Música e artes de África animam Évora
Festival começa esta sexta-feira no Palácio de Cadaval e no Templo Romano e decorre até 25 de Agosto em vários outros lugares do Alentejo. (...)

Música e artes de África animam Évora
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Festival começa esta sexta-feira no Palácio de Cadaval e no Templo Romano e decorre até 25 de Agosto em vários outros lugares do Alentejo.
TEXTO: Após meia dúzia de anos virado para as culturas do Oriente e para o imaginário da música sacra e clássica ocidental, o Palácio de Cadaval, em Évora, olha agora para África. E a cerimónia Bwaba, com as “máscaras da lua” do Burkina Faso, com que esta sexta-feira, pelas 22h00, abre no Templo Romano da cidade o programa do festival Évora África, marcará o sentido dessa viragem. “Era a altura de abrirmos o nosso espaço a novas culturas e a novas dinâmicas”, explicou ao PÚBLICO Alexandra de Cadaval, directora do novo festival, que promete animar aquela cidade e o Alentejo ao longo dos próximos três meses com um extenso programa especialmente centrado na música e nas artes plásticas. “Vamos ter 17 artistas representados na exposição Africa Passions e centena e meia de músicos a realizar 30 concertos”, acrescenta a responsável pelo programa, que terá como palco principal o palácio daquela família centenária, no centro histórico de Évora. E se as artes plásticas, a fotografia e a música constituem o núcleo central da programação, ao longo das semanas que decorrem de agora até 25 de Agosto haverá também dança, performances, animação com DJ, conferências e acções educativas. Uma experiência de sete anos vivida em Moçambique em acções de carácter humanitário e cultural justifica a reivindicação da “verdadeira paixão por África e pelas suas diferentes formas de cultura e de expressão artística” sobre a qual Alexandra de Cadaval edificou o novo festival. “Há todo um património que está a desaparecer cada vez mais, e cuja salvaguarda convoca o nosso esforço”, diz a directora do Évora África, que se propõe cumprir o seu papel neste esforço que se “exige à Europa” de atenção a “uma cultura extensíssima que, no fundo, é a raiz da nossa própria civilização”, acrescenta. É assim que o festival vai trazer ao Alentejo uma “festa da cultura africana” nos seus aspectos menos difundidos. Na música, por exemplo, se entre a centena e meia de intérpretes há nomes conhecidos de festivais de música urbana e world music, como a Orquestra Ballaké Sissoko ou o DJ Ibaaku, que já passaram por outros palcos portugueses, Alexandra de Cadaval promete “um festival fora do contexto tradicional da world music e da fusão”, ressalvando, no entanto, nada ter “contra esses géneros musicais”. Mas realça a preocupação em mostrar em Portugal “a autenticidade das práticas ancestrais da música e do canto”, que ela própria foi conhecendo no decorrer da sua vivência junto de tribos do Continente Negro. Para o programa musical do Évora África, a directora socorreu-se do apoio do musicólogo francês Alain Weber, um estudioso da música africana e consultor artístico da Cité de la Musique, em Paris, com quem, de resto, tinha já trabalhado no anterior festival dedicado ao Oriente. Num texto integrado no programa do festival, Weber chama a atenção para “a influência fundamental que a África teve, e ainda tem, quer na Europa” quer noutros cantos do mundo. “Como se exorcizasse o período trágico da escravatura, África transcendeu literalmente, tanto na sua forma modal como ritmicamente, a maioria da música popular actual, do gospel ao jazz, do blues ao rock, da soul ao rap, do funk ao hip-hop”, acrescenta o musicólogo. As raízes destes géneros vão passar pelo festival eborense num cartaz de trinta concertos em cujos intérpretes Alexandra de Cadaval destaca o DJ Ibaaku, do Senegal, um artista e multi-instrumentista prolífico que é também autor e compositor. E também a Orquestra Ballaké Sissoko, que regressa a Portugal, desta vez com uma formação em estreia europeia composta por 12 tocadores de kora, instrumento tradicional da África Ocidental. Nas artes plásticas e fotografia, o festival acolhe na colectiva Africa Passions, uma selecção de arte contemporânea que reúne trabalhos de 17 artistas, comissariada pelo francês André Magnin (com Philippe Boutté). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “África tem uma originalidade que nasce das suas diferenças. A criatividade e a força artística do continente vêm da liberdade que os seus artistas concederam a si mesmos”, escreve Magnin sobre esta escolha onde o nome mais sonante é o do maliano Malick Sibidé (1936-2016), cuja obra já foi mostrada entre nós em lugares como os Encontros de Fotografia de Coimbra (2004), o Doc Lisboa (2010) ou os Encontros da Imagem de Braga (2016). Tendo conhecido André Magnin na Fundação Cartier, em Paris, onde o curador apresentou as exposições Beauté Congo (2015-16) e Mali Twist (2017-18), Alexandra de Cadaval desafiou-o a trazer agora a Évora um port-folio de 15 das fotografias de Mallick mostradas nesta última exposição concluída no passado mês de Fevereiro. Mas a directora do festival destaca também, em Africa Passions, o trabalho de Romuald Hazoumè, do Benin, que exporá as suas obras na igreja privada de São João Evangelista, no Palácio de Cadaval; e ainda a presença de Esther Mahlanghu, uma artista sul-africana de 83 anos que pinta com pincéis feitos de penas de galinha, e esteve cinco semanas em Évora a fazer um mural para o festival. “É uma senhora fantástica, que tem corrido o mundo, e que sendo 100 por cento defensora da cultura ancestral da sua terra, se afirmou também como uma grande artista contemporânea”, diz a responsável por Évora Africa.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave cultura negro escravatura
Uma grande gargalhada para a tragédia
O Centro do Mundo, estreia de Ana Cristina Leonardo no romance, é um pícaro, livro de heróis cómico e trágico, onde a história da Europa na primeira metade do século XX vagueia pela tragicomédia humana. (...)

Uma grande gargalhada para a tragédia
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.15
DATA: 2018-06-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Centro do Mundo, estreia de Ana Cristina Leonardo no romance, é um pícaro, livro de heróis cómico e trágico, onde a história da Europa na primeira metade do século XX vagueia pela tragicomédia humana.
TEXTO: "Em 1896 vinha ao mundo Boris Skossireff" e o facto seria determinante para a estreia no romance de Ana Cristina Leonardo (Olhão, 1959). Boris, aventureiro russo, figura tão real quanto inverosímil, é o grande alvo da imaginação da autora, filtro que nos aproxima de uma certa ideia de verdade, quase impossível de apurar seguindo os métodos de investigação tradicionais que a teriam levado por um caminho menos delirantemente literário do que o conseguido neste O Centro do Mundo. Não estamos perante uma biografia deste homem improvável, mas do retrato ficcional de alguém "de carácter temerário e grande pendor para línguas" que se cruzou com a história da Europa na primeira metade do século XX e pôs Olhão no centro do mundo. Autoria:Ana Cristina Leonardo Quetzal Ler excertoSão muitos os detalhes que desafiam a classificação mais ortodoxa de romance aplicada a esta narrativa onde o protagonista tanto pode ser Boris como Olhão, em que as fronteiras entre real e ficcional se tocam, o ensaio se cruza com a invenção, há diálogos entre o texto principal e as notas de rodapé, as fotografias — a preto e branco — de lugares e gente reais pontuam o pícaro de uma história povoada por gente bizarra, loucos, simples, lunáticos, aventureiros, em que o único compromisso com o que aconteceu é o de ser o grande inspirador e instigador de uma fantasia literária que tem como subtítulo Retrato Imaginário do Russo Apátrida Boris I de Andorra e Mano-Rei de Olhão, Agente dos Ingleses e Oficial da Wehrmacht, Preso e Condenado aos Gulags da Sibéria. Já se percebeu que não estamos perante um livro convencional, mas a sua originalidade não se confina a estes pormenores. Há um invulgar sentido de humor e de funesto, um pícaro próximo de livros como O Trincapregos, de Albert Cohen, o romance do herói cómico, mas também do desconcerto dos russos visível nas suas mais amplas variações nos contos de Tolstoi. Isso enquanto vai desfilando a história de Boris, que de forma sucinta se pode dizer que é um aventureiro russo, mas que é um pouco mais do que isso, alguém nascido em Vilnius, Lituânia, em finais do século XIX, que foge para Inglaterra durante a revolução russa. Ali, torna-se espião mas é despedido depois de passar cheques sem cobertura. A Holanda será a sua paragem seguinte e lugar de outra identidade: inventa que é duque. Tudo acaba depois de ser apanhado a roubar um relógio de ouro. Próximo destino: Canárias. Nova personagem: é um aristocrata russo desapossado de todos os bens pelos comunistas. Aí terá o auge da sua vida amorosa, envolve-se com um americana rica e com uma jovem inglesa até ir parar a Andorra onde joga todos os seus trunfos imaginativos e recursos linguísticos para ser nomeado príncipe. Será, mas por uma semana. É preso e depois de muitas peripécias chega a Barcelona, Madrid e passa a fronteira em Portalegre com a ajuda de Rolão Preto, o fascista que fazia oposição a Salazar, e pára em Lisboa. A intenção é chegar a França, mas, sem papéis, aconselham-no a ir por Marrocos a partir de um porto no Sul onde se sabe de um homem que ajuda quem quer sair do país por mar. Esse porto fica numa povoação piscatória, Olhão. “Se havia casa em Olhão onde Boris Skossyreff seria bem acolhido, era decerto a de Francisco Fernandes Lopes, excêntrico, desafectado e genial olhanense, ‘renascentista desgarrado do século XX’, como lhe chamou alguém que não entra nesta história. ” Esse médico de quem se diz que “sabia de tudo até de medicina” é uma das personagens que atravessam a vida de Boris, como um cineasta doido que um dia imigrou para a América e voltou a Olhão onde ajuda pessoas a fugir no seu barco de pesca por nenhuma outra razão além da solidariedade. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O ritmo do texto é por vezes alucinante, como quando elenca a doida relação de características de uma personagem, ou tem pausas para algum sossego ao convocar referências literárias, históricas, cinematográficas numa relação tão desconcertante quanto iluminada com o centro da narrativa. Proust está presente, como Scorsese, Xavier de Maistre, William Thackeray, Aquilino Ribeiro e todos os que Ana Cristina Leonardo chamou para iluminarem uma sátira, paródia, por vezes comédia de costumes, com muitas tragédias pessoais, entre elas a de Boris, o simpatizante de Hitler menos por convicções políticas do que por necessidade e engenho de sobrevivência, que foi parar à Sibéria, condenado a trabalhos forçados. A história de Boris, o poliglota de ADN impoluto, não é no entanto mais do que pretexto para uma história maior, a de Olhão. “Apesar da ‘nobre indiferença muçulmana pelo autoclismo, o esgoto, a árvore frondosa e a ânsia de ar das ruas novas’ de que falava Aquilino dando razão a Boris, e da falta de pergaminhos que já em 1758 era notada pelo prior Sebastião de Sousa, Olhão mantém um lastro de glória. Industriais, pescadores e vates contrabandistas continuam a partilhar o desrespeito pela lei e o culto do Senhor dos Aflitos, numa vila pródiga em dândis e espanholas, estrangeiros e aventureiros, sardinhas e anarquistas, operários e fedor. Tresanda, resume Raul Brandão. Não exagera o simbolista. Ao peixe que apodrece sob o calor africano junta-se a matéria fecal que escorre a céu aberto, húmus pestilento que Captain Zorra nunca conseguiu olvidar, memória primeva que nos conduz, um pouco abruptamente, é certo, a Marilyn Monroe, actriz que nunca veio a Olhão. ”Foi a esta Olhão que chegou Boris na década de 30 e a mesma que ele deixou pouco depois. Sabemos o que pensou do sítio pelo que a autora nos deixa ler, mas o que pensaram os olhanenses de Boris? Esse é o tema da verdadeira segunda parte deste livro, o capítulo Anexos, em que assenta o outro lado da história desse homem, mas, sobretudo, neste momento do livro, da narrativa que corre paralela, a de Olhão. Essas vozes desfilam na primeira pessoa. São cinco depoimentos, testemunhos individuais de um enredo colectivo, criações da imaginação da escritora que conhece o potencial de comicidade da riqueza e da pobreza, da miséria ou da opulência, de um provincianismo que contrasta com a grande História, também trágica, da Europa naquele período. E conhece além disso os recursos literários para fazer deste livro um caso singular na literatura portuguesa.
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
Terão sido os romanos os primeiros caçadores de baleias?
Análises a ossos de baleias revelam que duas espécies destes cetáceos que já não existem agora no estreito de Gibraltar e no mar Mediterrâneo migravam para essa zona no século I, em pleno Império Romano. (...)

Terão sido os romanos os primeiros caçadores de baleias?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.25
DATA: 2018-07-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: Análises a ossos de baleias revelam que duas espécies destes cetáceos que já não existem agora no estreito de Gibraltar e no mar Mediterrâneo migravam para essa zona no século I, em pleno Império Romano.
TEXTO: Ecólogos, arqueólogos e geneticistas juntaram-se para resolver uma incógnita: já havia uma indústria baleeira no Império Romano? Para desmontar esse enigma, analisaram ossos de baleias com cerca de dois mil anos encontrados no estreito de Gibraltar. Descobriram que pertenciam à baleia-franca-do-atlântico-norte e à baleia-cinzenta que já não habitam essa zona mas que deveriam ser comuns aí há dois mil anos. Como já havia métodos para caçar estas espécies, a equipa de cientistas – da qual faz parte a portuguesa Ana Rodrigues – defende a hipótese de que os romanos já caçariam baleias antes de os bascos o terem começado a fazer na Idade Média. Tudo começou com uma pergunta de uma equipa de ecólogos em 2011. “Sabíamos que duas espécies de baleias habitavam o Atlântico e que são espécies que se reproduzem em mares relativamente quentes e subtropicais noutras partes do mundo. Por que é que não se reproduziam também no Mediterrâneo?”, recorda Ana Rodrigues, primeira autora do artigo publicado esta quarta-feira na revista científica Proceedings of the Royal Society of London B e ecóloga no Centro de Ecologia Funcional e Evolutiva, em Montpellier (França), do Centro Nacional de Investigação Científica (CNRS). “Será que nunca lá estiveram ou será que estiveram e desapareceram sem nos termos dado conta?” A única forma de saberem era através de ossos. Como tal, procuraram arqueólogos e encontraram uma equipa que estava a fazer a mesma investigação mas de outra perspectiva. “Tinham encontrado ossos de baleia em escavações e questionavam se seria possível que tivesse existido caça à baleia”, conta a ecóloga de 45 anos. A equipa do arqueólogo Darío Bernal Casasola, da Universidade de Cádis (Espanha), descobriu ossos em antigas fábricas de salga de peixe do período do Império Romano no estreito de Gibraltar. Além de o estreito de Gibraltar ser uma porta de entrada no Mediterrâneo, foi também um centro de exploração de recursos marinhos, da indústria de processamento de peixe e de exportação para todo o Império Romano. Como era impossível identificar os ossos através da morfologia, geneticistas juntaram-se ao trabalho. Ao utilizarem dois métodos – o de ADN antigo e de colagénio –, perceberam que os ossos pertenciam a um cachalote, uma baleia-piloto, uma baleia-comum, um golfinho – que ainda são frequentes no Mediterrâneo – e a um elefante-africano. “O elefante-africano que hoje só existe na zona subsariana [de África], antigamente também existia no Norte de África”, nota a ecóloga, acrescentando que teria sido usado como animal de guerra ou de trabalho, segundo os registos históricos. Também encontraram o que pretendiam: ossos da baleia-franca-do-atlântico-norte (Eubalaena glacialis) e da baleia-cinzenta (Eschrichtius robustus). “A baleia-franca é das baleias mais gordas, porque tem uma camada de gordura, que lhe permite viver uma parte do ano [sem se alimentar] enquanto se reproduz”, descreve. Essa “camada de banha” fez com que fosse das baleias preferidas dos caçadores. É preta, tem barbas grandes e é uma das maiores baleias que existe, podendo chegar aos 18 metros. Actualmente está classificada como “em perigo” pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). Em tempos, já habitou o Leste do Atlântico Norte, mas hoje só existem cerca de 500 indivíduos no Oeste do Atlântico Norte. Já a baleia-cinzenta pode alcançar os 15 metros. É uma espécie costeira e é cinzenta porque está coberta de cracas. “A baleia-cinzenta foi uma baleia relativamente secundária [na caça], porque era mais pequena e não era particularmente produtiva”, indica Ana Rodrigues. Actualmente só vive no Pacífico Norte. As duas espécies sofreram com a caça à baleia que foi proibida durante o século XX. Os cientistas também procuraram referências às baleias em documentos históricos. “O problema é que quanto mais para trás [no tempo] vamos, menos precisão os escritores têm em termos de terminologia utilizada e menos se sabe o que o queriam dizer”, conta Ana Rodrigues. Mesmo assim, os termos mais usados (em latim) são balæna ou cetus, que incluía atuns, tubarões, focas, baleias, grandes peixes ou monstros marinhos. Analisaram excertos da obra História Natural, de Plínio, o Velho, escrita no século I, onde o naturalista faz uma descrição de um ataque de orcas a baleias, que se reproduziam na baía de Cádis no solístico de Inverno. “Hoje em dia, não há nada parecido com isto porque nenhuma das espécies que existe se reproduz na zona costeira. Mas corresponde às duas espécies, não sabemos é a qual. ” Também estudaram o poema épico Haliêutica, escrito pelo poeta grego Opiano entre o século II e o III. Aí é descrita uma captura a um monstro marinho com métodos – como barcos a remos e arpões – que podiam ser usados para caçar as duas espécies de baleias. Portanto, mostraram que essas duas baleias estavam presentes na zona de Gibraltar e, muito provavelmente, entravam no Mediterrâneo para se reproduzir. No Verão, alimentar-se-iam em águas frias e de altas latitudes do Atlântico – perto da Islândia ou dos bancos da Terra Nova. No Inverno, migrariam para as zonas mais quentes, como o Mediterrâneo, onde viveriam das suas reservas. “A sua presença em águas de baixa latitude indica que estavam já na zona de reprodução em Gibraltar ou de passagem para uma outra zona mais no interior do Mediterrâneo”, explica Ana Rodrigues. “A nossa hipótese é que, se calhar, os romanos começaram a caçá-las antes da caça industrial que, supostamente, se iniciou com os bascos [na Idade Média] e que a população de baleias que entrava no Mediterrâneo pode ter desaparecido antes dos registos históricos terem começado a referir a caça dos bascos. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Contudo, no artigo sublinha-se: “Nada disto demonstra que existia uma indústria baleeira romana, mas indica que os romanos tinham os meios, o motivo e a oportunidade para capturar baleias-cinzentas e baleias-francas a uma escala industrial. ” A comprovação desta hipótese será agora para os historiadores, que analisarão fontes literárias, e para os arqueólogos, que continuarão a estudar vestígios. “Para mim, a coisa mais interessante é termos esquecido as espécies que seriam visíveis e costeiras numa das zonas mais conhecidas e estudadas do mundo”, deslumbra-se a ecóloga. Já há dez anos em França, Ana Rodrigues continuará a tentar desmistificar a forma como os ecossistemas mudaram à nossa volta. E dá-nos um exemplo (especulativo), até porque quando as baleias passavam para o Mediterrâneo seriam visíveis da costa portuguesa: “Imagine o estuário do Tejo cheio de baleias a reproduzirem-se. É uma imagem que me parece mágica, credível e possível do ponto de vista ecológico. ”
REFERÊNCIAS:
Daniel Berehulak contou o que mais ninguém quis contar
Ao serviço do New York Times, o fotojornalista esteve no epicentro da epidemia de ébola na África Ocidental. O trabalho valeu-lhe o Pulitzer de 2015 para Reportagem Fotográfica. (...)

Daniel Berehulak contou o que mais ninguém quis contar
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ao serviço do New York Times, o fotojornalista esteve no epicentro da epidemia de ébola na África Ocidental. O trabalho valeu-lhe o Pulitzer de 2015 para Reportagem Fotográfica.
TEXTO: Sentámo-nos à conversa num bar de tapas no Born, bairro hipster de Barcelona. Daniel Berehulak acabava de chegar do Nepal, onde estava há quase um mês a registar a devastação provocada pelos sismos de Abril e Maio. Mais uma missão para o The New York Times, jornal com o qual tem colaborado quase em exclusivo desde que se tornou freelance em 2013. “Estar aqui em Barcelona é como voltar ao paraíso. No Ocidente, não damos conta do quanto somos privilegiados”, desabafa. O fotojornalista australiano vive entre Nova Deli, na Índia, e a capital da Catalunha, e dias depois da entrevista receberia em Denver, nos EUA, o Scripps Howard e, em Nova Iorque, a 28 de Maio, o Pulitzer — prémios atribuídos à crème de la crème do jornalismo e da fotografia. “Isto de ganhar o Pulitzer é, aparentemente, uma grande coisa. A sério! Sobretudo para mim que cresci numa quinta onde ajudava o meu pai a plantar árvores e a apanhar bosta de vaca todos os dias”, diz, em tom jocoso. Filho de um casal ucraniano que emigrou para a Austrália no pós-Segunda Guerra Mundial e se instalou numa propriedade rural nos arredores de Sydney, aprendeu “desde tenra idade com o trabalho no campo que para se conseguir alguma coisa na vida é necessário lutar muito”. “A fotografia foi sempre um hobby. Mas a minha família nunca encarou essa minha paixão como uma possibilidade de emprego. E eu tinha zero talento. Tirei milhares de fotografias péssimas. Tive de trabalhar arduamente e ser muito determinado. Fiz uma caminhada em que não reconheço erros, só crescimento e aprendizagem. Acredito que podemos conseguir qualquer coisa na vida se trabalharmos mais e melhor do que todos os outros. ”Veterano na cobertura de conflitos armados e crises humanitárias, Berehulak, 39 anos, é, nas suas palavras, “um fotógrafo que conta histórias, um fotógrafo de pessoas”. “A fotografia é a minha vida e é também uma paixão. Não aponto a câmara às pessoas a torto e a direito. Tento estabelecer uma relação com as pessoas, sorrir, mostrar-lhes quem eu sou. A partir do momento em que se cria essa empatia, a câmara está ali presente e só é utilizada quando alguma coisa acontece, quando realmente é preciso. ”Fascinado pelas missões em locais “onde a percepção que se tem dos fotojornalistas não está manchada pelos tablóides e paparazzi”, não hesitou quando o chamaram para fazer reportagens sobre o surto de ébola que, desde Dezembro de 2013, dizimava vários países da costa ocidental africana. “Estava a seguir o que se passava há alguns meses e questionava-me sobre a possibilidade de a epidemia se propagar e afectar outras partes do mundo. Ia a caminho do Curdistão quando o editor de fotografia internacional do The New York Times, com quem tenho uma excelente relação, me perguntou se eu queria fazer esse trabalho. Imediatamente disse que sim. ”O jornal norte-americano enviou, no segundo semestre de 2014, diferentes equipas de redactores e videojornalistas para a Libéria, Serra Leoa e Guiné-Conacri — um esforço colectivo igualmente recompensado com um Pulitzer na categoria de Reportagem Internacional. À excepção dos jornalistas locais, alguns também contratados ocasionalmente pelo Times, Berehulak foi, entre todos os colegas, o repórter que mais tempo esteve no epicentro da epidemia — um total de quatro meses, incluindo uma primeira missão na Libéria em que trabalhou sem folgas durante 67 dias e uma outra viagem à Guiné-Conacri onde descobriu a família do paciente zero. As suas fotos acompanharam notícias e reportagens escritas por cerca de 15 editores e redactores, mas no terreno trabalhou somente com dois ou três. Um deles foi Norimitsu Onishi, actualmente chefe da delegação do NYT em Joanesburgo. “Foi fantástico trabalhar com o Nori, demo-nos muito bem e durante sete semanas perseguimos juntos vários ângulos diferentes. ” Foi com esta dupla, um ocupando-se da escrita, outro da fotografia, que o NYT conseguiu mostrar o que realmente se passava na Libéria. “Depois de semanas a fotografar nas ruas, cheguei a um ponto em que já tinha tantas imagens de corpos e de pessoas doentes jogadas pelo chão que senti que não estava a acrescentar nada de novo ou importante à história. Esse é um dos problemas que se enfrentam ao cobrir situações de crise: via morte por todo o lado, estava física e emocionalmente exausto e não conseguia pensar num ângulo diferente. Trabalhar em equipa com pessoas que trazem novas ideias ajudou-me a reinventar o meu trabalho e a focar as minhas energias da melhor forma. ”Durante quase dois meses, os dois jornalistas seguiram a comunidade de Capitol Hill, na região suburbana de Monróvia, e várias das famílias que ali viviam. As peças do puzzle começaram a encaixar-se. “Começámos a acompanhar uma família, os Doryen. Através deles, conseguimos compreender como a epidemia afectava toda a sociedade. E tudo o que eu fazia antes, ao fotografar nas ruas diariamente, ganhou um novo significado. ” As famílias numerosas são o pilar das sociedades africanas, sobretudo em países devastados pela fome e pela guerra civil como a Libéria ou a Serra Leoa. “Um por um, fomos vendo morrer vários Doryen. Um jovem jogador de básquete, a Princess de nove anos, a Esther de cinco anos, que foi arrastada para um dos centros médicos mas também não sobreviveu. Íamos com eles às clínicas, chegávamos a ligar para as ambulâncias para os virem buscar”, recorda o fotojornalista, representado desde 2013 pela Reportage, uma equipa de elite da agência de fotografia Getty Images. “A destruição das famílias é a tragédia central da epidemia. São as famílias que sustentam estas sociedades, por isso os efeitos do ébola na região serão profundos e duradouros”, reflecte Onishi num dos seus artigos para o Times. Com os hospitais sem capacidade de resposta e sem camas e apenas 15 ambulâncias para recolher os doentes em toda a cidade de Monróvia, de 1, 5 milhões de habitantes, mães, pais, tios, filhos tinham duas alternativas: largar os seus doentes nas ruas e na frente dos centros médicos ou dar-lhes atenção e conforto, correndo o risco de serem também infectados. “A compaixão torna-se um perigo”, sentencia o jornalista de origem japonesa e canadiana. A transmissão do ébola entre humanos ocorre através de contacto directo com sangue e fluidos corporais de uma pessoa infectada ou pelo contacto com objectos contaminados. Os primeiros sintomas — febre, dores musculares, cansaço — surgem entre dois a 21 dias após a exposição ao vírus. Mas o perigo de contágio prolonga-se após a morte dos pacientes — os cadáveres são altamente contagiosos durante sete dias. “Estas sociedades têm rituais ancestrais de despedida e de enterro dos seus mortos. Estes costumes estavam a espalhar o vírus ainda mais depressa e a destruir famílias inteiras. Para aquelas pessoas, mudar esses hábitos e ver partir entes queridos sem lhes poder tocar ou fazer uma despedida com dignidade foi um golpe muito duro. ” Nas ruas, mesmo com recolher obrigatório e bairros encerrados para quarentena, o desespero era palpável. “Vi de tudo. Pessoas que arrastavam corpos pelas ruas porque não os queriam nas suas comunidades. Havia quem escondesse os mortos e quem pagasse a um estranho para levar os cadáveres às escondidas para uma ilha onde seriam enterrados respeitosamente. E havia também muita gente que continuava a agir como se nada se passasse porque não acreditavam que o vírus existia. Diziam que o Governo tinha criado o vírus, outros achavam que a culpa era dos americanos. Havia uma série de rumores a circular e por isso optei muitas vezes por não usar o fato de protecção. Se aparecesse nas comunidades, onde já havia revolta e negação, vestido naquela coisa branca e brilhante, podia antagonizar as pessoas e colocar-me em risco. ”Daniel Berehulak e a equipa do NYT, tanto a partir de África como de Nova Iorque, criaram um dos registos mais completos sobre o primeiro surto de ébola a atingir níveis epidémicos — um legado com milhares de fotografias, mais de 400 notícias, 50 chamadas de primeira página, dezenas de vídeos e infografias. Deram rosto às mais de 11 mil pessoas que perderam a vida e às 30 mil que contraíram a doença nos três países mais afectados. O surto está agora controlado e a Libéria declarou há três semanas que está livre do vírus. Mas as feridas continuam abertas — só na Serra Leoa há cerca de dez mil crianças órfãs de pai, de mãe ou de ambos. Um número muito restrito de casos, prontamente isolados, foram importados para a Europa (Reino Unido, Espanha e Itália) e EUA através de pessoal médico que se encontrava na África Ocidental em missão humanitária, sem deixar de provocar um certo histerismo mediático nos principais canais de informação internacionais. “Havia razões para ter medo e muitas incertezas. Por isso, quando cheguei à Libéria, não desatei a correr atrás dos acontecimentos. Tive de me conter. Observei, ouvi, aprendi e tentei absorver o máximo de informação possível para trabalhar em segurança. E é possível fazê-lo com as devidas precauções. ” Na sua mente, a missão de informar era mais importante do que tudo o resto e, para o fazer, o fotojornalista tinha de estar vivo e de boa saúde. “Oitenta por cento do trabalho no terreno é logística. A parte mais fácil é disparar a foto. Conseguir clicar garantindo que estás em segurança no meio de ambientes hostis é mais de metade do trabalho. Nesta última missão no Nepal, para chegar aos locais mais atingidos pelo sismo, tinha de convencer os exércitos indiano ou nepalês a levarem-me de helicóptero nas missões de salvamento e resgate. Havia uma pequena aldeia que não tinha acesso por carro e para lá chegar era preciso escalar cerca de oito horas por um terreno íngreme e em deslizamento. Tudo o que aprendi em toda a minha vida, e não apenas nos meus 15 anos de carreira, ajudou-me a abrir o caminho, a criar empatia com as pessoas, a estabelecer confiança num período muito curto de tempo, a convencer as pessoas da minha integridade. E depois tinha ainda de garantir a minha sobrevivência quando era deixado nalguma montanha: ter equipamento de campismo, saco-cama, comida, água. Ter o portátil e todas as baterias completamente carregadas e o telefone-satélite para transmitir dados. ”Durante as quatro viagens que fez à África Ocidental, Berehulak recebeu dezenas de emails de jornalistas interessados em fazer reportagem na região assolada pelo ébola: “Diziam-me: ‘Estou a pensar ir para aí, é seguro?’ E eu respondia: ‘É, aqui vai a lista de equipamento que deves trazer. ’ E depois ficava uma semana sem receber mais mensagens e acabava por descobrir que não tinham aceitado o trabalho. ”O desinteresse dos media internacionais chocou o fotojornalista e, ao mesmo tempo, motivou-o a continuar o seu trabalho. “Não havia quase ninguém a documentar o que se estava a passar. Éramos muito poucos no terreno mas conseguimos influenciar governos e obrigá-los a tomar medidas. Os EUA, por exemplo, enviaram militares, ajuda humanitária e médicos. Conseguimos galvanizar a opinião pública e divulgar informação sobre o vírus a uma escala mundial. É nossa obrigação enquanto jornalistas contar as histórias destas pessoas e se não o fizermos a ajuda não chega e as atrocidades continuam a acontecer. A CNN e a ABC, por exemplo, iam a Monróvia durante três a cinco dias, tentavam recolher o máximo de informação possível e depois fugiam a sete pés. É muito difícil fazer um trabalho inteligente e profundo em tão pouco tempo. ”Para muitos dos seus colegas, “cobrir a epidemia de ébola não é tão sexy como ir para a guerra”. “Não te vai dar aquela imagem de durão. É caro chegar a África e se ficares doente é uma sentença de morte. Só muito recentemente se descobriu que as pessoas podiam sobreviver e, para quem está sentado num escritório em Nova Iorque ou na Europa, estes factores pesam. Eu, por exemplo, sei que em missão para o The New York Times tenho sempre uma rede de segurança caso me aconteça alguma coisa, e isso ajuda, mas nunca tive o número de uma apólice apontado no telemóvel. Conheço muita gente que não aceitaria fazer reportagem sem ter o número do seguro escrito numa folha de papel. ”Até se aventurar como freelance, Berehulak era fotógrafo de agência, representando a Getty Images em Londres, na Austrália e na Índia. “Sempre trabalhei como staff de agência e não tinha sequer os direitos de autor sobre as minhas imagens. Agora, como freelance e colaborando regularmente com o Times, um jornal que tem uma audiência muito abrangente, senti que as minhas histórias receberam muito mais atenção e provocaram mais reacções do que qualquer um dos prémios que já tive. Recebi emails de CEO de organizações não governamentais a agradecer-me. É através do bom jornalismo e de fotografias poderosas que conseguimos interagir com as pessoas. ”A coragem, a paciência e um sentido de responsabilidade e de ética garantiram o Pulitzer a este homem robusto, que aos 23 anos, e após a morte da sua irmã, decidiu largar tudo e iniciar a carreira na fotografia. “As imagens captadas pelo Daniel são as mais memoráveis de toda a tragédia. Ele não queria desistir desta história, era muito paciente e aguardava o máximo de tempo que podia para que os acontecimentos se desenrolassem perante o seu olhar. As suas fotografias são soberbas e demonstram coragem, persistência e um talento para contar histórias inspiradoras”, diz Michelle McNally, directora de fotografia do The New York Times, num artigo publicado online a 20 de Abril, dia em que foram oficialmente anunciados os vencedores do Pulitzer. A fotografia escolhida para representar o extenso trabalho fotográfico premiado é o culminar de seis horas de espera em frente a um hospital ao lado de James Dorbor, o rapaz de oito anos que, na imagem, é carregado pela equipa médica. Como o fato de protecção não cobria na totalidade o pescoço dos dois médicos, James é transportado numa posição estranha, como que segurado por fios, e evitando ao máximo o contacto com o seu débil corpo. Antes de fazer a foto, Berehulak permaneceu horas ao lado da criança e do seu pai, que desesperava por não poder confortar o menino nos seus últimos instantes de vida. James acabou por falecer horas depois já no hospital. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Acredito que devemos ter paciência com tudo. Quanto mais tempo passar no local da tragédia, mais oportunidades vou ter de analisar com lógica o que se está a passar. O mundo actual é muito visual. Tanta gente fotografa bem e eu tenho de ser cada vez melhor para que o meu trabalho seja lembrado e se destaque entre tanta informação. Por isso, acredito no poder da grande reportagem. Quero que as pessoas folheiem o jornal e parem para ver a foto e, se possível, que sintam alguma ligação. A minha esperança é que as motive a fazer algo, a doar dinheiro, a ajudar. ”Berehulak, que já fez reportagem em mais de 40 países e venceu três World Press Photo, estava em Times Square a caminho da Reuters, onde se ia encontrar com um amigo, quando recebeu um telefonema do seu editor no NYT a anunciar que tinha ganho o Pulitzer. “Fiquei em estado de choque. Não conseguia pronunciar uma única palavra. ”Meses antes, entre viagens a África, e algures numa das suas muitas “casas”, sentiu na pele a mesma estigmatização que vira todos os dias nas cidades flageladas pelo Ébola. “Fui discriminado pela minha família e pelos meus amigos. Voltei por uma semana e queria conviver com as pessoas mais chegadas. Liguei para alguns amigos e eles diziam-me: ‘Daniel, hoje há uma festa mas preferíamos que não viesses’. ” Mais tarde, noutras ocasiões em que regressou a casa, preferiu não avisar ninguém. “Não queria confrontar os meus amigos, nem assustá-los. Eu sabia que não tinha corrido nenhum risco e para transmitir a doença eu teria de estar com sintomas. Foi muito difícil para mim, mas mesmo assim foi apenas uma pequena amostra do que as pessoas passam todos os dias na Libéria. Qualquer pequeno sacrifício que eu suportei não é nada. Eu só lá estava de passagem e no final do meu trabalho podia regressar a casa. Para eles, a vida mudou completamente. Perderam irmãos, filhos, pais. Outros foram rejeitados pela própria família. Esta é a vida deles e não têm como lhe escapar. ”
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Pelas vinhas mais bonitas da província do Cabo
Foram apenas três dias, muito pouco tempo para tanta beleza. Ainda assim, deu para conhecer algumas das vinhas mais bonitas da província do Cabo e provar vinhos icónicos da Áfríca do Sul, um país do “Novo Mundo” do vinho mas com uma história e vinhos do “Velho Mundo”. (...)

Pelas vinhas mais bonitas da província do Cabo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.675
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Foram apenas três dias, muito pouco tempo para tanta beleza. Ainda assim, deu para conhecer algumas das vinhas mais bonitas da província do Cabo e provar vinhos icónicos da Áfríca do Sul, um país do “Novo Mundo” do vinho mas com uma história e vinhos do “Velho Mundo”.
TEXTO: A luz já se desvanecia em tímidos raios de fogo saídos das costas das montanhas quando chegámos a Scholtzenhof, a fazenda de Ken Forrester, vindos directamente do aeroporto, oito horas de viagem entre o Dubai e a Cidade do Cabo. A vinha estava quase a florir, com lançamentos ainda pequenos mas suficientes para dar uma imagem de um verde contínuo, que atenuava a nudez da terra. É engraçado sair de um vindima no Douro e aterrar num lugar onde a produção só agora se começa a definir. Passa-se do Outono, a mais pictória das estações e fim de ciclo, para a Primavera, a época do “renascimento”, do clima mais ameno e dos dias cada vez mais tardios. Na África do Sul, a vindima só começa a partir de Fevereiro. Na região do Cabo, há sempre montanhas em linha de vista. É uma paisagem assombrosa. Nos últimos anos, as vinhas têm subido do fundo dos vales até cotas mais altas e mais frescas. As vinhas de Ken Forrester ficam no sopé da montanha de Helderberg ("a montanha clara"), no meio da mais importante e famosa região vitivinícola da África do Sul, Stellenbosch. A False Bay, a grande baía da região do Cabo, o “golfo entre montanhas”, como lhe chamou o navegador Bartolomeu Dias, fica a apenas seis quilómetros de distância. Scholtzenhof é uma das mais antigas fazendas da África do Sul. Pertenceu durante mais de um século e meio à família Botha, do antigo presidente da África do Sul Pieter Botha, defensor do regime do “apartheid” mas que acabou a participar na transição para a democracia. No início dos anos 1990, ainda antes da libertação de Mandela, a fazenda entrou em falência e, em 1993, foi comprada em leilão por Ken Forrester, na altura empresário da hotelaria e da restauração em Joanesburgo. Ken recuperou algumas vinhas, plantou outras e em menos de 20 anos tornou-se conhecido na África do Sul como “o senhor Chenin Blanc”. É um homem simpático, alto, forte, com barba e cabelo brancos. Praticou râguebi e é amigo de François Pienaar, o capitão da lendária selecção sul-africana que ganhou o campeonato do mundo de râguebi de 1995 e ajudou a salvar a África do Sul do desastre. “Quando saiu o filme Invictus [sobre esse momento decisivo da história recente da África do Sul que revelou um Nelson Mandela sábio, estatuto e infinitamente tolerante], perguntei ao meu amigo François Pienaar o que ele achava e ele respondeu-me: 'Uau! Foi mesmo assim!'”, recordou Ken Forrester. Um dos seus vinhos, o T- Noble, um colheita tardia de Chenin Blanc, foi servido no 85. º aniversário de Nelson Mandela. Provámo-lo e é um branco doce muito rico de aroma e sabor, povoado de notas meladas típicas da botrytis (podridão nobre causada por um fungo que desidrata a uva e faz concentrar os ácidos e os açúcares) mas também com a marca da Chenin Blanc (acidez alta e sugestões de marmelo, damasco, mel). A gama de Chenin Blanc de Ken Forrester é vasta e dos vinhos secos mais jovens e aromáticos aos brancos mais complexos e maduros, do espumante ao colheita tardia, está lá o carácter da casta by Ken Forrester. O que determina esse estilo é a decisão de Ken de privilegiar as baixas produções e apanhar as uvas bem maduras, algumas já com bagos contaminados pela botrytis. Os seus melhores Chenin Blanc chegam a ter 14% ou mais de álcool. “Para mim, o volume de álcool é apenas um número”, diz Ken. E é verdade que os seus vinhos mais maduros conseguem ser muito ricos e ao mesmo tempo incrivelmente equilibrados, como é o caso do fantástico The FMC, proveniente de uma vinha com 44 anos, sem aramação e com rendimentos da ordem das quatro toneladas por hectare. Um branco de barrica perfumadíssimo (fruta cítrica cristalizada, damasco, especiarias, mel), suculento e encorpado. A sigla quererá dizer “Fucking Magic Chenin” e é uma espécie de manifesto contra os anti-Chenin Blanc, a mais plantada e também a mais mal-amada variedade branca da África do Sul. A maior parte dos 38 hectares de vinhas de Scholtzenhof está plantada com Chenin Blanc, mas Ken Forrester também produz Sauvignon Blanc, Cabernet Sauvignon, Syrah, Merlot, Grenache, Mourvédre, Cabernet Franc e Petit Verdot. Um dos seus melhores tintos, o Gypsy, junta Grenache com Syrah. É perfeito para acompanhar as carnes que Ken serve no vizinho 96 Winery Road, o restaurante do hotel The Country Guest House de que é co-proprietário. O jantar foi lá. Ken nasceu na Zâmbia, mas a família é escocesa. Conversa puxa conversa e a dada altura falou-se do Douro, do vinho do Porto, do barão de Forrester, esse que morreu afogado no rio que conhecia melhor do que ninguém. “Morreu afogado porque levava muitos cintos. A Ferreirinha sobreviveu porque levava umas saias grandes“, recordou Ken. O "Senhor Chenin Blanc" conhece a história toda. Até já visitou a pousada com o nome de Forrester que existe em Alijó. Porquê tanto interesse? Não me diga que é?. . . . . “Sim, sou da família do barão de Forrester. Joseph James Forrester”, confirmou. Manhã de Primavera, cheia de sol e amena. Primeira paragem numa fábrica de queijos, a Fairview, antes de seguirmos para Boekenhoutskloof, onde é produzido um dos tintos mais famosos da África do Sul, The Chocolate Block. Da costa para o interior, abrem-se várias cordilheiras montanhosas e também uma sucessão de vales com aptidão para a viticultura. Um dos mais bonitos é o vale de Franschhoek. O nome, de origem holandesa, significa “o canto francês”. Por uma razão: foram huguenotes franceseses, protestantes fugidos das guerras religiosas em França, que a partir do final do século XVII se instalaram naquele vale e começaram a poduzir vinho com castas do seu país. Algumas das principais companhias vinícolas da África do Sul estão ali situadas e ainda mantêm os seus nomes franceses originais. O culto pela comida e e pelo vinho, também muito francês, transformaram a pequena mas lindíssima cidade de Franschhoek na “Capital Gourmet da África do Sul”. O vale de Franschhoek é uma perdição para os amantes do vinho e da comida e também para os amantes das vinhas. Uma das fazendas mais bonitas fica no canto mais distante do vale. Chama-se Boekenhoutskloof, termo que significa a "ravina do Boekenhout". Boekenhout é uma árvore local muito usada no fabrico de móveis. Em Boekenhoutskloof não nos sentimos bem dentro de uma grande propriedade vitícola. Sentimo-nos mais num vale remoto e selvagem com parcelas de vinha pelo meio. As montanhas em redor, o pequeno e frondoso rio que atravessa a propriedade, as manchas de bosque que separam os diversos blocos de vinha e as muitas e coloridas plantas indígenas que iluminam a paisagem fazem de Boekenhoutskloof um lugar especial, de grande biodiversidade e beleza. Para restaurar a biodiversidade primordial de Boekenhoutskloof, os seus proprietários têm vindo a desmatar manchas de pinhal e de eucaliptal, a remover plantas exóticas invasoras e a reintroduzir espécies indígenas desaparecidas. Junto ao rio, instalaram passadiços, catalogaram árvores e instalaram sugestivas esculturas de lobos, para manter viva a memória e os mitos associados à presença deste predador naquele vale (o lobo já desapareceu há muito tempo, mas nas montanhas vizinhas ainda há leopardos). É um projecto notável que nos faz olhar para os vinhos da fazenda com outros olhos e interesse. Apesar de estabelecida em 1776, Boekenhoutskloof só começou a ser realmente conhecida pelos seus vinhos a partir de 1993, quando seis investidores resgataram aquela propriedade do abandono e, no lugar de pomares, começaram a plantar vinhas com as melhores castas francesas. Hoje, Boekenhoutskloof é um nome sonante no panorama vitivinícola da África do Sul. Marc Kent, de 46 anos, homem afável e simpatiquísismo, é o enólogo chefe e um dos co-proprietários de Boekenhoutskloof. Aguardava-nos à entrada da sala de provas, uma sala luminosa cheia de fotos, rótulos, adereços ligados ao vinho e com uma copa apinhada de garrafas vazias de vinho de todo mundo (há algumas da marca Conceito, da enóloga e produtora duriense Rita Marques, que estagiou em Boekenhoutskloof) . Marc guarda tudo. Até camisolas de futebol. “No Mundial de Futebol da África do Sul, o vinho que a selecção espanhola escolheu foi The Chocolocate Block. A Espanha acabou por ganhar o mundial e no final o Sérgio Ramos ofereceu-me uma camisola assinada por todos os jogadores”, conta. A sala de provas fica por cima da adega antiga, que é usada hoje para armazenar barricas e “ovos” de fermentação (pequenas e ovaladas cubas de cimento) e como recepção das uvas. Mas agora há um túnel de betão a ligá-la a uma cave nova, cuja laje exterior foi transformada num enorme e panorâmico terraço equipado com um restaurante. A comida honra a fama de Franschhoek e os vinhos também são magníficos, em especial os brancos de Sémillon (de vinhas muito velhas) e alguns tintos de lote. São vinhos maduros e cheios de sabor. O The Chocolate Block, por exemplo, lote de Grenache, Syrah, Cabernet Sauvignon, Cinsault e Viognier, é um vinho carnudo, encorpado e fogoso, com elegantes notas florais e outras mais calorosas, como chocolate e especiarias. A moda dos vinhos menos maduros e mais ácidos não convence Marc Kent, que prefere um vinho de pH alto mas com uma boa maturação fenólica do que um vinho com uvas mal amadurecidas e cheio de acidez ou, pior, ter que fazer acidificações. Riqueza e profundidadede de paladar é o seu mantra. Ainda assim, para responder à falta de frescor de alguns vinhos (o clima da região do Cabo é tipicamente mediterrânico), Marc começou a procurar uvas de lugares mais altos e frescos e descobriu a propriedade certa em Porseleinberg (“a montanha de porcelana”), na região vinícola de Swartland, a seara da província do Cabo. Começou por comprar uvas de apenas dez hectares, mas em 2009 acabou por adquirir a fazenda toda - 173 hectares no total. A melhor vinha está situada no ponto mais alto, em solos pobres e pedregosos de xisto, num lugar com algo de Oeste americano. É nesta vinha orgânica e de baixa produção que Boekenhoutskloof produz o seu melhor Syrah. Na verdade, talvez produza o melhor Syrah da África do Sul. O grosso das uvas vai para as marcas principais da casa e uma pequena parte é vinificada ali mesmo, em Porseleinberg, numa adega rudimentar de chapa situada mesmo no topo na montanha, entre dois vales amplos. O vinho chama-se também Porseleinberg e é o tinto melhor pontuado do país. Callie Louw, de barbas e chapéu de basebol na cabeça, “o Che Guevara de Swartland”, como já foi apelidado, é o jovem enólogo do Porseleinberg. Vive mesmo junto à adega, isolado de tudo. Callie considera-se mais agricultor do que enólogo. Gosta tanto de produzir laranjas como vinho. Vive rodeado de animais domésticos. Com frequência, as mesmas galinhas que andam a esgravatar a vinha entram adega adentro. É um ambiente de campo, desprendido e com o seu quê de hippie e de retro. Os belíssimos rótulos do Porseleinberg, por exemplo, são impressos no local, numa impressora Heidelberg de 1940. Esta atmosfera ajuda a construir uma imagem mais glamorosa e romântica em torno do Porseleinberg, mas o vinho é mesmo bom. Caullie deu a provar os vinhos das colheitas de 2013, 2014, 2015 e 2016 (”Não liguem aos copos, estão meio sujos”, começou por avisar). Nenhum passou por barrica. “As barricas são boas para plantas de vaso”, gosta de dizer Caullie. O seu programa só contempla prensagem de cachos inteiros e fermentação e estágio em Foudres (pequenos tonéis de carvalho) e “ovos” de cimento. São vinhos de aroma mediterrânico, com muita fruta vermelha e preta suculenta, delicadas sugestões florais, especiarias, taninos sólidos e uma frescura muito mineral. Tintos de Syrah ao estilo Cornas, uma das denominações da região do Rhône, em França. Fantástico o Porseleinberg 2015, o mais consistente, elegante e fresco de todos. Porseleinberg foi a última paragem desta apressada viagem pela região do Cabo e só não foi mais impressiva porque depois de conhecer Waterkloof é difícil ser surpreendido. Já tinha saído de Boekenhoutskloof, no dia anterior, com a ideia de que não veria nada mais bonito, mas algumas horas depois estava em Waterkloof, junto à cidade costeira de Somerset West, a cerca de 50 quilómetros da Cidade do Cabo, e tudo mudou. A propriedade começa junto à parte alta da cidade e é necessário percorrer alguns quilómetros montanha acima até chegar ao lugar das vinhas. Paul Boutinot, o proprietário, juntou-se ao grupo e fez a viagem num camião de caixa aberta, guiado por Christiaan Loots, o responsável por aplicar em Waterkloof um extraordinário programa de conservação ambiental ligada ao vinho, premiado em 2009 como o melhor do mundo pela World Wildlife Fund (WWF). Cerca de metade dos 100 hectares da fazenda está ocupada por uma vegetação arbustiva típica da zona do Cabo, denominada Fynbos (significa “plantas de folhas finas”), um bioma de floresta mediterrânica. É um ecossistema de elevada biodiversidade e onde florescem algumas das plantas usadas nos tratamentos dos solos e das vinhas de Waterkloof, de acordo com os preceitos biodinâmicos. A adesão à agricultura biodinâmica coincidiu com o prémio da WWF, mas só desde 2012 que a propriedade está certificada. Em Waterkloof há espaços de compostagem, cavalos para lavrar as vinhas, vacas, patos, porcos e galinhas para estrumar as terras. E há também um apurado sentido estético, visível na extraordinária adega/restaurante construída mesmo em cima de um penhasco panorâmico sobre a False Bay e na geometria das várias parcelas de vinha, circundadas por renques de árvores. É um cenário prodigioso, dominado por montanhas e colinas com vista para o mar. Será possível haver vinhas mais bonitas?Paul Boutinot é um homem do vinho. Foi sócio-fundador de uma importadora-distribuidora de vinhos em Inglaterra, a Boutinot, com mais de mil vinhos no portefólio e cerca de 150 produtores exclusivos de todo o mundo. A Boutinot também tinha (tem) algumas vinhas. Waterkloof era uma delas. A propriedade foi descoberta por Paul após uma década a procurar por todo o mundo o lugar certo para fazer a vinha dos seus sonhos. Há uns anos, Paul vendeu a sua participação na empresa mas ficou com Waterkloof - e mudou-se para a África do Sul. Na visita guiada pelas vinhas Paul parou em duas parcelas e, mesmo em cima do camião, serviu o vinho produzido em cada uma delas. Um tinto de Syrah e um branco de Sauvignon Blanc. Dois grandes vinhos, em especial o Waterkloof Sauvignon Blanc da colheita de 2016, um daqueles brancos que nos deixam com pele de galinha, de emoção. Podia ser do momento, da experiência de provar numa caixa de um camião, no meio de vinhas rodeadas de montanhas e mar. Mas voltámos a provar o vinho ao jantar e a impressão foi a mesma. “Conheço tudo o que se faz no mundo e com o nível deste só há dois ou três Sauvignon”, comentava Paul, sem falsas modéstias. Paul não exagera. É um daqueles vinhos puríssimos, que se desdobram em camadas e que vão crescendo em boca e acendendo todas as nossas campainhas sensoriais. Waterkloof produz outros vinhos notáveis. Dania Barnat, a enóloga, deu-nos a provar alguns tintos de Syrah, Cabernet Sauvignon e Mourvèdre, ainda em barrica, que são deliciosos. Mas o que perdurará para sempre na nossa memória será “aquele” Sauvignon Blanc. O seu segredo, segundo Paul Boutinot, está no solo: “Temos vários blocos de Sauvignon Blanc e só um consegue dar aquele vinho. " É uma parcela que está situada na parte mais alta da propriedade, de frente para a baía e, por isso, mais exposta aos ventos marítimos e também menos produtiva. Há grandes vinhos que nascem em lugares improváveis e pouco vistosos. Este Sauvignon Blanc, pelo contrário, é um vinho perfeito que nasce num lugar perfeito. Prová-lo e conhecer a sua origem justifica por si só uma viagem. Um dia vou querer voltar a Waterkloof. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A África do Sul é considerada um país do "Novo Mundo" do vinho, mas a sua história vinícola já tem mais de três séculos. Foi iniciada pelos colonizadores holandeses na região do Cabo, com o objectivo de abastecer os colonos e os navios que por ali passavam a caminho das Índias. O primeiro vinho conhecido, com data de 1659, foi o famoso Vin de Constance, um colheita tardia de Moscatel que continua a ser o ícone do país e um dos grandes vinhos doces do mundo. É produzido na pequena localidade de Constantia, a cerca de 15 quilómetros da Cidade do Cabo e a 20 da cidade de Stellenbosch, o centro da vitivinicultura sul-africana. A área de vinha é de cerca de 100 mil hectares e estende-se ao longo de 800 quilómetros. A maior parte situa-se na província do Cabo, em especial no Cabo Ocidental, perto da costa, onde o clima é de tipo mediterrânico (Verão quente e seco e com grandes amplitudes térmicas, Inverno chuvoso, Primavera e Outono amenos). Os melhores vinhos são produzidos nas zonas de Constantia, Elgin, Franschoek, Paarl, Robertson, Stellenbosch, Swartland, Walker Bay, Worcester e Cape Agulhas. As castas dominantes são de origem francesa. Nas tintas, a mais plantada é a Pinotage, variedade local criada a partir do cruzamento de Pinot Noir com Cinsault. O excesso de produção deu má fama a esta variedade, mas quando a sua elevada produtividade é domada e as uvas amadurecem bem origina vinhos perfumados, consistentes e saborosos. Castas como Cabernet Sauvignon, Merlot e Syrah são também muito populares. De todas, a que melhores resultados tem alcançado é a Syrah. Nas variedades brancas, a estrela actual é a Sauvignon Blanc, mas a mais plantada continua a ser a Chenin Blanc, conhecida na África do Sul como Steen. É muito versátil e usa-se tanto para brancos tranquilos como para espumantes, fortificados e destilados. Ken Forrester, Boekenhoutskloof, Porseleinberg e Waterkloof são algumas das marcas que a Emirates serve nos seus voos para a África do Sul. Os habitantes do Dubai não bebem vinho, por motivos religiosos, mas a companhia aérea deste emirado transporta diariamente uma das maiores e valiosas garrafeiras do mundo. Em certas ligações, da França para os Estados Unidos, por exemplo, chega a servir vinhos famosos e caros como o champanhe Dom Pérignon ou os tintos Cheval Blanc e Mouton Rothschild. Um dos vinhos que a companhia serve nas ligações entre Lisboa e o Dubai aos passageiros de primeira classe é o tinto Barca Velha 2008, que tem um preço de mercado superior a 400 euros. A Emirates criou o seu próprio atlas do vinho, dividido em seis regiões distintas: África, Extremo Oriente, Austrália/Ásia, América, Reino Unido e Médio Oriente/Subcontinente indiano. Cada uma delas tem uma carta própria. A ideia é permitir que os passageiros possam “conhecer e provar os melhores vinhos das regiões” para onde voam, explica Stephen Towler, sommelier inglês e senior beverage advisor da Emirates desde Janeiro de 2017. Ao contrário do que faz a maioria das companhias, a Emirates compra os melhores vinhos en primeur, podendo dessa forma gerir a sua evolução e servi-los no seu ponto óptimo de consumo. E para que a experiência seja mesmo irrepetível, alguns vinhos são produzidos em exclusivo para a companhia do Dubai, como é o caso, por exemplo, do Porto Graham's Colheita 1994. Desde 2006, a Emirates já investiu cerca de 700 milhões de euros em vinho. A sua garrafeira guarda sete milhões de garrafas. Nenhuma outra companhia aérea possui tanto vinho armazenado. A Fugas viajou a convite da Emirates
REFERÊNCIAS:
A última carta de Saramago
Vinte anos de Nobel e um inédito para celebrar. Último Caderno, a publicar esta segunda-feira, é a derradeira obra de José Saramago. “É uma carta que nos deixou”, diz Pilar del Río. Com ela vamos lendo esse diário de 1998, tentando entender ideias, preencher faltas, contradições e um legado que ela assumiu, como missão, preservar como muito mais do que memória histórica. (...)

A última carta de Saramago
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Vinte anos de Nobel e um inédito para celebrar. Último Caderno, a publicar esta segunda-feira, é a derradeira obra de José Saramago. “É uma carta que nos deixou”, diz Pilar del Río. Com ela vamos lendo esse diário de 1998, tentando entender ideias, preencher faltas, contradições e um legado que ela assumiu, como missão, preservar como muito mais do que memória histórica.
TEXTO: Se os dias do Nobel tivessem uma imagem íntima seria a de um homem adormecido numa poltrona, os pés cruzados em cima da mesa, e de uma mulher deitada no sofá ao lado, tapada por jornais. Ela dorme e apoia o rosto na mão esquerda que tem junto ao queixo. Ele, sentado, como se estivesse a pensar, mão direita semiaberta, o indicador na testa e o polegar junto à orelha. Parece numa pausa de conversa. E é, mas inusitada. A fotografia a preto e branco, está pendurada numa das paredes da casa de Lisboa de José Saramago e Pilar del Río. Tem a data de 14 de Novembro de 1998 e foi tirada noutra sala, de outra casa de José e Pilar, em Lanzarote por um jornalista que os entrevistava. “Tínhamos chegado do primeiro compromisso público entre o anúncio do Nobel e a cerimónia em Estocolmo. Tínhamos regressado de Paris. Ele tinha ido à Sorbonne e à Fundação Gulbenkian [delegação em França]. Estava connosco um jornalista a fazer uma reportagem para um suplemento cultural de um jornal de Espanha. Estávamos a falar com ele e, primeiro, foi o José. Pôs os pés na mesa e adormeceu. Eu, que estava a ler um jornal, adormeci a seguir. A fotografia somos os dois a dormir, cada um no seu sítio; eu toda tapada com jornais, com uma cadela aos pés. Sim, essa é uma imagem desses dias”, afirma Pilar del Río enquanto olha a fotografia com um sorriso. Não se falou disso, mas há uma breve nota sobre esse dia no diário recém-descoberto de José Saramago. Assim: “Lanzarote. Entrevista Anders Lange, Morgenavien. ”Passaram 20 anos. Está uma manhã de sol num bairro tranquilo do centro de Lisboa. O mesmo sol que ilumina, luz filtrada pela janela, a fotografia e o rosto de Pilar quando a aponta. É sábado e quase não há ruídos junto à casa azul baptizada com o nome de uma das personagens mais emblemáticas da obra de Saramago. A casa chama-se Blimunda, a protagonista visionária de Memorial do Convento. Nela vive agora Pilar del Río, a ex-jornalista, mulher do escritor durante 22 anos, tradutora de parte da sua obra para castelhano, presidente da Fundação José Saramago. Perto do dedo de Pilar há uma folha emoldurada. Chama a atenção para ela. É branca e nela destaca-se uma impressa expressão Uff; terminara o Ensaio sobre a Cegueira. A luz ainda não comeu a tinta. Há mais fotografias. Muitas. Em quase nenhuma o escritor aparece a rir. “Ele não gostava das fotografias em que aparecia a sorrir”, conta Pilar que confirma, no entanto, um grande sentido de humor. “Ele tinha muita ironia e dizia muitas vezes ‘tenho de evitar cair no sarcasmo’. Ele exilava-se para não cair no sarcasmo. A ironia e a auto-ironia, tudo bem. O humor, sim. O sarcasmo, não. Considerava-o desrespeitoso, diminui o outro. Mas tinha de se vigiar. Era muito autovigilante nisso, sobretudo quando escrevia. ”Há ainda a imagem da caligrafia, sublinhados, rasuras. Ocorre uma frase da escritora brasileira Lygia Fagundes Telles de que Saramago gostava: “A nossa memória (. . . ) manipula as recordações, organiza-as, compõe-as, recompõe-as, e é, dessa maneira, em dois instantes seguidos, a mesma memória e a memória que passou a ser. ”Aquele é um lugar de justaposição de memórias. Estamos no presente de uma conversa iluminada por memórias do escritor e também pelas memórias de quem tem a função de manter vivo o seu legado. Essa é a condição para se estar ali, naquela casa, vinte anos depois do Nobel da Literatura, curiosamente num ano em que não é atribuído o Nobel da Literatura. “Saramago e eu tínhamos um projecto e esse projecto implicava-o a ele e implicava-me, com as diferenças óbvias. Dentro do projecto Saramago está o pensar, o reflectir, a literatura, e estão os direitos e os deveres humanos. Eu estou aqui [em Portugal] como integrante do projecto Saramago. Não sou a única. A Fundação é uma parte do projecto. E o projecto Saramago — chamamo-lo assim depois da morte de Saramago, porque ele não o teria permitido — é um projecto de intervenção cultural, social e política de reflexão. Sinto-me muito cómoda porque não vou falar jamais, jamais, como viúva! Quem não me vir como parte desse projecto que não se relacione comigo, porque como família não falo. Essa é a minha vida íntima e privada e dela não digo nada. ”Saramago morreu em 2010, doze anos após o Nobel, 87 depois de nascer na aldeia de Azinhaga, concelho da Golegã, junto ao rio Tejo. “Foi este o mundo em que, criança, e depois adolescente, me iniciei na mais humana e formativa de todas as artes: a da contemplação”, escreve em 28 de Abril. No célebre discurso em Estocolmo, quando recebeu o Nobel, lembraria os avós, Jerónimo e Eulália, em como os ajudou a pastar porcos, como então a vida parecia muito longe de o levar um dia a escritor. Menos ainda a um escritor com o mais cobiçado dos prémios. Os sonhos não chegavam aí. Antes, foi torneiro mecânico, jornalista, e aos 53 anos decidiu apostar tudo na escrita. Traduzia e escrevia. O primeiro romance, Terra de Pecado, foi publicado em 1947. Só trinta anos depois, em 1977, surge o segundo, Manual de Pintura e Caligrafia; em 1980, Levantado do Chão e, em 1982, Memorial do Convento. Tinha 60 anos. Era o princípio. As marcas de muita dessa escrita, desse percurso, estão pela casa. Na secretária de Pilar, há um exemplar de Anna Karenina numa tradução de Saramago a partir do francês, uma edição de 1959 dos Estúdios Cor. As memórias intrometem-se. “Vinte anos depois é o momento adequado para certas reflexões e confidências”, escreveu no prefácio a Último Caderno de Lanzarote, o diário relativo ao ano de 1998, encontrado por acaso quando ela procurava um texto no computador que José Saramago usou nos últimos anos da sua escrita. O livro chegou a ser anunciado pelo escritor em 2001, na edição espanhola do 2. º volume de Cadernos de Lanzarote. Assim: “E, se o Sexto Caderno não chegou a ver a luz do dia e ficou preso no disco rígido do computador, foi apenas porque, enredado de súbito em mil obrigações e compromissos, todos urgentes, todos imperativos, todos inadiáveis, perdi o ânimo e também a paciência para rever e corrigir as duzentas páginas que tinham acolhido as ideias, os factos e também as emoções com que o ano de 1998 me beneficiou e, uma ou outra vez, me agrediu. . . ” Nos planos dele, haveria uma edição em Portugal. Em Espanha, se veria. Mas o tal VI Caderno nunca apareceu e deu-se como perdido. Até Fevereiro deste ano. “Devemos esta descoberta a Fernando Gómez Aguilera”, conta Pilar del Río numa conversa interrompida por muitas memórias, espécie de boas intrusas que tanto a levam a gargalhadas como lhe provocam comoção. Aguilera é poeta e ensaísta, director da Fundação César Manrique, em Lanzarote, e curador da Fundação Saramago. Convidado pela Editorial Alfaguara para organizar um volume com as conferências e discursos de Saramago, pediu textos específicos a Pilar. Por exemplo: “Havia várias versões de uma conferência de José e gerou-se uma discussão porque há o mesmo texto pronunciado em diferentes sítios com certas alterações, e então, era preciso ver qual era a última — a última versão de um discurso é sempre considerada a ‘ortodoxa’ por Carlos Reis [professor da Universidade de Coimbra e um dos especialistas da obra de Saramago]. Entrei no computador, havia uma pasta com o título Cadernos e dou com o VI Caderno. Foi assim. Tão banal quanto isto”, diz, tentando reconstituir o que sentiu naquele momento. “Fiquei sem reacção. Não é que não se possa contar o que senti, pode-se contar tudo, mas é preciso encontrar muitos qualificativos para dizer que fiquei perplexa, sem ar, emocionada. Vi as notas, e ali estava o dia 1, depois o dia 2, o dia 3. . . Ali estava ele, no seu lugar de trabalho, no seu computador. Eram tantas horas da madrugada e eu ali estou, num outro dia a entrar naquele dia de há vinte anos, a encontrar tudo aquilo. . . ”“Durante a noite, o vento andou de cabeça perdida, dando voltas contínuas à casa, servindo-se de quantas saliências e interstícios encontrava para fazer soar a gama completa dos instrumentos da sua orquestra particular, sobretudo os gemidos, os silvos e os roncos das cordas, pontuados de vez em quando pelo golpe do timbale de uma persiana mal fechada. Nervosos, os cães lançavam-se de rompante pela gateira da cozinha (o ruído é inconfundível) para irem ladrar lá fora ao inimigo invisível que não os deixava dormir. ”Veio a manhã, o olhar sobre os estragos e depois o pequeno-almoço habitual, sumo de laranja, iogurte, chá verde e torradas com azeite e açúcar. Eram mais ou menos assim os dias antes dos “dias do caos”, depois de 8 de Outubro desse ano, de 1998, quando a Academia Sueca anunciou que José Saramago era o vencedor desse ano do Prémio Nobel da Literatura. O escritor tinha 75 anos, dez romances publicados, quatro peças de teatro, um livro de viagens, três volumes de poesia, dois livros para crianças, dois volumes de contos, um de memórias e cinco diários, os Cadernos de Lanzarote. Vivia na ilha de Lanzarote com a sua terceira mulher, Pilar del Río, e estava no Terminal 2 do aeroporto de Frankfurt prestes a entrar num avião para Madrid. Soube da notícia por uma hospedeira. José Saramago estava sozinho e a imagem que correu mundo, aquela que todos guardam por ter sido tantas vezes contada, mesmo que nunca tenha sido vista, é a de um homem a caminhar com uma gabardina dobrada no braço e uma pasta na mão. O homem que nesse preciso momento pensaria qualquer coisa como “Deram-me o Nobel, e o quê?”“Este livro é uma carta que recebemos”, afirma Pilar del Río sobre o VI Caderno de Lanzarote que tem como título Último Caderno, e chega às livrarias esta segunda-feira, dia 8, quando passam vinte anos da atribuição do Nobel a Saramago. “Antes estávamos tão habituados a ouvir as considerações de José Saramago, elas eram quase como o quotidiano. Ele aparecia muito, e de repente, passado tanto tempo, voltamos a ouvimo-lo reflectir sobre a importância de manter posições ideológicas, por exemplo, sobre a importância da leitura e a importância do outro e da poesia. Ouvir isso de repente outra vez, na primeira pessoa é como se fosse uma carta”, continua a presidente da Fundação José Saramago, remetendo para outro livro, Um País Levantado em Alegria, do jornalista Ricardo Viel, relato dos dias do Nobel, com uma compilação de cartas e de testemunhos sobre o modo como a notícia foi recebida depois de Saramago a ter ouvido, desta forma, pela voz da hospedeira: “Há uma pessoa que quer falar consigo por telefone, é que o senhor ganhou o Prémio Nobel. ”A frase vem replicada no livro de Viel, tentando reproduzir o que, dito assim, terá ecoado junto do seu ouvinte solitário e antecedeu as horas de euforia que se viveram logo depois na Feira de Frankfurt, de onde Saramago saíra e para onde voltou de imediato, não sem uma série de peripécias e desencontros. Antecede ainda — e sobretudo — a euforia vivida, em Portugal. “A alegria aqui foi tão forte que eu diria que é como se, da noite para o dia, todo o mundo, de uma hora para a outra, tivesse crescido três centímetros”, escreveu então o ensaísta Eduardo Prado Coelho num texto que o livro de Ricardo Viel também recupera. Em contrapartida, no Último Caderno, sobre esse dia, Saramago escreveu só isto: “Aeroporto de Frankfurt. Prémio Nobel. A hospedeira. Teresa Cruz. Entrevistas. ”Depois de 8 de Outubro de 1998 faltou tempo a Saramago para completar o seu diário. Surgem apenas, com algumas excepções, notas dispersas, uma frase, uma palavra talvez a desenvolver, um registo a retomar. Como este, a 26 de Outubro: “Morte de José Cardoso Pires. ” Antes, estendera-se mais para dizer que morrera Maria Judite de Carvalho. A 19 de Janeiro. “Chega-me aqui a notícia da morte de Maria Judite de Carvalho. Nunca li uma página sua em que não pensasse na pessoa que a tinha escrito. E creio que ela o queria assim. Que o leitor compreendesse que do outro lado não havia estado apenas uma escritora, mas sim alguém que, conhecendo como raras a arte do conto e as íntimas ressonâncias de cada palavra, usava essa arte e esse sentido musical para dizer quem era. Com obstinação, mas também com simplicidade e discreta reserva. ”Faz-se a pergunta a Pilar del Río, se é possível saber quem foi Saramago lendo os seus livros, se a voz do autor era muito diferente da voz do homem com quem vivia. “Uma das características mais importantes de José Saramago é que carecia de fingimento. Não era um homem fingido. Era um homem livre. ” Faz uma pausa. Sentada no sofá, aponta um quadro em frente. Um retrato de Blimunda pintado por Rogério Ribeiro. Não diz nada e aponta. “Sabe quem era Saramago? Blimunda. ” Também poderia ser o Jesus Cristo do Evangelho, como ele mesmo chegou a ironizar. “Sim, evidentemente que era Jesus Cristo do Evangelho, mas vejo-o mais como Blimunda, a mulher livre que vê dentro. Ou como a mulher do médico que não cega [protagonista de Ensaio sobre a Cegueira, 1995]. É incrível como estas duas personagens são femininas e têm o dom da visão! O escritor é uma pessoa que trata de ver o que há por detrás das coisas, de construir num mundo de trevas. Para mim, José Saramago é Blimunda. Mas Saramago não é só o escritor, é um homem do seu tempo, o pensador, o humanista, não gostaria de o ver colado a cânones pequeno-burgueses, de um país ou de uma cultura. Porque não é só um país e uma cultura. São muitas culturas e são muitos países. ”A 18 de Março de 1999, numa conferência no México intitulada O Autor como Narrador Omnisciente, diz, aludindo a Gustave Flaubert e à famosa afirmação “Madame Bovary sou eu”, que o francês se esquecera de dizer que também fora o amante dela e a rua e os outros, para concluir: “Também, ainda que sendo tão pouca coisa em comparação, eu sou a Blimunda e o Baltazar do Memorial do Convento, e em O Evangelho segundo Jesus Cristo não sou apenas Jesus e Maria Madalena, ou José e Maria, porque sou também o Deus e o Diabo que lá estão. . . ”“Lanzarote. ” Só isto. O livro de Ricardo Viel ajuda a entender os silêncios do diário. No prefácio, o jornalista recorre às palavras do próprio Saramago para definir o que foram esses tempos: “Em Dezembro de 1999, já prestes a passar a coroa ao alemão Günter Grass, concedeu uma entrevista ao Jornal de Letras onde falou sobre os cerca de 400 dias em que viveu uma vida de estrela de rock. ‘Quando disse que o Nobel não ia mudar a minha vida, provavelmente o que queria dizer é que não ia mudar a pessoa. Mudar a vida, calculava; não podia imaginar era até que ponto’. ”Nesse dia 8 de Outubro, Pilar del Río não estava com ele. Ficara em Lanzarote e nos últimos dias geria alegria e angústia. Fora avisada de que o Nobel era de Saramago, mas apenas para o impedir de apanhar aquele avião. Não podia dizer a ninguém o que sabia, sob pena de o prémio lhe ser retirado. Apesar dos seus esforços para o deter em Frankfurt a tempo de ser contactado pela Academia Sueca, Saramago estava no aeroporto. Viel conta os detalhes dessas horas cuja descrição falta no tal caderno; o caderno que quando Pilar o encontrou não teve dúvidas de que teria de ser publicado. “Os escritores escrevem para publicar. Ele não queria publicar aquilo? Não queria ou não pôde?”E assim, simbolicamente, no ano em que se celebram os 20 anos do prémio Nobel, surge o último inédito de Saramago. “Ele ia escrevendo aqueles diários ao longo do ano”, explica Zeferino Coelho, o editor da Caminho que publicou toda a obra de Saramago em vida. “Ele escrevia, e em Janeiro de cada ano via se estava tudo bem, fazia as correcções e enviava a tempo de ser publicado na Feira do Livro [de Lisboa]. Naquele ano, quando chegou Janeiro perguntei pelo Caderno e ele respondeu que nunca mais escrevera nada por não ter tido tempo e que não lhe fazia sentido pegar naquilo. ‘Vou escrever o quê agora sobre esses dias?’, disse, e acrescentou qualquer coisa como ‘Não faço mais Cadernos’. E como todos os anos ele tinha mais um livro novo para publicar, não lhe voltei a falar do Caderno”, refere o editor. Pilar del Río escreve no prefácio: “Este é o renascimento do Caderno VI, o diário que ficou para trás porque a capacidade de atenção é limitada — a do autor, que lidava em diversas frentes, também a daqueles que com ele estavam, que não reclamaram o livro que já era uma tradição anual e, além disso, já fora anunciado. Em defesa de uns e de outros, convém insistir no caos que se instalou em casa de José Saramago, a partir do momento em que foi anunciado o Prémio Nobel da Literatura. (. . . ) O processo de escrita foi radicalmente alterado. ”Manuel Alberto Valente, da Porto Editora — que desde 2013 detém os direitos da obra de Saramago — escusa-se a fazer avaliações ou comparações sobre a qualidade literária face aos cadernos anteriores, publicados anualmente desde 1994. Como Pilar, como Zeferino, também considera que a obra de um autor é para publicar e refere: “Os diários são sempre um instrumento importante para se perceber a obra e a personalidade de um autor. O aparecimento de um diário que não se sabia que estava escrito é um acontecimento literário importante. Faria todo o sentido apresentá-lo nesta altura. ”Saramago era reticente em relação a publicar alguns trabalhos antigos. Refere isso numa entrevista ao jornalista brasileiro Humberto Werneck, para a revista Playboy. O jornalista pergunta-lhe por trabalhos antigos, vai à génese, e o diálogo que se estabelece (transcrito na entrada de 28 de Junho de 1998) é este:“A sua estréia foi lá atrás, aos 25 anos. Tenho um livro que foi reeditado agora — o meu editor teimou e a minha mulher ajudou nisso —, um romance que publiquei em 1947. Chama-se’Terra do Pecado’. Não está mal escrito, mas tem pouco a ver comigo hoje. Ainda escrevi um outro livrinho [o romance Claraboia], que está por aí, mas, enfim. . . Não será publicado?Em vida minha, não. Depois, se quiserem. . . Do que se trata?É a história de um prédio onde há seis inquilinos, e é como se por cima da escada houvesse uma claraboia por onde o narrador vê o que se passa embaixo. Não está mal, mas não quero que publiquem. ”Escrito no início da década de cinquenta, o livro seria publicado em 2011, já após a sua morte, mas com o seu consentimento. “Ele acabou por ceder, conta Zeferino Coelho. Li o livro e não achei nada comprometedor. Estava escrito e sou muito defensor que se publique tudo. É um livro construído de maneira clássica. A história passa-se num prédio. Há o sapateiro, um velho anarquista e a outra personagem que de vez em quando se senta a conversar já é uma espécie de Ricardo Reis. Alguém que cultivava uma certa ataraxia. Não se compromete com ninguém. Não quer ficar preso a coisa nenhuma. Quer viver afastado do mundo a contemplar o mundo. Ou seja, já estava lá a ideia que ele vai cultivar com outra amplitude em O Ano da Morte de Ricardo Reis. É uma coisa curiosa e interessante. Já nesta altura, quando diz que lera Fernando Pessoa e a poesia do Ricardo Reis que ele até julgava que era real, não só leu como absorveu aquele heterónimo. ” Pilar del Río acrescenta que o romance podia introduzir alguma confusão. “Saramago tinha um estilo e não queria aparecer com um livro noutro estilo. ”Claraboia acabaria ainda por ser adaptado ao teatro em 2015, numa encenação de Maria do Céu Guerra para celebrar os 40 anos do teatro A Barraca. A RTP2 exibiu-a este sábado para assinalar os 20 anos do Nobel. Como se conquistam novos leitores, quando o autor de que se fala já não escreve, já morreu, ainda que seja um Nobel? Como é que se mantém viva a obra? “Não é fácil. É preciso tomar medidas. O mundo académico é muito importante, o estudo universitário, as conferências, este congresso”, responde Pilar del Río acerca do Congresso Internacional que irá decorrer em Coimbra, de 8 a 10 deste mês de Outubro, no Convento de São Francisco, uma organização do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra, coordenado por Carlos Reis. “É muito importante ir continuamente por universidades de diversos países a falar. Mas isso é para ficar no âmbito académico? Não. Mas isso projecta, mantém e suporta. Temos boas editoras em diversos países e algumas são militantes de Saramago. Em França vai ser feita uma recompilação e republicação da obra completa. É preciso discutir e perfilar muitas coisas, mas vamos conseguindo. E é muito importante para tudo isso que uma pessoa de top represente José Saramago no mundo”, acrescenta, sublinhando ainda outro dos projectos: a adaptação da obra de Saramago a séries de televisão e ao cinema. “Um dos momentos que mais ajudou a criar leitores em todo o mundo foi o filme José e Pilar. Foi primeira página em jornais num país como o Irão! O como aconteceu com Ensaio sobre a Cegueira. ” Mais uma vez com a relutância inicial de José Saramago. “Diz Ray-Güde Mertin que lhe chovem de Los Angeles perguntas de produtores de cinema (são já oito ou nove, informa ela) a querer saber se os direitos do Ensaio sobre a Cegueira estão livres. Como o livro ainda não apareceu à luz nos Estados Unidos, o motivo do súbito e arrebatado interesse (não creio que naquelas californianas paragens se leiam jornais ingleses) deve ter sido o catálogo da Harcourt Brace, que, mais do que provavelmente, se excedeu na eloquência publicitária. . . Enfim, o cinema ataca outra vez. Terei eu forças para resistir-lhe? Por meras razões de simpatia (não fui capaz de dizer não a Yvette Biro), já se me escapou das mãos A Jangada de Pedra, mas juro pelos deuses de todos os céus e olimpos que no Ensaio sobre a Cegueira ninguém toca. ”Pilar lembra. “Ele dizia sempre: ‘Não quero ver a cara das minhas personagens’. Também nunca tinha tido uma oferta concreta maravilhosa. ”Aceitou a adaptação de Fernando Meirelles, em 2005. E acabou por escrever no catálogo do filme. “Houve um tempo em que eu não queria ver a cara das minhas personagens quando me chegavam pedidos de adaptação de romances meus ao cinema. Digamos que eu era então uma espécie de radical da escrita: o que não passava pela palavra posta num papel simplesmente não existia. ” Pilar refere que a experiência com A Jangada de Pedra, filme estreado em 2002, realizado pelo holandês George Sluizer, o deixou receoso. Passou. “Ele poderia ter dito que não milhões de vezes, mas agora que depende de mim eu vou dizer que sim. O meu trabalho é continuá-lo e eu vejo que o mundo mudou nos últimos anos de uma maneira tal que. . . Já não lemos livros, lemos os jornais em digital. Quero ver As Intermitências da Morte em série. ”É um dos próximos projectos, ou vontades. Para já há música, a encomenda da peça sinfónica Memorial a António Pinho Vargas passa por essa divulgação, de manter vivo o nome e homenagear. A estreia está agendada para Dezembro, numa interpretação da Orquestra Sinfónica Portuguesa dirigida por Cristóbal Soler. O discurso em Estocolmo. “Compreendemos que um livro é como uma partitura, que a fala é como uma melodia ansiosa e inesgotável. ” Saramago chegou a estudar na Academia de Amadores de Música de Lisboa, queria aprender violoncelo, achava-o o instrumento mais aproximado da voz humana. Nunca aconteceu. Ia escrevendo sempre, treinado a voz do escritor. “Assombro. O ayuntamiento de Madrid propõe-me para o Nobel. Em Lanzarote, o taxista que me trouxe do aeroporto conta-me que o terreno onde agora se levanta a minha casa pertencera à sua família e recordou que quando tinha dez anos lavrou esta terra pobre com um camelo. . . ” José Saramago vai acrescentando entradas ao diário enquanto promove o seu mais recente romance, Todos os Nomes, lançado em Portugal no fim de 1997. Dia 18 de Agosto. “Finalmente, respondi à carta de Miguel Real. Assim: ‘A sua carta de 26 de maio (. . . ) apanharam-me numa curva do caminho e, portanto, em risco de derrapagem. Por motivos de trabalho, nada mais. Ou nada menos. As mil andanças que me comeram o tempo no ano passado, sem esquecer o labirinto de Todos os Nomes em que quase me perdi, tiveram como efeito atrasar-me o diário a um ponto tal que até este Julho não fiz outra coisa que empurrá-lo. . . ”Todos os Nomes era o décimo romance de José Saramago e o primeiro que Pilar del Río traduzia para castelhano. “Foi o mais difícil”, confessa. “Perdi o meu arquivo quando já estava traduzido e caí numa depressão tremenda, nenhum técnico conseguiu recuperar. Fiquei tão mal que saí de Lanzarote e fui para Granada, a aldeia da minha mãe, e fiquei uns dias com ela. Estava desolada. Era também o primeiro livro que traduzia. Teve um lado bom, porque foram as últimas férias que passei com a minha mãe. O pior é que voltei ao livro e voltaram todas as dúvidas. Não tinha aprendido nada [ri]. Ou seja, tê-lo já traduzido não significou que tivesse o caminho resolvido. ” Chamaram a Todos os Nomes o mais kafkiano dos livros de Saramago. Pilar concorda. A obra é kafkiana. Como dizia Francisco Umbral, “Saramago escreveu um não-romance, com uma não-história, com uns não-personagens de um não-encontro e um não-amor. Saramago escreveu um livro magnífico e a única coisa que tem de fazer a partir de agora é sentar-se à porta de casa e esperar que lhe dêem o Nobel. ” Mas a dificuldade de traduzir Saramago não era tanto a complexidade dos seus livros, mas a proximidade dos dois idiomas e sobretudo o facto de o autor espreitar por cima do ombro da tradutora. “Ter o autor a espreitar quando estava a trabalhar era odioso. Eu a escrever e ele a espreitar. Sempre que ele vinha eu tinha a tentação de mudar de página, como se estivesse a fazer qualquer coisa clandestina”, continua, revelando ainda que muitas vezes ele lia, que a princípio até discutiam a tradução, mas. . . “depois deixei de fazer isso porque deixei de lhe perguntar. Ele não tinha a mesma relação com as minhas perguntas que tinha com as dos outros tradutores. Por isso quando eu tinha dúvidas falava com outras pessoas. ”Desde aí traduziu toda a obra de Saramago, mas recusou traduzir este Último Caderno. “Se antes a dificuldade de traduzir era pela proximidade da língua e pela proximidade do autor — que tira liberdade, inclusive —, agora senti que não é só a presença física a tirar liberdade. Desta vez, não tenho liberdade porque oiço a música de Saramago, oiço a voz de Saramago e acho uma traição passá-la para outro lugar. Não tive serenidade espiritual para o traduzir. Não consegui e a partir do momento em que tomei a decisão de não o traduzir e comuniquei à editora nesse dia perdi estas rugas”, diz apontado para o rosto. Carta para Cleonice Berardinelli com desculpas e algo mais: “. . . Há alguns meses, o Manuel Alegre escreveu-me, a propósito de Todos os Nomes, certas palavras que me perturbaram e me têm perturbado até hoje. Disse ele: ‘Aonde irá você parar? Tenho medo por si. . . ’ Realmente, a partir do Ensaio a minha relação com o acto de escrever mudou, o que só pode significar que algo terá mudado em mim. Tenho tentado explicar isto pela metáfora da estátua e da pedra, digo que até ao Evangelho andei a descrever uma estátua, a superfície da pedra (a estátua é apenas a superfície da pedra. . . ) e que com o Ensaio passei para o lado de dentro, para a pedra só pedra e nada mais que pedra. Ficou mais claro assim? Provavelmente não, mas é o que ando a sentir. Se a tudo isto se junta que cada vez menos me interessa falar de literatura, que duvido até que se possa falar de literatura. . . ”Pilar del Río ouviu ler algumas frases do Caderno e sorri. Lembra que desde que soube do prémio e reflectiu sobre ele, Saramago o encarou como uma missão. Não apenas literária. “Ele assumiu-o como uma responsabilidade e isso está claríssimo no livro do Ricardo [Viel]. José, por pudor, não contaria. Tinha vergonha. Mas assume o prémio como uma responsabilidade. Em Portugal, a de compartilhar a alegria. E fora de Portugal quase como uma bandeira. É português, vá onde vá, fala português. Fazia questão de que fosse em português. E então a missão é mostrar uma cultura, uma língua e uma forma política de estar no mundo. A ética da responsabilidade. Não precisava de deixar de ser comunista, não iria deixar de o ser, e iria manifestar-se como um homem de esquerda, como um homem responsável, como um antidogmático. Assumiu o compromisso da responsabilidade de uma forma rotunda. ”“Para Alexandra Lucas Coelho, do Público: ‘Que significa hoje ser escritor comunista? (. . . ) Tiremos o escritor e perguntemos simplesmente: Que significa hoje ser comunista? Desmoronou-se a União Soviética, foram arrastadas na queda as denominadas democracias populares, a China histórica mudou menos do que se julga, a Coreia do Norte é uma farsa trágica, as mãos dos Estados Unidos continuam a apertar o pescoço de Cuba. . . Ainda é possível, nesta situação, ser-se comunista? Penso que sim. Com a condição, reconheço que nada materialista, de que não se perca o estado de espírito. Ser-se comunista ou ser-se socialista é, além de tudo o mais, e tanto como ou ainda mais importante que o resto, um estado de espírito. Neste sentido, foi Ieltsin alguma vez comunista? Foi-o alguma vez Estaline? A epígrafe que pus em Objeto quase [livro de contos, 1978], tirada de A Sagrada Família, contém e explica de modo claro e definitivo o que estou a tentar exprimir. Dizem Marx e Engels: ‘Se o homem é formado pelas circunstâncias, é necessário formar as circunstâncias humanamente. ’ Está aqui tudo. Só um ‘estado de espírito comunista’ pode ter sempre presentes, como regra de pensamento e de conduta, estas palavras. Em todas as circunstâncias’. ”Pilar del Río faz um sublinhado. “O facto de ser tudo isso e não só um escritor literário fez a diferença no modo como se projectou. ” Com Saramago, o Nobel não foi uma distinção apenas literária. “No caso de José, independentemente de ser um autor literário, era também um pensador. Ele teve uma intervenção cívica, como outros intelectuais. Sartre teve o Nobel da Literatura, mas também foi pelo seu pensamento. São pessoas que transcendem a realização literária. Além de uma grande obra literária têm um pensamento próprio que continua a iluminar. ”“Um dia deixei consignada nestes cadernos a única ideia em tudo original que até aí tinha produzido (. . . ), aquela luminosíssima ocorrência de que na publicação da obra completa de um escritor deveria haver um volume ou mais com as cartas de leitores. . . ” E deixa a primeira dessas cartas, simbolicamente dirigida a Pilar. “Querida Pilar: escrevo-te a ti, pedindo que, após a tua leitura, faças chegar esta carta ao Senhor José, pois considero que não pode haver segredos entre um escritor e os seus leitores. ”Vem no Último Caderno esta espécie de testamento. “Temos de fazer esse trabalho na Fundação num futuro muito próximo. A verdadeira revisão crítica é dos leitores. Esse vai ser o contributo definitivo da obra de José Saramago à literatura. O posicionamento de José Saramago era o de, mantendo o respeito à tradição, de ruptura. O posicionamento político de José Saramago, o humanismo. José Saramago era militante do Partido Comunista, mas José Saramago era um humanista e provocou muito nos seus leitores esse posicionamento de ruptura, tanto literário como ideológico. Será muito interessante conhecer essa recepção nos leitores. ”Há milhares de cartas, adianta, onde “as pessoas sobretudo se contam”. Menos rica é a correspondência entre pares. “José Saramago é um autor muito tardio e tem correspondência com outros autores, mas lamentavelmente já existia o telefone, o fax, e as viagens. E aí perdeu-me muito do vínculo com os seus pares. ” Conta conversas com Orhan Pamuk, Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes, Nadine Gordimer, a escritora sul-africana, Nobel em 1991, que leu o conto O Centauro, de Saramago, para um podcast do jornal The Guardian. Não há registo de nenhuma dessas conversas a não ser na memória de Pilar del Río que participou de muitas. Pode-se esperar um livro com essas memórias? “Não vai haver!” Porquê? A resposta é um longo silêncio. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas os leitores de Saramago podem esperar algumas coisas mais do escritor além deste Último Caderno. “Há algumas coisas da juventude. Fernando Gómez Aguilera estudou isso e disse-me que tinham interesse. Não li. Talvez haja algumas coisas, algum conto, uma obra de teatro. E talvez isso venha a ser conhecido, mas sempre em edições para estudiosos. Um livro de grande alcance, para todos os leitores. . . já não há nada. Lamentavelmente. O que Saramago escrevia dois meses depois estava na rua. Não havia gavetas com coisas, em Saramago não existe baú. ”Fica a luz e a sombra que faz parte de uma obra pioneira. No fim, mais sombra. Os dias de 1998, até onde ele os desenvolveu já tinham notas desse lado. A 29 de Março respondia a uma pergunta de Eduardo Prado Coelho sobre como via a situação das culturas europeias. “Confusas, perturbadas, à espera não se sabe de quê, talvez de uma ideia, de uma convicção. Quis-se ‘inventar’, voluntaristamente [sic], uma ‘cultura europeia’, e agora nem temos a europeia, nem sabemos que fazer das nacionais. Vivemos já no tempo do ‘pensamento zero’, que é pior que o ‘pensamento correcto’. Que haja pessoas a pensar? Não duvido. Simplesmente, ninguém lhes dá atenção. . . ” Antes, a 23 de Janeiro lamentava-se: “Desgraçadamente, a esquerda, além de ter deixado de pensar, perdeu o hábito da leitura. ”Pilar confirma o desânimo que viria maior, depois. “José dizia, na tristeza do final da sua vida, que os ovos da serpente estavam a ser incubados de uma maneira perigosa. . . Criticava a ideia de Deus como um absoluto que provoca que milhões de seres humanos se fanatizem ou fechem os olhos. E as armas. Não entendo como é que Alabardas, Alabardas [30 páginas de um romance iniciado por Saramago e que não chegou a concluir, publicado em 2014] não é de leitura obrigatória. Passou ao lado. É a ética da responsabilidade, o cidadão honesto que é tão honesto tão honesto, mas transige com o fabrico de armas com a pobreza absoluta ao lado, com a morte de outros semelhantes, que considera isso uma fatalidade histórica. É cúmplice, porque não tem a ética da responsabilidade. Saramago, sabendo que ia morrer, que lhe restavam meses de vida, põe-se a abordar num romance a ética da responsabilidade! E que sabia como ia terminar o romance. O romance terminava com um ‘vai à merda’. E merda seria a última palavra que José iria escrever. ”
REFERÊNCIAS:
Morreu Ara Güler, o fotógrafo das imagens icónicas de Istambul
As suas fotos a preto e branco de Istambul ficaram conhecidas em todo o mundo. Tinha 90 anos. (...)

Morreu Ara Güler, o fotógrafo das imagens icónicas de Istambul
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: As suas fotos a preto e branco de Istambul ficaram conhecidas em todo o mundo. Tinha 90 anos.
TEXTO: O fotógrafo turco Ara Güler, criador de imagens de Istambul que deram a volta ao mundo, morreu esta quarta-feira, aos 90 anos. Segundo a agência de notícias Anadolu, faleceu de insuficiência cardíaca no Hospital Florence Nightingale, em Istambul, onde estava internado nos cuidados intensivos. Ara Güler, nascido em 16 de Agosto de 1928, começou a carreira de fotógrafo no jornal Yeni Istanbul, em 1950, antes de trabalhar para media internacionais como a Time-Life ou Paris Match. As suas fotos, a preto e branco, retrataram tanto a melancolia da cidade de Istambul, com inúmeras imagens de trabalhadores na sua rotina diária, como as rápidas mudanças a que a urbe foi sendo submetida ao longo dos anos. Apelidado de “O olho de Istambul”, soube captar a identidade da capital turca ao longo de 75 anos, com imagens a preto e branco da vida quotidiana, desde os pescadores aos pequenos comerciantes e operários. Para além disso, ficou também conhecido por fotografar inúmeras figuras mundiais como Winston Churchill, Gandhi, Salvador Dali ou Picasso. “As pessoas chamam-me o fotógrafo de Istambul, mas eu sou um cidadão do mundo. Um fotógrafo do mundo”, disse, um dia, numa entrevista. A sua profissão permitiu-lhe viajar por todo o mundo, do continente africano ao Afeganistão, mas sobretudo na Turquia natal. Ao longo da carreira, cruzou-se com nomes destacados da fotografia mundial, como Marc Riboud e Henri Cartier-Bresson, o que lhe permitiu entrar para a agência Magnum Photos. Em Istambul existe um museu que celebra a sua obra.
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
Xinobi e Mirror People: duas cabeças com imensa música lá dentro
São da mesma geração, começaram no rock, tanto se apresentam em formato banda ou como DJ e até já partilharam editora. Agora Mirror People reinventa-se com pop electrónica e Xinobi com house emocional. (...)

Xinobi e Mirror People: duas cabeças com imensa música lá dentro
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: São da mesma geração, começaram no rock, tanto se apresentam em formato banda ou como DJ e até já partilharam editora. Agora Mirror People reinventa-se com pop electrónica e Xinobi com house emocional.
TEXTO: São da mesma geração, começaram no rock, tanto se apresentam ao vivo com banda como no papel de DJ e até já partilharam a mesma editora – a Discotexas. Bruno Cardoso, ou seja Xinobi, e Rui Maia, ou seja Mirror People, por coincidência, acabaram de lançar o segundo álbum das respectivas carreiras. O seu percurso e a matriz estética que têm abraçado, conotada com a electrónica de inspiração dançante, tem pontos de contacto, mas cada um possui uma sonoridade definida. O que não significa ausência de inquietação. E a prova são os álbuns de ambos, onde, sem descolarem totalmente do que haviam feito antes, criando música física que seja capaz de provocar a imaginação, perseguem novos desígnios. A obra de Rui Maia é até capaz de ser mais inesperada, porque o ano passado havia lançado um álbum em nome próprio, Fractured Music, mais direccionado para os terrenos do tecno. Agora, com Bring The Light, não só descola dessa obra, como se afasta da estreia como Mirror People em 2015 com o álbum Voyager, mais virado para as recuperações contemporâneas dos sons disco. “Este álbum é mais direccionado para a pop electrónica”, concorda, “contendo influências de algumas das áreas menos previsíveis, ou menos exploradas, dos anos 1980, enquanto o primeiro era mais centrado no disco sem qualquer dúvida. ” Rui Maia idealiza, compõe e produz mas não lhe peçam para cantar. No primeiro álbum, para essa função, lá estavam Hard Ton, Rowetta, James Curd, Iwona Skwarek ou Maria do Rosário, que o acompanhou em muitos concertos. Agora é assistido vocalmente apenas por João Abrantes, ou seja Jonny Abbey, que também assina a mistura e as letras e que lançou recentemente o álbum de estreia. “Na elaboração dos discos gosto de operar de forma solitária, mas é importante durante o processo, ou posteriormente, na apresentação do mesmo, poder contar com outras pessoas”, afirma, reconhecendo que a sonoridade mais vincadamente sintética resultou de uma opção pessoal que foi sendo maturada ao longo do último ano e meio, embora o modelo de canção pop electrónica não se tenha perdido pelo caminho, envolvida por uma consistente atmosfera que resulta tão retro quanto futurista. As influências que refere dos anos 1980 (Human League, Soft Cell ou o Prince mais sintético) estão lá, embora também se pense em projectos que têm reactualizado essa memória, como os afectos à editora americana Italians Do It Better (Chromatics, Desire, Glass Candy) ou a pop electrónica dançante dos ingleses Hot Chip, ou até os Datf Punk do último álbum, na forma como o som sintetizado das guitarras é trabalhado. A maior parte das canções expõe um envolvimento assumidamente excessivo, com os sintetizadores robóticos e a voz voluptuosa a apontar para tensões eróticas ou para cenários urbanos requintados. Há qualquer coisa de artificioso nos quadros sonoros propostos, com cada canção a integrar diferentes temperaturas – do glaciar ao mais cálido – que são canalizadas para criar climas de volúpia. Autor: Mirror PeopleBelong Records“Este é um disco muito urbano, reflectindo sons e experiências da cidade, apenas a primeira faixa acaba por funcionar como diferenciação, com sons de pássaros, embora gravados em Monsanto”, graceja. Tal como noutros casos da música pop contemporânea tudo parece basear-se numa ideia de partilha de memórias perdidas no tempo e espaço, sejam as musicais de Maia, sejam as experienciais de Abrantes, embora a dupla consiga suplantar qualquer ideia de mera rescrição do passado, com uma afinada sensibilidade pop e a criação de ambientes que nos parecem devolver tanto a vibração como a melancolia nocturna das grandes urbes. Na última década e meia Rui Maia tem estado activo. Em primeiro lugar com o grupo X-Wife, que co-fundou e no qual é teclista, e depois a partir de 2010 como Mirror People, onde mantém o gosto pela investigação sonora com sintetizadores de época, e o ano passado em nome próprio. Quando olha para o universo actual da música de inspiração dançante feita em Portugal sente uma certa paralisação, muita gente a fazer música mas sem grandes novidades. Na sua visão os nomes que se distinguiam há cinco anos, quando se sentia uma grande efervescência na área são os mesmos que continuam a merecer destaque. E entre eles estão alguns que integram a editora e colectivo Discotexas para a qual já editou há uns anos. “Gosto muito do que fazem, seja a Da Chick, ou o Moulinnex, o mais internacional de todos nós, mas especialmente o Bruno, o Xinobi. ”Quando falamos com Bruno Cardoso este devolve o elogio, enaltecendo Rui Maia, dizendo que ainda não tem uma opinião solidamente formada sobre o álbum do amigo – “apenas o ouvi ainda uma vez” – mas sublinha que ficou surpreso, pela positiva, pela mudança de direcção. Tal como no caso do músico e produtor do Porto, também existem linhas de continuidade e de transformação no segundo registo de Bruno Cardoso. “É um disco mais sintético do que anterior, mais digitalizado e electrónico, com as guitarras a ficarem totalmente na sombra”, afirma. Se no seu desempenho como DJ lhe é reconhecida capacidade para gerar celebração esfusiante a partir de música house, disco ou funk digitalizado, em estúdio a coisa muda um pouco de figura. O primeiro álbum, 1975, lançado em 2014, era música de dança garrida com dinamismos rítmicos assentes em linguagens como o house menos óbvio ou o ‘disco’ mais festivo, sublinhados por elementos de funk e dub, misto de momentos contemplativos e arranjos festivos para a pista de dança. No novo registo muda acima de tudo o tom. Os ritmos são mais distendidos, as cadências mais evolutivas, os ambientes mais reflexivos, existe mais tempo e espaço, com a subtileza, a elaboração formal e o respirar, a suplantar a tentação do impacto imediato. É um álbum mais sereno que o anterior. E também mais reflexivo. É uma meditação em torno dos contornos nebulosos do mundo actual, mas também um olhar para trás pessoalizado, para melhor se situar, do próprio músico. As suas raízes estão ancoradas na vivência da linha de Cascais, na faculdade de Belas-Artes e nas culturas do punk e do skate. Durante anos era um dos responsáveis, na guitarra, pela distorção punk provocada pelos The Vicious 5 e há cerca de dez anos viria ser um dos fundadores da editora e colectivo Discotexas, que aposta nas diversas dimensões da música house, disco ou electro. “No fim de contas quis mostrar que todas essas pontas soltas – o punk, o metal, o skate ou a música de dança – se acabam por unir, fazem sentido no cômputo geral do que faço”, diz. No livreto que acompanha o CD existe uma pequena entrevista com o brasileiro Igor Cavalera, um dos fundadores da conhecida banda de metal Sepultura, que nos últimos tempos tem também enverado pela música de dança como Mixhell, como se Bruno quisesse mostrar que todas as transições são possíveis. Da mesma forma, no primeiro tema, Skateboarding, existe uma reflexão de Ian MacKaye (o homem por detrás de bandas como os Minor Threat, Fugazi ou Dischord) sobre a cultura skate, vista como uma forma de redefinir o mundo à nossa volta. Autor: XinobiDiscotexas, distri. Universal“Nos anos 1990, na linha de Cascais, apanhei com todas essas culturas e elas continuam a fazer parte do que sou. Há pessoas que tinham uma percepção da zona como se fosse povoada apenas por betos, mas na verdade era e é uma realidade multifacetada. Nessa altura uma banda como os Primitive Reason acabou por sintetizar essa realidade muito bem, mistura de skate, graffiti, rock, hardcore, raiva, ska, reggae, mar ou surf. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para além de Ian MacKaye existem outras vozes que se ouvem em Quiet, nomeadamente a do poeta sul-africano Lararusman e das portuguesas Sequin e Margarida Falcão. É essa ligação entre vozes mais faladas que cantadas, com a música electrónica penetrante e imersiva, que acaba por criar espaço para a irrupção de um som house emocional de belo efeito. A última vez que falámos, aquando da edição do primeiro álbum, a sua carreira internacional, essencialmente no papel de DJ, mas também com a sua banda, encontrava-se num bom momento. Quatro anos depois diz que não se pode queixar. “Na Turquia gostam de mim, no México também, e no Oriente tem acontecido o mesmo, tenho viajado imenso à volta do mundo, o que é óptimo. Não sou muito de projectar coisas, mas tenho feito o que gosto, este ano a Discotexas vai fazer dez anos que é algo que nunca pensei que fosse possível e estamos aí com mais projectos (vamos lançar uma compilação de aniversário), portanto as ideias e a vontade de as concretizar, com mais música diferente, não faltam. ”Conhecendo-o, percebe-se que fala verdade. Xinobi, tal como Mirror People, têm imensa música na cabeça. O ponto de partida daquilo que fazem é bem definido. O ponto de chegada é sempre uma surpresa.
REFERÊNCIAS:
Morabeza: o jeito bem saboroso e acolhedor de Cabo Verde
Cozinha típica do arquipélago executada com apuro e qualidade técnica que a elevam a um patamar pouco comum. São jovens e mostram em Guimarães o lado mais saboroso do seu país. (...)

Morabeza: o jeito bem saboroso e acolhedor de Cabo Verde
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.2
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Cozinha típica do arquipélago executada com apuro e qualidade técnica que a elevam a um patamar pouco comum. São jovens e mostram em Guimarães o lado mais saboroso do seu país.
TEXTO: Há um jeito gentil, afável e acolhedor, que nos envolve logo que pomos o pé neste restaurante. Simples e meio acanhado até na forma de receber os clientes, e a pôr logo de lado qualquer dúvida sobre a sua genuinidade e autenticidade. Dos produtos à forma de cozinhar, é a genuína cozinha de Cabo Verde que se serve neste recanto vimaranense, mas com a enorme vantagem de que há também sentido do serviço e do gosto e técnicas culinárias actualizadas. E se há no arquipélago atlântico uma natural diversidade, decorrente das suas dez ilhas, esclareça-se desde já que se trata da cozinha com raízes no centro da ilha de Santiago. Na zona de São Domingos que é, talvez, o pedaço mais genuinamente africano de todo o arquipélago. Com vegetação, culturas, gado e uma população de origem negreira, que claramente se destacam no conjunto das ilhas cabo-verdianas. Acabadinho de celebrar o seu primeiro aniversário, o Morabeza emerge do frenesim criativo e renovador que nos tempos mais recentes tem valorizado a cidade-berço. Novos bares, restaurantes, espaços e manifestações culturais que lhe emprestam mundividência, dinâmica e vibração. Não por acaso a estrela Michelin acabada de receber pelo vizinho A Cozinha, do chef António Loureiro, mas também vários outros projectos culinários de modernidade, como é o caso Le Babachris ou Flor de Tangerina, a somar à valente restauração tradicional que é também marca da cidade. E, tal como a nossa saudade, morabeza é também uma palavra que só faz sentido para os cabo-verdianos. Um regionalismo que significa amabilidade, hospitalidade, afabilidade e gentileza, e que casa a preceito com este restaurante. Um espaço criado, gerido e a funcionar com o empenho de jovens oriundos daquela zona do arquipélago, que por cá estudam ou fizeram a sua formação. O cozinheiro, Elias Varela, formado na Escola de Hotelaria de Lamego, é disso perfeito exemplo. A par do largo sorriso de acolhimento, é impossível não reparar nas louças, lenços e artesanato com motivos e cores africanas que compõem o ambiente quente do espaço com capacidade para umas três dezenas de comensais. Contexto simples e sem luxos, tal como a localização, numa viela medieval que atravessa as traseiras do casario da conhecida e central Praça do Toural. Viela da Arrouchela (Centro Comercial do Toural, Lj 32) 4810-427 Guimarães Tel. : 253 109 460 Cozinha típica de Cabo Verde Fecha às segundas e jantar de domingo Estacionamento: Não há (parques exteriores ao centro histórico)A oferta alinha propostas da cozinha típica de Cabo Verde, do pastel de milho ao atum e cachupas, incluindo bebidas como os grogues ou o vinho da ilha do Fogo. Provaram-se as duas sopas – caldo de ovo (2, 50 euros) e canja de atum (3, 50 euros) – com satisfação e aprovação. A canja aromatizada com coentros, o consomé com o ovo escalfado e desfeito e cebolinho. Também as quatro entradas propostas deixaram boa impressão e agrado, destacando-se o apuro técnico e acerto de sabores nos camarões em tempura de “mancarra”, que é como em crioulo designam o amendoim. Impecável também a execução culinária das asinhas de frango (bem secas, pele crocante e estaladiça) acompanhadas por molho agridoce e maionese de alho, tal como os pastéis de milho (refogado de recheio com batata-doce, pimentos e coentro) e os rissóis de atum. Todos servidos em quatro unidades e preços a variar entre 3 e 5, 50 euros. Na oferta piscícola, caldo e cachupa de peixes (9/9, 50 euros) e o atum grelhado com legumes salteados e chips de batata-doce (12 euros). Uma delícia o bife de atum, suculento e pleno de sabor, fibras intactas e cor rosada, a dar mostra do rigor técnico e culinário da cozinha. Já a cachupa surgiu na sua versão mais pobre, quase só com carnes de atum e a deixar água na boca para versões enriquecidas com variedade e diferentes texturas de pescados. No que respeita às carnes, o porco na cerveja com xarém parece ser o mais requisitado, numa oferta que inclui cachupa, cachupa guisada, peito de frango e cogumelos salteados com xarém, e cabrito no forno com feijão do Congo e mandioca frita. Provou-se o cabrito (15 euros), de assadura lenta e partido em pedacinhos saborosos, com os pequenos feijões escuros num saboroso guisado com legumes e chouriço e ainda arroz basmati. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Como propostas vegetarianas, xarém de legumes e cachupa vegetariana (8/9 euros), enquanto nas sobremesas são propostas duas mousses (abacate e coco) e um gelado. Provou-se o gelado de queijo de cabra com crocante de mancarra e papaia salteada (4 euros), num conjunto que resulta delicioso e de muito boa execução. Num contexto modesto e simples que é o do restaurante, também a carta de vinhos se mostra ajustada e com sentido de critério face à oferta gastronómica. Cativa também a simpatia e eficiência do serviço, a dar ainda um mais forte sentido ao contexto morabeza. A par da satisfação e sensação de conforto gastronómico, destaca-se a expressão de técnica e rigor culinário da cozinha de Elias Varela. Com produtos e receitas de Cabo Verde, mostra grande cuidado na definição dos sabores e na forma como destaca os ingredientes. Técnica e rigor que enriquecem a cozinha do arquipélago, e, não sendo vulgares na restauração local (nem na que também por cá se conhece), bem justificam a atenção dos representantes do país.
REFERÊNCIAS:
Rãs-marionetas e o regresso à grega inquietude no 2019 do Teatro Nacional São João
Mais de dezena e meia de estreias e co-produções fazem o calendário de espectáculos da instituição para o próximo ano. É a passagem de testemunho – com assinatura – de Nuno Carinhas para o seu sucessor na direcção artística do teatro, que já se prepara para celebrar o centenário em 2020. (...)

Rãs-marionetas e o regresso à grega inquietude no 2019 do Teatro Nacional São João
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: Mais de dezena e meia de estreias e co-produções fazem o calendário de espectáculos da instituição para o próximo ano. É a passagem de testemunho – com assinatura – de Nuno Carinhas para o seu sucessor na direcção artística do teatro, que já se prepara para celebrar o centenário em 2020.
TEXTO: Na agenda do Teatro Nacional São João (TNSJ) para os próximos sete meses, apresentada esta sexta-feira no Porto, sobressaem dois momentos que terão algum simbolismo para a história da instituição: os dias 7 e 27 de Março. O primeiro assinala o 99. º aniversário do edifício projectado por José Marques da Silva que em 1920 veio substituir o primeiro teatro de ópera feito de raiz na cidade, arruinado por um incêndio uma década antes. Será então que a actual equipa do teatro nacional portuense irá antecipar o programa das festas de 2020, um ano que se antevê "redondo, grávido, cheio”. Depois, a 27, Dia Mundial do Teatro, Nuno Carinhas, que nessa altura será já ex-director do TNSJ, estreia a peça que vai encenar em parceria com Fernando Mora Ramos, O resto já devem conhecer do cinema, do dramaturgo britânico Martin Crimp, um “herdeiro da grega inquietação” – que, como aperitivo, o São João trouxe à edição este ano do Fórum do Futuro, onde proferiu uma conferência. Esta escolha de Carinhas, mesmo se resulta de “um desafio do Fernando Mora Ramos” – com quem, em 2015, encenou também O Fim das Possibilidades, de Jean-Pierre Sarrazac –, vem na sequência da atenção que, como encenador, tem dado ao teatro grego, e será, diz, “uma extensão” da experiência por que passou em 2010 com a montagem da Antígona, de Sófocles. “É interessante voltar à tragédia grega. Nós temos sempre de deixar passar algum tempo para voltarmos àquilo de que gostamos”, diz Carinhas ao PÚBLICO, explicando que já conhecia a obra de Crimp, mas que essa será a sua primeira experiência em palco com o dramaturgo, num espectáculo que irá contar com actores profissionais, mas também terá jovens ex-alunos da ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo) a fazer o coro. “Pareceu-me uma bela maneira de me ir afastando aos bocadinhos da casa, mas sobretudo porque os gregos, e a maneira como o Martin Crimp os trata, estão completamente actualizados: são os nossos problemas, e eu gosto de discutir política também em palco”, sublinha o encenador sobre uma peça que tem por base As Fenícias, de Eurípides. Carinhas termina no final deste mês um período de dez anos à frente da direcção artística do TNSJ – onde irá ser substituído em Janeiro por Nuno Cardoso. A programação para a primeira parte da temporada de 2019, ainda da sua responsabilidade, é particularmente densa e variada: tem 12 estreias e 16 co-produções; acolhe espectáculos de três festivais – a BoCA, o FITEI e o Dias da Dança –, apresenta criações de (autores e actores) jovens e consagrados; e desdobra-se em várias artes do palco (a dança e a música, a performance e a instalação, a literatura e a fotografia). É, naturalmente, um programa ainda com assinatura de Carinhas, mas o director-encenador recusa a ideia de que tenha pretendido deixar algum rasto mais vincado. “É uma programação que tem a ver com uma dinâmica da casa, que está agora mais ou menos confortável, apenas isso”, assegura. Desafiado pelo PÚBLICO a seleccionar meia dúzia de espectáculos da programação do TNSJ e das suas duas outras salas, o Teatro Carlos Alberto (TeCA) e o Mosteiro de São Bento da Vitória (MSBV), Carinhas põe a tónica nas estreias e nas co-produções com outras estruturas. E começa por sublinhar a chegada a Portugal da criação Mnémosyne, de Josef Nadj (MSBV, 17 a 20 de Janeiro), misto de exposição de fotografia e de performance de um autor que Carinhas considera “um demiurgo, do mesmo modo que Nekrosius o foi”. “Nadj é um artista completíssimo: escritor, bailarino, coreógrafo, encenador, artistas plástico, com uma poética que me diz muito”, acrescenta. Em Mnémosyne, o artista francês de origem jugoslava propõe um díptico em volta de rãs-marionetas com as quais encena várias narrativas entre o heróico e o trágico. Ainda em Janeiro (TNSJ, 30 a 10 de Fevereiro), Alice no País das Maravilhas marcará o primeiro encontro do São João com Ricardo Neves-Neves, aqui numa encenação partilhada com Maria João Luís, que dá ao clássico de Lewis Carroll “um tom musical e fantasioso, na exploração da consciência de si num registo surrealista”, nota Carinhas. A seguir virá Breu (TeCA, 14 a 23 de Fevereiro), co-produção com o colectivo Musgo sobre o mundo do circo numa metáfora sobre a precariedade do trabalho dos artistas. Já em Abril (TeCA, 10 a 13), Pathos, criação de Cátia Pinheiro e José Nunes, é “uma tragédia, um espectáculo-ruína”, que Carinhas associa uma vez mais ao imaginário da Grécia antiga numa viagem que nunca chegou a terminar, e um olhar sobre uma certa ideia de humanidade, nestes tempos de intolerância e fundamentalismos. Os autores, e fundadores do colectivo Estrutura, classificam a sua criação como “um salto de fé”. Outra estreia de 2019 será Coisas que não há que há (TeCA, 31 de Maio e 1 de Junho), cujo título remete de imediato para o imaginário de Manuel António Pina. Trata-se de uma criação de Catarina Lacerda e Raquel Couto, do Teatro do Frio, que reúne peças de dez compositores convidados a musicar outros tantos poemas do poeta-dramaturgo para um coro de vozes infantis e juvenis. Também terá a sua estreia no Porto Quimeras, de Luís Castro e Vel Z (MSBV, 7 a 9 de Junho), recriando o conceito perfinst (performance-instalação) a partir da escultura Cristo Velato (1753), de Giuseppe Samartino, exposta no Museu da Capela de São Severo, em Nápoles. Haverá ainda, até ao Verão, O Poeta Acorrentado à Mesa (TeCA, 26 a 30 de Junho), com que João Samões faz um retrato da vida e obra de Céline; Lux-Lucis (TNSJ, 4 a 6 de Julho), com Miquel Bernat e o seu Drumming – Grupo de Percussão a coreografarem um espectáculo musical sobre a luz e o seu lugar na sociedade; Bonecas (TeCA, 11 a 21 de Julho), que Ana Luena encenará a partir da pintura de Paula Rego e de um conto inédito de Afonso Cruz sobre a experiência de um orfanato feminino no Portugal dos anos 60; e Wild Spring (TNSJ, 18 a 28 de Julho), regresso do Ensemble à escrita do dramaturgo inglês Arnold Wesker, com Emília Silvestre a encarnar uma actriz famosa em conflito consigo própria e com o mundo. Pelo meio, Nuno Carinhas realça também a chegada, finalmente, ao palco da Praça da Batalha de Sopro (12 a 22 de Junho), criação do director artístico do D. Maria II, Tiago Rodrigues que teve estreia mundial no Festival de Avignon de 2017. E também admite a curiosidade que lhe desperta A Boda, de Bertolt Brecht (TNSJ, 30 de Maio a 8 de Junho), co-produção com o Centro Cultural de Belém em que Ricardo Aibéo – que foi aluno de Nuno Carinhas no Chapitô – replicará a experiência dos fundadores da Cornucópia, remontando essa peça de juventude do dramaturgo alemão que foi uma das primeiras produções daquela histórica (e entretanto extinta) companhia lisboeta. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Intercalando este vasto calendário, os três palcos do TNSJ receberão também produções de outros tantos festivais. O primeiro é o BoCA – Biennial of Contemporary Arts, cuja segunda edição abre a 15 de Março e que, entre 10 e 18 de Abril, terá neles dois espectáculos: Cattivo (MSBV), da coreógrafa Marlene Monteiro Freitas, uma “instalação para estantes de partituras e outros materiais” que explorará as propriedades expressivas das estantes musicais e seus estados emocionais; e Hello My Name Is, de Edward Bond (TeCA, 17 e 18 de Abril), regresso ao Porto, vindo da Austrália, do actor e encenador Paulo Castro, com o actor José Da Costa a reflectir sobre a violência sofrida pelo povo de Timor-Leste sob o jugo da Indonésia. Do Festival DDD – Dias da Dança, o palco do São João vai acolher três espectáculos: Um Encontro Provocado, produção da Companhia Paulo Ribeiro sobre o tema da violência enquanto sentimento humano, com coreografia de Henrique Rodovalho (26 a 28 de Abril); Fúria (2 e 3 de Maio), regresso ao Porto de Lia Rodrigues, figura tutelar da dança brasileira, com uma criação estreada em Novembro passado em Paris em que recria “um mundo tumultuado por uma multitude de questões sem resposta, atravessado por sombras e imagens fulgurantes, de contastes, de paradoxos”; e Clarão (10 a 12 de Maio), uma produção Circolando feita a partir do Serapeum de Panóias, recentemente estreada em Vila Real. Regressado ao seu antigo calendário de Maio, o FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica) passará igualmente pelos três palcos do TNSJ. Ali trará Preto (TeCA, 16 e 17 de Maio), espectáculo sobre o tema do racismo, dirigido pelo brasileiro Marcio Abreu; Tchékhov É um Cogumelo (TNSJ, 18 e 19 de Maio) , adaptação de As Três Irmãs, do dramaturgo russo, com encenação de André Guerreiro Lopes, para a companhia paulista Estúdio Lusco-Fusco; e, finalmente, Yo Escribo. Vos Dibujás, de Federico León (MSBV, 23 e 24 de Maio), regresso ao Porto deste dramaturgo e encenador argentino para uma residência artística de que resultará um espectáculo sobre o tema do autoconhecimento.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave escola violência racismo circo