Coltrane sem fim
Both Directions at Once é um acontecimento. Documentando uma sessão de estúdio de John Coltrane e o seu quarteto clássico em 1963, traz a lume música nova de um dos maiores músicos da história do jazz — e mais além. “Álbum perdido”, convida à redescoberta e discussão de uma obra fundamental. (...)

Coltrane sem fim
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento -0.12
DATA: 2018-07-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: Both Directions at Once é um acontecimento. Documentando uma sessão de estúdio de John Coltrane e o seu quarteto clássico em 1963, traz a lume música nova de um dos maiores músicos da história do jazz — e mais além. “Álbum perdido”, convida à redescoberta e discussão de uma obra fundamental.
TEXTO: Uma semana após a entrada de Kamasi Washington para o top 20 norte-americano, um “novo álbum” de John Coltrane havia de seguir-lhe as pisadas, lançando nalguns meios um debate mascarado de euforia em torno de uma possível ascensão do jazz às grandes preferências populares. Como se o jazz que alimentou tantos dos samples dos discos históricos do hip-hop recebesse agora, passados 40 anos, o pagamento desse contributo para uma cultura musical que galgou a condição de marginal para se instalar no centro da cultura popular. Kamasi, filho distante de Coltrane, navegando como o saxofone por entre r&b e hip-hop, abrindo o caminho para uma correcção histórica. Both Directions at Once, um daqueles álbuns perdidos com que a indústria gosta de agitar o mercado e engrossar a mitologia da música, resulta de uma sessão de gravação em 1963 durante a qual Coltrane capitaneou o seu quarteto clássico – em que se incluíam McCoy Tyner, Elvin Jones e Jimmy Garrison – no estúdio de Rudy Van Gelder. Na véspera de voltarem ao local do crime para registarem o disco de parceria com o cantor Johnny Hartman e com o final da sessão ditado pela actuação nessa mesma noite no Birdland, esta que é uma das formações mais relevantes e revolucionárias da história do jazz passou para fita sete temas que poderiam muito bem ter conhecido a luz enquanto álbum oficial da discografia de Coltrane. Só agora, no entanto, passados 55 anos sobre essa data, a Impulse! edita essa sessão que ficara a pairar no tempo. Com um perfil muito menos bombástico e excêntrico do que Miles Davis e sem a aura trágica de Chet Baker, Coltrane nunca atraiu estúdios de cinema nem serviu de íman a histórias escabrosas que pudessem mitificá-lo para lá da música. Em vez disso, crucial que foi na experimentação que o levou a saltar de intérprete de melodias como My favorite things para o escavador espiritual de álbuns como A Love Supreme ou Ascension, Coltrane foi sempre um músicos dos músicos. Para Stuart Broomer, crítico canadiano e autor do livro Time and Anthony Braxton e co-autor de Partidas/Chegadas: Novos Horizontes no Jazz, os pouco habituais números de vendas de Both Directions at Once “sublinham a necessidade de figuras criativas icónicas no jazz numa altura em que o ‘negócio’ se foca num easy listening ‘sofisticado’, enquanto as energias criativas da música improvisada – em parte o legado de John Coltrane – se encontra fora do mercado”. E Broomer realça as gravações com Hartman e Duke Ellington (1962) como exemplo do músico mais mainstream que a Impulse! queria editar, enquanto Both Directions “reflecte um Coltrane que a própria editora estaria pouco interessada em tentar vender”. O difícil nestes casos pode ser escutar com os ouvidos impolutos, alheados de todo o circo montado à volta de lançamentos desta dimensão – e cujo sucesso de vendas, acredita-se, terá até surpreendido a própria Impulse! Shabaka Hutchings, saxofonista essencial numa nova cena do jazz inglês e ligado aos projectos Sons of Kemet ou The Comet Is Coming, diz ao Ípsilon que, apesar de sentir num primeiro contacto que este será “um grande álbum de Coltrane”, quer deixar o disco para audições futuras. “É o tipo de disco em que não quero entrar no hype e dizer que muda vidas só porque toda a gente o está a dizer – mesmo que me pareça que tem muito para oferecer. ”Se Hutchings afina pela opinião daqueles que identificam em Both Directions at Once a pista de uma fase de transição, em que Coltrane levanta o véu sobre as evasões espirituais e quase libertárias que se seguirão, o saxofonista português Ricardo Toscano, assumido devedor do percuso de Coltrane, defende um corte com essa corrente. “Não sinto que seja tão revelador quanto muita malta diz”, contrapõe. “Claro que soa muito bem, mas acho que eles estão mesmo a experimentar ideias, não me parece que haja uma ideia de produto final. ”Rui Eduardo Paes (REP), crítico e editor da revista online Jazz. pt, reforça essa desconfiança ao defender que este é “um grande disco, mesmo sabendo que, muito provavelmente, estas gravações não se destinavam a ser reunidas num mesmo álbum”. As suas suspeitas têm por fundamento as várias sessões diferentes a que Coltrane recorria neste período para compor alguns dos seus álbuns, o que “torna mais compreensível o facto de o próprio John Coltrane, o seu produtor Rudy Van Gelder e a editora se terem esquecido das mesmas”. Encaixado nesta semana em que se encontra entre o disco com Hartman e o desenvolvimento do som expansionista do quarteto no palco do Birldand, o título Both Directions at Once, analisa REP, parece colocar esta música num limbo entre passado e futuro, “uma espécie de transição entre fases”, mesmo que a expressão seja, afinal, uma citação de Coltrane sobre como a improvisação se assemelha a saltar para um comboio em andamento, com a noção de que há um antes e um depois. Para Broomer, alias, não são duas direcções em simultâneo que estão presente no quarteto, mas muitas outras, em resultado de “a partir do final dos anos 50 o jazz se encontrar num período de desenvolvimento criativo dos seus recursos e do significado social, virando-se para diferentes formas de blues, gospel, protesto social e experimentação”. No entanto, o álbum vai buscar o nome à imagem clarividente do papel da improvisação, uma qualidade de Coltrane que o saxofonista Rodrigo Amado destaca na sua ligação à música do saxofonista: o “arco narrativo” esboçado em cada solo. Incapaz de “imaginar um som de tenor mais perfeito do que este”, Amado destaca no músico um rigor e uma consistência raros que fazem com que possa soar menos visceral do que, por exemplo, Pharoah Sanders – e comparando os registos de ambos em Ascension – mas em que a força da sua improvisação é construída a partir dessa estrutura narrativa a que se agarra e desbasta sem perder o fio à meada. Ainda assim, acredita Shabaka Hutchings, este é um disco nascido de um momento de “encruzilhada”. “Há uma noção forte de onde estes músicos vêm e este é mesmo o período em que Coltrane começa a olhar para o futuro. ” Ou seja, um dos méritos de Both Directions at Once será o de uma fotografia: congelar um momento de ebulição, de uma procura que, nos anos imediatamente seguintes, há-de germinar em colossos musicais como Crescent e A Love Supreme. Amado defende a documentação em disco estes processos. E dá como exemplo as gravações completas da última digressão do primeiro quinteto de Miles Davis, de que Coltrane fez parte. Se há quem advogue que a crescente incompatibilidade entre os dois se tornou de tal forma gritante que a música se tornou bicéfala, perdendo o seu centro, Rodrigo confessa-se fascinado por “sentir dois dos maiores gigantes do jazz em palco e perceber aquela força incontrolável que o Coltrane tinha para experimentar e ir à procura de coisas novas, porque já não lhe chegava a mestria que tinha atingido com aquele quinteto”. Daí que se perceba, garante, o quanto naqueles concertos Coltrane faz por irritar Miles Davis, ao criar constante pontos de tensão. Não haverá em Both Directions at Once um carácter revolucionário. A sua força maior será o facto de proporcionar um reencontro com a música expansionista de John Coltrane através de gravações cuja existência era desconhecida. Tanto Ingrid Laubrock como Ricardo Toscano dizem que, após um par de escutas, encontram nesta edição uma revelação mais contida do que em outros casos recentes. “Claro que é entusiasmante ouvir uma nova gravação do Coltrane vir a público, mas não me arrasou como quando desenterraram One Down, One Up [2005] pela primeira vez”, diz a saxofonista, por estes dias em digressão ibérica do álbum de Sara Serpa Close Up. Entre ouvir e não ouvir Both Directions, Toscano prefere claramente a primeira opção, mas não lhe encontra o mesmo efeito “revelador” de Offerings – Live at Temple University, gravação de Novembro de 1966 (Coltrane morreu em Julho de 67), à frente de um quinteto que inclui Alice Coltrane, Pharoah Sanders, Rashied Ali e Sonny Johnson. Editado em 2014, Offerings documenta “aquele período final em que ele estava já muito doente, cheio de dores e em sofrimento, e a forma como o Coltrane está a tocar nesse momento é mesmo especial”, defende Toscano. Rodrigo Amado concorda que se no lugar de Both Directions at Once estivesse uma gravação do período final do músico a relevância em discussão seria seguramente diferente. Porque Coltrane dá um salto evolutivo inimaginável a partir de 1963, empurrando a sua música para limites cada vez mais pessoais e criadores de um novo padrão daquilo que o jazz podia comportar. Tyshawn Sorey, baterista, compositor e um dos mais vitais novos nomes do jazz norte-americano, recorda ao Ípsilon o quanto muita gente com quem se cruzou no liceu ficou “chocada com a fase final do Coltrane, por não terem conhecimento completo da história daquilo que ele fez e contribuiu para esta nova forma de pensar a música”. REP lembra-se do “murro no estômago” quando na sua infância, em Moçambique, o pai pôs a tocar Ascension. “Era música caótica, desmesurada, mas fazia um estranho sentido. Não sabíamos miuto bem o que pensar daquilo e fomos repetindo audições. ”Saltar de Blue Train para Ascension pode ser um passo em falso, desamparado. Mas é a consequência natural para alguém que “permitiu que os músicos pudessem superar-se e arrasar os seus próprios clichés”, diz Sorey. “Foi o Coltrane quem estableceu um modelo de encontrar uma nova forma em tudo e elevou a fasquia. Foi uma pessoa que transcendeu a forma como fazemos e escutamos música. Com o quarteto, foi o principal responsável por criar uma dinâmica a que todos devíamos aspirar e que passa por ouvir profundamente o que os outros estão a tocar. ”Essa herança aspiracional é também uma das marcas mais fortes da obra de Trane no entendimento de Rodrigo Amado. “Como é possível o mesmo músico ter chegado, em campos quase opostos – na fase inicial, com o Miles Davis e em discos como Blue Train ou My Favorite Things, e na fase tardia dentro de um jazz totalmente livre e de vanguarda, em Meditations ou Interstellar Space – a um nível máximo? É importante dar a ver a todos os músicos que hoje estudam be bop e hard bop ou que trabalham na improvisação livre que se pode atravessar para o outro lado e experimentar, nada é imutável. ”A riqueza de ensinamentos a retirar da obra e da postura de Coltrane é tão ampla que se torna evidente o lastro deixado na música que se lhe seguiu. DJ Johnny, fundador do colectivo Cooltrain Crew e cruzador de jazz e tantas outras linguagens nos seus DJ sets, afirma que mesmo quando não inclui temas de Trane nos seus alinhamento o seu espírito está sempre presente – e exemplifica com as suas escolhas do reportório de Kamasi Washington, destacando também a abertura do saxofonista à inclusão da música indiana na sua cartografia pessoal “levando o pensamento do jazz, que já incluía a música africana, para um outro patamar”. As técnicas de improvisação não-ocidental foram fundamentais para Tyshawn Sorey enquanto farol não apenas musical mas também para lhe despertar a curiosidade pelo budismo ou pelos contextos culturais na origem desses diferentes sistemas. O baterista gosta de escutar a discografia de Coltrane acompanhando a sua evolução e recorda-se do ritual que seguiu na primeira audição de Offerings, quando desligou todas as luzes na sala e se deixou ligar àquela “fonte de energia” ao longo de duas horas – algo semelhante à sacralização da escuta que DJ Johnny pretende levar a cabo com Both Directions at Once. O que Sorey descobriu nesse processo foi a “noção de que ele não está a tocar temas individuais, mas sim uma longa peça de música”. Shabaka Hutchings regressa com frequência a Coltrane por diferentes razões – “para escutar aquilo que tecnicamente se pode fazer com o saxofone, por motivos emocionais de perceber como alguém se pode superar e transcender o instrumento ou períodos em que quis observar a sua progressão ao longo de seis ou sete anos” –, enquanto Ingrid Laubrock admite ter obcecado com vários álbuns em diferentes períodos da sua vida, regressando invariavelmente a Crescent. “É um ábum com sentido de exploração e um profundo entendimento dos músicos daquilo que todos os outros estão a tocar. ” O mergulho imersivo que fez em Crescent e noutros álbuns, transcrevendo e memorizando solos de Coltrane, levaria a saxofonista a uma medida de emergência ao obrigar-se a escutar outros músicos para aplacar a sua dependência de Coltrane – alguém que, na verdade, “acaba por ter uma inspiração mais correcta como licença para explorarmos o que somos realmente ‘nós’ no meio de tudo o resto”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Poucas formações podem reclamar o mesmo alcance artístico do que o quarteto de John Coltrane. Tyshawn Sorey acredita que se o saxofonista não tivesse juntado estes quatro músicos “talvez nunca tivéssemos escutado música assim”. Rodrigo Amado assina por baixo e acrescenta que “a empatia que existia entre o Elvin Jones e o Jimmy Garrison forma uma secção rítmica inultrapassável” e chama a atenção para “o trabalho que McCoy Tyner fez no quarteto e que o coloca na história do jazz, algo que nem de perto atingiu com as suas próprias formações”. Talvez porque havia, sob a liderança de Coltrane, um incomparável patamar espiritual, talvez porque, como propõe Ricardo Toscano, “a sensação é que de estão sempre a tocar pela vida, como se o mundo fosse acabar no dia seguinte, como se estivessem a salvar o mundo – e, de certa forma, estavam”. O certo é que Both Directions at Once coloca de novo o nome e a música de John Coltrane no centro da discussão musical. Amado acredita que estamos ainda “em processo de descoberta e avaliação” da sua música. E talvez nunca deixemos de estar. Porque aquilo que Coltrane nos deixou – com mais ou menos acrescentos à sua discografia que ainda possam vir a existir – estará sempre na fronteira do insondável. Tão inspirador quanto inatingível. E isso não pode ter fim.
REFERÊNCIAS:
Sequenciado genoma do Homo sapiens mais antigo de sempre
ADN fóssil de homem da Idade da Pedra permitiu estimar melhor quando é que a nossa espécie se misturou com os neandertais. (...)

Sequenciado genoma do Homo sapiens mais antigo de sempre
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: ADN fóssil de homem da Idade da Pedra permitiu estimar melhor quando é que a nossa espécie se misturou com os neandertais.
TEXTO: O ADN contido no fémur do mais antigo fóssil de humano moderno até agora datado com certeza acaba de ser sequenciado por uma equipa internacional de cientistas. Os resultados foram publicados esta quarta-feira na revista Nature. A descoberta do fémur foi invulgar, relata na mesma edição da revista britânica o jornalista Ewen Callaway. Foi por mero acaso que, em 2008, Nikolai Peristov (co-autor do trabalho) – um artista russo que fazia jóias talhadas em marfim de mamute – o encontrou espetado no solo das margens do rio Irtiche, perto da localidade de Ust’-Ishim, na Sibéria Ocidental. Peristov mostrou-o a um cientista forense da polícia, que o identificou como sendo provavelmente humano. O fémur acabou por ir parar ao laboratório de Svante Pääbo, no Instituto Max Planck de Leipzig (Alemanha), cuja equipa já é conhecida pela sequenciação de ADN muito antigos, como o dos neandertais. E quando os cientistas efectuaram a sua datação directa por radiocarbono, descobriram que tinha cerca de 45. 000 anos. Ou seja, o osso provinha de um indivíduo que vivera mais ou menos na altura da grande expansão dos humanos modernos por toda Eurásia. E tornava-se assim o mais antigo fóssil da nossa espécie a ter sido directamente datado. A seguir, os cientistas conseguiram sequenciar a totalidade do ADN do contido no fóssil com a mesma precisão do que se do genoma de uma pessoa actual se tratasse. E quando compararam esse genoma antigo (que revelou ser do sexo masculino) com os de cerca de 50 populações humanas actuais, descobriram que esse homem era geneticamente mais próximo das populações não africanas de hoje do que dos africanos actuais. Isso mostra, explica em comunicado o Instituto Max Planck, “que se trata de um dos primeiros representantes dos humanos modernos que saíram de África”. Por outro lado, a comparação do genoma do homem de Ust’-Ishim com o de ADN fósseis de populações que viveram durante a Idade da Pedra na Eurásia Ocidental e Oriental mostrou que ele era um “parente” igualmente próximo dessas populações. Isto significa, segundo os cientistas, que o homem de Ust’-Ishim terá vivido um pouco antes (ou na mesma altura) de os antepassados das populações actuais da Europa e da Ásia Central (que vieram de África via o Médio Oriente) enveredarem por caminhos separados, à conquista do mundo. É possível “que o homem de Ust’-Ishim tenha pertencido a uma população dos primeiros homens modernos a migrar para a Europa e a Ásia Central, mas que não deixou descendentes nas populações actuais”, diz o co-autor Jean-Jacques Hublin no mesmo comunicado. Os cientistas quiseram ainda estimar a quantidade de ADN de neandertal presente no ADN do homem de Ust’-Ishim, uma vez que ele terá vivido numa altura em que os neandertais ainda não se tinham extinto. E aí, descobriram que o genoma desse homem antigo tinha uma percentagem de origem neandertal equivalente à dos europeus actuais: cerca de 2%. Porém, dada a sua antiguidade, os fragmentos de ADN de neandertal eram muito mais compridos do que no ADN humano de hoje, porque o ADN ainda não tinha tido tempo de se fragmentar ao longo das gerações. Mais precisamente, diz a co-autora Janet Kelso, “isso permitiu-nos estimar que os antepassados do homem de Ust’-Ishim se misturaram com os neandertais entre 7000 e 13. 000 anos antes dele nascer”. Até agora, os cálculos apontavam para essa mistura genética ter acontecido há 37. 000 a 86. 000 anos. Agora, esse intervalo ficou mais estreito: o homem moderno e os neandertais terão procriado há 50. 000 a 60. 000 anos – ou seja, quase na mesma altura em que se deu a grande expansão dos humanos modernos na Eurásia.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens humanos homem sexo espécie marfim
Antropoceno: E se formos os últimos seres vivos a alterar a Terra?
A pegada ecológica gigante que estamos a deixar no planeta está a transformá-lo de tal forma que os especialistas consideram que já entrámos numa nova época geológica, o Antropoceno. E muitos defendem que, se não travarmos a crise ambiental, mais rapidamente transformaremos a Terra em Vénus do que iremos a Marte. (...)

Antropoceno: E se formos os últimos seres vivos a alterar a Terra?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-12-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: A pegada ecológica gigante que estamos a deixar no planeta está a transformá-lo de tal forma que os especialistas consideram que já entrámos numa nova época geológica, o Antropoceno. E muitos defendem que, se não travarmos a crise ambiental, mais rapidamente transformaremos a Terra em Vénus do que iremos a Marte.
TEXTO: “Querido diário”, é assim – costuma dizer-se – que as histórias de todos os diários começam. E é assim, também, que acontece com uma página ficcionada do que seria o diário de um tal Peter Schlemihl viajante no tempo. Imagine-se então esse personagem do século XIX, de um romance do botânico e escritor Adelbert von Chamisso, num bairro de Berlim do século XXI. Um futuro-presente habitado pelo que parecem ser – aos olhos de um naturalista de há dois séculos – estranhas espécies zoológicas, nunca antes vistas. Carros, bicicletas e helicópteros reconhecidos, respectivamente, como rinocerontes metálicos, perigosos cavalos selvagens e insectos gigantes. É desta forma que se fantasiou um mundo em que o que é natural e o que é artefacto se mistura: um exercício que decorreu num seminário sobre o Antropoceno, essa época geológica – sem estatuto oficial – de que agora muito se fala e que representa o impacto que a humanidade tem na transformação da Terra. Foi o ano passado que Maria Paula Diogo e Ana Simões – ambas coordenadoras do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia (CIUHCT) –, bem como investigadores internacionais, se colocaram no lugar de um Peter Schlemihl viajante no tempo. “Como interpretaria ele objectos desconhecidos, por exemplo um saco de plástico pendurado numa árvore?”, pergunta ao PÚBLICO Maria Paula Diogo, também da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. A resposta está no diário que a equipa concebeu no ano passado no âmbito do “Anthropocene Curriculum”, um projecto educacional de debate sobre o Antropoceno promovido, desde 2014, pelo Instituto Max Planck para a História da Ciência, em Berlim, Alemanha. “Exploro o desconhecido, e cedo compreendo que muitas espécies habitam este surpreendente novo mundo”, afirma nesse diário o imaginário Peter Schlemihl. E, com os seus “olhos de botânico”, tenta classificar o que vê: chama Metalica rhinoceros aos carros, comparando-os a rinocerontes, e Mosca majora a um helicóptero, que lhe parece um “enorme e rápido insecto voador”. E as bicicletas são Metalica hippos, descritos como “rebanhos de uma nova espécie de cavalos selvagens”, que, acrescenta, “são provavelmente perigosos, pois estão frequentemente algemados [com cadeados]. ”Esta nova forma de olhar para os objectos modernos é, explicam as investigadoras portuguesas, uma reflexão sobre o “borrão” em que o Antropoceno transformou o mundo: “O que é realmente natural num mundo profundamente moldado pela humanidade e, ao mesmo tempo, adaptado à tecnologia?”, perguntam na esperança de que alguém se junte a elas num debate que consideram urgente. A expressão “Antropoceno” é atribuída ao químico e prémio Nobel Paul Crutzen, que a propôs durante uma conferência em 2000, ao mesmo tempo que anunciou o fim do Holoceno – a época geológica em que os seres humanos se encontram há cerca de 12 mil anos, segundo a União Internacional das Ciências Geológicas (UICG), a entidade que define as unidades de tempo geológicas. “Ainda é uma discussão em curso entre os geólogos”, explica ao PÚBLICO Jürgen Renn, director do Instituto Max Planck para a História da Ciência, que esteve em Portugal como o primeiro orador de um novo ciclo de palestras do CIUHCT. “Nas humanidades e na política, [o Antropoceno] já é um termo reconhecido”, acrescenta o historiador de ciência. E de tal forma que tem inspirado não só palestras, mas também conferências, artigos, performances e o já referido “Anthropocene Curriculum” e os seus encontros sobre o Antropoceno. Esta colaboração entre o Instituto Max Planck e a Casa das Culturas do Mundo, em Berlim, tem até impulsionado outros encontros, por exemplo em Filadélfia, onde o CIUHCT participou em Outubro último como co-organizador. Mas o que é exactamente o Antropoceno e por que está a receber tanta atenção? É, como o nome antecipa, a época dos humanos. A nossa espécie está a deixar marcas na Terra. Estamos a falar de fenómenos registados em gráficos como a curva de Keeling – que mostra a concentração de dióxido de carbono na atmosfera terrestre – e que, em 2016, atingiu um valor recorde (403 partes por milhão, ou seja por cada milhão de moléculas na atmosfera há agora 403 de dióxido de carbono). Ou como os microplásticos nos oceanos, que não só prejudicam os ecossistemas marinhos como acabam, a certa altura, no nosso prato – numa demonstração de como o feitiço se pode virar contra o feiticeiro. “Não é que, conscientemente, nós quiséssemos destruir o planeta. São consequências não intencionais, mas estamos a fazê-lo. E sabemos que o estamos a fazer”, frisa Jürgen Renn, que dá exemplos: “Com o aumento dos gases com efeito de estufa, a transformação da superfície da Terra [com o degelo ou a acidificação dos oceanos], a perda de biodiversidade…”Foi para identificar esses marcadores que a Comissão Internacional de Estratigrafia da UICG criou o Grupo de Trabalho do Antropoceno – a estratigrafia é o ramo da geologia que estuda as camadas das rochas para determinar os processos e fenómenos que as formaram. E os cientistas estão a tentar encontrar as marcas estratigráficas deixadas pelas actividades humanas. Essas marcas têm de representar uma mudança em todo o mundo, mas também estar associadas a uma data. “Estão a discutir quando é que [o Antropoceno] começou. Se com a revolução industrial ou com a ‘grande aceleração’ [do desenvolvimento económico e social] do pós-guerra, a partir de 1950”, esclarece Jürgen Renn. Mas as hipóteses que enumera são apenas exemplos das muitas datas em discussão. O início da agricultura, por exemplo, ou o primeiro teste nuclear, a que se seguiram as bombas nas cidades japonesas de Hiroxima e Nagasáqui, também estão em cima da mesa. Por outro lado, há quem defenda que é muito cedo para aferir o impacto humano, até porque – consideram – qualquer que seja está apenas a começar. Não é o caso de Jürgen Renn, que declara ser urgente documentar o Antropoceno. “Estamos a lidar com materiais novos. Com betão, com plástico, que são novos tipos de sedimentos. Mas tem de ser feito”, afirma. E acrescenta que, contudo, não é a definição da época geológica que resolve o problema. “Para os historiadores, não é propriamente muito importante descobrir o ponto exacto em que começou o Antropoceno, porque todos os pontos se conectam. ” O que é urgente, alerta, é travar a crise ambiental: “Temos de mudar de atitude. Não é tanto uma questão de se reconhecer formalmente o conceito [do Antropoceno], mas mais de lidarmos com ele. ”O historiador de ciência acredita que é necessário perceber o impacto no sistema terrestre, mas também – e sobretudo – criar mais conhecimento. “O tipo certo de conhecimento”, sublinha. É nesse sentido que se realizam os encontros do Antropoceno, em Berlim, Filadélfia e noutras partes do mundo. “Chegou o momento em que temos de abandonar as nossas coutadas disciplinares e cruzar o que as diferentes disciplinas nos permitem entender. Os problemas são demasiado complexos e urgentes”, diz Ana Simões, especialista em história e filosofia das ciências e professora na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. E a sua colega, Maria Paula Diogo, garante que agora é a oportunidade perfeita para olhar para o passado e analisá-lo à luz do Antropoceno. Por isso, está a liderar o projecto “Anthropolands”, para descobrir como é que a ciência, a tecnologia e a medicina coloniais alteraram a paisagem africana. Além disso, adianta Maria Paula Diogo, outros investigadores portugueses (das artes, da história e da engenharia do ambiente) querem replicar no país os encontros “Anthropocene Curriculum”. Este último projecto, já submetido para financiamento à Fundação para a Ciência e Tecnologia, pretende tornar Lisboa no grande centro de debate na Europa do Sul sobre o Antropoceno. “Não temos as soluções, mas temos procurado numa direcção apenas”, afirma Jürgen Renn, para explicar por que é que projectos como o “Anthropocene Curriculum” são tão importantes e por que espera que esse “laboratório para a sociedade”, como lhe chama, chegue a Portugal. “Quando se perde uma chave, olha-se para onde brilha, mas não funciona assim com a ciência. Às vezes encontramo-la em sítios completamente inesperados. ” Tem de se prestar atenção ao contexto, sem desistir da ciência, e dá um exemplo: “Temos de pensar em soluções locais distintas. Algumas áreas do mundo devem ter energia eólica, outras energia solar e outras, ainda, energia geotérmica. ” Estas e outras soluções, tendo em conta que muitas das consequências do Antropoceno estão relacionadas com a forma como produzimos energia, têm de ser pensadas em conjunto, frisa. “É preciso juntar cientistas, humanistas, artistas, cidadãos activistas, professores e estudantes. ” E que os media, reconhece ainda, não só informem mas também envolvam o público: “Há um fascínio em relação a expedições a Marte e talvez possamos fazer uso disso. O Antropoceno é como uma ciência cósmica mas na Terra”, propõe. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Por outro lado, Jürgen Renn chama a atenção para a outra face do progresso: as consequências ecológicas que não são antecipadas por muitas intervenções tecnológicas. “O capitalismo é uma grande força universal. Penso que temos de globalizar o conhecimento, mas talvez devêssemos desglobalizar a economia. A nossa economia tem muitos efeitos negativos, por exemplo na agricultura em África. ” Mas é uma ilusão pensar que, se abandonarmos o capitalismo, os problemas se vão embora, ressalva o investigador alemão. Até porque, na sua perspectiva, não estamos a fazer o suficiente em relação às alterações climáticas. “Às vezes, tento pensar em Al Gore no lugar de Trump [o actual Presidente dos EUA] e na América não abandonar o Acordo de Paris. E, ainda assim, não seria suficiente. ”A verdade é que os humanos não são os primeiros seres vivos a alterar o planeta: o surgimento de oxigénio na atmosfera, que nos permite respirar, deve-se à fotossíntese feita pelas cianobactérias há mais de 2000 milhões de anos. Mas e se formos os últimos? “Estamos a transformar a Terra em Vénus”, alerta Jürgen Renn, referindo-se ao planeta vizinho que tem uma atmosfera muito densa, predominantemente constituída por dióxido de carbono, com um efeito de estufa infernal. E a Terra – conhecida como o planeta azul – poderá um dia dar lugar a uma paisagem desértica e poeirenta. A pergunta, sugere Maria Paula Diogo, que se impõe é: “Começamos a pensar em soluções para fora do planeta, mas não será mais relevante pensarmos como resolver os problemas que temos hoje, na Terra?”Texto editado por Teresa Firmino
REFERÊNCIAS:
Xutos, Marcelo e Costa cantaram A Minha Casinha em honra de Zé Pedro
Os Xutos & Pontapés tocaram em todas as edições do Rock in Rio em Lisboa, e à oitava homenagearam o guitarrista que morreu em Novembro do ano passado. Foi na noite desta sexta-feira e teve a ajuda de políticos, actores e outros amigos da banda. (...)

Xutos, Marcelo e Costa cantaram A Minha Casinha em honra de Zé Pedro
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os Xutos & Pontapés tocaram em todas as edições do Rock in Rio em Lisboa, e à oitava homenagearam o guitarrista que morreu em Novembro do ano passado. Foi na noite desta sexta-feira e teve a ajuda de políticos, actores e outros amigos da banda.
TEXTO: Moh! Kouyaté, músico da Guiné-Conacri há muito radicado em Paris, tinha acabado de actuar no palco EDP Rock Street, dedicado à música africana. Não fez referências aos Xutos & Pontapés, pelo menos que o PÚBLICO tenha ouvido, mas pouco antes, no Music Valley, os Capitão Fausto já o tinham feito. Ainda com o barulho de palcos inconsequentes, sem cartaz propriamente dito, a fazer-se ouvir, e pessoas a deslizarem num slide de um lado para o outro por cima do Palco Mundo, os Xutos & Pontapés começaram às 19h45, ao som de À Minha Maneira. A banda, que veio a todas as edições do Rock in Rio em Lisboa, apresentou-se em palco com quatro elementos e quatro ventoinhas atrás deles e uma bandeira de Portugal à frente da bateria de Kalú. Tim, o baixista-vocalista, tinha um sorriso de orelha a orelha, que não desmanchou ao longo da mais de uma hora em que a banda esteve em palco. Este, o oitavo, era um concerto diferente dos outros, o primeiro neste palco sem Zé Pedro, o guitarrista que morreu em Novembro do ano passado. Toda a gente, quer em cima do palco, quer no público, estava ciente da ausência, e não foi preciso assinalá-la logo ao início. Estava implícito em cada guitarrada de João Cabeleira, que assumiu as funções de único guitarrista do grupo. Apresentou-se Fim do Mundo, o single lançado em Março, com os dois ecrãs ao lado do palco sempre a mostrarem Marcelo Rebelo de Sousa, Ferro Rodrigues ou Fernando Medina, que assistiam ao concerto — depois, juntou-se a eles António Costa. Atrás da banda, eram mostradas imagens do passado. Os políticos tentavam cantar a letra de Circo de Feras, mas não a sabiam de cor e notava-se. Tim repete “Mais uma vez boa tarde, pessoal” e garante ao público: “Só estamos aqui porque vocês querem, mais nada. ” “Vão poder ouvir algumas coisas de que não estavam à espera”, explica, antes de tocarem Mar de Outono, que foi estreada no ano passado e fará parte de um possível próximo álbum. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Tim apresenta Não Sou o Único: “A próxima foi escrita pelo Zé Pedro. É uma canção que de certeza todos conhecem. ” Segue-se Esta Cidade, que não suscitou grandes reacções dos políticos nos ecrãs, apesar do teor explícito e das imagens de repressão. Os ecrãs focam a já mencionada bandeira de Portugal e o público bate palmas. Homem do Leme passa para Ai se ele Cai, que dá lugar a Contentores. “Vai pra casa, ó Costa”, grita uma anónima no público que pouco depois está a afirmar “g’anda Zé Pedro”. A chuva cai cada vez mais fortemente, até Tim anunciar que, “se tudo correr bem”, vão pegar numa gravação feita ao vivo no Estádio do Restelo e “tocar com o Zé Pedro mais uma vez em palco”. É isso que acontece, com Para Ti Maria e a imagem e som de Zé Pedro a aparecer nos ecrãs, com a presença da guitarra dele a contrastar com o resto do concerto. Uma homenagem a anos-luz, em termos de dignidade, do holograma de Tupac Shakur que Dr. Dre e Snoop Dogg apresentaram no festival de Coachella em 2012. Antes do fim, com a chuva que caía com grande intensidade, Tim explicou que Marcelo Rebelo de Sousa foi um cúmplice que “instigou” este concerto e esta “homenagem a Zé Pedro”. O vocalista pediu “um minuto de barulho” em honra do falecido colega. Ao palco, subiram os políticos já mencionados, além de Catarina Martins, bem como várias pessoas que enchem o palco e a quem o vocalista se referiu como amigos da banda: Maria Rueff, Sá Pinto, Margarida Pinto Correia, Ramon Galarza, entre inúmeros outros. Cantaram A Minha Casinha, popularizada por Milú. A chuva cai cada vez mais, e o concerto acaba, com pessoas, incluindo António Costa, dentro e fora do palco a gritar “Portugal” e “Só mais uma”, que acabou por nunca vir.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homem circo
A política dos mapas foi desmantelada em tapetes
Os mapas não estão todos feitos. Desmapear pode ser o primeiro passo para contrariar um objecto político que passa muitas vezes por neutro e trazer à superfície aspectos da realidade omitidos no mundo cartografado. Designers e arquitectos foram atrás desse objectivo: olharam para a Bagdad cultural atravessada pela guerra, transformaram paisagens em tapetes, mostraram que Angola não é um país pequeno. O resultado pode ser visto em Lisboa na exposição Unmapping the World, que faz parte da edição de 2013 da bienal da ExperimentaDesign e tem como tema No Borders/Sem Fronteiras. Daqui para a frente, felizmente, só há dragões. (...)

A política dos mapas foi desmantelada em tapetes
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-23 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os mapas não estão todos feitos. Desmapear pode ser o primeiro passo para contrariar um objecto político que passa muitas vezes por neutro e trazer à superfície aspectos da realidade omitidos no mundo cartografado. Designers e arquitectos foram atrás desse objectivo: olharam para a Bagdad cultural atravessada pela guerra, transformaram paisagens em tapetes, mostraram que Angola não é um país pequeno. O resultado pode ser visto em Lisboa na exposição Unmapping the World, que faz parte da edição de 2013 da bienal da ExperimentaDesign e tem como tema No Borders/Sem Fronteiras. Daqui para a frente, felizmente, só há dragões.
TEXTO: Pelo vidro da vitrina, é possível observar o mapa do Congo francês desenhado em 1887. Apesar de estar amarelecido, tem o potencial certo para o aqui e o agora. Portos marítimos como Ponta Negra, hoje cidade costeira da República do Congo, estão marcados no documento. Mas é possível ver muito espaço por nomear no interior africano. Por isso, no mapa, a palavra “inexploré” está escrita cinco vezes, no meio de cordilheiras de montanhas e nas regiões mais extremas do território congolês, naquilo que podemos imaginar como sendo planícies eternas. Este conceito de território “inexplorado” foi escolhido como ponto de partida para a exposição Unmapping the World não tanto por evocar o desconhecido, mas sim como uma possibilidade da realidade total. Afinal, num mapa vazio, sem traçados de rios, sem nomes de vilas e aldeias, cabem todas as possibilidades de um território, cabem todas as verdades. É essa ideia provocadora que a designer holandesa Annelys de Vet e o designer português Nuno Coelho, curadores da mostra, nos obrigam a pensar e a reflectir antes de subirmos as escadas para ver o resto das obras. “Um mapa nunca pode ser observado como um objecto neutro”, diz Annelys de Vet, fundadora do estúdio DEVET, no início de uma visita guiada à exposição do Palácio dos Condes da Calheta. Os aspectos que estão marcados num mapa, dentro de um território, são alvo de uma escolha, de um interesse, e por isso são sempre políticos. De fora, fi ca uma imensidão de informação, basta pensarmos nos bairros de lata não representados nos mapas de guias turísticos de cidades. vive, por isso, da desconstrução dos mapas e da desconstrução de uma visão neutra do acto de cartografar. Cada obra da exposição parte de um acto de desmapeamento para uma cartografia pessoal e comprometida de um território, algumas vezes mais libertária e crítica, outras vezes mais poética. Estamos no piso térreo do Palácio dos Condes da Calheta, no cimo do Jardim Botânico Tropical, pertencente ao Instituto de Investigação Científica Tropical, em Belém, Lisboa, onde a exposição está aberta ao público até 22 de Dezembro. Nuno Coelho relembra-nos o simbolismo do lugar. Foi aqui que a Comissão de Cartografia se instalou em 1883, com um objectivo de fazer o reconhecimento de aspectos geográficos, etnológicos, geológicos, históricos, das então colónias africanas portuguesas. Havia uma urgência por parte de Portugal em obter esta informação para a Convenção de Berlim, onde ficaram definidas as fronteiras das colónias africanas pertencentes aos países europeus. Era uma luta pela soberania: estudar, mapear, conhecer os territórios foram formas de perpetuar o seu controlo. “Este palácio foi importante para a construção de mapas”, resume Nuno Coelho, investigador no Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra. Subimos então as escadas. Na entrada da primeira sala, com o tema Conflito, está a única obra feita pela equipa de curadores. Cartographic Artillery são três painéis separados com uma rede de mapas de três países diferentes. O primeiro é do Iraque e mostra 66 mapas e fotografias publicados entre 1988 e 2013 com a localização das supostas armas de destruição maciça, fotografias de satélite de instalações, fotografias de fábricas iraquianas. Estes mapas e fotografias foram publicados em documentos de instituições norte-americanas como a CIA ou em notícias de jornais como o The Guardian, o Haaretz ou o The Wall Street Journal. O resultado é uma cacofonia visual, mas potente, onde a ligação entre o Iraque e os mísseis nucleares fica consolidada. À frente, outro painel semelhante, desta vez mapas entre 2004 e 2013 do Irão, com armas nucleares e o seu alcance. Atrás deste, um terceiro painel que conta uma história parecida, com a Síria e as armas químicas. “Quão problemático é que um mapa pode ser?”, questiona Annelys de Vet. O folheto da exposição é esclarecedor: “Em relação ao Iraque, foi largamente confirmado que estas suposições [sobre os mísseis nucleares] estavam perigosamente erradas e que estes mapas foram usados como provas falsas. Por isso, como ler os mapas similares da Síria e do Irão?”Nuno Coelho diz não ter nada contra os mapas, mas insiste que o que está em causa é um problema de transparência e debate-se por ele. “Qualquer razão é válida para se mapear, depende da perspectiva de cada um. Mas achamos errado esconder as reais intenções por trás da fabricação de um mapa”, diz ao PÚBLICO dias depois, por telefone. Parede à frente, continuamos no Médio Oriente. É a frase de Dennis Wood, investigador e cartógrafo citado numa projecção na parede da escadaria, que ressoa. “Um mapa é um sistema de proposições, é um argumento sobre a existência”, escreve o especialista, num artigo. Baghdad Out é isso, mas na forma de resistência. O atelier holandês Veldwerk fez a cartografia da Bagdad cultural em 2003, 2004 e 2010. Enquanto o resto do mundo olhava para o Iraque com o filtro da guerra, os livros continuaram a ser escritos, as peças de teatro continuaram a ser representadas, os locais culturais da capital do Iraque continuaram a ser frequentados, com data e hora marcadas, apesar de os artistas também serem vítimas de atentados. “Infelizmente, o domínio da informação política e económica dada pelos media não faz qualquer justiça à essência cultural de uma sociedade”, lê-se num resumo do trabalho. Seguimos em direcção à sala da Libertação. Na vitrina à esquerda, numa moldura dourada, um mapa: Angola não é um país pequeno. Paulo Moreira, arquitecto a trabalhar no Porto, pegou no famoso mapa de Henrique Galvão e subverteu-o. Em 1934, o militar e escritor sobrepôs as colónias portuguesas no mapa da Europa, para mostrar que não faltavam hectares ao império. Desta vez, Paulo Moreira mostra que cabem dez portugais em Angola, um país em pujança económica, que tem investido fortemente cá, mas com quem mantemos relações diplomáticas complicadas. Na mesma sala, do lado direito, Double Standards: dois pesos, duas medidas. A situação dos piratas da Somália é enquadrada sob um novo ponto de vista por Ruben Pater. Em jeito de sala de convenções das Nações Unidas, o designer holandês apresenta-nos uma mesa redonda com o mapa do mundo centrado na Península Arábica, no oceano Índico e na Somália, com 12 cadeiras em volta. Por cima, há 12 bandeiras, cada uma é um híbrido entre bandeiras de dois países. É uma metáfora dos navios que passam por aquelas águas. Navios que podem ser originais das Ilhas Marshall, mas que são detidos por uma empresa norueguesa. Mas também é uma metáfora daquilo que pode estar nos limites da legalidade. “Segundo o que Ruben Pater nos transmitiu, os próprios navios mudam as suas bandeiras durante a travessia que fazem para estarem submetidos a diferentes tipos de legislações, o que lhes permite contornar leis ambientais ou da pesca”, diz Nuno Coelho. Na mesa, duas bandeirinhas, dados rápidos: 90% do mercado mundial faz-se por mar, gera oito biliões (milhões de milhões) de dólares; 22 mil navios passam anualmente pelo golfo de Aden; em 2011, 223 dos 544 ataques de pirataria foram feitos por piratas da Somália — o país com o menor PIB nesse ano; foram gastos 2000 milhões de dólares para combater a pirataria. Caminhamos para a sala seguinte e subitamente estamos a pisar um tapete onde foram impressas centenas de fotografias quadradas do Google Earth. Em cada quadrado, um mapa com uma loja Ikea no centro. The World of Ikea, um trabalho do designer holandês Bjorn Andreassen, continua numa vitrina com fotografias: duas pessoas com as pirâmides do Egipto em plano de fundo, duas pessoas com uma loja azul Ikea por trás, duas pessoas na Torre de Pisa, duas pessoas com a loja azul Ikea por trás. Poderia haver um balão de banda desenhada em cada uma das fotografias com a seguinte questão: “O que é a identidade cultural contemporânea?” E desta vez lembramo-nos das palavras de Claude Lévi-Strauss, citadas na exposição: “Ameaça-nos a perspectiva de sermos só consumidores, capazes de consumir qualquer coisa em qualquer ponto do mundo, vindo de qualquer cultura, mas de perdermos toda a originalidade. ”A sala do Ikea é a sala do Mercado. Taxodus, outro trabalho instalado aqui, é um jogo para brincar com os paraísos fiscais criado pela designer holandesa Femke Herregraven. O trabalho relembra que a Holanda, no coração da União Europeia, pode ser considerada como um paraíso fiscal para muitas empresas. A designer esteve mesmo para reunir informação sobre 16 empresas portuguesas que optaram por estabelecer-se lá, mas não conseguiu completar o trabalho por falta de tempo. “Desmapear a crise que Portugal está a viver é isto”, diz-nos Annelys de Vet, referindo-se a Taxodus. “É uma crise que é originada numa rede global e esta é uma forma de compreender as suas raízes. ”Voltamos para trás, até à Xiloteca, uma espécie de arquivo com amostras de madeiras das espécies vegetais das antigas colónias portuguesas, que foram recolhidas no século XX. Entramos num mundo castanho, mas também no mundo turístico das Caraíbas trazido pelo colectivo Supersudaca, formado por arquitectos latinos que estão sediados em países diferentes mas continuam a trabalhar em conjunto. Al Caribe! é uma mistura de sons gravados e música que nos remete para um ambiente ébrio de pessoas a chegar a ver e a partir, que se vive naquelas ilhas. Ao mesmo tempo, vários postais mostram o impacto da urbanização no arquipélago, realçando o paradoxo entre a salvação económica que o turismo promete e a destruição do território que causa. No início desta viagem, Nuno Coelho falou-nos que, durante a organização da exposição, cada sala do palácio pedia determinados trabalhos. A madeira da Xiloteca cheira a trópicos, a lugares distantes, mas também a exploração. Num dos armários há ainda dezenas de embrulhos com amostras de madeira por abrir. Um dos embrulhos guarda 34 amostras de pau-carvão, uma espécie da Guiné conhecida como Prosopis africana. “Há uma urgência em colectar, em classificar, mas depois não temos tempo para fi ltrar toda esta informação”, diz Nuno Coelho. Annelys de Vet insiste: “Não estamos contra a cartografia e o mapeamento, mas não podemos esquecer que deixamos sempre traços por onde passamos, influenciamos o contexto. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Zarpamos para a sala da Poesia e ficamos a olhar para Simple Standing Triangle de Yazan Khalili, arquitecto palestiniano. Os trabalhos desta sala representam o lado mais íntimo da exposição. Yazan Khalili preencheu quatro prateleiras de uma vitrina com folhas A5 que parecem ter sido arrancadas de um caderno de escola, todas com um desenho de um triângulo. “Quando a minha mãe me ensinou pela primeira vez a desenhar o mapa da Palestina, eu costumava desenhar um triângulo equilateral de pé”, escreve o arquitecto no resumo da sua obra. O investigador Dennis Wood defende que a utilização frequente de mapas, como conhecemos agora, não terá muito mais de três séculos, e acompanhou o aparecimento dos Estados modernos. Desse ponto de vista, a sua importância está intimamente ligada à definição de fronteiras e à realização formal de uma ideia de território que tem um desenho, é um rectângulo no caso de Portugal, um hexágono no caso de França. Mostrar esse território no mapa é uma legitimação da própria existência de um país num quadro maior de mais nações. O mapa da Palestina é o oposto. “Não há zona tão detalhadamente mapeada. Cada um tem a sua visão daquele território, nunca houve consenso”, diz-nos Nuno Coelho. Justamente por isso, por se sobrepor a toda esta complexidade, e apropriar-se do valor iconográfico de um mapa para construir a sua identidade pessoal, o olhar de Yazan Khalili apela a um sentido poético de resistência: “Mais tarde aprendi que [o triângulo] não é exactamente equilateral, o seu lado de baixo é maior do que o de cima (. . . ). Há também o lago da Galileia, e o mar Morto, e as várias aldeias destruídas e a linha verde de 1948, e há Israel e a Cisjordânia, e a faixa de Gaza, e os acordos de Oslo, e a Área A e a Área B, e a C, e a H1, e a H2 (. . . ) mas até agora, quando quero desenhar o mapa da Palestina, faço um triângulo equilateral de pé. ”Finalmente, voltamos a mapas desmantelados de referências humanas, mas cheios de paisagem, agora esculpidos em tapetes quadrados, brancos. Rugs é o resultado do trabalho da holandesa Roosmarijn Pallandt. A designer representou em tapetes paisagens aéreas da Tailândia ou do Nepal, como dunas e glaciares. Os objectos foram feitos por artesãos locais, usando fibras ou lãs naturais, que existem naquelas regiões, com métodos tradicionais de tecelagem ou de acolchoamento. Portugal tem dois tapetes, uma zona florestal e um areal que parece ainda atravessado pelo vento. Vistos de cima, em pequena escala, tornam-se territórios completamente inexplorados, tão selvagens como as planícies imaginadas do mapa do Congo. É favor não pisá-los.
REFERÊNCIAS:
Multado por deixar likes em comentários difamatórios no Facebook
Um tribunal suíço aplicou uma multa de mais de três mil euros a um homem. (...)

Multado por deixar likes em comentários difamatórios no Facebook
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um tribunal suíço aplicou uma multa de mais de três mil euros a um homem.
TEXTO: Um tribunal na Suíça multou um homem por este ter feito likes ("gostos") em comentários no Facebook considerados pela instância judicial como difamatórios. Este será, até à data, o primeiro caso de actuação de um tribunal envolvendo apenas likes da rede social. De acordo com o comunicado do tribunal, o homem terá acusado Erwin Kessler, activista dos direitos dos animais, de anti-semitismo e racismo apenas por fazer likes em comentários difamatórios sobre ele. A multa aplicada pelo tribunal foi de quatro mil francos suíços (3667 euros). Foram seis os likes deixados pelo homem de 45 anos em comentários de terceiros, informou o jornal suíço Le Temps. “Ao clicar no botão de like, o arguido endossou claramente o conteúdo indecoroso e tornou-o o seu próprio ponto de vista”, podia ler-se no comunicado do tribunal, citado pelo The Guardian. O tribunal refere ainda que, devido ao funcionamento do Facebook, o homem ao colocar likes em comentários acabou por disseminá-los pela sua rede de contactos, já que essa informação aparece depois no feed de notícias de outras pessoas. O envolvido neste caso bizarro colocou likes na publicação, feita em 2015, e que estava relacionada com a articipação de grupos de defesa do bem-estar dos animais num festival de rua vegan. Sabe-se que Kessler terá processado mais de uma dúzia de pessoas que comentavam a sua actividade no Facebook, durante o ano de 2015, e que algumas foram efectivamente condenadas. Contudo, essas condenações eram provenientes de comentários e nunca de likes feitos a esses comentários.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos tribunal homem racismo social
Um país entre aquilo que é e aquilo que deseja desesperadamente ser
A liderança do Nobel da Paz Juan Manuel Santos está perto do fim. A Colômbia vai a votos para escolher um novo Presidente da República a 27 de Maio. Procurámos o pulsar de um país a partir do Festival Internacional de Cinema de Cartagena das Índias e da retrospectiva dedicada ao realizador que pôs o cinema latino-americano no mapa, o brasileiro Glauber Rocha. (...)

Um país entre aquilo que é e aquilo que deseja desesperadamente ser
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.2
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: A liderança do Nobel da Paz Juan Manuel Santos está perto do fim. A Colômbia vai a votos para escolher um novo Presidente da República a 27 de Maio. Procurámos o pulsar de um país a partir do Festival Internacional de Cinema de Cartagena das Índias e da retrospectiva dedicada ao realizador que pôs o cinema latino-americano no mapa, o brasileiro Glauber Rocha.
TEXTO: Bogotá é como se fosse um espaço confinado a céu aberto onde tudo pode acontecer. A cidade encontra-se cercada por montanhas escarpadas, as da cordilheira oriental dos Andes, que funcionam como muros bem altos a delimitar a arena. Prédios de 30 andares de cor cinzenta ou castanha fazem paredes-meias com casebres construídos de tijolo sem reboco amontoados entre si sem intenção de forma ou ordem, meia dúzia de arranha-céus crescem ao lado de áreas habitacionais que são autênticas aldeias, as instalações de ponta do complexo universitário privado não têm problemas com a vista que dá para o bairro da lata. A vegetação é pungente, sempre à espera de oportunidade para irromper do asfalto ou do cimento e voltar a tomar o que sempre foi dela. Existem os resquícios da colonização, da escravatura e do indigenismo por todo o lado, nas pessoas, na arquitectura, nos comportamentos. O tempo, sempre igual, é uma espécie de iminência de Verão no Inverno — ou de Inverno no Verão. O cinema tem esta coisa. Chegamos a um sítio e é como se já o conhecêssemos porque a sensação de familiaridade com aquele lugar foi-nos dada por algum filme que nos marcou. Pode acontecer com a chegada a Tóquio por causa dos filmes de Yasujiro Ozu (1903-1963) e dos planos de câmara colocados à altura do quotidiano doméstico dos japoneses, dos silêncios necessários à comunicação, da suspensão dos corpos como se fossem segurados por um fio. E pode acontecer com a chegada a Bogotá, uma cidade da América do Sul com dez milhões de habitantes, o equivalente a toda a população de Portugal. Uma viagem de táxi desde o Parque dos Periodistas até ao Bairro Lisboa Norte para ir conhecer a família de um jornalista do jornal El Tiempo, cuja mãe é portuguesa, permite assistir a toda esta tragédia — no sentido grego, de tensão de opostos — a partir da janela do carro, como se fosse um ecrã que dá a ver tudo a partir de um único travelling. Aquela viagem de táxi permitiu perceber a importância, e a urgência, dos filmes-acção do brasileiro Glauber Rocha, a propósito da retrospectiva que lhe iria ser feita no FICCI — Festival Internacional de Cinema de Cartagena das Índias, que decorreu entre 28 de Fevereiro e 6 de Março. Nunca ter vindo à América do Sul é já ter vindo à América do Sul. Graças ao cinema de Glauber Rocha. A norte, na costa do Caribe, Cartagena das Índias é a quinta maior cidade da Colômbia. Se chegarmos durante a noite ao centro da cidade velha, delimitada por muralhas com cinco séculos, o táxi larga-nos no meio de um turbilhão. O espaço das ruas não é suficiente para tudo o que está a acontecer. Vive-se um atropelo constante: de turistas a passear a pé, de turistas a passear de charrete puxada a cavalo, de carros parados a empancar o trânsito e a polícia a apitar para apressá-los a avançar. Há vendedores ambulantes de fruta fresca, doçaria, águas, sumos, adaptadores de tomadas. Há apontamentos de festa um pouco por todo o lado, no terraço de um prédio, numa praça, nos bares. Ouve-se, durante toda a noite, batidas de tambores e apitos de cornetas. Chegamos e é como se chegássemos a um circo, onde todos os actores desempenham o seu papel. Na sessão de abertura da 58. ª edição do FICCI, quando a directora artística do festival, Diana Bustamante, enumerou no seu discurso a programação do evento e referiu a retrospectiva sobre Glauber Rocha (1939-1981), ouviu-se uma ovação, com vários assobios entusiastas à mistura, na sala do Centro de Convenciones Julio César Turbay Ayala. No dia seguinte à tarde, a sala do centro comercial Multiplex Plaza Bocagrande — um edifício envidraçado de dentro do qual se vê o azul do mar a perder-se de vista — estava praticamente cheia para ver O Leão das Sete Cabeças (1970). Trata-se do primeiro filme feito durante o exílio do realizador assumidamente subversivo do regime de ditadura militar em que o Brasil vivia na altura e que é considerado o expoente máximo do Cinema Novo brasileiro. Rocha viria a realizar mais três longas-metragens, antes de morrer aos 42 anos vítima de septicemia. Passou os últimos meses da sua vida em Sintra, onde adoeceu, dizem que errante e cheio de tristeza e dor. Metade dos espectadores de O Leão das Sete Cabeças eram jovens. O público do festival tem na sua larga maioria menos de 30 anos. “Tomei conhecimento do Glauber Rocha aqui no festival”, contou Gabriel Bocanegra, um estudante de 22 anos de Bogotá, alto, moreno, acabado de se licenciar em Estudos Literários. “Achei o filme interessante, algumas cenas são hilariantes. A intenção política é demasiado evidente, necessitava de ser mais subtil para ser mais eficaz. ” Santiago Montoya veio também de Bogotá, mas já pela segunda vez. Com o cabelo louro e comprido atado como o dos samurais, Santiago tem 20 anos e é estudante na Escuela Nacional de Cine. “Li o manifesto Uma Estética da Fome [1965] do Glauber Rocha, que me serviu de introdução ao Cinema Novo brasileiro”, referiu. “Faz uma crítica aos [norte-]americanos, que roubavam aos sul-americanos. No filme, o paralelismo é o mesmo: os europeus que roubavam aos africanos. ”Rodado no então Congo-Brazzaville (hoje República do Congo), O Leão das Sete Cabeças é uma epopeia catártica sobre o colonialismo e começa com o grande plano de um peito de mulher, de pele branca. Umas mãos de homem, também brancas, começam a aparecer no enquadramento e pairam sobre os seios, num desejo incontrolável de lhes tocar. O plano abre e os corpos do homem e da mulher entregam-se de forma animalesca, espojados no chão do mato. A câmara movimenta-se à volta deles como se fosse o terceiro elemento necessário à orgia. Na cena seguinte, vemos Jean-Pierre Léaud (1944), o Antoine Doinel dos filmes de François Truffaut, a subir uma montanha, vestido de branco. Um profeta errático, radicaliza os mandamentos da religião junto dos outros como veículo de purga da sua própria loucura. Há também o mercenário colonizador, que olha para a câmara e faz uma resenha pelas intenções de Lincoln, Lenine e Hitler; o mercenário branco que vem ajudar o povo africano à revolução; o líder africano que apela os congéneres à necessidade da luta e da libertação; e há ainda o presidente do país, um negro que se veste à Luís XV e faz discursos em cima de um carro descapotável ao som de três saxofones. A dada altura, o povo reúne-se em protesto e essa manifestação de rua é exaltada pela câmara em delírio de Glauber Rocha, que sobrevive sempre das tensões entre carne e espírito, fé e razão, opressor e oprimido. Num cartaz empunhado pelos manifestantes, pode ler-se: “Contra o paternalismo neocolonialista. ” Glauber entendeu a essência do neocolonialismo: reside no olhar. Reside na forma como continuamos a ver o outro, a ocupar o lugar do outro e a insistir em considerar o outro “exótico”. O neocolonialismo resiste pela condescendência. Durante a Guerra do Ultramar, os soldados portugueses destacados nas colónias portuguesas traziam muitas vezes fotografias suas a posar para a câmara, o olhar e o sorriso divididos entre o matreiro e o fascinado, e seguravam numa das mãos o seio de uma indígena demasiado descaído para os parâmetros ocidentais. Na Calle de Ayos, uma das artérias principais da cidade velha de Cartagena, repleta de casas de estilo colonial em obras de remodelação, uma jovem palenquera estava sentada na soleira de uma porta. Os palenqueros são oriundos de Palenque de São Basílio e as palenqueras usam vestidos e lenços na cabeça com cores muito vivas. Esta estava vestida com um fato novo, feito de largas faixas horizontais azuis, amarelas e vermelhas — as cores da bandeira colombiana. À semelhança dos artistas de rua, parecia estar disponível para tirar fotografias com os turistas, a troco de uma gratificação. A sua postura solene incluía um olhar vago de quem evita cruzar-se com olhos alheios. Um olhar de quem preferia não. “Dentro dos muros da cidade velha não se tem problemas, pode andar-se à vontade”, “dentro dos muros está-se seguro porque o Governo fez de Cartagena o porta-estandarte do turismo seguro no país”, “é só sair dos muros e é uma cidade muito perigosa e violenta”. Estas são as advertências mais comuns dadas a quem está de visita a Cartagena das Índias. Sair das muralhas só de táxi: o táxi leva, o táxi deixa à porta, o táxi traz. Com os taxistas, experienciamos a lógica da condescendência, vinda do lado de lá: a de que qualquer não local será mais endinheirado do que eles próprios e por isso podem dar elasticidade aos valores que cobram pelos seus serviços. Durante o festival, e dentro de muros, encontramo-nos num viveiro que nos mantém protegidos das potenciais agruras do mar alto que é a violência. Apenas pequenos dispositivos nos vão lembrando da iminência dessa hostilidade. É o caso dos detectores de metais existentes à entrada das instituições abertas ao público. Quando passamos pelo edifício dos Despachos Judiciales de Cartagena — Cuartel del Fijo, na Carrera 5, o detector de metais está em primeiro plano e tem colada uma folha A4 com a fotografia de uma arma por cima da qual está desenhado um sinal vermelho de proibição. “Somos um país violento”, disse Laura Mora numa conferência de imprensa do FICCI ligada a actividades académicas. Laura Mora é autora de Matar a Jésus (2017), um filme estreado no festival sobre uma jovem de Medellín cujo pai é assassinado, tal como foi, em 2002, o pai da própria realizadora. Laura referiu que uma vez, numa conversa em que participou, perguntou se por acaso também tinham assassinado o pai a alguém. Das 15 pessoas que estavam presentes, oito responderam que sim. “Ainda não falámos o suficiente sobre isso. Acho que por termos vergonha de o admitir perante o mundo. A violência e a beleza são as duas coisas mais democráticas que temos na Colômbia. ”A violência é a forma que o corpo encontra para expurgar toda a tensão que a miséria acumula, diz-nos Glauber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). E veicula-se sob muitos pretextos, entre eles a religião. Deus e o Diabo… é o segundo filme realizado pelo brasileiro e é considerado um marco do Cinema Novo sul-americano. Foi exibido às dez da manhã de sábado no belíssimo Teatro Adolfo Mejía, na Plaza de la Merced; a sala estava composta. Manoel é um vaqueiro pobre caído em desgraça, e a fome, a injustiça e o desespero conduzem-no ao delírio. Encontra na fé o reduto último para a salvação, para o sentido de tanto sofrimento. Junta-se a uma seita religiosa, que profetiza o paraíso sob a forma de uma ilha, e depois a um lampião, uma espécie de Robin Hood do sertão chamado Corisco, que se encontra desviado dos seus propósitos mais nobres. Este lampião diz que Manoel é um anjo — este questiona-se porque é que não se pode fazer justiça sem derramar sangue — e rebaptiza-o como Satanás. As influências formais e estéticas da vanguarda soviética são claras neste filme a preto e branco: grandes planos de personagens a olhar para o vazio, o som emudecido; como se aquele momento de pausa servisse para interiorizarmos o que vemos. “O filme mostra-nos uma violência que nasce a partir da religião. É a origem da violência também na Colômbia”, disse à saída David Suloaga, 21 anos, estudante de Filosofia em Bogotá, cabelo louro com rastas e olhos muito verdes, escondidos por detrás de óculos de massa de tartaruga. “Eu diria que o cinema do Glauber Rocha é muito importante, permite-nos olhar para nós mesmos, permite que nos vejamos ao espelho. Nós vivemos actualmente com a violência. Não é apenas uma memória. ”A Colômbia parece viver numa tensão constante entre aquilo que é e aquilo que deseja desesperadamente ser. Existem duas realidades opostas que traçam percursos paralelos na vida do país: a realidade do país de Terceiro Mundo e a realidade do país de Primeiro Mundo. À saída da cidade velha de Cartagena, na direcção do mercado local, onde fica situado o centro comercial Multiplex Caribe Plaza, passa-se pela zona de Getsemaní através da Calle de la Media Luna. A imagem é a de um bairro igual ao da cidade velha, mas sem tratamento de Photoshop. As casas de estilo colonial estão velhas, a luz do sol parece baça e as ruas encontram-se vazias, à excepção de dois ou três vendedores ambulantes erráticos. O táxi passou pela igreja de Santa Cruz de la Popa, que tinha um cartaz à entrada a dizer “Oremos pelo fim do aborto”, e depois por uma zona habitacional de casas brancas geminadas, com pequenos jardins em frente. Cada rua tinha um portão no início, como se fossem pequenos condomínios. “Não acredito nos políticos”, dizia o taxista durante o caminho, simpático e prestável, a assumir a atitude de um operador turístico, mas a explicar a situação política do país. Júnior España tem 34 anos e fez parte do Exército entre 1997 e 1999 que, juntamente com os paramilitares, “encurralaram, as FARC, graças à acção de pulso de Álvaro Uribe” Vélez, o Presidente que antecedeu o actual, Juan Manuel Santos. As FARC, Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia — Exército do Povo, são uma organização guerrilheira de inspiração marxista-leninista. “As eleições vão ser ganhas por [Gustavo] Petro. Os jovens gostam todos dele. Como é que é possível um homem que já foi guerrilheiro ir ocupar um cargo político?” Gustavo Petro fez parte de um movimento armado da esquerda intelectual da Colômbia, chamado M19, que surgiu no início dos anos 70. As sondagens colocam-no à frente, nas intenções de voto. “O problema é que este país tem uma mentalidade comunista revolucionária. Não vai mudar. ”As sessões do 58. º FICCI abriram sempre com o trailer promocional do festival. O vídeo estava ao nível do que está a ser feito pelas melhores agências criativas do mundo, tanto técnica como conceptualmente. A inspiração é clara: uma das primeiras cenas do filme A Idade da Terra (1980), de Glauber Rocha, que foi exibido no Caribe Plaza naquela tarde de domingo, dia 4 de Março. Uma estética tropicalista higienizada, vemos grandes planos de folhas de plantas e de flores, que formam uma mancha de verde-escuro sobre um fundo negro. As letras brancas são contornadas por uma mancha fina que lhes confere o efeito de lâmpadas acesas. Seguiu-se uma promoção à rede de distribuição de cinema junto das zonas mais carenciadas do país e uma outra ao Audiovisual Bogotá, uma plataforma de serviços que alicia produções estrangeiras a virem filmar para a Colômbia. “Desconfiem das pessoas que não gostam de cinema. ” Juan Manuel Santos cessa funções após as eleições de 27 de Maio, depois de dois mandatos de presidência da República. No discurso que fez na sessão de abertura do FICCI, aproveitou para enfatizar o legado que considera deixar ao país e realçou a importância do crescimento do turismo e do cinema. “Hoje, vemos que a paz segue o seu caminho — com dificuldades, com contratempos, mas sem se deter — e que as FARC são agora um partido político que procura nas praças e nas urnas o que costumava procurar através da violência e das armas”, referiu. “Alguns não gostam disso. Devo dizer que — e sei que muitos dos presentes me acompanham nesta convicção — nada me dá mais alegria do que ver o triunfo da democracia e da civilidade sobre a guerra e a barbárie. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para ver A Idade da Terra no Plaza, o filme derradeiro de Glauber Rocha e o mais polémico, a sala estava a dois terços. Uma influência do realizador italiano Pier Paolo Pasolini em termos formais e narrativos, a dança é — nas suas diversas manifestações ritualísticas — o fio condutor dos discursos dos políticos que se apresentam em campanha. Há o americano debochado, há o preto indígena, há o branco galã vestido de smoking — todos eles são animais políticos sedentos de sexo. A dada altura, o galã repete, várias vezes, para a sua audiência: “A independência, a proclamação da República, a abolição da escravatura. São conquistas do nosso povo. E por isso eu as defenderei até à morte. Mesmo quando eu exerço a violência. ” Glauber Rocha faz questão de tornar visível o teatro das operações. Intercala ambientes reais com ambientes criados em estúdio, como é o caso de uma sala preta com uma mesa ao centro que tem em cima, dourada, uma árvore de Natal — aquela altura do ano em que decidimos suspender a maldade do mundo. “A intenção daquela repetição é criar uma consciência”, disse, à saída da sessão, a estudante de cinema em Santa Marta, Keina Martinez, de 21 anos. “De tanto repetir, o espectador já sabe dizer também o discurso. ” Muitas pessoas foram saindo da sala ao longo do filme, os espectadores ficaram reduzidos a um quinto. “Rocha representa muitas coisas que existem também na Colômbia: a corrupção, muitos políticos falsos, muitos lobos vestidos de ovelhas”, continuou Keina, os olhos castanho-escuros muito vivos. “O futuro da Colômbia está estancado pela política. Somos um país riquíssimo e só nos roubam. O Abraham do filme é o Trump”, disse por sua vez Erick Rodriguez, de 21 anos, estudante de Cinema também em Santa Marta. “As coisas vão mudar com Petro, obviamente. Acredito nele quando discursa. É muito inteligente. Não lhe sinto falsidade como vejo na cara de Santos, que não tem qualquer traço de humanidade”, contrapôs Keina, com o tipo de convicção própria da idade. “Não podemos ter medo da mudança. ”Reportagem feita no âmbito da Bolsa de Jornalismo Cultural da Fundación Gabriel García Márquez para el Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI), em Cartagena das Índias, Colômbia.
REFERÊNCIAS:
Thomas Walgrave: “Senti-me comandante de guerrilha durante quase dez anos”
Depois de uma década à frente do Alkantara, Thomas Walgrave deixa o festival lisboeta de artes performativas para regressar à vida artística. Ao lado de Christiane Jatahy, na vida e na criação. (...)

Thomas Walgrave: “Senti-me comandante de guerrilha durante quase dez anos”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Depois de uma década à frente do Alkantara, Thomas Walgrave deixa o festival lisboeta de artes performativas para regressar à vida artística. Ao lado de Christiane Jatahy, na vida e na criação.
TEXTO: Este domingo é oficialmente o derradeiro dia de Thomas Walgrave à frente do festival Alkantara. Evento de periodicidade bienal, assumiu esta identidade a partir do Danças na Cidade, criado por Mónica Lapa em 1993 e continuado por Mark Deputter. Walgrave chegou a Portugal em 2005, depois de ter trabalhado a cenografia e o desenho de luz dos belgas tg STAN, uma das companhias de referência do teatro europeu. Nascido em Antuérpia em 1965, Walgrave foi o sucessor de Deputter no Alkantara, tendo desde logo, em finais de 2008, antecipado que não programaria mais do que duas edições (2010 e 2012). O cenário de crise acabou por mantê-lo em funções e deixa, passados dez anos, a programação de um dos mais importantes festivais de artes performativas em Portugal nas mãos de Carla Nobre Sousa e David Cabecinha, numa altura em que a relação pessoal e criativa com a criadora brasileira Christiane Jatahy (com quem é casado) o leva a regressar em full-time à vida artística. Com a esperança de, ainda assim, não quebrar os laços com Lisboa. Quando tomou a decisão de abandonar o Alkantara?Estive presente na edição de 2008, enquanto artista, porque acompanhei alguns trabalhos, fiz luz e cenário para o Miguel Pereira, Tiago Rodrigues e Rabih Mroué. Quando comecei no Alkantara, disse sempre que ia fazer duas edições. Só que depois dessas duas edições a situação era tão dramática que era impossível passar o festival a alguém. Isso foi importante na minha decisão. Depois de 2016, altura em que disse “Agora acabou” houve uma mudança de condições — ou, pelo menos, uma esperança de mudança de condições que torna mais fácil passar o testemunho. Pesou na actual decisão o desgaste provocado por essa situação dramática depois das duas primeiras edições? O subfinanciamento do Alkantara contribuiu para que agora aproveite para se libertar do peso desses anos?Sem dúvida, mas acho que é uma resposta que tem muitos lados. Há um desgaste que é físico e emocional. E há um lado político do trabalho que estou mesmo farto de fazer. A política é muito importante na minha vida, mas não no sentido do lobbying. Gostava mesmo de poder fechar isso. Ao mesmo tempo, a luta também é um lugar muito especial, porque nos alimenta. Acho que há até um perigo de vício. A comparação é completamente exagerada, mas há muitos anos vi uma entrevista com o subcomandante Marcos, dos zapatistas, em que lhe perguntavam se ele estaria disposto a ser o novo Presidente do México. Ele respondeu que era impensável — alguém que cresce na luta nunca pode ambicionar ser Presidente de um país em tempos de paz. Numa escala muito inferior, isso também vale para o Alkantara. Senti-me muito comandante de guerrilha durante quase dez anos. Agora que chegaram tempos de paz, parece-me muito saudável serem outras pessoas a assumir isto. E o que se segue é um regresso ao trabalho artístico a 100%?Sim. Fiz alguns espectáculos durante estes anos, mas eram sempre muito à margem e coisas pequenas. Durante quanto tempo congelou a sua actividade artística?Parei tudo quando entrei no Alkantara, no final de 2008, e comecei, muito timidamente, a fazer algumas coisas a partir de 2013/14. Em 2011, fiz um espectáculo na Grécia [The Madness of Heracles, de Eurípedes], mas foi uma excepção. Foi sempre muito difícil tentar combinar calendários. Mesmo o trabalho do Sopro que fiz com o Tiago [Rodrigues] no ano passado foi a uma escala muito menor e em que, por causa do Alkantara, entrei no processo muito mais tarde do que normalmente entrava. Mas fiquei muito feliz — foi como manter o motor aquecido. Porquê essa excepção na Grécia?Recebi um telefonema de Michael Marmarinos, um encenador grego que queria trabalhar comigo. Eu disse-lhe que estava a fazer o festival e não podia. E ele respondeu-me: “Tenho um argumento que talvez te convença — é em Epidauro, no teatro clássico. ” E não dá para dizer não a Epidauro. Foi uma experiência muito forte no entender de uma relação entre o mundo, o momento e o teatro; há um funil que é o teatro, o mundo ao fundo que continua (com carros a passar) e o submundo, porque aquilo está cheio de cobras e escorpiões — têm sempre uma ambulância com antiveneno durante os espectáculos. Parecia que durante três horas todo o mundo cabia ali dentro. Em escalas diferentes, isso vale para todos os espectáculos que procuram uma autenticidade que tem que ver com o momento. Esse trabalho sobre o aqui e agora numa relação directa com o público parece-me a essência do que fazem os Stan e a Christiane Jatahy. E é fascinante. Enquanto programador, sente que o exercício passa por entrar na cabeça do criador, mas também na cabeça do espectador?É uma questão muito delicada. Numa certa altura achei que programava sem pensar em espectadores, mas hoje já não penso assim. É importante evitar antecipar uma reacção do público; por outro lado, uma obra específica fala com vários públicos específicos, porque são vários os públicos de uma cidade como Lisboa. Esse diálogo é fundamental. Enquanto programador é-se muito mediador entre um e outro. Nessa mediação tem de se aprender a entrar na cabeça do espectador, o que não dizer que tem de se proteger a obra ou o espectador. As características do Alkantara, um festival presente em várias salas da cidade, obedecem também a públicos diferentes. Há um público do festival, mas também públicos das salas. Sim, sempre achei muito importante o diálogo com esses teatros. Talvez no início tenha errado ao tentar forçar. Por exemplo, a primeira vez que apresentámos o Toshiki Okada, em 2010, foi no Teatro Nacional D. Maria II, que na altura não tinha nenhuma ligação com este tipo de trabalho. A partir daí tentei desenvolver um diálogo para que um director do Teatro Nacional, ou de outra sala, possa defender o que programamos nesse espaço. Desde que assumiu a direcção do Alkantara, as programações dos teatros em Lisboa mudaram muito. Com a forte aposta internacional das salas sentiu-se obrigado a redesenhar o Alkantara no contexto da cidade?Sim. Há uma paisagem que muda, há vários pescadores que começam a pescar no mesmo lago. Não sei até se os próprios teatros não exageram, às vezes, nesta questão da definição das casas— porque o público não vai ver a sala, vai ver o espectáculo, o que conta é a relação com o artista. Essas reuniões acerca da exclusividade de certas casas com alguns artistas. tenho as minhas questões sobre isso. Porque é contra?Sim, sou contra. Conheço o outro lado, do artista. Quando os Stan cresceram, os teatros de Bruxelas fizeram várias tentativas para criar uma relação exclusiva. E sempre defendemos o modelo de que para cada espectáculo procurávamos a melhor relação com o público. Parece-me mais saudável. Há um risco de jogo sujo entre programadores — que felizmente ainda não temos em Lisboa — ou de uma competição complicada. Apesar de tudo, acho que conseguimos preservar uma identidade no Alkantara. Talvez uma das nossas funções tenha sido a introdução de artistas no circuito da cidade. Quem diria que foram artistas chave?Mais recentemente, a companhia El Conte de Torrefiel ou o Antoine Defoort. De alguma forma, aconteceu também com o Faustin [Linyekula] e os vários Artistas na Cidade. O Toshiki Okada é também um exemplo claríssimo. Foi um trabalho de investir em percursos de artistas, muito mais do que em espectáculos pontuais. Houve alguma preocupação em programar geografias específicas?Não. Foi sempre muito orgânico. Evitei trabalhar com qualquer sistema de quotas — geográfico ou de género. Tive até um conflito na minha primeira edição, em 2010, com o Museu do Oriente, que só queria espectáculos orientais. Ia mesmo contra a ideia do festival colocar os orientais no Museu do Oriente ou os africanos no Africa. Cont, criando uma espécie de segmentação. Como vê os caminhos que a criação portuguesa tomou nos últimos anos?Não sei se tenho uma resposta clara. Há uma diferença grande entre a geração de agora e a geração da Vera [Mantero] e do João [Fiadeiro] que estão há 25 anos nas origens do Danças na Cidade e do Alkantara. O “inimigo” era então muito mais claro. Havia um distanciamento de tudo o que tinha que ver com ballet e que era muito forte nessa geração. Se falarmos hoje com o João dos Santos Martins, por exemplo, essa já não é a questão dele. Mas entre um Tiago Rodrigues, uma Mónica Calle ou um Teatro Praga as diferenças são tão grandes. . . Ainda assim, acho que os três são profundamente portugueses e talvez haja neles um contrariar do sonho ou pesadelo da uniformização dos anos 90, uma espécie de euroteatro. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Vê com preocupação todo este processo de gentrificação e “turistificação” de Lisboa?Acho muito preocupante o que está a acontecer. Continuo a achar Lisboa uma cidade muito interessante, mas sinto a falta da Lisboa que conheci quando cheguei em 2005. Quando existe o risco de uma cidade se tornar artificial, uma versão telenovela, é óbvio que também o festival está ameaçado no seu coração. Mas é ainda mais preocupante ver em perigo o esforço que nós e tantos outros artistas, festivais e associações fizemos para construir e manter este tecido de uma Lisboa contemporânea, aberta e ao mesmo tempo verdadeira. Com a sua saída, que relação pensa manter com o Alkantara e com Lisboa?A transição no Alkantara já foi feita em grande parte. A Carla Sousa já trabalha connosco há muito tempo e o David Cabecinha entrou em Dezembro. Aquilo que o Mark Deputter fez comigo é um exemplo de como quero fazer com eles — estar quando é preciso e poder sair quando eles precisarem de autonomia e espaço para mudarem o que quiserem mudar. A partir de segunda-feira o Alkantara é deles. E Lisboa. . . amo mesmo a cidade. Mas na próxima fase da minha vida com a Christiane Jatahy vou estar muito pouco na Europa, porque entramos logo na criação do próximo projecto —que implica muitas viagens. Neste momento, na organização prática da nossa vida, não sei se a casa é part-time Rio de Janeiro e part-time Lisboa. Passamos a maior parte do tempo no lugar onde trabalhamos. E isso no último ano significou Hamburgo e Paris. Está muito ligado à vida e à obra de Christiane Jatahy neste momento. Uma vez que se trata de uma artista de grande afirmação internacional, que espaço lhe deixa para a sua autonomia criativa?Mais do que autonomia, sinto a necessidade de aprofundar o diálogo que temos a partir de um lugar muito bonito onde a vida e o trabalho se cruzam. E, na área em que trabalho, nunca na minha vida tive as condições para desenvolver uma cenografia como aquelas que tive agora no Odéon [para a criação de Ítaca — A Nossa Odisseia I]. Então não estou muito preocupado com a minha autonomia [risos]. E a relação que ela estabelece com o cinema é um novo mundo que se abre, sinto-me um pequeno rapaz superfeliz.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave género espécie
O etéreo, o terreno e o fantástico no final da temporada Gulbenkian
Três compositores da mesma geração exibiram as suas fortes personalidades criativas num concerto bem demonstrativo da vitalidade e do poder de comunicação da criação musical do nosso tempo. (...)

O etéreo, o terreno e o fantástico no final da temporada Gulbenkian
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.4
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Três compositores da mesma geração exibiram as suas fortes personalidades criativas num concerto bem demonstrativo da vitalidade e do poder de comunicação da criação musical do nosso tempo.
TEXTO: O concerto final da temporada Gulbenkian deu a conhecer obras de três compositores da mesma geração (todos nascidos em 1977), oriundos de diferentes países e detentores de fortes personalidades criativas: Aeriality, da islandesa Anna Thorvaldsdottir; Anthology of Fantastic Zoology, do norte-americano Mason Bates; e Step Right Up, para piano e orquestra, do português Vasco Mendonça, composição em estreia mundial encomendada no âmbito do programa SP-LX, a parceria estabelecida entre a Gulbenkian e a Orquestra Sinfónica do Estado de São Paulo para promover a nova música dos dois países. O resultado é bem demonstrativo da vitalidade da criação musical do nosso tempo e do forte poder de comunicação que a música contemporânea pode exercer junto do público, ao contrário do que às vezes se pensa. Para o sucesso contribuiram também a direcção do jovem maestro Benjamin Shwartz e a Orquestra Gulbenkian, bem como, na peça de Vasco Mendonça, um solista de excepção: o pianista Roger Muraro. Maestro: Benjamin Shwartz Solista: Roger Muraro (piano)Obras: Anna Thorvaldsdottir, Vasco Mendonça e Mason BatesEstímulos extra-musicais como a natureza, referências visuais e literárias (nomeadamente o Manual de Zoologia Fantástica, de Jorge Luis Borges, no caso de Bates), cenas do quotidiano e mundos imaginários, etéreos ou terrenos serviram de de fermento para a criatividade destes compositores. Aeriality, de Anna Thorvaldsdottir, constrói-se a partir de texturas sonoras flutuantes que se sobrepõem em camadas e vão sofrendo metamorfoses. O ouvinte é confrontado não com a individualidade tímbrica de instrumentos ou naipes específicos, mas com massas sonoras que fluem entre diversos grupos instrumentais criando campos harmónicos de denso cromatismo (incluindo o recurso a quartos de tom), e que são entremeadas por momentos mais líricos. A subtileza com que a compositora manipula a orquestra ao nível da cor e da luminosidade é demonstrativa de um sólido métier posto ao serviço de uma obra fascinante. Também em Step Right Up Vasco Mendonça trata a orquestra como um instrumento global, mas de um modo radicalmente diferente. Enquanto na peça de Thorvaldsdottir se oscila entre o intangível e o terreno em vastas paisagens sonoras, remetendo para o jogo de palavras do título (“aerial” e “reality”), o compositor português opta pela centralidade dos elementos rítmicos e percussivos, levados por vezes a um exagero obsessivo, numa intrincada teia de relações que exige grande coordenação rítmica e dinâmica: uma prova de fogo que o experiente Roger Muraro e a Orquestra Gulbenkian, sob a direcção atenta de Shwartz, superaram, ainda que alguns detalhes possam vir a ser polidos com vista à futura gravação para a Naxos. Em especial no primeiro e no último andamentos, já que o segundo é mais introspectivo e explora atmosferas mais delicadas e sombrias, atinge-se uma incisiva materialidade do som, percorrida por uma energia visceral, que encontra eco no título e na evocação de rituais africanos que também serviu de referência ao compositor. Conforme Vasco Mendonça referiu na entrevista ao PÚBLICO publicada a 15 de Junho, Step Right Up é uma expressão que significa “juntem-se todos” e que “tem a ver com música de rua”. Em grande parte da obra impera a dimensão do piano como instrumento de percussão, por vezes através de gestos musicais breves que exigem sincronização milimétrica com as forças orquestrais. Apesar deste tratamento anti-romântico do piano e das suas relações com a orquestra, o virtuosismo não está ausente, pelo que Roger Muraro pôde mostrar as suas multifacetadas qualidades, defendendo com brio uma obra que aspira a um lugar de destaque na produção de Vasco Mendonça, cujo percurso tem atingido crescente visibilidade internacional. Depois do intervalo, Benjamin Shwartz e a Orquestra Gulbenkian deram vida de forma sugestiva a Anthology of Fantastic Zoology, de Mason Bates, também conhecido pela sua carreira como DJ. Das três obras em programa é a que apresenta uma linguagem mais convencional, mas esta é usada com habilidade na construção de um universo musical lúdico quase pictórico. Descrita pelo compositor como “um compêndio de criaturas míticas” (na linha da obra de Borges) e como “uma espécie de Carnaval dos Animais psicadélico”, a peça procura fazer o retrato sonoro de ninfas, duendes, sereias, do grifo ou do delirante A Bao A Qu, que serpenteia em torno de uma torre, entre outras criaturas fantásticas, e teatralizar as suas acções, atingindo um ponto alto no momento em que “um animal do tamanho de uma ilha” devora os restantes seres. A exploração do espaço (com recurso a violinos fora do palco mas também a diálogos e combinações tímbricas associadas a cada uma das personagens) e um tratamento quase cinematográfico dos vários elementos sonoros permitem facilmente ao ouvinte imaginar um exuberante filme de animação.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave espécie animal
O balão deste João também sobe, sobe pelo ar (e só pára na Tanzânia)
Acorda para voar. João Rodrigues é piloto de balões de ar quente no Parque Nacional do Serengeti, onde vive. Para fugir aos leões, hipopótamos e leopardos que lhe batem à porta de casa, faz-se de pássaro todos os dias. (...)

O balão deste João também sobe, sobe pelo ar (e só pára na Tanzânia)
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Acorda para voar. João Rodrigues é piloto de balões de ar quente no Parque Nacional do Serengeti, onde vive. Para fugir aos leões, hipopótamos e leopardos que lhe batem à porta de casa, faz-se de pássaro todos os dias.
TEXTO: Rsh, rsh, rsh. Duas da manhã e o ruído ritmado, como se alguém estivesse a comer batatas fritas do outro lado da janela, não deixava João Rodrigues voltar a adormecer. Rsh, rsh, rsh. Deitado na cama, olhos abertos, apercebia-se de pausas na cadência, separadas por intervalos mais ou menos regulares. Os silêncios duravam o tempo de mergulhar a mão na embalagem de plástico e pescar mais batatas. Depois, outra vez o barulho mastigado. Era a primeira noite do piloto de balões de ar quente na Tanzânia. E foi dessa inocência que a curiosidade se aproveitou para o seduzir até à janela. Lá fora, a savana sem fim banhada pelas estrelas. Mas os olhos congelaram num vulto “enorme”. Correu a cortina. E lá estava ele. Pernas muito curtas, a pele quase nua. Gigante. Um hipopótamo. “Um hipopótamo a comer a erva junto de minha casa”, conta, a rir-se da improbabilidade de a cena se repetir na relva que está agora a calcar, no Fundão (ou então a troçar de um hipopótamo a comer um pacote de batatas fritas). “Estive ali um bocadinho a ver, curioso, porque era a primeira vez, e fui dormir outra vez. ” Mas a savana não se foi deitar com ele. “E, de repente, acordo com um barulho no telhado de zinco. ” Na manhã seguinte, perguntou o que teria sido. Responderam-lhe, distraídos: “Ah, foi um leopardo a saltar de uma árvore, a caçar. ”Assim são as noites no Seronera, no Parque Nacional do Serengeti, na Tanzânia, África, onde João Rodrigues, 60 anos, um dos primeiros dois pilotos a ter licença em Portugal, mora durante alguns meses do ano (já tem novamente regresso marcado para 29 de Maio e estadia até 1 de Novembro). Faz safaris a bordo de um balão de ar quente. Palmilha o parque todos os dias, antes de os próprios dias nascerem. É “um sonho”, que repete todas as alvoradas. Dura uma hora. Depois, o sol levanta, ele pousa e “amanhã há mais”. “Poder voar todos os dias”: é uma boa razão para escolher a Tanzânia como destino? Se não for, João pode rapidamente pensar em mais. E a leveza com que as atira desarma qualquer um. “Porque aquilo lá é lindo, maravilhoso. ” Assim, simples. A “aventura em África” que o piloto desejava desde que se perdia nas fotografias da revista da modalidade, que assinou mal terminou o curso, em 1993. Fez finalmente as malas em 2008 e ficou dois anos. Voltou a fazê-las, desta vez para a Turquia, onde já tinha estado em 2006 e 2007 (“Oh, as formações rochosas da Capadócia…”). Mas a “instabilidade política e os atentados terroristas começaram a afastar os turistas” e o mercado das viagens de balão de ar quente esvaziou. Em 2016, teve de encontrar uma nova corrente. Voltou a contactar a empresa na Tanzânia e esperou por uma resposta positiva em Portugal (“as nossas paisagens e as flores. . . ”), onde integra a organização do Festival Internacional de Balões de Ar Quente (FIBAQ), no Alentejo. E, entre voos, o convite chegou: o português, natural de Mafra, deverá ficar no Serengeti até ao final de 2020, espera, com um sorriso. A seguir? Ainda vai ter de procurar a resposta nas nuvens. “Eu gostava de voar…”. Pausa, propositada, como se o onde pouco importasse. “No Botswana. No Vietname. No Canadá”, continua. Mas de volta à planície imensa do Serengeti. O lugar onde a terra “continua até ao infinito”. João vive a duas horas da entrada do parque nacional. Ao Seronera, chega-se ou de carro ou de avião. “Há mercado para os balões” — com cada voo a rondar os 500 euros por pessoa, enquanto por cá uma hora no ar custa à volta dos 150 — e, tirando algumas “vezes que não se vê nada, só umas lebres”, João sobrevoa leões, búfalos, hipopótamos, girafas, elefantes (“a maior manada que vi tinha na ordem dos 250”), “milhares de zebras”. Durante a grande migração “o número estimado de gnus no parque flutua entre o milhão e trezentos mil e o milhão e seiscentos mil, distribuídos por três corredores”. “Posso mostrar-lhe uma foto?” Parece impossível, montagem. Mas é a “vida, em acção”. Selvagem. O parque africano “é dos poucos do mundo que não tem vedações”, nem “junto às casas” (e daí o hipopótamo e o leopardo). Num balão, “há tempo para apreciar, porque é um meio aéreo que se desloca muito devagar”. Imagine: está num miradouro. “Ei, que paisagem lindíssima. Então agora imagine deslocarem-se à altura do miradouro, ao longo da paisagem. ”Costuma dizer que é “dos poucos touros que tem ligação com o ar em vez de com a terra”. Isto porque, antes do balão, já se atirava de pára-quedas. Recuámos. O ano era 1992. João Rodrigues era militar pára-quedista e voluntariou-se para integrar uma equipa que iria inovar as demonstrações de queda-livre que faziam quase todos os fins-de-semana, em várias zonas do país, em acções de recrutamento. Em vez dos saltos, “que ficavam caros”, iriam levar um balão, que podia ficar preso por cordas e “envolver as populações”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Um ano depois, ele e Aníbal Soares, os dois pára-quedistas seleccionados, concluíram a licença com a ajuda de um inglês que tinha um balão, no Alentejo. “Acabámos por ser os primeiros pilotos de balão de ar quente portugueses”, diz, “e a partir daí estivemos sempre ligados aos balões”. Juntos fundaram a primeira empresa portuguesa dedicada ao balonismo (Publibalão) e a primeira escola do país para pilotos de balões de ar quente, sediada em Fronteira. “Eu podia dizer que, tirando muito raras excepções, os indivíduos que andam a voar em Portugal foram nossos alunos. ”Ao recuarmos mais ainda, João Rodrigues queria pilotar aviões. Foi com a mesma idade que costumava olhar para a chaminé da olaria que tinha perto de casa dos avós. “Aquele fumo sai com tanta força, que se eu pusesse um balde voltado ao contrário ele voava”, pensava. “Troca-se o balde por um cesto”, e o que é isto, se não o “princípio dos balões e do ar quente?” Era o princípio de um sonho, que agora anda por aí, a voar. Perdão, a flutuar. Eu vou às histórias do Aladino e do tapete mágico, porque dá a ideia que estamos a flutuar, não é? Na realidade, não deveríamos chamar voar ao que o balão faz, deveríamos chamar flutuar. O balão flutua, entra na massa de ar e desloca-se com ela. Uma coisa é voar por desporto, de vez em quando. Outra coisa é gostar tanto e querer voar e voar todos os dias. É o que se passa comigo. Eu vivo a vida num sonho. Porque para muita gente voar de balão é um sonho e eu vivo esse sonho todos os dias. Espero pelo próximo voo.
REFERÊNCIAS: