Redes sociais vs. media profissional: “Vídeo, mentiras e hate speech”
Se o trollismo retira qualidade à democracia, a censura por interposta pessoa asfixia-a de morte lenta. (...)

Redes sociais vs. media profissional: “Vídeo, mentiras e hate speech”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento -0.22
DATA: 2018-12-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: Se o trollismo retira qualidade à democracia, a censura por interposta pessoa asfixia-a de morte lenta.
TEXTO: Na última década criou-se o mito de que a chamada “democracia digital”, tecida pelas redes sociais, iria oxigenar uma democracia representativa em crise. Com as redes teria nascido um universo de opinião influente, novos controlos difusos ao poder político e um diálogo direto entre governantes e governados (Saskia Sassen). A “democracia digital” modernizaria a “democracia deliberativa” de Habermas, legitimando decisão política pelo debate. No pico de um ciclo de entusiasmo, em que alguém defendeu que o Twitter deveria receber o Nobel, alguns céticos como Evgeny Morozov alertaram para a manipulação das redes por ditaduras ou serviços secretos de grandes potências. Outros, como Vallespin, observaram que sendo numerosas as informações falsas, muitos cidadãos conviveriam bem com essa falsidade para fulminar adversários. Na verdade, a “democracia digital” pouco teria de democrático, sendo antes uma manifestação do pluralismo social e político ampliada por uma tecnologia neutra, sendo possível usar o ciberespaço, tanto para derrubar ditaduras como para permitir a estas perseguir adversários; tanto para denunciar a corrupção como para dessacralizar o poder; e tanto para defender as liberdades como para violar o direito à privacidade. Em 2016, tudo mudou na “lua de mel” do establishment político e dos media com as redes sociais quando estas migraram das primaveras árabes ou do movimento “Occupy” para a direita populista. Com o impacto das redes no triunfo do “Brexit”, de Trump, de Putin, dos partidos populistas europeus e agora com Bolsonaro no Brasil, deflagrou a pandemia do trollismo (inspirado no troll, um mostrengo das lendas célticas), e que consistiria na queda das redes sociais nas mãos dos que postam notícias falsas e discursos de ódio. Ora a associação do trollismo à direita populista foi feita pelos media do mainstream depois do êxito de Trump e Bolsonaro que, frente a uma media hostil, usaram as redes para comunicarem com os eleitores, sem filtragem jornalística. O trollismo no ciberespaço ameaça a democracia? Para os media profissionais, o trollismo ameaçaria a democracia porque as redes seriam manipuladas por forças ultraconservadoras para difundir fake news e hate speech (discurso de ódio), substituindo uma comunicação social isenta por uma informação alienante do eleitor. Embora acompanhemos Morozov no seu ceticismo sobre as virtudes das redes, entendemos que o trollismo não tem um único viés ideológico. As campanhas norte americana e brasileira demonstram que as fake news proliferaram à esquerda e à direita. Se na eleição de 2016 nos EUA eram falsas as notícias sobre a doença grave de Hillary Clinton e a sua substituição por um duplo, também foi falsa a notícia de que apoiantes de Trump teriam gritado num comício “odiamos muçulmanos, odiamos negros, queremos o nosso País de volta em 2018”. Também no Brasil, não havendo dúvida que a direita lançou uma campanha violenta contra o PT nas redes, não é menos verdade que foram desmontadas como falsas as notícias de que partidários de Bolsonaro teriam assassinado um conhecido capoeirista da Baía e gravado uma suástica na pele de uma jovem. Fake news e hate speech não têm marca ideológica exclusiva. Tão pouco o trollismo põe em causa a democracia. A censura ameaça a democracia porque impede a liberdade de expressão e o acesso à informação, em tempo eleitoral. O trollismo é, ao invés, um abuso censurável dessa liberdade de expressão, que se contraria através da sua denúncia nas redes, nos media e em observatórios e se pune nos tribunais quando incita ao crime. É certo que afeta a qualidade da democracia quando condiciona uma fatia elevada do eleitorado, se bem que tal suceda também com as sondagens eleitorais falhas ou manipuladas (que ninguém põe em xeque já que são usadas pelos media). Redes vs. imprensa profissional. Os media profissionais generalistas, sem prejuízo de criarem jornais digitais que interagem com redes sociais, contrapõem a estas os seus pergaminhos de liberdade, rigor e isenção. E é um facto que uma sociedade livre supõe uma imprensa profissional, pois esta tem uma maior exigência na filtragem de notícias, na acuidade dos conteúdos e na sua controlabilidade. Mas seria uma fábula erigi-la a guardiã sacra da verdade e da privacidade e isentá-la do pecado do hate speech. A violação da privacidade e do bom nome é feita quotidianamente em media prestigiados, como a CNN, que dedicou um painel de discussão sobre as partes íntimas de Trump. Isenção, equidistância e rejeição do “discurso de ódio” é algo que também faltou quando a maioria dos media americanos ergueu uma “firewall” contra Trump em plena campanha eleitoral; quando na CNN o Presidente é chamado de racista, animal ou nazi; ou quando o editor do Die Zeit alemão escreveu que para se evitar a catástrofe populista se imporia um assassinato na Casa Branca. No Brasil, os media largaram uma maré de notícias falsas ou não comprovadas, como as de que Bolsonaro teria ameaçado de morte a ex-mulher; que teria votado no Congresso contra deficientes; e que haveria financiamento ilegal da sua campanha com propaganda massiva, robotizada no WhatsApp. Há muito que os media profissionais formam consciências. Hoje, são forçados a sobreviver com encargos salariais, oscilações de tiragem ou audiências, concorrendo com as redes, que são veículos informativos incontroláveis e de baixo custo onde muitos cidadãos, bem ou mal, fazem, com um clique, uma escolha da informação do seu agrado, a partir do Facebook ou do WhatsApp. A vitória, para muitos imerecida, de populistas, operada pela comunicação em rede, foi inesperada e amarga, pois significou não apenas a derrota do establishment político, mas também a da media profissional que tenazmente se lhes opôs. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Hoje, os temores reais dos partidos tradicionais e dos media, ante o provável avanço populista nas eleições europeias de 2019, criaram a tentação de restringir a liberdade de expressão nas redes. Só que, em democracia, cada pessoa é livre de aceder às notícias que deseja e no formato que entenda, tanto as fidedignas como as radicalizadas e até disparatadas que os algoritmos indicam ser da sua preferência. Essa liberdade, mesmo que menos esclarecida, não pode ser suprida por um Big Brother, pois terminou o tempo em que os media proclamam: “nós decidimos o conteúdo e vocês lêem. ”É certo que o ciberespaço, pelo seu relevo político e securitário, não pode ser uma “terra sem lei”, devendo haver regulação. Só que é duvidoso que a mesma possa ter como paradigma a Lei Alemã (NetzDG de junho de 2017), que tornou as firmas gestoras das redes, sob pena de pesadas multas, responsáveis pela remoção de conteúdos “ilícitos”, como fake news e hate speech (que passou a ser entendido num sentido perigosamente lato), gerando um sistema de censura indireta, como é o caso do Facebook que contratou um exército de “moderadores”. Ora, se o trollismo retira qualidade à democracia, a censura por interposta pessoa asfixia-a de morte lenta. O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
“Erradicar a fome é muito barato”
Produzir mais alimentos “não é a prioridade” num planeta em que a fome “está circunscrita” e a obesidade começa a ser um problema. José Graziano da Silva, Director-Geral da FAO e o responsável pelo programa Fome Zero, no Brasil, esteve em Portugal e deixou uma mensagem: quem alimenta o mundo são as grandes agro-indústrias e “temos que mudar isso”. A resposta está na agricultura familiar. (...)

“Erradicar a fome é muito barato”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.52
DATA: 2018-07-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Produzir mais alimentos “não é a prioridade” num planeta em que a fome “está circunscrita” e a obesidade começa a ser um problema. José Graziano da Silva, Director-Geral da FAO e o responsável pelo programa Fome Zero, no Brasil, esteve em Portugal e deixou uma mensagem: quem alimenta o mundo são as grandes agro-indústrias e “temos que mudar isso”. A resposta está na agricultura familiar.
TEXTO: O director-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o brasileiro José Graziano da Silva, esteve em Lisboa para participar na reunião de alto nível da Comunidade dos Países de Expressão Portuguesa (CPLP), no final da qual foi assinada a Carta de Lisboa pelo Fortalecimento da Agricultura Familiar. É nos agricultores familiares que está a resposta para os problemas da alimentação no mundo, defende José Graziano, que foi o responsável pela implantação do programa Fome Zero no Brasil. A fome está hoje circunscrita a zonas de conflito e de alterações climáticas profundas, pelo que a obesidade é cada vez mais uma preocupação. É preciso alimentar uma população crescente, sim, mas aumentar a produção de alimentos “não é a prioridade”, afirma o responsável da FAO. O mundo alimenta-se mal. “Não sabemos o que comemos. ”Durante a sua visita referiu-se ao aumento da obesidade no mundo. É um problema começa a preocupar a FAO mais que o da fome?Eu não diria que preocupa mais. Ele ilustra o problema da má alimentação, que vai desde o não comer até ao comer demais. Neste momento, nos países de renda média e alta preocupa-nos muito mais o problema da obesidade do que o da fome. O problema da fome está bem circunscrito em três grandes áreas: os países em conflito, guerra civil, etc. , como é o caso Iémen e de alguns países africanos; está localizado em áreas afectadas pelos impactos do clima, particularmente secas prolongadas, como no Leste de África, muito afectada nos últimos três anos em regiões como a Somália ou o Quénia; e está localizado em bolsões de pobreza, de miséria extrema, típicos de países não só em desenvolvimento, mas também com um desenvolvimento muito desigual. Fora isso, há uma epidemia geral de obesidade. Por vezes, até na mesma família em que há um subnutrido, há um obeso. Afecta ricos e pobres e é um problema que vem da mudança de hábitos alimentares que tivemos nos últimos 40, 50 anos. Passámos da comida feita pela avó ou pela mãe para uma comida terceirizada, feita pelos outros, que não sabemos o que tem. Não sabemos o que comemos e isso leva-nos a ingerir muito mais sal, açúcares, muito mais gorduras saturadas do que necessitamos. Precisamos de recuperar o domínio da alimentação, saber o que comemos, é um problema de educação alimentar, mas também um esforço por comer de uma maneira mais saudável, mais frutas, verduras, mais produtos frescos e comer mais o que estamos acostumados a comer da nossa cultura, a comida nacional, e não o fazer apenas em dias de festa. A população mundial continua a crescer e é preciso respostas para alimentar esse número de pessoas. Nas últimas décadas acreditámos que essas respostas estavam na revolução verde, na agro-indústria, nos avanços tecnológicos. Neste momento, a FAO alterou a forma de olhar para o problema?É verdade. Desde a revolução verde, nos anos 60 e 70 do século passado, que o problema da produção tem sido equacionado de melhor forma que o do consumo. Neste momento, a fome não se explica pela falta de produção de alimentos mas sim pela falta de acesso aos alimentos. Não é que não haja produto, não há dinheiro para comprar o que comer. As pessoas não têm emprego, têm rendimentos muito baixos, não conseguem ter uma dieta saudável. Mas sobram alimentos. O mundo hoje deita fora um terço do que produz, aproximadamente. A ideia de que temos de multiplicar a produção de alimentos não é correcta?Não é a prioridade do momento. Sou muito cauteloso ao dizer que não há um problema de oferta, porque há. Em lugares muito localizados, na África subsariana, por exemplo, vários países têm um problema de conseguir produzir a quantidade de alimentos de que necessitam para a sua população, mas não é uma situação generalizada, são problemas localizados em regiões muito particulares. Temos a tecnologia dominada para permitir a produção dos alimentos de que precisamos, e de alimentos saudáveis. A situação hoje é completamente diferente da dos anos 60 e 70. A revolução verde cumpriu esse papel de equacionar o problema da produção de alimentos. Mas sempre que a gente resolve um problema, em geral causa outros. A revolução verde trouxe impactos no meio ambiente, o excessivo uso de químicos, e, sobretudo, essa concentração da produção em alguns alimentos. Hoje temos quatro, cinco, seis produtos que respondem por 80% do que nós consumimos: o arroz, o milho, o trigo, a soja e a batata. Não pode ser. Nós temos 36 mil plantas e animais que fornecem alimentação ao Homem, não podemos estar concentrados em cinco da maneira que estamos. Hoje a FAO defende o reforço da agricultura familiar, o que choca com o poder e os interesses da grande indústria alimentar. Como é que se consegue resolver esse dilema?Nós desenvolvemos sistemas alimentares fortemente concentrados nas cadeias agro-industriais. Agora quem alimenta o mundo são as grandes agro-indústrias. Temos de mudar isso. E é um esforço de recuperação porque a alimentação é parte da nossa identidade. Eu venho a Portugal e sei duas coisas fundamentais: primeiro, que vou falar português, segundo, que vou comer bacalhau, que é parte da cultura e tradição portuguesa mesmo não sendo um peixe daqui. Alimentação é o que nós somos, o que a nossa família é, o que a nossa aldeia, a nossa região é. Recuperar esse poder de interiorizar de novo a alimentação, que foi externalizada e banalizada, é parte desse projecto de comer melhor e comer saudável. Um exemplo bom é a questão das sementes — as directrizes da FAO falam da importância das sementes tradicionais, mas a legislação europeia vai num sentido contrário. Não existe, entre a Carta de Lisboa que acaba de ser assinada pelos países da CPLP, e as regras da Política Agrícola Comum (PAC) uma contradição?Hoje já temos implantados em praticamente todos os países do mundo bancos de sementes tradicionais, que estão a ser preservadas, não só localmente mas também em Svalbard, na Noruega, temos um silo em que preservamos todas as espécies do mundo. Há um esforço de recuperar esse conhecimento ancestral, até porque dependemos disso no futuro. Com todas as mudanças climáticas, vamos precisar de revisitar todas essas variedades para termos sementes mais resistentes à seca, ao calor, ao excesso de água em algumas regiões. Esse esforço muitas vezes obriga a voltar à origem genética dessas plantas e animais. Isso é parte do desenvolvimento científico e a FAO defende que a preservação da biodiversidade é fundamental. Sente que há vontade política para isso? Sendo que ela passa possivelmente por alterações na PAC ou nas políticas e legislações de outros países para acomodar esta nova visão?Há interesses muito fortes consolidados em torno do actual sistema agro-alimentar. Mas também há contradições tão evidentes, como é o caso da obesidade, que se vão impondo a esse poder existente. Já vemos contestações várias, médicos, advogados, agrónomos, economistas que se juntam para pedir uma alteração desse sistema agro-alimentar existente. Acredito que isso comece a abrir oportunidades de novas legislações. Portugal está a criar um estatuto da agricultura familiar, um estatuto do direito à alimentação, isso tudo são progressos que estamos a ver em várias partes do mundo. O caso brasileiro é um exemplo que tem citado muitas vezes e ao qual está profundamente ligado. Disse que há medidas do programa Fome Zero que estão a ser revertidas neste momento. Existe o risco de se voltar a situações anteriores, eventualmente até do regresso do Brasil do mapa da fome?O Brasil está a passar por uma crise social muito profunda, uma crise que tem muitas dimensões. Uma delas é a regressão de uma série de programas sociais que foram implantados e que garantiram a erradicação da fome em menos de uma década. A persistir essa regressão, sem dúvida cria-se uma oportunidade de o Brasil voltar ao mapa da fome. Mas não acredito que isso seja uma fatalidade histórica. O Brasil foi o primeiro país nos tempos modernos a erradicar a fome. Um país de mais de 200 milhões de habitantes em menos de dez anos ter tirado 40, 50 milhões de pessoas da pobreza extrema, da miséria e da fome… não se reverte isso com facilidade. O Brasil vai voltar a crescer este ano, o que já é um sintoma promissor, acredito que esses direitos conquistados pelo cidadão brasileiro de comer dignamente serão direitos reclamados nas eleições que virão por todos os movimentos sociais que o Brasil tem hoje organizados. Acho difícil o país voltar ao mapa da fome simplesmente por uma crise conjuntural. Mas o Brasil conseguiu implementar todas essas medidas num momento particularmente positivo da sua economia. Países mais pobres conseguirão fazer isso? São medidas que custam dinheiro. Custam muito pouco. Erradicar a fome é muito barato. A estimativa no caso do Brasil, que é o programa mais amplo que nós temos hoje no mundo, é que ele custa meio por cento do PIB. É muito pouco dinheiro. Estamos a falar do programa de compras públicas [com o qual o Estado compra a produtores locais para abastecer cantinas públicas, por exemplo], da Bolsa Família?Todos os programas, a reforma por tempo de idade e não por tempo de serviço, um conjunto de medidas que foram implementadas no Brasil e que levaram à erradicação da fome. É muito barato. A comida, de todos os elementos fundamentais da vida, é a mais barata. Não é um problema de custo, é um problema de prioridade política. Mesmo os mais pobres dos países podem pôr em funcionamento programas para erradicar a fome. Voltando à questão da fome severa, apesar de se dever sobretudo a conflitos ou alterações climáticas, ela cresceu nos últimos dois anos. O que é que levou a essa inversão no caminho positivo que se estava a conseguir fazer nos anos anteriores?Os anos de 2015 e 2016 foram anos atípicos na série histórica que a FAO trabalha. A reversão veio sobretudo em África e pelos conflitos que se multiplicaram, como a guerra do Sudão do Sul, no Congo, mas também na Somália, o impacto das secas na Etiópia, na Somália, em toda a costa leste africana em 2015. Em 2016 houve o acentuar do problema, com o agravar das secas e dos conflitos. O que eu projecto é que em 2018 exista um optimismo económico. O mundo deve voltar a crescer, tanto o mundo desenvolvido como o mundo em desenvolvimento. Isso gera emprego, oportunidades de trabalho, estou optimista que vamos ter um ano melhor do ponto de vista climático, económico, e se tivermos um ano melhor do ponto de vista político, podemos resolver muitos problemas. O que é que o leva a estar optimista em relação ao clima?Temos uma capacidade de projecção até seis meses e este ano, por enquanto, os sinais do El Niño em África, por exemplo, não são tão fortes quanto os do ano passado. Se ocorrer, o El Niño não será da magnitude e intensidade que tivemos nos dois, três anos anteriores. E também porque os países aprenderam. Não é preciso ter uma seca e ter fome. Não se pode evitar a seca, mas pode evitar-se que a seca seja transformada em fome se houver políticas sociais contracíclicas para enfrentar o problema. Os países aprenderam isso, existe já um financiamento do Fundo do Clima que está acessível a muitos países. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Em Portugal, além dos efeitos das alterações climáticas, há a questão da desertificação do interior. Acredita que é possível reverter esse cenário?Portugal é um bom exemplo, que agora começa a legislar e a monitorizar. Nós estamos a furar o planeta em muitos lugares para tirar água, mas isso não pode acontecer. Um dia essa água armazenada no subsolo acaba, precisamos fazer um melhor uso dela. As tecnologias hoje existem, pode-se irrigar com muito mais eficiência, existe a técnica gota a gota, que usa mil vezes menos água que a de inundação. É uma tecnologia que está disponível e tem de ser implementada, tem de se proibir a rega por inundação. Para isso, é preciso financiar os agricultores, principalmente os mais pobres, os familiares, para que possam aceder a essas tecnologias. É aí que estamos, um passo pede outro, mas estamos caminhando na direcção certa. Portugal é um grande exemplo, hoje, de como usar as directivas da PAC para ajudar os menos favorecidos, os mais pobres, fazendo uma discriminação positiva para superar a diferença que existe.
REFERÊNCIAS:
Era uma vez uma “escola modelo” que deixou de existir
A EB123/PE com creche do Curral das Freiras, situada no interior profundo da Madeira, tem figurado entre as melhores escolas do país nos rankings nacionais. Este ano lectivo, deixou de ter autonomia. (...)

Era uma vez uma “escola modelo” que deixou de existir
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-05 | Jornal Público
SUMÁRIO: A EB123/PE com creche do Curral das Freiras, situada no interior profundo da Madeira, tem figurado entre as melhores escolas do país nos rankings nacionais. Este ano lectivo, deixou de ter autonomia.
TEXTO: No Curral das Freiras, na escola que em 2015 foi, entre as públicas, a melhor a Português ficando às portas do top10 a Matemática, a campainha continua a não tocar. Mas agora, conta Adriana Sousa, apressada para mais uma aula de um dia que já vai longo, as aulas começam mesmo à hora certa. “Este ano as coisas estão diferentes. É tudo mais rápido. Mais apressado. Mais cansativo. ” Adriana vem a descer a rua inclinada. Na mão, um pacote de bolachas aberto. Saiu da escola para lanchar, porque, diz numa voz que é quase um lamento, mas que é sobretudo uma constatação, “até no bar” a escola é outra. E é. Juridicamente falando, a EB123/PE c/Creche do Curral das Freiras, que serve as cerca de 1500 pessoas que chamam casa àquela pequena vila encrustada no maciço interior da Madeira, já não existe. No final de Junho, já o ano lectivo 2018/19 estava em preparação, a Secretaria Regional de Educação decidiu fundir aquele estabelecimento de ensino, situado no concelho de Câmara de Lobos, com a EB23 de Santo António, no Funchal. O procedimento, burocrático, enquadrado na reorganização da rede escolar da região autónoma, esvaziou a autonomia de uma escola que, em cinco anos, saltou dos lugares mais baixos do ranking regional para as posições cimeiras do país. A decisão, formalizada um dia depois da direcção da escola encabeçada por Joaquim Sousa ter sido reeleita com 75% dos votos, apanhou todos de surpresa. Professores, alunos, sindicato, pais e opinião pública não entendem a forma abrupta como o processo se desenrolou. Recolheram-se assinaturas para um abaixo-assinado. Escreveram-se cartas para o Presidente da República, para chefe do executivo madeirense, para os partidos no parlamento regional. O Sindicato dos Professores da Madeira (SPM) contestou a decisão junto do Tribunal Administrativo e Fiscal da região – além da do Curral das Freiras, também a Escola da Fajã da Ovelha foi extinta –, mas a tutela manteve-se intransigente. O secretário regional de Educação, Jorge Carvalho, assinalou mesmo o início do ano lectivo nestes dois estabelecimentos. O antigo director da escola, Joaquim Sousa, que foi o rosto mais visível da transformação daquela comunidade educativa, também não compreende. Mesmo antes desta polémica, já estava envolvido noutra. Em Abril foi alvo de um processo disciplinar instaurado pela Inspecção Regional de Educação, motivado por questões administrativas relacionadas com a gestão da escola. “O processo é de vontades, não de factos”, responde ao PÚBLICO, dizendo que tudo o que é acusado é “praxis” na generalidade das escolas. Para ele, o processo disciplinar e a extinção da escola estão relacionados. “Os órgãos da escola não foram auscultados, os representantes eleitos dos pais e dos alunos também não. Os dados enviados ao município estavam errados e, lá está, a decisão foi tomada 24 horas após a minha vitória eleitoral, através de uma adenda a um documento que estava fechado”, descreve, dizendo que embora não queria “acredita em motivações pessoas”, não esquece o ostracismo com que escola foi votada pela tutela regional, quando começou a ser premiada em termos nacionais. Também o SPM estranha. “É difícil desassociar estes factos [processo disciplinar e extinção da escola], quando no primeiro documento que recebemos não existia referencia à escola do Curral das Freiras e, 24 horas depois, já constava como um estabelecimento a extinguir”, admite ao PÚBLICO o presidente do sindicato Francisco Oliveira, aguardando que o tribunal suspenda este e outros procedimentos, por, argumenta, não terem respeitado os preceitos legais. Sobre o processo disciplinar, a secretaria regional “não faz qualquer comentário”, como não se pronuncia sobre a “criação da ideia, na praça pública, de que há perseguição e não matéria de facto a apurar”. Este, contabiliza ao PÚBLICO o gabinete de Jorge Carvalho, é um dos 25 processos instaurados a professores nos últimos quatro anos. “Nos casos anteriores não houve qualquer declaração dos visados relativamente à possibilidade desses processos configurarem qualquer tipo de perseguição pessoal. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A decisão de fusão da EB123/PE c/Creche do Curral das Freiras “não teve qualquer relação” com o processo disciplinar, significando, nas contas da secretaria regional, uma redução comparativamente ao ano lectivo anterior de cerca de metade do número de professores. Um dos ‘reduzidos’, foi o próprio Joaquim Sousa. “Fui banido da escola do Curral. Não tive escolha. A direcção da escola decidiu que eu não poderia continuar a trabalhar no Curral”, afirma ao PÚBLICO. Na escola, fala novamente Adriana Sousa, antes de desaparecer pelo portão, correndo para a aula do CEF de Informática, sente-se a falta do professor Joaquim. “Não tenho nada contra que está agora, mas o outro director estava sempre presente, sempre disposto a ajudar”, diz. A amiga, colega de turma, abana a cabeça que sim. Liliana Melim queixa-se das mudanças. Das aulas que começam mais cedo e acabam mais tarde, em linha com o horário da escola de Santo António. De ter menos tempo para almoçar. Do aumento dos preços no bar da escola. Mesmo sem toques, a campainha já tinha sido abolida para responsabilizar os alunos, os horários mudaram. Antes, conta Liliana, as aulas acabavam no máximo às 17h45, e todas as horas estavam alinhadas com as carreiras de autocarros. Agora, o tempo lectivo vai até às 18h20. “Deixamos de ter tempo para as extras-curriculares, porque acabam muito tarde”, lamenta, dizendo que muitos colegas têm desistido do futebol e de outras actividades. “Fica muito tarde para nós. ”
REFERÊNCIAS:
De onde veio o extremismo islâmico que ameaça Moçambique?
Há meses que se registam vários ataques com carimbo radical islâmico no Norte de Moçambique. Só agora as atenções se viram para este problema que nasceu de dentro. (...)

De onde veio o extremismo islâmico que ameaça Moçambique?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há meses que se registam vários ataques com carimbo radical islâmico no Norte de Moçambique. Só agora as atenções se viram para este problema que nasceu de dentro.
TEXTO: Nas últimas duas semanas dois ataques no Norte de Moçambique, que fizeram quase 20 mortos, fizeram soar os alarmes. Ambos apresentaram traços de extremismo islâmico, cuja presença nesta região era desconhecida para muitos. Mas os sinais de alerta começaram há pelo menos um ano e, se a situação se expandir, tal como vem acontecendo, estão até em risco investimentos que ascendem aos milhares de milhões de dólares numa das zonas mais pobres de África Oriental. No início da semana passada, pelo menos sete pessoas foram mortas por atacantes armados com catanas no distrito de Macomia, na província de Cabo Delgado, que faz fronteira com a Tanzânia. Os atacantes incendiaram mais de cem casas. As autoridades suspeitam que estes atacantes pertençam ao mesmo grupo que, a 27 de Maio, decapitou dez pessoas na cidade de Palma, também em Cabo Delgado. Estes dois ataques não estão incluídos nos outros 20 contabilizados pelo Consórcio de Pesquisa e Análise Terrorista (TRAC), que ocorreram desde o início deste ano em Moçambique e que tiveram elementos de extremismo islâmico. A sombra do radicalismo islâmico paira sobre aquele país há mais tempo. E a violência que daí decorre também. A população local apelida-os de “al-Shabab” (“juventude”). Porém, não há qualquer ligação directa conhecida com o grupo terrorista com a mesma denominação que actua na Somália. Porém, de acordo com um estudo publicado em Maio da autoria do clérigo muçulmano Saide Habide e dos académicos João Pereira e Salvador Forquilha, o grupo suspeito de ser o responsável pelos ataques em Moçambique denomina-se Ahlu Sunnah Wa-Jammá (adeptos da tradição profética e da congregação). Segundo este estudo, o grupo nasceu como uma organização religiosa, num país onde cerca de 20% da população é muçulmana — apesar de a comunidade islâmica garantir que a percentagem é maior —, na remota região rural do Norte de Moçambique. A partir do final de 2015, o grupo começou a incorporar células militares e levou a sua actuação para outro patamar. Calcula-se que a organização conte com cerca de cem células, sendo impossível contabilizar quantos militantes tem nas suas fileiras. No início de Outubro de 2017, o grupo islamista começou a fazer sentir a sua presença com um ataque contra esquadras da polícia e edifícios governamentais e civis, no distrito de Mocímboa da Praia, em Cabo Delgado. Em Dezembro desse ano, as tropas moçambicanas bombardearam a vila de Mitumbate, em Mocímboa da Praia, matando 50 pessoas. Outras 200 pessoas foram detidas. Até Março deste ano, quase 500 pessoas foram detidas por suspeitas de ligação ao grupo radical, sendo muitas delas estrangeiras. As autoridades deram por esta altura a situação como controlada, tentando afastar quaisquer tipo de receios. Os dois últimos ataques vieram desmenti-los. Os objectivos do Ahlu Sunnah Wa-Jammá são semelhantes à generalidade das organizações terroristas islâmicas. Querem impor a sua versão ultraconservadora da sharia (a lei islâmica), lutando contra as comunidades locais e contra o Governo que, dizem, não respeitam os verdadeiros ensinamentos do profeta Maomé. O grupo dominava duas mesquitas em Mocímboa da Praia. E como notam os analistas Gregory Pirio, Robert Pittelli e Yussuf Adam num artigo publicado pelo think-thank African Center for Strategic Studies, “as crianças que estudaram nestas e noutras mesquitas fundamentalistas surgidas nos últimos anos, chegaram à idade de participação nas milícias”. No ano passado, as autoridades encerraram estas mesquitas, mas pode ter sido demasiado tarde. Segundo o estudo dos três investigadores, o recrutamento é feito directamente nas zonas rurais desta região moçambicana. Há porém relatos de vários jovens se juntarem à organização voluntariamente. Muitos partem para países como a Tanzânia, o Quénia ou Somália, através de recursos próprios ou de bolsas de estudo fictícias, para aí serem treinados. Apesar de objectivos mais gerais que se inspiram na jihad internacional, os autores do estudo dizem que a verdadeira meta é outra: “O objectivo último não é ocupar Cabo Delgado ou criar um estado islâmico no Norte do país. O objectivo é criar oportunidades de negócio para as elites informais da região de Cabo Delgado. Pelo menos, os dados assim o mostram. De acordo com os interesses regionais e internacionais destes negócios ilícitos, estes são os objectivos imediatos”. O estudo toca em vários pontos que podem explicar a presença e expansão do Ahlu Sunnah Wa-Jammá em Moçambique. A província de Cabo Delgado é um caldeirão onde estão praticamente todos os ingredientes necessários à proliferação do radicalismo: tem a maior taxa de iliteracia de Moçambique, atingindo em média os 64. 8%, sendo que em cidades como Palma chega aos 90%; a taxa de desemprego, principalmente jovem, é muito elevada, tal como no resto do país; há forte presença do crime organizado (e da corrupção), especialmente o tráfico de droga, de armas e de outros produtos como os rubis, a madeira ou o marfim, materiais em abundância na região; há conflitos étnicos, nomeadamente entre os mwani, os makonde e os makua. Recentemente foram descobertas algumas das maiores reservas de gás do mundo nesta região. Alguns analistas dizem que esta descoberta pode tornar Moçambique o terceiro maior exportador mundial de gás natural liquefeito. A província de Cabo Delgado transformou-se imediatamente no alvo de planos de avultados investimentos para a extracção não só de gás mas também de petróleo, safiras e rubis. Com a perspectiva da entrada de milhões, a esperança na resolução dos problemas de região aumentou. No entanto, a chegada das empresas internacionais não gerou grande compensação para os cidadãos, nem fez reduzir a taxa de emprego, apesar das construções que estão planeadas. Alex Vines, analista da Chatham House, diz à Al-Jazira que este boom só aumentou a percepção da desigualdade em Cabo Delgado o que que, em última análise, “tem sido uma das causas para o crescimento da militância jovem”. Para piorar o clima, têm aumentado as acusações de violações dos direitos humanos por parte das empresas que ali se estabeleceram, incluindo suspeitas de expropriação ilegal de terras. Os negócios e as desigualdades podem ajudar a explicar o alastrar do radicalismo no Norte de Moçambique. Ao mesmo tempo, os ataques do grupo radical islâmico estão a pôr esses negócios em risco. O que pode não ser uma boa notícia para o país — segundo a Bloomberg, estão em risco cerca de 30 mil milhões de dólares em investimento. Mocímboa da Praia e Palma, locais onde se iniciou a vaga de violência, estão a apenas 80 quilómetros das reservas de gás que estão a começar a ser exploradas por empresas como a Eni, ExxonMobil e a Anadarko. Algumas destas organizações começaram já a retirar trabalhadores, temendo mais ataques. “Este problema não vai desaparecer e está a tornar-se cada vez mais um problema regional”, diz à Bloomberg Nigel Morgan, director da Rhula Intelligent Solutions, empresa sediada em Maputo e que presta serviços de gestão de risco a multinacionais. “Isto é um risco para os investidores de petróleo e gás em Cabo Delgado”. O historiador Eric Morier-Genoud propõe olhar para trás para encontrar explicações para este fenómeno. “O Islão tem uma presença muito antiga em Moçambique, particularmente na costa e nas zonas Norte do país. Existiram vários sultões e xeiques antes de Portugal ocupar o território no final do século XIX”, escreve num artigo de 2017 publicado no site de notícias independente The Conversation. Depois da independência moçambicana em 1975, e da consequente instauração do marxismo-leninismo no país pelas mãos da Frelimo, todos os credos foram reprimidos, mas o islamismo com particular intensidade. Apesar de o país ter avançado para o multipartidarismo e para a tentativa de pacificação com as comunidades religiosas (uma das medidas foi o reconhecimento dos feriados muçulmanos), a população muçulmana nunca deixou de se sentir marginalizada em relação ao resto da população. Assim, este sentimento de insatisfação encontra-se num ciclo crescente desde há anos e, agora, com todos os problemas económicos e sociais que afectam as populações de maioria muçulmana no Norte de Moçambique, o terreno ficou aberto para o radicalismo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os três analistas do African Center for Strategic Studies dizem que com as “narrativas de vingança actuais, é um desafio desfazer os ressentimentos para encontrar uma solução negociada”. Além disso, os autores referem que “os militantes justificam as suas acções com uma posição de superioridade moral” afirmando-se “vitimizados e humilhados”. Explicam que também as forças de segurança se sentem “lesadas e vitimizadas”. “Isto cria um cenário no qual o ciclo vai apenas escalar”. Morier-Genoud defende que o “Governo tem de preparar uma resposta cuidadosa e bem preparada para esta nova ameaça”. O Presidente moçambicano, Filipe Nyusi, e o Governo têm sido criticados pela ausência de resposta política a este problema. E para o próximo ano estão marcadas eleições gerais (presidenciais e legislativas) e provinciais. Para além das autárquicas, que estão agendadas para Outubro deste ano.
REFERÊNCIAS:
Religiões Islamismo
“Se não brincar comigo próprio, não tenho o direito de brincar com os outros”
O seu romance mais recente é também o mais hilariante. É protagonizado por um escritor que é assassinado no dia em que vai lançar o livro que põe fim a vários anos de abstinência da escrita. Germano Almeida, o mais recente escritor lusófono canonizado pelo Prémio Camões, não é só o mais lido e o mais traduzido dos escritores de Cabo Verde. Deve ser, também, o mais bem-humorado. (...)

“Se não brincar comigo próprio, não tenho o direito de brincar com os outros”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento -0.14
DATA: 2018-06-22 | Jornal Público
SUMÁRIO: O seu romance mais recente é também o mais hilariante. É protagonizado por um escritor que é assassinado no dia em que vai lançar o livro que põe fim a vários anos de abstinência da escrita. Germano Almeida, o mais recente escritor lusófono canonizado pelo Prémio Camões, não é só o mais lido e o mais traduzido dos escritores de Cabo Verde. Deve ser, também, o mais bem-humorado.
TEXTO: Germano Almeida (n. 1945), o mais recente escritor lusófono canonizado pelo Prémio Camões, não é só o mais lido e o mais traduzido dos escritores de Cabo Verde. Deve ser, também, o mais bem-humorado. E o mais desempoado. O autor de O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo (1989), O Meu Poeta (1990), Os Dois Irmãos (1995) e de mais uma dúzia de livros que se contam entre os mais populares da literatura cabo-verdiana contemporânea, veio a Lisboa apresentar O Fiel Defunto. O seu romance mais recente, e também o mais hilariante, é protagonizado por um escritor, chamado Miguel Lopes Macieira, que é assassinado no dia em que vai lançar O Último Mugido, livro que põe fim a vários anos de abstinência da escrita. É montado um funeral de estadão, como convém aos costumes. Mas o malicioso escritor, embora morto, não se deixa apanhar. Embora já lhe preparem uma fundação póstuma. Entrevistado, o escritor Germano Almeida também não se deixou apanhar pela nosso imp(r)udente siso. O que é que o escritor Germano Almeida tem contra os pastéis de nata?Contra os pastéis de nata? [risos] Por que é que me pergunta isso?A dada altura, em O Fiel Defunto, o escritor Macieira vai almoçar com amigos e tudo corre bem, excepto a “fraca sobremesa” que encontram na pastelaria Morabeza: “um desenxabido” pastel de nata. Não, não! De facto, eu até gosto muito de pastéis de nata. Mas é capaz de ser alguma provocação. Da personagem. Não minha, necessariamente. Creio que os jurados do Prémio Camões, pelo menos os portugueses, não leram este livro antes da atribuição. Senão, não me teriam dado o prémio [risos]. Felizmente, o livro não estava publicado ainda. Passaram alguns dias desde o anúncio do prémio. Já pensou no que ele possa significar para si?Tenho estado a pensar nisso, mas ainda não consigo juntar o Germano Almeida com o fulano que recebeu o Prémio Camões. Continuam a ser duas pessoas e eu, enquanto Germano Almeida, continuo a observar o outro. É como se não fosse eu. Não interiorizei ainda a eventual importância de ter ganhado. Ter ganhado, não. Ter recebido o Prémio Camões. Evito usar a palavra ganhar porque não é nenhuma luta. Mas ainda não me familiarizei com a ideia de que o Prémio Camões foi atribuído a um contador de histórias. Por que é que continua a designar-se contador de histórias?É verdade, continuo a chamar-me contador de histórias. Com este livro, achei que andava a escrever um romance e fartei-me de dizer: “Desta vez, estou a escrever um romance. ” E achei que tinha publicado um romance. Mas o livro não tem nada de especial que o caracterize como romance. Mas também não tenho de virar romancista, de maneira que deixo-me continuar contador de histórias. É a minha condição habitual. O Prémio Camões tem uma importância particular na pretendida conformação da chamada comunidade lusófona. Tem cumprido, tem sido útil?Um prémio é sempre, sobretudo, um incentivo para quem escreve. Sou defensor da existência do maior número possível de prémios. Claro que a atribuição a este ou àquele depende sempre de muitas coisas. Escolhendo-me a mim, preteriram outros, o que não lhes retira importância. Esses outros continuam a ser tão importantes ou até mais importantes do que eu próprio. De maneira que atribuo a qualquer prémio uma importância relativa. Mas é óptimo a gente receber prémios, que têm sempre a vantagem de darem uma certa visibilidade aos escritores. Mas isso não os torna melhores escritores. Já me têm perguntado se agora, tendo recebido o Prémio Camões, vou escrever mais. De forma nenhuma. Vou escrever de forma normal. Nunca me senti pressionado para escrever. Tem mais leitores em Cabo Verde ou em Portugal? E no Brasil?No Brasil não tenho leitores, até onde sei, ou então tenho poucos. Vou tendo. O meu primeiro livro publicado no Brasil, há já alguns anos, O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo, vendeu três ou quatro exemplares no espaço de um ano. É em Cabo Verde que eu sou mais lido, obviamente. E, depois, em Portugal. Não é, portanto, um escritor para exportação. Não. Aliás, costumo dizer que escrevo para ser lido em Cabo Verde porque quero ser entendido pela minha gente. Se sou entendido também pelos outros, fico contente, é óptimo. Mas não escrevo com a preocupação, digamos, de ser entendido em Portugal, ou no Brasil, ou em traduções. Não tenho essa pretensão. Em O Fiel Defunto, “o grande escritor” Macieira regressa a Cabo Verde feito homem maduro e aposentado. Sabe, por acaso, o que é que ele fizera antes, em Lisboa?É uma boa pergunta, porque eu mesmo não sei [risos]. Fui criando essa personagem a partir do nada. Uma amiga minha, que é crítica literária, disse-me: “Você tem uma personagem de quem a gente não sabe nada e se calhar tem de escrever um segundo volume para a gente ficar a saber alguma coisa. ” Tenho consciência de que não sei o que é que ele fazia antes. E também não me preocupei com isso. Mas é natural que tenha de inventar-lhe uma profissão. Boas notícias, portanto. Não está posta de parte a hipótese de que venha aí novo volume protagonizado pelo “grande escritor das ilhas”. Sim, não está posta de parte essa hipótese, na medida em que ficaram muitos pontos em aberto, incluindo a exigência de ele ser cremado em praça pública. A gente tem de resolver isso! [risos]Macieira regressa a Cabo Verde e logo dá uma entrevista anunciando que não vai à procura de nenhum cargo. É vício recorrente![Risos] É, é uma coisa recorrente em Cabo Verde. Agora nem tanto, mas já tivemos muito isso. O pessoal fazia toda a sua carreira de funcionalismo no exterior, em Portugal sobretudo. Depois aposentavam-se, iam para Cabo Verde e queriam mandar, exercer cargos políticos e tudo o mais. [risos] Nós estamos aqui a alombar há não sei quantos anos e vocês vêm de fora e vêm exigir mandar em nós? Então, o Macieira diz: “Não venho ocupar o lugar de ninguém, eu venho é escrever. ” É uma brincadeira também, mas que não é completamente inocente. Havia muito essa ideia de que os que vêm de fora é que sabem. Eu costumo dizer: Nós, que passámos a vida aqui, ainda não aprendemos a resolver os nossos problemas, como é que vocês que passaram a vida fora sabem como resolver os nossos problemas internos? Não! Venham com calma, aprendam, instalem-se, virem cabo-verdianos! Vocês, quando vêm de fora, ainda não são cabo-verdianos, têm primeiro de aprender a ser. Depois de uns bons anos a “parir gémeos”, pois nunca publicava um livro só, o escritor Macieira decide deixar de escrever a meio de uma crónica para um jornal sobre a “identidade política” cabo-verdiana. Mero acaso ou o tema já não é pertinente?É natural que esse problema esteja ultrapassado. Já há muito tempo que afirmámos a nossa identidade, quer politica, quer social, quer cultural. Já não temos nada de novo para dizer sobre isto. O Macieira deu conta de que estava farto. Andava a escrever para quê? A troco de quê? Andava cansado, perdeu a família, perdeu a mulher, perdeu os seus passeios e tudo o mais. E para quê? Para escrever livros. E resolve viver. No fundo, é essa ideia que também tenho, e confesso que aprendi isto com o Macieira: escrever é um prazer, eu escrevo por prazer, mas, para termos tempo para escrever, perde-se imensas coisas, inclusivamente perde-se a família. Não foi o meu caso, a minha mulher não me abandonou [risos], porque também era viciada no trabalho. Curiosamente, o abandono da escrita é acompanhado, ou sublinhado, por uma certa impotência sexual, coisa que já ocorria, se bem me lembro, em O Meu Poeta. [Risos] Já não me lembrava de O Meu Poeta. Mas acho que ele não fica impotente por causa de não escrever, ele fica impotente por causa da ausência da mulher. Bom, é natural também que, com a idade dele, já não tivesse assim grande apetência sexual. Mas o que acontece é que, perdendo a mulher, ele constata que ficou sem nada. Então, abandonar uma crónica a meio, já não tem grande importância. Quando diz que escrever não é um trabalho. . . Para mim não é trabalho. . . . é um prazer, não corre o risco de desvalorizar socialmente o papel do escritor?Não sinto isso. Às vezes, numa crónica ou noutra que escrevo nos jornais, de natureza política, posso ter essa preocupação de intervir socialmente, mas sem pensar que estou a influenciar seja quem for. Não creio que a escrita em si seja determinante para a influenciação da sociedade. Escrevo pelo prazer de escrever, dá-me prazer escrever, divertir-me a mim próprio escrevendo, e é nesse sentido que digo que escrever não é trabalho, é uma coisa lúdica. Mas esse não-trabalho é uma forma de me divertir que me priva de muitos outros divertimentos. E nesse sentido é que digo que, no acto de escrever, a gente perde a família e perde os amigos, porque estamos concentrados num prazer egoísta que é estarmos com os personagens literários. Nada oponho a que um escritor se divirta a escrever, tanto mais quanto abundam os escritores sofredores e angustiados diante do ecrã vazio. [risos] Acho piada a esses escritores sofredores que acham que têm de mudar o mundo. Felizmente, não tenho nada com isso. Escrevo porque quero escrever. Não sou capaz de sentar-me e obrigar-me a escrever. Quando não tenho nada para escrever, não escrevo. Leio. Há tanta coisa que a gente pode fazer! Não desvalorizo a função do escritor, mas também não lhe dou uma tão grande importância que chegue a pensar que é uma função essencial. Mas havendo tendência para se pensar que o prazer não precisa de ser remunerado, alguns escritores receiam que o seu trabalho não seja levado a sério, enquanto trabalho. Não acho que seja uma questão de não os levarem a sério. Eu tenho também a tineta de pensar que o trabalho intelectual não devia ser pago [risos]. Por exemplo, não me importo nada que plagiem os meus livros, que façam publicações clandestinas. É uma forma de os divulgar. Se for útil, não tem qualquer importância. Não sou capaz de perseguir seja quem for por ter feito uma publicação de uma coisa minha contra minha vontade, sem me perguntar. Não tenho essa ideia de posse da minha obra. Pelo contrário, se pudéssemos dar os livros às pessoas, acho que o faria. Infelizmente, somos pobres. Estou a pensar, por exemplo, na componente financeira do Prémio Camões, que é muito importante quando somos pobres. Mas se fosse um homem rico, não me preocuparia com o aspecto financeiro e diria: Vamos publicar livros de graça para as pessoas terem acesso a eles. Infelizmente, não posso!Ainda exerce como advogado?Sim, continuo a ganhar a minha vida como advogado, embora cada vez menos, porque, com a crise, a advocacia ficou em crise também, em Cabo Verde. Para si, a escrita foi sempre marginal?Sempre. Eu costumava dizer que os livros dão-me para comprar vinho, não mais do que isso. [risos]Pode dizer-se que começou a publicar tardiamente. Porquê?Comecei a escrever muito cedo, escrevo desde miúdo, mas nunca escrevi com intenções de publicar. Comecei a publicar quando calhou fundarmos a revista Ponto & Vírgula, nos anos 80. Foi lá que comecei a escrever para publicar, porque precisávamos de textos para encher a revista. Tal como aconteceu em Portugal, depois do 25 de Abril, não havia originais nas gavetas, à espera de oportunidade?Aconteceu a mesma coisa em Cabo Verde. Achávamos que deveria haver muita gente com coisas para publicar. Não havia nada. Ou então havia muito pouco. Curiosamente, os escritores mais velhos, Baltazar Lopes, Aurélio Gonçalves, Manuel Lopes e outros, é que nos enviaram textos para publicação. Os novos, curiosamente aqueles que nós desejávamos mais, não tinham nada. Tivemos de alimentar a Ponto & Vírgula com os escritores mais velhos e depois apareci lá com umas histórias que foram escritas, de facto, para preencher páginas. E foi então que lhe tomou o gosto. Tomei o gosto à publicação e escolhi um pseudónimo: Romualdo Cruz . Mas em Cabo Verde conhecemo-nos todos uns aos outros e as pessoas não atinavam com quem era o Romualdo Cruz. Quem é esse fulano? Os outros colegas editores acabaram por dizer que era eu, porque as pessoas gostaram muito daquelas histórias. E a partir daí achei que era inútil continuar com o pseudónimo, já não valia a pena. Passaram 30 anos, publicou 18 livros. O que é que se alterou nas condições de produção e de circulação da literatura em Cabo Verde?Quando publicámos o primeiro livro, O Testamento do Sr. Napumoceno, uma edição cabo-verdiana era de 350 exemplares. Decidimos publicar 700 exemplares. E os livros esgotaram-se em dois meses, porque as pessoas acharam que aquilo era um corte com a literatura cabo-verdiana tradicional. E dois meses depois fizemos uma segunda edição. Aliás, a primeira edição de O Testamento. . . foi o último livro impresso em S. Vicente em caracteres móveis. Depois passou a usar-se o offset. Agora já vamos fazendo edições de mil exemplares que se esgotam num ano e tal. Este [O Fiel Defunto], estou convencido de que se vai esgotar em menos tempo. Refere-se à editora Ilhéu?Sim, aliás, eu é que tive a ideia de fundar a editora Ilhéu, porque, quando escrevi O Testamento. . . , pensámos em publicar, mas como? O Instituto do Livro [cabo-verdiano] não dava vazão às solicitações, e então decidimos criar uma editora. Neste momento já há bastantes editoras, umas seis ou sete. O problema é as pessoas, os editores, acreditarem nos escritores novos. A actividade editorial é subsidiada pelo Governo?Não, e tenho vindo a insistir nessa necessidade porque, se queremos ter uma literatura cabo-verdiana com alguma pujança, com alguma projecção, o Governo tem que criar prémios para incentivar os jovens a escrever e depois fomentar a sua publicação no exterior, subsidiando as editoras estrangeiras. Avaliando por alguns dos seus livros, Cabo Verde normalizou-se politicamente, mas o descontentamento continua. Bom, o descontentamento é capaz de ser o estado normal do cabo-verdiano. De facto, a democracia política está instituída, já não está em causa. Há outras formas de descontentamento, muitas outras. Há um certo novo-riquismo que incomoda, sobretudo na Cidade da Praia. Em S. Vicente não tanto. Os são-vicentinos acusam o Governo de ter abandonado S. Vicente. Eu não vou tão longe, mas costumo dizer que as medidas que o Governo tem tomado relativamente a S. Vicente não têm sido as melhores e não se têm mostrado muito úteis para o desenvolvimento da ilha. O defunto Miguel Macieira é, neste livro, “o grande escritor das ilhas”, o mais traduzido, o mais conhecido no estrangeiro. Faz lembrar um certo Germano Almeida. [risos] Eu estou vivo, portanto não posso ser eu! Mas, sim, há uma certa auto-ironia. Sempre defendi que, se não brincar comigo próprio, não tenho o direito de brincar com os outros. Podemos ler esta história como a de um escritor cansado de enfeitar a lapela do poder?Também é verdade, o livro foi escrito na perspectiva da recusa do escritor em ter esses salamaleques sociais. Mas a gente não consegue evitar. Não é fácil fugirmos a isto, mesmo a nível popular. Eu vejo a quantidade de cumprimentos que recebi agora, e não só em Cabo Verde. Mas sobretudo os cabo-verdianos sentiram este Prémio Camões como uma coisa deles. Aliás vão-me avisando: o dinheiro do prémio pode ser para ti, mas a honra é para nós. E eu digo: está bem, podem ficar com a honra, que eu fico com o dinheiro. [risos]Ou como uma reivindicação da autonomia do escritor?Sim. Não podemos expressar livremente o nosso pensamento, quando ele seja contra os poderes instituídos, e ao mesmo tempo querer que os poderes instituídos nos vangloriem. Eu sou contra alguns escritores que se permitem dizer mal dos governos, mas depois querem que os governos os reconheçam. Isso não faz sentido. Quem não se sente não é filho de boa gente! Aliás, há uma expressão na minha ilha que diz: quem não quer a pátria, não quer a bandeira. Um escritor não pode querer o estatuto de poder falar livremente e, por outro lado, ser insensato. Já sabemos que este volume não será O Último Mugido [o livro fictício de Macieira] de Germano Almeida. Já tem a sua Pilar, a sua Mariza ou, pelo menos, a sua fundação em perspectiva?Não, isso garanto-lhe que não tenho! [risos] Costumo dizer a brincar que, se ganhasse, por exemplo, o Euromilhões, então, sim, criaria uma fundação. Detesto essa ideia de fundações, porque faz-se uma fundação e depois vai-se pedir dinheiro ao Estado. Há uma fundação que respeito imenso, a Fundação Gulbenkian, da qual fui bolseiro nos anos 70, e que gere as suas coisas com os seus meios próprios. Uma fundação que tem de ir pedir dinheiro ao Estado para fazer os seus favores não faz sentido. Há muitas em Portugal. Eu sei, e acho que das coisas boas que o Passos Coelho fez foi cortar nas fundações [risos]. Cabo Verde vai assumir a presidência da CPLP. O que pensa do assunto?A CPLP é uma instituição na qual depusemos grandes esperanças. Não tem funcionado como nós contávamos que pudesse funcionar. Mas a ideia é útil e é boa. Em que sentido? No sentido de que nós, países que funcionam com a língua portuguesa, não podemos desavirmo-nos. Temos essa coisa formidável, que o sistema colonial nos deixou, que é termos uma língua que nos une. É bom haver uma comunidade de países de língua portuguesa. Poderia ser melhor ou deveria ser melhor? Acho que sim. Mas teria que ter meios. Tal como está é muito pouco expressiva. Existe, mas existe quase só no papel. Não se sente a presença da CPLP no conjunto dos países. É mais honorífica do que propriamente útil. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Qual é a situação actual do crioulo em Cabo Verde?Não está normalizado e não sei se o será nos tempos mais próximos. Criou-se há uns anos uma coisa chamada ALUPEC [Alfabeto Unificado Para a Escrita do Cabo-Verdiano], mas deu muita contestação, foi uma coisa criada em gabinete, que não terá tido em conta outras valências sociais, e a ideia foi distanciar o crioulo do português. Eu acho que isto é um erro. Um exemplo muito simples: quando eu vejo a palavra casa escrita com k, ninguém me diz que é a minha casa, a casa onde eu moro, é qualquer coisa que eu não sei o que é. Casa, para mim, tem que ser escrita com c. O crioulo estar próximo do português por causa disto, paciência. Não é por causa disto que a gente nos vamos distanciar. Por exemplo, havia letras que não existiam em crioulo porque, a existirem, seria português. Eu acho absurda, esta tentativa de afastamento. Uma língua serve para transmitir uma cultura e não é por ser mais próxima ou mais distante do português que deixa de transmitir essa cultura. Do mesmo modo, por exemplo, que os escritores cabo-verdianos usam a língua portuguesa, como aliás os angolanos e os moçambicanos, para transmitirem a cultura o seu país. Claro que será desejável nós virmos a ensinar o crioulo porque quem tem duas línguas está a ganhar sobre quem tem uma só. Mas não podemos é correr o risco de qualquer tentativa de dizer: Vamos trocar o português pelo crioulo. Nunca! Termos duas, muito bem. Ter de ficar uma só como língua oficial, vai ter de continuar a ser o português. Termos o crioulo como língua única é afastarmo-nos do mundo, é isolarmo-nos. Ora, já nos chega o isolamento de sermos ilhéus. Mas acha desejável e viável haver duas línguas oficiais?Sim, acho que podemos ter duas línguas oficiais, porque se há uma coisa oficial em Cabo Verde é o crioulo. Não está escrito no papel, não está na Constituição, mas digamos que o mundo em Cabo Verde funciona em crioulo. A propósito de normas, segue o Acordo Ortográfico (AO) de 1990?[risos] O Acordo Ortográfico para mim é um problema, porque neste momento não sei em que língua escrevo. Escrevo no português que me ocorre e, quando o computador me dá uma indicação de que estou errado, vou ver em que é que estou errado. Acho que se transformou isto num cavalo de batalha que não se justifica muito. Pode haver coisas que não estão bem no AO, há coisas que são absurdas, há outras que nos ofendem, a nós que estamos habituados a usar a língua portuguesa, coisas que ofendem a nossa sensibilidade, mas isso não quer dizer que se deva rejeitar o acordo em si, porque é bom termos uma língua cuja ortografia seja extensível aos países que a utilizam.
REFERÊNCIAS:
Ferramentas de pedra indicam que os nossos antepassados chegaram mais cedo ao Norte de África
Uma investigação na Argélia ao longo dos últimos 20 anos mostra que, afinal, os hominíneos se expandiram para o Norte de África quase meio milhão de anos antes do que se pensava. (...)

Ferramentas de pedra indicam que os nossos antepassados chegaram mais cedo ao Norte de África
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma investigação na Argélia ao longo dos últimos 20 anos mostra que, afinal, os hominíneos se expandiram para o Norte de África quase meio milhão de anos antes do que se pensava.
TEXTO: Se antes se pensava que a África Oriental seria um dos berços da humanidade, artefactos com 2, 4 milhões de anos encontrados recentemente na Argélia vieram mostrar que, na verdade, todo o continente africano o poderá ter sido. É já sabido que os hominíneos – nossos antepassados depois da separação do ramo dos chimpanzés, há cerca de oito milhões de anos – usavam ferramentas de pedra para retirar a carne dos animais dos quais se alimentavam. Em 2015, foram descobertas as primeiras ferramentas pré-humanas com 3, 3 milhões de anos no Quénia (400 mil anos antes do aparecimento dos primeiros membros do género Homo). Até esse momento, o recorde de antiguidade de ferramentas de pedra pertencia a descobertas em Gona, na Etiópia, com cerca de 2, 6 milhões de anos. São ferramentas do tipo olduvaiense, cujo nome remonta à descoberta, na década de 1930, de instrumentos líticos no desfiladeiro de Olduvai, na Tanzânia, pelo paleoantropólogo Louis Leakey. Estas ferramentas rudimentares, com arestas afiadas, eram usadas para esquartejar as carcaças de animais. Tais instrumentos implicam a fractura de um bloco de pedra (o núcleo) com outra pedra (o percutor), donde saíam as lascas que eram também usadas como ferramentas. Agora, uma nova descoberta de mais de 230 ferramentas de pedra da tecnologia olduvaiense, com aproximadamente 1, 9 e 2, 4 milhões de anos, na Argélia vem levantar um pouco mais o véu sobre a expansão dos hominíneos em África e as técnicas que eles usavam. Ao longo das últimas duas décadas, uma equipa internacional de cientistas levou a cabo uma investigação nos depósitos arqueológicos de Ain Boucherit (nas proximidades de Ain Hanech), na Argélia. Lá encontraram núcleos de pedra, assim como lascas (entre 30 e 58 milímetros) e alguns instrumentos esferóides – cuja função ainda não se sabe ao certo – que terão sido usados pelos hominíneos. Estas ferramentas são maioritariamente feitas de pedra calcária e sílex (uma rocha também conhecida como pederneira), materiais encontrados junto aos leitos dos rios mais próximos. Porém, os conjuntos de ferramentas de pedra que já tinham sido encontrados na África Oriental (Etiópia, Quénia e Tanzânia) e os recentemente descobertos no Norte de África apresentam algumas diferenças, o que sugere algumas diferenças relacionadas com o tipo e a qualidade das matérias-primas usadas. Estas escavações ao longo dos últimos 20 anos levaram à descoberta de uma grande quantidade de instrumentos líticos e fósseis de animais em Ain Boucherit. O que permitiu, de acordo com os paleoantropólogos, inferir sobre “como os hominíneos matavam, mutilavam e esquartejavam as carcaças de animais”. A mesma equipa de cientistas tinha já descoberto, há cerca de uma década, artefactos semelhantes em Ain Hanech com cerca de 1, 8 milhões de anos. Mas através da análise dos sedimentos e de uma comparação com fósseis de mamíferos, como porcos, elefantes e cavalos, também encontrados naquela região, chegaram à conclusão de que os mais antigos instrumentos agora descobertos têm cerca de 2, 4 milhões de anos. O que sugere que os hominíneos se expandiram para o Norte de África quase meio milhão de anos mais cedo do que se pensava. Além dos instrumentos, a equipa liderada pelo especialista em tecnologia pré-histórica Mohamed Sahnouni, do Centro Nacional de Investigação sobre a Evolução Humana (Espanha), encontrou também fósseis de animais com marcas de corte, muitas delas estreitas e em forma de “v”, e alguns com provas de terem sido percutidos com martelo. Estes ossos correspondem essencialmente a membros superiores e inferiores, ossos axiais (nomeadamente costelas) e do crânio de bovídeos e equídeos de tamanho pequeno ou médio. Os resultados do estudo, publicado esta sexta-feira na revista Science, sugerem que os antepassados da nossa espécie (Homo sapiens) já recorriam a práticas como o esfolamento, a evisceração e a descarnação para extrair a carne e medula óssea de animais. “O uso efectivo de ferramentas de pedra para corte, afiadas como facas, sugere que os nossos antepassados não se limitavam a apanhar carcaças de animais. Não está claro se, nesta altura, eles caçavam ou não, mas as provas mostram claramente que competiam com sucesso com outros carnívoros por carne e gostavam de ser os primeiros a ter acesso às carcaças de animais”, sublinha em comunicado a tafonomista Isabel Cáceres, do Instituto Catalão de Paleoecologia Humana e Evolução Social (Espanha), que participou na investigação. Os paleoantropólogos explicam que durante muito tempo a África Oriental foi considerada o local de origem dos primeiros hominíneos e dos instrumentos líticos, com as descobertas de ferramentas de pedra em Olduvai por Louis Leakey. Houve ainda Lucy, o famoso esqueleto de uma fêmea de australopiteco com 3, 2 milhões de anos, encontrado na Etiópia em 1974, e outras descobertas arqueológicas na África do Sul. O que deixou, segundo os autores do artigo na Science, o Norte de África à margem no que diz respeito ao que se sabia sobre a evolução e expansão dos hominíneos, até agora. A principal conclusão é que os hominíneos no Norte de África produziam ferramentas de pedra quase contemporâneas daquelas produzidas há 2, 6 milhões de anos na África Oriental. Dizem ainda os autores que esta investigação, levada a cabo por uma equipa internacional e multidisciplinar (com especialistas de Espanha, Argélia, EUA, Austrália, França e Itália), resultou numa das maiores amostras de ferramentas de pedra de sempre provenientes de escavações num único local, o que dá força aos resultados. Mohamed Sahnouni, principal autor do estudo, explica em comunicado que “a arqueologia de Ain Boucherit, que é tecnologicamente semelhante à de Gona e Olduvai, mostra que os nossos antepassados se aventuraram por todos os cantos de África, não apenas na África Oriental”, acrescentando: “As provas [provenientes] da Argélia mudaram a visão que se tinha antes sobre a África Oriental ser o berço da humanidade. Na verdade, toda a África foi o berço da humanidade”. Ainda não foram, porém, descobertos fósseis de hominíneos naquela região que coincidam com a idade das ferramentas de pedra lá encontradas. Sileshi Semaw, co-autor do estudo, avança com uma teoria: “Os hominíneos que são contemporâneos de Lucy estavam provavelmente a percorrer o [deserto do] Sara, e os seus descendentes podem ter sido responsáveis por deixar as assinaturas arqueológicas agora descobertas na Argélia, datadas de cerca de 2, 4 milhões de anos, que são próximas das da África Oriental”. Porém, a natureza inóspita do deserto do Sara dificulta os estudos naquele local. Apesar de uma “considerável distância geográfica da África Oriental”, as hipóteses passam ainda por uma rápida dispersão desta técnica de fabrico de ferramentas de pedra para outras regiões do continente ou, em alternativa, por um cenário de origem múltipla da técnica e seu uso tanto no Leste como no Norte de África. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No futuro, a investigação passa por procurar instrumentos líticos semelhantes noutras regiões do continente africano. E passa ainda por encontrar fósseis de hominíneos do Mioceno (até há cinco milhões de anos), do Plioceno (entre cinco e dois milhões de anos) e do Pleistoceno (entre 2, 5 milhões e 11, 7 mil anos) em busca dos fabricantes destas ferramentas ou até mais antigas. Resta agora para os especialistas uma grande questão: afinal, quem construiu estas ferramentas?Texto editado por Teresa Firmino
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Há um novo mapa da história das línguas bantas (e Angola é importante)
Já não é novidade que os povos bantos percorreram muitos quilómetros ao longo dos tempos. Agora há novos pormenores sobre as suas migrações contadas num artigo na revista Science. (...)

Há um novo mapa da história das línguas bantas (e Angola é importante)
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.268
DATA: 2017-05-23 | Jornal Público
SUMÁRIO: Já não é novidade que os povos bantos percorreram muitos quilómetros ao longo dos tempos. Agora há novos pormenores sobre as suas migrações contadas num artigo na revista Science.
TEXTO: As línguas bantas estão bem presentes no continente africano: cerca de 310 milhões de africanos, a maioria em países da África subsariana, falam estas línguas. Mas se chegaram tão longe é porque há uma história da sua expansão. Um grupo internacional de cientistas, com três portuguesas, quis perceber que caminho percorreram mesmo as línguas bantas há cerca de quatro mil anos para cá. Para isso, seguiram-lhes o rasto através da genética e publicaram o “roteiro” na revista Science. E Angola foi um cenário decisivo neste novo mapa. As línguas bantas fazem parte da família linguística nigero-congolesa e formam um grupo com mais de 500 línguas. Para tal, tiveram de fazer uma viagem muito longa. A grande jornada das línguas bantas pelo mundo iniciou-se há cerca de quatro mil anos. Nessa altura, os seus falantes viviam na zona ocidental de África, que hoje corresponde à fronteira entre a Nigéria e os Camarões. Depois começaram a espalhar-se para sul, para territórios abaixo da linha do equador. Quanto aos motivos desta expansão, não são claros: “Não se sabe porquê”, começa por nos dizer Luísa Pereira, geneticista do Instituto de Investigação em Saúde (i3S), da Universidade do Porto e uma das autoras do artigo, que em Portugal também contou com Joana Pereira e Verónica Fernandes, ambas do i3S, e tem como principal autor, Etienne Patin, do Instituto Pasteur, em Paris. “Tinham a vantagem de ser povos agrícolas e ter o domínio da tecnologia do ferro. Está provavelmente relacionado também com o aumento populacional e de novas famílias que precisavam de novos terrenos”, explica. Avançando mais de dois mil anos: os falantes de línguas bantas migraram então para sul, pelo Gabão até Angola. E como se chegou a estes resultados? “Com recursos às técnicas mais avançadas da genética de populações, os investigadores rastrearam marcas específicas que foram deixadas pelas misturas ocorridas com as populações autóctones durante a migração”, refere um comunicado do i3S, acrescentando que essas marcas podem ser analisadas nas populações actuais. Ao todo, a equipa investigou 2055 indivíduos de 57 populações. De alguns desses indivíduos já tinha dados genéticos e obteve ainda dados genéticos novos de 1318 indivíduos relativos a 35 populações. Os cientistas observaram então que os falantes de línguas bantas do Leste e do Sul de África tinham mais semelhanças genéticas com as populações de Angola do que entre si, ou com a sua população mais originária, mais a norte (entre a Nigéria e os Camarões). E foi aí que perceberam que os bantos migraram primeiro para sul, através do Gabão até Angola, e que aí ocorreu uma divisão populacional há dois mil anos, com duas ondas migratórias: uma para sul através da costa Oeste, até à África do Sul; e outra para leste para a zona dos grandes lagos, seguindo depois para sul, através da costa Leste, chegando a Moçambique e, por fim, também à África do Sul. “É esta a novidade do artigo: houve uma separação mais tardia e chegaram a Angola”, refere Luísa Pereira. Este estudo veio confirmar que essa divisão entre as populações bantas não tinha acontecido logo na sua expansão inicial há quatro mil anos. A viagem dos falantes de línguas bantas passou ainda para o outro lado do oceano durante o período da escravatura. “Deram assim material genético aos afro-americanos, o que resultou da mistura de várias populações de África [tanto de não bantos como de bantos]”, explica Luísa Pereira, acrescentando que não há dados genéticos disponíveis para o Brasil. Os afro-americanos do Norte dos Estados Unidos têm 73% de ancestralidade africana e os dos estados do Sul têm 78%, de acordo com o comunicado. Desta ancestralidade africana nos EUA, 13% veio dos actuais Senegal ou Gâmbia (não bantos), 7% da Costa do Marfim e Gana (não bantos), 50% da região à volta do Benim (não bantos) e até 30% da costa ocidental da África Central (bantos), sobretudo de Angola. “Estes dados genéticos são surpreendentemente consistentes com os registos históricos sobre o transporte de escravos”, refere ainda o comunicado. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O artigo científico faz também uma viagem pelas adaptações ao ambiente dos falantes de línguas bantas durante as suas migrações. Os bantos que foram para Leste de África misturaram-se com as populações já existentes nestas regiões (como as da Etiópia) e adquiriram mais diversidade genética, tornando-se tolerantes à lactose, o que lhes permitia digerir o leite em idade adulta. Já os bantos do Oeste misturaram-se com os pigmeus da floresta tropical e adquiriram mais diversidade no sistema imunitário. “Há sinais de ter ocorrido selecção natural da diversidade protectora contra a malária no gene CD36”, explica Luísa Pereira. Já os bantos do Sul misturaram-se com o povo San (da África austral), mas não se observou nenhuma alteração genética relevante neste grupo. “O contributo genético das populações locais, cada uma adaptada ao seu território, foi a chave para o sucesso”, refere ainda o comunicado. Falando em sucesso, Luísa Pereira não se inibe de dizer: “A migração dos bantos é das mais importantes porque atingiu um espaço enorme. ”
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Entidades EUA
"Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre, respondo: na minha área, é Shakespeare"
Cada vez mais biólogo e menos neurocientista, António Damásio insiste nas humanidades para formar homens e cientistas. No seu mais recente livro dá primazia aos sentimentos como formadores de consciência e motor da ciência, e refere a necessidade de um pacto global sobre educação. (...)

"Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre, respondo: na minha área, é Shakespeare"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 1.0
DATA: 2018-06-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Cada vez mais biólogo e menos neurocientista, António Damásio insiste nas humanidades para formar homens e cientistas. No seu mais recente livro dá primazia aos sentimentos como formadores de consciência e motor da ciência, e refere a necessidade de um pacto global sobre educação.
TEXTO: O que leva um estudante a levantar a mão quando o professor lhe fala de um tema que o intimida? Como reagirão as gerações que cresceram com as redes sociais, quando precisarem de tempo, mais tempo, do que o imediato? Estamos a viver uma crise na actual condição humana diz António Damásio no seu mais recente livro, A Estranha Ordem das Coisas, que dá prioridade aos sentimentos. Na vida, na ciência, na cultura. Horas depois de aterrar em Lisboa não esconde a emoção perante a edição portuguesa da Temas e Debates. Sorri. Pega no livro de quase 400 páginas, olha a contracapa e retrai a vontade imediata de ver tudo ali. Mais tarde confessará que é um chato com o português. Escreve em inglês, pensa em inglês, mas o português é a sua língua. Quando, ao longo da conversa, na oralidade, lhe sai um vocábulo em inglês trata de arranjar a tradução certa, sobretudo se for para descrever um sentimento. É que são os sentimentos o que está antes de tudo no livro que dedica à sua mulher, Hanna Damásio, e na conversa onde haverá de dizer, já desligado o gravador, que também fala alemão e namora em italiano. "É a língua do amor", refere. Como aprendeu? "A ouvir as óperas de Verdi. "Começa este livro, que vem na continuidade dos anteriores, por esclarecer o que chama de uma “ideia simples”, “como usamos os sentimentos para construir a nossa personalidade”. Peço-lhe que descreva, brevemente, o protagonista deste A Estranha Ordem das Coisas, os sentimentos?Há a realidade científica daquilo que penso que são os sentimentos, mas há também uma mais alargada ligada a um tema que estamos [com a mulher, Hanna Damásio] a tratar por estes dias para uma conferência sobre ética. Parte dos sentimentos que temos como experiência têm a ver com as coisas mais valiosas da nossa vida; com todas as coisas sobre as quais podemos ter uma valência, as que verdadeiramente contam: vida, doença, dor, sofrimento, morte, desejo, amor, cuidado com o outros [to care]. E, ao mesmo tempo, crimes, medos, raivas, ódios, que têm a ver com o contrário das boas coisas da vida e que podem levar à perda [da vida], e, se não à perda da vida, ao sofrimento. Praticamente todas as coisas que governam ou desgovernam a nossa vida são normalmente transmitidas por uma valência de bom ou mau; de agradável ou desagradável, de recompensa ou punição. São essas que constituem o grande personagem dos sentimentos. Os sentimentos são representações do estado da nossa vida, mas representações qualificadas. Um dos problemas que mais me inquietam é essa impossibilidade que as pessoas têm tido de perceber que a inteligência – ou a nossa mente – vai só até um certo ponto e a partir daí tem de ter uma qualificação. Essa qualificação aparece em termos de agradável ou desagradável, de bom ou de mau, e é isso que faz a grande distinção entre a inteligência humana no sentido mais completo e a mente humana. À inteligência artificial, por exemplo, falta isso. Infelizmente as pessoas não se têm dado conta. Sou um adepto de inteligência artificial e tudo o que esse campo de tecnologia e de ciência nos tem trazido, mas é pena que poucas pessoas dentro desse mundo tenham compreendido que a inteligência artificial tal como é compreendida é uma pálida ideia daquilo que é a inteligência humana no seu real. Ou seja, o humano, muito por via dos sentimentos, não pode ser replicado artificialmente. De certeza que não pode ser nem simulado! Há uma grande diferença entre simulação e duplicação. O que a inteligência artificial faz, e muito bem, é uma simulação, e com capacidades extraordinárias, muito superiores àquelas que temos. A capacidade de inteligência no sentido mais directo e algorítmico que temos hoje em dia em matéria de memória, de estratégias de raciocínio é extraordinária. Faltam é essas outras qualidades que temos na nossa inteligência e que são absolutamente necessárias e extremamente realistas, porque têm a ver com aquilo que a vida é. Enquanto a vida concebida no sentido da inteligência artificial não tem nada a ver com aquilo que a vida é. A vida é outra coisa. E o que é a vida?É uma coisa venerável, confusa, efusiva. A grande arte dá-nos isso e a grande literatura dá isso extraordinariamente. Quando não se inclui essa componente de confusão, efusividade, aquilo que pode ser qualificável de bom ou de mau, perde-se uma grande parte do que é a vida. Por isso, e para acrescentar uma nota à sua pergunta anterior, os sentimentos como personagem são as representações, aquilo que está na nossa experiência mental quando estamos a viver uma vida real. E ao mesmo tempo uma forma de nos alertarem para aquilo que está a correr bem ou mal no sentido mais amplo do termo: a vida dentro de um organismo. Um organismo vivo, que tem bons momentos e maus momentos, que tem todas as variações e flutuações que vêm do seu metabolismo e que, porque tem mente e tem consciência – que é uma coisa que nós temos e as bactérias não – vai poder ter acesso a esse relato daquilo que está a correr bem ou mal. No livro, fala da consciência da morte como definidor dessa humanidade, o sentimento de fim, que faz com que o homem encare a dor de outra maneira. A consciência da finitude é, desse modo, formadora não apenas de uma maneira de estar socialmente, como também criadora de uma linguagem. Como é que se transpõe esse saber da morte, muito vezes olhado como transcendência, para a ciência e muito concretamente para a biologia? Tem sido difícil tratar essa questão. Uma das grandes barreiras é que a ciência, com a sua natural preocupação com a objectividade, teve enorme dificuldade em aceitar coisas que parecem extremamente subjectivas e confusas, com muitas variações, que é difícil de agarrar no sentido mais objectivo do termo. O facto de que os sentimentos são naturalmente subjectivos. Isso tem sido matéria dos seus livros. Sim, ando há 20 anos a explicar que sentimentos não são emoções. Mas é extraordinária a resistência. As coisas espantosas que dizem. . . falam de hearts and minds! Esperem um pouco: hearts and minds? O coração é a emoção, mas querem mesmo dizer coração? E querem mesmo dizer mente sem coração? As confusões são extraordinárias. Mas talvez o ponto mais importante é que as emoções são públicas. Quando está contente e se ri, ou quando está triste, quando está irritada tudo isso aparece na sua máscara. Aparece no rosto e no corpo. Quando se sente irritada ou triste ou alegre isso aparece unicamente em si. Você é a única pessoa que tem acesso a essa informação no sentido real. É uma experiência privada. Você pode simular a representação pública, mas essa distinção explica em grande parte porque é que as pessoas estão muito mais confortáveis quando falam de emoção: porque é público, porque é observável, enquanto os sentimentos têm de ser observáveis por dentro. Mas não estão de forma alguma fora do campo da ciência. É possível a cada um de nós fazer as observações, fazer o resumo dessas observações que é um campo científico e filosófico a que se chama fenomenologia. Portanto, temos a possibilidade de fazer as nossas próprias observações, partilhá-las com os outros, fazer comparações e fazer descrições o mais completas possível. Não há qualquer limitação do ponto de vista científico. Não há limitação da objectividade com que se pode estudar a subjectividade. E é isso que as pessoas não compreendem. Sintetizando, fala de sentimentos e consciência, de emoções, de sensações. Três coisas diferentes. Sensação é o que permite detectar a presença de um estímulo – e que as bactérias e as plantas também têm – e que gera uma resposta. Depois há certas respostas mais complexas. Em organismos simples, se tocar na criatura ela retrai-se. É a mesma reacção que terá se alguém a assustar, uma reacção emocional. Há reacções conservadas ao longo de biliões de anos e que são emocionais, reacções de movimento. O centro da palavra emotion é motion. Se alguém lhe perguntar a diferença entre emoção e sentimento agarre-se à palavra motion; o movimento está do lado das emoções e se está do lado das emoções está-se do lado daquilo que é visível para os outros. Sensação, no seu básico, não tem nada a ver com a emoção propriamente dita. A emoção é uma reposta complexa de movimento em relação a um estímulo que foi sentido e depois há o sentimento, que é a experiência mental daquilo que se passou no organismo quando houve sensação e emoção. São três graus. Um é extremamente simples, outro já é mais complexo, em que há uma resposta, e ainda um outro em que há o apreender consciente e mental daquilo que foi a resposta e que se passou no organismo. São mundos diferentes. Podemos dizer que estamos no campo da subjectividade. É isso que o estimula do ponto de vista científico?Sim, é extremamente importante. O que eu quero é dar objectividade científica àquilo que é uma coisa subjectiva, que é no fundo a definição da consciência. Grande parte do problema da consciência é o problema da subjectividade. É por isso, aliás, que é tão extraordinariamente difícil de perceber; é por isso que as pessoas têm enormes conflitos e desacordos sobre o que é a consciência. Cada vez mais estou absolutamente convencido que não é possível distinguir tecnicamente sentimento e consciência. O sentimento, muito possivelmente, foi o princípio da consciência do ponto de vista evolutivo. O sentimento com a sua natural subjectividade e tudo isso se estendeu a outras subjectividades: subjectividade do que está no exterior – eu tenho subjectividade em relação a si neste momento, mas também tenho subjectividade em relação ao meu interior. Por exemplo, sei neste momento que estou um bocado cansado, fiz uma viagem de 15 horas e estou fora da hora em que deveria estar. Tenho essa subjectividade. E tenho a subjectividade em relação a si, às paredes desta sala, ao que estou a ouvir atrás de mim. O que temos é uma grande possibilidade, muito rica, de juntar subjectividades dentro da nossa mente. A nossa mente é toda feita de subjectividades. Esse é também o campo da arte. Sim. E eu sou um apaixonado da literatura. A literatura é o modo mais rico, de todos os que temos, de entrar dentro da subjectividade de outra pessoa e de nos fazer perceber o que pode ser a outra pessoa, muito mais do que o cinema, do que o teatro, porque a situação em que estamos a ler é. . . devemos estar sozinhos e com um texto que podemos parar a qualquer altura. Pode ler um parágrafo e parar e pensar e retomar e reler. Não pode fazer isso com um filme a não ser que estrague tudo. Tecnicamente pode, mas ninguém vê um filme dessa maneira. A parte da experiência de ver um filme é vê-lo na continuidade de um determinado período de tempo. Como cientista, a literatura pode ser-lhe útil – pese a ambiguidade da palavra – neste estudo? Absolutamente. Tudo é útil, umas coisas mais do que outras, mas a literatura é extraordinariamente útil porque é uma entrada muito rica na mente, uma entrada que utiliza a vida subjectiva, os sentimentos. É muito curioso, quando se olha para as humanidades de uma forma geral, e para as artes vê-se como têm sido laboratórios de estudos. As pessoas não se aperceberam ainda de que uma boa parte do que se passa no mundo da grande arte é uma espécie de prefácio para o estudo científico dos seres humanos. Quando não havia uma estrutura laboratorial científica, as pessoas já estavam a. . . Elaborar?A elaborar. E a literatura tem sido um grande contributo. Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre respondo: na minha área, é Shakespeare. Está lá tudo?Praticamente tudo. Pelo menos esboçado. O que se tem é de desenvolver. Quer sejam as peças históricas, as tragédias ou as comédias, a própria poesia. Praticamente tudo aquilo que interessa, todos os grandes temas, estão lá. Entre as milhares de coisas que gostaria de escrever – se calhar não terei tempo –, seria fazer qualquer coisa com a neurociência ou a neurobiologia cognitiva vistas através do Hamlet e do Otelo. O Hamlet é praticamente suficiente. É tão rico e está tão cheio daquilo que conta. . . E talvez meter o Falstaff pelo meio para ficar mais completo. [risos]Um dos capítulos do livro é sobre a crise do actual, “a actual condição humana”. Escreve: “Considerar os nossos dias como sendo os melhores de sempre seria preciso que estivéssemos muito distraídos”. Esta “crise” também é causa de uma certa resistência de parte de muitos cientistas em incluir as humanidades nas suas investigações?A resposta é que há essa resistência, mas não da parte de todos. Há também quem adopte, quem veja o valor, o interesse, muitas vezes talvez porque na sua própria vida pessoal percebem que é importante e acabam por ser seduzidos por essas possibilidades. Se as pessoas trabalham em áreas muito microscópicas daquilo que é a ciência, mesmo que seja ciência humana, é mais difícil fazer a passagem directa. E não é uma coisa que se deva sequer criticar. É perfeitamente compreensível. Mas certas pessoas da minha geração, e até de algumas gerações a seguir, têm um enorme apreço pelas humanidades dentro da ciência. Não se devem fazer generalizações, mas é verdade que tem havido uma certa resistência e também alguma resistência militante. Em certas áreas, quando pessoas das humanidades olham para o contributo da teoria da evolução ou da genética. . . há tantos erros, tanta complicação, por exemplo a forma como parte desses conhecimentos levou a teorias sobre os seres humanos, da eugenia até aos extremos piores da exploração racista. Claro que há razões para as pessoas terem tido durante algum tempo uma certa rejeição e depois muitas vezes também têm o pavor do reducionismo. É um grande pavor também da parte das humanidades e, portanto, rejeitam que a ciência possa trazer alguma coisa de tão importante como aquilo que as humanidades têm trazido em matéria de compreender o que são os seres humanos. Neste livro levanta duas ou três vezes esse problema. . . Porque eu não tenho qualquer espécie de desejo de reduzir aquilo que são os seres humanos no seu mais sublime à ciência abstracta. Pelo contrário. Aquilo que acho, e cada vez acho mais e neste livro é a primeira vez que me apercebo, é isto: quando se ligam sentimentos à cultura, por um lado, e sentimentos à homeostasia e aos princípios da vida, o que estamos a fazer é a enriquecer a ligação entre a cultura e a vida. Ao contrário de reduzir, estamos a aumentar, a fazer com que esse fio seja mais visível. A palavra homeostasia cruza todo o livro. Ela é completamente definidora do que é o humano?É completamente definidora do que é um ser vivo. O ser humano precisa de ter não só os imperativos da homeostasia nos seus aspectos mais complexos, mas também desenvolvimentos que vêm com a multicelularidade, o aparecimento dos sistemas nervosos e depois o extraordinário desenvolvimento da capacidade dos sentimentos, consciência de mente com imagens. . . Sobre a capacidade de criar imagens, escreve que “todas as imagens do mundo exterior são processadas de forma paralela às reações afectivas. . . ", e depois apela a um exercício: “pensemos na maravilha alcançada pelo nosso cérebro ao lidar com imagens de tantas variedades sensoriais, de origem externa e interna, ao ser capaz de as transformar nos filmes da nossa mente. Em comparação, a montagem de um filme é uma simples brincadeira. ”Exacto. Mas faço essencialmente uma abordagem crítica. Quando no início de tudo me falou da genealogia deste livro, há vários temas que venho a tratar há muitos anos, mas que agora me parecem, alguns, perfeitamente claros, e em que também tenho a coragem de dizer exactamente aquilo que penso sem estar com rodeios por poder ofender alguém que achasse que era pateta e novo de mais para estar a dizer coisas. Agora já posso dizer tudo o que me apetece. Pode-se dizer que os sentimentos são fundadores da ciência?Possivelmente são. São pelo menos motivadores. Neste livro há três papéis que dou aos sentimentos, ou ao afecto em geral. Primeiro, motivadores, depois monitores e depois negociadores. Os sentimentos intervêm nesses três pontos. São coisas diferentes. Uma é motivar, outra é a monitorização e a outra é a negociação de quando as coisas correm mal ou bem de mais. Há constantemente ajustes. Há pessoas que perante dois advogados a discutirem um contrato ou dois políticos a discutirem um tratado são capazes de pensar que isso está a acontecer num plano puramente intelectual; não está. Acontece num plano intelectual e acontece com toda a miríade de alterações que têm a ver com a forma como uma das pessoas apresenta o argumento e como a outra o recebe. Tudo isso é uma negociação que está a ser feita não só num plano de conhecimento e razão, coisas que se podem dizer objectivas e frias, mas também nesse outro plano que tem a ver com a forma como a negociação está a correr do ponto de vista afectivo. Essa é a realidade. Tem o exemplo espectacular do que se tem estado a passar nestes últimos dois anos com movimentos de populismo, de racismo em toda a parte. Muitas vezes, a forma como esses problemas são apresentados gera reacções de zanga e protesto puramente emocionais. Uma das coisas extraordinariamente curiosas é que quando as pessoas falam de emoções falam quase sempre do ponto de vista negativo das emoções. Muitas vezes acham que há o lado objectivo, o do bom raciocínio, e depois as emoções, más, que tornam as coisas irracionais. É um disparate completo, porque é limitar o âmbito das emoções ao negativo. Há emoções muito positivas; ter compaixão, gratidão, desejo de ajudar, cooperar. O amor! o desejo pelo amante, o amor pela criança que se está a criar. É desse preconceito que vem a distinção entre inteligência e inteligência emocional?Sim. As emoções muitas vezes ajudam a tomar a decisão e muitas vezes trazem o conhecimento, o discernimento, o destilar de uma série de conhecimentos que temos, uma vez que foram aplicados e qualificados. A intuição é uma maneira de fazer linha recta para a solução do problema sem andar por todas as fases intermédias. Essa intuição vem de uma forma emocional. Tudo isto tem imensa graça. As pessoas que descobriram o big data falam de como um grupo de computadores pode ler uma enorme quantidade de dados e tirar uma conclusão extremamente nova, verificando que aquilo é o que se deve fazer. Mas isso que o computador está a fazer é aquilo que a intuição humana faz há milhões de anos. O nosso cérebro é um big data system que tem imenso conhecimento do que é a nossa vida interior fisiológica e sobre o que é, e tem sido, a nossa vida em geral. E esse big data system está constantemente a dar-nos um dado institucional que é extremamente importante para a nossa vida. Tudo isso vem do lado das emoções e faz parte do que se poderia chamar inteligência emocional. Não uso o nome porque não acho que haja uma inteligência emocional e uma não emocional. Há inteligência. Começa o capítulo dedicado à crise actual dizendo que nunca tivemos tanta informação nem tanta possibilidade de sermos felizes, mas. . . E critica os media públicos e o seu modelo lucrativo de negócio, reduzindo a qualidade de informação; questiona o valor de entretenimento aplicado à história jornalística e afirma: "Embora a literacia científica e técnica nunca tenha estado tão desenvolvida, o público dedica muito pouco tempo à leitura de romances ou de poesia, que continuam a ser a forma mais garantida e recompensadora de penetrar na comédia e no drama da existência, e de ter oportunidade de reflectir sobre aquilo que somos ou podemos vir a ser. Ao que parece não há tempo a perder com a questão pouco lucrativa de, pura e simplesmente, ser. ” Que cultura é esta que parece rejeitar a criação de pensamento e se fica pela emoção?Historicamente, quando se vê o que tem sido a marcha dos seres vivos, há coisas que são previsíveis e outras que não são. E depois há certas coisas que acontecem, em que as pessoas não apreendem nem prevêem as consequências. O que se está a passar, por exemplo com a Internet e as redes sociais, é uma entrada extremamente larga dentro das mentes. É uma coisa que entra dentro de nós e que tem o poder de modificar a forma como pensamos e nos comportamos. A sociabilização. Exacto. Há uma entrada dentro do que somos do ponto de vista mental a um nível completamente diferente de outras tecnologias. Não é tão somente um telefone. É o telefone e a possibilidade de entrar num mundo de conhecimento de forma imediata. Ter essa informação toda é extraordinário mas o que temos de pensar é o que acontece com as pessoas que só têm vivido com isso e não tiveram a possibilidade de se desenvolver com mais distância em relação ao que se está a passar nessa rapidez de tecnologia. Há também o problema do que vai acontecer quando as pessoas ficarem sem tempo para reflectir sobre o que estão a viver. Vão ter a possibilidade de ter tudo muito rapidamente, a quantidade de informação é enorme e a maneira de resolver os conflitos tem de ser diferente. E vai ser mais complicada porque não há tempo para o discernimento. É possível fazer o contra-argumento: é o problema que temos por sermos de uma geração anterior e não termos crescido com isso, e os cérebros das pessoas que já cresceram com isso estão adaptados. Isso é verdade em parte, mas não quer dizer que essas novas pessoas que cresceram dessa maneira não tenham ao mesmo tempo reduzido a sua possibilidade de olhar para o mundo de uma forma mais calma e mais completa e reflectida. É um problema em aberto, que tem de ser estudado, e não o tem sido porque tudo está a acontecer agora. Usa as expressões “bancarrota espiritual” e “bancarrota moral” para classificar o que está a acontecer. E poderia juntar aqui a trigger warning, que está ligada a tudo isso. Por exemplo, numa aula pode haver uma discussão sobre violência ou sobre sexo e um aluno levanta a mão a dizer trigger warning, i dont feel safe anymore. É uma concepção da vida como se a pessoa pudesse viver protegida de tudo o que não é conveniente e, ao mesmo tempo, ficar sem a possibilidade de perceber o que se está a passar e de se defender inteligentemente. O presidente actual da Universidade de Chicago tem escrito sobre isso e diz que eles rejeitam isso ao abrigo do trigger warning e isso é uma remoção da educação e nós, como universidade, não vamos deixar que os nossos estudantes sejam amputados e fiquem sem a possibilidade de responder inteligentemente às ameaças. Tudo isto são problemas para serem estudados. É relativamente fácil olhar para a situação e reconhecer que o progresso é extraordinário, as possibilidades são magníficas e ao mesmo tempo também temos de reconhecer que precisam de ser estudadas para ver se podem correr melhor. As razões pelas quais as coisas não correm bem serão imensas mas há possibilidades. A questão que referia há pouco, do ser, é tão importante e parte do pressuposto de se conseguir estar consigo próprio e observar a maravilha da existência sem preocupações com aquilo que vem antes ou depois. É uma capacidade unicamente humana. Estamos há muito tempo a conversar e pergunto-lhe o que é que isto tudo tem a ver com biologia?Há biologia em variadíssimas áreas. A biologia no que diz respeito à nossa violência ancestral. Somos primatas, a nossa herança é a de animais. . . e trazemos a autodestruição connosco. Falo de Freud e da ideia de auto-destruição. Ele chama a atenção para uma coisa que é muito real e que as pessoas muitas vezes querem esquecer: a ideia de que somos capazes de violência. E há uma ideia que é consequente a essa e tem a ver com a educação, com o facto de que a única maneira de resolver o problema da nossa violência natural e de como naturalmente as pessoas querem estar com aqueles que são parecidos e não com os diferentes. Tem de haver um plano de educação extraordinário, uma espécie de super-plano de investimento global que não tem sido feito por razões que são também históricas e sociopolíticas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O mundo é dividido, depois há uma crise económica, uma crise política que leva a migrações, essas migrações trazem dificuldades e há reacções contra e não há possibilidade de coordenar globalmente um plano educacional. Para mim não é uma ideia mítica, acho possível. Não é possível só com as Nações Unidas. Tem sido possível em certos períodos. Os Estados Unidos, com todos os seus problemas, tiveram uma acção extraordinária no pós-guerra. Há um período que não é de paz completa, em que houve um investimento em reconstruir países e permitir que houvesse um alargamento da educação e da maneira de compreender outros que são diferentes. É uma grande projecto que, em parte, funcionou, tem funcionado, mas que neste momento está a ser ameaçado. Já viveu no Iowa, em Chicago, agora vive em Los Angeles. Da sua experiência pessoal, as diferenças acentuaram-se entre esses três mundos geográficos. Há um país muito dividido. Um centro que se sente esquecido e as margens liberais. Há muitas semelhanças com as experiências europeias. Nos EUA é uma coisa mais orgânica. Sempre tiveram enormes divisões geográficas. Há uma narrativa histórica que conseguiu compensar e impor um bom funcionamento em conjunto à volta de certos mitos e neste momento há uma fragilidade das relações, há fenómenos económicos extraordinariamente importantes e há uma evolução de tempos diferentes em diversas comunidades. Mas veja a Europa, encontra exactamente os mesmos problemas – que na Europa são muito velhos e um pouco esquecidos. Isso está dentro do que são os seres humanos; os seres humanos a criarem um grupo, uma história com determinados hábitos, determinadas preferências e a forma como aceitam, ou não, que isso possa ser suplantando. A entrevista encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO
REFERÊNCIAS:
Assombrações do Rio
O nome de Bolsonaro raramente foi pronunciado e todas as palavras foram medidas. O Festival do Rio na ressaca das eleições brasileiras - e perante a desmaterização fantasmagórica do mal. (...)

Assombrações do Rio
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O nome de Bolsonaro raramente foi pronunciado e todas as palavras foram medidas. O Festival do Rio na ressaca das eleições brasileiras - e perante a desmaterização fantasmagórica do mal.
TEXTO: Jair Bolsonaro foi eleito três dias antes do início do 20. º Festival Internacional do Rio. Deste lado do Atlântico, antes de partir, assistia a um pequeno filme de 3 minutos que a realizadora Teresa Villaverde rodou no dia da eleição, em São Paulo, e logo disponibilizou na sua página de Vimeo. Chama-se, simplesmente, Av. Paulista 28. 10. 18. E tão simples como o título é a sua estrutura: essencialmente um plano fixo, frontal, de um cinzento pelotão de militares que servem de fundo às sucessivas poses fotográficas dos apoiantes do novo presidente eleito, quase sempre envergando a colorida bandeira brasileira. A campanha fascizante de Bolsonaro logrou apropriar-se de duas iconografias: o festivo uniforme da selecção de futebol do Brasil e, por outro lado, a monótona e escura farda militar. Um nacionalismo militarista que o testemunho de Villaverde capta na sua ostensiva contradição pictórica. Esperava portanto um país em guerra civil, confrontos na rua, comícios em cada esquina. Achei que não haveria festival, que todas as sessões seriam interrompidas por clamores de “Ele Não!” (na verdade o festival esteve para não acontecer mas por questões de financiamento decorrentes da mudança do Prefeito do Rio de Janeiro – de um partido democrático cristão –, que cortou todos os apoios ao evento). Mas chego ao Rio e tudo está calmo, as pessoas tomam cerveja nas esplanadas, conversam, aparentemente felizes e descontraídas. Questiono as minhas novas amizades sobre este estado de coisas: é a ressaca, respondem-me. Depois de uma campanha eleitoral que levantou quezílias antigas e fez surgir novas, que dividiu famílias e separou amigos, a vontade de descanso e escapismo impuseram-se. Isso, mas também a consciência de que uma sombra escurece tudo e todos. Ao contrário do esperado, nenhum dos realizadores gritou o que fosse – excepção para João Salaviza. O nome da besta raramente era pronunciado e todas as palavras eram cuidadosamente medidas, como se, mesmo ali, numa sala de cinema cheia de “pessoas da cultura”, não se soubesse exactamente quem se tinha na frente. Convém lembrar que, no final das contas, quase 60 milhões de pessoas votaram em Bolsonaro. Esse peso sente-se por entre a jovialidade de quem quer, finalmente, ver filmes e pensar noutras coisas. Um peso que se traduz na ponderação das palavras e no tom de voz à mesa do jantar. Mas que, também é certo, se dissipa rapidamente no anonimato de uma plateia de sala de cinema que irrompe violentamente em aplausos, defronte de um filme que acicate os seus de sentimentos de revolta e indignação. Duas curtas-metragens, em particular, invocaram as fatídicas palavras do então deputado Bolsonaro aquando do impeachment da presidente Dilma, em que este louvou Carlos Alberto Brilhante Ustra (o primeiro militar condenado pela Justiça Brasileira pela prática de tortura durante a ditadura, em 2008): Universo Preto Paralelo e Mais Triste que Chuva num Recreio de Colégio. Em ambas os realizadores optaram por apenas usar a trilha sonora desse momento, retirando o corpo à voz. E aqui começa o processo de desmaterialização fantasmagórica do mal que parece caracterizar este cinema “pós-golpe”. Bolsonaro não é mostrado, apenas aludido, o seu nome não é pronunciado, apenas subentendido – como já disse, nos filmes e também nas ruas –, e parece que a sua figura se aproxima de uma qualidade imaterial. Como comentava um amigo de redes sociais, sobre esta questão, “No judaísmo, o nome de Deus não se pronuncia, porque seria o equivalente a fazer decair o sagrado à finitude da linguagem. ” A recusa da concretude grotesca de Bolsonaro só ajuda a mitificá-lo e o cinema brasileiro, até agora e na medida do que pude ver, ainda não soube pegar o touro pela cornadura – o mais próximo terá sido O Processo de Maria Augusta Ramos. Fiquemo-nos então pelos fantasmas e pelas alegorias. É comum dizer-se que em períodos de administração republicana, no Estado Unidos da América, há uma renovação do género de terror no cinema de Hollywood. Nos últimos dois anos, no Brasil, o cinema de terror começou também a ganhar mais espaço e a tornar-se eminentemente político. Veja-se o regular trabalho de Marco Dutra e Juliana Rojas (cujo mais recente título estreou nas salas nacionais, As Boas Maneiras), os primeiros passos de Gabriela Amaral Almeida (cujo mais recente A Sombra do Pai passou nesta edição do Festival do Rio, assim como a sua estreia, no ano anterior, O Animal Cordial), o cinema de Guto Parente ou a estreia de Dennison Ramalho (com Morto Não Fala, também em competição no festival – que o Motelx apresentou na última edição). A acção destes filmes tende a trabalhar os confrontos de classe, opondo muitas vezes dois mundos: o centro moderno da cidade e a periferia. É esse o caso dos dois filmes de terror que competiam este ano pelo Prêmio Petrobras de Cinema, os já referidos A Sombra do Pai e Morto Não Fala. Aliás, ambos partilham uma série de lugares-comuns: uma semelhante família quebrada (em ambos a presença fantasmática da mãe ausente influi no quotidiano dos vivos); uma semelhante figura paterna autoritária; uma parecida lacuna afectiva na descrição das crianças; o mesmo tratamento evocativo dos objectos do morto; um aproximado retrato suburbano das grandes metrópoles brasileiras (o trabalho mal pago e a sombra do desemprego). Claro que o tom do filme de Dennison Ramalho está muito mais perto do cinema de culto, enquanto que o filme de Amaral Almeida é o de bom aluno do “cinema de fluxo” contemporâneo. O que importa notar nestes dois filmes, como reflexo de um Brasil convulsivo, é a desagregação familiar e o convívio com o sobrenatural como coisa quotidiana (e não como algo extraordinário). Como se falar com um morto desmembrado na morgue ou enterrar um dente do ciso e ver germinar dele a mãe morta fosse algo tão comum como fritar um ovo ou ir à escola. Mas se estas são as aproximações mais directas a uma realidade perturbada pelo fascismo e pelo tele-evangelismo, outros títulos procuram encontrar no desenho do passado um caminho para compreender o presente. Deslembro, de Flávia Castro, é um retrato doce e íntimo de uma adolescência em tempos de ditadura. Sendo que muito daquilo que é a história do filme é profundamente pessoal: um despertar para a idade adulta de uma filha de pai vítima da ditadura militar brasileira e de padrasto militante da resistência chilena. Um mapeamento afectivo das sequelas familiares que os espíritos revolucionários da esquerda dos anos 1970 deixaram junto dos seus entes queridos. E de forma muito distinta, também Gilda Brasileiro – Contra o esquecimento, de Roberto Manhães Reis e Viola Scheuerer, aborda uma história não tão distante assim da realidade brasileira contemporânea: a escravatura. Os realizadores acompanham Gilda, uma mulher que investiga a herança esclavagista da sua cidade. Em particular, um trilho e uma casa de comércio de seres humanos que funcionou durante várias décadas após a abolição da escravatura no país. E o que é surpreendente são os testemunhos fotográficos (o brilho revelador dos daguerreótipos) e documentais, mas também dos vivos que ainda conheceram os resquícios desse horror. Quando no Brasil se questiona os factos do período ditatorial e assomem as formas mais básicas de racismo (pela boca do presidente eleito) estes filmes servem como exercícios de rememoração colectiva do um terror muito recente. Os melhores filmes brasileiros que competiam na secção principal eram dois títulos assombrados: pelos “antepassados” e pelo próprio cinema. Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, de Renée Nader Messora e João Salaviza, foi feito junto de uma comunidade indígena brasileira, os Krahô, e adaptou histórias e rituais locais. Em especial o de um rapaz da aldeia que começou a ser assombrado pelo espírito do seu falecido pai, vendo-se obrigado a realizar a sua festa de fim de luto. ?Essa presença fantasmática leva Ihjãc, o protagonista, a fugir da aldeia para a cidade mais próxima onde lida com a burocracia e os vídeo-jogos do café. Uma das sequências mais curiosas do filme (que desmonta um pouco a aura mística que os povos indígenas sempre têm aos olhos ocidentais) corresponde a essa estadia, repleta de gags cómicos que se prendem com uma incompreensão mútua entre mundos, línguas, culturas e costumes. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Só que Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos existe sempre em tensão. Uma que se prende, paradoxalmente, com a sua extrema proximidade à comunidade que filma e com a vontade de fazer um objecto cinematográfico que represente bem os Krahô e, ao mesmo tempo, represente bem a cinefilia do olhar dos cineastas. Os realizadores admitem que tentaram evitar o "tratado antropológico" fazendo algumas cedências, nomeadamente no que respeita à fidelidade da tradução da língua indígena, mas noutros momentos, como a descrição dos rituais fúnebres, optaram por preservar a cronologia dos eventos, mesmo a desfavor do ritmo narrativo. O filme habita então um limbo entre o desejo de cinema e o desejo de fidelidade, como que lutando consigo mesmo. E os primeiros minutos são particularmente importantes na forma como parecem expor esse “processo de intenções” de forma clara mas também simbólica: numa espécie de noite americana azulada conhecemos uma figura masculina por entre a vegetação, quase confundindo-se com ela, em planos fixos, quase abstractos de tão escuros. Depois a câmara fixa-se nas costas dessa figura. Nelas projectam-se os raios de lua filtrados pelo rendilhado das folhas e das árvores altas. As costas feitas tela, o corpo feito ecrã, o meio projectado no homem e o homem projectando-se no meio. Tensão e simbiose no cerrado do Tocantins. Já Domingo, de Clara Linhart e Fellipe Gamarano Barbosa, começa com um tango argentino na trilha sonora; no segundo plano apresenta três personagens alcoolizados, deitados em espreguiçadeiras, junto à água; as crianças brincam e na primeira linha de diálogo ouve-se “que saudades tenho de Buenos Aires”. Só não percebe quem não quer: Domingo é uma releitura brasileira de O Pântano de Lucrécia Martel em versão comédia sexual de desenganos – a primeira versão do argumento data de 2004, quando o Novo Cinema Argentino começava a transformar-se em cânone da contemporaneidade. Aqui encontramos uma mesma burguesia decadente, o mesmo ambiente pantanoso e o mesmo conflito de classe entre a família rica e os criados. Mas onde o filme de Martel levantava já várias questões sobre a interiorização do colonialismo na sociedade argentina, Domingo trabalha isso segundo o ponto e vista da política contemporânea brasileira: tudo se passa em 2003, no dia da tomada de posse de Lula da Silva. Era portanto para ser uma sátira sobre o fim de uma época, onde os antigos privilégios se democratizavam e já só restava o fogacho das aparências. No entanto, por questões de produção, o filme só ficou pronto em 2018, o que lhe dá um sentido diametralmente oposto. Já não é a vingança do proletariado, tudo virou profecia negra sobre a ascensão do fascismo: o anti-petismo como ideologia dominante. Alguém diz a certa altura, “quero ver o circo a arder” e de facto a dupla de realizadores delicia-se nesse fim de tempo onde tudo está à beira de se desmoronar. E perante a queda inevitável só resta beber, beber, snifar, foder e beber um pouco mais. Aí o filme encontra o seu centro, no humor triste e desesperado feito de portas trancadas e de trancas abertas. Especialmente quando se filmam cenas de conjunto, onde a dúzia de actores do filme ocupam todo o espaço e se movimentam elegantemente em redor de uma câmara que flui pelos rostos e pelos gestos de cada um deles. Mas o momento mais perturbante é quando se ouve a voz de Lula, no seu discurso de tomada de posse, feita assombração do conturbado presente brasileiro. Também aí não há corpo e, ouvidas agora, essas palavras de 2003 parecem já saídas da prisão onde o ex-presidente habita nos dias de hoje. Roucas e sem esperança, soterradas por um presente inimaginável. Quem diria que este era o futuro do Brasil…
REFERÊNCIAS:
Por que está a bandeira amarela? O que é o levante?
Desde terça-feira que faz sueste (vento de sudeste) na costa sul algarvia, situação que poderá manter-se até ao início do fim-de-semana. E isso nota-se na temperatura ambiente mais elevada, particularmente naquela região, mas que poderá correr o país todo. Trata-se do levante, fenómeno meteorológico vulgar no Algarve, que pode ocorrer uma ou duas vezes por mês, mas desconhecido dos banhistas de passagem. (...)

Por que está a bandeira amarela? O que é o levante?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-08-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Desde terça-feira que faz sueste (vento de sudeste) na costa sul algarvia, situação que poderá manter-se até ao início do fim-de-semana. E isso nota-se na temperatura ambiente mais elevada, particularmente naquela região, mas que poderá correr o país todo. Trata-se do levante, fenómeno meteorológico vulgar no Algarve, que pode ocorrer uma ou duas vezes por mês, mas desconhecido dos banhistas de passagem.
TEXTO: Sobram lamentos pela súbita agitação marítima, o suficiente para serem chamados à atenção pelos nadadores-salvadores, quando se desrespeita a bandeira amarela. E não respeitar a indicação de "pode-se tomar banho, não se pode nadar" vale uma coima. Diz o adágio popular que "de Espanha nem bom vento, nem bom casamento". Deixando de lado a segunda premissa, a primeira pode ser enganosa. Mas depende do ponto de vista. Aquele vento de levante corre de leste na região do estreito de Gibraltar e ganha velocidade quando apertado pelas placas continentais europeia e africana, afectando as águas mediterrânicas. Pode atingir valores entre os 60 e 70 km/h, mas quando dobra a região de Cádis perde intensidade, chegando a Portugal já na orientação sudeste, calmo, ou moderado, mas quente, trazendo consigo a agitação marítima, que em mar aberto pode provocar ondulação até três metros. Aqui, sim, um problema para a actividade piscatória profissional. E para os apreciadores de peixe, pois em casos extremos rareia o pescado, o que faz disparar o preço em banca. Por outro lado, a temperatura da água sobe, podendo assim manter-se vários dias, mesmo depois de aquela voltar à sua habitual quietude. Ontem, segundo os dados do Instituto de Meteorologia, a estação da ilha de Faro registava 22, 1 graus na água do mar. Não é difícil estes valores subirem até aos 25 graus. Também o Instituto Hidrográfico da Marinha portuguesa avalia estes e outros parâmetros das águas costeiras. De acordo com os dados que disponibiliza ao público, a bóia ondógrafo (que recolhe aquelas informações) colocada ao largo de Faro mediu ontem 1, 51 metros de altura média da ondulação. A altura máxima chegou aos 2, 53 metros, com a direcção de SE (sudeste) e temperatura da água (naquele local) de 20, 6 graus. As comunidades piscatórias pressentem-no e preparam-se. O alerta é a subida de temperatura e uma neblina salobra que dá outra coloração ao céu. E há um cheiro a mar na faixa costeira em zona urbana. João Paguado, mestre da embarcação Sãozinha Machado, de Santa Luzia, Tavira, que tal como as outras ali sedeadas se dedica à apanha do polvo - Santa Luzia é onde mais polvo se pesca no país, se bem que agora ele seja um bem escasso -, não foi ontem ao mar. "Está levante e aproveitamos para fazer uma limpeza à embarcação, pois sexta-feira [amanhã] vem aí a vistoria de higiene", diz. Mais alimentosUm dos tripulantes do Sãozinha Machado avalia que o actual levante "ainda não está forte, e uns foram [ao mar], outros não": "Amanhã [hoje] deverá estar pior. E isso pode ser um problema, pois ondulação forte é sinónimo de embarcação parada e por consequência menos uma oportunidade para sustentar a família. " Mas o fenómeno - que para os pescadores algarvios faz parte da vida, como o sal da água - também é bom para a pesca: "Não é só a água que aquece que traz peixe, são os fundos que ficam revolvidos com a ondulação. " Ou seja, fundos revolvidos libertam alimentos para a vida marinha, algas e plâncton. Morre em S. VicenteTambém os pescadores lúdicos cheiram o levante e aguçam o apetite para a captura. Artur Cardoso vai para a barra de Tavira, onde na zona de abrigo do esporão de poente se costuma formar uma boa onda para surfar. A Polícia Marítima não gosta que se juntem ali os pescadores, pois os novelos de linha de pesca perdida podem constituir perigo para a navegação que atravessa a barra. "É robalos, ao corrico, e sargos, de bom tamanho. Sueste é bom para este peixe. " O mesmo se passa ao longo de toda a costa. A ondulação do levante não poupa ninguém, embora os seus efeitos vão perdendo intensidade a partir das ilhas-barreira de Faro, chegando quase desvanecido a Lagos, para morrer à passagem do Cabo de S. Vicente.
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Palavras-chave alimentos casamento