Do fascista ao politicamente correcto
Nas últimas semanas há sinais de que certamente não estamos imunes ao vírus da polarização e nem sequer é preciso convocar o exemplo do futebol, esse espaço de absoluta intolerância, para explicar isso. (...)

Do fascista ao politicamente correcto
MINORIA(S): Animais Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-12 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nas últimas semanas há sinais de que certamente não estamos imunes ao vírus da polarização e nem sequer é preciso convocar o exemplo do futebol, esse espaço de absoluta intolerância, para explicar isso.
TEXTO: É um sinal dos tempos, dizem-nos. As pessoas vivem polarizadas, agarradas às suas convicções, sem grande capacidade para ouvir os outros, ponderar argumentos, equilibrar posições. Sem essa disponibilidade, perdem-se os consensos com que se constroem as comunidades saudáveis, em que deve imperar a capacidade de concertação, para lá de podermos ter opiniões e posições diferentes sobre os mais diversos assuntos. A culpa, dizem-nos, é de um ambiente de intolerância alimentado pela forma como funcionam as redes sociais, que se tornaram presença ubíqua nas nossas conversas, na nossa vida. Mais do que um local de encontro, este novo espaço público tende a construir comunidades fechadas em torno dos mesmos interesses, num processo de autovalidação que só serve para nos afastar de quem não pensa o mesmo que nós. Assim se vão construindo acontecimentos como a eleição de Trump, Bolsonaro ou o “Brexit”, em que países se partem ao meio, como irmãos que vivem na mesma casa, mas se recusam a partilhar a mesma mesa. E dizem-nos que em Portugal as coisas não estão bem assim. Afinal até vinga uma solução política em que, para surpresa de todos, foi possível conciliar o que sempre tinha andado desavindo. Só que nas últimas semanas há sinais de que certamente não estamos imunes ao vírus e nem sequer é preciso convocar o exemplo do futebol, esse espaço de absoluta intolerância, para explicar isso. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Olhem para a forma como muito boa gente se lançou a crismar de “fascista” qualquer apoiante de Jair Bolsonaro e mesmo a pedir que aqueles que, em Portugal, tinham votado no candidato de extrema-direita abandonassem o país, como se as pessoas não tivessem razões atendíveis para as suas opções, mesmo que erradas. Ou olhem para a forma como as posições da ministra da Cultura sobre as touradas foram arrumadas sob o anátema do “politicamente correcto”, como se não existissem argumentos válidos em recusar um divertimento baseado na crueldade sobre os animais, como se a discussão fosse um problema de modernidade e não um debate com décadas. E é assim que começa. A arrumarmos pessoas debaixo de chavões, a retirar-lhes complexidade, matizes, a colocar tudo a preto e branco, a fazer disto um “nós” contra “eles”. A sério, digam o que nos disserem, pensemos duas ou três vezes antes de sermos nós a apelidar alguém de “fascista” ou a denunciar os abusos do “politicamente correcto”. Vão ver que se respira muito melhor.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave cultura
Faenas orçamentais
Os dados da economia e os avisos de Bruxelas fazem-me pensar se este gesto de autonomia não é antes uma imensa encenação para desviar atenções. (...)

Faenas orçamentais
MINORIA(S): Animais Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os dados da economia e os avisos de Bruxelas fazem-me pensar se este gesto de autonomia não é antes uma imensa encenação para desviar atenções.
TEXTO: Declaração de interesses: sou filha de um forcado. O meu pai foi primeiro-ajuda no grupo de Santarém, com Rhodes Sérgio. Cresci a aprender o que são touradas. Não me limito a saber porque é que o forcado-da-cara chama boi ao touro, quando o incita. Conheço a simbologia das touradas e a sua história, mas também a coreografia própria de cada arte do toureio (o seu ballet). Sei o que é uma boa lide. E, quando hoje paro os olhos na transmissão televisiva de uma tourada, espanta-me a leviandade com que o inteligente manda dar música a cavaleiros que se limitam a enfiar os ferros na barriga do touro. É por saber o que é uma tourada — e continuando afectivamente ligada às touradas como espectáculo — que tenho consciência do que é feito ao touro dentro de uma arena. Considero até que o toureio à espanhola é menos cínico do que o à portuguesa, já que o touro é morto logo e não levado em sofrimento para os curros, para ser abatido mais tarde. E é por saber o que é feito ao touro, que há anos a minha aficcion se esvaziou. É, para mim, hoje impossível vibrar, sentir prazer ou deleite, com um espectáculo que vive do sofrimento infligido a um animal. Não tenho nada contra as touradas. Não considero que os animais devam ser tratados como pessoas. Mas reconheço aos animais dignidade. Dito isto, confesso que é com espanto que assisto à polémica sobre touradas em torno do Orçamento do Estado para 2019. Uma medida fiscal negociada pelo Governo com o PAN — os bilhetes de touradas pagarão 13% de IVA e os outros espectáculos 6% — transformou-se no assunto central da discussão política orçamental e nacional. O CDS está, aliás, de parabéns por ter transformado a discussão sobre fiscalidade num aceso debate sobre o fim das touradas — algo que com o evoluir dos valores sociais poderá vir a acontecer. O CDS conseguiu lançar uma nova luta de causas a propósito de uma normalíssima declaração da ministra da Cultura, Graça Fonseca, que assumiu que taxar fiscalmente mais as touradas do que os outros espectáculos “não é uma questão de gosto, é de civilização” — uma posição que nada tem de polémico numa sociedade em que a defesa da dignidade dos animais tem feito o seu caminho e entrou na forma da lei em relação aos animais de companhia, como bem explicou Francisco Assis no PÚBLICO de quinta-feira. Mais, a medida nem sequer é de Graça Fonseca, que tomou posse como ministra já depois de o OE2019 estar aprovado em Conselho de Ministros. Com o ambiente a aquecer, depois de Manuel Alegre se ter erguido em paladino das touradas, num artigo de opinião do PÚBLICO, até o primeiro-ministro, António Costa, saiu a terreiro em defesa da medida, igualmente no PÚBLICO, num texto que é, aliás, magnífico. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Quando o país achava que o assunto, por mais importante que seja, estava a arrefecer, na quinta-feira, dia 15, para a arena do debate parlamentar salta um grupo de deputados, capitaneados pelo líder da bancada, Carlos César, que avança com a inédita decisão de fazer uma proposta de alteração ao OE2019 para que as touradas paguem também 6% de IVA. Mostrando a sua autonomia em relação ao Governo, César até anunciou liberdade de voto numa matéria que faz parte do Orçamento. E, após a inusitada posição da bancada do PS, foi possível ouvir o desabafo do primeiro-ministro: “Estou surpreendido, lamento, se fosse deputado votaria contra. ”A faena orçamental do PS só terminará quando decorrer a votação final do OE2019. Sei que posso ser acusada de espírito conspirativo, mas não deixo de questionar sobre a razão que levou Carlos César a dar tal grito do Ipiranga. Os dados da economia e os avisos de Bruxelas fazem-me pensar se este gesto de autonomia não é antes uma imensa encenação para desviar atenções. É que, no mesmo dia 15, o PÚBLICO noticiava que, segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística, o crescimento da economia, no terceiro trimestre, foi de 0, 3%, um abrandamento que põe em risco os 2, 3% no final de 2018 previstos pelo Governo. Isto depois de, a 8 de Novembro, Bruxelas ter dito que o défice de 2019 será 0, 6% e não 0, 2% como está no OE2019 agora em discussão. Como em qualquer arena, toureia-se o touro que nos sai em sorte.
REFERÊNCIAS:
Carta aberta a António Costa
É chegada a hora de enfrentar cultural e civicamente o fanatismo do politicamente correcto. (...)

Carta aberta a António Costa
MINORIA(S): Animais Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: É chegada a hora de enfrentar cultural e civicamente o fanatismo do politicamente correcto.
TEXTO: Antes mesmo de ele existir, já eu apoiava este Governo que tem vindo a espantar o diabo tantas vezes anunciado. Portugal, apesar das dificuldades, é hoje uma boa excepção, numa Europa e num Mundo marcados por um processo de desconsolidação da Democracia e pela emergência de várias formas de populismo. Os partidos tradicionais estão em decadência, alguns em vias de desaparecimento. E a revolta popular contra o sistema já não está do lado da esquerda, passou para a direita, estimulada e manipulada pela hegemonia do poder financeiro global. Devíamos estar atentos. Mas às vezes a euforia conduz à distracção. Eu, por exemplo, vivo uma situação paradoxal. Apoio esta solução governativa, o PS está no poder e, no entanto, por vezes sinto a minha liberdade pessoal ameaçada. Não por causa do que se passa no Mundo. Mas porque o diabo esconde-se nos detalhes. Está no fundamentalismo do politicamente correcto, na tentação de interferir nos gostos e comportamentos das pessoas, no protagonismo de alguns deputados e governantes que ninguém mandatou para reordenarem ou desordenarem a nossa civilização. O deputado do PAN foi legitimamente eleito. Com pouco votos, mas foi. Tem o direito de defender as suas opiniões. Mas não pode virar o país do avesso, com a cumplicidade dos fundamentalistas de outros partidos (com a honrosa excepção do PCP) e o calculismo dos que pensam que, em certas circunstâncias, o voto dele pode ser útil para a maioria. Uma espécie de um novo deputado “limiano”, salvo o devido respeito. O facto é que um deputado, um só, traz milhares de portugueses inquietos. Isto não é normal nem saudável numa Democracia pluralista. De modo que é chegada a hora de enfrentar cultural e civicamente o fanatismo do politicamente correcto. É uma questão de liberdade. Liberdade para não gostar de touradas. Mas liberdade para gostar. Liberdade para não gostar da caça. Mas liberdade para gostar. Algo que não se pode decidir por decreto nem por decisões impostas por maiorias tácticas e conjunturais, Não é democrático. Para mim, que sou um velho resistente, cheira a totalitarismo. E não aceito. Por isso, meu caro António Costa, peço-lhe que intervenha a favor de valores essenciais do PS: o pluralismo, a tolerância, o respeito pela opinião do outro. Peço-lhe que interceda pela descida de 6% do IVA para todos os espectáculos, sem discriminar a tauromaquia, já que os prejudicados serão os mais pobres, os trabalhadores que tornam possível este espectáculo. Peço-lhe que se oponha à proposta do PAN para alterar a Lei 92/95, que vem comprometer várias actividades do mundo da caça, como provas de Santo Huberto, largadas cinegéticas e cetraria – Património Mundial da Humanidade. A alteração da referida Lei provocará danos irreversíveis em muitas associações e clubes de caçadores, clubes de tiro desportivo, campos de treino e caça. Estão em causa centenas de postos de trabalho e elevadas perdas económicas para o País, sobretudo para aquelas regiões onde a empregabilidade e a actividade económica estão quase exclusivamente ligadas à caça. Sim, meu caro António Costa, trata-se de uma tradição cultural e social que é parte integrante da nossa civilização. É, também, um problema que diz respeito ao emprego e à vida de milhares de pessoas. E é, sobretudo, uma questão de liberdade, que sempre foi a essência e a alma do Partido Socialista. Militante histórico do PS; escritor
REFERÊNCIAS:
Partidos PS PAN PCP
O púlpito dos charlatões
Há assuntos sobre os quais a televisão, seja pelas características e exigências actuais, seja pela profunda ignorância e filistinismo dos autores e apresentadores dos programas, presta um serviço fraudulento de desinformação. (...)

O púlpito dos charlatões
MINORIA(S): Animais Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há assuntos sobre os quais a televisão, seja pelas características e exigências actuais, seja pela profunda ignorância e filistinismo dos autores e apresentadores dos programas, presta um serviço fraudulento de desinformação.
TEXTO: Na passada segunda-feira vi o programa Prós e Contras, na RTP 1, e a conclusão a que cheguei, no final, é que há assuntos sobre os quais a televisão, seja pelas características e exigências actuais deste medium, seja pela profunda ignorância e filistinismo dos autores e apresentadores dos programas, presta um serviço fraudulento de desinformação, presta-se a ser o veículo de ideias que não deveriam poder ser difundidas e amplificadas num estação pública, em programas que se reclamam do estatuto de serviço público. “Os movimentos a favor dos animais, ou melhor, os movimentos contra a crueldade com os animais, fazem parte da tradição humanista dos séculos XIX e XX. ” José Pacheco Pereira, PÚBLICO, 17/11/2018José Pacheco Pereira escreveu uma crónica a defender o fim das touradas, intitulada Os que “amam” muito os touros e os torturam e matam. Há uma passagem dessa crónica, acima citada, que gostaria de refutar. A tradição humanista, seja ela de que século for, é precisamente a ideologia que está na base das convicções acerca dos homens, dos animais, da natureza e da técnica que servem ainda de argumento para quase tudo, inclusivamente para apoiar as touradas. O nazismo foi um humanismo (como foi dito por um filósofo que escreveu sobre o assunto). Até na globalização há um humanismo integral. Na nossa época, impôs-se em certos domínios a noção de pós-humano, mas o humanismo é muito perseverante. Não é fácil alguém declarar-se anti-humanista. Pensa-se logo que é um misantropo e não alguém que recusa a máquina antropológica que nega a verdadeira fractura do homem. O nível da abjecção e da total ausência de pudor é diariamente atingido naqueles programas da manhã e da tarde que supõem a existência de um público lobotomizado. Mas aqui, nos Prós e Contras, apesar da deriva demagógica do título, indiciando que há muita probabilidade de as coisas não correrem bem, supõe-se que é um programa para uma classe de espectadores bem informados, que esperam muito mais do que um serão de entretenimento. O último Pros e Contras era sobre as touradas, sobre as razões que levam uns a defender que elas devem ser mantidas e sobre as razões que levam outros a defender que elas deviam ser abolidas. Como sabemos, este debate está instalado entre nós com bastante virulência e já se percebeu que ele é extremamente incómodo para alguns partidos políticos e para o Governo, que quer fugir dele como o diabo da cruz. É preciso dizer que ele não deve ser desvalorizado, com aquele argumento de que há coisas muito mais importantes e esta não passa de algo inócuo. O que está aqui em jogo, a discussão de fundo, é algo fundamental que se inscreve no cerne da biopolítica contemporânea. A ideia de que está em curso ou já se consumou um animal turn, uma viragem animal, convoca-nos hoje seriamente através de uma bibliografia imensa que se tem produzido nos últimos anos sobre o assunto, vinda sobretudo dos lados da filosofia. O que descobrimos quando frequentamos esta vasta bibliografia é que a questão animal, nas suas mais variadas dimensões (morais, antropológicas, legais, etc. ), incluindo a questão maior de saber se eles podem e devem ser sujeitos de direito, está presente nos grandes obras de filosofia, desde Aristóteles a Heidegger, de Derrida e Martha Nussbaum. Está longe, portanto, de ser uma questão exclusiva do nosso tempo. Daí que seja chocante ouvir pessoas que são chamadas a falar sobre o assunto porque lhes é conferida, por qualquer razão, autoridade para tal, mas discorrem sobre ele com a maior das ignorâncias. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Neste último Pros e Contras destacou-se neste exercício de desinformação e de ignorância um aficionado chamado Luís Capucha, imbuído de filosofia das Lezírias que nem dá para comentar neste espaço. Mas vale a pena revisitar um dos seus argumentos, o de que regime nazi foi muito amigo dos animais e fez legislação que o comprova, para dizer que esse mito com origem na propaganda (“O nosso Führer ama os animais”) já foi longamente desmentido, em primeiro lugar por Victor Klemperer, o autor de LQI. A Linguagem do III Reich. E, no início dos anos 90, em França, Luc Ferry publicou um livro onde transmitia essa mensagem (e onde traduzia documentos da legislação nazi) que foi muito contestado e deu origem a uma enorme polémica. Ora, o que se passa entre nós é que alguém (na circunstância, um professor universitário de Sociologia) pode dar-se ao luxo de fazer afirmações na televisão como se fossem verdades irrefutáveis, desconhecendo ou fazendo que desconhece a contestação e a polémica que elas suscitaram. Este dispositivo retórico, propagandístico e inimigo do saber e da ciência porque é usado com fins exclusivamente ideológicos é o do discurso político, em relação ao qual já criámos muitas defesas, mas não pode ser a regra numa discussão na televisão pública, sobre um assunto sério, para o qual se convida, para o debate, “especialistas”, gente a quem se confere uma qualquer autoridade. O sociólogo, o aficionado, o propagandista e o inimigo do saber, tudo na mesma pessoa, só na televisão é que é possível.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens homem animal
Presidente eleito da Costa do Marfim pede fim de sanções à UE
O Presidente eleito da Costa do Marfim, Alassane Ouattara – reconhecido internacionalmente como vencedor das eleições de Novembro passado – instou a União Europeia a pôr fim às sanções contra o país, visando o relançamento e recuperação da economia apesar do impasse político causado pela recusa do rival, Laurent Gbagbo, em ceder o poder. (...)

Presidente eleito da Costa do Marfim pede fim de sanções à UE
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 10 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-04-08 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Presidente eleito da Costa do Marfim, Alassane Ouattara – reconhecido internacionalmente como vencedor das eleições de Novembro passado – instou a União Europeia a pôr fim às sanções contra o país, visando o relançamento e recuperação da economia apesar do impasse político causado pela recusa do rival, Laurent Gbagbo, em ceder o poder.
TEXTO: Já com controlo do principal porto, São Pedro, Ouattara quer restabelecer as exportações de cacau do país (maior produtor mundial) e anunciou, num discurso transmitido pela televisão ainda ontem à noite, ter pedido à União Europeia o levantamento do embargo que “fechou” aquela cidade portuária assim como o porto em Abidjan, a capital, além do fim das sanções a algumas das instituições públicas. Mas as suas forças não detêm ainda o controlo total da capital, onde o chefe de Estado cessante se mantém irredutível, refugiado na residência presidencial, apesar das várias tentativas nos últimos dias para o forçar à capitulação e da intervenção das Nações Unidas, ao abrigo da resolução 1975 do Conselho de Segurança, que permitiu ataques às posições militares de Gbagbo para “protecção da população civil”. As agências de assistência humanitária têm vindo a alertar com cada vez maior insistência que a situação se está a agravar em Abidjan, começando a faltar serviços básicos como água corrente e electricidade e os alimentos igualmente a escassear. Residentes da capital contam às agências noticiosas que há cadáveres espalhados pelas ruas depois de vários dias de confrontos ferozes entre os leais a Ouattara e aqueles que permanecem do lado de Gbagbo. No discurso de ontem à noite, o vencedor das eleições presidenciais de 28 de Novembro apelou à reconciliação de todos os cidadãos e anunciou que as condições de recolher obrigatório vão ser aligeiradas já a partir de hoje, para “permitir um regresso progressivo à normalidade”. Prometeu também manter o cerco à residência presidencial, onde Gbagbo permanece sob a protecção da Guarda Republicana e de milicianos – num total estimado de mil homens, mas dotados de armamento pesado – e anunciou ter dado ordem às suas forças para “tomarem todas as medidas de forma a assegurar a ordem e a segurança”, assim como a “liberdade de movimento” das pessoas no país.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens refugiado alimentos humanitária
A acrobacia de Catarina e Telmo funciona “como uma árvore de Natal”
A acrobacia a dois é “uma história de teatro com técnica pelo meio”. A técnica é trabalho, a narrativa é o que constrói a arte. Se durante o ano Catarina e Telmo utilizam a agilidade para expor problemas sociais, em Dezembro mudam de ares e de temas. O Natal marca o período mais estável da vida de circo e permite ao casal fazer planos para o amanhã. (...)

A acrobacia de Catarina e Telmo funciona “como uma árvore de Natal”
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 Animais Pontuação: 10 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: A acrobacia a dois é “uma história de teatro com técnica pelo meio”. A técnica é trabalho, a narrativa é o que constrói a arte. Se durante o ano Catarina e Telmo utilizam a agilidade para expor problemas sociais, em Dezembro mudam de ares e de temas. O Natal marca o período mais estável da vida de circo e permite ao casal fazer planos para o amanhã.
TEXTO: “A acrobacia a dois tem de funcionar como uma árvore de Natal, de baixo para cima. Tens muita bagagem, como na base, e no palco só utilizas um terço dela, aquilo que faz parte da estrela”, vai dizendo Telmo Duarte, de 24 anos, enquanto admira a árvore iluminada que marca o centro da Feira de Natal de Cascais. Durante o mês de Dezembro, Telmo e Catarina Ribeiro afastam-se do circo e ocupam os seus dias a fazer animação pela feira — que só é interrompida para subirem ao palco em curtos espectáculos durante o dia, onde levantam o véu daquilo que melhor sabem fazer: a acrobacia a dois. O Natal, para um casal acrobata, marca o mês mais estável de um ano que oscila entre trabalhos breves e pouco certos. “No Natal surgem muitos trabalhos de animação, com menos tempo para o espectáculo, mas é um trabalho que sabemos que temos”, explica Catarina Ribeiro, 22 anos. “Não é como no resto do ano, em que nos convidam uma semana para ali, um dia para acolá. Aqui conseguimos criar objectivos para Janeiro, por exemplo. ”O casal, vestido com o tradicional verde e vermelho natalício, com chapéus de duende na cabeça e as bochechas pintadas de rosa, circula pela Feira de Natal organizada pela Unisports, que ocupa o Parque Marechal Carmona, em Cascais. “Olá, princesa!”, cumprimenta Catarina sempre que meninas dão descanso à correria para uns segundos de contemplação dos fatos de Natal. Na feira, Catarina e Telmo brincam com as crianças, conversam com os pais e, essencialmente, trazem um ânimo sem descanso ao parque. “O Telmo, às vezes, em vez de animar, parece que fica a dar lições de moral aos miúdos”, brinca Catarina. “Eu apenas lhes digo que, antes de qualquer coisa, têm de se lembrar de serem felizes”, responde Telmo. Encarar a felicidade como regra é a máxima que tem suportado a vida instável do circo, sublinha Telmo: “Eu faço circo porque sou feliz a fazer circo. Quando estivemos a preparar um espectáculo para o Busking Festival, ficámos um mês inteiro sem trabalho. Eu estava chateado por andar sem dinheiro, mas ao mesmo ficava feliz por saber que estava a fazer aquilo de que gosto. ”Telmo viveu a sua infância num estado permanente de curiosidade e inquietação com o mundo. “Chegava a casa todo sujo e a minha mãe dizia-me 'Ainda vais ter uma morte macaca’”, partilha Telmo. Durante a adolescência, começou a ir a festas de reggae, onde tinha a oportunidade de explorar o mundo do malabarismo. A curiosidade, que não tem forma de esmorecer, fê-lo entrar para o Chapitô, em 2011, um ano antes de Catarina, que teve um percurso mais convencional: começou, aos sete anos, por fazer ginástica acrobática, expondo as aprendizagens em competições. “Comecei muito nova e depois fui ficando. A Karley Aida [uma das fundadoras do Chapitô] dizia-me ‘O circo vai ser a tua vida’. Eu ria-me. Depois fui lá parar. ”Apesar de terem sido alunos da mesma escola de artes circenses, os caminhos dos jovens faziam-se de coordenadas diferentes: Catarina foi estudar acrobacia a dois para Montpellier, em França, e Telmo para Inglaterra. Há três anos, o Chapitô convidou-os para um trabalho na Zambujeira do Mar, no Alentejo. “Conhecemo-nos lá. Começámos a namorar uns dias antes de trabalharmos juntos”, ri-se Catarina. Desde então, o casal trabalha sempre em dupla. Um dos primeiros e mais marcantes espectáculos que fizeram juntos expunha o tema da violência doméstica. “O Chapitô trabalha muito com questões sociais e eu queria muito trabalhar este tema, porque mexe muito comigo", explica Telmo. “Queria muito mostrar às pessoas que esta continua a ser uma realidade escondida entre quatro paredes, que acontece todos os dias. ” O melhor desse trabalho, destaca, foi o facto de terminar com dois finais diferentes: “um feliz, em que a família acabava junta, e um trágico, onde a situação da violência continuava a repetir-se”. O objectivo era que o público abandonasse o palco com mais inquietações do que aquelas com que tinha chegado. “Queríamos que as pessoas ficassem a pensar neste tema, nesta história. ”Este espectáculo chegou ao fim, mas Catarina e Telmo não abandonaram a coreografia. “Começámos a pensar no número, a moldá-lo, a colocar mais técnicas e mudámos a música”, recorda Telmo. Apresentaram-no em feiras, salas de teatro, cabarés. Ainda que a técnica seja indispensável, só ganha encanto quando tem a capacidade de transmitir uma narrativa. “A acrobacia é como uma história de teatro com técnica pelo meio”, explica Telmo, que considera que a prioridade num espectáculo é a mensagem que os artistas querem transmitir. “A técnica é só um instrumento. Eu deixei, precisamente, de fazer tantos malabares, porque não encontrava razão para os pinos. Queria dar prioridade à minha personagem e à história. ”“Se eu quero fazer a personagem de um velho, tenho de observar a posição do corpo quando eles se mexem, ver pequenos pormenores na forma como se exprimem”, diz Telmo. Contudo, também há trabalhos em que a narrativa é apenas uma forma de expressão. “Sentes que és tu a fazê-los e não uma personagem. És um espelho de ti no palco, porque te queres expressar, tal como acontece na pintura ou música”, diz Telmo. Catarina e Telmo vivem juntos, ora na Ericeira ora em Casal do Marco, Paio Pires. Desde que saíram do Chapitô, têm tido sempre trabalho no chamado “circo novo”. “Esta forma de circo contemporânea já não trabalha com animais e não acontece na tenda tradicional de circo”, explica o acrobata. A tenda redonda e colorida do circo é substituída por feiras, salas de espectáculo ou salas de teatro. “Também já não é só técnica pura e dura. Temos história e relacionamos várias técnicas, como dança, circo e capoeira. ”“Por sermos namorados, tem de existir uma barreira nos ensaios. Se deixamos cair a coisa para o pessoal, torna-se impossível. Nos treinos, eu sou a volante dele e ele o meu base. Quando saímos, somos namorados outra vez”, descreve Catarina. “Nem sempre acontece, como é obvio. Quando estávamos a preparar o espectáculo da violência, havia vezes em que acabávamos o treino porque ele dizia ‘Olha, não vai dar’. Mas isso era o Telmo a falar com a namorada, não podia ser o Telmo a falar com a volante”, continua. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No número que agora se encontra em processo de criação, a dupla conta com a participação de um novo artista, com o qual se cruzaram na Feira de Natal. Telmo elogia a Associação Indecisas Produções, que não só ajuda “a malta do circo a arranjar trabalho” — como é o caso da Feira de Natal —, como estimula a rede de contacto entre os artistas. O novo projecto vai ser pensado a partir de 1 de Janeiro de 2019, quando termina a feira. A vontade é que o espectáculo seja apresentado no início do próximo Verão, mas as ideias já começam a fervilhar. “Agora construímos uma nuvem de ideias. Temos de ver o que resulta ou não”, diz Telmo. A única certeza, até então, é que o espectáculo se vai coser de preocupações sociais. Como prenda de Natal, o casal gostava de encontrar um espaço para trabalhar todos os dias, por ser "muito importante estar sempre a treinar, a preparar o corpo para a acrobacia”. Catarina e Telmo ensaiam, actualmente, num espaço em Alfragide, mas, como têm de pagar uma quantia diária, não conseguem treinar todos os dias. “É uma coisa que estamos a pedir muito ao universo para que aconteça”, confessam.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte escola violência ajuda doméstica corpo princesa circo
Um casal britânico quis saber quem era a jovem numa foto de 1956. Acabou a fazer um filme sobre a Póvoa de Varzim
Maria do Alívio tinha 16 anos quando foi apanhada pela lente de Agnès Varda a passar sob uma imagem de Sophia Loren. Um casal britânico quis saber a sua história e acabou a realizar um filme sobre a dicotomia entre pescadores e turistas. Estreia esta quarta-feira. (...)

Um casal britânico quis saber quem era a jovem numa foto de 1956. Acabou a fazer um filme sobre a Póvoa de Varzim
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 10 | Sentimento 0.05
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Maria do Alívio tinha 16 anos quando foi apanhada pela lente de Agnès Varda a passar sob uma imagem de Sophia Loren. Um casal britânico quis saber a sua história e acabou a realizar um filme sobre a dicotomia entre pescadores e turistas. Estreia esta quarta-feira.
TEXTO: Quando visitaram pela primeira vez a Póvoa de Varzim, em 1996, Steve Harrison e Morag Brennan estariam longe de imaginar que a cidade se tornaria (afinal) um ponto de passagem recorrente durante os próximos anos. De “turistas curiosos”, o casal do Reino Unido – ele, inglês e ela escocesa – que na década de 90 queria apenas “fugir ao caos mediático da morte da princesa Diana”, encontrou razões suficientes para regressar. Uma delas foi o filme documental Um Conto de Duas Cidades, que é estreado esta quarta-feira no Cine-Teatro Garrett, na Póvoa de Varzim. “Não sei se foi o ar ou a atmosfera, mas desde que nós chegámos, tornou-se um lugar especial para nós. Parecia que podíamos finalmente respirar. Apaixonamo-nos, não foi?”, diz Morag Brennan, enquanto olha para o marido, Steve Harrison. O conforto que encontravam na cidade e o gosto pela História – o realizador tem formação nesta área – foram a combinação perfeita para o que haveria de acontecer, anos mais tarde. Em 2010, o casal viu um postal em Lisboa que achou curioso: uma fotografia a preto e branco de uma mulher com vestes negras que andava descalça numa rua. No muro atrás dela estava fixado um cartaz meio rasgado de Sophia Loren, conhecida actriz italiana da década de 50 e, ao lado, uma tabuleta de madeira com a palavra “Vende-se”. Num ápice, descobriram que a autora da fotografia era Agnès Varda, cineasta belga que ambos admiram, e que o cenário era a Rua das Lavadeiras, na Póvoa de Varzim, em 1956. Ora uma descoberta destas não podia ficar por ali. Quando voltaram ao Norte de Portugal, procuraram saber quem era aquela jovem que não usava sapatos, que tinha as pernas à mostra, que carregava o preto no corpo e com o cabelo amarrado no cimo da nuca, o chamado puxo — tão comum nas mulheres da comunidade piscatória da Póvoa de Varzim. Maria do Alívio era o seu nome e na fotografia tinha 16 anos. “No próprio dia em que pedimos ajuda no posto de turismo da Póvoa, o José de Azevedo [historiador local] levou-nos a uma visita guiada pelo Bairro Sul [um dos bairros tradicionais da cidade] e contou-nos quem era aquela mulher e como tinha morrido”, explica Steve Harrison. À medida que foram conhecendo os pormenores da comunidade piscatória da Póvoa de Varzim, especialmente o seu passado, o casal pensou em documentar todas as informações num artigo científico. No entanto, havia muito mais do que aquele grupo de pescadores e as suas famílias. “Apercebemo-nos do que a Agnès Varda estava a tentar dizer naquela fotografia: a Maria do Alívio representava a comunidade piscatória e a Sophia Loren representava a parte turística da cidade”, refere o realizador. Mais habituados a frequentar a zona turística da Póvoa, onde a praia e a época balnear são os cartões-de-visita, os dois realizadores só verificaram a “divisão” após conversarem com os pescadores. “Começamos a ver e a ouvir o modo como falavam da 'cidade turística', como se fosse algo muito separado deles”, diz Steve. “A partir desse momento, nós vimos a fotografia diante dos nossos olhos: a comunidade piscatória vestia-se e comportava-se de forma diferente”, acrescenta Morag. Embora ambos acreditem que as diferenças sejam cada vez menores nos dois lados opostos da cidade, algo é impossível de negar: nas décadas de 50 e 60, a Póvoa de Varzim era o conjunto de dois lugares, diferentes entre si, mas sob alçada do mesmo território e da mesma autoridade. Daí a importância de fazer um filme: “Fomos incentivados pelas pessoas da cidade. Mas também vimos uma geração inteira a morrer. As pessoas mais idosas, que estavam todos os dias sentadas nos mesmos lugares em Aver-o-Mar [freguesia da Póvoa de Varzim], já não estão lá. Perdemo-las. Tínhamos de contar as suas histórias”, salienta o realizador. Conhecer os dois lados de uma mesma cidade implicava ouvir as vozes tanto da comunidade piscatória como da parte turística da Póvoa de Varzim. Estando os dois lugares conotados com zona sul e a zona norte da cidade, cuja “divisão” e rivalidade atinge o auge com a Festa de São Pedro no final de Junho – o Bairro Sul e o Bairro Norte –, o tempo dedicado no filme a cada um é também preciso. “Demos 45 minutos a ambos. O que pretendemos foi conhecer em grande detalhe as peculiaridades da cultura da comunidade piscatória e depois marcar as diferenças com a 'cidade moderna'”, esclarece Steve. “Não tínhamos nenhuma agenda, só queríamos entender como era a Póvoa em 1956”, confirma Morag. Uma das formas de conhecer a cidade na década de 50 e sobretudo reviver o que teria sido a vida de Maria do Alívio — a rapariga de 16 anos da fotografia de Agnès Varda —, era falar com mulheres de pescadores. Da vida dura de trabalho na venda do peixe aos horários desgastantes nas fábricas, a figura feminina comandava a família enquanto o marido estava no mar. “Por essa razão, focámo-nos nas mulheres, porque era pouco natural isto acontecer naquele tempo”, reforça o realizador. Contrariamente ao papel de subserviência que geralmente teria perante o homem e consonantes com “regras” conservadoras do Estado Novo, a mulher na comunidade piscatória era forte, independente e dona de si mesma. Nas entrevistas do filme às quatro mulheres de pescadores, a fragilidade também se faz sentir, especialmente quando um ente querido morre no mar. “Não tirei o negro do meu corpo e hei-de continuar até à cova”, diz uma delas, após cerca de 20 anos de luto pelo filho. De um Sul pescador para um Norte empreendedor, a vida na Póvoa de Varzim fazia-se de subsistência e também de muito esforço para levar avante os negócios de família. Dos cafés e das mercearias aos quartos alugados aos veraneantes, a cidade era apetecível para os habitantes e para os de fora, económica e politicamente. “Não se pode fazer um filme em Portugal sobre as décadas de 50 e 60 sem falar do autoritarismo a que Portugal estava sujeito”, admite Steve Harrison. A Póvoa de Varzim não passava despercebida dos olhares da ditadura. Um Conto de Duas Cidades mostra como a “cidade à beira-mar” era um importante indicador dos ventos de mudança ou de autoritarismo, que importavam travar ou manter, respectivamente. Da esposa do general Franco, de Espanha — Carmen Polo —, que fazia compras na Ourivesaria Gomes, numa das mais conhecidas ruas comerciais da Póvoa de Varzim, até à campanha presidencial de 1958 do general Humberto Delgado na cidade, que deixou a esperança de uma democracia precoce – mas que só se viria a concretizar em 1974 e já sem o “General Sem Medo”. Para Steve Harrison, Salazar queria agradar aos pescadores e não gostava da vertente empreendedora que a Póvoa de Varzim começava a ganhar na zona turística durante a época balnear. A independência económica e financeira significava a insubmissão do pensamento e o começo dos questionamentos acerca do estado do país. A cidade poderia não estar muito politizada na comunidade piscatória, mas todos sabiam do que o Estado Novo era capaz. “Era resiliência e não resistência. As pessoas viviam e lidavam com a ditadura. Tiveram um compromisso consigo mesmas e com o regime. Eu não as culpo ou censuro”, afirma. Se uns guardavam os pensamentos para si, outros davam voz a eles. Alguns poveiros seguiram de perto Humberto Delgado e sofreram as maleitas desse apoio: foram denunciados por informadores e perseguidos pela polícia política. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “A Póvoa de Varzim seria a primeira cidade que ele visitaria após ser eleito como Presidente da República. Ele próprio disse isso no seu discurso”, explica Steve Harrison. “Como historiador, só posso concluir que a vinda de Humberto Delgado à cidade foi um momento histórico muito importante”, acrescenta. Como é descrito no filme, Humberto Delgado teria maioria absoluta na Póvoa de Varzim e nos concelhos limítrofes, caso não fossem as várias mesas de voto forjadas nessas eleições a favor do candidato do regime, Américo Tomás. E Agnès Varda sabia o poder da fotografia que tinha em mãos? “Estou convencida de que sabia. Ela tem uma cápsula onde guarda as peças mais importantes da sua vida e a fotografia da Maria do Alívio é uma delas”, afirma Morag Brennan. “Eu adorava conhecer as outras fotografias que ela tirou na Póvoa. É essa a minha ambição: descobrir esse rolo fotográfico”, conclui Steve Harrison, entre risos. Um Conto de Duas Cidades estreia esta quarta-feira no Cine-Teatro Garrett e já conta com casa cheia. A próxima exibição será no Festival Curtas de Vila do Conde, a 9 de Julho, às 17h.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte cultura filho mulher ajuda negro homem comunidade medo mulheres corpo princesa feminina rapariga luto
A última xávega artesanal do Algarve luta para não morrer
Berço da xávega de origem mediterrânica em Portugal, o Algarve viu esta arte de pesca quase desaparecer dos areais no final do século passado. Hoje, existem apenas duas companhas em Lagos, uma ainda artesanal, em que tudo se vence à força de braços e de espírito comunitário. Apesar das dificuldades, José Santos resiste, mais para turista ver do que para pescador comer. No areal, a vontade é só uma: “Não deixar isto morrer”. (...)

A última xávega artesanal do Algarve luta para não morrer
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 10 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Berço da xávega de origem mediterrânica em Portugal, o Algarve viu esta arte de pesca quase desaparecer dos areais no final do século passado. Hoje, existem apenas duas companhas em Lagos, uma ainda artesanal, em que tudo se vence à força de braços e de espírito comunitário. Apesar das dificuldades, José Santos resiste, mais para turista ver do que para pescador comer. No areal, a vontade é só uma: “Não deixar isto morrer”.
TEXTO: Ainda o sol não rompeu o horizonte quando se iniciam os preparativos para mais um lance de arte-xávega na Meia Praia, em Lagos. Pouco passa das 6h de uma manhã fresca de Julho. No areal, o sono ainda emudece a maioria dos rostos, mas os movimentos são rápidos, mecânicos. Parecem coordenados com o clarear do novo dia. Enquanto uns libertam a embarcação de madeira, outros desenham um caminho de barrotes sobre o areal. Enquanto metade puxa pela proa, outra metade empurra pela popa. O trilho de madeira vai sendo pincelado a água para que o barco deslize mais facilmente. Entretanto, o motor do barco José Fernando já aguarda num carrinho-de-mão junto à beira-mar para aliviar a carga da coluna de braços que arrasta a embarcação para o mar. Com a garantia de que o primeiro-cabo da rede está bem ancorado no areal, José Santos, mestre e proprietário da embarcação, e outros dois tripulantes sobem ao convés. Em 15 minutos, a primeira etapa está concluída. Enquanto o barco se afasta para largar a rede, é hora do pequeno-almoço para quem aguarda na areia. De há uns tempos para cá que é assim, de Maio a Outubro, pelo menos uma vez por semana. Ou quando o mar amansa e os braços são suficientes. Zé Bala, como é conhecido por todos, faz contas à meteorologia e ao que precisa, acerta o dia da faina e, de véspera, liga aos ajudantes mais fiéis. “Depois esses ligam para os outros e forma-se uma cadeia de comunicação”, conta ao P2. Nesta companha, ninguém faz da xávega profissão, nem mesmo Zé Bala. Muitos são reformados, como ele, outros estão de folga ou ainda não entraram ao trabalho, alguns são veraneantes. “Às vezes, vem um russo ou outro que anda aí a trabalhar. Gostam muito de vir porque levam peixe e assim já não precisam de comprar. ” É essa a paga de toda a lavra: um quinhão daquilo que vier na rede. Pode ser muito, pode ser pouco, em dias de azar pode ser quase nenhum. Mas, garante quem reforça o estômago no areal, o peixe é o que menos pesa na decisão de vir. “É pela amizade. Contam-se umas anedotas, leva-se com uns baldes de água por cima”, ri-se José Maria, construtor civil de 52 anos. Natural de Barão de São João, freguesia rural do concelho de Lagos, veio pela primeira vez com um colega há “uns oito anos” e gostou “da festa”. “Isto para mim é uma família. ” José Júlio, de 56 anos, concorda. “Não é tanto pelo peixe, mas pelo convívio, pelo petisco, pelas anedotas. ” Sobre a mesa há de tudo um pouco: sandes de chourição, pão com torresmos ou com chouriço, biscoitos, bolos caseiros, palmiers, gomas, chocolates. Mais água e café em termos de plástico. E nas garrafas de vidro? “Isso é água de Monchique”, riem-se. A transparência é semelhante, mas o líquido é feito a partir das árvores de medronho. “Isto é que é lindo, estes moços”, irrompe Bruno Vieira num gesto largo, com um vozeirão que só há-de ter a concorrência das gaivotas. Aos 43 anos, é um dos mais novos entre o grupo habitual e o principal animador da “festa”. Mete-se com toda a gente, lança piadas, grita frases de incentivo. “Quem quer peixe molha o cu! Vamos embora!”Natural de Ferragudo, no concelho de Lagoa, Bruno mudou-se há três anos para a Mexilhoeira Grande, na fronteira entre Lagos e Portimão, onde trabalha numa escola. Veio há quatro anos à xávega a convite de um amigo e deixou-se apegar a ela. “Temos esta luta que é não deixar isto morrer. ” Os velhos estão a ficar mais velhos e os novos não se interessam. É difícil garantir equipa suficiente para cada lance. “Cheguei a vir aqui e não estavam dez pessoas. Para podermos fazer, é preciso, pelo menos, dez para um lado e dez para outro. ” Este ano, Bruno e Dinah Graça começaram a fazer uma divulgação no Facebook mais dinâmica, para tentar atrair curiosos e entusiastas. Todas as semanas, anunciam a data e a hora em alguns grupos locais e depois partilham fotografias e vídeos da faina. Dinah, 54 anos, é a principal responsável pelos petiscos à mesa. “Não queremos que ele acabe com isto. ” Tânia Bandarrinha, 39, tem vindo nas últimas semanas desafiada por Bruno. Olha em volta. “Estes rostos têm história. Gostam de conviver, estão sempre bem-dispostos. E o mestre é cinco estrelas. O que ele quer é mostrar isto à nova geração e incentivar-nos para que não se deixe acabar. ”A arte-xávega, definida na legislação portuguesa como “arte envolvente-arrastante”, é um tipo de pesca tradicional de “cerco e alar para terra”, a única deste género ainda permitida em Portugal. Terá surgido na costa do Mediterrâneo durante a Antiguidade e aí se desenvolveu ao longo dos séculos, até ser simplesmente apelidada de “xábaka”, designação genérica para “rede” em árabe. Não existem registos históricos que datem com precisão a introdução desta arte de pesca em território português, mas terá surgido primeiro no Algarve, trazida por pescadores andaluzes. E, a partir do Sul, ter-se-á difundido pela costa atlântica da Península Ibérica. Para vislumbrar as embarcações em forma de “meia-lua” que hoje povoam o imaginário, no entanto, é preciso avançar até ao século XVIII. Os “barcos-da-arte”, maiores, muito curvos e de redes grandes, foram introduzidos nas praias arenosas da Costa Nova por armadores de pesca catalães durante aquele período e terão influenciado as novas companhas nos areais a norte e a sul de Aveiro. É nestas regiões — desde Espinho à Nazaré — que ainda hoje se concentra a maioria das licenças atribuídas. No Algarve, no entanto, José Santos nunca viu tais barcos de proa altiva a furar as vagas. Mantiveram-se mais pequenos, achatados, de cores garridas — o mar calmo do Sul não exigia outros. No Museu da Marinha, em Lisboa, está em exposição um calão (embarcação comprida, de dez remos por banda, empregada sobretudo na pesca do atum) do mesmo armador da praia da Salema (concelho de Vila do Bispo) a quem comprou duas licenças em 1983. “Fiz um mau negócio”, ri-se agora. “Aquele estava um bocado partido, eles vieram e arranjaram logo. Eu comprei o que estava pintado, todo bonito, mas afinal estava podre por baixo”, recorda. Acabou por desistir de uma das licenças e, mais tarde, trocar aquele barco por um mais pequeno, o José Fernando, que ainda hoje utiliza. O gosto pela xávega é antigo. José Santos nasceu “praticamente dentro de água” há 67 anos, num dos bairros de pescadores da Meia Praia, quando ainda eram pouco mais do que um conjunto de barracas. No pós-25 de Abril, os dois bairros foram sedimentados a tijolo no âmbito do Serviço Ambulatório de Apoio Local e é numa das casas do Bairro 1. º de Maio que ainda vive. Da porta à areia distam poucos metros, separadas pela linha de caminho-de-ferro. Atravessa-a todos os dias, que ninguém lhe tira o mar do horizonte por muito tempo. “Sempre acompanhei esta história da xávega”, conta. “O tipo de pesca com redes que havia aqui sempre foi isto. Aqui e nas outras, porque havia nas praias de Faro, Quarteira, Armação de Pêra, Vila Real de Santo António, Monte Gordo, Praia Verde. ”Quando começou, aos 17 anos, deveriam existir “uns oito ou nove barcos a trabalhar” no areal da Meia Praia. “Talvez mais. ” José Santos começou a tomar gosto. Dava-lhe gozo ir para a praia ver os mais velhos remendar as redes. “O meu pai também era pescador, mas andava nas traineiras, não percebia nada disto”, ri-se. Foi com os mestres mais antigos que aprendeu. “Às vezes, as redes partiam-se e lembro-me de ir lá ao pé deles. Alguns gostavam de ensinar”, recorda. Pediam-lhe para segurar numa ponta ou noutra, para ir vendo como faziam. “Já tinha umas luzes do que fui aprendendo com os mais velhos, depois com o trabalhar vai-se apanhando prática naquilo. ” Hoje, garante, “não há nada que não saiba fazer”. Durante a guerra colonial, foi destacado para a Guiné. De repente, quando regressou, a xávega “já quase não existia” no Algarve. “Nos anos 70, 80, isso desapareceu tudo em menos de nada”, recorda. Os mais velhos foram deixando e ninguém queria seguir. “Então eu cá pensei em recuperar isto”, conta. Ainda andou uns tempos com o barco de um armador de Faro com quem tinha trabalhado uns anos antes. Até que há 35 anos comprou a licença com que ainda trabalha. No entanto, José nunca quis a xávega como profissão. “Naquela altura, estava mesmo mal na pesca. Ainda continua, mas mesmo assim está muito melhor. ” Por isso, preferiu arranjar um emprego fixo, com um ordenado certo ao final do mês. Primeiro na indústria conserveira, depois num hotel mesmo ali em frente. “Ganhava 11 contos por mês e fui ganhar 30. Quem é que ganhava um conto de réis por dia naquela altura?” Trabalhou no Hotel Dom Pedro desde a construção do edifício até se reformar, primeiro como guarda-nocturno, depois na recepção. A xávega nunca parou. “Fazia a recepção da meia-noite às oito, depois saía dali e ia para a pesca”, recorda. Quando não conseguia, pedia a alguém para ir lançar a rede e “fazia-se o cerco à mesma”. Nunca deixou de ir ao mar. De tudo na arte, aquilo de que mais gosta acaba por ser o “convívio” que se cria entre o grupo. “Gosto de conhecer pessoas, de conversarmos. Às vezes aparece gente de outros sítios no Verão. ” E de se manter na praia com uma “arte do tempo antigo”. O barco é de madeira, as redes ainda têm flutuadores de cortiça. E, apesar do pequeno motor, mantém os remos dentro da embarcação. “Quando não há vento, ainda remamos para não perder o hábito”, ri-se, como quem assume ser já mais intenção do que realidade. Na companha de José Santos, também não há tractores a puxar o barco nem as redes, como na esmagadora maioria dos casos. Tudo é feito à força de braços. “Estou a trabalhar artesanalmente para manter a tradição. Torna-se mais complicado, mas eu gosto de ver a pesca assim e gosto que as pessoas vejam. ” E admite: “Faço isto mais para o turista ver do que outra coisa. ”No areal, a embarcação está de regresso com a outra ponta da rede, cerca de uma hora depois. Para quem ficou na praia, é tempo de continuar o trabalho. O grupo divide-se pelos dois cabos da rede e começa uma dança sincronizada. Cada um já tem o cinto colado ao tronco, na diagonal. Resta amarrá-lo à rede e puxar. Quando chegam ao final do percurso, soltam o cinto da rede, caminham até à água e repetem. Primeiro emergem os cabos, depois as mangas da rede e, por fim, o saco. Os dois lados da lavra cada vez mais próximos. Há quem se curve no esforço e quem pareça seguir mais ligeiro. José Eduardo Vicente, de 64 anos, não abranda no carreiro, enquanto fala com o P2. “Sou de Mafra, mas tenho casa em Bensafrim”, vai contando, com o corpo balançado para trás, juntando aos músculos o peso do corpo. “Quando venho de férias e sei que há isto, venho logo para aqui. ” No Inverno, é a caça ao javali. No Verão, a xávega. “Uma pessoa também não tem nada para fazer e assim levo umas cavalinhas fresquinhas”, resume. José Júlio vem logo um pouco atrás na fila de homens, mulheres e até algumas crianças. “Com esta malta toda que está cá hoje até está a andar depressa de mais”, atira, olhando as duas bóias de sinalização. É sábado. E ao fim-de-semana, por norma, há mais ajudantes disponíveis. Mas há muito tempo que não viam tanta gente. Por alto, contamos umas 25 pessoas em cada lado, mais alguns banhistas curiosos que, entretanto, chegaram à praia. Quando regressamos a Lagos para assistir ao lance seguinte, a uma sexta-feira, o grupo não ultrapassa as 30 pessoas. No mar, já se vislumbra um pequeno cerco de placas de cortiça no limiar da areia — é o saco, o clímax de todo o processo. José Maria atira mãos de areia para agitar o peixe, enquanto José Santos está de água pelos joelhos a avaliar a pescaria. Não é mau, não é muito. É quase nada. Ainda na semana passada, duas toneladas de peixe rebentaram parte do saco. Desta vez, o total não chegará aos 400 quilos. Menos ainda na sexta-feira seguinte. Um último esforço e o saco deita-se a seco sobre o areal. José Santos abre a rede e a terceira fase começa: enquanto a maioria leva de novo o barco ao posto, próximo das dunas, alguns já separam cada espécie de peixe pelas caixas de plástico. O esvoaçar de dezenas de gaivotas é agora ensurdecedor. Há quem pegue nalguns peixes mais miúdos e levante a mão no ar, para dar de comer às gaivotas em momentos fotogénicos. “É uma alegria ver o peixinho a saltar na rede”, sorri Eunice Branca, de 58 anos. Já os avós vinham ajudar na xávega, ainda havia mais embarcações no areal. Moravam todos ali, “a areia quase dentro de casa”. “Quando sabia [que havia pescaria], vinha logo. Sempre gostei disto”, conta quem, aos três anos, “fugiu de casa para vir para a praia”. Hoje, Eunice vive em Bruxelas, mas passa em Lagos dois meses de férias no Verão. Regressa sempre à xávega. “Parece que está no sangue da gente”, diz. “Cada vez que volto e vejo as caras deles fico contente. Significa que ainda estão cá. ”Na rede, salta muita petinga e cavala, ruivos, cabras, carapaus, salemas, raias, robalos, salmonetes, bicas, safios, xoupas, peixes-aranha. “This is a spider fish. If you touch it, it hurts you”, diz José Júlio, alertando a um casal de estrangeiros que se abeira da rede. Cornelia vai tirando fotografias, curiosa. É a primeira vez que vê algo semelhante. Mas para a suíça, “mais ou menos vegetariana”, os peixes “não parecem muito felizes”. “É uma prática cultural, mas faz-me alguma confusão”, confessa antes de retomar a corrida. A maioria dos turistas aproxima-se, fica um pouco a assistir aos trabalhos, faz dezenas de fotografias, selfies e vídeos e segue caminho. A divisão da pescaria é demorada e mesmo os mais resistentes acabam por desistir. São os turistas portugueses que acabam por ficar até ao fim, na esperança de também levar algum peixe para casa. Depois da divisão por espécies, segue-se a distribuição. Quem ajudou a puxar a rede coloca-se numa roda em volta das caixas, cada um com o seu saco ou balde de plástico. Uma pequena parte do pescado já seguiu para lota, outra aguarda o leilão “para ajudar a pagar a gasolina do barco” e outra foi distribuída por aqueles que mais contribuíram (quem seguiu no barco ou ajudou a colocar as redes). Tudo o resto é dividido irmãmente. Paulo Niza, de 33 anos, e João Augusto, de 26, são os mais novos entre os adultos. Foi a primeira vez que participaram. João destaca a “experiência quase única”, de uma grande “simplicidade” e óptimo contacto “com o meio mais natural”. Foi Paulo quem o desafiou. “Faço parte da assembleia municipal e já há algum tempo que queria vir”, conta o primo mais velho. “Gostei bastante. É para repetir. Sempre se faz um bocado de exercício a puxar as redes e contribui-se para não deixar a arte morrer. ” Antes das 10h, tudo termina. E a praia fica de novo entregue ao sossego dos poucos banhistas que a esta hora se vislumbram ao longo do areal, desprotegido do vento norte que se faz sentir. Em todo o país, restam 42 licenças atribuídas à arte-xávega. Em 25 anos, o número caiu para menos de metade. A quebra tem-se acentuado nos últimos anos — desde 2013, desapareceram 11 licenças. A legislação actual não permite a concessão de “novas autorizações nem licenciamento inicial para o exercício” deste tipo de pesca. E todos os anos, os armadores têm de cumprir um valor mínimo de vendas em lota para verem as licenças renovadas. “Se não realizo os 6300 euros que eles querem anualmente, não me dão a licença”, lamenta José Santos. A preocupação era grande em meados de Julho. “Este ano, ainda não consegui fazer uma venda e termina este mês o prazo das licenças. Não sei como vou fazer. ” No sábado em que o P2 esteve em Lagos, era o sétimo lance que a companha fazia este ano e a primeira vez que levava peixe à lota. Rendeu “uns 70 euros”. De acordo com a legislação em vigor, as autorizações são canceladas, caso “não [haja] exercício da actividade sem justificação no ano anterior”, ou se verifique o “abate da embarcação ao registo na frota de pesca”, salvo se o barco for substituído por “razões ligadas ao aumento da segurança”. No entanto, o licenciamento da pesca profissional prevê a possibilidade de se “justificar a actividade reduzida” no ano anterior, “por reparação da embarcação ou doença do proprietário, devidamente documentada, ou por alteração de proprietário”. No caso da companha de José Santos, o baixo valor de vendas em lota tem várias origens. Por um lado, o volume de peixe capturado tem sido reduzido. Por outro, os preços mantêm-se baixos. “As primeiras cavalas saem [da lota] a 16 cêntimos/quilo, depois estão a oito euros [na praça]. Onde é que se consegue fazer seis mil euros assim?”, reage Dinah Graça. Outro dos problemas tem sido a elevada percentagem de peixe capturado abaixo do tamanho mínimo de desembarque. “Ultimamente, não tenho apanhado peixe capaz de vender em lota”, admite José Santos. “Não tem as medidas suficientes e a quantidade é pouca. ”A falta de selectividade das capturas — quer ao nível de juvenis, quer de espécies indesejadas, sem valor comercial ou acessórias — é um dos principais problemas deste tipo de pesca. E a principal crítica apontada à arte-xávega. No entanto, Miguel Pardal, investigador do Centro de Ecologia Funcional do Departamento Ciências da Vida da Universidade de Coimbra, considera que o volume total de capturas realizadas através da arte-xávega é actualmente irrisório e, como tal, o impacto nos stocks pesqueiros é “mínimo”, quando comparado com outras artes de pesca. Para o investigador, que integrou a equipa que realizou um novo estudo científico no ano seguinte (em parceria com o IPMA, entidade que o P2 tentou ouvir para esta reportagem, sem sucesso) e que tem continuado esse trabalho na Universidade de Coimbra, a não atribuição de novas licenças para a arte-xávega é “uma questão de princípio e de prevenção, não de impacto”. “É como sermos obrigados a pôr o cinto de segurança para conduzir um carro. Não quer dizer que a gente vá ter um acidente. Neste caso, por princípio, tendemos a minimizar qualquer apanha de peixes mais pequenos. ”De acordo com o Relatório de Caracterização da Pesca com Arte-Xávega, realizado pela comissão de acompanhamento em 2013 e enviado ao P2 pelo Ministério do Mar, este tipo de pesca tinha sido responsável por “cerca de 1% das descargas totais registadas nas lotas do continente” no ano anterior. Acrescentava ainda que “as descargas por espécie não são significativas relativamente às descargas no continente”, contribuindo para isso o facto de o número de embarcações autorizado “ser muito reduzido no contexto nacional”. Miguel Pardal defende, por isso, que a arte-xávega “deve ser preservada”, mas “com regras”. E destaca o facto de existirem dois cenários “muito diferentes”, quando se fala deste tipo de pesca. “Temos casos como este em Lagos, em que é praticamente tudo artesanal, como se fazia há muitos anos. Trata-se de manter uma tradição. E, depois, temos outros locais em que já é uma actividade económica”, adianta. O Ministério do Mar afirma não ter dados que façam essa distinção, mas, ao que o P2 pôde apurar, existem apenas quatro embarcações licenciadas que realizam companhas de forma artesanal, sem recurso a tractores. Uma em Lagos e três afectas ao porto de Sesimbra (uma no Meco e duas entre as praias da Califórnia e do Ouro — estas realizadas uma vez por semana, nos meses de Verão, num “contexto turístico-cultural”, através de uma parceria com a Câmara Municipal de Sesimbra, uma vez que os areais se encontram em área protegida). Estes casos, defende o investigador, “obviamente que são para manter”. “Eu acho estranho é ainda haver discussão, acho que se devia apoiar”, reitera. “Hoje, o que eles [armadores] querem é manter a tradição de uma pesca que tem centenas de anos e que se está a perder. O objectivo deles não é ganhar dinheiro, é manter esta actividade, que faz parte do nosso património cultural e isso também é importante”, argumenta. “Se perdermos [esta pesca artesanal], daqui a dez anos ainda dizemos: ‘Lembro-me de ver. ’ Mas daqui a 50 anos já não está cá ninguém para explicar como era. ” Quanto às companhas com uma vertente económica mais acentuada, Miguel Pardal defende que também devem ser preservadas, pela importância socioeconómica que representam para aquelas comunidades. “Somos um país virado para o Atlântico, que apoia as pescas, portanto, toda a parte pesqueira deve ser apoiada, com as regras necessárias. ”O Ministério do Mar, no entanto, garante que “não está prevista uma discriminação positiva entre os vários tipos das artes”, uma vez que “reflectem a evolução da actividade nas diversas comunidades piscatórias”. Independentemente do caso particular, “trata-se de uma actividade comercial que obedece aos princípios fundamentais da Política Comum de Pesca e que pondera a sua vertente ambiental”. Em respostas enviadas por email ao P2, o ministério reconhece a “especificidade da arte-xávega”, referindo que esta é legislada tendo em conta “a necessidade de acompanhamento científico e o interesse socioeconómico da mesma”. Como tal, o Governo assume que “a recolha de dados científicos poderá justificar manter excepções ou melhorar o enquadramento legal”, “sempre com a devida base científica junto da União Europeia”. “[Todavia, ] não devemos fomentar ou promover expectativas que podem comprometer as medidas já adoptadas, justificando um equilíbrio entre a sustentabilidade social [sic]”, acrescenta-se. Questionado sobre que futuro vê para esta arte de pesca tradicional em Portugal, o Ministério do Mar afirma que o “essencial” é “garantir que a actividade cumpre os requisitos da política de sustentabilidade que pretendemos para o sector, incluindo o controlo”. A Meia Praia, em Lagos, é a única onde ainda se realiza esta arte de pesca na região do Algarve, com duas licenças atribuídas. “A outra é de uns tipos da Caparica, que ainda vieram a tempo de comprar uma das licenças que existiam ali ao fundo, no Bairro 25 de Abril. Já não pescavam, mas ainda tinham a autorização”, conta José Santos. Ninguém nos conseguiu dizer o nome do armador, nem há quanto tempo esta segunda companha opera em Lagos. Certo é que tem sido contestada pela população local. “Em determinada altura, apareceu uma outra licença para o nosso território que utiliza meios mecânicos, à semelhança do que acontece por todo o país. Daí ter havido alguma reacção na altura e continuar a haver, porque as pessoas revêem-se sobretudo naquela que é tradicional”, afirma Joaquina Matos, presidente da Câmara Municipal de Lagos. “Aquela que a autarquia mais acarinha e tem apoiado é a tradicional”, reitera. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No final do ano passado, uma proposta apresentada pela presidente foi aprovada por unanimidade na autarquia. No documento, esta reconhecia “o valor histórico e patrimonial desta variante da pesca tradicional, defendendo a necessidade de apoio inequívoco da arte-xávega local”, recomendando ao Governo a “manutenção da licença artesanal” e a “revisão da legislação vigente sobre o assunto”. De acordo com Joaquina Matos, não há, porém, “pretensão de haver apoio monetário a esta actividade” por parte da autarquia. Apenas promoção nos diferentes órgãos de divulgação da câmara. Bruno Vieira há-de repetir várias vezes que aquilo que querem é “passar isto para turismo”, ainda que não saiba se é possível ou como. Na legislação actualmente em vigor, existe apenas uma brecha: “Mediante autorização prévia a ser requerida à Direcção-Geral das Pescas e Aquicultura (DGPA), poderão, a título excepcional e por razões de mostra etnográfica, ser levadas a efeito demonstrações da arte de xávega, sendo proibida a venda do pescado capturado, o qual apenas poderá ter por destino o consumo próprio dos promotores ou a entrega a entidades públicas ou instituições privadas de solidariedade social. ” José Santos, no entanto, quer continuar a poder vender peixe na lota, por muito pouco que seja. “Senão é trabalhar para aquecer, para molhar-me”, ri-se. Porque é que continua? “Algum dia há-de vir”, diz, sem desarmar o ânimo. “Pelo menos assim tenho uma ocupação. Até descanso melhor e tudo”, ri-se. Há dois anos, quiseram comprar-lhe a licença. Sabe que vale bom dinheiro para quem quer fazer da xávega profissão, com vários lances diários e recurso a tractores. “Vieram aqui dar-me 45 mil euros. ” Não aceitou. “Quando não puder, então vendo ou deixo as coisas na mesma, eles não me renovam a licença e parou tudo. ” Mas a esperança é que o filho ou o irmão mais novo lhe sigam os passos. E essa não desarma. “Eles continuam, eles continuam. A Secretaria de Pescas é que tem de os deixar. ” Quanto a José Santos: “Pode ser que me aguente aí mais dez anos. ” “Força há sempre. ”
REFERÊNCIAS:
O Sado encontrou as suas guardiãs
Cidália Nunes é pescadora desde que se recorda. Quase nasceu no mar, mas foi pela mão de uma bióloga marinha que começou a retribuir ao mar o tanto que ele lhe dá. O estuário encontrou as suas guardiãs. (...)

O Sado encontrou as suas guardiãs
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 10 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Cidália Nunes é pescadora desde que se recorda. Quase nasceu no mar, mas foi pela mão de uma bióloga marinha que começou a retribuir ao mar o tanto que ele lhe dá. O estuário encontrou as suas guardiãs.
TEXTO: É pela manhã bem cedo que se ganha o dia no mar. Mas, na Carrasqueira, a faina está parada e as redes recolhidas no interior das embarcações e dos armazéns do cais, construído sob estacas de madeira, esperam ser devolvidas à água. A maré baixa desvela os cascos das bateiras e barcas varadas no estuário do Sado. Mas nem por isso o corrupio é menor naquele porto. Ao longe, ecoa o tilintar de um martelo contra a madeira de um barco. Cidália Nunes, 62 anos, é pescadora desde que se lembra. Aguarda com a filha, Helena, a oportunidade de arregaçar as mangas ao trabalho que, naquele dia, é diferente do que costuma fazer na água. “Eu sirvo-me do mar, mas também lhe retribuo alguma coisa”, atira. É nas marés que “vazam bem” que as guardiãs do mar entram em acção. Quando se vai a água, o lixo envolto em lodo emerge no cais e conta a jornada dos pescadores. Cidália é uma das mulheres sadinas que, duas ou três vezes por semana, devolve ao oceano algo de si. E chama a comunidade a participar, mostrando como se pode cuidar das pradarias marinhas (a vegetação que se encontra debaixo de água). “Nós somos pescadores, mas nunca olhamos para as margens nem vemos a sujidade que se acumula”, considera. As guardiãs do mar, como ficaram conhecidas, são fruto de um projecto levado a cabo pela Ocean Alive, a primeira associação em Portugal dedicada à protecção do oceano. A bióloga marinha Raquel Gaspar, de 49 anos, é um dos rostos da cooperativa e do projecto. Há muito que se apaixonou pela região, mas cedo se apercebeu que teria de a proteger. A forma que encontrou de o fazer foi envolver as mulheres pescadoras no processo, através de programas de educação, de sensibilização e monitorização das pradarias marinhas. A iniciativa, que arrancou em 2016, pretende capacitar as pescadoras para serem guias marinhas em visitas de escolas ou de turistas, e serem agentes de sensibilização junto da população de pescadores e de locais que frequentam a zona. Em tempos em que já não se traz tanto peixe para terra, esta é também uma forma de dar outra fonte de rendimento a estas mulheres. Segundo diz Raquel, em três anos, estas pescadoras irão receber, no total, cerca de 20 mil euros. No fundo, Raquel quer valorizar o conhecimento que estas mulheres, algumas desempregadas, têm sobre o mar. Tal como acontece com Cidália, o objectivo é que elas sejam líderes de boas práticas nas suas comunidades. “As guardiãs têm dois tipos de compromisso com o projecto”, elucida a bióloga. “Há voluntárias que, basicamente, são simpatizantes e ajudam passivamente no dia-a-dia a transmitir boas práticas. Outras têm uma profissão no nosso programa”. Cidália é uma das guardiãs que recebe pelo seu trabalho na Ocean Life. Em breve será lançado um projecto-piloto com duas pescadoras da Carrasqueira, graças a um financiamento que conseguiram. “Vão ajudar-nos a mapear as zonas onde há pradarias para podermos avaliar o impacto do projecto”, explica Raquel. Cidália e o mar pertencem um ao outro. À mesa de sua casa, na aldeia de Possanco, a uns quilómetros da Carrasqueira, a pescadora não esconde como veio ao mundo. Ao lume, aquece a água para cozer o peixe por si pescado. “Os meus pais trabalhavam no mar e a minha mãe estava grávida de mim e começou a sentir contracções no barco”. Ao regressar do mar, a mãe terá apenas tido tempo “de pôr os pés em casa” e de dar à luz a menina que um dia também seria filha do mar. Cidália seguiu destino idêntico. Já grávida, e durante a faina nocturna, começou a sentir contracções por volta das 22h30. Os filhos nasceram-lhe praticamente no mar. “Foi voltar do mar e tê-los”, confessa. Sobre as guardiãs do mar diz que, há uns anos, nunca pensaria em juntar-se à campanha. Foi a filha Helena que a puxou. Quando está em acções de recolha de lixo vai encontrando de tudo. “Plásticos, vidros e de tudo um pouco”. Passado uns tempos ganhou-lhe o gosto e já não quer outra coisa. “É um projecto que tem muito que se lhe diga. E muito cansativo. Às vezes encontramos pessoas que são um bocadinho avessas, e nessas alturas temos que trabalhar essas pessoas. Alguns já vão aceitando”. No fim, Cidália sente que realmente exerce um papel de mudança e consciencialização nas pessoas com quem se cruza. Com o esforço, garante, “já se sente muita diferença. Muitas reconhecem o que está certo e errado e temos o gosto de ver a compreensão das pessoas e ver que tudo está a melhorar”, concluiu, não sem antes esboçar um sorriso. O marido, que também é pescador, não tem pudor em ajudar. Cândido Nunes, de 68 anos, corta redes de pesca ali deixadas nas margens do cais, por colegas de profissão, como se fossem manteiga. Ele e um amigo da família, Joaquim Bravo, de 58 anos, de facas em riste, enchem sacos do lixo com essas redes e todos os artefactos poluentes que vão encontrando. Raquel transborda afecto pelo estuário e pela sua vida marinha. Ao caminhar no passadiço de madeira que tem como pano de fundo a Lisnave e a outra margem de Lisboa, inspira e contempla o ambiente em seu redor. Sente que é ali que tem de estar, ainda que as circunstâncias do seu trabalho nem sempre lhe permitam envolver-se em todas as etapas. Os programas de educação e sensibilização marinhas geram rendimento para a Ocean Life, mas esse não é o único aspecto positivo que sai desta iniciativa. Tem-se assistido a uma transformação: “O que eu tenho visto é, sobretudo, o que elas transmitem às outras pescadoras”, admite Raquel Gaspar. De momento, existem 15 guardiãs em diferentes zonas do Estuário do Sado, mas o plano é alargar o número de pescadoras e a área de actuação. “Numa próxima fase queremos actuar sobre outras ameaças marinhas”. As âncoras das embarcações, que destroem a vegetação marinha e a pesca destrutiva são prioridades para o futuro, mas para isso é necessário conseguir financiamento que sustente a execução das medidas. Em 2017, Raquel recebeu o prémio Terre de Femmes, da Fundação Yves Rocher, que todos os anos distingue mulheres com projectos na área do ambiente. O prémio permitiu-lhe avançar com as ideias, mas nada está assegurado. Para a bióloga, há que continuar a trabalhar sempre com vista a preservar um habitat tão fundamental como as pradarias marinhas. Futuramente quer criar “mensageiros para os grandes valores das pradarias enquanto mitigadoras das alterações climáticas” envolvendo alunos e professores de vários níveis de instituições de ensino. Enquanto o projecto vai crescendo, as guardiãs do mar assumem o compromisso de limpar o estuário todos os meses. Das areias retiram-se metais e plásticos, vidros esquecidos e detritos libertados por turistas e locais que ainda não estão consciencializados para importância de cuidar do mar e do que está ao seu redor. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “O tempo passa para trás das nossas costas”, afirma Cidália perspicazmente mas, por outro lado, o seu dever para com o mar está a ser cumprido. Do tanto que ele lhe dá, Cidália ensina as gentes a tratá-lo um pouco melhor.
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Palavras-chave filha educação comunidade mulheres
Aves têm nova árvore da vida sustentada na genética
O que faz que uma ave seja uma ave? Quando é que as aves perderam os dentes? Qual a relação entre e o canto das aves e a fala humana? Uma análise genética sem precedentes dos genomas de dezenas de espécies de aves permitiu vislumbrar respostas — e algumas delas são surpreendentes. (...)

Aves têm nova árvore da vida sustentada na genética
MINORIA(S): Animais Pontuação: 10 | Sentimento 0.136
DATA: 2015-10-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: O que faz que uma ave seja uma ave? Quando é que as aves perderam os dentes? Qual a relação entre e o canto das aves e a fala humana? Uma análise genética sem precedentes dos genomas de dezenas de espécies de aves permitiu vislumbrar respostas — e algumas delas são surpreendentes.
TEXTO: As aves são os únicos descendentes vivos dos dinossauros. Há 66 milhões de anos, quando um cataclismo global acabou com a esmagadora maioria dos dinossauros – e praticamente com quase toda a vida na Terra –, algumas linhagens de aves conseguiram sobreviver. A seguir, um autêntico “big bang” evolutivo daria origem às mais de 10. 000 espécies de aves que hoje povoam o nosso planeta. Esta é uma das conclusões a que chegou uma colaboração científica internacional que redesenhou, com base no ADN de dezenas de espécies de aves, a árvore da vida dos vertebrados alados. Um manancial de primeiros resultados já deu origem à publicação simultânea de 28 artigos científicos na quinta-feira, oito dos quais na revista Science e o resto distribuído por vários outros jornais científicos. Outros ainda estão em curso de revisão e deverão ser publicados em breve. As espécies de aves actuais são muitas e muito diversas – algumas medem poucos centímetros de altura (como os colibris) e outras quase três metros (como as avestruzes); têm penas de todas as cores e feitios; vivem em todo o tipo de habitats, comem todo o tipo de alimentos. Umas cantam, outras não – e há ainda as que aprendem a imitar qualquer som, da voz humana às motosserras…Isto tem dado grandes dores de cabeça aos especialistas que tentam construir a árvore genealógica das aves. As características anatómicas e morfológicas das diferentes espécies não chegam nem para começar a desemaranhar os caminhos evolutivos que desembocaram nesta espectacular biodiversidade. E mais: como os estudos genéticos que têm sido feitos para tentar consolidar uma visão global da evolução das aves apenas tomavam em conta umas dezenas de genes específicos, só contribuíam para aumentar a confusão, gerando muitos resultados contraditórios. Porquê? Precisamente porque as aves evoluíram e diversificaram-se tão depressa que as várias linhagens não se conseguiram diferenciar o suficiente, a nível genético, para ser possível distinguir os diversos ramos da árvore só com base num punhado de genes, explica em comunicado a Universidade Estadual do Luisiana (EUA), cujos cientistas participaram no trabalho. Mas agora, um consórcio internacional que integra mais de 200 investigadores oriundos de mais de 80 instituições em 20 países (incluindo Portugal), analisou a totalidade do genoma de dezenas de espécies de aves modernas. E ao fim de quatro anos, produziu a tão procurada nova árvore genealógica. Tudo começou em finais de 2010, quando os três “pais” do consórcio – Guojie Zhang, da Universidade de Copenhaga (Dinamarca) e do Instituto de Genómica de Pequim (China); Tom Gilbert, da Universidade Curtin (Austrália) e do Museu de História Natural da Dinamarca; e o neurocientista Erich Jarvis, da Universidade Duke e do Instituto Médico Howard Hughes (EUA) – decidiram utilizar a capacidade sequenciação genética das técnicas actuais para atacar frontalmente o problema da genealogia aviária, “uma das questões mais inacessíveis da biologia evolutiva”, como notou Gilbert numa teleconferência de imprensa organizada pelos editores da Science, dois dias antes da publicação dos artigos. “Quando Tom Gilbert e Guojie Zhang me convidaram a juntar-me a este esforço para tentar resolver a árvore genealógica das aves através da análise da totalidade do genoma, aceitei com entusiasmo”, acrescentou Jarvis. Três séculos de cálculosO que fizeram as equipas do auto-designado Consórcio Filogenómico das Aves (Avian Phylogenomics Consortium)? Compararam os genomas de 48 espécies de aves – corvos, patos, falcões, periquitos, íbis, pica-paus, águias, corujas e muitas outras – que representam os principais ramos das aves modernas. Apenas três desses genomas (galinha, peru e mandarim) já existiam; 45 foram sequenciados pelo próprio consórcio. Diga-se ainda que, para obter o ADN de cada espécie, os autores recorreram a amostras congeladas de tecido de aves recolhidas e conservadas, ao longo dos últimos 30 anos, por vários museus de ciências naturais do mundo. E assim, os cientistas obtiveram uma nova árvore genealógica que integra, com um nível de pormenor sem precedentes, a complexa história evolutiva inscrita no ADN das aves – e que fornece resultados coerentes. Mas não foi fácil. E do ponto de vista técnico, o feito foi, no mínimo, hercúleo – exigindo o desenvolvimento de novas técnicas de cálculo. Sem ir mais longe, basta dizer que foi preciso tratar uma quantidade astronómica de dados, relativos a cerca de 14. 000 sequências genéticas para cada espécie de ave. “Para 50 espécies, o número de árvores da vida possíveis é maior do que o número de átomos do Universo”, salienta por seu lado em comunicado Andre Aberer, do Instituto de Tecnologia de Karlsruhe (Alemanha), que participou na análise computacional dos dados. E entre essas árvores todas, é preciso encontrar uma que explique os dados fósseis, anatómicos e outros de forma plausível.
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Entidades EUA