Relembrar 2018 através das melhores fotografias da Reuters
O ano de 2018 ainda não terminou, mas vários acontecimentos já o definem irremediavelmente. Os fotógrafos da agência Reuters acompanharam todos esses momentos e o PÚBLICO seleccionou 50 dos seus melhores registos. Política. O Facebook permitiu que a empresa Cambridge Analytica acedesse a dados de 87 milhões de utilizadores, o que se julga ter influenciado o rumo das eleições que conduziram Donald Trump à Casa Branca. O escândalo levou Mark Zuckerberg a responder perante o Congresso norte-americano e ao Parlamento Europeu. Os Estados Unidos mudam o local da embaixada norte-americana de Telavive para Jerusalém, pro... (etc.)

Relembrar 2018 através das melhores fotografias da Reuters
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 1.0
DATA: 2018-12-19 | Jornal Público
TEXTO: O ano de 2018 ainda não terminou, mas vários acontecimentos já o definem irremediavelmente. Os fotógrafos da agência Reuters acompanharam todos esses momentos e o PÚBLICO seleccionou 50 dos seus melhores registos. Política. O Facebook permitiu que a empresa Cambridge Analytica acedesse a dados de 87 milhões de utilizadores, o que se julga ter influenciado o rumo das eleições que conduziram Donald Trump à Casa Branca. O escândalo levou Mark Zuckerberg a responder perante o Congresso norte-americano e ao Parlamento Europeu. Os Estados Unidos mudam o local da embaixada norte-americana de Telavive para Jerusalém, provocando uma onda de condenação internacional. Jair Bolsonaro, entretanto eleito Presidente do Brasil, já revelou a intenção de seguir a iniciativa e alterar a morada da embaixada brasileira para a Terra Santa. Donald Trump e Kim Jong-un assinam, em Junho, um acordo "vago" durante a cimeira que decorreu em Singapura e na qual o Presidente norte-americano anuncia o fim dos exercícios militares com a Coreia do Sul. O fenómeno de hiperinflacção continua a fustigar a Venezuela. Os preços dos produtos e serviços subiram 144% durante o mês de Novembro, elevando para 1. 299. 724% a inflação acumulada nos últimos meses. Migrações. Múltiplas "caravanas de imigrantes" provenientes da América Central rumam aos Estados Unidos, fazendo aumentar a pressão junto à fronteira entre o México e o Texas. A crise humanitária em torno dos rohingya permanece inalterada. A infografia premiada de Francisco Lopes Rohyngia, uma crise sem fim dá conta de um flagelo que conheceu poucos desenvolvimentos ao longo do ano. O Museu do Holocausto retirou o prémio Elie Wiesel (que distingue personalidades relevantes na luta pelos direitos humanos) à birmanesa Aung San Suu Kyi "por ter falhado na resposta à perseguição dos rohingya no país". O drama no Mediterrâneo também se mantém. Apesar de ter sido registado um decréscimo no número de mortos entre os migrantes que atravessam o Mar Mediterrâneo, face a 2017, o presente ano regista 2. 133 mortos entre Janeiro e o início de Dezembro. No Iémen, a crise não é nova, mas os números escalam para níveis alarmantes: há 20 milhões de pessoas famintas. Religião. Escândalos de pedofilia no seio da Igreja Católica irlandesa, holandesa, alemã e chilena estalam em 2018 e comprometem a instituição e os seus representantes, nomeadamente o Papa Francisco, que enfrenta uma resistência interna à sua posição cada vez mais forte e demarcada. Ciência. Em Novembro, o cientista chinês He Jiankui revelou ter criado os primeiros bebés do mundo geneticamente manipulados, com o objectivo de os tornar resistentes à infecção por VIH — um acto considerado "reprovável" pela generalidade da comunidade científica mundial. Desastres naturais. Sismo e tsunami atingem Indonésia e provocam, pelo menos, 384 mortos. Na Califórnia, os fogos florestais resultaram em 88 mortos, 203 desaparecidos, 620 quilómetros quadrados de mato e madeira carbonizados. Eventos: 2018 também foi o ano dos Jogos Olímpicos de Inverno, na Coreia do Sul, e do Mundial de Futebol na Rússia. O Rali Dakar também marcou o ano. Famosos. O príncipe William e Kate Middleton são pais do terceiro filho, Louis, em Abril. O casamento real, que uniu o príncipe Harry e a actiz Megan Markle, decorreu a 19 de Maio. É, por muitos, entendido como o primeiro casamento interracial no seio da monarquia inglesa. Morreram o senador norte-americano John McCain, a "rainha da soul" Aretha Franklin, o famoso cantor francês Charles Aznavour, o "último imperador do cinema italiano" Bernardo Bertolucci, o criador do universo da Marvel Stan Lee, o prémio Nobel da Paz Kofi Annan, o chef-celebridade Anthony Bourdain, o astro-físico superstar Stephen Hawking e o mítico designer de moda francês Hubert de Givenchy. Harvey Weinstein insiste em declarar-se inocente das acusações de assédio sexual e violação, apesar do avolumar do número de queixas contra si. O processo teve início em 2017, mas o ex-produtor continua a aguardar julgamento. O "pai da América" Bill Crosby foi sentenciado a pena de prisão efectiva pelo abuso sexual de várias mulheres.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos humanos filho rainha prisão comunidade violação sexual mulheres chinês casamento humanitária abuso perseguição assédio
A China e o sonho americano
A China poderá estar apenas a alguns anos de tornar-se a principal potência económica do mundo e a centralidade estratégica dos EUA poderá estar em declínio (de facto, actualmente ninguém se refere aos Estados Unidos como a "hiperpotência" mundial). Mas a América ainda faz as pessoas sonharem e a sua influência emocional no mundo continua a ser única. Neste sentido, a semana passada trouxe duas vitórias: não apenas a de Barack Obama sobre o candidato republicano, Mitt Romney, nas eleições presidenciais, mas também a vitória do sistema democrático norte-americano sobre o autoritarismo unipartidário da China. Algum... (etc.)

A China e o sonho americano
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2012-11-24 | Jornal Público
TEXTO: A China poderá estar apenas a alguns anos de tornar-se a principal potência económica do mundo e a centralidade estratégica dos EUA poderá estar em declínio (de facto, actualmente ninguém se refere aos Estados Unidos como a "hiperpotência" mundial). Mas a América ainda faz as pessoas sonharem e a sua influência emocional no mundo continua a ser única. Neste sentido, a semana passada trouxe duas vitórias: não apenas a de Barack Obama sobre o candidato republicano, Mitt Romney, nas eleições presidenciais, mas também a vitória do sistema democrático norte-americano sobre o autoritarismo unipartidário da China. Algumas frases do discurso de vitória de Obama – o espaço de um momento mágico – foram dedicadas à celebração do "mistério da democracia" de forma muito concreta, mas também de um modo quase religioso. Obama encontrou as palavras certas para prestar homenagem à multidão de cidadãos anónimos que andava de porta em porta a convencer os seus concidadãos norte-americanos a votarem nos seus candidatos preferidos. Obama estava a descrever a democracia no seu melhor, naquilo que de mais nobre tem, tal como deveria ser, mas nem sempre é: homens e mulheres livremente mobilizados, capazes de e dispostos a mudar o rumo do seu destino. Naquele momento, ainda que breve, o "poder brando" da América derrotou o da China, que menos de um dia depois, abriu solenemente – e de uma maneira extremamente opaca – o 18. º Congresso do Partido Comunista Chinês. Milhões de pessoas em todo o mundo prefeririam vivenciar uma noite de eleições como a da América, ao invés de se tornarem parte dos planos a longo prazo da China. É claro que a América já não é o que era. Está demasiado endividada para ser a melhor política de segurança estratégica e económica para os seus aliados, como o foi no passado. Mas, apesar de o poder de protecção dos Estados Unidos ter diminuído, o seu poder inspirador continua a ser único e ainda poderá beneficiar o país, da forma mais admirável. A vitória de Obama não foi apenas uma vitória da democracia, mas também de uma certa visão e mensagem da América. Ao manter uma atitude de abertura em relação à imigração, ao manter um discurso respeitoso em relação a todos os que querem viver as suas diferenças livremente e ao formar um juízo moderno e dignificante a respeito das mulheres, Obama foi capaz de mobilizar a força do excepcionalismo norte-americano, que tem por base uma palavra-chave: a diversidade. Ao ignorar deliberadamente esta diversidade, abraçando a nostalgia de um passado há muito desaparecido, o Partido Republicano – deixando-se levar pelos seus ultraconservadores lunáticos – foi muito mais responsável pela derrota do que o seu íntegro candidato. O erro de Romney foi estar alinhado durante muito tempo a ideias que eram demasiado radicais para si – e para a América. O destino da candidatura de Romney contém uma mensagem universal para todos os regimes democráticos: nada se ganha em cultivar posições extremistas ou em tornar-se seu prisioneiro. Na verdade, corre-se o risco de perder não só a alma, mas também as eleições. Foi esse o destino de Nicolas Sarkozy em França: foi derrotado após ter perdido o apoio do centro do eleitorado. Obama foi reeleito porque o Partido Republicano perdeu de vista o centro da América. É claro que a grandeza da democracia norte-americana não deverá esconder as suas enormes falhas nem a sua disfunção actual. O custo deste ciclo eleitoral foi superior a dois mil milhões de dólares – tudo para reproduzir o status quo: o mesmo presidente e o mesmo equilíbrio de poder no Congresso dos EUA. O dinheiro tornou-se um agente corrosivo que está a corroer e a redefinir o processo democrático, no qual a mobilização de energias pessoais dá lugar ao alargamento dos orçamentos de campanha. Além da questão do dinheiro, existe o problema de um sistema de equilíbrio e controlo totalmente descontrolado, que conduz à paralisia governamental. A "vetocracia" – reflectida na rotina de obstrucionismo do Congresso durante o primeiro mandato de Obama – é uma ameaça à democracia. Reconhecerá o partido, castigado pela sua derrota eleitoral, que a sua responsabilidade é para com o povo americano, e não apenas para com os seus membros e seguidores?A reeleição de Obama envia uma mensagem que apenas será amplamente repercutida – inclusive em casa – se a retórica não se afastar da realidade, como tantas vezes aconteceu durante o primeiro mandato de Obama. A América não pode continuar a viver com as injustiças do seu sistema de saúde nem com infra-estruturas obsoletas e em ruínas. Também não pode ficar indiferente ao endividamento cada vez menos aceitável dos seus estudantes universitários. Simultaneamente, apesar de a América já não ser o protagonista internacional de outrora, a produção nacional de óleo e gás de xisto parece estar a ponto de reescrever a equação da energia dos EUA – o mesmo poderia acontecer em França e em outros países ocidentais, que, um dia, poderão ser capazes de abdicar da energia fornecida pelo Médio Oriente. O principal desafio global dos EUA é aceitar que o país deixará de estar sozinho no topo. O país nunca teve de se relacionar com os outros em pé de igualdade, ao contrário das potências europeias tradicionais, que o fizeram durante séculos. Para a China, contudo, o desafio poderá ser mais difícil. Não só terá de viver com a realidade do poder dos EUA, como também deverá ter em conta o ideal norte-americano. Em 1989, um grande número de estudantes chineses ocuparam a Praça Tiananmen para exigir mais direitos, adoptando um símbolo parecido com a Estátua da Liberdade. Também hoje, não é a força militar dos EUA que ameaça ou desafia a China, mas sim a atracção perseverante do "sonho americano". Tradução: Teresa Bettencourt/Project Syndicate
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Intendente a mudança em marcha
Há dez anos o Intendente era um buraco negro no centro de Lisboa. Edifícios em ruína, droga, roubos, prostituição. Entretanto, a palavra gentrificação entrou no vocabulário português. E agora pode estar a nascer aqui o Bairro Alto do século XXISão três da tarde de segunda-feira, mas, na Rua dos Anjos, o dia não difere muito da noite. Junto ao gabinete de António Costa, no mundo já limpo do Largo do Intendente, é virar à esquerda. De repente, por todo o lado areia, grades de arame, maquinaria, passeios revolvidos, calçada levantada, pintura em curso nas fachadas - um estaleiro de obras. É a mudança em curso. E, no... (etc.)

Intendente a mudança em marcha
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2014-05-30 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20140530170436/http://ipsilon.publico.pt/artes/texto.aspx?id=335095
TEXTO: Há dez anos o Intendente era um buraco negro no centro de Lisboa. Edifícios em ruína, droga, roubos, prostituição. Entretanto, a palavra gentrificação entrou no vocabulário português. E agora pode estar a nascer aqui o Bairro Alto do século XXISão três da tarde de segunda-feira, mas, na Rua dos Anjos, o dia não difere muito da noite. Junto ao gabinete de António Costa, no mundo já limpo do Largo do Intendente, é virar à esquerda. De repente, por todo o lado areia, grades de arame, maquinaria, passeios revolvidos, calçada levantada, pintura em curso nas fachadas - um estaleiro de obras. É a mudança em curso. E, no meio do pó, o que à força de mudar voltou ao início: prostituição de rua à antiga portuguesa, homens a fumar pelas soleiras e minúsculos bares de alterne já de porta aberta, a servir bebidas, com a música a sair porta fora e as televisões ligadas lá dentro. Tanto na Rua dos Anjos como na Rua do Benformoso, na direcção oposta, rumo ao Martim Moniz, há pelo me- nos uma televisão por bar, quando não duas. E isso acabou por se tornar no elemento estruturante do projecto que os artistas plásticos João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira foram convidados pela Red Bull a desenvolver para a zona. Este será o segundo ano em que a marca assume o leme das comemorações do dia de Santo António nesta zona. Chamaram-lhe O Santo Vertical - uma festa para a noite de dia 12 com música ao vivo pelas varandas dos edifícios do Largo e, como anfitriãs, as actrizes Cláudia Jardim e Joana Barrios, da companhia Teatro Praga. A preparar o crescendo, uma semana antes, já a partir da próxima quinta-feira, inaugura Intendente, o projecto de comissariado para o qual João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira convidaram 11 artistas e colectivos a expor nos antigos bares da zona. Vasco Araújo, João Onofre, Gabriel Abrantes, Mauro Cerqueira, Francisco Queirós, Tiago Alexandre, Diogo Evangelista, Miguel Faro, D. A. E. S, o jovem grupo de teatro Silly Season e o colectivo Rabbit Hole - por uma semana, dia e noite, trabalhos em suporte videográfico assinados por estes nomes estarão a passar nos monitores dos bares que constituíram em tempos uma das âncoras da vida da zona. Uma vida anterior a Fevereiro de 1999, quando a Câmara Municipal de Lisboa, então presidida por João Soares, deu por concluído o projecto de realojamento de 248 famílias que antes viviam no bairro do Casal Ventoso. Nesse momento, Lisboa dava por encerradas as portas de um hipermercado de estupefacientes por onde, a partir de final dos anos 1980 e durante a década de 1990, se estima que, diariamente, mais de cinco mil pessoas circulassem para comprar e consumir cocaína e heroína. Cinco mil: sensivelmente o mesmo número de pessoas que, com o fim do Casal Ventoso, se estima que tenham atravessado a cidade passando a circular diariamente pelo Intendente. À época, o Largo era um terreiro delapidado que servia de parque de estacionamento - ligeiros, mas também os pesados de empresas de camionagem e mudanças. Lá pelo meio, onde antes havia pouco mais do que a prostituição tradicional e a base da pirâmide da imigração não-documentada, passou a haver também centenas de novos toxico-dependentes. Vanda Ramalho, assistente social e professora universitária, chegou pouco depois, em 2004. Aos 24 anos, tinha acabado o curso e começado a estagiar na Comissão de Protecção de Crianças e Jovens, nos Anjos. Decidiu ir viver para a Almirante Reis, pouco acima do Largo, no mesmo apartamento onde ainda mora. “Quando cheguei, a zona era considerada perigosa. Apesar de contactar com aquelas realidades fazer parte do meu trabalho, eu própria tinha medo de passar em certas zonas”, recorda. Os primeiros passos de recuperação deram-se em 2008, com a câmara a começar a colaborar com associações locais ligadas a programas de reabilitação de toxicodependentes. Três anos depois, em 2011, António Costa decidiu mudar o seu gabinete para um dos edifícios da antiga fábrica de cerâmicas Viúva Lamego. No edifício contíguo, apoiou ainda a instalação das Largo Residências, com um programa de criação artística, um hostel e, no piso térreo, o Largo Café Estúdio, com espaço para apresentação informal de pequenas propostas de teatro, dança e lançamento de livros. Mais recentemente, ao lado, inaugurou também a maior das lojas A Vida Portuguesa, de Catarina Portas. E, entretanto, aos poucos, o Largo do Intendente transformou-se numa praça ampla e luminosa de calçada e lioz, com gente a tomar café em esplanadas, uma peça da artista plástica Joana Vasconcelos ao centro e uma fonte antiga em pano de fundo. A mesma fonte que, antes, Vanda Ramalho diz que nem sabia existir ali. Tal como muitos dos novos moradores que nos últimos anos se mudaram para a zona em busca de rendas acessíveis junto ao centro da cidade e que, pela manhã, descem a Almirante Reis de bicicleta e skate e fazem compras nas mercearias chinesas, indianas e paquistanesas, hoje Vanda frequenta o Largo bem como a Casa Independente, o maior espaço da nova noite da zona. Paredes meias com o antigo Sport Clube Intendente — que começou também a ter novos clientes e festas —, a Casa Independente é um multifunções dentro de um antigo edifício apalaçado, hoje com uma zona de bar, sala de refeições, sala de dança e uma esplanada interior. Para além da sua actividade normal, com uma programação de DJ e concertos, acolhe também iniciativas como o mercado de segundas-feiras da Cooperativa Fruta Feia, que tem como lema “gente bonita come fruta feia”. A cooperativa arrancou em finais de 2013 como forma de com- bate ao desperdício alimentar motivado pelos actuais padrões de consumo, que recusam produtos fora de determinados cânones estéticos — de formato, cor, calibre. . . — e que levam a um desperdício de cerca de 30% de toda a produção de frutas, vegetais e legumes. Em todo o mundo, são milhões e milhões de toneladas anuais de alimentos em perfeitas condições de consumo e cuja produção envolveu custos ambientais elevados. Segundo a Fruta Feia, em apenas seis meses de existência foram já mais de 25 toneladas de alimentos canalizados para este mercado alternativo hoje com 420 consumidores associados. O posicionamento é tanto ético como político — a escolha de um estilo de vida à margem de lógicas vistas como destrutivas de valores fundamentais. E são mais pessoas a atravessar frequentemente o Largo. Tal como as que sobem até à Cozinha Popular da Mouraria, um projecto da fotógrafa Adriana Freire localizado algumas ruas acima da também recentemente inaugurada Casa da Severa, de Camané, e onde a moldura é horizontal e inclusiva — todos iguais: provam-se pratos de chefs convidados tanto quanto de moradores do bairro, e toda a gente ajuda a cozinhar e a limpar (incluindo os que pagam). Gentrificação?A Mouraria envolve o Intendente. Por cima. Até lá, a partir do Largo, um dos caminhos é a Rua do Benformoso, onde fica a maioria dos bares ocupados pelos artistas que integram o projecto de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira. É uma réplica em maior escala da Rua dos Anjos, mas onde o Portugal antigo se faz cada vez mais multicultural à medida que nos aproximamos do Martim Moniz: talhos e mini- mercados halal, lojas de bijuteria chinesa, cabeleireiros afro. . . Passaram por aqui muitos dos que há um ano fizeram o percurso do NOOR- Mouraria Light Walk, mais uma iniciativa camarária para a abertura e dinamização da zona. Entregue ao Ebano Collective, esse percurso envolveu trabalhos de dez artistas em que a luz era assumida como símbolo de uma chamada de atenção sobre o trabalho de recuperação já feito na zona mas também sobre “as camadas mais invisíveis do bairro, em colaboração o mais estreita possível com os moradores”, explica Vítor Barros. No total, as três noites do Light Walk terão chamado cerca de dez mil pessoas, entre elas “muitos lisboetas que por ali não passavam desde a infância”, diz Chiara Pusseti, também do colectivo. Especializada em antropologia cultural, a investigadora sénior do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, recorda como, há alguns anos, quando viveu na Mouraria, “era convidada pelos amigos e até pelos vizinhos a não andar sozinha à noite”. Haveria algum risco real, reconhece. Mas acha que, provavelmente, mais do que ele pesaria “o medo do desconhecido, do novo”. É que “gentrificação” não é um termo que tenha entrado há muito no vocabulário português. Em capitais maiores e mais dinâmicas, como Nova Iorque, Londres, Paris ou Berlim, com populações jovens e flutuantes muito maiores do que Lisboa, os fenómenos ligados à ocupação de zonas degradadas do casco urbano por novas faixas populacionais há muito fazem parte identificada e estudada da economia das cidades. Portugal, onde até ao fim da ditadura praticamente não existia mobilidade social, só há pouco saiu também de uma lógica atávica em que várias gerações de uma família nasciam e morriam numa mesma casa ou num mesmo bairro. Em Lisboa, o Bairro Alto foi o primeiro grande caso de uma lógica de gentrificação contemporânea. Um processo em grande parte espoletado de forma espontânea pela inauguração, em 1982, dessa utopia nocturna chamada Frágil, o bar-discoteca que seria o ponto fulcral de irradiação de uma Lisboa cosmopolita, democrática e aberta. Foi toda uma década até, em princípio dos anos 1990, o Bairro começar a ser assumido de forma consistente como zona residencial por uma nova faixa de população, parte da qual ligada às escolas de teatro, dança e música do Conservatório Nacional. Depois, foi quase outra década até, com a abertura da nova estação de metro da Baixa-Chiado, em 1998, o Bairro se ver invadido de forma massiva como pólo de diversão nocturna. Sem qualquer plano de desenvolvimento sustentado, foi nessa altura que o valor do imobiliário na zona começou a disparar — quase ao mesmo tempo, porém, que a zona se tornava cada vez menos habitável devido à poluição sonora de um número insustentável de bares e à falta de infra-estruturas sanitárias para acolher um volume esmagador de visitantes nocturnos. Foi o fim da maior parte do comércio tradicional e mesmo de uma parte do novo comércio que entretanto se instalara na zona. Foi o momento, também, do verdadeiro desaparecimento dos moradores tradicionais, muitos dos quais dando vez a prédios inteiros de alugueres temporários a turistas. Questões de vizinhançaEm menor escala, seria o que aconteceria pouco depois também nas zonas adjacentes da Bica e do Cais do Sodré, o corredor nocturno que acabou por ligar o topo da colina à zona ribeirinha. E isto é o que preocupa muitos dos intervenientes mais alerta da zona do Intendente. Com a jornalista Carla Isidoro, Vanda Ramalho é hoje uma das impulsionadoras do projecto Moradores da Avenida Almirante Reis, um grupo com sede no Facebook e ligado ao projecto internacional Social Street, que visa criar elos entre habitantes da uma mesma rua para que se conheçam e sociabilizem, criando uma rede de vizinhança e aumentando a confiança na sua zona de residência. Visitas guiadas sobre a história do bairro, concursos de fotografia, jogos de futebol de rua e também um sistema de dinâmica social de entreajuda: troca de apoio de babysitting, apoio informático gratuito, oferta de transportes, descontos no comércio e na restauração local. . . Criado já este ano, o grupo junta neste momento 98 moradores. Como aconteceu noutros países, Vanda Ramalho espera que consolide uma lógica de vida comunitária em geral ausente nas grandes cidades, sobretudo em avenidas largas como a Almirante Reis. Idealmente, seria também uma estratégia de sensibilização para a necessidade de manter a zona polissémica e ecléctica, sem que novos moradores anónimos hostilizem e afastem moradores tradicionais. Isso começa a notar-se, diz Vanda Ramalho. Começa a notar-se, por exemplo, numa série de prédios que, nos últimos anos, gradearam as suas arcadas térreas como forma de afastar os sem-abrigo que há muito pernoitam na zona. “Não se devem fazer políticas de afastamento de trabalho sexual, por exemplo. Não se devem adoptar nunca políticas de limpeza. [Em qualquer processo de requalificação] é preciso haver um controlo [de cima para baixo] para que não existam falhas éticas. Não devemos tornar invisíveis as diferentes realidades sociais que compõem a cidade. ” A diversidade é, precisamente, o que torna qualquer zona realmente interessante e apelativa. E, para que a diversidade subsista, “é preciso que a câmara continue presente”, argumenta Vanda: “Vai ter de partir do poder local a criação de medidas de apoio a idosos e de incentivo à habitação de baixo custo para combater os fenómenos de mercado mais niveladores. ” Chiara Pusseti, que é italiana, dá como exemplo a estratégia seguida pela câmara da sua cidade natal. Em Turim, o projecto de requalificação do centro, que se transformou radicalmente nos últimos 20 anos, foi, precisamente, “mostrar a presença estrangeira na cidade”: “Foram feitos acordos especiais para manter as rendas de bares, restaurantes e habitação de imigrantes. . . Vamos ver o que acontece em Lisboa. As consequências daquilo a que chamamos gentrificação têm sempre a ver com o projecto que é lançado de cima para baixo. ” É o que diz também Lucinda Correia, da Artéria, um atelier de arquitectura onde trabalha em parceria com Ana Jara e cujo lema é “humanizar a arquitectura”. Entre os representantes oficiais deste ano na Bienal de Arquitectura de Veneza, a Artéria está desde 2011 envolvida na reabilitação do Intendente e tem atelier não longe, na Rua da Madalena. “A requalificação física não chega, sobretudo quando não envolve os que habitam o espaço”, nota Lucinda. Em Outubro, o atelier terá um projecto de parceria com o comér- cio local. Neste momento, diz a arquitecta, a grande preocupação dos lojistas tradicionais é “perceber como é que vão conseguir ficar ali com todas as mudanças” em curso: “Aconteceu também com o Cais do Sodré, que começou a ter muita força mas escorraçou muitas pessoas. Corre-se sempre esse risco, mas não deve acontecer. A câmara terá de assegurar que há um conjunto de pessoas que devem poder coabitar com os novos projectos. ” Apesar de terem acabado de contactar pela primeira vez com a zona, estas foram algumas das questões intuídas por João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira. Na Casa Independente, por exemplo, apresentam um trabalho de Mauro Cerqueira feito no Porto numa zona a passar por um processo semelhante - o artista filmou um sem-abrigo alcoólico; no Intendente, o registo do dia de mendicidade desse homem estará no interior de um dos novos espaços vedados a essa faixa populacional.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens imigração ajuda negro homem social prostituição consumo medo sexual alimentos desaparecimento
De Londres à Jamaica e à pesca na Nigéria, eis os finalistas do Man Booker 2015
Dois britânicos, duas norte-americanas, o primeiro jamaicano e o segundo nigeriano na shortlist do mais importante prémio literário britânico. (...)

De Londres à Jamaica e à pesca na Nigéria, eis os finalistas do Man Booker 2015
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 9 Africanos Pontuação: 9 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-09-15 | Jornal Público
SUMÁRIO: Dois britânicos, duas norte-americanas, o primeiro jamaicano e o segundo nigeriano na shortlist do mais importante prémio literário britânico.
TEXTO: Os não-britânicos continuam a dominar a shortlist do prémio literário Man Booker nesta sua segunda edição anual aberta a todos os escritores de língua inglesa. Pelo caminho ficou já, o que é considerado uma surpresa, a norte-americana Marilynne Robinson, que já venceu o prémio Pulitzer. Os seis finalistas foram conhecidos esta terça-feira em Londres e há primeiros romances e vigésimas obras na lista. Os finalistas do importante prémio literário britânico, que em 2013 anunciou a sua expansão para escritores de todas as nacionalidades desde que tenham publicado originalmente a sua obra em inglês e que tenham edição no Reino Unido, vão do Reino Unido à Nigéria, passando pela Jamaica e pelos EUA. São então finalistas os romances Satin Island, do britânico Tom McCarthy, A Brief History of Seven Killings, a terceira obra do jamaicano Marlon James, The Fishermen, o primeiro romance do professor nigeriano de Literatura, Escrita Criativa e Inglês Chigozie Obioma, ou The Year of the Runaways, a recém-publicada segunda obra do britânico Sunjeev Sahota. As duas únicas mulheres na lista de finalistas do Man Booker 2015 são as norte-americanas Anne Tyler com A Spool of Blue Thread e a Hanya Yanagihara com A Little Life. Tyler recebeu já o Pulitzer pela sua obra, a vigésima, que versa sobre quatro gerações de uma família e Yanagihara tem sido muito elogiada pelo retrato de corações partidos nas relações de quatro recém-licenciados nesta sua segunda obra. Tom McCarthy e o “antropólogo empresarial” que criou para o seu romance passado na Londres actual, está pela segunda vez na shortlist do Booker (a primeira foi em 2010 com o romance C). Em 2015, há então também o britânico Sunjeev Sahota, que escreve sobre os imigrantes indianos a trabalhar e a viver numa cidade do Reino Unido. Atribuído anualmente desde 1969, o mais importante galardão literário da língua inglesa até 2013 só premiou escritores do Reino Unido, irlandeses, do Zimbabwe ou de países da Commonwealth. Agora tem apenas dois finalistas britânicos como finalistas depois de em 2014 terem sido três os britânicos e dois os americanos na lista – um dos principais temores e críticas feitos à mudança das regras no Booker foi que os pesos-pesados da literatura e mercado americanos eclipsassem os restantes autores. Este ano, apesar da contabilidade feita às nacionalidades mostrar equilíbrio, o júri confirma que quatro destes autores residem e trabalham nos EUA. Marlon James é o primeiro jamaicano a chegar a esta fase do prémio e escreve sobre a violência dos gangues e uma tentativa de assassinato de Bob Marley e o nigeriano Obioma, o segundo do seu país a ser nomeado, romanceia o confronto de quatro irmãos, durante a gazeta às aulas para ir pescar, com a profecia de um louco no seu país natal. Ambos leccionam em universidades norte-americanas. O vencedor, nome anunciado a 13 de Outubro em Londres, receberá mais 50 mil libras (71. 500 euros) e será escolhido por um júri encabeçado por Michael Wood, professor na Universidade de Princeton. O júri elogiou esta manhã a “variedade de estilos de escrita, de herança cultural e origens literárias dos escritores” finalistas – há “um extraordinário espectro de abordagens à ficção” e estão “em fases muito diferentes das suas carreiras”, destacou Wood. De fora ficaram então a irlandesa Anne Enright (The Green Road) e a americana Marilynne Robinson (Lila, acabado de editar em Portugal pela Presença), dois dos nomes mais consagrados entre os 13 semi-finalistas anunciados no final de Julho. Para trás ficaram ainda Did You Ever Have a Family, de Billy Clegg, The Moor's Account, da americana de origem marroquina Laila Lalami, Sleeping on Jupiter, da indiana Anuradha Roy, e The Chimes, da neozelandesa Anna Smail. O vencedor de 2014 foi o australiano Richard Flanagan com The Narrow Road to the Deep North (A Senda Estreita para o Norte Profundo, editado em Portugal pela Relógio d’Água).
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Toxicodependentes: "Tratam-nos cem graus abaixo de cão"
Carolina, Marguerite, Inácio e Isabel são rostos dos que consomem drogas a céu aberto no Porto, numa realidade que se agravou também em Lisboa. O presidente do SICAD, João Goulão, assume que as salas de salas de chuto são precisas. As autarquias, porém, atiram a bola para as organizações no terreno. (...)

Toxicodependentes: "Tratam-nos cem graus abaixo de cão"
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 9 | Sentimento -0.25
DATA: 2017-05-22 | Jornal Público
SUMÁRIO: Carolina, Marguerite, Inácio e Isabel são rostos dos que consomem drogas a céu aberto no Porto, numa realidade que se agravou também em Lisboa. O presidente do SICAD, João Goulão, assume que as salas de salas de chuto são precisas. As autarquias, porém, atiram a bola para as organizações no terreno.
TEXTO: “Deixar passar mais um dia pode significar mais 20 hepatites C. Não consigo perceber como é que um decisor político pode deixar passar mais um dia sem avançar com a criação das salas de consumo. Vamos todos pagar muito mais”, enerva-se Rui Coimbra, membro da associação CASO (Consumidores Associados Sobrevivem Organizados). Está sentado numa esplanada, no centro do Porto, ao fim de mais de duas horas a conduzir o PÚBLICO por um dos locais da cidade onde o consumo de cocaína e heroína fumadas e injectadas a céu aberto regressou em força. Do bairro do Cerco ao Aleixo, passando pela Pasteleira, Viso e Ramalde, cruzam-se consumidores com crianças que passam e adultos que atiram pedras, havendo outros que estugam o passo, assustados. Enquanto isso, as salas de consumo assistido, previstas na lei desde 2001, marcam passo nos gabinetes das autarquias do Porto e de Lisboa — onde o consumo de rua de heroína e cocaína voltou a disseminar-se nos últimos anos em zonas como Alcântara, Lumiar, Mouraria e Intendente. Pudesse Rui Coimbra levantar-se da cadeira onde está e conduzir os decisores políticos pelo interior do Aleixo, um dos bairros camarários onde a droga se trafica e consome à vista de quem por lá se atreve a passar, para lhes apresentar Marguerite Hoffman, a fumar base de cocaína, naquela espécie de cachimbo de alumínio improvisado chamado “caneco”. Cabelo ruivo, dentes podres, está sentada num chão de preservativos velhos, embalagens de seringas e de medicamentos vazios e do lixo da construção civil que ali jaz desde as demolições, feitas em 2011, a pretexto de acabar com o tráfico e consumo de droga e onde ainda hoje se consome com a diferença de ser a céu aberto. “Ontem fumei um ‘caneco’ com uns amigos junto ao [bairro] do Cerco. Escondemo-nos nas escadas que lá há. Umas senhoras passaram e chamaram uns rapazes para atirar pedras a nós”, conta, num português contaminado pelo alemão de origem. Vive há sete anos em Portugal, consome drogas fumadas e injectáveis desde 1990. Em Hamburgo, onde viveu, fazia-o numa sala de consumo assistido. “Mais higiene. Era muito bom. Ficas na tua mesa, tudo limpo e tudo bom”, recorda. Partilha o “caneco” com Inácio José, 51 anos e consumidor intermitente, encostados ambos ao muro que restou do antigo mercado que também foi café antes de ser abrigo de toxicodependentes. Ao contrário de Marguerite, que injecta e fuma várias vezes ao dia e que se prostitui para arranjar o dinheiro necessário, José Inácio diz que só o faz de vez em quando. O aspecto limpo, o maço de tabaco inteiro no bolso do pólo verde às riscas e os sapatos sem pó no meio do entulho circundante confirmam a sua tese. “Fumo [base de cocaína] desde 1985. Nunca me injectei e por isso é que estou vivo”, apresenta-se. Trabalha na construção civil e diz que passa semanas “limpo”. “Tenho sempre um substituto em casa. Metadona não, nunca me dei bem com ela. Tenho uns comprimidos que me receitaram e que são uma maravilha. Tomo, vou reduzindo, e chego a um ponto em que já não preciso. ”Nesta segunda-feira de manhã, veio ao Aleixo “fazer uma festinha”. “Quando venho, chamo a Marguerite, também para a tirar um bocadinho desse mundo [da prostituição de rua]. ” Nos períodos em que trabalhou fora, nomeadamente na Alemanha, Inácio frequentou salas de consumo. “A primeira vez que vi essas salas foi em 1993, em Hamburgo. Era num contentor aquecido, ‘injectores’ para um lado e fumadores para outro. Havia mesas de metal, um balde ao lado para as pessoas cuspirem e forneciam o material todo menos a droga: seringas, pratas, ‘canecos’. ”Ao lado, relata, havia instalações para sem-abrigo. “A polícia é muito rigorosa. Não deixam que se fume na rua nem um charro. Mas são sempre muito educados e encaminham as pessoas. Até o banditismo diminuiu. ”O contraste com o Aleixo é gritante. “Na Alemanha quem maltrate um toxicodependente é punido. Somos considerados doentes. Aqui tratam-nos cem graus abaixo de cão. À Marguerite agridem-na, tiram-lhe a roupa, deixam-na abandonada. ” E, olhando em volta, Inácio prossegue no mesmo tom, indignado. “Não sei porque destruíram este edifício, se não era para construir nada a seguir. Ao menos as pessoas escondiam-se para consumir. Tinham quatro paredes. É que por aí andam crianças. ” E costuma ver caras novas? “Não falta chavalada nova. E a uma velocidade. . . Será o desemprego, a falta de trabalho”, admite. E acrescenta: “Introduzem-se uns aos outros. Mesmo com a informação que há hoje. ”Quem desça pela Calçada da Mocidade Portuguesa, espécie de esplanada para o bairro e para o descampado onde antes havia uma escola, ao lado do tal mercado e dos tanques públicos, tem uma visão panorâmica das tendas montadas pelos toxicodependentes ao longo da encosta. Entre elas, sobressai uma bandeira portuguesa, vários papelões para abrigar do frio nocturno e muitos vultos que se movem ao som dos “capeadores” — espécie de sinaleiros que se posicionam junto a uma boca de tráfico de droga para intermediar a ligação entre quem consome e quem trafica. Rui Salvador, um ex-toxicodependente que agora colabora com a CASO, conduz o PÚBLICO pelos caminhos de onde a cidade foge no Aleixo, até junto da Torre Um — a mais directamente conotada com o tráfico. “Hoje compra-se uma dose de heroína a dois euros e meio. E uma de cocaína por cinco euros. Está muito barato. Alguém conseguiu meter muita droga aqui”, explica. Reconhece pelo nome a maior parte dos que, espalhados pelo descampado, vão consumindo a sua dose. Mas também detecta a presença de muitas caras novas. Agora, vinda da Torre Um, passa uma mulher vestida de luto, apoiada numa bengala e a suar em bica. “Vou ‘dar um caneco’. Tem que ser agora?”, impacienta-se, quando Rui lhe trava o passo a explicar ao que vimos. “Apesar de que eu gosto de consumir sozinha, acho bem, porque ando sempre com medo”, diz sobre a hipótese de as salas de consumo poderem sair do papel. “Já me aconteceu [estar a consumir] e levar com um balde de água, ou de lixívia ou de mijo ou lá o que era. Sem pré-aviso, sem nada. Estou ali a consumir e, zás, fiquei toda encharcada, a ‘branca’ [heroína] na mão encharcada, ‘caneco’ encharcado. Se for para ali [e aponta o descampado], é o vento que nos espalha o ‘caneco’ ou são os colegas — está-se sempre de pé atrás. ”Chama-se Isabel Brito, fez 50 anos há dias. Conta que consome “p’raí há 20 anos”. São duas décadas de vaivém a arrumar carros pelas imediações do seu “bairro de adopção”. Arruma uns carros, vai ao bairro, compra a dose, consome. Volta a arrumar carros. Por estes dias, porque foi operada a uma perna, tem pernoitado na Casa de Vila Nova, um centro de acolhimento de toxicodependentes. “Lá tem enfermaria e tudo”, despacha-nos, apressada. Além de estar a ressacar, move-a necessidade de se preparar para o funeral da irmã. Avança uns passos, depois recua para sacar de umas fotografias que leva num saco de plástico. “Se puderem pôr isto na net ou qualquer merda, para mostrar a diferença”, sugere. O contraste entre a figura de Isabel, escura, magra, envelhecida e de dentes estragados com a rapariga das fotos, morena, sorridente, de traços exóticos não podia ser maior. “Eras tu?”, pergunta Rui. “Era eu na Suíça, antes de ter começado. Tinha uns vinte e tais, fumava uns charritos e mais nada. ”Pelo corredor, onde param todos os que se vêm abastecer ao bairro, já tinha passado Matilde. Reconhece o fotógrafo por se ter cruzado com ele quando cumpria pena na cadeia de Santa Cruz do Bispo. “Ele fotografou-me em 2007, estava eu já a sair. Estive [presa] quatro anos”, situa. Magra, cabelo com a sujidade disfarçada por um rabo-de-cavalo, dentes podres. “Antes de me separar era só ‘branca’, depois é que me enterrei no pó. Enterrei é um modo de dizer, não estou enterrada, prontos, fumo. Se não tiver Subitex [medicamento utilizado na dependência de opiáceos] fico com arrepios. ”Sobre as salas de consumo: “Devia haver, porque alguns tiram as calças para baixo e tudo, quando não conseguem encontrar uma veia. E há canalha por aqui. Eu, se vir uma criança, nem fumo, porque tenho uma filha de sete anos e também não gostava que ela visse”, garante. E acrescenta: “Eu fumo em casa, mas a minha filha nunca viu: punha-a no quarto a ver bonecos e ia para a casa de banho. Ela agora está com o pai. ” À medida que Matilde se afasta, Rui Salvador explica que a maioria mente quando diz que não se injecta. “Quando os consumidores dizem que se injectam, as pessoas criam logo mais distância, recuam fisicamente. ”Rui fala sem tirar os olhos do vulto de t-shirt vermelha que cambaleia há mais de meia hora com uma seringa espetada no braço. “Há sítios onde distribuem naloxona, o que ajuda a evitar algumas overdoses”, explica, em jeito de lamento pelo facto de as associações no terreno não disporem disso ou sequer da possibilidade de, juntamente com as seringas, os preservativos, as pratas, as carteiras de ácido cítrico, distribuírem os tais “canecos” para substituir os de alumínio usados pelos toxicodependentes. Fora deste território de “não cidade”, desde a sua esplanada do centro do Porto, Rui Coimbra sustenta que os estudos científicos sobre a eficácia das salas “estão todos feitos”. E “em nenhuma se verificou um aumento do consumo ou da conflitualidade social”. É olhar para os relatórios do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, cujos responsáveis explicaram ao PÚBLICO por correio electrónico: “A evidência científica não suporta as principais preocupações levantadas sobre este tipo de salas e aponta impactos positivos em termos de aumento do acesso dos consumidores aos cuidados de saúde e assistência social e de redução do consumo de drogas no espaço público e da conflitualidade que lhe está associada. ”“Criar uma sala não é chegar a um sítio e construir um edifício”, ou seja, exige “soluções [que] têm de ser adaptadas à realidade de cada cidade, em diálogo com os moradores”. Rui Coimbra gostava de ver a urgência atendida com uma unidade móvel que percorresse os locais de consumo mais problemáticos. “Imagino uma carrinha com chuveiros e possibilidade de troca de roupa. Uma carrinha com técnicos de proximidade, serviço social, psicólogos, um enfermeiro, que pudessem chegar lá e fazer a ponte. ” É que “uma carrinha pode estar a 50 metros, mas um utilizador que tenha os pés todos estragados porque injecta e já não tem veias não faz esse percurso”. "Eu fumo em casa, mas a minha filha nunca viu: punha-a no quarto a ver bonecos e ia para a casa de banho. Ela agora está com o pai. "Pudesse então Rui Coimbra conduzir os decisores políticos até à beira desta estrada, nas imediações do Bairro do Cerco, onde está estacionada Florina, à espera de quem lhe requisite o corpo. Cabelo sujo e preso num rabo-de-cavalo, faces chupadas, tez amarelada — o costume. Tem vestida uma camisola com a Torre Eiffel sobre a inscrição Je ne regrette rien. Parece ironia de propósito. “Estive três anos sem consumir, deixei em 2010, mas depois voltei-me a meter, em 2014. Porquê? Devido aos ambientes, às companhias. . . ”Manteve-se “limpa” num período de curta emigração para a Arábia Saudita. Recaiu quando se separou do pai das suas filhas, uma de nove anos e outra de dois, ambas entregues aos avós. “Esvaziei-me outra vez nisto. Isto não é desculpa, mas pronto. Foi o que foi. ”Vem de Valongo para consumir. Põe-se na beira da estrada, entra num carro, faz sexo, recolhe o dinheiro, vai ao Cerco comprar uma dose, consome-a na tal casa em ruínas. “Se tiver 50 [euros] vai 50, se tiver 100 vai 100. Mas à noite ninguém vai para a casa velha. É muito escuro. Junta-se tudo ali nas escadas. ” E aponta as tais escadas onde Marguerite diz ter sido apedrejada há dias. Quando consegue, Florina vai dormir a casa dos pais para ver as filhas. A maior parte das noites dorme no bairro, numa cama alugada a quatro euros e meio a noite. E se tivesse uma sala onde pudesse consumir abrigada? “Seria muito melhor. Ao menos ninguém me via. ”Caminha-se em direcção à ruína de uma casa de pedra, espécie de sala de consumo não assistido, onde está Carolina. Lá dentro (é uma forma de dizer porque a casa já quase não tem tecto), alguns afastam-se perante a invasão. Carolina não. Olhos azuis. Seriam bonitos, se não estivessem vazios de qualquer expressão. Parece saber que o seu aspecto pode ajudar a dissuadir novos consumidores. Daí deixar-se fotografar com um “caneco” entre os dedos, cheios de feridas calejadas de tão antigas. “Quando me dizem: ‘Eu ando há seis meses nisto’, digo-lhe logo ‘Como?! Tu deves ser mas é burro. ’ Isto pode ser bom, mas não dá. Como é que hei-de dizer? Não compensa. Toda a gente vê o que isto faz. Por muito bom que seja, leva à miséria, à desgraça. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Com 48 anos a parecerem muitos mais, Carolina começou a consumir aos 14. Tem várias desintoxicações na sua biografia. Recaiu sempre. “Prostituir, roubar, fiz tudo. Quem diz que não faz mente. Faz e acontece. Eu entro em pânico. Só de saber que não tenho dinheiro para a droga fico com falta de ar. Não tenho forças para andar, não tenho nada”, diz, a meio da conversa. Valeu-lhe muitas vezes a mãe, que chegou a ir comprar-lhe algumas doses e que lhe criou os filhos. “Toda a toxicodependente que diz que consegue criar os filhos e andar na droga está a mentir. Uma drogada põe sempre a droga em primeiro lugar. Eu, graças a Deus, tenho uns filhos que nem os mereço. Não têm vícios nenhuns. Mas não é graças a mim. ” Carolina mora no Lagarteiro, à custa da reforma da mãe, que está acamada. O seu corpo já não dará para a prostituição. Garante que se tivesse uma sala onde consumir noutras condições não hesitava. “Estava-se mais à vontade, em todos os aspectos. ”O homem que ao lado prepara o “chuto”, mas que se recusara falar com os jornalistas atira-se à conversa: “Se fosse para deixar de andar aqui no meio do lixo, era bom. Muitos fazem as necessidades no mesmo sítio onde consomem. E às vezes onde comem. É uma badalhoquice. ”É mas é, na cabeça de Rui Coimbra, uma “terceiro-mundice”. Ei-lo, retomando o jorro da sua indignação: “Vamos todos pagar muito mais. Portanto, nem que seja por este argumento mais economicista — e já nem falo do respeito pelos direitos humanos —, deixar passar mais um dia acarreta mais despesas. E depois, se não se ignoram outras situações de doença, se a lei diz desde 2001 que o consumo de substâncias deixou de ser crime para passar a ser doença, porque é que havemos de ignorar o consumo de substâncias?!”, questiona. E concluiu: “Está mais do que na altura de deixarmos para trás a demonização das substâncias e de quem as usa. ”
REFERÊNCIAS:
Série Extremo Ocidental: Um casino na aldeia
De Caminha a Sagres, é possível viajar quase sempre à beira-mar. Durante cerca de 800 quilómetros, de Julho a Setembro, vamos percorrer a costa ocidental portuguesa, com uma moto, uma tenda e um bloco de notas. Começamos por Afife. (...)

Série Extremo Ocidental: Um casino na aldeia
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 6 | Sentimento -0.06
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: De Caminha a Sagres, é possível viajar quase sempre à beira-mar. Durante cerca de 800 quilómetros, de Julho a Setembro, vamos percorrer a costa ocidental portuguesa, com uma moto, uma tenda e um bloco de notas. Começamos por Afife.
TEXTO: Avistado ao longo do rio Minho, com os seus bancos de areia e os montes espanhóis na outra margem, até Moledo, em frente à ilha da Ínsua, o mar é verde, revolto pelas correntes e a ventania, e as praias brancas e selvagens. A estrada que domina a viagem é a Nacional 13, até Viana do Castelo. Mas antes de Vila Praia de Âncora há uma via sempre à beira-mar. Depois, N13 até à Gelfa e Afife, povoações discretas, com uma veiga de milheiral entre os montes e o mar, cravado de rochedos que o ligam à praia, numa continuidade fazendo sentir que tudo é parte do mesmo arquipélago de névoas e cores intensas. Afife está afastada do mar. Quase não se vê, quase não existe, e é preciso sair da estrada para encontrar a aldeia. No centro, entre a escola primária e a junta de freguesia, ergue-se um magnífico palacete de dois andares, paredes amarelas e janelas brancas: o Casino Afifense. Dá uns ares de boémia mediterrânica entre guerras mundiais, de Montecarlo soprado por um devaneio sul-americano. E a sensação de que, se entrássemos, a orquestra estaria a tocar, o salão à pinha e os ajanotados burgueses afifenses a arrastar, a pulinhos de foxtrot, as donzelas para recantos fora do alcance visual dos pais, instalados nos camarotes. Mas as portas estão fechadas. O estado de conservação do edifício é excelente. Tudo intacto e convidativo, mas não se pode entrar. É um mundo proibido. A culpa é do presidente da associação, que não quer tornar o casino acessível, acusam algumas vozes da terra. Pessoas demasiado ligadas ao passado, diz o presidente. Estranho, porém, não é o casino estar encerrado. Estranho é haver aqui, nesta aldeia com pouco mais de mil habitantes, um casino. Só o bar se mantém aberto, num sector independente do edifício, com a sua esplanada no passeio e clientela fiel, quase toda acima dos 60 anos. Tomás Pinto, um homem meticuloso e agitado, que usa calções no Verão e no Inverno, vem aqui todos os dias como se o tempo fosse uma dimensão congelada. Tem cabelo branco, tez bronzeada, olhar de artista incompreendido e 63 anos de idade, mas podia ter 18. E entrar, de fato e gravata (casaco sempre apertado, segundo as regras definidas pela Associação), na sala de espectáculos do Casino Afifense em dia de Baile do Caldo Verde, de jogo “legítimo” ou de representação da Antígona, em que até os capacetes dos soldados atenienses foram fabricados por tanoeiros locais. Nada saiu do sítio. Nem Tomás Pinto, nem o casino, nem a aldeia de Afife, no enfiamento do mar, da veiga e dos campos de milho. Nada mudou e tudo mudou. Para quem passa, Afife não parece mais que uma estância de veraneio. Um reduto de beleza pura onde alguns ricaços construíram casas de férias, certos artistas bem-sucedidos e velhas famílias inglesas do vinho do Porto procuram refúgio e recato. Afife não é terra de pescadores, como Âncora e outras povoações da costa nortenha. É zona agrícola, mas de produção tão pobre que os homens válidos emigram desde que há memória. Partiam para Lisboa, Porto e Coimbra, e daí para todos os cantos do país, para trabalhar na construção civil, como pintores, rebocadores e caiadores. Alguns foram para Espanha, Brasil, Uruguai, Argentina ou América do Norte. Mas terá sido no Porto, desde o século XVIII, que obtiveram maior especialização. Num livro de assentos de receitas e despesas da Igreja de Santa Marinha de Vila Nova de Gaia, são mencionados como mestres rebocadores nas obras de restauro iniciadas em 1745 os irmãos Manuel Alves Bezerra e Mateus Alves Bezerra, naturais do lugar de Agro de Cima, na Casa das Catôrras, freguesia de Afife, Viana do Castelo. No mesmo documento, guardado no Arquivo Distrital do Porto e citado numa monografia de Afife escrita por Avelino Ramos Meira em 1945, é ainda referido, provavelmente para justificar o pagamento generoso de 4 moedas, o facto de os irmãos Bezerra terem previamente trabalhado nas obras da Igreja e torre dos Clérigos, sob a direcção do arquitecto italiano Nicolau Nasoni. Terá sido com ele e os seus operários que os afifenses aprenderam a arte dos tectos em estuque, que introduziram em Portugal, e revelaria extrema utilidade nas reconstruções pós-terramoto de 1755 e viria a disseminar-se pelo país, passando e aperfeiçoando-se de geração em geração. Depois da Primeira Guerra Mundial, muitos estucadores afifenses encontrariam trabalho em França, onde aprenderam a fazer rendilhados de cal e gesso estilo Luís XV, Luís XVI e Império. Durante os séculos XIX e XX, estucadores afifenses surgem mencionados por todo o país, quer pela autoria de obras, quer pela fundação de escolas. Os Bezerra e seus descendentes viriam a assinar trabalhos de extrema importância em Lisboa, Porto, Guimarães e outros locais. Outros estucadores lendários foram os irmãos Ferreirinha, o mestre José Moreira, conhecido por “Francês”, diz-se que por a sua mãe ter sido violada por um soldado napoleónico da invasão de 1810, e Domingos Meira, que seria condecorado com a Comenda da Ordem de Cristo e a quem se deve, por exemplo, a decoração do grande salão do Palácio da Pena, em Sintra, e salões no Palácio das Necessidades, do Duque de Loulé e dezenas de outros palácios. Nessa era de ouro, entre o século XIX e primeira metade do século XX, praticamente só as mulheres ficavam em Afife, para trabalhar na agricultura. A maioria dos homens dedicava-se ao estuque ou artes afins, e vivia fora da sua terra. Por todo o lado, eram prestigiados e respeitados, vistos não como artífices, mas como intelectuais. Apresentavam-se nas obras de sobrecasaca e chapéu alto, ou de fraque, colete branco, calça de fantasia e chapéu de coco, segundo a monografia de Avelino Meira, ele próprio filho e neto de estucadores. Não sujavam as mãos. Supervisionavam os trabalhos e, nas fases estritamente criativas da sua função, mandavam sair os operários e agiam sozinhos, fechados no recinto, para que os segredos da sua superior arte decorativa não fossem revelados. E é esta gente, que enriqueceu, não pelo comércio, mas pela sofisticação da sua arte, esta espécie de aristocracia do espírito nascida do povo, que vai refinar uma paixão pelo teatro. Sempre houve, como em todas as aldeias, as peças religiosas representadas no adro da Igreja, ou junto à capela da Senhora da Lapa, ou ainda na eira da casa conhecida como do Firranca da Pôça. Mas a dada altura do século XIX essas manifestações populares começaram a ser levadas muito a sério. Alguns actores especializaram-se, o nível de exigência aumentou. Era uma forma de ligação à terra, mas também de diferenciação. Pessoas de sensibilidade e bom gosto a quererem demarcar-se da rudeza do campo. Em 1859, foi fundada a primeira de um conjunto de associações de cultura, solidariedade e recreio: a Sociedade do Teatro Afifense. Num terreno oferecido por um afifense e após a criação de uma sociedade por quotas de 28 cidadãos, em que cada um pagou uma libra de ouro, construiu-se um teatro de pedra e cal, onde seriam levadas à cena as peças Milagres de Santo António, Morgadinha de Val-Flor, Fausto, entre outras. Quase todos os estucadores aprenderam a representar, alguns, dizia-se, muito bem, tanto na especialidade dramática como cómica. Foram convidados alguns encenadores, de fora, mas os actores eram todos de Afife. Só homens, bem entendido, que às damas da época não ficava bem a exibição de palco. As personagens femininas eram assim representados por homens, papéis que, segundo o autor da citada monografia, “alguns faziam com relativa naturalidade”. Camilo Ramos, 68 anos, conservador do Registo Civil reformado, ex-presidente do Casino Afifense, recorda o caso, relatado pelo pai, estucador, do actor que anuiu a representar um papel feminino, mas se recusou a rapar o bigode. Numa fase mais tardia, o próprio pai de Camilo, a trabalhar em Lisboa, ensaiava as peças, durante todo o ano, no seu quarto alugado, com outros artistas conterrâneos, em preparação para os espectáculos de Natal, em Afife. Quem distribuía os textos por todo o país era o encenador Lúcio Amorim “Pirilau”, um grande sedutor e bon-vivant desses tempos de euforia, que chegou a namorar a mãe de Camilo, antes de se tornar amigo do pai. Um dia, anos mais tarde, contou Camilo, “Pirilau” entraria no Casino Afifense particularmente bem aperaltado, de casaca e gravata, para uma partida de “Solo”, um jogo da moda na altura. “Vieste para o combate”, comentaram os amigos, aludindo às suas míticas lides de D. Juan. Mas não era isso. O “Pirilau” fazia tudo em grande, e essa noite, no fim da qual se suicidaria, como planeado e explicado num bilhete previamente escrito, era uma grande noite para ele. O êxito da Sociedade do Teatro levou à fundação, em 1885, com 57 sócios, da Sociedade Recreativa Afifense, que se instalou num prédio do Largo do Cruzeiro, mas depois se mudou para o edifício do velho teatro. Além das peças, realizavam-se agora também os bailes e apoiava-se o desenvolvimento da povoação. Uma das conquistas da Sociedade Recreativa foi, após sete anos de acesas discussões nas reuniões da assembleia, a criação da escola primária feminina. Um argumento pesou na aprovação desta ousada iniciativa: as raparigas deveriam aprender a escrever as suas próprias cartas de amor aos namorados que viviam fora da terra. Ao serem obrigadas a pedir a terceiros que as escrevessem, os seus ternos segredos de adolescência acabariam nas bocas do mundo, fragilizando as suas famílias pela vida fora. No final do século XIX, divergências entre grupos de simpatia monárquica e republicana acabariam por criar uma cisão na Sociedade Recreativa. Em 1899, foi criado o Clube Afifense, de tendência republicana, que, além das actividades já habituais, incluía a assistência médica aos sócios. Durante anos, as duas sociedades funcionaram em paralelo, com um número crescente de sócios comuns, até que optaram pela fusão. Foi criada, em 1929, a Associação do Casino Afifense, que funcionou na sede da antiga Sociedade Recreativa, até à construção do seu novo edifício, em 1935. Não se sabe por que foi escolhida a designação “casino”. Provavelmente por influência galega ou francesa. Sabe-se que a intenção nunca foi criar uma casa de jogo, mas um centro de eventos culturais e sociais. Tão-pouco se sabe quem desenhou a planta original do edifício. Se algum afamado arquitecto de fora, se o próprio mentor do projecto, o afifense Tomás Fernandes Pinto, estucador, emigrado no Brasil durante cerca de 40 anos, onde enriqueceu. Tomás Pinto distinguiu-se no teatro desde muito cedo. Há registos do seu nome nas actas do Clube desde 1914, quando interpretou a peça Uma Tourada do Ribatejo. Surge também mencionado como ensaiador. Quando regressa a Afife, rico, após um percurso como construtor civil no estado do Maranhão, traz, qual Fitzcarraldo do avesso, o sonho de construir um teatro na sua terra. Não foi fácil. A ideia era megalómana e cara, e suscitou resistências. Constituiu-se uma sociedade para a obra, a Edificadora, Lda, angariaram-se fundos, com quotas extraordinárias dos sócios, donativos, receitas de festas e espectáculos e até subsídios do Estado. Mas só a compra dos terrenos custou 186 contos, e o orçamento inicial da obra foi de 75 contos, largamente ultrapassado. Numa assembleia geral do casino, o mestre de obras, António Folha, chegou a declarar que, por aquele dinheiro, não aceitaria tão magna obra, sob pena de desgraçar a sua empresa. Mas foi nesse momento que Tomás Pinto se levantou e pronunciou o memorável discurso segundo o qual ele próprio faria a obra, arcando com todos os custos necessários. Folha acabaria por aceitar a empreitada, mas todos os (avultados) gastos adicionais foram suportados por Tomás. Quatro anos após o início dos trabalhos, nascia, em 1935, o imponente Casino Afifense, um símbolo de tenacidade, bom gosto e poder, distinto de todos os outros edifícios da região. Compõe-se de um luxuoso salão de espectáculos e bailes com lotação de 500 pessoas, com duas galerias e um balcão, um palco espaçoso apetrechado com teia de cenários e uma enorme tela de proscénio. Foi pintada há mais de 100 anos pelo artista Ferreira Alves, para o antigo teatro, tendo sido depois acrescentada, adaptando-se às maiores dimensões do casino. O soalho do salão tem duas posições: nivelado pelo palco, para bailes e festas, ou descido cerca de 1, 5 metros em relação ao palco, com inclinação de anfiteatro, para espectáculos. O movimento é operado, num sistema engenhoso e raríssimo, através de quatro fusos manobráveis, por quatro homens em simultâneo, na cave do edifício. No primeiro andar há ainda, ao lado da sala de jogos e da biblioteca, o Salão Nobre, decorado em estuque e pintura por artistas da terra em estilo Luís XVI, com filetes dourados e tons de marfim. “Vir aos bailes e espectáculos do casino era um sinal de distinção”, explica António Jardim, 68 anos, o actual presidente da associação. Não era para todos. Representava uma marca de exclusividade e diferenciação, numa região pobre, de pescadores, agricultores e apanhadores de sargaço. A entrada era reservada aos sócios e não era qualquer um que podia ser sócio do casino. Só sob proposta de outro sócio e com aprovação em assembleia geral, que não tinha por hábito facilitar os procedimentos. Durante cerca de cinco décadas, até à decadência dos anos 1980, sucederam-se os espectáculos, as festas e os bailes no casino, atravessando, depois das fases monárquica e republicana, as do Estado Novo e da democracia. As tertúlias de Pedro Homem de Melo, poeta de Afife, continuaram depois da sua morte. A prisão de Gungunhana foi pretexto para um baile grandioso, mas, em 1969, em plena greve de estudantes de Coimbra, José Afonso veio ao casino cantar Os Vampiros, com uma guarda de sete pides à porta. Camilo Ramos, então estudante de Direito em Coimbra, e um dos mentores da iniciativa, foi chamado à polícia sob suspeita de ter canalizado dinheiro para os grevistas a coberto do cachet de oito contos do Zeca. Já depois de 1974, houve espectáculos com centenas de artistas, como o recital de 400 poetas, em 1984, que incluiu Natália Correia e Ary dos Santos, e música de António Vitorino de Almeida, Carlos Paredes e os Trovante. Mas isso era já o canto do cisne, numa época em que o boom do movimento associativo viria a esvaziar o casino de propósito e sentido. Para Tomás Pinto, sobrinho-neto do emigrante brasileiro que construiu o casino, o mundo continua parado naquelas noites dos anos 60 em que vinha dançar e namorar nos bailes de Verão ou de Carnaval. As festas, que não deveriam ser muito diferentes das das décadas anteriores, duravam até às duas da manhã e eram momentos privilegiados, concentrados de vida. Não havia outros divertimentos, as raparigas, fora destas noites de excepção, quase não saíam de casa. Se alguma ousava ficar na rua até um pouco mais tarde, tinha logo direito a uma ofensiva admoestação da mãe: “Tive de te ir buscar com uma candeia. ”Tomás lembra-se do Conjunto Alegria, a orquestra do pai do Quim Barreiros, tocando a valsa, o tango ou o foxtrot. Recorda ainda quando chegou a moda to twist precursor do rock and roll, interpretada pela nova banda Os Xornas, e os protestos dos sócios mais conservadores. “Foi uma luta. Dos camarotes, as pessoas cuspiam para a sala de dança, quando fazíamos o twist. ”De um modo geral, as regras eram estritas e o código comportamental rigoroso. Para os homens, era obrigatório sapato engraxado, fato e gravata, com casaco apertado. Em certas noites de Verão, o calor era tanto, com 500 pessoas apertando-se no salão à pinha, que a direcção do casino se reunia de urgência para autorizar os homens a abrir o casaco. As raparigas casadoiras, que se sentavam nas cadeiras laterais do salão, à espera de quem as convidasse para dançar, tinham de vestir-se “de lavradeira”, com os trajes tradicionais minhotos. “Uma pessoa tinha de dançar numa compostura terrível”, recorda Tomás. Era preciso fazer evoluir os movimentos num sentido contrário aos ponteiros do relógio, para não haver choques ou encostos. E era obrigatória uma distância púdica com o par, ferozmente fiscalizada pelo chefe de sala, que distribuía comentários e ameaças pelos mancebos de cabeça perdida. “Tem de haver espaço para passar o ar”, dizia ele, colocando a mão entre os peitos arfantes. Se algum sócio reincidia no abuso, era retirado e levado à direcção, para um raspanete ou sumária expulsão da festa. Em casos mais graves, levava um discreto arraial de pancada dos seguranças e podia ser expulso da associação por deliberação posterior da assembleia de sócios. Tudo para garantir um ambiente selecto nos bailes, que causavam inveja em toda a região. Com idênticos propósitos, também as mulheres não entravam sozinhas na festa (em geral, só os chefes de família podiam ser sócios, levando com eles esposas, filhas e criadas). Uma vez no casino, as damas podiam dançar, mas não ir sozinhas ao bufete. Até as criadas podiam dançar, mas só mais tarde, quando não houvesse nenhuma senhora na pista. Os rapazes agrupavam-se junto ao palco e avançavam para as donzelas, solicitando a dança. Que podia ser recusada, o que era uma vergonha. Dos camarotes, os mais velhos que observavam atiravam logo um comentário: “Já levaste meio-tostão. Vai ao bar beber para esquecer. ” E o embaraço seria ainda maior se, após uma recusa, o imberbe tentasse a moçoila do lado e levasse outra tampa, o que era provável, porque ela não queria parecer menos exigente que a amiga. Tomás evitava isto abordando-as por trás. Até hoje, não há testemunhas das inúmeras tampas que levou até conseguir os favores da menina que é hoje a sua esposa. Agora, o Casino Afifense é um casarão vazio, mas Tomás continua a vir aqui todos os dias. Senta-se no bar, à conversa, frequenta as reuniões da associação, como Camilo Ramos e muitos outros, mantendo vivas as velhas polémicas, as velhas discussões. “Aquelas estruturas metálicas não deviam ter sido colocadas nas colunas. Não é harmonioso”, barafusta ele, como se isso tivesse alguma importância. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. António Jardim, que não é natural de Afife e assumiu recentemente a presidência da associação, após um vazio de poder, tem planos para o casino. “Pode vir a ser o terceiro pólo cultural do distrito, depois do Teatro Sá de Miranda e do Centro Cultural de Viana”, diz Jardim, que anda a tentar enquadrar o caso, na Câmara Municipal de Viana do Castelo, para se candidatar a fundos comunitários. “Será um teatro para espectáculos mais intimistas, para um público de nicho. ”Pouco importa que os sócios estejam todos na terceira idade, que já nem paguem quotas por terem cartão dourado. O Casino Afifense está fora do tempo.
REFERÊNCIAS:
Combate entre cães, o clube de combate dos homens
O Prémio Especial do Júri do último Festival de Veneza chega à competição internacional do Indielisboa: Sivas, de Kaan Mudjeci. Combate entre cães, o clube de combate dos homens. Entrevista ao realizador. (...)

Combate entre cães, o clube de combate dos homens
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 12 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Prémio Especial do Júri do último Festival de Veneza chega à competição internacional do Indielisboa: Sivas, de Kaan Mudjeci. Combate entre cães, o clube de combate dos homens. Entrevista ao realizador.
TEXTO: Sivas é a estreia na longa-metragem do turco Kaan Mudjeci, de 34 anos. E logo a trabalhar com duas “matérias” imprevisíveis, os animais e as crianças, deixando-se levar (ou criando a ilusão de que é o real que tudo coreografa) pelas estratégias de um jovem combatente, Aslan, na arena social. Branca de Neve e os Sete Anões está em fundo. Aslan, o miúdo, não conseguiu o papel de príncipe que o faria exibir-se à rapariga da escola. Para compensar a frustração, reabilita um cão ferido e vai à luta. Sivas é nome do cão e nome da aldeia. Aslan toma-o como arma para impressionar (é uma daquelas criaturas obsessivas do cinema, notamos-lhe uma semelhança com o miúdo de Onde Fica a Casa do Meu Amigo, de 1987, angustiante retrato da infância por Abbas Kiarostami. )Em 2011 Kaan Mudjeci tinha feito um documentário sobre a relação entre cães e os seus donos, Fathers and Sons. Ainda havia alguém que reproduzia uma narrativa benigna entre homem e animal: algo de “inexplicável”, alguém tentava explicar. Esse material serviu de pesquisa para Sivas, a ficção em que o realizador retira da narrativa qualquer idealização: a horizontalidade da paisagem da Anatólia (onde Mudjeci, que estudaria Cinema em Berlim e Nova Iorque, nasceu) é arena de combate. É uma história de homens, é uma história de violência, é a herança que passa de pais para filhos. Sivas recebeu o Prémio Especial do Júri em Veneza 2014 e chega quarta-feira à competição internacional do IndieLisboa (19h Culturgest; repete-se dia 1, sexta, 22h, Cinema Ideal)Não só violou uma espécie de regra do espectáculo – “nunca trabalhes com crianças ou animais” – como foi determinado na violação: trabalhou com os dois ao mesmo tempo, com crianças e com cães. Como é que a máquina de cinema lida com criaturas imprevisíveis, como foi essa experiência?É verdade! Foi logo o que me disseram quando comecei a trabalhar no projecto e foi difícil convencer as pessoas que podia transformar a minha ideia num filme com cães e crianças. Foi uma experiência muito especial, ao mesmo tempo desafiadora e exigente. Temos de prestar atenção, temos de nos interessar, é preciso tempo. Passei a maior parte do tempo a fazer o casting para ambos [cão e criança]. O cinema deveria sempre confrontar-se com o imprevisível. Ou seja, aceitei este desafio com prazer. Como encontrou o actor? E como encontrou o cão? Suponho que tenha sido como procurar o “casal” perfeito. Em algumas sequências – quando o cão está ferido, quando Aslan começa a pôr em prática a sua estratégia – Sivas parece documentar em tempo real um encontro, uma primeira vez juntos. Fiz o casting deles ao mesmo tempo e investi muito nisso. Vi miúdos de diferentes cidades, locais. Dogan [o intérprete de Aslan] vem dessa aldeia, estava familiarizado com a paisagem, com o clima. Escolhi-o para o papel principal no fim do processo, depois de o ver interagir com outras crianças. E, sim, quis criar uma espécie de percurso paralelo entre os dois. Tinha feito um documentário sobre os cães de combate e os seus donos, para o qual tinha feito pesquisa na zona. . . Fathers and Sons (2011). . . Porquê o interesse por esse milieu dos cães de combate e dos seus donos?Representa, para mim, as relações de poder da masculinidade. Os “actores” dessa relação de propriedade podem mudar, ou os lugares, mas as relações de poder da masculinidade mantêm-se e com o mesmo nível de crueldade. O título desse documentário, Fathers and Sons, pode ser lido como descrição das relações entre um homem e o seu cão: o lado afectivo, idealizado, que alguém no final, aliás, diz ser impossível de explicar. Mas Sivas explica, e “pais e filhos” adquire um sentido menos metafórico: é a iniciação à violência, o que passa de. . . pais para filhos. Foi essa a razão para filmar a ficção?A ideia da ficção já existia antes do documentário. Tentei perceber se esse tal laço emocional era possível de explicar. O mundo da ficção dá-nos liberdade para retratar a iniciação à violência. Como é que a paisagem nos diz quem somos? Sente-se que o seu filme – como um outro retrato de uma criança voraz, o P’tit Quinquin de Bruno Dumont – quer dizer-nos algo sobre essa relação. Filma-a como uma arena – lugar onde se luta. Nasceu naquela região da Anatólia; o que pode dizer sobre aquela paisagem?A nossa existência está sempre relacionada com um espaço, que nos define e molda. Aquela paisagem sempre me fascinou, espraiando-se horizontalmente e os humanos ou animais afirmando-se verticalmente. É uma história que se podia passar em qualquer lugar, mas esta paisagem árida, que me é familiar, deu-me a atmosfera e os sentimentos de que eu precisava. Ou então encontrei ali os sentimentos que procurava. Num Verão organizou em Berlim sessões de cinema ao ar livre, para imigrantes turcos na Alemanha, que assim podiam ver filmes turcos. O título desse evento, Çekirdek, vinha do hábito tradicional de comer sementes enquanto se vê um filme. Como equilibra a nostalgia, o calor e afecto pelos rituais e um ponto de vista crítico sobre alguns desses rituais?Nesse Verão, os voos para a Turquia estavam tão caros! Mostrámos velhos filmes turcos, , servindo sementes de girassol e chá, coisas de que essas pessoas iam sentir saudades nesse Verão. Era um cinema ao ar livre ilegal. Tentámos compensar a perda com uma atmosfera nostálgica, na verdade. A nostalgia é um sentimento com um certo conteúdo de melancolia. Há uma bela palavra portuguesa para isso: “saudade”. O meu sentido crítico mantém-me alerta e a nostalgia é um intervalo. Não houve um equilíbrio fácil aqui. Pergunto-lhe isto porque, quando disse, numa entrevista, que preferia um mundo dominado por mulheres, estava a referir-se como contraponto ao que se passa em Sivas: os homens e os seus códigos. Os intérpretes pertencem a esse mundo. Imagino que o que eles interpretam é o que eles são. Como é que esse ponto de vista crítico interfere na sua relação de confiança com eles?O mundo de Sivas não pertence só àquele mundo. É um pequeno retrato do todo. Esse mundo teria mais justiça e o poder seria regulado de maneira diferente se as mulheres dominassem. Sivas mostra o outro lado da moeda, um mundo dominado pela crueldade masculina. É esse o poder de uma ficção, a liberdade de que falava antes. Há uma história e actores para interpretarem os papéis. Estou feliz por ter criado uma relação de confiança com eles. Os que participaram estavam felizes. De alguma maneira invadimos as suas vidas a partir do momento em que tivemos a ideia, mas senti-me bem-vindo. Estava a fazer um filme, não uma pesquisa sociológica ou etnográfica. Também não quis mostrar “a vida na aldeia”. Esta aldeia, como a paisagem, foi o local certo para esta história que foi escrita. O seu protagonista é parecido com o miúdo de Onde Fica a Casa do Meu Amigo, de Abbas Kiarostami (1987), também uma pequena figura à conquista de território. Viu esse filme? A ferocidade desses retratos de infância foram inspiração?Kiarostami é uma grande inspiração para o cinema pela forma como descreve mundos e cria poesia com imagens. Vi Onde Fica a Casa do Meu Amigo. Mas a inspiração para este retrato de infância foi a minha experiência pessoal. É que, tal como no filme de Kiarostami, o espectador pode esquecer-se de que a personagem é uma criança. É um guerreiro, um sobrevivente – tenderemos a esquecer que é um miúdo. A sequência em que a mãe lhe dá banho serve para nos alertar: o contraste com a violência em que ele está imerso. Alguns sentimentos aparecem depois das imagens, mesmo depois da montagem. Aparecem no momento em que se consomem, em que se cria um novo sentido. Estou feliz por o meu filme ser lido assim. O cão é a última imagem do filme. Há um inescapável sentimento de abandono: afinal, é apenas instrumento para rituais de integração social. Aquela coisa idealizada do “homem e o seu cão” é estilhaçada: Aslan precisa do cão para conquistar um lugar na comunidade e a comunidade espera isso dele. Continuo a elogiar a sua leitura do filme. Quando Sivas foi mostrado em Veneza, houve reacções agressivas por causa das cenas de luta entre os cães. Quando se vê Fathers and Sons, documentário, não passará despercebido que corta sempre antes da violência e do sangue. Mostra-os em Sivas porque, imagino, foram “simulados” – bem, pode-se “dirigir” cães até certo ponto. . . – com sangue falso e tudo. Como filmou?A técnica ajudou-me neste caso. Usámos sangue falso e pusemos um creme na boca dos cães para que eles não se mordessem ou abocanhassem. Demorámos o triplo do tempo necessário, os cães tinham que descansar. Havia veterinários a tomar conta deles. E houve uma série de truques de câmara: por exemplo, duas câmaras em diferentes perspectivas ajudaram-nos a dar a sensação de uma sequência contínua.
REFERÊNCIAS:
Reportagem: xenofobia e racismo crescem entre os jovens russos
Moscovo é uma cidade de parques e avenidas arborizadas, e os seus habitantes gostam de passear ao ar livre. Mesmo no Inverno, os enormes parques cobertos de neve nunca estão vazios. Jovens sentam-se em bancos de jardim, passeiam em grupos ou patinam no gelo. Quando surge uma nesga de sol, verdadeiras multidões surgem de todo o lado, para uns momentos de festa. "São períodos raros, a que Pushkin chamou "horas de ouro"", diz Ekaterina, citando o poeta nacional russo. "São as horas mais belas neste país, fazem-nos sentir orgulho de ter nascido aqui." (...)

Reportagem: xenofobia e racismo crescem entre os jovens russos
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 9 | Sentimento 0.1
DATA: 2012-03-03 | Jornal Público
SUMÁRIO: Moscovo é uma cidade de parques e avenidas arborizadas, e os seus habitantes gostam de passear ao ar livre. Mesmo no Inverno, os enormes parques cobertos de neve nunca estão vazios. Jovens sentam-se em bancos de jardim, passeiam em grupos ou patinam no gelo. Quando surge uma nesga de sol, verdadeiras multidões surgem de todo o lado, para uns momentos de festa. "São períodos raros, a que Pushkin chamou "horas de ouro"", diz Ekaterina, citando o poeta nacional russo. "São as horas mais belas neste país, fazem-nos sentir orgulho de ter nascido aqui."
TEXTO: Ekaterina tem 23 anos, está a terminar um mestrado em Relações Internacionais. Pensa que não terá dificuldades em encontrar emprego quando concluir os estudos, acredita no desenvolvimento e prosperidade da Rússia, mas acha que um dos principais problemas do país são os imigrantes. "Conheço uma família que alugou um quarto da casa a um imigrante do Cazaquistão. Passado um mês, sem que pudessem fazer nada, já não era só aquela pessoa, mas uns 20 familiares dela que viviam no quarto. E a polícia não pode agir, porque diz que eles têm direito de fazerem o que querem. "Ekaterina apoia Vladimir Putin, porque o considera o único candidato presidencial capaz de unir a Rússia, mas o seu político preferido é Vladimir Jirinovski, líder do nacionalista Partido Liberal Democrático. "É o único político carismático, que sabe o que diz e cativa as pessoas quando fala. Principalmente os jovens. Faz-nos sentir amor pela Rússia, e coloca correctamente o problema da imigração, que deveria ser controlada. "Sergei, 30 anos, programador informático, também vê na imigração um dos problemas do país, e por isso não apoia Putin. Tem até participado nas manifestações contra ele. "Putin representa a corrupção e a traição à pátria", diz. "Está a vender o país aos interesses estrangeiros. Submete-se aos Estados Unidos, não protege a Rússia e os russos das outras potências, das outras raças, das outras religiões. "Sergei considera que a cidade de Moscovo está a ser perigosamente invadida por estrangeiros. "Dantes podíamos passear à vontade num parque, mulheres e crianças saíam sozinhas, sem medo. Hoje, há zonas da cidade onde os verdadeiros russos estão em perigo. São guetos de outras raças, onde os russos nem podem entrar. Não considero isso correcto. A Rússia deve ser para os russos. "Esse é um dos slogans gritado nas várias manifestações nacionalistas que têm sido organizadas nos últimos anos. Principalmente na de 4 de Novembro do ano passado, onde estiveram pelo menos 7 mil pessoas, incluindo Sergei. Segundo várias sondagens credíveis, entre 50% e 60% dos russos concordam com essa palavra de ordem - "A Rússia para os russos". Mas na manifestação foi também gritado "Rússia livre! Poder russo!", "Imigrantes hoje, ocupantes amanhã!", "Morte aos judeus!" e "Desporto! Saúde! Nacionalismo!""Não tenho nada contra os imigrantes, desde que eles cumpram as regras da Rússia, falem a língua, se adaptem à nossa cultura", diz a moderada Ekaterina. Já o mais radical Sergei está convencido de que toda a criminalidade da Rússia é cometida por imigrantes. "Crimes violentos, violações, coisas desumanas", precisa. O "bronzeado" dos negros"Há raças menos desenvolvidas. Toda a gente sabe isso. As pessoas no Tajiquistão têm uma cultura menos avançada do que a nossa. Os negros são inferiores. Por que é que nos EUA, apesar de todas as leis de igualdade, eles são mais pobres e constituem a maioria da população das prisões?"Em Moscovo, alguns spas que querem promover os seus solários colocaram à porta um rapaz negro (geralmente recrutados entre os estudantes africanos que precisam de um emprego em part-time) com um letreiro ao peito dizendo: "Adquiri aqui o meu bronzeado. "Nos trabalhos menos qualificados, como a recolha do lixo, é comum ver pessoas de etnia mongol, ou do Cáucaso, serem maltratados pelos seus superiores. Todos os anos, imigrantes dessas etnias, principalmente das repúblicas ex-soviéticas da Ásia Central, são assassinados às centenas em Moscovo e São Petersburgo. Em muitos jovens russos, o discurso contra os imigrantes está ligado ao da grandeza da Rússia. Com várias nuances e graus de radicalismo, é uma espécie de ideologia que, segundo vários analistas, domina o país.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Telma Tvon trouxe a voz da juventude negra portuguesa para o romance
Amante de literatura, não encontrava obra que reflectisse a sua realidade. E assim nasceu Um Preto Muito Português, retratos da juventude negra dos subúrbios de Lisboa e de quem passa a vida a ser questionado: “De onde és?” (...)

Telma Tvon trouxe a voz da juventude negra portuguesa para o romance
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento -0.16
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Amante de literatura, não encontrava obra que reflectisse a sua realidade. E assim nasceu Um Preto Muito Português, retratos da juventude negra dos subúrbios de Lisboa e de quem passa a vida a ser questionado: “De onde és?”
TEXTO: Quando criou o protagonista do seu romance, Telma Escórcio da Silva seguiu opções menos óbvias: escolheu um homem, e ela é mulher; colocou-o como descendente de cabo-verdianos, e ela nasceu em Angola. “Achei que, se fosse uma mulher, muita gente ia achar que estou a falar da minha história”, conta. Rapper, Telma Tvon — como assina — escreveu Um Preto Muito Português depois de numa noite ter começado a rabiscar uma canção até se dar conta de que não conseguia parar. A música tinha o nome que dá título ao livro e sintetiza muito sobre as pessoas em quem se inspirou. É a história dela, mas também não é. Telma é alguém que “no papel” se sente “uma ‘preta portuguesa’, mas, na vivência, uma imigrante”, conta-nos nesta conversa no ISCTE-UL, onde fez mestrado em Serviço Social depois da licenciatura em Estudos Africanos na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e onde esteve quase a terminar o doutoramento em Sociologia. Romance dividido em capítulos, como “Quem sou eu?”, “Não sabes nada sobre nada”, “Xê Budjurra não fala política”, tem aventuras de amor e desamor, brigas, saídas à noite com amigos, gravidezes na adolescência, histórias com a polícia e tanta coisa que se passa nas vidas de jovens adultos, rapazes e raparigas. Centra-se no quotidiano da juventude negra que vive nos subúrbios de Lisboa, na Margem Sul ou na linha de Sintra, e é talvez o primeiro retrato desta realidade em romance, escrito por uma portuguesa negra, com ironia e humor. Esse Cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida, por exemplo, não fala do mesmo universo de pessoas, nem faz um zoom tão explícito às questões do racismo que atravessam o quotidiano de uma pessoa negra em Portugal como Telma Tvon o faz aqui. Aliás, o título é bem um reflexo do estilo que a autora assume na escrita: vai directo ao assunto para jogar com os clichés e os preconceitos. Telma Tvon recorreu a uma palavra com uma forte carga negativa — “preto” —, porque “a ideia era mesmo chocar”, explica. “A palavra ‘preto’ vem para ofender. Então decidi usar e dar a volta: é um preto muito português, com todo o orgulho inerente a isso. Quem escreve nas paredes não escreve ‘Negro vai para a tua terra’, escreve ‘Preto vai para a tua terra’. ”O título confronta também a idealização de um país homogeneamente composto por brancos, o preconceito que parte do princípio de que um negro não pode ser português. Por isso o romance arranca com a personagem principal a dizer: “Perguntam-se várias vezes donde sou. Sou filho de cabo-verdianos que há muito residem em Portugal. Sou neto de cabo-verdianos que nunca conheceram Portugal. ” E vai por aí a fora: “Eu até me licenciei, eu até falo português convenientemente. Ninguém sabe como lidar comigo, não sabe se sou preto o suficiente ou se ando a tentar passar por branco inconscientemente. ”Telma Tvon cresceu em Angola até aos 14 anos, ia lá todas as férias, passou por uma guerra civil, e isso “é completamente diferente de alguém que nasceu aqui” e acaba por ser empurrado para se identificar com um país africano ao qual nunca foi, explica. No livro caricatura a tendência para se perguntar a um negro em Portugal sobre a sua “origem”, criando uma barreira que diz: “Não te estou a aceitar como meu comparras, tens uma cor diferente. ”Quem se confronta com estas questões tem de estar “sempre a explicar que é um preto português”, comenta. “Eu tenho mais anos de vida aqui do que em Angola. E, no entanto, essa questão vem sempre. Faz-me confusão quando os meus amigos respondem. Digo logo: ‘Não tens nada que dizer que os teus pais são cabo-verdianos ou são guineenses. Acabou: és tuga!’” Quem lhes pergunta que saia dali com esse TPC: se a pessoa não quis responder, tem de pensar sobre isso. ”Telma absorveu expressões, aprendeu crioulo, grande parte dos amigos identificam-se como cabo-verdianos. Foi, por isso, natural criar uma personagem que fosse cabo-verdiana e dar-lhe o nome de Budjurra. Há quem lhe pergunte: “Ah, escreveste isto a pensar em mim?” Porque ela vai buscando influências “daqui e dali”, dos amigos. “Budjurra é alcunha para cabo-verdiano, como o santomense é ‘santola’, o angolano é ‘mangope’, o moçambicano é ‘moçambas’ e o guineeses é ‘guitarra’. Achei simbólico esse preto muito português ter essa alcunha, porque é um filho de cabo-verdianos que nunca esteve em Cabo Verde. ”Estas são histórias de aventuras e também funcionam como diário da vida personagem, das suas angústias e do modo como observa a discriminação acontecer à sua volta. A linguagem é coloquial. Telma usa muito calão e esta é uma escrita que fala. É ficção, mas documenta, com episódios e personagens, o que acontece a centenas de jovens que tiram um curso superior e acabam num call center; são os únicos negros da turma e são objecto dos olhares de desconfiança quando desaparece alguma coisa; são interpelados pela polícia e levados para a esquadra quando deviam ir para o hospital; têm encontros com skinheads que acabam em ameaças físicas. Muita da acção de Um Preto Muito Português passa-se nas periferias da Área Metropolitana de Lisboa. Telma Tvon queria centrar-se nas pessoas que facilmente “se tornam invisíveis”. “Se não é alguém fashion, um cantor da moda, um desportista, parece que aquelas pessoas não têm representação. Porque é que, por exemplo, quase ninguém fala das senhoras da limpeza? Quando fui estudar Sociologia, falava-se numa perspectiva meramente de dados, eram 15 pessoas enfiadas numa estatística. Onde está a senhora Isabel que tem cinco filhos e sai de casa às 4h?”Como não encontrava as histórias das senhoras Isabel e dos Budjurras, quis colmatar essa lacuna. E inevitavemente trouxe as questões da discriminação. “Resolvi escrever sobre estes temas porque sentia que havia grande carência. Adoro ler, procurava imensa literatura onde não revia a vida das pessoas. Eu via estatísticas, lia contos, fábulas e nenhum sobre o qual pensasse: isto é a vida daquela senhora do Bairro 6 de Maio, daquele rapaz de Monte Abraão, daquela miúda que conheci na Arrentela. Eu própria, sendo afectada por questões raciais, por mais que quisesse falar de outras pessoas tinha de falar sobre isso. Tentei dar a volta, não falar de mim, mas ao mesmo tempo estou a falar de mim. Isto é uma questão de calçar os sapatos dos outros. Se o Joaquim em Belas está a passar por estas situações, eu, Telma, mulher negra, identifico-me com isso. ” Acrescenta: “E não é preciso a pessoa ser negra para sentir a dor do outro. ”Assistente social neste momento, Tvon já teve dezenas de empregos, como em assistência de back office, que acumulava com os estudos. Foi das poucas mulheres no rap em Portugal, onde começou pelos 16 anos. Juntava-se com as amigas em casa umas das outras, ia a concertos de “grandes referências” — aliás, a personagem Budjarra fala em nomes como Chullage, a quem presta homenagem. Fez parte das Backwords, com Lady, LG, Zau, das Hardcore Click e por fim, com Geny, das Lweji. Eram mulheres num meio predominantemente masculino onde ouviam coisas como: “Para mulheres até cantam bem. ” Foi uma época sobre a qual diz: “Não troco por nada. Havia grande comunhão, saíamos da linha de Sintra para ir para a Moita, para o Barreiro ver o concerto dos grupos de lá, e puxarmos uns pelos outros. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Nunca parou de escrever, mas parou de gravar. Olhando para trás, sente que durante anos andou “meio adormecida” por pensar que não tinha legitimidade para falar de certas coisas. “Deixava tudo um bocado por cima, por insegurança. Quando comecei a fazer voluntariado, percebi que posso fazer coisas mais práticas. E nessa altura ganhei consciência de que temos de fazer aquilo que os nossos familiares não conseguiram fazer. Não podemos dizer que nos deram a oportunidade de vir para aqui e por isso não devemos fazer barulho. Já não é assim: as pessoas têm direitos, trabalham que se fartam. ”Leitora de Chimamanda Ngozi Adichie, Paulina Chiziane, Pepetela, Mia Couto, José Luís Peixoto, Ondjaki, Kalaf, entre outros, ao primeiro livro Tvon não se vê como escritora, mas como contadora de histórias. “Talvez quando tiver três ou quatro livros!”, ri. Tem estado a trabalhar no próximo romance. Mas esperemos que seja publicado por outra editora, porque é inaceitável que a Chiado Editora tenha posto a circular Um Preto Muito Português sem fazer a revisão de texto que merece — é um desrespeito pela autora e pelos leitores.
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
Retrato da desigualdade racial em Portugal
Associações elaboraram retrato das desigualdades raciais em Portugal com dados que vão da educação à habitação. (...)

Retrato da desigualdade racial em Portugal
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20190710235039/https://www.publico.pt/1753490
SUMÁRIO: Associações elaboraram retrato das desigualdades raciais em Portugal com dados que vão da educação à habitação.
TEXTO: Dividida em várias áreas – educação, justiça, violência policial, condições de vida, trabalho, habitação e saúde, nacionalidade, cidadania e mulheres negras – a carta das associações enviada à ONU faz um retrato das desigualdades raciais em números para mostrar porque se devem ter políticas específicas para comunidades afro-descendentes. Apesar de em Portugal não ser permitida a desagregação de dados por origem racial ou étnica, como acontece nos Estados Unidos da América e no Reino Unido, é possível chegar a algumas conclusões através da nacionalidade de origem. O que os números que mostram são, então, "apenas tendências das desigualdades e estão longe de fazer a fotografia completa e garantir o acompanhamento ao longo do tempo dos progressos ou retrocessos das desigualdades", explica a socióloga Cristina Roldão, co-autora do estudo os Afrodescendentes no sistema educativo, que tem amplamente trabalhado este tipo de dados e também subscreve a carta. "Cada vez mais temos jovens negros que nascem em Portugal e cujos pais são portugueses e portanto não temos informação nenhuma sobre esta população. " Por isso, um das reivindicações das associações agora unidas na plataforma Afrodescendentes Portugal é a “consagração da recolha de dados com base na pertença étnico-racial, recomendada em 2011 pela ONU” . Os alunos com nacionalidade dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) reprovam 3 vezes mais no 1º ciclo e sofrem o dobro das taxas de reprovação no 2º e 3º ciclos e ensino secundário. As taxas de encaminhamento de alunos dos PALOP para o ensino profissional no secundário atingem quase os 80%, o dobro da dos portugueses; os afrodescendentes de origem cabo-verdiana, guineense e santomense acedem cinco vezes menos ao ensino superior. “Há uma quase total ausência de afrodescendentes negros nos lugares de produção e reprodução de conhecimento, como professores e cientistas”, escrevem. Os dados são de 2013/2014, e do Censos de 2011. A taxa de encarceramento de pessoas com nacionalidade dos PALOP é 15 vezes superiores à dos portugueses (1, 5% versus 0, 1%, dados de 2011 da Direcção Geral de Reinserção Social). Há ainda “permanentes agressões, por parte de agentes de segurança, a cidadãos desarmados dos bairros periféricos com forte presença de afrodescendentes negros”, dizem na carta enviada à ONU. Exemplos: "actos de tortura e de ódio racial", como, apontam na carta, os praticados por agentes policiais na esquadra de Alfragide, contra habitantes do Bairro do Alto da Cova da Moura, em 2015. Desde 1995, com o assassinato Alcino Monteiro, morreram às mãos da polícia dezenas de jovens negros, escrevem, dando exemplos das mortes de Elson Sanches (KUKU), Carlos Reis (PTB), Diogo Borges (Musso), José Carlos (Teti), Ângelo Semedo (Angoi), Manuel Pereira (Tony) e Nuno Rodrigues (Snake). As pessoas com nacionalidade dos PALOP estão, em termos relativos, três vezes mais em profissões menos qualificadas (ISCO – Elementary Occupations, 2011), e para esse mesmo tipo de profissões, recebem, em média, menos 103 euros mensais (dados 2009, Quadros de Pessoal do Ministério do Emprego e Segurança Social). Têm o dobro da taxa de desemprego (29, 8 versus 12, 9%, INE, 2011). Na habitação, estão sete vezes mais em alojamentos “rudimentares” (INE, 2011), e muitos afro-descendentes negros vivem em territórios segregados, designadamente em bairros de realojamento social na periferia dos centros urbanos, escrevem. A idade média de óbito dos nascidos nos PALOP é de 74 anos, enquanto para os nascidos em Portugal situa-se nos 78 (INE, 2000-2007) . Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A lei exclui o acesso imediato à nacionalidade portuguesa àqueles que, nascidos em solo português, são filhos de imigrantes. Existem muitos afrodescendentes negros que tendo nascido em Portugal são considerados estrangeiros, não têm acesso a todos os direitos e benefícios de um cidadão português. "A concessão da nacionalidade a todos, independentemente da origem dos pais e do seu estatuto legal, é uma questão de direitos, mas também de reconhecimento da diversidade de identidades e culturas que compõem a sociedade portuguesa", defendem. O grupo sublinha que "a mulher afro-descendente negra continua a estar sub-representada nas posições de poder nos espaços políticos, financeiros, sociais e culturais e, sobre-representada nos serviços (na limpeza, hotelaria e restauração) pouco qualificados, mal remunerados e com vínculos e condições de trabalho precários".
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU PALOP