Allah über Deutschland? A Alemanha entre o fascínio e a rejeição do Islão
Escavar nas ideias políticas traz muitas surpresas e levanta questões perturbadoras que julgávamos enterradas na história do século XX. (...)

Allah über Deutschland? A Alemanha entre o fascínio e a rejeição do Islão
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Escavar nas ideias políticas traz muitas surpresas e levanta questões perturbadoras que julgávamos enterradas na história do século XX.
TEXTO: 1. Nos últimos meses a Alemanha surgiu na linha da frente dos movimentos anti-islamização da Europa. Nascido em Dresden, no leste do país, o PEGIDA (em alemão “Patriotische Europäer gegen die Islamisierung des Abendlandes”/Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente), organizou nos últimos meses manifestações públicas em cidades alemãs que lhe deram visibilidade mediática. O movimento protesta contra várias políticas governamentais, especialmente em matéria de emigração, bem como contra o que considera ser a progressiva islamização da Alemanha e do Ocidente. Embora não sejam muito claras as suas origens, o movimento parece ser uma amálgama de membros de grupos de extrema-direita – eventualmente com simpatias ou até conexões pró-nazis –, da direita populista anti-União Europeia, bem como de muitos cidadãos comuns por motivações variadas. O seu principal líder, Lutz Bachmann, renunciou ao cargo em meados de janeiro de 2015, após ter aparecido uma fotografia sua, nas redes sociais, onde este se fantasiava de Adolf Hitler. Pouco depois, Kathrin Oertel, a porta-voz do PEGIDA, renunciou também, invocando prejuízos pessoais e profissionais, devido à hostilidade que estava a ser alvo nos media. Avaliada pelas manifestações, a força principal do PEGIDA parece estar nos territórios da antiga Alemanha de leste (ex-República Democrática Alemã), absorvida em 1990 pela República Federal da Alemanha. Curiosamente, ou talvez, não, nessa parte da Alemanha há muito menos emigrantes que nos Estados federados do ocidente, mais prósperos e populosos. Não é claro, nesta altura, se a demissão de parte importante da sua liderança será o princípio do fim do movimento, ou apenas um episódio no seu percurso. Do ponto de vista político-ideológico (e da história conturbada da Alemanha dos último século), o surgimento do PEGIDA levanta uma interrogação perturbadora: será que estamos a assistir ao ressurgir dos fantasmas da Alemanha nazi (1933-1945)? Sendo o assunto delicado e complexo, vou analisar apenas um aspeto específico e pouco conhecido desse passado, que é o das relações entre a Alemanha e o Islão no período nazi, em especial durante a II Guerra Mundial. Faço-o, essencialmente, a partir de um livro recentemente publicado por David Motadel, “Islam and Nazi Germany’s War”/O Islão e a Guerra da Alemanha Nazi (The Belknap Press da Harvard University Press, 2014). 2. Um dos aspectos mais estranhos e curiosos do livro de David Motadel é o relato que o autor faz do fascínio que existia entre vários membros da elite do Partido Nazi face ao Islão. Dois casos, que abordaremos mais à frente, são objeto de particular atenção: o de Heinrich Himmler, um dos principais líderes nazis, responsável pela Schutzstaffel (SS)/“Tropa de Protecção” e directamente ligado aos horrores do holocausto da população judaica; e o do próprio Adolf Hitler. Ambos são objeto de análise detalhada no capítulo 2 intitulado “O Momento Muçulmano de Berlim”. Interessante é ainda a discussão feita por David Motadel em torno do problema da ideologia (pp. 56-70) e da dificuldade colocada pela superioridade da raça ariana. Esta foi proclamada, por exemplo, no Mein Kampf de Adolf Hitler (1925), especialmente no capítulo 11 (I Parte), “Raça e Povo”. Por outras palavras, como é que um Estado ideológico, como era a Alemanha nazi, fundado na convicção da superioridade rácica do povo germânico – e obcecado com a sua pureza –, se relacionava com o Islão e os povos muçulmanos, nomeadamente árabes, turcos e persas? A questão é ainda mais curiosa se pensarmos que o principal ideólogo da teoria racial nazi, Alfred Rosenberg, no livro “O Mito do Século XX ("Der Mythus des 20. Jahrhunderts”/O Mito do Século Vinte (1930), fez a apologia da subjugação do mundo islâmico sob o domínio imperial europeu (Capítulo 6 do Livro 3, “Um Novo Sistema de Estado”). 3. Entre a elite do Partido Nazi, Heinrich Himmler foi, provavelmente, o mais fascinado com o Islão e aquele que mais acreditava existir uma grande afinidade deste com os valores do nacional-socialismo (nazismo). Importa aqui recordar um facto histórico: é a Himmler que se deve a criação nos Balcãs primeira divisão não germânica das Waffen-SS (1943-1945), recrutada entre muçulmanos da região, especialmente bósnios. O pensamento de Himmler sobre o Islão foi sobretudo relatado nas memórias do seu médico pessoal, Felix Kersten, que escreveu um capítulo inteiro sobre o assunto. (As citações que fazemos a seguir são retiradas do já referido livro de David Motadel). De acordo com esse relato, Himmler teria lido vários livros sobre o Islão e biografias do Profeta, estando convencido que Maomé era uma das maiores figuras da história da humanidade. O que mais impressionava Himmler era ter encontrado no Islão as qualidades de uma “religião masculina” e a “bravura de soldados” (p. 60). Este terá confidenciado a Felix Kersten o seguinte: “Maomé sabia que a maioria das pessoas são terrivelmente covardes e estúpidas. Por isso prometeu a cada guerreiro que luta com coragem e cai em batalha […] mulheres bonitas […]. Este é o tipo de linguagem que um soldado entende. Quando acredita que será recebido desta maneira na vida após a morte, está disposto a dar a vida. Vai estar entusiasmado com a ida para a batalha e não vai temer a morte. Pode achar isso primitivo e rir-se… mas baseia-se em sabedoria profunda. A religião deve falar a língua de um homem. ” (p. 61). Himmler, nascido numa família católica mas que abandonou o catolicismo em 1936, ter-se-á referido em diversas ocasiões ao Islão, pondo-o em contraste especialmente com a Igreja Católica. Usualmente, nessas conversas, menosprezava o Cristianismo por ser uma religião débil e pouco masculina, lamentando o facto de não conter “promessas aos soldados que morrem em batalha”, não havendo nenhuma recompensa no além, por atos de bravura. Quanto ao Islão, era uma “fé prática que forneceu os crentes orientação para todos os dias vida“, sendo uma religião muito mais “inteligente”. Em termos históricos, Himmler lamentava ainda que os exércitos turco-muçulmanos não tivessem conseguido conquistar a Europa no século XVII, quando foram derrotados às portas de Viena, em 1683. (Aparentemente, porque que teriam levado aos povos germânicos uma religião mais consentânea com a sua raça. )
REFERÊNCIAS:
Religiões Cristianismo
Malta avisa que Mediterrâneo está a tornar-se um “cemitério”
Neste sábado de manhã ainda só tinham sido recuperados perto de 30 cadáveres mas há quem fale em 50 mortos, no naufrágio no estreito da Sicília. (...)

Malta avisa que Mediterrâneo está a tornar-se um “cemitério”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.45
DATA: 2015-04-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Neste sábado de manhã ainda só tinham sido recuperados perto de 30 cadáveres mas há quem fale em 50 mortos, no naufrágio no estreito da Sicília.
TEXTO: O primeiro-ministro de Malta, Joseph Muscat, alertou que as águas europeias perto de África estão a transformar-se num autêntico “cemitério”, depois de mais um naufrágio de uma embarcação com cerca de 250 imigrantes a bordo, no estreito da Sicília, na sexta-feira ao final da tarde. Citado pela BBC, o governante disse que o país se sente “abandonado” pelo resto da Europa, à qual pede que actue rapidamente. “Neste momento os políticos estão a pensar em apertar as regras da migração. Para nós, a maior preocupação são estas pessoas no mar”, afirmou. “Sentimo-nos abandonados pela Europa. Não sei quantas mais pessoas precisam de morrer no mar até que algo seja feito. Vamos garantir que a nossa voz é ouvida durante o próximo Conselho Europeu. As regras têm de ser alteradas, não importa se são mais apertadas ou não, o facto é que as coisas não estão bem e têm de ser resolvidas”, disse Muscat. As autoridades de Malta estiveram envolvidas, a par com as de Itália, numa operação de socorro para resgatar os ocupantes de um navio que naufragou ao final da tarde de ontem a cerca de 70 milhas da costa europeia, transportando imigrantes de nacionalidade eritreia e somali. O balanço inicial dava conta de 50 mortos – alguns jornais ingleses e italianos mantêm este número – mas na manhã deste sábado tinham sido recolhidos apenas 34 cadáveres, na sua maioria de mulheres e crianças, segundo a agência italiana Ansa. Um fonte militar maltesa citada pela AFP falava em 33 corpos. Segundo a AFP, 143 imigrantes chegaram neste sábado de manhã à capital de Malta, Valeta. A terra chegaram também os corpos de quatro imigrantes – uma mulher, duas crianças e um recém-nascido. Outros, que não conseguiriam aguentar as dez horas de viagem de barco até Malta devido ao seu estado de saúde frágil, foram levados de helicóptero até Lampedusa. Nove deles foram hospitalizados assim que chegaram à ilha, segundo a Ansa. As autoridades começaram por responder a um pedido de SOS lançado por telefone satélite ainda em águas territoriais da Líbia, dando conta do naufrágio iminente de duas embarcações em borracha pneumática – uma com 101 e outra com 109 pessoas a bordo. Os imigrantes foram levados para o porto siciliano de Trapani por um navio de Malta. Outros 118 imigrantes em risco foram recuperados por uma embarcação com pavilhão das Bahamas e conduzidos para Porto Empedocle, na Sicília. E finalmente, dois barcos com 65 e 110 indivíduos a bordo foram arrastados pela Marinha italiana até Siracusa, na costa leste daquele arquipélago. Este naufrágio no estreito da Sicília ocorreu uma semana depois de uma das maiores tragédias marítimas da história recente ao largo de Lampedusa: um incêndio a bordo de um barco proveniente da capital da Líbia provocou a morte a mais de 300 imigrantes.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte mulher mulheres
Portugal e Brasil: orgulho e preconceito entre duas literaturas
O convívio entre as literaturas portuguesa e brasileira não é pacífico. Há fascínio e desconhecimento, folclore e preconceito, arrogância e admiração. Nos últimos anos, portugueses passam e fixam-se em território brasileiro e transportam essa paisagem para a sua escrita. Acontece com brasileiros, mas menos. Como se dá o contágio? Quem escreve e quem lê traça um retrato onde a língua é elo e barreira, mas sempre vista como impermeável acordos diplomáticos. Viva, dinâmica, com muitos sotaques. Eles estão neste texto que fala com o português dos dois lados do Atlântico. (...)

Portugal e Brasil: orgulho e preconceito entre duas literaturas
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: O convívio entre as literaturas portuguesa e brasileira não é pacífico. Há fascínio e desconhecimento, folclore e preconceito, arrogância e admiração. Nos últimos anos, portugueses passam e fixam-se em território brasileiro e transportam essa paisagem para a sua escrita. Acontece com brasileiros, mas menos. Como se dá o contágio? Quem escreve e quem lê traça um retrato onde a língua é elo e barreira, mas sempre vista como impermeável acordos diplomáticos. Viva, dinâmica, com muitos sotaques. Eles estão neste texto que fala com o português dos dois lados do Atlântico.
TEXTO: Cheirava a castanhas, mas já estava calor e havia flores nas árvores. Devia ser Maio. O brasileiro Luiz Ruffato não lembra de cor a data em que se hospedou por um mês num hotel no centro de Lisboa, fora dos circuitos turísticos. Todas as manhãs apanhava transportes públicos para a periferia e regressava à noite. “Seguia para os bairros onde estavam os brasileiros que foram para Portugal, para empregos pouco qualificados. ” Ruffato fora um dos seleccionados para participar no projecto Amores Expressos que financiou viagens de escritores a várias cidades do mundo para escreverem romances sobre o amor, mas o seu projecto era mais alargado: entender melhor o curso da emigração brasileira que tinha três grandes destinos: EUA, Japão e Portugal. A sua personagem, Sérgio – natural de Cataguases, Minas Gerais, como o escritor – iria para Portugal por uma questão de língua e de geografia. Seria o protagonista de Estive em Lisboa e Lembrei de Você (Companhia das Letras) publicado no Brasil em 2009, e um ano depois em Portugal com o título Estive em Lisboa e Lembrei-me de Ti (Quetzal). Além de sublinhar a fala mineira de Serginho, com todos os seus trejeitos regionais e cambiantes em relação à expressão do português de S. Paulo ou do Rio de Janeiro, o autor, com aquele título, punha a nu involuntariamente mais uma camada do complexo tecido da língua. Apenas por atravessar o Atlântico o português de Portugal “pedia-lhe” uma adaptação, não fosse haver uma barreira ao entendimento. “Falar a mesma língua não é partilhar a mesma cultura”, refere Luiz Ruffato sobre a relação entre as literaturas portuguesa e brasileira, que classifica de “esquisita e preconceituosa”, feita em doses semelhantes de “desprezo e arrogância”. “Eles não crescem apaixonados por nós como nós crescemos apaixonados por eles”, refere por sua vez Valter Hugo Mãe, um dos escritores portugueses que mais sucesso tem actualmente no Brasil. “Não me parece nada que os brasileiros não nos dêem atenção”, salienta agora Gonçalo M. Tavares, sublinhando o modo como os seus livros têm sido recebidos desde que venceu o Prémio PT, em 2007, com Jerusalém. Mirna Queiroz, directora da revista Pessoa (projecto que tenta o cruzamento das duas literaturas), refere que na literatura brasileira, pela sua diversidade, “não sobra muito espaço para outras paisagens”. E acrescenta: “Parece-me que poucos autores brasileiros são publicados em Portugal. E Portugal exporta para o Brasil basicamente os mesmos autores que despertam interesse no resto do mundo. Ou seja, penso que não lemos autores portugueses só porque são portugueses”, ou seja, “a língua comum não funciona como barreira e tampouco como mobilizador, o que já não é mau”. A opinião inicial de Luiz Ruffato não é consensual, mas tem apoiantes entre quem conhece e escreve sobre as duas realidades, partilha geografias, usa a mesma língua nas suas diversas expressões, se deixa contagiar e transporta esse contágio para a obra. Até que ponto se conhecem os escritores portugueses e brasileiros contemporâneos? Lêem-se? Entendem-se? Interessam-se uns pelos outros? O que pode a língua quando quase tudo parece separar duas realidades que se cruzaram desde que um português pisou um território e o colonizou?“O Brasil hoje é um país feito por filhos de imigrantes, sobretudo italianos, japoneses, alemães. Há uma língua comum, mas culturalmente estão muito mais ligados a outras realidades”, continua ainda Luiz Ruffato, acentuando o “profundo desprezo” dos brasileiros em geral e dos escritores brasileiros em particular por Portugal. “Isso é trágico”, lamenta, mas é histórico. “É o trauma do colonizado em relação ao colonizador. E os portugueses olham-nos com uma certa arrogância e desconfiança: o brasileiro é malandro, todos os brasileiros são putas. É o cliché a funcionar. Há pouca troca, apesar dos elogios de circunstância. Os brasileiros ainda sabem alguma coisa de literatura portuguesa porque ela é ensinada na universidade. Em Portugal isso não acontece. ”No Brasil, o livro de Ruffato chegou à segunda edição em dois meses e foi adaptado ao cinema em 2013 pelo português José Barahona, mantendo o título original. Em Portugal não esgotou a primeira edição. Ruffato regressaria em 2012, com outro livro. Dessa vez pela Tinta da China, De Mim Já nem se Lembra. Também dessa vez bem recebido pela crítica portuguesa. Voltou a vender pouco. “A resistência e o preconceito existem de ambos os lados”, refere agora Francisco José Viegas, escritor, o primeiro editor de Ruffato e editor de outros brasileiros. “É normal”, continua. “Curiosamente, os autores brasileiros têm muito boa imprensa em Portugal e aí o jornalismo português é infinitamente melhor do que o brasileiro na divulgação das coisas do outro lado. Mas no Brasil, quando um autor tem boa imprensa, tem mesmo boa imprensa e colunistas atentos nos grandes jornais. Mas é verdade que os autores brasileiros em Portugal, em geral, não são best-sellers. Pelo contrário. ” Bárbara Bulhosa, editora da Tinta da China, que levou a sua chancela até ao Brasil com autores portugueses, concorda: “vendem muito pouco em Portugal”. E tentar explicar isso parece todo um tratado onde se junta história, diplomacia, ensino, economia, cultura, vontade. O Brasil dos portuguesesHá factos. São mais os escritores portugueses actuais a ir para o Brasil e transportar essa experiência para a literatura que fazem do que o contrário. A passagem de escritores brasileiros por Portugal poucas vezes se tem reflectido em livros. É um ciclo. Talvez mude com o que se está a passar agora no Brasil”, refere a brasileira Tatiana Salem Levy. Autores como Francisco José Viegas, José Eduardo Agualusa, Inês Pedrosa, Alexandra Lucas Coelho [ver entrevista], Paulo José Miranda, Hugo Gonçalves, Matilde Campilho ou Valter Hugo Mãe e Gonçalo M. Tavares em crónicas, têm o Brasil – ou os muitos ‘Brasis’, como preferem chamar-lhe – como paisagem regular nas suas obras. E cada um apresenta razões muito pessoais para isso. “O Brasil não entrou só na minha escrita. Entrou na minha vida. Durante três anos morei na cidade do Rio de Janeiro e essa temporada veio numa época muito fulcral - era o fim dos vinte anos e o princípio dos trinta. A cidade estava a mudar muito, e eu também. Ao mesmo tempo eu era estrangeira, então estava permeável a tudo, receptiva a muitas coisas. À paisagem, à mentalidade, aos valores, e até à língua. Tudo era diferente, e isso obviamente acabou por contaminar e até formar aquilo que era o meu eixo fundamental: a escrita”, conta Matilde Campilho, 32 anos, autora de Jóquei (Tinta da China), livro de poesia com vendas muito pouco comuns quando se fala deste género literário, e, no caso, de uma estreante. O que pôs no livro é o resultado dessa vivência. Não é que a tal “paisagem” se tenha imposto, “é mais manso do que isso”, refere. “É pela via do espanto. No Rio de Janeiro tudo nos prepara para que encontremos muitas semelhanças com o nosso país. A pedra da calçada é a mesma, os letreiros na rua são de entendimento imediato, as conversas do dia-a-dia também. Mas por baixo de tudo isso há um país que está a sete mil quilómetros, que é sul-americano, que no Rio de Janeiro tem a presença constante da humidade e da mata, que é feito de vários sangues misturados. Que tem toda uma outra história. A língua é a mesma, mas vem de pontos de partida diferentes e vai dar constantemente a lugares diferentes. Isso espanta-nos diariamente, e ensina-nos muito também. ”José Eduardo Agualusa, angolano, português, brasileiro – ou atlântico como tantas vezes se identifica – tem uma longa relação com o Brasil. Está em muitos dos seus livros, nas conversas, nas viagens, nos amigos. O escritor de 54 anos, natural do Huambo, viveu em Olinda durante dois anos, na década de noventa, e depois no Rio. Falou com o Ípsilon na véspera de publicar a edição brasileira de A Rainha Ginga (Foz) – editado pela Quetzal em 2014 –, da mestiçagem de sons, costumes, vozes que existe na sua escrita como algo natural por quem se interessa por “todas as variantes da língua portuguesa que se falam no mundo”. “O meu português”, diz, “não é limitado por fronteiras políticas ou geográficas. O meu português não se restringe ao português de Angola, e muito menos às variantes do português de Portugal. O meu português é o português global, em toda a sua riqueza e exuberância. O meu projecto literário passa pela utilização desse português global. O Brasil tem 200 milhões de falantes, e inúmeras variantes da nossa língua. O português do Brasil preserva palavras que já despareceram em Portugal, e cria outras novas todos os dias. Tem uma enorme vitalidade. Como o português de Angola. Ambos vêm enriquecendo o português de Portugal. Os jovens portugueses, por exemplo, estão a apropriar-se de muitos termos do português de Angola. Todo esse movimento me fascina e me interessa”. Hugo Gonçalves, 39 anos, está no Brasil há quatro mas diz que chegou ao lá primeiro pela leitura de autores brasileiros. Rubem Fonseca, Marçal Aquino, Reinaldo Meireles, “pelas histórias, pelo uso da língua, mas também pelos universos que retratam”. Quando chegou ao Rio já levava o projecto de escrever um romance passado no Brasil. “A ideia tinha nascido no final de 2010, quando passei meses no Rio e escrevi o primeiro capítulo. Fazia parte do projecto escrever sobre o Rio, ou pelo menos que a história ali se passasse. ” Escreveu Enquanto Lisboa Arde o Rio de Janeiro Pega Fogo (Casa das Letras, 2013), o seu terceiro romance, quando estava a viver a cidade, “a descobri-la, a ir além da exuberância que cega todos os recém-chegados. ” Era difícil não se deixar contaminar. “Parte da minha experiência era a do protagonista do romance”, homem com ambições literárias que fugia da crise em Portugal, disposto a começar do nada. “Sim, no início é difícil não escrever sobre o Brasil. Mas não é assim em quase todos os lugares? Qualquer escritor ou jornalista que visita ou esteja a viver num lugar novo tem vontade de pensar e escrever sobre ele. Talvez, para os escritores do hemisfério norte, os trópicos tenham um apelo de antanho, ou sejam um tique de classe, um lugar inventado na nossa imaginação”, refere, sublinhando o tal espanto inicial. Inês Pedrosa chegou pela primeira vez ao Brasil em 1998 e nunca mais deixou de lá voltar nem de escrever sobre aquele país-continente. “Há tanta matéria-prima. Deve ser por isso que interessa tanto enquanto tema literário. É mais carnal”, justifica. Em A Eternidade e o Desejo (D. Quixote, 2007) viaja pela Baía contemporânea com uma personagem que à procura do amor e descobre os lugares do Padre António Vieira, no século XVII. Em 2012, cria Rosa, protagonista de Dentro de Ti Ver o Mar (2012), desiludida com o amor, que viaja para o Brasil à procura da sua identidade. E no recentíssimo Desamparo (D. Quixote, 2015) há outra mulher, Jacinta, que chega ao Brasil aos três anos e volta a Portugal na velhice. Serve a Pedrosa para um romance sobre emigração e sobrevivência. “É sempre um perigo. Passo a vida a ler coisas sobre as relações entre Portugal e o Brasil, mas é difícil a uma pessoa de um país escrever sobre outro. Corre-se o risco do exotismo e do pitoresco. Penso que os brasileiros também têm esse pudor em relação a nós. Mas interessa-me brincar com isso e com a sintaxe e como tenho uma relação próxima atrevo-me. Quando meto falas de personagens brasileiras tenho brasileiros que me ajudam a corrigir, quando falo de determinada região confiro tudo. ”Luiz Ruffato alertara para isso mesmo, o risco do equívoco. “É sempre complicado escrever sobre uma realidade em que, por mais que mergulhe nela, acaba por ter uma visão quase unilateral. É bom quando consegue usar isso a seu favor como escritor. Quando faz uma narrativa em que deixa claro que aquele é um olhar estrangeiro. Às vezes o olhar estrangeiro percebe coisas que quem está mergulhado na realidade não percebe. Agora quando alguém se arvora a pensar que está a conhecer melhor aquela realidade do que quem mora lá, aí acho que comete equívocos”. Repara e, sem nomear, refere que dos autores portugueses que escrevem sobre o Brasil, há alguns com essa visão, conscientes do quanto complexa é a realidade do Brasil, que tem de se “olhar com um olhar estrangeiro”, mas “há outros que acham que conhecem melhor o Brasil que os brasileiros”. Quando se fala do Brasil ao português Paulo José Miranda ele começa pela pergunta difícil: “Que Brasil?” Diz que andou por muitos “Brasis” em dez anos a viver naquele território de oito milhões e meio de quilómetros quadrados (17 vezes maior do que Portugal) o quinto maior do mundo, e uma população que já ultrapassa os 200 milhões de habitantes. “Vivi no Rio, junto à praia, vivi em São Paulo, junto da Av. Paulista; vivi em Florianópolis, na ilha, junto à praia e agora vivo no mato, a 50 quilómetros de Curitiba. A vida em cada um dos lugares acaba por determinar a relação com a escrita. ” A escrita ficou marcada porque a vida também mudou. “Toda a escrita é influenciada pelo lugar onde vivemos. Se não tivesse vivido na Turquia não teria tido o impulso de escrever A Máquina do Mundo”, livro recentemente editado pela Abysmo, com ilustrações de André Carrilho, onde começa a citar Elias Cannetti: “Todo o homem, se afirma num lugar determinado e com os seus gestos expressa eficazmente o direito de manter longe de si tudo o que se aproxima dele. ” (in Massa e Poder). Sublinha que na sua relação com o Brasil e a escrita a grande alteração aconteceu no momento em que a ideia de felicidade lhe apareceu como uma obsessão. “Se não tenho vivido no Rio de Janeiro, nunca teria escrito A Doença da Felicidade [também de 2005, Abysmo]. Foi somente aí nessa cidade que a felicidade, ou o querer ser feliz, se me apareceu claramente como uma doença”. A paisagem voltou a mudar e necessariamente a escrita. “A minha poesia hoje é marcada pelo meu quotidiano no mato. ”A relação de Valter Hugo Mãe com o Brasil é emocional. Desde que esteve em Paraty, em 2011, foi adoptado pelos brasileiros como nenhum outro autor seu contemporâneo. “O meu caso no Brasil é um pouco da dimensão do fenómeno. Teve uma forma espontânea, não obedeceu a um esquema. Foi uma surpresa para mim e para a editora [Cosac Naify]. Foi rápido, tudo se precipitou”, comenta. Antes havia a ideia de escrever um livro que tivesse contacto com o Brasil, mas o tal fenómeno de que se sentiu protagonista fê-lo abandonar o projecto. “Não escrevi, não estou a escrever e não ache que vá escrever tão cedo. Não quero que a ideia desse romance seja uma coisa prostituída a qualquer tipo de pressão. Não quero transformar o meu trabalho literário numa gratidão. Escrevi algumas crónicas, porque vou muito ao Brasil e há histórias impressionantes”, justifica. Em 2012, venceu o Prémio PT de Literatura com A Máquina de Fazer Espanhóis, cinco anos depois de Gonçalo M. Tavares também ter conquistado um dos prémios mais valiosos para as literaturas de língua portuguesa. Desde então, o autor de Jerusalém fez muitas viagens ao Brasil, publicou lá todos os seus livros, acha que estão bem expostos, e assina uma crónica no Estado de S. Paulo. Um dos seus livros mais recentes, a peça de teatro Os Velhos Também Querem Viver, teve destaque nos principais jornais brasileiros. “É um pequeno livro a que deram a atenção que costumam dar aos grandes”, comenta. No entanto, não sente que haja uma ligação directa entre aquele território e o que vai fazendo. “O Brasil é importante para mim culturalmente não apenas por causa dos livros. No cinema, no teatro, nas artes plásticas, por exemplo, os brasileiros são muito, muito fortes. ”Francisco José Viegas foi dos autores contemporâneos um dos primeiros a situar a acção de um romance no Brasil. Mais, arriscou replicar as falas e a ortografia locais no policial Longe de Manaus, para onde vai o seu detective de criação, Jaime Ramos. Foi em 2005, depois de um período a viver no Brasil. Passaram dez anos. “O trabalho com o Longe de Manaus foi uma dupla experiência: não escrever do ponto de vista português, mas do ponto de vista brasileiro – e com outra ortografia. E viver quase dois anos no Brasil exigiu também uma alteração de língua, de hemisfério, de cultura. Foi decisivo para a minha vida, porque desmistificou o Brasil. A experiência de falar e escrever do ponto de vista brasileiro acabou por mudar muito a minha escrita”. “Quando Pedro Álvares Cabral, antes de sair do Brasil rumo à Índia, anunciou que ia deixar dois marinheiros portugueses, outros dois ou três fugiram dos barcos e quiseram também ficar. Foram os primeiros emigrantes portugueses no Brasil, que foi sempre uma espécie de paraíso perdido para nós. O que podíamos ter sido, o que podíamos ter feito, como poderíamos ter sido de outra maneira. Nunca nos recompusemos dessa perda. Não era apenas o bom selvagem - era o bom português, que se podia ter reinventado. Infelizmente, não foi possível. ” Alguns pensadores têm-se dedicado ao tema. “O Eduardo Lourenço viu bem o problema do Vieira: o quinto império era o Brasil, não era uma idade futura. ” Valter Hugo Mãe refere isso mesmo, que o Brasil é o futuro de um país que vive fechado no seu passado: Portugal. Um Brasil mais cerebral e um Portugal melancólico, emotivo. São os contrários num processo simultâneo de atracção e virar de costas. “Os brasileiros lêem-nos mais; nós escrevemos mais sobre eles”, continua Hugo Mãe. ”Viegas percebe a atracção dos autores portugueses contemporâneos, mas acha que “há muita mistificação à mistura, muito folclore, desejo de fazer do Brasil um lugar de férias permanentes, onde tudo é bom, feliz, fácil, luminoso. Não há actor de novela, músico, poeta, vendedor de ilusões que não regresse do Brasil com a impressão de que tocou na margem certa da terra prometida. Isso contribuiu ainda mais para mistificar e mitificar o Brasil no imaginário dos portugueses, e não para conhecer o Brasil real, que é outro país, cheio de defeitos e de virtudes, de amarguras e de dificuldades. ”A língua do meio do caminhoTatiana Salem Levy, 36 anos, apontada como um dos jovens nomes mais estimulantes pela revista Granta, é das poucas escritoras do Brasil actual a viajar até Portugal e a transportá-lo na sua obra. Tem razões pessoais para o fazer. Formada em Letras, teve entre os seus melhores professores os de literatura portuguesa. “Lia Camões, Pessoa, as cantigas de amigo, Sophia de Mello Breyner, Herberto Helder, Raul Brandão, Alexandre Herculano, Eça, Augusto Abelaira, Lídia Jorge, Lobo Antunes e Saramago”, conta. A primeira bolsa de estudos foi em literatura portuguesa, com um projecto sobre a Maria Gabriela Llansol. Tinha entre 17 e 20 anos. “As leituras que fazemos nessa época são fundamentais”, continua. Só depois chegaria a paisagem, quando começou a frequentar o país e Lisboa, a cidade onde nasceu e de onde saiu bebé. “Mergulhar na literatura portuguesa era uma forma de descobrir o país onde havia nascido. Quanto mais descobria, mais me apaixonava. Todos os meus romances têm um pouco de Portugal. A Chave de Casa, 2007; Dois Rios, 2012, e Paraíso, 2014 (ainda por editar em Portugal). A língua, que muitos apontam como entrave à leitura, nunca foi para ela barreira de escrita. “Às vezes, o sotaque pode ser uma barreira. Quando vou à Madeira e aos Açores, tenho dificuldade em entender o que dizem. Mas acho muito libertador poder escolher expressões, descobrir diferentes palavras para o mesmo objecto. Tomar um gelado de diospiro e só depois de experimentá-lo entender que estou tomando um sorvete de caqui. . . ” O ouvido treina-se como a mão com a escrita na síntese que faz de sons, vocábulos, gerúndios. “Morando num país, a gente acaba por pegar expressões locais e mesmo uma construção sintáctica diferente”. Que português fala e escreve? “Sinto que entrei num limbo. No Brasil as pessoas acham que estou falando que nem os portugueses, e em Portugal ninguém duvida que o meu português seja o do Brasil. Gosto de falar do meio do caminho; dá a sensação de que a língua não tem fronteiras, de que é maleável, como se eu tivesse um arsenal maior de onde posso escolher o que usar. A sensação de pertencer a dois lugares é um pouco como a sensação de não pertencer a nenhum. Nunca estou inteiramente lá nem cá. É inebriante. Como se eu flutuasse na própria língua. ” Dos portugueses contemporâneos, tem lido Gonçalo M. Tavares, Dulce Maria Cardoso, Alexandra Lucas Coelho, Afonso Cruz. Todos estão publicados no Brasil. Carlito Azevedo, poeta, crítico, ensaísta, está aqui na condição de leitor, observador destas realidades de contágio, contaminação e também de resistência. Ironiza. “Isso de contágios e paisagens lembrou-me algo que aconteceu com o Guimarães Rosa. No livro Grande Sertão: Veredas há uma cena de um pôr do sol no sertão que é muito bonita e foi tomada por alguns críticos como uma perfeita descrição do sertão em estilo regionalista. Só que o Rosa comentava que ele tinha retirado aquele trecho de um diário dele onde anotara um pôr do sol que viu. . . na Holanda!” Ou seja, o contágio dá-se de forma mais superficial “no nome de bairros, ruas, morros”. De modo mais profundo, salienta a forma bem sucedida com que acontece em Jóquei, de Matilde Campilho, “não porque cite esse ou aquele lugar, mas porque os poemas têm o ritmo e o andamento das longas caminhadas que ela fazia no Rio, sem obrigatoriamente estar conversando ou pensando sobre o Rio, e sim sobre a Comuna de Paris, um novo aplicativo, a biografia do astronauta, etc. . . Qualquer que seja o tema que ela esteja tratando, sente-se que fala daquilo a partir do Jardim Botânico do Rio, da avenida Rio Branco, da orla da praia. . . É uma andadura rítmica, o verso, o poema de quem caminha num lugar que é pura célula urbana mas que, dobrada uma esquina, te coloca de frente para a pedra de uma montanha, ou para o oceano, frente ao qual ônibus passam a toda velocidade. . . ”Matilde Campilho fala aqui sem saber das palavras de Carlito Azevedo, Agora é sobre a relação com a língua, o modo como é permeável a nuances. “A língua não me trouxe questões que eu achasse que precisava de resolver. Pelo contrário. Já que a língua é ao mesmo tempo a mesma e não é, isso abre muitíssimo o tamanho do campo das possibilidades na escrita. É como se tudo se desdobrasse. Se pensarmos que a mesma língua pode ter cadências diferentes e trejeitos diferentes, que pode ser fruto de paisagens diferentes, então isso pode misturar-se na página escrita e formar um ‘desenho’ novo, multiplicado. Pelo menos na poesia existe essa possibilidade, a de uma língua que destrói fronteiras em vez de as levantar. ”Sem excepção, escritores, teóricos, editores – como Bárbara Bulhosa, na Tinta da China, com os brasileiros que publica em Portugal e os portugueses que leva para o Brasil, ou Clara Capitão que está à frente da recém-chegada a Portugal Companhia das Letras que entrou com O Irmão Alemão, de Chico Buarque, escritor que diz ser excepção de sucesso literário em Portugal pela via da música, e onde não fez uma única adaptação linguística –, referem a diversidade linguística do português falado e escrito nas diversas geografias, como uma riqueza a explorar. Então porquê o entrave, insiste-se? “Mais jornalismo de divulgação de ambos os lados, retirada de taxas alfandegárias que tornam os livros portugueses inacessíveis no Brasil e uma política de promoção que não seja episódica, refere Inês Pedrosa e também Abel Barros Baptista, ensaísta e professor de Literatura Brasileira na Universidade Nova de Lisboa, autor da colecção Curso Breve de Literatura Brasileira (Cotovia, 2003) que publicou em Portugal livros considerados exemplares do que se escreve no Brasil. As excepções são Machado de Assis e Clarice Lispector. Os portugueses lêem muito pouco os brasileiros. Há preconceito e uma certa arrogância da nossa parte, mas também dos brasileiros em relação a nós. As duas línguas estão estruturadas autonomamente e o grau de abertura do Brasil em relação ao estrangeiro, quando existe, é para outros territórios. Sobretudo os Estados Unidos. Olham muitas vezes a nossa escrita como pedante e nós encaramos o à-vontade deles como ligeireza. ” Francisco José Viegas contextualiza, refere um caminho comum cheio de preconceitos históricos. “O salazarismo desconfiava do Brasil, de onde vinha toda a imoralidade, um certo sentido da barafunda, e havia - claro - o ressentimento contra a antiga colónia. Os brasileiros desconfiavam de um país de pobretanas e de provincianos que nunca tinham compreendido a “grandeza brasileira”. De modo que, durante anos, desconhecemo-nos com orgulho e arrogância. Aquele Brasil que as telenovelas históricas da Globo nos trouxe significou para nós uma redescoberta do Brasil, sim, mas os intelectuais mantiveram sempre um preconceito europeu em relação ao que se fazia lá. Ignoravam que a universidade brasileira tinha debates profundos e alargados, que a literatura já não era apenas o cânone nordestino, que havia uma cultura urbana (sobretudo em São Paulo ou Porto Alegre) muito viva, que a literatura brasileira tinha, de facto, reinventado a língua portuguesa (no cânone clássico, com Érico Verissimo, Clarice, Rubem Fonseca; e que uma nova geração prolongava, com Assis Brasil, Patrícia Melo, Marçal Aquino, Tabajara Ruas - e hoje com Eucanãa, Galera, Ruffato, Mutarelli, Elvira Vigna, Paula Maia. ” Os nomes continuam. No Brasil conhece-se Pessoa como se Pessoa fosse brasileiro, em Portugal Carlos Drummond de Andrade ou João Cabral de Melo Neto estão longe de serem muito conhecidos, menos ainda lidos, salienta Hugo Mãe. Nas universidades brasileiras ensinam-se portugueses contemporâneos. Na portuguesa, Abel Barros Baptista diz que não se lembra de um português ter pedido para fazer um doutoramento em literatura brasileira. Onde estão as falhas? “O Acordo Ortográfico não vem resolver nada”, dizem, como num coro, todos os nomes ouvidos para este texto “O Acordo Ortográfico está implantado no Brasil. Nos jornais e na edição, é o modelo que funciona. O Brasil nunca ligou muito a acordos desses. Mas não nos podemos esquecer de que o português de Portugal e o do Brasil são e hão-de continuar a ser expressões diferentes da mesma língua. Julgar que a ortografia iria unificar as duas formas do português, só mesmo por piada. Vamos continuar a ter duas versões do português, mesmo se a ortografia se aproximou mais”, resume Francisco José Viegas. Mirna Queiroz fala da necessidade de uma “relação descomplexada sem expectativas vazias”. E o coro, em síntese, diz isto: enquanto passar pela cabeça de alguém traduzir um livro de português do Brasil para português de Portugal e vice-versa, as contas estarão voltadas e todos os contágios serão poucos. Veja o programa de Minha Língua, Minha Pátria, evento que vai reunir escritores portugueses e brasileiros em São Paulo
REFERÊNCIAS:
Itália teme encontrar mais corpos no interior do ferry que se incendiou
Procurador confirma que embarcação transportava vários "clandestinos". Está confirmada a morte de 13 pessoas, mas há dezenas de pessoas por localizar. (...)

Itália teme encontrar mais corpos no interior do ferry que se incendiou
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.172
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Procurador confirma que embarcação transportava vários "clandestinos". Está confirmada a morte de 13 pessoas, mas há dezenas de pessoas por localizar.
TEXTO: As autoridades italianas temem encontrar mais corpos no interior do ferry que se incendiou no domingo no mar Adriático, face às informações de que a embarcação transportava imigrantes em situação irregular. Confirmada está a morte de 111 passageiros, a que se junta a de dois marinheiros albaneses que participavam nas operações de reboque do Norman Atlantic, mas dezenas de pessoas continuam por localizar. Segundo o procurador de Bari, cidade na costa sul de Itália que assumiu a condução das investigações, viajariam no ferry 499 pessoas – além dos 478 nomes que constam da lista inicial de embarque, os socorristas resgataram 18 passageiros que não constavam do registo e três pessoas em situação irregular, dois afegãos e um sírio, que viajavam escondidos num camião. “Tendo sido apurado que o navio transportava também clandestinos escondidos no porão, receamos encontrar mais vítimas quando recuperarmos a embarcação”, afirmou Giuseppe Volpe. Foi precisamente no espaço reservado aos veículos que o incêndio deflagrou, na madrugada de domingo, quando o ferry viajava entre Patras, na Grécia, e Ancona, na costa Leste de Itália. Na véspera, o Governo italiano adiantou que tinham sido resgatadas 427 pessoas, incluindo 56 tripulantes. Mas nesta terça-feira, o procurador disse que não foi possível ainda contactar 179 das pessoas incluídas na lista de embarque, admitindo que muitas delas estejam a bordo dos navios mercantes que acorreram ao pedido de auxílio do Norman Atlantic e se dirigiram para portos da Grécia. As autoridades italianas admitem que algumas pessoas possam não ter chegado a embarcar e que outras tenham saído durante a curta escala no porto grego de Igoumenitsa, pouco antes de ter sido dado o alerta. Certo é que o San Giorgio, navio que coordenou as operações de busca e transporta a bordo 214 sobreviventes, recebeu ordens para se manter na zona do acidente durante mais algumas horas, só sendo esperado na noite desta terça-feira em Brindisi, na costa sul de Itália. E ao início da tarde, a Marinha italiana confirmou ter sido localizado mais um corpo no mar, elevando para 11 o número de passageiros mortos, três dos quais camionistas italianos. A estes juntam-se dois tripulantes de um rebocador albanês que morreram quando o cabo que ligava a embarcação ao ferry se partiu na manhã desta terça-feira, atingindo-os com violência. Foi entretanto decidido que o ferry será rebocado para Brindisi assim que as condições atmosféricas o permitirem, confirmou Giuseppe Volpe. Caos a bordoO Norman Atlantic fazia a ligação entre o porto grego de Patras e Ancona, no Leste de Itália, quando um incêndio deflagrou na zona reservada aos carros e camiões, na madrugada de domingo. O alarme foi dado quando o navio se encontrava a norte da ilha grega de Orthonoi, já frente à costa da Albânia, e rapidamente as marinhas dos três países e vários navios mercantes se encaminharam para o local. Mas o fumo provocado pelo incêndio (que alastrou a vários pisos e só foi extinto muitas horas depois), e as más condições na zona (com ventos fortes e agitação marítima) dificultaram o resgate, que teve de ser feito por helicópteros e só foi concluído ao início da tarde de segunda-feira. Os sobreviventes que foram helitransportados para o hospital ou chegaram nos dois primeiros navios a chegar a terra descrevem cenas de caos nas primeiras horas do incidente. “Vi cenas terríveis. Homens de diferentes nacionalidades […] que em vez de darem prioridades a mulheres, crianças e idosos empurravam e davam murros para tentar entrar nos botes salva-vidas”, contou ao La Repubblica a soprano grega Dimitra Theodossiou. A mulher da única vítima mortal já identificada, um cidadão grego de 67 anos, contou que ela e o marido caíram à água quando tentavam entrar num dos botes e ficaram quatro horas na água. Quando o socorro chegou, ele estava morto. O Ministério Público italiano abriu já um inquérito contra o comandante do navio, Argilio Giacomazzi – o último a abandonar a embarcação, como determinam as leis marítimas –, e o armado italiano a quem pertencia o ferry para averiguar eventuais responsabilidades nos crimes de naufrágio doloso e homicídio.
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Étnia Albaneses
Maria Teresa Horta distinguida com o Prémio de Consagração de Carreira da SPA
O galardão, que é entregue no próximo dia 22, Dia do Autor Português (...)

Maria Teresa Horta distinguida com o Prémio de Consagração de Carreira da SPA
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-11-15 | Jornal Público
SUMÁRIO: O galardão, que é entregue no próximo dia 22, Dia do Autor Português
TEXTO: A escritora Maria Teresa Horta é distinguida este ano com o Prémio de Consagração de Carreira, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores (SPA). “Maria Teresa Horta tem vindo a ser galardoada com alguns dos mais importantes prémios literários portugueses; recorde-se que Maria Teresa Horta, jornalista de profissão durante décadas, foi uma das autoras das Novas Cartas Portuguesas e é autora de uma vasta obra poética e também de ficção narrativa”, escreve a SPA. No ano passado, Maria Teresa Horta publicou o livro de poesia A Dama e o Unicórnio, ilustrado com reproduções da série de tapeçarias La Dame à la Licorne, patentes no Museu de Cluny, em França, cuja edição inclui um CD com a cantata profana de António de Sousa Dias, sobre o poema da autora, que dá título ao livro, e uma versão gravada da obra, dita pela actriz Ana Brandão. Maria Teresa Horta, de 76 anos, frequentou a Faculdade de Letras, é autora de várias obras, foi jornalista. Estreou-se na poesia em 1960 e tem toda a obra poética coligida em Poesia Reunida (2009), edição que lhe valeu o Prémio Máxima Vida Literária. É autora dos romances Ambas as Mãos sobre o Corpo, Ema, distinguido com o Prémio Ficção Revista Mulheres, e A Paixão segundo Constança H. . Com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, escreveu Novas Cartas Portuguesas. Em 2011 publicou As Luzes de Leonor, romance sobre a Marquesa de Alorna, sua antepassada, ao qual foi atribuído, no ano passado, o Prémio D. Dinis da Fundação Casa de Mateus, galardão que se recusou receber das mãos do actual primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, “por ser uma pessoa que está empenhada em destruir o nosso país”, disse a escritora, na ocasião, à agência Lusa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Sempre fui uma mulher coerente; as minhas ideias e aquilo que eu faço têm uma coerência”, salientou a escritora que acrescentou: “Sou uma mulher de esquerda, sempre fui, sempre lutei pela liberdade e pelos direitos dos trabalhadores”. Para Maria Teresa Horta, “o primeiro-ministro está determinado a destruir tudo aquilo que conquistámos com o 25 de Abril [de 1974] e as grandes vítimas têm sido, até agora, os trabalhadores, os assalariados, a juventude que ele manda emigrar calmamente, como se isso fosse natural”.
REFERÊNCIAS:
No Festival de Música de Setúbal, os artistas sentem-se em casa
Home é o tema da 8.ª edição de um festival que une artistas nacionais e internacionais a centenas de jovens da comunidade local. Nesta quinta-feira, depois das boas-vindas na Casa da Avenida, a música segue com Celina da Piedade e João Gil no Fórum Municipal Luísa Todi. Concerto Em Casa. (...)

No Festival de Música de Setúbal, os artistas sentem-se em casa
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Home é o tema da 8.ª edição de um festival que une artistas nacionais e internacionais a centenas de jovens da comunidade local. Nesta quinta-feira, depois das boas-vindas na Casa da Avenida, a música segue com Celina da Piedade e João Gil no Fórum Municipal Luísa Todi. Concerto Em Casa.
TEXTO: A inclusão através da música sempre foi a bandeira maior do Festival de Música de Setúbal, dirigido pelo britânico Ian Ritchie. Este ano esse propósito culmina nos conceitos de “lar, lugar, raiz, origem, casa”, traduções possíveis para a palavra “home”. Por isso, há nomes de concertos como Ninho (no Moinho de Maré da Mourisca), De Casa em Casa (Baixa da cidade), Em Casa e Fora Dela (Igreja de São Simão, Azeitão), Em Casa, O Nosso Lar e Tudo Começa em Casa (Fórum Municipal Luísa Todi). Também a exposição na Casa da Avenida, com trabalhos de Graça Pinto Basto e textos de Maria João Frade, tem como título Home (Avenida Luísa Todi, 286). É precisamente no cenário da exposição que se dá início à 8. ª edição do Festival de Música de Setúbal, nesta quinta-feira às 18h, com o concerto de boas-vindas aos músicos e visitantes, Por Toda a Casa, criado por jovens compositores do Conservatório Regional de Setúbal e interpretados por músicos, também jovens, da Camerata do Festival. O programador e director artístico do festival, Ian Ritchie, referiu na conferência de apresentação que a ideia de “home” incorpora “os temas das sete edições anteriores”, lembrando que o mote do ano passado, “migrações, continua a influenciar a sociedade”. Por conseguinte, também o quis valorizar na programação de 2018. Neste registo, enquadra-se o concerto Pátrias, que na sexta-feira, às 21h, une no palco do Fórum Municipal Luísa Todi a Orquestra Sinfónica Portuguesa Camerata do Festival de Música de Setúbal, o Conservatório Regional de Palmela e a Orquestra do Conservatório Regional de Setúbal, dirigidas por Nuno Coelho, que venceu o Prémio Jovens Músicos em 2016. Vão interpretar Sibelius Lemminkäinen e a Ilha das Donzelas; Britten Peter Grimes, Four Sea Interludes; Smetana Šárka, O Meu País; António Laertes, Abertura A Pátria; Lopes-Graça, Cinco Romances Tradicionais Portugueses, e Sibelius, Finlândia. No programa explica-se: “Muitos compositores inspiraram-se na música e danças tradicionais, nos mitos e lendas dos lugares aos quais chamam casa: alguns, como os compositores incluídos neste concerto, foram mais longe e criaram música que captura a essência das suas pátrias e que de alguma forma definem a sua identidade nacional. ”Este concerto tem ainda a particularidade de os elementos da Camerata serem jovens músicos profissionais que nasceram em Setúbal e actualmente vivem e trabalham noutros países. Um aspecto realçado por António Laertes, músico e responsável da A7M, que faz parte da organização do festival: “Uma oportunidade de regressarem a casa e mostrarem na sua terra o trabalho que andam a desenvolver noutros lugares. ”Outra originalidade deste festival é o envolvimento da comunidade escolar, tendo já participado cerca de 10 mil alunos ao longo de todas as edições. O lado mais visível deste trabalho reflecte-se no imperdível cortejo de percussão que todos os anos anima a Avenida Luísa Todi, este ano com o título Ao Ritmo da Vida e com partida do Largo José Afonso às 10h30 de sexta-feira, rumo ao fórum. Como sempre, ao leme, o coordenador Fernando Molina, que conta com a ajuda do Ensemble de percussão do Conservatório Regional de Setúbal. O convite dita assim: “Siga os ritmos animados, sinta a energia e celebre a diversidade nas vidas daqueles para quem Setúbal é casa. ”Quem não duvida de que a cidade sabe acolher é o vereador da Cultura da Câmara Municipal de Setúbal, Pedro Pina: “Temos a capacidade de saber receber e integrar, seja de forma passageira aqueles que nos visitam pontualmente em trabalho ou lazer seja de forma permanente aqueles que aqui decidem fixar residência. Sempre o fizemos. Por isso o conceito de ‘home’ faz sentido na estratégia do município. Iremos continuar a tudo fazer para que cada um sinta a nossa cidade como um lar. ”De regresso a casa está Celina da Piedade, que voltou a residir em Setúbal e que nesta quinta-feira sobe ao palco na companhia de João Gil, Amigos do Independente, Coral Infantil de Setúbal e o grupo de percussão Santiago Olodum, para o concerto Em Casa (21h, Fórum Municipal Luísa Todi). “Cada vez sou mais solicitada para concertos que juntam vários tipos de música e estão muito integrados nas comunidades”, disse ao PÚBLICO a cantora, acordeonista e compositora. Recordou que, depois de o cante ter sido considerado Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO, fez um concerto com os Amigos do Independente. “Resultou. A partir daí, sou convidada para projectos semelhantes. Os concertos que tenho agendados até ao fim do ano são quase todos deste tipo. ”Gosta muito, mas diz que sente uma grande responsabilidade: “Há que ter muita sensibilidade para nos adaptarmos ao trabalho de quem convidamos para estar no palco connosco. ” O melhor de tudo, diz, “são os laços e as amizades que se criam”. Também lhe agrada o impulso que estes concertos dão aos grupos convidados: “Muitas vezes sentem-se esquecidos e assim ganham um novo fôlego e um maior ânimo para continuar. ” E há sempre muito público: “As comunidades envolvem-se e ficam orgulhosas de ter espectáculos desta natureza na sua terra. ” Em casa, portanto. No domingo (19h), último dia do festival, o Fórum Municipal Luísa Todi recebe a solista de jazz Maria João, acompanhada pela Ensemble Juvenil de Setúbal (um projecto de inclusão de jovens com necessidades especiais), dirigidos por Rui Borges Maia, no concerto Tudo Começa em Casa. Vão interpretar obras novas encomendadas a Eloise Gynn (Reino Unido) e Sara Ross (Portugal). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Novidade na edição deste ano é a realização de um simpósio internacional (dia 28 de Maio) com o tema “Música, Saúde e Bem-estar”, no Instituto Politécnico de Setúbal. Aí haverá uma reflexão, seguida de discussão sobre Musicoterapia — Educação Musical para pessoas com necessidades especiais. Está prevista a criação de um centro de musicoterapia, saúde e bem-estar em Setúbal, “para estudar ao mais alto nível o que tem sido feito nesta matéria no âmbito do festival”, disse António Laertes, realçando o trabalho continuado da orquestra Ensemble Juvenil de Setúbal nesse domínio. O festival é financiado pela Câmara Municipal de Setúbal, The Helen Hamlyn Trust, Fundação Calouste Gulbenkian e Caetano Sport. Nos anos anteriores, os temas foram: a natureza de Setúbal (2011); visitantes e imigrantes (2012); comunicação (2013); mar (2014); clima (2015), sal (2016) e migrações (2017).
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Perdidos e achados em Bolonha
Todos os anos, programadores de cinematecas, arquivistas, técnicos de restauro, investigadores, críticos e cinéfilos em geral convergem para a capital da Emília-Romanha. Durante uma semana, Il Cinema Ritrovato, dedicado à redescoberta de filmes e à exibição de cópias restauradas, é ponto de encontro incontornável da cinefilia de todo o mundo. (...)

Perdidos e achados em Bolonha
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: Todos os anos, programadores de cinematecas, arquivistas, técnicos de restauro, investigadores, críticos e cinéfilos em geral convergem para a capital da Emília-Romanha. Durante uma semana, Il Cinema Ritrovato, dedicado à redescoberta de filmes e à exibição de cópias restauradas, é ponto de encontro incontornável da cinefilia de todo o mundo.
TEXTO: Muito antes de ser utilizada como metonímia do espaço comum europeu do ensino superior, o nome de Bolonha era já sinónimo de uma das cidades mais belas, acolhedoras e inteligentes de Itália. Testemunho da prosperidade que conheceu ao longo de várias épocas, o centro histórico desenvolve-se em torno da Piazza Maggiore, estendendo-se por vários eixos repletos de edifícios merecedores de atenção, em várias gradações de ocre e ligados pelas suas características galerias. Não sendo uma cidade particularmente turística (a concorrência na região é forte), é um dos centros universitários mais prestigiados de Itália, para além de beneficiar de excelente culinária. Como se tudo isto não bastasse, possui uma cinemateca com um espólio monumental, que integra um dos laboratórios de restauro mais importantes a nível mundial (L’Immagine Ritrovata). Essa cinemateca organiza anualmente um festival, intitulado muito adequadamente Il Cinema Ritrovato, dedicado à redescoberta de filmes e à exibição de cópias restauradas, que se tem vindo a tornar num dos pontos de encontro incontornáveis da cinefilia de todo o mundo. Todos os anos, programadores de cinematecas, arquivistas, técnicos de restauro, investigadores, críticos e cinéfilos em geral convergem para a capital da Emília-Romanha para, durante uma semana, participar numa maratona de sessões de cinema, encontros, conferências e seminários, que começam todos os dias às nove da manhã e que se prolongam quase sempre até depois da meia-noite. A edição deste ano (decorreu de 23 de Junho a 1 de Julho) tinha Marcello Mastroianni no cartaz. Todos os motivos são bons para homenagear a arte de Marcello, um dos maiores ícones do cinema italiano e, não esquecer, um dos maiores actores de cinema de sempre – Il Cinema Ritrovato apresentou uma pequena selecção de filmes que Mastroianni rodou entre 1954 e 1974, alguns dos quais pouco conhecidos. Mas o programa de 2018 foi o costumado embaraço de escolhas: a habitual atenção dedicada aos filmes de há 100 anos, assinalou alguns outros centenários (os dos nascimentos de Ingmar Bergman e de Luciano Emmer) e ofereceu uma profusão de secções imperdíveis ou, no mínimo, interessantes. Martin Scorsese, anjo providencial na batalha da preservação da Sétima Arte, tem colaborado activamente com a Cineteca di Bologna através da Film Foundation, que dirige, e este ano desceu à terra, perdão, veio a Bolonha, para participar num debate com cineastas italianos (Jonas Carpignano, Matteo Garrone, Alice Rohrwacher) e apresentar, perante uma Piazza Maggiore a abarrotar, versões restauradas do clássico mexicano Enamorada, de Emilio Fernández (1946), e da sua obra-prima O Toiro Enraivecido (1980). Se dúvidas ainda restassem de que a necessidade do restauro não diz respeito apenas a “velharias”, basta ver a quantidade de filmes relativamente recentes, ultraconhecidos e cujos negativos que se pensaria que estão bem conservados, a necessitarem de intervenção. Não nos referimos a versões truncadas ou à proliferação de director's cuts , mas tão simplesmente à recuperação de cópias em decomposição ou com cores alteradas. Este ano, paralelamente às versões restauradas de A Vida de O'Haru (Saikaku Ichidai Onna, 1952), um dos mais belos e mais tristes filmes de Mizoguchi, e de Primavera Precoce (Soshun, 1956), que apesar de fazer parte da última fase de Ozu é um dos seus filmes menos conhecidos precisamente porque o estado da cópia que circulava em DVD era péssimo, Bolonha exibiu os recentes restauros dos oscarizados O Padrinho (1972) e O Caçador (1978) ou dos ainda mais recentes Mishima, de Paul Schrader (1985), e Tucker –? O Homem e o Seu Sonho de Francis Ford Coppola (1988) que, independentemente da opinião sobre a sua qualidade, são filmes cujo aspecto visual é fundamental. Por entre a recuperação de filmes mainstream como estas dos movie brats de Hollywood, outras houve que vieram permitir ver filmes malditos, virtualmente invisíveis desde a sua estreia. É o caso de The Last Movie (Dennis Hopper, 1971), talvez o filme menos convencional e mais audacioso alguma vez produzido por Hollywood. Depois do êxito de Easy Rider, Hopper conseguiu que a Universal lhe financiasse esta extravagância (rodado em grande parte no Peru, sem guião prévio). Depois de uma rodagem caótica, o estúdio, sem saber o que fazer com o objecto insólito que tinha entre mãos, estreou-o quase em segredo, nunca o chegando verdadeiramente a distribuir. A cópia apresentada permite fazer alguma justiça à ousadia de Hopper. A vaga trama de The Last Movie fala da interrupção da rodagem de um western no Peru, após a morte acidental de um dos atores principais; um dos membros da equipa, um duplo (Dennis Hopper), permanece no país com uma das actrizes peruanas e acaba por participar num remake (imaginário?) do filme, realizado por uma equipa local. Nem tudo faz muito sentido, mas uma vez ultrapassada a perplexidade, há muito a desfrutar nesta obra. Uma alegoria do neocolonialismo americano? Uma metáfora de Hollywood? Uma trip em livre curso? Aceitam-se palpites. O segmento Ritrovati e Restaurati do festival, a par do capítulo dedicado aos filmes de há 100 anos (Cento anni fa: 1918), ocupa a parte principal da programação: vários filmes de curtíssima duração (cerca de cinco minutos, como os dirigidos por Segundo de Chomón para a Pathé nos anos 1906-08 ou as duas curtas de Walt Disney de 1927 e 1928 descobertas na Biblioteca Nacional da Noruega); duas curtas metragens alemãs de 1918, uma de Robert Wiene e outra de Ernst Lubitsch; a espectacular apresentação na Piazza Maggiore (com a partitura original executada ao vivo por uma orquestra dirigida por Gillian Anderson) do restauro do primeiro filme americano do mesmo Lubitsch, Rosita (1923), produzido e estrelado por Mary Pickford; dezenas de outras longas-metragens (cerca de 40), todas recentemente restauradas por diversos laboratórios em vários países (com a parte de leão cabendo, naturalmente a L’Immagine Ritrovata de Bolonha) e muitas delas igualmente redescobertas após terem caído no esquecimento ou terem sido objecto de censura, política ou simplesmente económica, como o já referido The Last Movie — tudo isso fez parte da selecção deste ano. Um dos casos curiosos de censura (ou antes, autocensura) prende-se com o filme “invisível” de Ingmar Bergman, Sånt händer inte här (High Tension ou, literalmente, This Can't Happen Here), filme de espionagem que o cineasta sueco rodou em 1950 e que depois renegou (ao que parece, já o rodara extremamente contrariado), tendo envidado todos os esforços para que não fosse exibido, mesmo nas retrospectivas mais completas. O filme é afinal mais interessante do que a sua reputação parecia indicar. Totalmente atípico na obra de Bergman, mesmo para a época (entre Rumo à Felicidade e Um Verão de Amor), insere-se na tradição do nordic noir, que se havia inspirado no film noir francês de Duvivier, Grémillon e Carné. Se bem que a história seja convencional (intriga típica de espionagem do início da guerra fria), sem grande esforço podemos detectar um tom bergmaniano na relação “de massacre” conjugal. Além disso, algumas das sequências são visualmente notáveis (em grande parte graças à contribuição do director de fotografia Gunnar Fischer), como a inicial, da chegada a Estocolmo da personagem de Ulf Palme, o transporte do seu “cadáver” pelos bastidores de um teatro, ou a perseguição que termina na sua queda do elevador de Katarina. Não se pode dizer que René Clair esteja esquecido, mas anda um pouco arredado das graças dos críticos e programadores contemporâneos. Em boa hora, a exibição em Bolonha de três dos seus filmes, de épocas e estilos muito distintos — Entr'act, média metragem vanguardista encomendada em 1924 para ser exibida no intervalo de um ballet de Francis Picabia, com música de Erik Satie, Os Dois Tímidos (Les deux timides), comédia rocambolesca de 1928, hoje praticamente esquecida, e sobretudo O Silêncio é de Ouro (Le silence est d'or), com Maurice Chevalier, o seu primeiro filme realizado em França após o exílio voluntário nos Estados Unidos durante a guerra — vêm relembrar por que foi um dos cineastas franceses mais apreciados na primeira metade do século XX, conseguindo o raro feito de congregar os favores do público, da crítica e dos pares. A reputação de Giuseppe De Santis, um dos mais celebrados realizadores do neo-realismo (Não Há Paz Entre as Oliveiras, Arroz Amargo), não sobreviveu intacta até aos nossos dias mas, a avaliar por Um Dia de Amor (Giorni d’amore, 1954), que figurou na homenagem a Mastroianni, talvez merecesse melhor sorte. Uma história de amor lírica que desune duas famílias rurais pobres serve ao comunista De Santis para pregar o seu credo mas, muito mais do que isso, para demonstrar a sua habilidade de contador de histórias e o seu humor na descrição de uma comunidade de província tipicamente italiana. Bolonha dedica habitualmente uma retrospectiva a um cineasta italiano. Entre os homenageados mais recentes, alguns nomes famosos na sua época, como Renato Castellani, Mario Soldati ou Augusto Genina. Este ano foi a vez de Luciano Emmer, de quem se comemora o centenário do nascimento. Já com uma longa série de documentários de arte (género que praticamente criou e ao qual se manteve fiel ao longo da sua carreira) quando assinou o seu primeiro filme de ficção, o belíssimo Domingo de Agosto (Domenica d’agosto, 1950), Emmer conheceu um certo êxito de público com as oito longas-metragens que realizou ao longo dos anos 50, embora a crítica sempre o tenha detestado. Acabou por ter um percurso anómalo, uma vez que abandonou o cinema em 1961, na sequência dos problemas com a censura de que foi vítima o filme La ragazza in vetrina, para se dedicar à televisão, onde prosseguiu o seu interesse pelo documentário, realizando telefilmes e pequenos filmes publicitários, numa época em que a publicidade estava banida da televisão. Só regressou ao grande ecrã em 1990, tendo realizado mais quatro filmes até ao seu desaparecimento em 2009. A mostra teve como subtítulo "a arte do olhar" e era disso que se tratava: Emmer retratou a pequena burguesia nascente na Itália do pós-guerra, uma nova geração urbana que, embora trabalhando no centro, vivia ainda na periferia das grandes cidades. Marisa, Elena e Lucia, as três raparigas do título de Raparigas de Roma (Le ragazze di Piazza de Spagna, 1952), vivem os pequenos dramas da entrada na vida adulta, narrados pela pena atenta de Sergio Amidei e pelo olhar poético de Luciano Emmer. Uns anos depois, as suas personagens iriam viver os grandes dramas da dolce vita. Outro dos maravilhosos retratos de grupo realizados por Emmer dados a ver em Bolonha foi Sete Anos de Liceu (Terza liceo, 1954). Um documento sobre duas gerações num país em transformação acelerada, centrado num grupo de estudantes do último ano de um liceu de Roma. O olhar de Emmer é simultaneamente terno, arguto e verdadeiro. Os seus detractores na época (e foram muitos) designaram o seu cinema por “neo-realismo cor-de-rosa” porque o cineasta se recusava a tratar dos grandes temas sociais, preferindo abordar as emoções das pequenas personagens, esquecendo-se esses críticos de que por trás dessas gentes estavam paisagens, grupos, movimentos. Como quem não quer a coisa, Emmer bem pode ter sido o grande retratista das transformações sociais do “milagre económico” italiano. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Das suas obras maiores, La ragazza in vetrina é certamente uma das mais estarrecedoras, e aquela em que o equívoco do rótulo “neo-realismo rosa” é mais evidente. O filme mostra a emigração italiana nas minas belgas e holandesas numa época em que se começava a tornar evidente que as condições de trabalho eram duras (ao contrário da versão oficial); contudo, depois de uma primeira meia-hora com algumas das cenas de galerias de minas mais opressivas jamais mostradas no cinema, Emmer leva os seus dois mineiros (Lino Ventura e Bernard Fresson) para Amesterdão, onde se irão cruzar com duas "meninas das montras” (Marina Vlady e Magali Noel), com quem passarão um fim-de-semana quase sem história. Emmer revela-se fiel às características do seu cinema: o grande filme das minas converte-se afinal num grande filme sobre as aspirações de pequenas personagens, atento ao meio em que se inserem, à verdade dos seus pequenos gestos. Se a retrospectiva Emmer, ao contribuir para combater mais uma das grandes injustiças da memória em que a história do cinema é fértil, foi sem dúvida um dos momentos mais significativos, muitos outros justificaram a edição de Il Cinema Ritrovato deste ano: o encontro com Anna Karina, que veio apresentar o restauro de A Religiosa; a descoberta de La Vie de Plaisir, realizado por Albert Valentin em 1944, retrato implacável da alta sociedade francesa num cruzamento entre uma Regra do Jogo já destituída de qualquer carácter premonitório e uma versão gaulesa das comédias de recasamento (segundo a expressão cunhada pelo recentemente desaparecido ensaísta Stanley Cavell), que nada fica a dever às suas congéneres americanas; Sir Christopher Frayling, biógrafo e grande especialista de Sergio Leone, analisando as referências cinematográficas dos 20 minutos iniciais de Era Uma Vez no Oeste; o silêncio — e a emoção — de milhares de pessoas assistindo à projecção de Ladrões de Bicicletas no ecrã gigante da Piazza Maggiore. . .
REFERÊNCIAS:
Reinventando Hillary
Foi um caminho de 25 anos, de obstáculos que nunca a fizeram desistir. Esta é a última oportunidade para chegar ao cargo para o qual se preparou toda a vida. (...)

Reinventando Hillary
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Foi um caminho de 25 anos, de obstáculos que nunca a fizeram desistir. Esta é a última oportunidade para chegar ao cargo para o qual se preparou toda a vida.
TEXTO: Foi um caminho de 25 anos, de obstáculos que nunca a fizeram desistir. Esta é a última oportunidade para chegar ao cargo para o qual se preparou toda a vida. Para Bill, tudo era sempre fácil. Para ela, ficavam os sacrifícios, as pedras no caminho, a sombra de um Presidente que ainda hoje os americanos adoram. Saiu da Casa Branca, em 2000, pensando que chegara finalmente a sua hora. Foi senadora por dois mandatos pelo Estado de Nova Iorque, à espera da sua oportunidade nas presidenciais de 2008. Quando finalmente tinha ao alcance da mão o cargo para que se preparara, com Bill, toda a vida, teve de enfrentar um fenómeno que acontece uma vez no tempo de uma geração, que nem ela nem ninguém viu chegar. Não desistiu, como nunca desistiu ao longo da sua longa vida política. Com todas as cicatrizes que o tempo não curou totalmente, com a tranquilidade do seu novo estatuto de avó, está preparada para conquistar o lugar de mulher mais poderosa do mundo, incluindo os homens. Ninguém está mais bem preparado do que ela. Mas também em 2008 ninguém parecia estar mais bem preparado do que ela. Iria herdar uma América farta de guerras, mal vista em toda a parte, prestes a mergulhar numa crise económica de uma enorme dimensão, mas ainda convencida da sua eterna vocação para liderar o mundo. Era suficientemente conhecida para que os democratas a aceitassem como a sua candidata “natural”. O fenómeno chamava-se Barack Obama e era a encarnação do “sonho americano”, o símbolo vivo de que, na América, tudo é possível, somado a um carisma irresistível e olhado como a boa nova para o mundo. A sua estratégia de campanha era ela própria, pronta para quebrar o último tecto de vidro da emancipação das mulheres, mas sem sublinhar demasiado o seu lado feminista, impróprio para o lugar de comandante-em-chefe. Curiosamente, ela própria tinha tido a experiência do que pode fazer a eterna capacidade da América para se reinventar a si própria — em 1992, quando um jovem governador do Arkansas, um dos estados mais pobres da União, sem fortuna nem família ilustre, ousou candidatar-se à Casa Branca contra um Presidente também ele olhado como imbatível: presidira ao fim da Guerra Fria, garantindo a unificação pacífica da Alemanha e a implosão da União Soviética. Carismático, brilhante, intuitivo, Bill Clinton tirou todo o partido da recessão económica que marcou os últimos anos de George Bush. Em vez de falar de “uma nova ordem mundial”, preferiu: “É a economia, estúpido. ” Hillary tinha sido fundamental para a sua carreira no Arkansas. Simbolizava a libertação das mulheres da geração do baby boom. Acreditava que podia ser uma primeira-dama diferente. Bill dizia que os americanos ficavam com “dois pelo preço de um”. Completavam-se um ao outro, formando uma poderosa “parelha política”. Obama representava uma ruptura a uma escala ainda maior e mais inesperada, depois do momento “unipolar” da América. Era, ele próprio, a última encarnação do sonho americano. Hillary não percebeu a dimensão do fenómeno. Só viu um novato, inexperiente e ingénuo. Apenas ela estava preparada para atender um telefonema às três da madrugada e saber o que fazer. A crise financeira que se abateu sobre a América e o mundo ainda não revelava toda a sua dimensão. Acreditava na necessidade de mudança em relação aos anos de George W. Bush, mas não questionava a essência do poder americano. Não prestou atenção a quem apoiava o jovem senador do Illinois: homens, brancos, educados, para além de uma mobilização inédita dos jovens, noutras circunstâncias afastados da política. Ainda ninguém tinha a certeza de que a América estaria preparada para eleger um negro para a Casa Branca. “A sua entourage não compreendeu o desafio que Obama representava, foram completamente ultrapassados, no plano intelectual e estratégico”, diz Justin Vaisse da Brookings Institution, logo em Junho de 2008 quando tudo já havia terminado para Hillary. Quando, no fim-de-semana passado, a candidata visitou o Iowa, foi em circunstâncias absolutamente diferentes. Foi nesse estado gelado, branco e conservador que em 2008 começou a ter noção de quanto seria difícil a sua caminhada. Obama recolheu mais votos e ela ficou em terceiro lugar, atrás de John Edwards. Agora inverteu a estratégia. A sua campanha não é sobre ela. Nem precisaria de ser, porque o seu problema é ser demasiado conhecida, carregando consigo um enorme baú cheio das coisas boas e más que se acumulam numa vida. Diz que quer merecer cada voto. Humildemente. A palavra de ordem é go slow, go small. Há sete anos, quando chegou a New Hampshire, o pequeno Estado do Norte onde começam verdadeiramente as primárias, teve a confirmação de que alguma coisa de inesperado se passava. Famílias com os filhos ao colo atravessavam caminhos cobertos de neve para ir votar… em Obama. Foi a única vez que mostrou fraqueza, deixando cair algumas lágrimas, coisa rara em quem já tinha passado por tudo e resistido a tudo. Não resistiu à mais ingénua das perguntas de uma outra mulher: como é que consegue manter-se sempre tão bem penteada e arranjada? O seu campo ficou preocupado com uma imagem de fraqueza imprópria do “homem mais poderoso do mundo”. Desta vez, é o seu lado humano que quer mostrar. Não hesita em dirigir-se ao eleitorado feminino, com um discurso a favor de uma igualdade real. Tem aí uma enorme reserva de votos. No seu partido, há quem a acuse de lhe faltar uma visão do futuro. Os republicanos dizem que é uma candidata “do passado”. Os comentadores interrogam-se sobre o que ela realmente pensa. Pergunta estranha para alguém que está no palco há 25 anos. Os sectores mais à esquerda dos Democratas temem que não se distancie o suficiente de Wall Street. Querem que prometa regras mais duras para os mercados financeiros, se comprometa com um salário mínimo decente, que se proponha a reverter a injustiça fiscal. Também aqui é preciso voltar atrás. Bill Clinton tratou de modernizar o Partido Democrata antes de lançar a sua candidatura. Os Novos Democratas eram mais amigos do mercado e da liberalização económica, preparando-se para um mundo que seria cada vez mais global e colhendo os dividendos da vitória na Guerra Fria. Revolucionou o entendimento do Estado social com a célebre fórmula “from welfare to workfare”, acrescentando que havia direitos mas também responsabilidades. Foi o pai da “terceira via” europeia. Hillary tem de lidar com uma situação radicalmente diferente: contra os excessos dos mercados que conduziram à maior crise da economia americana e mundial desde a Grande Depressão. Nesse sentido, o vídeo de menos de três minutos com que lançou a sua candidatura é um programa completo. Os heróis são as famílias e de todas as cores e feitios que lutam por uma vida decente. A mensagem dirige-se à classe média americana, que sofreu duramente com a crise e que tem o direito de receber parte dos benefícios que a retoma venha a gerar. O seu alcance é ainda maior, na medida em que a estagnação dos rendimentos da classe média já vem muito detrás, da revolução conservadora de Reagan e de Thatcher, com um imparável aumento das desigualdades. A globalização, com a deslocalização do trabalho industrial (e bem pago) para o resto do mundo e a multiplicação de empregos nos sectores dos serviços pouco especializados e mal pagos, aumentou ainda mais o fosso. Mesmo que quisesse fazer outra coisa, Obama teria de dar prioridade à recuperação da economia. Hillary chega quando a crise está ultrapassada e a economia volta a crescer. “Não temos mobilidade social suficiente”, disse recentemente num debate organizado pelo Center for American Progress, um think-tank que lhe está próximo. Nos encontros que teve no Iowa, à mesa do café, numa bomba de gasolina ou numa pequena escola, Hillary prometeu alterar a forma como as campanhas são financiadas, movendo somas loucas (como é o caso da sua), acentuado a disfuncionalidade do sistema político. Num mail enviado aos apoiantes, clarificou a sua mensagem sobre a desigualdade: “Muitas famílias ainda estão a passar por tempos difíceis, enquanto os CEO [das grandes empresas] ganham cerca de 300 vezes mais do que o salário médio de um trabalhador. ” Em 1965, um CEO ganhava cerca de 20 vezes mais do que o salário médio americano, de acordo com um estudo feito pelo Economic Policy Institute, um think-tank liberal (no sentido americano), citado pela Reuters. Hillary tem de combater uma imagem que a associa aos super-ricos e a Wall Street, que sempre a apoiou quando era senadora, lembra o correspondente do Guardian nos EUA. Está a colocar a sua mensagem um pouco mais à esquerda. No Iowa, disse que “há alguma coisa errada quando os gestores de edge funds pagam menos impostos do que as enfermeiras ou os camionistas” que encontrou no caminho para Des Moines. Toda a gente anda à procura do que poderá ser a sua política económica. A Bloomberg dá conta de um relatório assinado em co-autoria pelo antigo secretário de Estado de Clinton Lawrence Summers e Ed Balls, o porta-voz do Labour britânico para as questões económicas, que foi preparado pelo Center of American Progress e que pode ser a base da política económica da candidata. O relatório defende o aumento dos salários, a criação de emprego e uma melhor repartição dos ganhos económicos através dos impostos. O seu propósito é eliminar as excepções “temporárias” criadas por George W. Bush para os mais ricos, com o pretexto de dinamizar a economia contra a crise, que Obama ainda não conseguiu reverter, dando margem para beneficiar directamente as famílias cujo rendimento esteja abaixo dos 95 mil dólares. A campanha é uma cuidada coreografia para reinventar a candidata. Não vai ser fácil alterar a sua aura de membro da “realeza política” de Washington, dos Clinton ou dos Bush. “Clinton não está a correr contra um opositor democrata credível. Está a correr contra o seu próprio passado”, escreve Paul Lewis, correspondente do Guardian. Difícil de apagar. Mas esse passado também pode ser um trunfo. “Um dos melhores instrumentos que tem à sua disposição é a sua capacidade para projectar a política a um nível quase presidencial”, diz Joe Trippi à Reuters. Outros lembram que as campanhas ganhadoras têm de ser sobre o futuro. Não ficou parada quando perdeu as primárias para Obama. Acrescentou ao seu vasto currículo os quatro anos em que foi a sua competente e leal secretária de Estado. “Ela percebeu que fazia parte da equipa de Obama e que não era uma ‘co-presidente’”, escreve um dos seus antigos consultores de 2008, Michael O’Hanlon. Acumulou uma enorme bagagem internacional, num percurso praticamente sem falhas, mesmo que sem grandes momentos. Tem amigos em toda a parte. Facto inédito, os seus colegas europeus deixaram de lado a habitual “não ingerência” na política dos outros países, para lhe manifestarem o seu apoio. Quando a Chatham House, um dos mais prestigiados think-tanks britânicos, lhe atribuiu em 2013 o prémio que anualmente entrega a uma figura que tenha influenciado a cena internacional, não lhe faltavam justificações. Hillary “abriu uma nova era na diplomacia americana, foi instrumental na reorientação do foco estratégico dos EUA para a Ásia-Pacífico”. Sendo leal ao Presidente, sabia-se que mantinham algumas divergências. Em 2008, Hillary era vista como um falcão, Obama como uma pomba, mesmo que hoje esta designação típica da Guerra Fria já não faça grande sentido. Votou a favor da guerra do Iraque e Obama votou contra. Esperou pelo fim do seu mandato para se distanciar sem grande alarde de algumas das decisões do Presidente. Critica-o por não ter apoiado logo de início a rebelião contra o regime de Damasco, recusando-lhe maior capacidade militar e deixando criar um vazio que o Estado Islâmico ocupou. Ainda não se pronunciou em definitivo sobre o histórico acordo com Teerão. Em Agosto do ano passado, numa célebre entrevista à revista Atlantic, defendeu uma posição mais dura e disse compreender as reservas e as exigências de Telavive e de Riad. O Irão não deveria ficar nem sequer com o direito de enriquecer o urânio a 5%. As negociações deviam também pôr em cima da mesa os apoios do Irão a movimentos terroristas. Mas criticou duramente a carta que 47 congressistas republicanos enviaram ao Presidente Hassan Rohani, dizendo que nunca respeitariam o acordo, em plena fase final das negociações. “Somos obrigados a perguntar qual é o objectivo desta carta e só parece haver duas respostas lógicas: ou estes senadores estão a tentar ajudar o Irão ou estão a boicotar o comandante-em-chefe em plena negociação da maior importância. Qualquer delas desacredita os seus assinantes. ”Foi um dos protagonistas do “reset” com a Rússia, mas há já algum tempo que insistia com o Presidente sobre a necessidade de carregar no botão da pausa. Foi no pivô (agora chamado mais moderadamente “reequilíbrio”) para a Ásia-Pacífico que a sua diplomacia suscitou mais aplausos. Nesse caso, a sua visão coincidia com a de Obama e foi ela quem teve de a executar, corrigindo a rota quando necessário. Enquanto o Presidente recém-investido vinha à Europa, rendida ao seu fascínio, para as cimeiras do G20 e da NATO, ela partia para a Ásia, em visita aos aliados regionais, garantindo-lhes o compromisso dos Estados Unidos com a sua segurança e a intenção americana de manter uma presença forte na região. Diz Michael O’Hanlon, hoje na Brookings, “que ela contrariou a nova agressividade de Pequim com firmeza, mas também com elegância e sem provocações desnecessárias”. Não hesitou em travar uma batalha pública pela libertação de um dissidente cego, Chen Guangcheng, num tom pouco apreciado em Washington e detestado em Pequim. “Alguns dos conselheiros do Presidente preocupavam-se com o facto de estarmos a destruir a relação entre a América e a China”, escreve no livro que publicou com a sua experiência à frente da política externa americana, Hard Choices. “Mas ninguém estava preparado para ser responsável por deixar Chen entregue ao seu destino, mandando-nos sair de cena. ” No seu último discurso como secretária de Estado, Hillary apresentou a política para a Ásia-Pacífico como um exemplo do conceito de “smart power”, distinto da velha dicotomia entre soft power e hard power. “Mandámos marines para Darwin, mas também ratificámos o Tratado de Comércio com a Coreia do Sul. Respondemos ao triplo desastre no Japão através do nosso Governo, dos nossos empresários, das organizações privadas sem fins lucrativos, lembrando a toda a região o papel insubstituível que a América representa. ”Escreveu um artigo na Foreign Policy com o título “America Pacific Century”, resumindo a sua política: “Estamos a desenvolver um forte compromisso regional na Ásia-Pacífico, estamos a trabalhar para construir a confiança entre a China e os EUA, e estamos empenhados em expandir a cooperação económica, política e de segurança sempre que seja possível. ” A China acusou-a de querer “conter” o seu poder crescente. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “É este o tempo de Hillary?”, pergunta o correspondente da BBC World nos EUA. “Perante o actual alinhamento das forças políticas em Washington, Clinton é a única esperança de cimentar os ganhos políticos conseguidos nos últimos oito anos. ” E aqueles que ficaram por tratar, incluindo a política de imigração, que ela sempre apoiou. Experiência e competência podem agora fazer mais sentido do que em 2008, quando ela as opôs à imbatível mudança de Obama. Serviu um Presidente que avisou ser preciso “reconstruir a América” antes de reconstruir o mundo, embora o mundo, como se sabe, nunca deixe os EUA em paz. “Ela sempre acreditou que os Estados Unidos têm de continuar a desempenhar uma liderança mundial activa para fortalecer a ordem internacional”, escreve Thomas Wright no site Politico. Em Agosto do ano passado, na mesma entrevista à Atlantic, defendeu veementemente Israel perante a invasão de Gaza, embora tenha passado o seu mandato a gritar com Benjamin Netanyahu por causa dos colonatos. “Quem começou o conflito?” “Foi o Hamas. ” Hillary tem ainda presente a experiência de Bill, que não quis acabar o seu segundo mandato sem uma última tentativa para resolver o eterno conflito israelo-palestiniano. Primeiro com Yitzhak Rabin, assassinado por um fanático, depois com Ehud Barak. “Ambos ofereceram tudo o que possamos imaginar num cenário realista para os palestinianos terem um Estado, e Arafat recusou. ” Hillary ainda olha para a superpotência americana a partir da sua natureza excepcional. Aprendeu no Departamento de Estado que chega gente dos quatro cantos do mundo para lhe dizer: temos um problema, como é que tenciona resolvê-lo? Acredita na defesa dos valores universais da América, mas reconhece que “aprendemos os limites do nosso poder para expandir a liberdade e a democracia”. É a grande lição do Iraque. Fica a questão fundamental. Vai ou não Hillary ser capaz de gerar uma onda de entusiasmo sobre o futuro da América? Vai utilizar sem restrições a carta feminina, até porque tem um bom registo nesta matéria? Sabe o que lhe custou ter de dizer publicamente que também sabia ir para a cozinha fazer bolos, quando o segundo mandato de Bill estava em risco e a campanha lhe exigiu um comportamento mais convencional de primeira-dama. É a última oportunidade que tem para chegar ao lugar para o qual se preparou toda a vida. Como sempre não poupará um único esforço. Por enquanto, parece difícil batê-la. Ainda não definiu qual será o papel de Bill Clinton, que se apresenta como um soldado disposto a fazer aquilo que ela mandar. Está em dívida para com ela. É uma boa altura para a pagar.
REFERÊNCIAS:
Cancro, o imperador de todos os males
A cientista Maria de Sousa e o patologista Manuel Sobrinho Simões fazem perguntas, questionam o modo como se faz ciência, dialogam sobre uma doença que é parte de nós, nos invade e muitas vezes nos mata. É uma entrevista dura. (...)

Cancro, o imperador de todos os males
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A cientista Maria de Sousa e o patologista Manuel Sobrinho Simões fazem perguntas, questionam o modo como se faz ciência, dialogam sobre uma doença que é parte de nós, nos invade e muitas vezes nos mata. É uma entrevista dura.
TEXTO: Cancro ou cancros? Em que estádio? Em que hospedeiro? Submetido a que agressão ambiental? Um cancro é um que cresce dentro de nós. É o “gémeo univitelino que não tivemos ao nascer. [. . . ] Tão bem sucedido aliás que, na sede de sobreviver e crescer, acaba frequentemente por nos (e se) matar”, explica Manuel Sobrinho Simões no livro. É o imperador de todos os males, assim designado por Siddhartha Mukherjee, no livro homónimo de 2010. É uma representação da morte, palavra última que nos detém (para recorrer a um poema de Sófocles traduzido por David Mourão Ferreira que Maria de Sousa traz para o livro: “Inúmeras são do mundo as maravilhas, mas nenhuma que ao homem se compare. É o ser dos recursos infindáveis [. . . ] Aquilo que o detém? Somente a morte”). Os cancros que mais matam em Portugal são os do cólon e recto, pulmão e brônquios, e estômago, em ambos os sexos; os da mama e próstata nas mulheres e nos homens. Os números de 2010 segundo o Instituto Nacional de Estatística: morreram 24. 917 pessoas devido a doenças cancerosas. O cancro mata. Não mata sempre. Prevê-se que num futuro próximo (uma ou duas dúzias de anos) mais de metade da população vá ter cancro. É bom que nos habituemos a isso. Esta entrevista aconteceu na Ordem dos Médicos, no Porto. Não foi fácil para nenhum dos intervenientes. Porquê? Porque todos conhecemos pessoas que morreram por causa da doença, que têm a doença, porque nós podemos ter a doença. Muda tudo. Maria de Sousa — Não gosto do caranguejo. MdS — Tentei, para esta entrevista, que é muito difícil, por respeito pelas pessoas que têm cancro — e toda a gente vai ter, como diz o New York Times —, colocar o cancro numa perspectiva histórica. Tudo começa com o aparecimento de um tumor, uma massa. Com o progresso da ciência médica, a primeira coisa que acontece é a cirurgia — tira-se. Depois, percebe-se que, mesmo tirando, aquilo nunca mais acaba — volta. Depois, segue-se a irradiação. Depois, aparece o conceito da imunologia, a importância de uma surveillance imunológica. Depois, desenvolve-se a química, a quimioterapia. Hoje, se uma pessoa tiver um tumor, ainda passa por estes passos históricos. MdS — Há um progresso parcelar imenso, que permite a melhoria do prognóstico e da prevenção. Mas globalmente isto não é assim. Globalmente, temos de dizer a um amigo: “Não há muito a fazer. ” Como é que é possível o progresso que se fez na sida, em 30 anos? O que é que é diferente? No caso do cancro, andamos há 200 anos a fazer progressos, mas não é comparável. MSS — Controlável. MdS — Não é estigma, é a realidade. MSS — Estou de acordo com a Maria. Há um elemento numa entrevista sobre cancro que é terrível. Temos pessoas de quem somos muito amigos que morreram, que têm agora e que podem vir a ter cancro. E nós próprios. Isso pesa sobre…MdS — A própria entrevista. Imenso. MSS — Percebo que não goste do caranguejo porque é datado. Mas há uma coisa no caranguejo que continua a ser verdade: o cancro é um ser vivo que cresce dentro de nós e que não respeita as fronteiras. O que nos caracteriza como seres vivos é termos fronteiras. É porque não respeita as fronteiras que aparece depois noutros sítios. Vai sendo capaz de se reproduzir à distância. E é este o perigo. A maioria dos cancros não mata as pessoas em mais de 50% dos casos. Mas sabemos que podem morrer. MSS — Sim. Uma ameaça que já não é substanciada em número, mas que nos faz ter muito medo. MdS — A diferença entre nós é que eu, como investigadora básica, partilho de um sentimento de culpa. Como é que as coisas evoluíram de tal maneira e não se sabe quais são as fronteiras? Sabe-se tanto, tanto, tanto. Mas falta qualquer coisa. Isto tem que ver com a forma como fazemos investigação, com a forma como se faz ciência. E por isso é que a sida é muito importante. Os doentes contribuíram para o avanço que se fez na investigação. Se a sida tivesse ficado em África, como ficou a malária, se não tivesse atingido ruas de homens que viviam em São Francisco, talvez o progresso ainda estivesse lá atrás. MdS — Estou a falar da importância da participação das pessoas. Eu estava em Nova Iorque nos anos 80. Os médicos novos nunca tinham visto pessoas da mesma idade morrer assim. Aquilo mobilizou de uma maneira extraordinária. Aqui, uma pessoa que tem um cancro diagnosticado o que quer é ser tratada. MSS — Isso é verdade. Apesar de tudo, na sida, há um agente externo causal. No cancro, o desencadeador pode ser um agente externo, e é muitas vezes. Quase nunca é um vírus. Estamos a discutir uma coisa que é crucial: porque raio evoluímos tão pouco?MdS — Evoluímos no conhecimento. MSS — No conhecimento evoluímos imenso. E na eficiência do tratamento. MSS — Não tem chegado. MdS — Os da imunologia acham que é a imunologia que vai resolver. Os da genética acham que é a genética. Depois não há instituições que encorajem os da genética a falarem com os da imunologia. MSS — Faz todo o sentido. Há aqui um elemento que nos distingue. A Maria é cientista, mesmo, e eu sou um patologista, um médico. O cancro é uma espécie de preço que temos de pagar por nos mantermos uma espécie viva. MSS — Pela manutenção de uma espécie que ainda por cima esticou a duração da sua vida. E ainda por cima se expôs mais ao sol, engordou, fuma, toma medicamentos que são imunossupressores. O nosso problema no cancro não é a causa, é o desenvolvimento. E o desenvolvimento é nosso, somos nós. Nós com uma instabilidade genética de tal ordem que torna estas aproximações, como a Maria diz, sempre parcelares. Há muita gente que acha que se soubermos mais dos genes e dos epigenes e dos metagenes, que quando tivermos de cada pessoa uma descrição completa, vamos poder tratar essa pessoa identificando cada uma dessas coisas como alvos. Não vamos. Porque, sempre que aumentamos o número de alvos sobre os quais tratamos os doentes, aumentamos a toxicidade. MSS — São alvos que fazem parte de nós. Sou muito céptico em relação à capacidade de tratar cancros que estejam desenvolvidos. Sou muito favorável à possibilidade de virmos a controlar a doença. MdS — Essa é a parcela em que se tem avançado mais. MSS — Esses tratam-se com cirurgia. E a cirurgia cura se se tiver a sorte de aquilo não ter deixado de respeitar as fronteiras e não tiver uma metástase à distância. À medida que as populações forem mais idosas, e passarmos a ter, para além da exposição aos agressores ambientais, uma incapacidade de corrigir erros (porque permanentemente cometemos erros genéticos nas divisões [celulares]), vamos ter mais cancros. MSS — Vamos ter todos pelo menos um cancro, ou dois. Mas vão ser tão tarde que não nos vão causar problemas. Vamos morrer com os nossos cancros. Estamos a falar de duas coisas diferentes. O cancro enquanto doença mortal num adulto, num adolescente ou numa criança. Ou o cancro numa pessoa idosa que vai ter, se prolongar a sua vida até aos 90, 100, 110, inexoravelmente, dois, três, cinco cancros. MSS — Pensávamos que o sistema imunológico era para nos defender das coisas de fora. MdS — Numa primeira fase em que num tumor aparecem células do sistema imunitário, por causa da influência histórica, o que a pessoa pensa é que aquelas células estão lá para matar o tumor. Curiosamente, é o Manuel Sobrinho a primeira pessoa que me diz que é capaz de não ser sempre assim. MSS — No [cancro] da tiróide, alguns linfócitos, em vez de serem matadores das células malignas, proporcionavam factores de crescimento das próprias células malignas. MSS — Eu sabia que os cancros da tiróide cresciam muito pouco. Dividiam-se muito pouco. Mas eram invasores. Na altura, fazia-se microscopia electrónica e comecei a ver as células com autofagia (a comerem-se a si próprias). E, burro, escrevi na minha tese: “. . . uma célula em autofagia quase pronta a morrer. ” Não percebi que aquela célula em autofagia era um mecanismo de sobrevivência para que ela não morresse. A célula maligna fazia autofagia parcial utilizando os seus próprios alimentos do citoplasma para sobreviver. Tornando-se mais pequenina, gastando menos. MdS — Gostava que saísse desta nossa conversa isto que o Manuel acaba de ilustrar: a maneira como a pessoa, sozinha, vê as coisas. E como julga, sozinha, que vai chegar [à resolução]. Não vai chegar. É necessário integrar o conhecimento da cirurgia, da quimioterapia, da imunologia. Ele diz: “Eu fui burro. ” Não foi nada burro. Era aquilo que ele sabia e que se pensava na altura. Os programas de ensino estão a ficar muito dirigidos e um aluno sai de um programa só a saber aquela coisa. MSS — É pior que sectorial, é auto-sustentada. E a pessoa é premiada por ser sectorial. MdS — É financiada por ser sectorial. A economia, os ministérios, e não é só cá, dizem que “a ciência tem de servir para. . . ”. Voltemos ao caso da sida. Se um ministro da Economia tivesse dito que saber sobre as células T4 não servia para nada, porque não dava dinheiro, imagine o que se tinha perdido. A primeira responsabilidade é dos cientistas, é dos professores. Depois é da sociedade em que estamos. Temos de ter doentes educados. A sida é um exemplo fantástico de como se integrou o conhecimento, o comportamento da comunidade, a ciência. MSS — Tudo o que a Maria está a dizer faz um sentido absoluto. Estava a olhar para aquelas árvores. O que acho graça nas árvores é que estão quietas. MSS — As árvores estão ali paradas na Primavera e no Verão. Resistem à falta de água, ao calor imenso. As suas células têm características que lhes deram capacidade de sobrevivência. As células cancerosas têm isso, também. Todos temos, todos os dias, células que são potencialmente cancerígenas e vemo-nos livres delas. Quando temos a pouca sorte de ter um cancro, as coisas sucederam naquelas células e nas filhas delas…MdS — E no ambiente. MSS — Claro. Quando isso lhes deu vantagem de crescimento. Só vemos os casos de sucesso [do cancro], que são os nossos casos de insucesso. É muito interessante, quando estudamos células cancerosas, o número de situações em que encontramos os mesmos mecanismos de resistência — à morte — que as plantas têm. O cancro é um ser vivo multicelular, exactamente como nós. MSS — Ganha porque é mais eficiente. MdS — A minha primeira reacção é sempre a de me sentir responsável no tecido do ensino superior. As pessoas das células dos mamíferos têm imenso a aprender com as plantas. No nosso sistema educativo, os miúdos aos 15 anos decidem se vão fazer Ciências ou Humanidades. Uns vão crescer sem saber o que é um gene, uma célula. Os outros vão crescer sem saber quem é Espinosa. Nunca em Medicina ensinaram Botânica. MSS — Mas deviam ter ensinado. MdS — Sem dúvida. Voltando atrás. Temos uma coisa que cresce. Que cresce num ambiente. Se cresce num ambiente que toda a gente sabe que muda com a idade, é preciso perceber porque é que muda. Pode ser que se corrija este ambiente de forma a que o equilíbrio seja a favor do hospedeiro e não a favor do cancro. MSS — A palavra “imunidade”: a Maria está a substituí-la por “ambiente”. Tem razão. A ideia é a de que os cancros não são células apenas, é um tecido que tem elementos. Ainda as plantas. O que é que acontece se eu tiver uma célula normal e ela ficar a apanhar sol permanentemente? Vai morrer. A única hipótese que tem de sobreviver é raspar-se dali. E voltamos à história de não respeitar fronteiras. O cancro, graças ao microambiente e a coisas que são as mais variáveis, está permanentemente a encontrar estratégias para se raspar dali. Em 99, 9% dos casos, o microambiente e o sistema imune dão cabo das células — elas não se raspam dali. Agora, há sempre a possibilidade de uma delas, de repente. . . sheer chance. MSS — As pessoas que têm cancro têm muito pouca sorte. Dizemos que o tabaco provoca o cancro; provoca, mas só em 15% das pessoas. Deus me livre de acusar os que têm cancro: “Puseram-se a jeito. ” Isso é uma estupidez. MdS — Há, há. É criar um sistema de liberdade. Não vai nunca fazer perguntas diferentes se não tiver a liberdade de as fazer. A escola, a forma como estamos a financiar os projectos de investigação, tudo está a limitar como é que se fazem perguntas diferentes. As equipas que escrevem projectos têm de escrever quais são os resultados esperados. Já ninguém financia resultados inesperados. MSS — Os cientistas, para ganharem projectos, têm de se formatar. E não é só no cancro, é em relação a tudo. Há muito pouca liberdade porque o risco de não ter resultados é enorme. E as agências financiadoras o que querem é que a pessoa apresente resultados preliminares — que já estão feitos. MdS — E que, se possível, vão dar dinheiro. MSS — Esse é outro lado. O cancro tem muitas coisas semelhantes, seja um cancro da pele ou do estômago ou do pâncreas. Quando há um medicamento que é eficiente para o cancro do estômago, a indústria farmacêutica, que já desenvolveu esse medicamento, que já sabe que não é tóxico, paga agora aos cientistas para testarem se, porventura, aquele medicamento que é eficiente para o cancro do estômago não será também bom para o cancro do ovário. MSS — Permanentemente. Chama-se estratégia me too, “eu também”. Dá alguns resultados, mas as perguntas não são muito inteligentes do ponto de vista do que a Maria estava a dizer: da pergunta curiosa, transversal. A investigação é muito formatada. Os orientadores são enviesados. As revistas científicas são…MdS — Enviesadíssimas. MSS — As situações de cancro familiar em que conhecemos o gene que aumenta o risco de cancro são aquelas onde progredimos mais — porque temos uma causalidade. São 5 a 10%. São 10% na mama. São 10% no cólon e recto. Menos do que isso no estômago. Não sabemos muito bem o que é que se passa com a próstata nem com o pulmão. No pulmão, o peso do tabaco é muito maior. Os 5 ou 10% não são um valor independente das condições ambientais. Estes 5 ou 10% não são verdade em África. MSS — Em África são mais porque as pessoas não vivem o tempo suficiente para ter a influência dos meios ambientais que nós temos na Europa ocidental, em que vivemos até aos 80 ou 90 anos. Como em África as pessoas morrem mais cedo, a percentagem das que morrem de cancro é maior por susceptibilidade genética. MSS — Na minha família nunca tinha havido cancro. Tínhamos acidentes vasculares cerebrais, tínhamos diabetes. E eu, que trabalhava em cancro, nunca tinha percebido esta ameaça vital para mim e para as pessoas de quem gostava até o meu pai morrer de cancro. MSS — Estamos a entrar numa coisa que permeia todo este universo: o das expectativas e dos medos que distorcem a realidade. Até essa altura não tinha percebido o risco porque a minha família não tinha tradição de ter cancro. MdS — Completamente. O cientista tem uma responsabilidade social. E tem uma responsabilidade ética. No que respeita ao conhecimento e à ignorância, temos uma responsabilidade acrescida. MSS — O cancro que eu estudo é um cancro que praticamente não mata ninguém, o cancro da tiróide. MdS — Não mata ninguém se. . . MSS — Temos sobrevidas melhores que 95% aos 30 anos. Numa fase da vida, interessei-me por cancro do estômago. Depois deixei. Havia gente muito melhor do que eu a fazer cancro do estômago. E apercebi-me, no cancro do estômago, que me sentia menos à vontade porque os doentes morriam. Voltei para a tiróide. No limite, se quiser fazer investigação successfully em cancro, devo escolher cancros muito mortais. Aí é que consigo ver se estou ou não a interferir na história natural. Mas na tiróide tenho muito menos má consciência. Só dou boas notícias, mesmo quando digo: “Tem uma neoplasia maligna, vamos tratar. ”MSS — A investigação em cancro da tiróide é menos recompensadora do ponto de vista económico porque é menos mortal. E há uma distorção da sociedade que valoriza sobretudo os cancros que aparecem no mundo ocidental. O cancro do pâncreas, o cancro do sistema nervoso central. Não valoriza o cancro do colo do útero que aparece em África. Isto é muito complexo porque a nossa forma de ver o cancro é marcada não só pela experiência pessoal, mas pelo lugar onde estamos inseridos. MdS — A tiróide é a primeira grande contribuição de um investigador português chamado Manuel Sobrinho Simões, e as pessoas em geral não sabem isso. Não vai dar muito dinheiro à farmacêutica da quimioterapia. Agora pergunte o que é que aconteceu em Chernobyl. MSS — Como o reactor rebentou e atirou com o iodo radioactivo para a atmosfera, o mesmo iodo radioactivo que em doses muito fortes trata as células malignas, e mata as células, em doses muito fraquinhas pode provocar cancro. E provocou. Sobretudo nos miúdos que bebiam muito leite. Somos um dos seis institutos do mundo escolhidos para estudar isto. Houve uma quantidade enorme de cancros da tiróide na Bielorrússia porque os ventos sopravam da Ucrânia para a Bielorrússia. Morreram cinco ou seis pessoas, apesar de haver centenas de novos casos. Tratámo-los. O ponto da Maria é que os tratámos porque tínhamos um conhecimento que o tornou possível. MdS — Uma coisa que não é considerada importante por ministros da Economia. MSS — Tem etiologia. Aqui tínhamos uma causa. Era o iodo radioactivo. No colo do útero, a causa é o HPV [Human Papilloma Virus] e há uma vacina. MSS — Exactamente. MdS — No da tiróide, sabe-se a causa mas não se sabe porque é que há uma tão grande variação entre os tecidos. “Porquê?”: começa-se agora a fazer esta pergunta. Como a minha perspectiva é de cientista portuguesa em Portugal, a minha preocupação nesta fase da vida, em que já não estou no laboratório, é fazer a pergunta. Será que Portugal pode contribuir com pessoas como o Sobrinho e como o instituto que criou, e como a gente nova que tem no seu instituto, para demonstrar, para provar o que está errado?MSS — Isto leva muito tempo. E aumenta os potenciais doentes de cancro. Esse é que é o grande problema. Vamos continuar a aumentar a pool de pessoas que não morreram precocemente, que deixaram de morrer de enfarte e de acidente vascular cerebral, e que vão ter ou doenças neurodegenerativas ou cancro. MdS — Falei com uma pessoa que faz investigação em cancro. Ela acha importante que se diga que não há “o” cancro. MSS — Muito diferente. MdS — Mesmo no caso da mama, não há um cancro da mama. Os cancros, eles próprios, são diferentes. E os hospedeiros, no caso, as mulheres, também. O hospedeiro em quem o cancro vai aparecer é diferente. Depois, é importante ter uma segunda opinião. MSS — Sou um adepto feroz. MdS — Não. MSS — É verdade. E os doentes têm vergonha de pedir. A segunda opinião não é especialmente para o cancro, é em tudo. É um grande problema na nossa sociedade: não estamos habituados a confrontar. MdS — Isto tem que ver com a educação dos doentes. O conhecimento é a coisa mais importante. O doente português não deve temer ter uma segunda opinião. MSS — Quero dizer que estou de acordo que não há só um cancro. Há muitos cancros. A palavra “cancro” é uma palavra infeliz. MdS — Daí não gostar do caranguejo. MSS — Se tivermos uma pessoa que tem um cancro da tiróide ou do testículo, em princípio, as coisas vão correr bem. Se tivermos um cancro do cérebro ou do pâncreas, em princípio, as coisas vão correr mal. Mesmo no pâncreas, há uma percentagem cada vez maior de casos que correm bem. MSS — Tem de se dizer que tipo de cancro é e em que estadio foi apanhado. Estamos a ter casos de sucesso, por exemplo, quando os doentes fazem icterícias de repetição e não têm cálculos. O doente fica amarelo porque a bile não flui; em princípio, é uma calculose. Se tiver episódios de icterícia de repetição, sem ter cálculos, a probabilidade é que tenha uma neoplasia dos canais. Se for apanhado nessa fase, o cancro do pâncreas cura-se. MSS — A primeira coisa é fazer prevenção. Não deve fumar, não deve engordar de mais, não deve beber de mais. Não se deve expor ao sol a horas más e muito tempo. É aquilo que sabemos que é de evitar. Deve estar vacinado. Se não estiver vacinado contra a hepatite B, se não estiver vacinado contra o HPV, tem mais probabilidade de ter infecções no fígado e colo do útero. MdS — É criminoso. MSS — Não vacinam as crianças porque há um risco, que é mínimo, mas que há, de terem doenças imunologicamente determinadas que são chatas. Esse risco é menor do que o risco que a pessoa tem de vir a ter a doença. Sobretudo, se interrompemos as vacinações, interrompemos uma conquista da sociedade. É como os partos em casa ou na água. Agora há uma gente que gosta de ir para o ribeiro ter as crianças! “Uma coisa muito natural. ” Um discurso totalmente disparatado, pré-científico, criminoso para os próprios e para a sociedade. MdS — É assustador! É incompreensível. MSS — O custo para a sociedade de ter um miúdo que tem uma paralisia cerebral porque teve um parto em más condições não é só para os pais e para a criança. Todos nós pagamos aquilo. A primeira coisa é fazer prevenção. Não deve fumar, não deve engordar de mais, não deve beber de mais. Não se deve expor ao sol a horas más e muito tempo. É aquilo que sabemos que é de evitar. Deve estar vacinado. Se não estiver vacinado contra a hepatite B, se não estiver vacinado contra o HPV, tem mais probabilidade de ter infecções no fígado e colo do útero. MdS — Tudo isso tem que ver com falta de educação. Falta de educação científica. As pessoas têm muito acesso à informação, mas falta-lhes formação. Se a pessoa valorizar os seus filhos, os seus amigos, tem a obrigação de tomar conta da sua vida. Vivo no Passeio das Virtudes [no Porto] e as árvores sabem quando é que é Primavera, quando é que é Inverno. Faça chuva ou faça sol, não vão a sítio nenhum, mas a verdade é que vão estar cá e muito mais tempo do que nós. Nós, se queremos estar cá, temos de ter cuidado. E aquilo onde há verdadeiro progresso é na prevenção. Temos de estar atentos e vigilantes. MSS — O problema não é só o cancro. O problema é a hipertensão, os AVC. MSS — Temos muita dificuldade, como sociedade, em incorporar o risco. Temos dificuldade, eu também tenho. A percepção do risco, e até que ponto a percepção do risco nos leva a mudar comportamentos, é muito mais frequente nos povos do Norte da Europa do que nos povos mediterrânicos. O que tem que ver com falta de cultura científica e de literacia, mas também com religião. MSS — Há uma ideia de que “cá se fazem, cá se pagam” nos protestantes. Nós temos a ideia de que Deus nos protege e, se nos arrependermos, aquilo “zera”. Há uma responsabilidade pessoal e social nos protestantes que é mais to the point. A minha avó dava-nos um garrafão de água de Fátima benzida que tínhamos na casa de banho, debaixo do lavatório. Sempre que havia feridas, a minha mãe limpava com água de Fátima [riso]. A minha mãe é uma mulher muito inteligente e o meu pai era médico e cientista. MSS — É cultural. Mas quem faz isso não tem o mesmo cuidado em não fumar, porque acha que, se tiver de correr para torto, corre, se não tiver, Deus protege. Temos uma extrema responsabilidade nos nossos comportamentos e não fomos treinados a assumi-la. De qualquer forma, o sistema pode começar a ser muito punitivo. Há uma culpabilização que é indecente porque há aqui um elemento de sorte. MSS — Na Noruega, tenho vindo a observar uma coisa horrível. Os noruegueses ficam furiosos com os imigrantes porque são gordos. São gordos e gastam mais ao Serviço Nacional de Saúde do que com os próprios noruegueses. Começa a haver umas vozes a dizer que se devem pesar os imigrantes quando chegam. E medir-lhes o perímetro abdominal. MdS — Isso é legal?MSS — Não há leis, mas está a acontecer. MdS — O why me é muito comum. MSS — É verdade. Mas não é só em relação ao cancro, é em relação a qualquer doença grave, degenerativa. No Brasil, não se falava em lepra. “Lepra? Aqui não se fala lepra, é hanseníase. ” É a doença de Hansen, que foi quem a descreveu. Temos o preconceito de que algumas doenças são… Mas mais do que a punição, há a sensação de a pessoa se sentir fragilizada. Atenção, sendo um especialista de cancro, eu tenho um pavor de ter cancro. Tenho medo. Sei que a maioria deles são controláveis, mas também sei que há 30 ou 40% que não são. E se tiver a pouca sorte de ter um desses…MSS — Agora é um em três. Daqui a 30 anos, nos países mais desenvolvidos, por exemplo nos Estados Unidos, nos anglo-saxónicos, é um em dois. MSS — Mas não nos vai matar. Isso é que é muito importante que as pessoas percebam. Nos sítios onde já está entre um para três, um para dois, já se está a morrer menos de cancro. Apesar de a incidência estar a aumentar, a prevenção, o diagnóstico precoce e os tratamentos têm melhorado. É horrível dizer isto, mas estamos a morrer de infecções. Volto à tiróide porque quero falar de esperança: se houvesse um cancro, e se fosse um caranguejo, ninguém com um tumor na tiróide se safava. Como o Manuel disse, a tiróide não interessa a ninguém porque não morre muita gente. Eu digo que a tiróide devia interessar a toda a gente porque qualquer coisa acontece para que o tal caranguejo não cresça. MSS — Estamos com um problema grave de aumento da tuberculose por toda a Europa. Em parte porque as terapêuticas criaram resistências, em parte porque deixou de haver os dispensários. Em parte porque economicamente há gente muito mais pobre do que havia e fluxos migratórios que antigamente não havia. Estamos a ter Alzheimer e muitos cancros, mas as populações idosas, ricas, dos Estados Unidos não estão a morrer de Alzheimer — que não mata ninguém directamente —, nem estão a morrer de cancro, porque têm cancros pequeninos e controlados. Estão a morrer de infecções respiratórias, insuficiências cardíacas, insuficiências sistémicas, infecções urinárias. Por falência do sistema. E voltamos à imunidade. O cancro vai ser muito, muito frequente. Toda a gente vai ter. Mas vai morrer de outras coisas. MSS — Nos adultos jovens e adultos, sim. E a partir dos 80 anos, devemos ter atenção mínima, mas não estarmos chateados porque vamos ter. MSS — Exactamente. Como a diabetes. E vamos ter de evitar fazer sobrediagnóstico. MSS — Acontece que sob a palavra “cancro” se acobertam realidades muito distintas. A vigilância tem de ser inteligente, não pode levar de uma forma acéfala aos passos seguintes. É a diferença entre a Coreia do Sul e o Japão, que têm a mesma incidência de cancro da tiróide. A Coreia do Sul foi para a ideia de que sempre que se vê um nodulozinho se deve enfiar uma agulha, demonstrar que é cancro e fazer sobretratamento. O Japão decidiu o contrário. Sempre que se vê um nódulo que tem menos de um centímetro, não se faz coisíssima nenhuma. Faz-se vigilância todos os anos para ver se aquilo cresce ou não cresce. Nesta altura, na Coreia do Sul, o cancro da tiróide é o mais frequente de todos os cancros da mulher. Em Portugal, é o quinto. MSS — Ninguém morre daquilo. E os japoneses gastam muitíssimo menos dinheiro e não têm a chatice de as senhoras viverem com o pavor do cancro da tiróide. Isto é verdade para a próstata, no homem, é verdade para a mama na mulher. A mulher tem imensos microcancros que não se devem tratar. Se começarmos a tratar, damos cabo. MdS — É muito importante a variação de órgão para órgão, é uma coisa que só agora começam a valorizar. MSS — Isto não invalida que quando uma pessoa de 39 anos aparece com cancro da tiróide grande, a crescer, tenha de ser tratado mesmo como um cancro. A mesma coisa com a próstata aos 56 ou 60. Ou com a mama aos 45. MdS — Veja a importância que está a ter esta conversa. Se as pessoas não percebem que podem ter um cancro da tiróide — as da Coreia do Sul —, e que não faz mal nenhum. . . A educação do doente, insisto eu, é extraordinariamente importante. E a educação do médico pelo doente, que é uma coisa que não passa pela cabeça de ninguém, ou passa pela cabeça de muito poucos em Portugal. MdS — A educação em geral, a educação do doente em particular e a segunda opinião são importantíssimas. As pessoas têm medo de morrer. Se ouvem que têm um cancro na tiróide, querem ser tratadas e não precisam de ser tratadas. Volto à tiróide porque quero falar de esperança: se houvesse um cancro, e se fosse um caranguejo, ninguém com um tumor na tiróide se safava. Como o Manuel disse, a tiróide não interessa a ninguém porque não morre muita gente. Eu digo que a tiróide devia interessar a toda a gente porque qualquer coisa acontece para que o tal caranguejo não cresça. Vamos lá situar o prof. Sobrinho Simões. Qual é a sua tese de doutoramento? Fez quantas autópsias?MSS — Umas 500. MdS — O doutoramento dele, que não servia para nada, porque o cancro da tiróide não tem importância nenhuma, fez um estudo que permitiu encontrar cancros na tiróide em 500 autópsias. Este trabalho nunca seria financiado, mas é o trabalho que o leva a ser convidado para ir para a Noruega, vão ter com ele quando Chernobyl acontece. E novamente falamos de as perguntas estarem muito condicionadas pelo investimento que é feito, pela expectativa de resultados. Se se aponta numa direcção, é para aí que se vai, o caminho está tracejado. MdS — Claro que há esperança, mas o que é preciso é ter coragem de fazer perguntas diferentes. E de fazer coisas diferentes que não vão ser financiadas. Numa sociedade educada cientificamente, tem de haver liberdade e espaço para que miúdos — como este foi — façam coisas que parecem perfeitamente inúteis. A história diz-nos que nada é inútil desde que seja bem feito. MdS — É assustadora. Por isso é tão importante falar de cancros. Dessa maneira, as pessoas percebem que o significado pode ser outro. MSS — Há muitos movimentos para estes microcancros não serem chamados “cancros” e serem chamados “IDLE, indolent lesions of epithelial origin”. Há aquele ditado: “O diabo trabalha com idle fingers. ” Indolentes. Isto tem consequências até do ponto de vista dos seguros. Uma senhora que tem diagnóstico de um microcancro não tem o mesmo acesso a condições boas de seguro de quem não tem esse diagnóstico. MSS — Não é necessariamente todos os anos, varia. Depende das idades, depende do risco que têm, em função de uma análise prévia. Uma colonoscopia pode ser de cinco em cinco anos ou de dois em dois anos, consoante os resultados da colonoscopia anterior e da história familiar. MdS — Mas deve fazer-se a partir dos 50 anos regularmente. MSS — A mamografia continua a ser indiscutível. O que se discute na mamografia é a idade em que se começa. MSS — Exactamente. De novo a história familiar é muito importante. E bom senso. Mais importante que ter regras é, por exemplo, a pessoa ter modificações do seu trânsito intestinal ou ter um sinal da pele que mudou, e vigiar. Estamos a safar-nos razoavelmente no cólon, na mama e no colo do útero. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. MSS — Não. Nem estômago nem sistema nervoso central, pâncreas, fígado, pulmão. Nem fazendo todos os anos um raio-x pulmonar. Pode-se fazer raio-x todos os anos, mas aumenta imenso a radiação da pessoa e tem muitos órgãos que vão ser submetidos. E sabemos que quando um raio-x banal encontra um nódulo do pulmão, ele, infelizmente, já ultrapassou a fase em que podia ser removido sem problemas. A sensibilidade da radiologia actual não é suficiente. Agora passou a fazer-se uma TAC espiral, que é muito mais eficiente. O problema da TAC espiral é que aumenta ainda mais a radiação. Em termos de custo/benefício é muito complicado. MdS — O que saiu desta conversa é que a prevenção é muito importante e que ter um tumor não é uma sentença. MSS — A maior parte das vezes não é. E cada vez vai ser menos. A incidência de cancro aumentou exponencialmente nos Estados Unidos e a mortalidade está a diminuir. As taxas de mortalidade já estão abaixo dos 40%. MdS — É muito importante as pessoas sentirem isso. Porque as pessoas não estão preparadas para morrer. Olhemos para uma célula: com tanta e tão estranhamente bela organização, como pode uma célula vir a crescer de tal modo que toma conta de um homem inteiro? É de facto uma estranha doença. Tem de haver uma forma de surdez de quem a alberga para não perceber o perigo que representa. É compreensível que se pense que acordar o sistema imunológico vai ajudar, mas o sistema imunológico evoluiu para se defender do perigo que vem de fora. E um tumor tão parecido, tão igual ao hospedeiro só raramente será reconhecido como perigo pelo sistema imunológico. E lembro Garcia d’ Orta, que cito em Meu Dito, Meu Escrito: “O que sabemos é a mais pequena parte do que não se sabe. ”
REFERÊNCIAS:
Extremo Ocidental: A última noite do Living Opera
As discotecas de praia, esses templos que durante décadas foram o centro do Verão, estão a acabar. O Living Opera, em Santa Cruz, viveu 32 anos. O dono, Carlos Fortuna, anunciou a última noite. (...)

Extremo Ocidental: A última noite do Living Opera
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: As discotecas de praia, esses templos que durante décadas foram o centro do Verão, estão a acabar. O Living Opera, em Santa Cruz, viveu 32 anos. O dono, Carlos Fortuna, anunciou a última noite.
TEXTO: Percorrer a costa ocidental portuguesa é uma das grandes viagens que se podem fazer na Europa. É um trajecto pleno de sonho e sobressalto, como um poema. A diversidade do país revela-se na longitude. O litoral é uma sequência de súmulas, a babugem dos imensos corredores que atravessam a península, para desaguar no Atlântico em forma de âmbar, de pérola ou de lágrima. Cada praia é muito mais do que si própria. Representa centenas de quilómetros de interior, e todos os que, vivendo longe, podem, e querem, dizer: “Esta é a minha praia”. Por isso cada cenário é completo, cheio, perfeito, e ainda uma projecção, uma metáfora. A sua rápida sucessão provoca a vertigem. Depois de São Jacinto, pode atravessar-se o canal no velho ferry Cale de Aveiro (com a moto ou o carro) até ao Forte da Barra, e daí seguir pela estrada florestal até à Praia de Mira, depois Quiaios, Buarcos e Figueira da Foz. Entre Mira e a Tocha, a estrada avança entre pinheiros, que protegem uma zona de dunas, até à praia, quase sempre deserta. Não se avista o mar. Para a verdadeira experiência de voar sobre o oceano, é preciso virar a Oeste depois das dunas de Cantanhede e das dunas de Quiaios, em direcção à Praia de Quiaios e à Serra da Boa Viagem, pela rua do Farol Novo, e daí prosseguir para Buarcos, retomando a Nacional 109, até à Figueira. Então, depois de atravessar a ponte sobre o Mondego, toma-se, por poucos quilómetros, a N109 em direcção a Leiria, até cortar à direita para apanhar a Estrada Atlântica. Aqui, sim, paira-se sobre o azul, passando Pedrógão, Vieira, São Pedro de Moel, Nazaré. De São Martinho do Porto à Foz do Arelho há outra Estrada Atlântica, de certa forma, a continuação da mesma. Mas depois não é fácil acompanhar a linha costeira. O melhor é aproveitar a boleia da A8, ou, pelo menos, da N8, contornando a Lagoa de Óbidos, para desembocar na península de Peniche e no Baleal. Logo à saída da Foz do Arelho, na estrada que vai na direcção de Caldas da Rainha, é possível ver a ruína do que foi durante anos a maior e mais animada discoteca da zona Oeste, o Green Hill. Outros antros da vida nocturna de Verão surgem a espaços ao longo do percurso, decadentes, abandonados, destruídos. A partir de Peniche, o caminho torna-se extasiante. Não são já as estradas panorâmicas como as de Quiaios, ou da Costa de Lavos, depois da Figueira. Agora não há o artifício da rota turística, mas antes um espaço de fusão de campos e mar, cujo equilíbrio natural não exclui o povoamento. O segredo desta cumplicidade chama-se Estrada Nacional 247. Leva-nos em curvas, loopings e outros movimentos de gaivota, até à órbita da praia da Consolação, de São Bernardino, Santa Cruz, e daí para a Ericeira, Sintra e Cascais. Os 50 quilómetros que ligam Peniche à Ericeira são um mundo de características próprias. É uma zona de ventanias e nevoeiros, de agricultura e de surf, de aldeias, montes suaves, falésias sobre o mar e penínsulas verdejantes. Se noutras regiões as praias parecem ser um bem escasso, insuficiente para a avidez estival das populações de cidades vizinhas, aqui sobram, esperam, repousam. É impossível conhecer todas as praias, memorizar-lhes os nomes. Algumas são apenas um bar de madeira sobre a arriba, outras a foz de um riacho, ou uma laguna de mercúrio entre rochedos na maré baixa. Aqui, como em todo o país, cada praia tem também o seu carácter. Que percorre um largo espectro, mas nunca é melancólico, como nas costas da Bretanha, da Cornualha, ou mesmo das Astúrias. Em Portugal, a praia é uma festa. Vamos lá para nos transformarmos, inventarmos um modo de vida intenso, generoso e livre, sermos felizes por algumas horas, ou dias. A praia é o melhor de nós. Revela a face mais luminosa da nossa natureza. Como a espuma de outras ondas, invisíveis, que rolam da terra para o mar. Ao passar junto do edifício, uma mulher pára, deixando o marido e os filhos, carregados de guarda-sóis, toalhas e sacos, continuarem a caminhada para a praia. “Há vinte anos, vinha aqui todos os fins-de-semana”, diz ela. “Era o melhor das minhas férias. E foram os melhores tempos da minha vida. ” O marido, Carlos, 45 anos, que cresceu na região de Viseu, detém-se lá à frente, um pouco confuso com as faíscas nos olhos da mulher, Joana, de 38. “Era a melhor discoteca de toda a zona oeste”, diz ela, com cara de quem duvida estar no mesmo lugar, ali, à porta do Living Opera, agora fechado. “Dançávamos até amanhecer, depois íamos para a praia. ”Carlos Fortuna abriu o Living Opera em 1983, ao regressar da Bélgica, para onde tinha “fugido” da guerra colonial. Na zona da Grand Place, em Bruxelas, onde vivia, frequentava, nos anos 70, um pub chamado Drug Opera. E foi esse pequeno clube todo em madeira, rústico, que o inspirou, na hora de baptizar o seu novo empreendimento. Antes, foi proprietário de uma loja de instrumentos musicais, em Torres Vedras, e tocou guitarra, durante quatro anos, na banda Atlântida, de Lena D’Água. Mas os anos 80 foram a época de ouro das grandes discotecas. Principalmente as discotecas de praia. “Quando abriu, o Living Opera era diferente de todas as outras. As luzes, a decoração, com ícones do cinema e das artes, criavam um ambiente único, muito apelativo”, diz Carlos. Arrendou o velho edifício, que fora uma casa particular, e transformou-o completamente, com dois andares, aquecimento central, duas pistas de dança, cinco bares. O primeiro Disc-Jockey foi Luís Perdigão, que gostava de pôr música new wave, rock, funky e disco sound, e tinha uma paixão por electrónica e sistemas áudio. Ele próprio quis explorar o negócio do Living Opera, mas Fortuna, que na altura tinha outro sócio, foi mais forte. Trabalharam juntos desde então, na instalação do som e luzes, na programação musical, na organização de festas e noites temáticas. Carlos Fortuna nunca largou o Living Opera, durante 32 anos. Pelas suas contas, mais nenhuma discoteca em Portugal viveu tanto tempo, com o mesmo dono. E foram anos gloriosos. A casa tem lotação para 500 pessoas, mas a média, nas noites de Verão, era de mil pessoas numa noite. “Havia uma discoteca em Torres Vedras, o Túnel, que dominava as noites, no Inverno. No Verão, o Living era rei. Vinha gente de todo o lado. Até de Lisboa, e de todo o país, porque tinham ouvido falar do Living”, recorda Carlos. “Quando comecei, em 1983, estava cá o FMI. Depois vieram os anos da euforia, do dinheiro. Mas já passei por quatro crises. E sobrevivi sempre. ”De Junho a Setembro, a casa estava cheia todas as noites. Em cada uma havia um tema, uma festa diferente. Às quartas-feiras era a Festa da Espuma. “As pessoas traziam uma mochila com uma muda de roupa, porque iam ficar todas molhadas. ” Noutra noite era a Festa Black and White, noutra a Festa da Penumbra, onde todas as luzes se apagavam. Aos clientes eram distribuídas pequenas lanternas, à entrada, e eram eles que iluminavam o recinto, apontando para quem queriam ver melhor. “O efeito era incrível, com as pessoas a dançar, e centenas de lanternas a moverem-se”. Em certas noites, dos “anos loucos”, Carlos e Luís convidaram artistas para actuar. Grupos de dança e performance, ou bandas, como a de Rui Veloso, ou mesmo Samantha Fox. “Durante bastantes anos isto foi um bom negócio, admito. Várias gerações dançaram aqui, e foram marcadas pelo Living. ”As discotecas de praia eram uma componente importante das férias de todos os jovens, faziam parte da própria ideia de Verão. Ouvir música e dançar, conhecer pessoas, o próprio culto desses lugares a abarrotar de gente e de fumo, com música que ensurdecia e luzes que cegavam, onde muitas vezes não era fácil entrar, com porteiros caprichosos e discriminadores, tudo isso compunha a mitologia do Verão. A noção de que o período de férias era especial facilitava essa sacralização do espaço da discoteca, lugar de emoção onde tudo o que acontecia assumia uma qualidade de lenda. Carlos Fortuna habituou-se a esse papel de mestre de cerimónias, de monge do templo da música. E talvez se tenha viciado, porque quando, há dez anos, o negócio deixou de ser lucrativo, não conseguiu ser realista, e desistir. “Devia ter fechado isto há dez anos. Assim como ganhei muito dinheiro, também perdi, desde essa altura, muito dinheiro”, diz ele. O paradigma da noite das praias começou a mudar. Abriram muitos bares, chegou a crise, as pessoas deixaram de ter dinheiro e paciência para certas coisas. Ultimamente, a machadada final nas discotecas, segundo Carlos Fortuna, foi a “lei de liberalização dos horários. Dantes os bares tinham de fechar às 3, e as discotecas podiam ficar abertas até às 6. Agora os bares podem fechar tarde, tal como as discotecas, por isso as pessoas ficam lá, por ser mais barato, e mais descontraído, pode-se entrar e sair de copo na mão, estar lá sem consumir. A culpa é desta lei do nosso ministro da Economia, Pires de Lima, que não acautelou os interesses dos empresários. É muito estranho. Acho que por trás disto só podem estar os interesses dos produtores de cerveja, para os quais o ministro trabalhava. Isto é só a minha opinião. ”As discotecas são estruturas pesadas, com muitas obrigações legais. Têm de possuir segurança, porteiros, casas de banho preparadas para pessoas com deficiência, etc. Os bares não têm as mesmas obrigações, mas podem ter equipamentos de som equivalentes, DJ, pistas de dança, e estar abertos até tarde. A vantagem competitiva é óbvia. Além disso, há o fenómeno dos DJ superstars, diz Luís Perdigão, que veio juntar-se ao amigo para a última noite do Living Opera. “As pessoas conhecem os DJ. Eles são ídolos. E só vão a uma festa se conhecerem o DJ, se ele for bom. E um bom DJ cobra 8 mil a 10 mil euros por noite. Tornou-se incomportável. Uma discoteca não pode pagar isso. Os DJ vão aos festivais, a festas subsidiadas, etc. ”Durante bastantes anos isto foi um bom negócio. Várias gerações dançaram aqui, e foram marcadas pelo Living. ”Os festivais de Verão também se tornaram concorrentes das discotecas. O orçamento para música esgota-se nesses eventos que enchem o Verão, e não sobra para ir à discoteca. Tanto mais quanto já não vale a pena ir à discoteca para ouvir música. No início, recorda Carlos, era isso que fazia a diferença. E Luís lembra-se dos discos que a mãe lhe trazia das viagens ao estrangeiro, ou dos LP que o próprio Carlos Fortuna tinha trazido da Bélgica. “Era isso que atraía as pessoas”, explica Carlos. “Mas era possível porque toda a gente gostava mais ou menos da mesma coisa. Hoje, os jovens dividiram-se em demasiadas tribos. Não é possível agradar a todos. Se trago um DJ techno, isso vai afastar muita gente. ”A própria evolução das discotecas, ao optarem por se tornarem locais de dança, e não para ouvir música, como eram inicialmente, foi também, aos poucos, cavando a sua sepultura. A música de dança foi-se tornando uniforme e desinteressante. Já ninguém lhe chama música, mas apenas “som”. E deixou de ser suficiente para atrair pessoas a um local fechado, com porteiro e bebidas mais caras do que num bar normal. Além dos festivais há as festas das aldeias, que já não são só para os locais e os emigrantes de férias. “Os organizadores nas autarquias foram inteligentes, e perceberam que podiam atrair outros públicos”, explica Luís. “Agora, nas festas das aldeias, há sempre um palco para jovens, com outra música, e uma zona de bebidas. E resulta. Os jovens preferem ir a essas festas do que às discotecas. ”“As discotecas estão a desaparecer”, diz Carlos Fortuna com tristeza. “As pessoas já não vêm. O mundo mudou. Dantes, isto era importante. As pessoas produziam-se para a noite. Agora, já ninguém quer saber. Temos de nos resignar a isso. Dantes, à meia-noite, havia uma enorme fila ali fora, para entrar. E não importava as atracções especiais que tínhamos. As pessoas vinham de qualquer maneira. Hoje, é muito difícil meter aqui cem pessoas num fim de semana”. Durante o passado mês de Julho, Carlos tentou abrir as portas, usando as velhas fórmulas. Organizou uma Ladies Night, uma Festa da Penumbra, uma Festa da Espuma. Quase ninguém apareceu. “As pessoas já não acham graça a essas coisas. Não estão para se chatear. Não estão para se molhar. Na Festa da Espuma nem cem pessoas apareceram”. Desde que começou a crise, Luís Perdigão decidiu diversificar a actividade. Em 30 anos, tinha feito o sistema de som de mais de 500 discotecas, entre as quais algumas das maiores do país, incluindo as lisboetas Kremlim, Kapital e Urban Beach. Agora virou-se para Angola, onde tem instalado os mais sofisticados sistemas de som, luz e imagem, em mega-discotecas luxuosas (onde viu “um tipo abrir duas garrafas de champanhe de 5 mil euros numa noite”), ou em casas particulares. Dedica-se também à domótica, integrando todos os media e sistemas electrónicos de uma casa, com controlo por smartphone. Carlos não se dedicou a mais nada. O Living Opera é tudo para ele. Tem uma pequena agência de publicidade, que dificilmente sobrevive. Entregou-se demasiado ao Living Opera, e agora não sabe o que poderia fazer, nos negócios da noite. Nem tem vontade. “Tenho tantos anos disto, que já não percebo nada”, diz ele. “Acho que nunca mais vai haver discotecas. Talvez venha a haver outras coisas, locais que não se chamem discotecas. Ou talvez tudo seja cíclico, e a moda volte. Mas não, acho que não. Locais fechados onde as pessoas vão para dançar, nunca mais haverá. Isso é ponto assente. ”Carlos Fortuna decidiu então fechar o Living Opera. Mas, em conversa com Luís Perdigão, resolveram organizar uma última festa como despedida. Chamaram-lhe Remember Living Forever. Festa de Encerramento. Marcaram para sexta-feira, 14 de Agosto, lançaram página no Facebook, enviaram mensagens SMS para amigos, antigas namoradas e antigos clientes. Começaram a ter muitas respostas, outras páginas de apoio foram abertas, e, de repente, “tornou-se viral”, diz Luís. Choveram mensagens de apoio, organizaram-se grupos para vir, de todos os pontos do país, até a Santa Cruz na Sexta à noite. Espalhou-se uma febre de nostalgia, uma saudade da juventude, ou simplesmente uma onda de pena e solidariedade pelo Living Opera e o seu dono. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Luís está eufórico. Garante que já estão garantidas mais de mil pessoas. Carlos não quer acreditar. Esperava, na melhor das hipóteses, umas duzentas pessoas. Está aflito. “Não tenho bebidas suficientes. Nem pessoal. É preciso contratar pessoas. ” Tem medo que seja uma ilusão, e que vá gastar dinheiro para nada. Mas também não quer desiludir, se realmente afluirem às centenas ou milhares. Sexta-feira foi a última noite do Living Opera. O edifício de colunas azuis e paredes lilases vai ser vendido, para ser uma casa de habitação de luxo, sobranceiro ao mar e ao Penedo do Guincho. Luís Perdigão continuará a trabalhar para milionários em Angola. E Carlos Fortuna, que fará ele nas noites de Verão de Santa Cruz, quando pela última vez bater atrás de si a porta da sua Opera?“De uma coisa tenho a certeza”, diz. “Os jovens nunca deixarão de sair à noite. E nunca deixarão de ouvir música no Verão, junto ao mar. ”
REFERÊNCIAS: