Judith Malina: Ela sonhava com um teatro revolução e fez esse teatro até ao fim
Com aproximadamente uma centena de peças no seu historial, o Living Theatre revolucionou a prática teatral ao apresentar-se fora das salas e procurando uma constante acção política e social. A sua fundadora, Judith Malina, morreu sexta-feira, aos 88 anos. (...)

Judith Malina: Ela sonhava com um teatro revolução e fez esse teatro até ao fim
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Com aproximadamente uma centena de peças no seu historial, o Living Theatre revolucionou a prática teatral ao apresentar-se fora das salas e procurando uma constante acção política e social. A sua fundadora, Judith Malina, morreu sexta-feira, aos 88 anos.
TEXTO: Em Fevereiro de 2013, pondo fim à mais longa permanência do Living Theatre num mesmo espaço nova-iorquino, o grupo era “despejado” de Clinton Street. Mais de seis décadas depois de Judith Malina e Julian Beck terem fundado a sua companhia de teatro, a essência continuava tão marginal quanto sempre havia sido. Aos 88 anos, Malina era ainda movida pelo mesmo “sonho de uma bela revolução anarquista não-violenta”, apresentando na noite de despedida desse espaço Here We Are, uma peça que afirmava a ineficácia de um sistema político montado sobre a ideia da democracia representativa. Judith Malina morreu aos 88 anos na passada sexta-feira. O seu sonho não – continua vivo, depositado nas mãos do seu filho Garrick Beck e dos restantes sucessores na direcção do Living Theatre. Mesmo com um estado de saúde tão fragilizado quanto as finanças do grupo, Malina encontraria ainda forças para estrear, em 2014, a sua derradeira criação, Nowhere to Hide. Prova de uma vontade férrea em fazer vingar a sua visão utópica de um teatro implicado política e socialmente, Malina carregaria a missão do Living Theatre depois de perder os seus dois companheiros – Beck morreu em 1985, Hanon Reznikov, seu segundo marido, desapareceu em 2008. A notícia da morte de Malina na Lillian Booth Actor Home, devido a uma doença pulmonar, foi avançada pelo jornal The New York Times. Embora seja naturalmente tentador recordar a marca de actriz de Malina na série Os Sopranos ou nos filmes Os Dias da Rádio, de Woody Allen, ou Um Dia de Cão, de Sidney Lumet, a grande obra da sua vida seria o trabalho constante com o Living Theatre, fundado em 1947. A experiência de Ouro PretoAnimado por uma postura de contra-cultura e de revolução da linguagem teatral, propondo-se libertá-la do palco, levando-a para as ruas, o Living Theatre pautou-se desde o início por uma relação de confrontação com todo o tipo de convenções, nomeadamente quebrar o mais possível a fronteira entre actores e público, entre ficção e realidade, entre arte e política. Exemplo máximo dessa visão teatral terá sido Paradise Now, espectáculo que causou um sério impacto em Sérgio Godinho quando o viu em Genebra em 1969, onde então estudava. “Fiquei impressionado com aquela experiência de teatro bastante inovadora, feita de fragmentos, porque não era uma peça no sentido convencional”, lembra o músico ao PÚBLICO. Pouco depois, na sequência de vários encontros em Paris quando Godinho integrava o elenco do musical Hair, o Living Theatre convidá-lo-ia a juntar-se-lhe em Ouro Preto, no Brasil, onde se iriam apresentar num festival de teatro. “Nessa altura já tinham feito uma ruptura com o teatro de salas, queriam fazer um teatro de rua e assumidamente anarquista e de agitação”, diz o músico português, justificando o porquê de não ter hesitado em embarcar com a sua companheira, Sheila Charlesworth, a caminho do Brasil. A companhia preparava nesses dias de 1971, em pleno período de ditadura militar no país, um espectáculo em apoio aos trabalhadores da multinacional canadiana de alumínios Alcan. O teatro fazia-se, afinal, onde eles estivessem. Era vivo nesse sentido – não se desligava depois da saída do palco. Aliás, o palco tinha sido eliminado para que o teatro existisse sempre. No entanto, acabariam todos presos em Belo Horizonte devido a uma acção de extrema-direita no primeiro dia do festival. “Primeiro, fomos acusados de subversão e de posse de maconha. Estivemos presos dois meses e acabámos por ser expulsos do Brasil depois de uma grande contestação internacional [liderada por nomes como Susan Sontag e Jean-Paul Sartre], embora tenhamos sido absolvidos”, recorda Godinho. A garra de Judith“É impossível falar da Judith sem falar do Julian”, argumenta Sérgio Godinho. “Mas a Judith era fantástica e tinha mais afinidade com ela do que com o Julian, porque era uma judia nova-iorquina com sentido de mordacidade e extremamente culta, sempre ligada às teorias mais avançadas do teatro, sobretudo do Piscator. ” Nascida na Alemanha, em 1926, Malina mudou-se com a família para Nova Iorque e foi precisamente com Erwin Piscator que se formou como actriz e encenadora. A sua vida ficaria marcada pelo encontro com o pintor expressionista Julian Beck. A estreia da companhia deu-se em 1951, com Dr. Faustus Lights the Lights, de Gertrude Stein, tendo seguido depois para autores como T. S. Eliot. Jean Cocteau ou William Carlos Williams. Em 1977, o crítico de arte e programador Ernesto de Sousa chamou a companhia para a histórica exposição Alternativa 0, na Galeria de Arte Moderna, em Belém, tendo apresentado três performances em Lisboa e seguido depois em digressão para Coimbra e Porto, onde montaram o espectáculo Sete Meditações sobre Sado-Masoquismo Político. Em cada momento, de profunda convicção na revolução social pelo teatro, “a garra da Judith Malina determinou todo aquele nervo que o Living Theatre teve”, acredita Sérgio Godinho.
REFERÊNCIAS:
Uma monstruosa representação do amor
Mickaël de Oliveira e Nuno M. Cardoso pegaram numa mãe e numa filha, enfiaram-nas dentro de uma casa e puseram-nas a planear assassinar um presidente e fugir para a Noruega. Mas em Oslo – Fuck them All and Everythig Will Be Wonderful só contam o grotesco e a ausência de amor. (...)

Uma monstruosa representação do amor
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Mickaël de Oliveira e Nuno M. Cardoso pegaram numa mãe e numa filha, enfiaram-nas dentro de uma casa e puseram-nas a planear assassinar um presidente e fugir para a Noruega. Mas em Oslo – Fuck them All and Everythig Will Be Wonderful só contam o grotesco e a ausência de amor.
TEXTO: A filha faz 35 anos. A mãe, rodeada de alguns convidados, propõe um brinde: “Vocês, aqui, à volta desta mesa, são quem nós temos, os verdadeiros amigos que nunca fugiram. ” Ergue o copo com champanhe, desculpa-se pelo jantar de frango de churrasco e batatas fritas – enfim, já lhes cortaram a água e o gás – e aproveita o embalo do festejo para juntar uma outra celebração. Estão de partida daquela casa, vão previsivelmente para Oslo, logo depois de assassinarem o Presidente. E depois deste, havendo outros presidentes, a mãe voltará para os matar. “Porque o que mais me incomoda é o nome ‘presidente’. Vou propor-lhes ‘coordenador geral’”, justifica. A filha está calada. A mãe pede que recordem como a pequena era dantes, “sempre alegre, linda, ambiciosa, a trabalhar naquele bar”. Um homem diz lembrar-se perfeitamente. Olha para ela: “Eras feia, com acne, bons velhos tempos. ” A filha continua calada e mãe gaba-lhe o milagre da introspecção. A filha nada diz, tem uma cabeça cheia de ar. Não é que seja tonta; é simplesmente uma boneca insuflável. Em tempos, a filha teve um corpo. Foram outros tempos da peça Oslo – Fuck them All and Everything Will Be Wonderful, escrita por Mickaël de Oliveira e co-encenada com Nuno M. Cardoso, em cena no Teatro-Estúdio Mário Viegas a partir da próxima quinta-feira, 23. Nessa altura, em 2006, quando Mickaël venceu o Prémio de Nova Dramaturgia instituído pelo Teatro Maria Matos, esta mesma peça chamava-se O que É Teu Entregou aos Mortais. Mas, apesar do prémio, o dramaturgo não se atreveu a roubar o texto à gaveta. De vez em quando voltava a trabalhá-lo, mas o destino era sempre o repouso, longe dos palcos, mesmo que periodicamente fosse lido em público. “A grande crítica que tinha em relação ao texto”, conta ao Ípsilon, “prendia-se com ser demasiado regular. Tinha um pathos, no sentido de sofrimento profundo, que achava completamente desadequado. ” A solução passou então por transformar a sua ideia inicial em algo “mais irregular e monstruoso – sobretudo com um olhar grotesco e com um falso pathos associado”. Tudo o que havia de clássico na estrutura e no ambiente foi cuidadosamente extraído e ao fim de dez versões, alteradas, rasuradas, reescritas, emergiu aquilo a que o autor chama “uma espécie de freak show”. “A mãe vive num processo de negação, porque supostamente perdeu a filha e substituiu-a por uma boneca insuflável”, clarifica. Mais ou menos. Mickaël usa a palavra “supostamente” porque nem ele próprio parece conhecer aquela mãe que lhe saiu das mãos, interpretada por Mónica Calle, nem manifesta sequer um interesse particular em dissecar a sua própria personagem que anda por ali no palco, em carne e osso, ao contrário da sua filha ficcional que tem de ser bombeada antes de entrar em cena. A relação entre as duas é assumida como motor da peça, mas como afirmam autor e encenador, “o motor não interessa”. O que interessa é o resumo que a mãe faz quase ao cair do pano, depois de repetir uma e outra vez que “as pessoas são uma merda”. O que interessa é a sua constatação de que não há apensos a esta encenação uma crítica sócio-política, nem um ataque ao consumo, nem uma intenção real de matar presidentes ou de chegar a Oslo. “Este espectáculo é sobre o amor que nunca irão conhecer”, afirma de forma peremptória Mónica “mãe” Calle. E como para Mickaël de Oliveira a temática amorosa cai quase sempre no patético, foi nesse terreno que decidiu investir as suas palavras. “Então vou tornar isto o mais patético possível e vou tentar violentar a representação do amor”, pensou o dramaturgo. Family Guy ou American Dad“Tinha acabado um relacionamento bastante profundo, aquilo bateu-me muito mal e decidimos sair daqui”, recorda Mickaël de Oliveira em relação ao período da reescrita definitiva do texto. Nuno M. Cardoso pegou-o pelo braço, pararam nalgumas outras cidades, mas foi Oslo que, nas palavras do encenador, “serviu de catarse”. Mas também o contacto acidental com a obra Mother and Child (Divided), de Damien Hirst, mãe e filha, vaca e bezerra biseccionadas, “foi impactante para escolher um pouco da imagética e do relacionamento que é esta separação – não só do outro mas de si próprio”, comenta Nuno. Os dois tinham já trabalhado juntos, mais notadamente em Boris Yeltsin, e foram puxando por forças diferentes na definição de Oslo. “Existe uma cumplicidade entre nós”, continua Cardoso, “mas trouxemos diferentes linguagens, porque o Mickaël tem um universo muito específico e eu tenho outro bastante diferente. Gosto de me confrontar com esta visão mais cínica e aguçada, em que eu vou jogando e lançando uma perspectiva mais esperançosa. ” O grotesco poderá, eventualmente, evocar o trabalho do argentino Rodrigo García, próximo do mundo dramatúrgico de Mickaël de Oliveira, mas essa sombra é recusada por ambos. “Aquelas frases, as punch lines, os slogans que gosto de usar, é o que fazem o Family Guy, o American Dad ou o South Park”, defende o autor. “Porque os desenhos animados exploram o grotesco e o óbvio, não tentam esconder nada. É um processo de apedrejamento contínuo. ”A preferência pelo grotesco sinaliza também, entre outras coisas, a recusa de ambos em tratar a mãe como um caso de demência ou de distúrbio psiquiátrico. Não é disso que se trata. É antes de uma “revolução íntima que vai acabar com a revolução política”. “Com isso”, justifica Mickaël, “a mãe atinge uma apoteose qualquer, o paraíso que é Oslo e que ela prometeu a si própria”. A mãe, ocupada quase inteiramente pela perda, pelo vazio e pela ausência, esboça e anuncia repetidamente esse plano de fuga – da casa, da vila, da sua vida, rumo a uma nova existência com ou sem uma filha que não resistirá, qual Bela Adormecida, ao fuso de uma roca. Por fim, atira rancorosa a ideia de que, tal como ela, também o público não terá direito a conhecer o amor. “Fuck them all”, diz uma vez mais. Não por acaso, Oslo adapta o genérico inicial falado de O Desprezo, de Jean-Luc Godard, recorre à música do filme composta por Georges Delarue até à exaustão e a citação do filme patrocina tanto o desprezo que a mãe cospe em direcção a todo o mundo quanto o tal grotesco daninho que os encenadores deixam crescer livremente entre as personagens. No chão do palco, ao lado daquela casa da qual a mãe não consegue escapar, um holofote aponta para a um outro “fuck them all”, inscrito à margem do cenário. Exacto – que se fodam as personagens. Cada uma delas.
REFERÊNCIAS:
O Teatrão no Brasil para contar como é a crise em Portugal
Digressão da companhia de Coimbra começa nesta sexta-feira em São Paulo e inclui programa paralelo de debates e oficinas. (...)

O Teatrão no Brasil para contar como é a crise em Portugal
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Digressão da companhia de Coimbra começa nesta sexta-feira em São Paulo e inclui programa paralelo de debates e oficinas.
TEXTO: Sim, ainda há os jornais (e uma língua comum simplificada, Acordo Ortográfico oblige, para ver se finalmente nos entendemos), e as notícias sobre a crise que mesmo depois da saída limpa enchem páginas que amanhã servirão para embrulhar peixe acabado de pescar (ou então a rede propriamente dita, de clique em clique). Mas depois há o teatro, e os que acreditam no poder que os actores em cima do palco têm de fazer das palavras a carne viva do passado, do presente e do futuro. É precisamente disso que se trata no caso desta digressão que uma companhia de Coimbra, O Teatrão, leva a partir desta sexta-feira, 24, ao Brasil, traduzindo a crise que abalou o país em linguagem paritária, porque é também de crise (social, política) que falamos quando falamos do Brasil. Razão mais do que suficiente, acredita O Teatrão, para ir fazer o 25 de Abril do outro lado do Atlântico, com um programa que inclui a apresentação do três-em-um Conta-me Como É, estreado em Portugal pelos 40 anos da Revolução dos Cravos. Retrato do país por três jovens dramaturgos premiados (Jorge Palinhos, Pedro Marques e Sandra Pinheiro), o espectáculo encenado pelo crítico do PÚBLICO Jorge Louraço Figueira fica no SESC Bom Retiro, em São Paulo, até dia 26, e apresenta-se depois no Espaço Cultural Escola SESC, do Rio de Janeiro, a 2 de Maio, integrando o Festival Palco Giratório. Paralelamente, O Teatrão promove uma série de actividades paralelas na Oficina Cultural Oswald de Andrade, também em São Paulo, que incluem uma mesa-redonda sobre A Arte da Crise (dia 25), reflectindo sobre os modos diferenciados como as perturbações económicas, sociais e políticas afectam os espectáculos de teatro na Europa do Sul e na América Latina, em Portugal e no Brasil, e, aproveitando a presença do cineasta Sérgio Tréfaut pelo país, mostra o seu Outro País (1999), recentemente reestreado depois de restauro digital — o documentário inaugural de Tréfaut é, de resto, uma das assumidas inspirações de Conta-me Como É. Um seminário de discussão e intercâmbio entre dramaturgos portugueses e brasileiros (5 a 7 de Maio) e uma oficina de dramaturgia para produção de textos inspirados numa das cenas do Terror e Miséria no Terceiro Reich, de Bertolt Brecht (29 e 30 de Abril), completam o programa das festas d'O Teatrão em São Paulo. Já no Rio, haverá também uma oficina de dança com uma companhia de São Luís do Maranhão, o Núcleo Atmosfera, a partir de matrizes das danças populares e das suas possibilidades de reconversão para os pés e os corpos de dois países irmãos em tudo, até na crise.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave escola carne social
Como mudar o mundo sem sair do sofá
Trinidad González está obcecada com “a violência das nossas vidas íntimas”. Pájaro, a peça com que regressa a Portugal, instala essa violência numa sala de estar que talvez já tenhamos visto em qualquer lado, para que fique claro que o sistema somos todos. (...)

Como mudar o mundo sem sair do sofá
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-05-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Trinidad González está obcecada com “a violência das nossas vidas íntimas”. Pájaro, a peça com que regressa a Portugal, instala essa violência numa sala de estar que talvez já tenhamos visto em qualquer lado, para que fique claro que o sistema somos todos.
TEXTO: Há uma parte de Trinidad González que está em guerra com o mundo e outra parte que está em guerra com ela própria, por não fazer nada para o mudar. “Nada”, entendamo-nos, que esteja ao nível de “ir para o hospital tratar doentes”, o que explica parte da culpa com que a actriz, encenadora e dramaturga chilena (exactamente por esta ordem) senta as suas personagens no sofá em que começa e acaba Pájaro (2014), e parte da culpa com que ela própria, em casa, já completamente fora de cena, se senta no seu sofá. Não há-de ser no teatro que esta culpa se resolve, pelo contrário. Em parte, é do teatro que ela vem: “A culpa acompanha-me desde sempre: a culpa de ter tido certas oportunidades e certos privilégios, a culpa de não fazer mais, a culpa de me dedicar ao teatro, no sentido em que o teatro é tão pouco concreto e tão pouco mensurável nos seus efeitos… “, diz Trinidad ao Ípsilon por telefone, não muitas horas depois de aterrar em Lisboa, onde Pájaro inicia esta quinta-feira, no Teatro Teatro Maria Matos, uma curta digressão nacional que também passará pelo Porto (2 e 3 de Junho, no Teatro Municipal Rivoli, integrando a 40. ª edição do FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica) e por Loulé (4 de Junho, Cineteatro Louletano). Pájaro amplifica essa culpa, que no fundo é a culpa de continuar a viver com o sistema capitalista global sabendo que ele é atroz, mesmo que para isso seja preciso levantar uma barricada de cinismo, ou de egoísmo, ou de vinho caro, ou de tudo ao mesmo tempo como no caso das três personagens que encontramos no sofá de uma sala de estar na madrugada mais fria do ano. Pájaro é a peça que Trinidad escreveu para essas personagens, que são carne da sua própria carne (e não apenas por serem artistas). Mas é também a peça que escreveu para o intruso que uma delas encontra a dormir na rua, com a cabeça ensanguentada por uma pedrada recente, e convida a entrar para beber um copo – um intruso que dirá ser um pássaro, por já não se identificar com os homens. É na violência desse encontro (ou melhor: desse desencontro) que a chilena projecta a violência das relações humanas, o tema que verdadeiramente lhe interessa desde que pôs um ponto final no seu primeiro texto para teatro, La Reunión (2012), que em 2014 passou por Lisboa no âmbito do programa Próximo Futuro (este, a propósito, integra a programação de Lisboa 2017 – Capital Ibero-Americana de Cultura). “La Reunión ainda estava em cartaz quando comecei a escrever Pájaro, e é por isso que retoma uma personagem que aparecia no fim dessa peça. Quando uma pessoa tem uma ideia na cabeça, é difícil esgotá-la num só espectáculo – e na verdade eu mal a aflorava. Há autores que mesmo tendo escrito dezenas de romances dizem que passaram a vida toda a escrever o mesmo livro…”, explica-nos. Pode vir a ser um deles, admite, está obcecada “pela violência nas nossas vidas íntimas”: a sua próxima peça vai voltar a ser sobre este assunto. La Reunión, em que Trinidad González ficcionava sobre o poder (dos conquistadores, da Igreja Católica, das oligarquias) a partir de um facto histórico – a ordem de prisão dada a Cristóvão Colombo e aos seus irmãos pelos Reis Católicos, em 1500 –, terminava com um miúdo, indígena, a dirigir-se ao descobridor da América e a profetizar o seu próprio futuro: “Com sorte, poderei chegar a ser um pássaro, mas quando estiver a voar um de vocês vai atirar-me uma pedra porque sim e eu vou morrer porque sim, rebentado nalgum caminho. ”Companhia:Fundación Teatro a Mil Encenação:Trinidad González Texto:Trinidad González Maria Matos Teatro Municipal, Lisboa, Quinta, de 25 de Maio de 2017 a 26 de Maio de 2017 às 21h30 Teatro Rivoli, Porto, Sábado, de 2 de Junho de 2017 a 3 de Junho de 2017 às 19h Cine-Teatro Louletano, Loulé, Domingo, 4 de Junho de 2017 às 17hÉ uma imagem que nunca lhe saiu da cabeça, e que lhe permitiu aproximar-se novamente da violência – mas desta vez não é da violência brutalmente física, sanguinária, da colonização espanhola que Trinidad quer falar, ainda que a apresentação desta peça no ciclo Utopias do Maria Matos, acompanhando o programa de debates Questões Indígenas: ecologia, terra e saberes ameríndios, possa induzir o tema (e depois, lembramos, há aquele momento deste serão entre amigos em que alguém usa a palavra “nativa”, sinónimo de “pré-histórica”, como se usa um insulto…). “Em La Reunión sim, eu tratava da maneira como os brancos arrasaram a cultura indígena e impuseram a sua cultura um pouco decadente – ao contrário de outros territórios em que a colonização foi 'apenas' brutal, no caso da América Latina ela teve uma intenção civilizadora, o que a tornou muito particular. Mas aqui essa história de submissão é só um pequeno apontamento: Pájaro não vai de todo por aí, é mais sobre o modo como destruímos, às vezes sem qualquer sentido, qualquer pessoa que decida viver de maneira diferente. ”O homem-pássaro que rebenta nalgum caminho e casualmente se converte, por umas horas, na ave rara do sofá lá de casa (isto se não acabar na cama, como noutras histórias de submissão), não é, esclarece Trinidad, “nem um pobre nem um louco de origem”, simplesmente alguém que escolheu outra via por não estar de acordo com esta. “Alguém que estudou contigo, que até andou na universidade, que tem ferramentas culturais iguais às tuas – só que com uma sensibilidade, uma maneira de ser que de repente o põem fora do mundo, até que essa marginalidade passa a ser igual à de um mendigo ou de um esquizofrénico”, diz ao Ípsilon a dramaturga e encenadora que já perto da estreia acabou também por ter de acumular essas funções com um dos quatro papéis de Pájaro, o da artista idealista e um pouco retirada do mundo, ou derrotada por ele, que às tantas parece apaixonar-se pelo seu surpreendente convidado (é um auto-retrato, mas são todos…). Este homem-pássaro, continua, é um fenómeno directamente observável em todo o Ocidente (“Vivemos em sociedades tão globalizadas que às vezes é difícil encontrar as diferenças…”), e não apenas no Chile: “Pájaro é a sensação que eu tenho sobre este mundo hiper-competitivo, totalmente obcecado com o êxito, dominado pelo lucro e pelo dinheiro, em que os valores mais simples do afecto e da comunidade ficaram muito lá para trás. A violência da solidão absoluta não é um problema existencial, é um problema absolutamente concreto. ” Mesmo – e aqui vamos ter de discordar de Trinidad – quando o vemos numa peça de teatro. Estamos entre amigos, portanto, horas depois de um jantar em que se esvaziaram demasiadas garrafas. O sítio certo, a hora certa para a violência rebentar – com toda a sua tralha, da ameaça de cyberbullying (os telemóveis, aponta subtilmente uma cena de Pájaro, são a nova arma de destruição maciça) ao assédio sexual, do cinismo da faca nas costas ao paternalismo de mão no ombro. “A sociedade está tão, tão, tão apertada que basta um pequeno estímulo para que se solte a violência mais desatada”, reflecte Trinidad González, fazendo coro com a sua personagem-título, porque “o facto de hoje podermos ver uma decapitação no YouTube faz dos nossos tempos os mais violentos de sempre”: “Vivemos uma época terrível. Há que dizê-lo sem gaguejar. Mas há movimentos subterrâneos. São pequenas acções. Somos poucos, mas somos fortes. Somos consistentes. Somos decentes. Reconhecemo-nos nas ruas. ”É natural que Trinidad o reconheça também – e que se reconheça nele. “Há uma parte de mim, uma parte de rebeldia, de cansaço, de tristeza, de raiva, que é o pássaro. As coisas que ele diz são as coisas que eu penso, as coisas que qualquer pessoa com um pouco de sensibilidade e de consciência pensa. Como: ‘Por que é que não param de se bombardear e chegam a um acordo?’. Parece de uma ingenuidade ridícula, mas a sério: porque não?”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Talvez não possamos ser pássaros o tempo todo: é preciso ganhar a vida, pagar a renda. “Há muitos momentos em que nos esquecemos do mundo – e é bom, porque não estaríamos vivos se não pudéssemos alienar-nos um pouco de tudo o que é terrível. ” Mas como actriz, como encenadora e como dramaturga (de novo: exactamente por esta ordem), Trinidad não trocaria os seus “momentos de hiper-consciência”, por muito que doam, por essas ausências. É por isso que praticamente nos senta no sofá com as suas personagens – deixando bem claro que o sistema somos todos, mas permitindo que façamos o nosso coming out como gente decente: “Em Portugal o público estará connosco no palco, o que é muito inteligente, porque esta peça precisa de proximidade: os espectadores começam a sentir-se parte da festa e deixam de saber como reagir. Há alguns que gritam ‘não, não façam isso!’, outros que têm o impulso de se levantar para ajudar o pássaro. Gosto que haja esses impulsos, porque eles induzem uma reflexão activa e o teatro deixa de ser só uma experiência estética, intelectual, e passa a ser uma experiência vivencial. ”Talvez não seja assim tão absurda a ideia de mudar o mundo a partir de uma sala de estar.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens guerra violência cultura prisão homem carne comunidade sexual assédio
Baleias só começaram a crescer nos últimos três milhões de anos
O que levou as baleias a aumentarem tanto de tamanho tem sido um mistério. (...)

Baleias só começaram a crescer nos últimos três milhões de anos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-05-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: O que levou as baleias a aumentarem tanto de tamanho tem sido um mistério.
TEXTO: A baleia-azul, o maior animal vertebrado do mundo, que pode atingir mais de 30 metros de comprimento, só começou a crescer num passado recente, entre há dois a três milhões de anos. Segundo um estudo do Museu Nacional de História Natural Smithsonian na cidade de Washington (nos Estados Unidos), publicado na revista Proceedings of the Royal Society B (a série B é que publica investigações da área da biologia), só muito recentemente as baleias se tornaram animais com a envergadura que têm hoje. No trabalho, o curador do museu para a área dos fósseis de mamíferos marinhos, Nicholas Pyenson, em conjunto com colaboradores de duas universidades norte-americanas, traça a evolução do tamanho das baleias ao longo de 30 milhões de anos e diz que as baleias muito grandes apareceram há “apenas” dois ou três milhões de anos, refere um comunicado de imprensa do Museu Nacional de História Natural Smithsonian. O aumento das placas de gelo no hemisfério Norte nesse período deverá ter afectado a forma como o alimento das baleias se distribuía no mar e aumentou os benefícios de possuir um corpo grande, concluíram os investigadores. O que levou as baleias a crescerem tanto tem sido um mistério até agora, em parte por ser difícil interpretar um registo de fosseis incompleto. Nas palavras de Nicholas Pyenson, não se pode medir o comprimento de uma baleia que está representada por um pedaço de fóssil. Mas recentemente este investigador estabeleceu que a largura do crânio da baleia era um bom indicador do tamanho total. O museu de história natural tem as maiores e mais ricas colecções de crânios de baleias, de espécies actuais, o que permite obter dados para examinar as relações evolutivas de diferentes baleias. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os investigadores mediram uma grande variedade de crânios fósseis da colecção do museu e, com dados adicionais, estimaram o comprimento de 63 espécies de baleias extintas. A análise incluiu espécies ancestrais das baleias, com mais de 30 milhões de anos, mas também dados sobre 13 espécies de baleias actuais. E os dados, segundo a equipa, mostram claramente que as grandes baleias que existem hoje não estavam presentes na maior parte da história das baleias. “Vivemos num tempo de gigantes”, disse um dos investigadores, Jeremy Goldbogen, da Universidade de Stanford (EUA), acrescentando que as baleias nunca foram tão grandes como hoje. A mudança evolutiva terá ocorrido no início da Idade do Gelo e, de acordo com a explicação apresentada no estudo publicado esta quarta-feira, deveu-se a alterações climáticas que também mudaram o suprimento alimentar das baleias, que se concentrava nas zonas costeiras e aumentava sazonalmente. As baleias, pela forma como se alimentam, filtrando pequenas presas, estavam bem equipadas para tirar proveito das grandes concentrações de comida.
REFERÊNCIAS:
Sonhos deficientes
É libertador descobrir que também posso queixar-me dos meus sonhos. (...)

Sonhos deficientes
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento -0.4
DATA: 2015-05-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: É libertador descobrir que também posso queixar-me dos meus sonhos.
TEXTO: Às vezes sonho sonhos bons. Mas são sempre estragados por merdas. Anteontem à noite sonhei que a Maria João e eu estávamos na praia. Hesitávamos em entrar na água mas veio uma onda verdíssima em que mergulhámos. Só que, antes de nos fazermos ao mar, a praia estava cheia de cagalhões de cães: o sonho estava estragado por um exagero de realidade. O prazer de sermos levados pelas ondas foi morto pela vil imaginação das centenas de pôias caninas que as águas tinham posto a circular. Quando acordei pensei: mais um pesadelo. Até que - por força de seis décadas a sonhar seguidamente e, para todos os efeitos, em vão - dei comigo a mandar vir. Comecei a queixar-me. As queixas são sempre boas e aliviadoras. Até porque partirmos sempre do princípio, não só estatisticamente pouco provável como escusadamente vexante, que a culpa é nossa. Nunca é. Nossa, nunca é. Pode ser, quanto muito, de cada um de nós. Mas nossa - como colectividade forçada de egoístas narcissistas cuja missão existencial é descartarmos o maior número possível das nossas responsabilidades ou (numa tradução mais antiga) obrigações - nunca pode ter sido. Queixo-me dos meus sonhos. Queria sonhos bons, sem contrapartidas. Fui mal servido. Culpo-me a mim próprio. Queria sonhar com dias de praia que tivemos o ano passado, sem um único esforço de imaginação. Mas é libertador descobrir que também posso queixar-me dos meus sonhos. São maus. São uma merda. Rejeito-os. Exijo outros. Ora bem.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morto cães
Borboleta rara em Portugal registada em fotografia
Imagem tirada na zona de Vila Real é o primeiro registo fotográfico de qualidade de uma castanhinha-das-bétulas em território português. Raramente é avistada porque passa a maior parte do tempo nas copas das árvores. (...)

Borboleta rara em Portugal registada em fotografia
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.3
DATA: 2015-05-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Imagem tirada na zona de Vila Real é o primeiro registo fotográfico de qualidade de uma castanhinha-das-bétulas em território português. Raramente é avistada porque passa a maior parte do tempo nas copas das árvores.
TEXTO: O fotógrafo amador José Agostinho Fernandes estava no vale da Campeã, freguesia do concelho de Vila Real, zona onde vive, quando avistou uma borboleta adulta. Fotografou-a, mas na altura estava longe de imaginar o que tinha acabado de captar com a sua máquina fotográfica. Agora já sabe: obteve a imagem rara de uma castanhinha-das-bétulas – ou Thecla betulae, o seu nome científico –, que permitiu confirmar a presença desta borboleta em Portugal. “A borboleta chamou-me a atenção pela sua beleza e pela rapidez do voo, mas nunca me passou pela cabeça que fosse assim tão rara”, conta ao PÚBLICO. Estava a rachar lenha no seu quintal quando deu por ela: “Já habituado a seguir o voo de aves e insectos, reparei no voo rápido de uma borboleta desconhecida, oscilando entre o preto e o laranja e no pouso dela num abrunheiro de pequeno porte. Segui o seu percurso nos ramos, fotografei-a assim que tive oportunidade e não pensei mais nela”, diz ainda José Agostinho Fernandes, agora citado numa nota no site da Câmara Municipal de Vila Real. Mais tarde, acabou por publicar a fotografia num grupo do Facebook de amantes de fotografia da natureza e, desde então, as mensagens entusiásticas a alertarem-no para que tinha fotografado uma espécie muito invulgar não pararam de chegar. “Nem sequer partilho a maior parte das fotografias que faço. Sou capaz de colocar uma ou duas das centenas que faço. Foi um mero acaso ter partilhado esta. ”Esta borboleta, que passa a maior parte do tempo nas copas das árvores, nomeadamente do abrunheiro, tanto quanto foi possível apurar, foi registada em fotografia pela primeira vez em Portugal em 1999. Mas essa fotografia, tirada pelo biólogo Thomas Merckx, na Serra da Peneda, não era muito boa. Tinha sido tirada por um telemóvel. Agora, a fotografia de José Agostinho Fernandes foi feita numa máquina reflex e com uma lente macro. O registo deste lepidóptero foi, assim, um acontecimento congratulado pelo meio académico, que está a trabalhar para saber mais sobre as suas especificidades. “A borboleta já tinha sido avistada por investigadores, mas este é o primeiro registo fotográfico de qualidade feito em Portugal”, sublinha Paula Seixas, investigadora da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. “Não sabemos exactamente há quanto tempo está presente em Portugal, mas sabemos que está cá há décadas”, acrescenta a investigadora, que tem trabalhado, em colaboração com a câmara municipal, no Programa de Preservação da Biodiversidade de Vila Real. “Nesta zona, nunca houve registo absolutamente nenhum e, portanto, foi uma forma de conseguirmos saber que a borboleta está cá. ”Além disso, existem poucos estudos científicos sobre esta espécie, por isso há pouca informação científica sobre ela. “Esta fotografia foi muito importante porque é muito difícil identificar e monitorizar esta espécie, não só em Portugal como no resto da Europa”, refere ainda Paula Seixas. É, aliás, no Norte e Centro da Europa que esta borboleta está presente (sobretudo na Holanda, França e Reino Unido) e onde as suas populações têm sido alvo de medidas de protecção. Sabe-se que a castanhinha-das-bétulas põe os ovos nos ramos do abrunheiro, onde passa o Inverno, até eclodirem em forma de lagarta na Primavera. Verdes com listas amarelas, as lagartas acabam por ficar camufladas na folhagem, passando despercebidas, até se tornarem borboletas em Julho e Agosto. Nesta altura, vão para a zona mais alta das árvores e dos arbustos, de onde raramente descem, sendo por isso vistas poucas vezes. “Tive a sorte de ter uma árvore numa depressão do meu terreno e de ela ter ficado quase à altura dos meus olhos”, conta José Fernandes. Não se sabe por que razão a castanhinha-das-bétulas poderá estar a aparecer em Vila Real. No entanto, Paula Seixas lança o desafio para que se procure saber mais sobre ela. “Não sendo uma espécie muito vista, valia a pena conhecer a sua função do ponto de vista ecológico. Ela pode ser perfeitamente um bioindicador de um ecossistema, pode ser importante para a sobrevivência do abrunheiro e de outras árvores de fruto, assim como ter uma função importante que neste momento se desconhece. ”Todas estas novas interrogações científicas surgiram simplesmente porque José Agostinho Fernandes gosta de fotografar a fauna e a flora, um interesse que nasceu há cerca de três anos, quando foi convidado para fazer um passeio fotográfico no Alvão. O Programa de Preservação da Biodiversidade promovido pela autarquia de Vila Real tem incentivado os vila-realenses a observarem com mais atenção o que está mesmo ao seu lado e a maior parte das vezes passa despercebido.
REFERÊNCIAS:
Craveiral, uma aldeia de 38 casas para “criar vida rural”
Na costa alentejana, num terreno onde no passado se plantaram cravos, acaba de nascer um projecto de turismo ligado à preservação da natureza. (...)

Craveiral, uma aldeia de 38 casas para “criar vida rural”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Na costa alentejana, num terreno onde no passado se plantaram cravos, acaba de nascer um projecto de turismo ligado à preservação da natureza.
TEXTO: No passado, houve aqui uma plantação de cravos, da qual só restou o nome, Craveiral. Mas quando Pedro Franca Pinto chegou não havia nada, era apenas um terreno à espera de uma boa ideia. “Quando o comprámos, era mato, não existia nada”, conta, enquanto passeamos pelo espaço (que, na altura da visita da Fugas, ainda estava na fase de finalização das obras). Ontem, passados quase oito anos desse primeiro momento, e com um investimento de 5, 5 milhões de euros, o Craveiral abriu oficialmente ao público, depois de um período de soft opening — e já só é possível fazer reservas para Agosto. A Pedro, juntaram-se depois João de Azevedo Canilho e Luís Miguel Capinha, e os três sócios apresentam agora o projecto Craveiral Farmhouse, nove hectares na costa alentejana, em São Teotónio, perto da Zambujeira do Mar. A receber-nos, nesses dias de final de obras e muita ansiedade à espera da abertura, estavam ainda os dois primeiros animais do Craveiral: os burros Cravo e Ferradura. As casas — 38, todas independentes, com terraço e cozinha — surgiram no meio de uma zona que pertence à Rede Natura 2000 da qual fazem parte vários habitats prioritários que é preciso proteger. Pedro explica que, embora fazendo parte do sítio de Monchique, o Craveiral “não tinha nenhum desses habitats, pelo que foi necessário recriá-los e trazer espécies protegidas que têm potencial de crescimento aqui”. Uma das formas de o fazer é, por exemplo, criando o charco temporário mediterrânico, aproveitando uma ligeira depressão no terreno. “Já criámos as condições para ele começar a desenvolver-se. Sendo temporário, recupera as águas naturais, da chuva, mas no Verão seca. Vai permitir o desenvolvimento da flora do sítio de Monchique e, com a colocação dos ninhos nas árvores, vai atrair as aves típicas desta zona, que procuram o charco para nidificarem. ”Como o Craveiral é um projecto de conservação da natureza, a ideia é que quem aqui se instale possa mergulhar num mundo que tem cheiros, sabores e cores próprias. “Vamos ter um centro de interpretação da natureza e um circuito com plantas autóctones e explicar as características gastronómicas, medicinais, e o potencial para a cosmética da flora desta região. ” Inicialmente serão sobretudo os aromas e os sabores, mas, revela Pedro, a médio prazo o objectivo é vir a fazer sabonetes e cremes com as diversas plantas. Mas, porque num passeio, mesmo com explicações, ninguém consegue apreender tudo o que há para saber sobre a flora local, haverá também workshops que ajudarão os hóspedes interessados a aprender as várias utilizações de cada planta. O mesmo acontecerá com os produtos da horta (que não faz parte do projecto de conservação da natureza), usados no restaurante, que tem um projecto de arquitectura assinado por Tiago Silva Dias. Sem nome, pelo menos para já, o restaurante, com 70 lugares no interior e 70 na esplanada (por enquanto apenas para hóspedes), segue o princípio farm to table, ou seja, vai privilegiar os produtos da horta local e do pomar, quando estes começarem a produzir em maiores quantidades. Na lógica de envolvimento com a sociedade, foi estabelecida uma parceria com a Associação VilacomVida, para, no restaurante, haver um espaço de pizzas feitas em forno de lenha no qual trabalharão pessoas com Asperger ou Síndrome de Down. Percorremos o caminho entre as casas, a zona do restaurante, as piscinas (uma interior, com sauna, jacuzzi e ginásio) e duas exteriores, sendo uma maior e mais apropriada para famílias com crianças e a outra mais reservada, esta situada no núcleo de casas que ainda não estão completamente finalizadas. Pedro, João e Luís vão mostrando os detalhes que fazem a diferença neste projecto: a água é toda reutilizada, sendo a que cai dos telhados canalizada para um depósito de rega, todas as zonas construídas são ligadas por passadiços para não tocar a terra, há um picadeiro (podem-se fazer passeios a cavalo) e canis para quem quiser trazer os cães. É também altura para conhecermos melhor os três amigos. Pedro é advogado e, até se lançar nesta aventura, a sua relação com a área do turismo era sobretudo através da assessoria jurídica, voltada também para o imobiliário e a reestruturação de empresas. Mas o gosto pela agricultura esteve sempre lá, diz, e por isso, em 2013, criou a Belong, um projecto de agricultura biológica, cujos produtos são distribuídos em cabazes. João, que durante muitos anos trabalhou numa multinacional de telecomunicações, e Luís, que é designer gráfico, já tinham experiência com turismo, entendido sobretudo como a arte de receber bem e fazer com que os hóspedes se sintam como se estivessem em casa. É o que fazem com a Casa Amora, junto do Jardim das Amoreiras, em Lisboa. São TeotónioEm São Teotónio, vira-se à esquerda em direcção à Relva Grande e passando a Aldeia de Quintas, continua-se um quilómetro até chegar ao Craveiral. www. craveiral. ptPreços: entre os 100€ (estúdio para duas pessoas, em época baixa) e 500€ (T2 para seis pessoas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Foi com o mesmo cuidado que escolheram todos os materiais e objectos para as casas do Craveiral. “Apostámos nas empresas portuguesas”, explicam os três. “Portugal tem um potencial incrível e usarmos produtos nacionais é uma forma de diferenciarmos o projecto. Conseguimos ter produtos ao nível do melhor que há no mundo e que são feitos cá. Desde o início que quisemos associar o Craveiral ao desenvolvimento de marcas nacionais. ”As casas são de um conforto feito de madeiras claras, paredes brancas aqui e ali cobertas de cortiça escura, tapetes alentejanos, um chapéu de palha pendurado no bengaleiro, como se ali vivesse alguém. “Para o mobiliário, escolhemos peças da DAM, de São João da Madeira, da Wewood, empresa do Porto, os sofás são da Larforma, as cadeiras de Vila Nova de Gaia, os electrodomésticos são Meireles. No projecto de execução, as madeiras são de pinho nacional. Tudo o que é possível obter cá, estamos a conseguir. ”O sonho é que esta aldeia que agora nasce na costa alentejana seja também um motor de desenvolvimento da região. “Podemos usar os meios que existem para o Craveiral e potenciar os terrenos à volta, eventualmente usar os nossos recursos agrícolas para prestar serviços a outras pessoas que tenham casas na zona mas que só venham aos fins-de-semana. ” Tal como os arquitectos falam em “criar cidade”, a ideia aqui, resume Pedro, é “criar vida rural”.
REFERÊNCIAS:
Cacela Velha: nómadas por terras árabes
Uma autovivenda, 1000 quilómetros em ziguezague, sem GPS, sem Internet nem auto-estradas. Na mão, o mapa da Rede de Acolhimento ao Autocaravanismo no Algarve, a única do género no país. A volta ao extremo sul começa em Cacela Velha e termina em São Marcos da Serra. (...)

Cacela Velha: nómadas por terras árabes
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma autovivenda, 1000 quilómetros em ziguezague, sem GPS, sem Internet nem auto-estradas. Na mão, o mapa da Rede de Acolhimento ao Autocaravanismo no Algarve, a única do género no país. A volta ao extremo sul começa em Cacela Velha e termina em São Marcos da Serra.
TEXTO: Há duas camas em casa e a lei permite tirar uma sesta. Uma são os bancos traseiros, que se estendem formando um colchão; outra é uma plataforma que desce desde o tejadilho. A segunda é capaz de ser melhor, porque as vistas de cima são sempre mais vagas, desmanchadas, panorâmicas. Afastando a pequena cortina com o dedo, lá está ela, a ria Formosa, com a luz a bater-lhe de chofre, fazendo riscos sempre que encontra a areia. Cacela Velha é essa ideia de afastar uma cortina com o dedo e ver de repente uma aldeia em contraste, equilibrada num forte sobre a Formosa e o Mediterrâneo. Impossível, para quem vinha na nacional 125 a admirar restaurantes de chicken piri-piri, cartazes de protesto contra os buracos na estrada e pensões decadentes dos anos 1980. Viajar de autocaravana dá para ver tudo. Primeiro, porque, mais uma vez, vai-se no alto. Depois, porque se vai lento, ao som do tilintar das – poucas – panelas. De motor desligado, é nas manhãs que se sente a sobrevivência. Ou porque o sol nasce violento, porque um galho bate à janela parecendo a GNR ou a chuva soa a balas sobre a chapa gasta. Tudo volta a ser elementar, do número de talheres ao peso do vestuário, mesmo se é preciso fazer de casacos almofadas. Nos últimos minutos de cochilo, um cão ladra sozinho no Largo Ibn Darraj Al-Qastalli e um barulho estranho vem do Poço Antigo, o lugar do bairro islâmico criado no século XII, fora das muralhas, para acolher a população que crescia. “Encontrámos 100 indivíduos. ” Nenhum vivo. Era o que nos haveria de explicar Maria João Valente, investigadora da Universidade do Algarve, que participa nas escavações arqueológicas em Cacela Velha, em conjunto com a Direcção Regional de Cultura e a Simon Fraser University, com o apoio da autarquia local. Começaram no dia 18 de Junho, vêm aos grupos de 30 e põem à vista uma “pequena Pompeia”, como gosta de exagerar Maria João, falando dos vestígios cerâmicos, botânicos e biológicos que ajudam a reconstruir o passado do “primeiro lugar a ser reconquistado pelos cristãos no Algarve”, mas que ainda cheira a tempo islâmico. Se 100 dormiam debaixo da terra de Cacela, por cima nenhuma autocaravana pode pernoitar. Não podem, mas no descampado do parque de estacionamento, proibido a casas móveis por um sinal de trânsito, estão quatro. Saem delas luzes azuis, espaciais, que não estão nos poemas de al-Abdari nem de al-Qastalli, que aqui viveram. A maior, de matrícula espanhola, tem uma antena parabólica a apontar para os astros. “A caravana é mesmo para isto. No dia em que tivermos de programar tudo e cumprir regras, devolvo-a ao meu pai”, resolve o condutor andaluz. Ao lado, dois portugueses preparam-se para abrir uma garrafa de vinho. “Nós vimos o sinal, mas ignorámo-lo”, assumem. O problema do autocaravanismo selvagem, como é apelidado, não é novo, e tem várias faces. De um lado está a filosofia de mobilidade e a ligação genética ao natural. Do outro, a necessidade de regulamentar o sector devido ao mau uso dessa liberdade, com consequências sobretudo ambientais (pelo despejo de águas químicas e lixo em locais inapropriados). Só nas áreas de serviço e parques de autocaravanismo acompanhadas pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Algarve, o número de veículos aumentou de 13. 027 para 43. 460 entre 2012 e o ano passado. Mas a massa será muito maior, contando com parques de campismo tradicionais, áreas de serviço não licenciadas e um grande volume de “dormidas informais”. “A informalidade acontece sobretudo em parques de estacionamento, falésias, junto às praias, aos canaviais”, regista Alexandre Domingues, da CCDR Algarve. Mas é crime? Há quem aponte vazios na legislação, mas as autarquias têm intervindo cada vez mais na regulamentação dos concelhos. No caso de Vila Real de Santo António, dormir sem licença é ilegal. “É necessário garantir condições de higiene e segurança para o despejo dos esgotos, o abastecimento de água potável e electricidade”, defende André Oliveira, coordenador de Áreas de Serviço de Autocaravanas do município, adiantando que, “devido ao aumento da pressão turística promovido pelo grande aumento de autocaravanistas”, prevê-se que em Setembro um novo regulamento venha garantir “um maior conforto para os autocaravanistas” mas também “diminuir o autocaravanismo selvagem”. Quem, ainda assim, insiste em ficar fora dos parques (ver “Onde dormir”) tem alternativa. Deve enviar um requerimento ao presidente da câmara com pelo menos 60 dias de margem a identificar o quando, o onde e o porquê do acampamento; anexar uma planta de localização à escala de 1:5000; prever o número de hóspedes, tendas, caravanas ou autocaravanas que virão; e apresentar uma autorização do proprietário do terreno a ocupar. E isto é válido apenas para “actividades/eventos de média a grande escala”, esclarece André Oliveira. Talvez o interesse em passar uma noite junto a uma alfarrobeira não seja assim tão intenso para a maioria dos viajantes. Cacela Velha fica numa saída, à direita, da Estrada Nacional 125, entre Tavira (a cerca de 10 km) e Vila Real de Santo António. “Se aparecesse um tipo a dormir à beira da estrada, tudo bem, mas são às centenas”, enquadra José Brito, também da CCDR Algarve, para justificar a necessidade de “trazer estas pessoas que andam mais soltas para as áreas de pernoita”. Há mais de dez anos que o problema se intensifica em diferentes pontos da região, onde o lixo se acumula mas também não existem alternativas interessantes para os caravanistas. Os responsáveis desta CCDR apontam o desinteresse pelo sector, que ainda é visto como um turismo de baixo consumo mas também como concorrente directo da hotelaria. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Além dos parques de campismo da ria Formosa e de Monte Gordo, existem os parques de autocaravanas da Manta Rota e da Muralha. As áreas de serviço para autocaravanas são locais onde é permitido pernoitar, normalmente dotadas de ligação a água, electricidade e zonas de despejo de águas. Nem todos os parques do país estão em espaços naturais, o que pode tornar o caravanismo numa prática de alcatrão pouco convidativa e sem grande espaço em relação ao vizinho. O Parque da Manta Rota, por exemplo, tem capacidade para 100 a 120 veículos. Ainda assim, fica junto à praia, numa zona arborizada. Encerra de 1 de Julho a 14 de Setembro. No entanto, este segmento “é incomparavelmente mais interessante do que o típico turismo dos ingleses em Albufeira”, mesmo do ângulo económico, a avaliar pelos muitos milhares de euros que custam algumas caravanas. Por outro lado, permite dinamizar a região fora da “época alta” e das zonas de maior concentração turística. Neste mês de Junho em que andamos na estrada, quando as noites caíram quentes sobre Cacela, é a época baixa dos nómadas sobre rodas. É de Outubro a Abril que se dá um desfile de autocaravanas no Sul do país. São os novos “pássaros migratórios”, como classifica Alexandre Domingues. Vêm do Norte da Europa gozar a reforma; ficam dois, quatro, sete meses longe da neve. Esta noite, são oito faróis apagados a ver as estrelas. E nómada que é nómada amanhã já não está cá.
REFERÊNCIAS:
O moinho que só dá bons sonhos
Perdidos no meio da natureza, rendemo-nos ao convite deste Molinum: descansar e recarregar baterias, com os pés fincados na tradição e a mente aberta a boas energias. (...)

O moinho que só dá bons sonhos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.35
DATA: 2018-07-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Perdidos no meio da natureza, rendemo-nos ao convite deste Molinum: descansar e recarregar baterias, com os pés fincados na tradição e a mente aberta a boas energias.
TEXTO: Chegar aqui não é fácil. Há curvas e curvinhas e, sobretudo de noite, viaja-se com aquela sensação de estarmos perdidos no universo, à procura do nosso caminho. Não desistimos, porém. Nem mesmo quando o sistema de navegação nos engana. Paro por um segundo, respiro fundo — e até a tagarelice dos miúdos no banco de trás faz uma pausa —, volto a inserir as instruções e sigo viagem, sempre, sempre a subir. A estrada vai ficando cada vez mais estreita, por vezes esburacada, parecendo adensar a sensação de que continuamos no caminho errado. Até que, bem no topo do que parece ser uma colina (a manhã mostrar-nos-ia horizontes mais amplos do que esperávamos), chego por fim ao destino: um bed & breakfast com uma singularidade — inclui um moinho centenário, que vamos ocupar. Ainda não é muito tarde, mas tudo à volta já é silêncio. Apenas o cantar dos ralos quebra a solenidade que, em noites de céu limpo, é iluminada por um manto de mil pontos de luz, cujo protagonismo não é abafado por muita iluminação artificial — a que há é apenas a necessária para sabermos onde pisamos. Tal como nós, noutros tempos, também outra visitante especial fez o nosso serpenteante trajecto e aqui parou um dia. Então, respirou fundo e decidiu recomeçar. A diferença é que para Joana Mendes, este era (e é) o seu “ninho”. Algarvia, Joana estudou gestão em Lisboa e ficou pela capital a trabalhar. Até que surgiram os anos da crise e o desemprego, que a levaram a compreender que teria nesta propriedade uma oportunidade. Para ela, uma verdadeira viagem ao passado com destino ao futuro: é que foi aqui que viveu até aos três anos. Agora, estamos as duas no meio desta propriedade, outrora envolta pela aridez dos campos de cereais. No exacto local em que o bisavô construiu um moinho em 1900 — e que laborou como comunitário até à década de 60 do século passado. “A população nos arredores era alertada pelo som dos búzios presos às velas do velho mastro de carvalho”, descreve-nos Joana. Quando a melodia invadia os montes circundantes, significava que o vento estava de feição e, então, gentes um pouco de toda a parte à volta subiam o morro com os cereais para moer. E a história até é mais antiga, porque antes de o bisavô da actual proprietária pôr as mãos na massa já aqui havia uma pequena indústria de cereais, existindo registos de um moinho anterior, erguido em 1838, um espaço que agora é ocupado pela casa principal. O moinho e tudo à sua volta acabaria por calhar ao pai de Joana no sorteio de herança e este, por sua vez, tratou de investir na propriedade. Em 1985, teve a ideia de construir uma casa maior e de dotar o espaço com valências procuradas por quem chega ao Algarve para uns dias de repouso: piscina, court de ténis, espaços para relaxar. “Conseguiram criar um ambiente descontraído”, descreve Joana. Começaram por alugar a propriedade primeiro como um todo e, desde 1999, como bed & breakfast. Mas Joana pressentiu que havia mais potencial neste cantinho. O regresso não foi apenas uma fuga à crise. Foi também voltar as costas a um outro estilo de vida, começando por arranjar espaço para o início de uma nova. Um processo em que, explica Joana, vai dando um passo pequenino de cada vez — “vamos arranjando todos os anos alguma coisa, mas optei por não contrair empréstimos”. É que se os anos difíceis em Lisboa a arrastaram para sentimentos mais depressivos, também se encarregaram de colocar no seu caminho respostas em forma de gente. Foi o caso de Renata Cortês, que depois de estudar exercício e saúde na Faculdade de Motricidade Humana e de acumular experiência como personal trainer em ginásios, tanto em Portugal como em Espanha, percebeu que o seu caminho não seria por aí. Foi em Barcelona que descobriu o mindfulness, uma prática que passa por chamar mente e corpo ao presente de forma a conseguir lidar com pensamentos e emoções: “A maioria das vezes não prestamos atenção ao que nos rodeia por estarmos presos no passado ou focados no futuro”, explica. O mindfulness consiste em técnicas de meditação simples que pretendem anular o stress provocado pela ansiedade ditada pela experiência. Em Barcelona, Renata acabaria por fazer formação no Instituto esMindfulness e, já em Portugal, os seus caminhos cruzaram-se com os de Joana. E, subitamente, ambas compreenderam que a resposta que procuravam residia num pequeno morro algarvio, onde proporcionam também sessões de redução de stress. Se aqui a ideia não passa por perder dinheiro, a anfitriã, com quem conversamos numa sala luminosa e acolhedora, também não pretende ter uma porta aberta com a pressão de ter de facturar obrigatoriamente para conseguir pagar as prestações das quais em tempos se conseguiu livrar. Assim, à medida que o projecto vai crescendo, e recebendo mais pessoas, os arranjos vão sendo feitos. E Joana vai-se adaptando às necessidades que vão surgindo: “Há tempos ficámos sem ajuda nas limpezas. Tinha duas hipóteses: ou ficar irritada ou concentrada para fazer bem aquele serviço. ” “Arranjar alguém no próprio dia não era viável, por isso optámos por fazer nós, com a ideia em mente que, com o valor poupado, ainda jantaríamos fora”, brinca Renata. Caminho do Moinho do Zambujal, nº44 8100-078 Boliqueime E-mail Site Tel. : 289 094 024A propriedade dispõe de quatro quartos na casa principal, todos de decoração rústica e entre os quais uma suíte (duplos a partir de 69€/noite; suíte desde 79€/noite); uma noite no moinho custa desde 99€/noite. Destaque para os programas de vários dias, com pacotes a partir de duas noites e até cinco. Entre as experiências propostas, há sessões de ioga, com João Gouveia, e de mindfulness, com Renata Cortês (a partir de 60€/pessoa). Mas se o objectivo passar por fazer um período mais longo de repouso, há pack Mindfulness De-stress (cinco noites, a partir de 740€/pessoa em quarto duplo). Outras experiências incluem tour gastronómico pela ria Formosa (97€/pessoa), rota dos petiscos em Faro (96€/pessoa) ou junto ao Arade, em Silves (89€/pessoa). Também o pequeno-almoço, recheado de mimos caseiros em forma de compotas de fruta ou de sumo acabado de espremer, é todo feito ali e preparado por Joana, que faz questão de estar presente, ainda que de maneira recatada, para acolher sem imposições quem recebe. No fundo, aqui somos hóspedes mas sentimo-nos tratados como convidados. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Depois de assentar arraiais e de proceder a várias melhorias na casa principal, Joana compreendeu que um dos factores que a poderia diferenciar das demais unidades seria o moinho. Aos poucos, foi sendo reconstruído, recuperado e preparado para se transformar numa casinha à medida de duas pessoas (ainda que, no nosso caso, um adulto e duas crianças pequenas tivessem conseguido passar uma noite confortável, o moinho está idealizado para escapadas românticas ou para uma só pessoa que busque um pouco de isolamento). No piso térreo, as grossas paredes em pedra do moinho foram esculpidas para receberem uma casa de banho em miniatura e uma abençoada kitchenette que nos permitiu inventar um jantar já fora de horas. Degraus de pedra ao longo da parede circular levam-nos ao quarto — uma confortável cama ao centro e pouco mais. Na decoração, elementos que nos remetem para o antigo e para o folclore local, mas também detalhes de design de extremo bom gosto. Ao fim de pouco tempo não nos espanta que muitos encontrem aqui o espaço ideal para recarregar baterias. Até porque nesta propriedade o stress, assim como uma boa parte do mundo, fica à porta: há acesso à Internet, mas a televisão foi abolida. Por isso, depois da ceia, durante o serão, trocamos os filmes pelos jogos de mesa, jogando à bisca dos cinco até nos cansarmos. Na casa principal há mais com que passar o tempo: matraquilhos, mesa de snooker, jogos vários… E ao longo do dia, com o cantar dos ralos a ser substituído pelas harmonias de insectos e pequenas aves que parecem compor uma orquestra, tão depressa se encontra lugar junto a uma lareira, se o frio se impuser, como, se o calor apertar, se passa o tempo em mergulhos numa piscina com uma vista de quase 360º. Entre tantas sensações, impossível não cumprir o proposto por Renata: viver o momento em pleno. E bons sonhos não faltam. A Fugas esteve alojada a convite do Turismo do Algarve
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave ajuda corpo desemprego aves ansiedade