indonésia, citado pela Reuters. As autoridades não descartam a possibilidade de haver novos tsunamis. “Uma vez que o Anak Krakatau entrou em actividade, não é de excluir essa possibilidade”, disse à Reuters Hermann Fritz, geólogo do Instituto de Tecnologia da Geórgia, nos EUA. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mantém-se por isso o aviso para que os habitantes não regressem à costa, e há milhares de pessoas em tendas e abrigos temporários, que funcionam em mesquitas ou escolas, por exemplo. “Está toda a gente em pânico”, disse um responsável municipal na cidade de Labuan, Atmadja Suhara, que está a ajudar a tomar conta de 4000 refugiados. A Indonésia está numa zona de especial actividade sísmica, mas como este tsunami não foi precedido por um tremor de terra significativo, não houve alerta, porque os sistemas de aviso dependem da detecção de actividade sísmica. As autoridades chegaram a confundir inicialmente o tsunami com uma maré crescente e chegaram a apelar à população que não entrasse em pânico. O pior tsunami na Indonésia aconteceu em 26 de Dezembro de 2004, após um gigantesco sismo de 9, 1 na escala de Richter, com epicentro em Aceh, que afectou uma vasta área do Sudeste asiático. Causou cerca de 230 mil mortes numa dezena de países banhados pelo Oceano Índico, dos quais 168 mil em território indonésio.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Portugal, o país pobre, bonito e honrado da "National Geographic"
Quando o mundo descobriu África, a "National Geographic" andou por Angola e Moçambique. Quando quis conhecer Mao, foi espreitá-lo em Macau. Na guerra, visitou Lisboa, um ninho de tranquilidade e de espiões na Europa. As mulheres eram bonitas. O país, esse, era atrasado, analfabeto, sem infra-estruturas. Um retrato de Portugal de 1907 à encruzilhada - a guerra colonial, o fim do Império. (...)

Portugal, o país pobre, bonito e honrado da "National Geographic"
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 5 | Sentimento 0.224
DATA: 2010-05-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Quando o mundo descobriu África, a "National Geographic" andou por Angola e Moçambique. Quando quis conhecer Mao, foi espreitá-lo em Macau. Na guerra, visitou Lisboa, um ninho de tranquilidade e de espiões na Europa. As mulheres eram bonitas. O país, esse, era atrasado, analfabeto, sem infra-estruturas. Um retrato de Portugal de 1907 à encruzilhada - a guerra colonial, o fim do Império.
TEXTO: Foi apenas por ter havido uma revolução que a "National Geographic" se debruçou pela primeira vez sobre Portugal. Relevando uma capacidade notável de adaptação à rapidez da História, a revista norte-americana conseguiu incluir um artigo, na sua edição de Outubro de 1910, escrito originalmente para a publicação The Contemporary Review, de Edimburgo. Caída a monarquia, quis a publicação relatar que pequeno país era este, cheio de glórias passadas. A introdução ao texto ("The Greatness of Little Portugal") começa logo por explicar que os portugueses, cuja população cabia em Nova Iorque, tinham as maiores cabeças da Europa mas eram os mais baixos. A partir de Portugal, os navegadores tinham achado o Brasil e descoberto o caminho marítimo para a Índia. No entanto, no início do século XX, três quartos da população com mais de seis anos não sabiam ler nem escrever. Quando opta por incluir Portugal nas suas páginas, forçada pela actualidade, a publicação norte-americana de base científica tinha já 22 anos de idade. No entanto, o mundo parecia então maior e havia muitos outros assuntos por analisar. Além disso, só 11 anos antes é que a revista, presidida por Graham Bell (a quem se atribui a invenção do telefone) e cujo editor era Gilbert H. Grosvenor, decidira abandonar os "frios factos geográficos. " A partir daí, assumia-se como veículo de divulgação, verdadeira e de interesse humano, de todos os aspectos deste "nosso maravilhoso planeta". O Portugal relatado na edição de Outubro de 1910 é ainda o de um reino, já que o autor, Oswald Crawfurd, não teve tempo de fazer a devida actualização política. Crawfurd equilibra os dados básicos da História de Portugal com informações úteis ao viajante. Fica-se a saber que quem fale espanhol será facilmente entendido, mas não irá perceber nada do que lhe é dito, e que os nomes das estações de comboio não eram anunciados em voz alta, pelo que o mais certo era ir parar a um destino indevido em caso de desatenção. Passando por cima da História, o retrato de Crawfurd pode ser descrito da seguinte maneira, algo familiar: Portugal é um país pobre mas bonito, tolerante, honrado e hospitaleiro. E a verdade é que as descrições feitas pelos posteriores enviados da National Geographic nas décadas seguintes não irão mudar muito. Mal governadosO Portugal apresentado em 1910 é um país rural, onde as técnicas ainda são "as mesmas desde os tempos dos romanos", com regiões mais ricas, como o Douro. As pessoas "são deploravelmente mal governadas", com os partidos políticos infestados de subornos e corrupção, e o país, na corrida contemporânea das nações para o bem-estar, não atingiu nenhum marco significativo. Já o povo, diz o autor, é perspicaz, um "sofredor de longo curso", e dos menos "antipatrióticos do mundo". Maravilhado pela capacidade dos artesãos, sejam eles joalheiros ou carpinteiros, Crawfurd defende que Portugal não é, como alguns pensariam, "uma Espanha de segunda classe", com gente preguiçosa, má literatura e uma linguagem feia. Simplesmente, diz, o português dificulta a compreensão do país por parte dos estrangeiros, já que poucos o falam, e é menos alvo de atenção devido à sua reduzida dimensão e importância na Europa. E para que não restassem dúvidas de que Portugal era uma das apostas da edição de Outubro de 1910, a revista inclui ainda um artigo sobre as florestas e jardins de Portugal, escrito por Martim Hume em 1908. Destacando o exotismo e a beleza do Buçaco e de Sintra, Hume não se restringe apenas à flora, acabando por iniciar dois temas que serão retomados no futuro: o da beleza das mulheres portuguesas e a aversão aos sapatos. No primeiro caso, à entrada de Coimbra, Hume dedica todo um parágrafo aos grupos de bonitas mulheres que encontra, inevitavelmente, com "pesados fardos à cabeça". "Vão invariavelmente descalças, com os seus bonitos e longos ombros, peitos cheios, faces clássicas", de lenços garridos, fixando o olhar, bonito, com uma "modesta dignidade". A visita, indirecta, da "National Geographic" a Portugal continental não foi, no entanto, o primeiro contacto da revista com os territórios portugueses. Antes, já Moçambique e a Madeira tinham sido alvo das suas atenções. No caso deste pequeno arquipélago do Atlântico, a viagem feita por David Fairchild é descrita na edição de Dezembro de 1907, que apresenta a Madeira como "um dos locais mais calmos do mundo, para o qual as almas cansadas das nossas grandes cidades se estão a virar para descansar". O que Fairchild observa é uma ilha com clima temperado, onde as plantas estão perpetuamente em flor, mas onde as pessoas são extremamente pobres. Se aqui era o paraíso para alguns, como no caso dos ingleses de férias, o mesmo sentimento não era partilhado pelos "que são forçados a viver aqui e a ganhar a sua vida". Com cerca de 150 mil habitantes, não há uma escola agrícola ou industrial, e os acessos, em grande parte da ilha, são dignos das cabras. Os tempos áureos do vinho da Madeira tinham chegado ao fim (até porque os médicos começaram a dizer que o líquido era mau para a gota), e Lisboa, segundo Fairchild, não tinha uma lógica de desenvolvimento para a ilha. Com população a mais e sem grandes perspectivas de futuro, muitos madeirenses emigram para as plantações de açúcar do Havai. A ilha do turismo de massas com as largas dezenas de hotéis do Funchal ainda era uma realidade distante. Caberá a Clifford Albion Tinker o privilégio de ser o primeiro redactor a fazer um relato directo de Portugal Continental para a "National Geographic", em Novembro de 1922, mas dedica-se apenas a Lisboa. Apelidada de "Cidade da baía amigável", Tinker percorre as ruas da capital e os seus arredores, misturando dados históricos com as suas impressões, apresentando Almada como a Brooklyn de Lisboa. A capital, que almejava então ser um ponto de referência para os voos intercontinentais entre a Europa e os Estados Unidos, é vista como um "mosaico civilizacional". Seja pela mistura de sangue celta, mouro, judeu e africano, seja pela combinação de automóveis e carros de bois no meio da Baixa pombalina. Sobre as jovens mulheres, diz, estas são belas, carregando na cabeça, "com um certo ar de graça", cestos com fruta, peixe ou vegetais. No seu olhar, os portugueses são parecidos com os gregos, mas "mais urbanos, cordiais e com melhor temperamento". Ao nível das classes mais abastadas, retrata-as como sendo das "mais culturais e graciosas do mundo", tendo a hospitalidade como das principais características. Esta era a Lisboa de uma Alfama com vestígios medievais e dos pescadores de sardinha que lavavam as redes no Tejo, que contrastava com a modernidade da Avenida da Liberdade, com os seus cafés e esplanadas com música ao vivo. A urbe onde as fotografias, pintadas a cor, mostram as varinas sempre descalças. Seriam precisos 16 anos para a "National Geographic" voltar a Lisboa, mas, desta vez, o alvo é percorrer o país, já controlado pelo Estado Novo de Salazar. Robert Moore falava agora de "castelos e progresso em Portugal", uma mistura de passado e presente que terá certamente agradado ao ditador. Durante dois meses, Moore percorreu o país, que assistia de fora à Guerra Civil de Espanha, tirando proveito da nova rede de estradas, às quais tece vários elogios. Em Lisboa, nota que os cafés são dominados pela presença masculina, o que parece lamentar, uma vez que "muitas das mulheres são atractivas", com os seus já conhecidos lenços garridos e formosura "inigualável" quando carregam os cestos. Algumas delas, trabalhadoras, andam descalças, não obstante a existência de recente legislação que o proíbe. Para Moore, torna-se claro que "tanto os sapatos como a lei parecem ser considerados demasiados severos". As obras de SalazarO Portugal que vê é o das obras de Salazar, tal como é o de um país que vive da terra e do mar, com as suas exportações de cortiça, peixe e vinho. Moore visita o Douro e assiste às uvas serem pisadas com os pés, para depois ser transportado rio abaixo pelos barcos rabelos. Fica impressionado com a "alegria dos camponeses" ligados à vindima, apesar das suas condições de vida. Vê a apanha do sargaço para fertilizante no Norte e a pesca na Nazaré. Passa pelo Gerês, Buçaco, Montalegre, Tomar e Fátima, desce pelo Alentejo, onde vislumbra apenas um tractor, e vai até à Ponta de Sagres, onde presta a devida homenagem ao passado português, mais visível do que o seu progresso e modernidade. E desenha todo um roteiro que será seguido anos depois pelos seus sucessores. Lisboa da livre expressãoQuando a revista envia Harvey Klemmer nos primeiros meses de 1941 para perceber que país é este, funcionando Portugal como ponto de comunicação entre os Estados Unidos e a Europa em guerra, Lisboa torna-se de novo o centro exclusivo das atenções (o texto seria publicado em Agosto desse ano). Neutral, a capital portuguesa é ponto de encontro de espiões e porto de abrigo de refugiados de todas as classes. Visto do outro lado do Atlântico, é aqui que terminam, desde o início da II Guerra Mundial, os voos da Pan American Airways, que, com partida em Nova Iorque, ainda precisam de fazer escala na Bermuda e nos Açores (em Setembro de 1941, muito antes do interesse motivado pela erupção dos Capelinhos, a National Geographic dedicou especial atenção à importância estratégica deste arquipélago, onde os veículos motorizados eram a excepção, realçando que as ilhas estavam mais perto dos EUA do que o Havai). Com os hotéis repletos de quem conseguiu escapar ao conflito, do qual Klemmer não se mostra muito convicto de que Portugal possa escapar, os barcos e aviões, encarregues de decidir quem fica e definha ou parte e floresce, passam a estar imbuídos de poderes mágicos para os cerca de 40 mil refugiados. Transtornado pela guerra que vira na Europa e pela censura militar verificada em Hamilton, na Bermuda, Klemmer considera que há mais livre expressão em Lisboa do que noutro lugar da Europa. "Talvez o meu sentido de valores tenha sido distorcido por ter estado numa zona de guerra", diz, para exemplificar o poder de atracção que sente por Lisboa, com as praias sem minas e arame farpado, com luzes, música, boa comida e bebida. E, invariavelmente, as varinas que teimam em andar descalças. É certo que as principais fontes de receitas ainda são as sardinhas e o vinho, além da cortiça exportada em bruto, porque faltam indústrias. Que muitos são pobres, e que dois terços são analfabetos. O que não impede Klemmer de destacar que este pequeno país tem muito para oferecer aos turistas, para logo sublinhar o seu espanto por Portugal continuar não só independente como ter na sua posse vastos territórios além-mar. "Seria descuido negar que Portugal e o seu império está hoje numa posição precária. É quase demasiado esperar que os cães de guerra se quedem às portas da fronteira portuguesa", afirma. O certo é que ficaram, o que foi constatado por Clement Conger, sete anos depois de Klemmer e dois anos após o fim da II Guerra Mundial. Se a Europa ainda recupera dos escombros quando o novo enviado da "National Geographic" chega a Portugal, pouco ou nada tinha mudado no país, não obstante este defender, no título seu artigo de Novembro de 1948, que "Portugal é diferente". Até as varinas mantêm o seu jogo de toca-e-foge com as autoridades policiais, evitando a lei e os sapatos. A única diferença é que, tendo em conta o relato de 1941, já não havia massas de refugiados nem espiões em Lisboa. Conger, que parece ter os exemplares anteriores da "National Geographic" sobre Portugal na sua mala de viagem, vai aos cafés da avenida, ouve o fado, sobe ao Porto, assiste às comemorações do Estado Novo em Braga e vislumbra um Salazar aparentemente imutável e resistente aos ventos da democracia da Europa. Vê camponeses trabalharem "como nos tempos da Bíblia", conhece Aveiro, Viseu e Coimbra, com seu novo Portugal dos pequeninos, verdadeira metáfora em miniatura. Consegue estar presente em Fátima a 13 de Maio, com a aparição já transformada em milagre, passando de carro por milhares de peregrinos que seguiam a pé ou de burro. Ali, vê meio milhão de pessoas a entoarem "ave, ave", com igual número de velas, e que no dia seguinte serão cerca de 700 mil, com igual número de chapéus-de-chuva pretos que se abrem ou fecham em conjunto conforme os humores de S. Pedro, substituídos depois por lenços brancos. Com o roteiro desenhado, desce para ver a cortiça do Alentejo e espanta-se por os turistas ainda não terem descoberto o Algarve. Regressa então a Lisboa, onde os pescadores ainda lavam as redes no Tejo. Se Portugal era diferente, era apenas no olhar de que o visitava. As praias douradas Olha-se para o título, "As praias douradas de Portugal", e pensa-se em turismo, mas a missão de Alan Villiers era a de retratar a pesca. Apesar de mencionar a existência de turistas na Nazaré (alguns vindos de Paris), é o fascínio pelas pesca artesanal que o faz publicar um artigo em Novembro de 1954. De norte a sul visita praias e portos de pesca, destacando os que os métodos utilizados são "inspirados nos antigos fenícios". Cerca de 40 mil homens fazem-se ao mar por todo o território, sem barcos a motor, contando apenas com os animais e os homens. A sua preferência vai para a costa algarvia, soalheira e florida, onde os pescadores pintam olhos aos barcos para que estes se possam guiar melhor. Participa na pesca do atum, onde ouve os cânticos, que lhe soam a árabe, entoados pelos homens enquanto esperam a presa. Quando surgem os primeiros peixes voadores, sinal de que o atum vem a caminho, os homens começam a puxar as redes e a empurrá-los para os navios, iniciando a matança pintada de tons de vermelho. Ao todo, Villiers vê serem apanhados cerca de 150 atuns, prontamente encaminhados para as fábricas de conserva. Estes não irão ser vendidos pelas varinas, várias das quais, diz Villiers, colocam os sapatos junto ao cesto de peixe, equilibrado na cabeça, mal a polícia vira as costas. De todos os artigos da "National Geographic", o de Howard La Fay, publicado em Outubro de 1965, é o mais analítico. Acompanhado por Volkmar Wentzel, que viajara por Angola e Moçambique, e agora assume o papel de fotógrafo, La Fay mostra um país "numa encruzilhada". É o Portugal que tem um novo metropolitano, mas que esconde, debaixo das suas luzes e sorrisos, "uma nação em crise". Perdera os territórios na Índia e resiste à onda das independências em África, com demonstrações patrióticas carregadas de cartazes onde se diz que "lutaremos sempre". Há novos edifícios e alguma industrialização, mas isso quase parece desapontar la Fay. Feito o percurso típico do território nacional, parando nos principais localidades, queixa-se que o vinho no Douro já não é pisado com os pés, entre risos e música. Confirma, no entanto, que ainda há muitos pescadores com recorrem às técnicas dos fenícios, e que cerca de 60 por cento da população trabalha na agricultura. Fazer crescer o AlgarveEm Lisboa, onde se encanta com a luminosidade e com Alfama, para se entristecer com o som do fado, assiste à edificação dos primeiros alicerces da ponte sobre o Tejo, a maior do seu género na Europa. A ideia, explicam-lhe, é fazer crescer a capital, sobrelotada, para a outra margem, ganhando cidades satélite. Ao mesmo tempo, pretende-se abrir o sul ao turismo, passando o Algarve a ficar a quatro horas de viagem. A região, de tanto ser falada, já atraía cerca de 50 mil turistas por ano, para os quais tinham sido construídos meia dúzia de hotéis de luxo entre Monte Gordo e Sagres. Se la Fay tinha dúvidas no título que iria colocar no texto, estas devem ter ficado resolvidas quando entrevistou um historiador, que manteve o anonimato. Portugal, é-lhe dito, defronta-se com "um momento crucial na sua história". "Virámos as nossas costas à Europa", constata o historiador. "Seja lá o que vier a acontecer", acrescenta, "quer fiquemos ou não com as províncias ultramarinas, Portugal vai reunir-se à Europa". Quanto às varinas, essas, já usavam sapatos, mas contra a sua vontade.
REFERÊNCIAS: