A década em que se voltou a exigir democracia na rua
“Movimento das praças” ou “novos novos movimentos sociais”. Seja qual for o nome que se lhe dê, algo de novo aconteceu nesta década, um novo ciclo de protestos herdeiro do Maio de 68, mas distinto dele. Sistemas partidários foram estilhaçados, novas soluções governativas encontradas. “O Manifestante” veio para ficar? (...)

A década em que se voltou a exigir democracia na rua
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: “Movimento das praças” ou “novos novos movimentos sociais”. Seja qual for o nome que se lhe dê, algo de novo aconteceu nesta década, um novo ciclo de protestos herdeiro do Maio de 68, mas distinto dele. Sistemas partidários foram estilhaçados, novas soluções governativas encontradas. “O Manifestante” veio para ficar?
TEXTO: Maio de 1968, Paris: “Sejam realistas, exijam o impossível. ” Março de 2011, Lisboa: “Inevitável é a tua tia. ” O Maio de 68 morreu ou está mais presente do que nunca como referência? Nunca teve a importância que muitos lhe atribuíram? Hoje, revoltamo-nos mais ou menos? Há 50 anos exigíamos direitos cívicos e agora só nos manifestamos por questões materiais? O que nos revolta faz-nos sair à rua ou grande parte do activismo social acontece online?As respostas não são consensuais. Se ainda há muitos que na academia se dedicam aos “longos anos 60” e ao ciclo de protestos que começou na década anterior e só terminou na seguinte, do México ao Paquistão, também já há quem publique investigações sobre a década em que vivemos e a vaga de movimentos sociais e activismo a que assistimos. Movimentos que começaram por responder a uma crise da banca e da dívida e acabaram a pôr em causa a democracia representativa, o capitalismo ultraliberal e a forma como nos organizamos em comunidade, comunicamos, nos movimentamos ou comemos. Era de novo Primavera e 40 anos depois de 68 voltou a ser exigido o impossível. Da Avenida Habib Bourguiba de Tunes às Portas do Sol de Madrid, da Tahrir do Cairo ao Occupy Wall Street, passando pela Avenida da Liberdade e pelo Rossio. Em 2008, falia o banco de investimentos Lehman Brothers. As consequências que muitos recusaram antecipar não demoraram. Bolhas imobiliárias resultaram em casas abandonadas, hipotecas por pagar; um sistema de bolsa com demasiada imaginação e ganância e instituições financeiras foram resgatados com o dinheiro que os governos passaram a dizer não dispor para manter as garantias de um Estado social. Revoltas contra ditaduras desencadeadas pela mistura explosiva de desfavorecidos desesperados e classe média politizada e mantida à margem das decisões políticas. Tudo ajudado pela rapidez com que as redes sociais permitem comunicar, mobilizar e difundir imagens de repressão ou protesto. Uma e outra vez a mesma descrição: “Saí à rua a medo, primeiro não vi quase ninguém, pensei que era um fracasso, depois começaram a aparecer pessoas vindas de todos os lados…”A frase é de Lina ben Mhenni, activista tunisina, mas podia ser do português João Labrincha ou de um dos primeiros espanhóis a acampar no centro de Madrid. É quase igual à que ouvimos em conversa com Alaa al-Aswany, um dos grandes cronistas da revolta egípcia, roubada uma e outra vez pelos militares. Aswany falava do dia em que um milhão fez transbordar a Praça Tahrir do Cairo. Labrincha tem na cabeça o 12 de Março de 2011, data da primeira de várias manifestações, as maiores em Portugal desde o 1. º de Maio de 1974. Para alguns, este ciclo está terminado – outros, como a filósofa Marina Garcés, nascida em Barcelona e a ensinar em Saragoça, olham para o mundo “em insurreição permanente”. Graeme Hayes, investigador na Universidade de Aston, Reino Unido, especialista em movimentos sociais e desobediência civil, acredita pelo menos que os movimentos nascidos do combate às políticas a que chamamos de austeridade se transformou mas permanece de boa saúde e pode ser “remobilizado” assim que for preciso. E esse momento chegará, inevitavelmente. “As contradições do capitalismo não foram resolvidas, as políticas de austeridade não acabaram com os problemas e a crise ainda cá está, latente. Em breve, voltaremos a ser pressionados”, defende Hayes em conversa com o P2. “As críticas à natureza da democracia representativa deixaram marca e foram importantes. ” Hayes já publicou vários artigos sobre os “regimes de austeridade” e o “movimento das praças”. Em Agosto, chegará às bancas o livro Breaking Laws: Violence and Civil Disobedience in Protest, de que é co-autor com as francesas Isabelle Sommier e Sylvie Ollitrault. Se o sociólogo Alain Touraine descreveu aquilo a que se assistiu nos “longos anos 60” – e de que 68 se tornou símbolo – como “novos movimentos sociais”, já há quem chame “novos novos movimentos sociais” ao que vivemos desde o fim da década passada, início da actual, explica Guya Accornero, especialista em sociologia dos movimentos sociais do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE que não gosta especialmente deste termo. “Maio destruiu a hipocrisia moral”, sentenciou um dos líderes da insurreição original, na Universidade de Nanterre, Daniel Cohn-Bendit, que chegou a líder do Grupo dos Verdes no Parlamento Europeu. Para o pai de Antoine Guégan, Gérard, que sem ser estudante acabou quase por acaso a ocupar o campus de Sorbonne-Nouvelle, Censier, foram semanas a falar de “sonhos” e “utopias”, com “toda a gente convencida de que estava a acontecer algo impressionante”. Antoine, 27 anos, a mesma idade que o pai tinha em 68, acaba de passar três semanas no mesmo campus, atrás de barricadas, numa ocupação em protesto contra a nova lei do ensino superior que a polícia antimotim interrompeu a 30 de Abril, um dia antes de Maio. Para este professor em Censier, aluno de doutoramento noutra universidade, pelo menos em França, “a maioria dos estudantes rejeita a aproximação ao Maio de 68”. Acima de tudo, diz, trata-se “da incompreensão face a figuras essenciais do Maio de 68, como Daniel Cohn-Bendit ou Romain Goupil, que se tornaram cães de guarda de [Emmanuel] Macron”. E da convicção de que “a geração de 68 é incapaz de compreender o mal-estar e o descontentamento que atravessa a nossa juventude”. Os jovens que hoje ocupam universidades em Paris inspiraram-se “em alguns dos seus modelos de acção”, tentando, ao mesmo tempo, “afastar-se desta herança pesada”. Quais eram os gritos de 68? Liberdade face a uma sociedade autoritária e conservadora, combate contra as desigualdades e um mundo onde o consumo se impunha como objectivo último, crítica da democracia representativa (com o ideal da democracia permanente ou participativa) e desconfiança face ao poder, a afirmação da autonomia do indivíduo… Solidariedade também, com os operários que em Janeiro tinham erguido as primeiras barricadas e que acabariam por ultrapassaram os nove milhões em greve. E igualdade, não só entre classes mas entre povos. “Somos todos judeus alemães”, gritou-se numa das maiores manifestações de Maio, em Paris, a fazer lembrar o “Somos todos refugiados” dos últimos anos. “Ninguém se apaixona por uma taxa de crescimento”, foi outro dos slogans de 68, a lembrar que os que o fizeram, como os que saíram à rua e ocuparam as praças na presente década, se inscrevem numa história da mobilização social. Que por mais que alguns queiram, o presente bebe do passado e aprende com ele, nem que seja para fazer diferente, para tentar ser mais consequente. Entre uma e outra década, desenvolveu-se o Movimento Antiglobalização ou Movimento de Justiça Global, o combate dos ambientalistas, reanimou-se o Movimento contra a Guerra e o cooperativismo, começaram a surgir iniciativas de economia social. O Maio de 68 também foi uma festa. No pico da crise, as ocupações de praças e as enormes manifestações, os movimentos antidespejo em Espanha ou as revoltas árabes tiveram mais de deprimente do que de festivo, com medidas frequentes a obrigar a um estado de reacção permanente, cargas policiais. . . Mas entre muitas lágrimas e mortos também houve fogo-de-artifício na Tahrir, entre perda de direitos e de qualidade vida, viram-se risos no 12 de Março e ateliers de dança no acampamento dos Indignados. Agora, pelo menos em Portugal, “respira-se melhor”, diz Labrincha. “Há menos fome, menos precariedade, existe uma janela de esperança. Continuamos a ter um desemprego enorme (mascarado) e muita precariedade, mas os pequenos avanços, como a actual solução governativa, ajudam a que haja um espírito menos pesado. Há mais alegria e as dinâmicas são mais de construção do que de contestação”, diz o activista que continua na Academia Cidadã, que co-fundou na sequência do protesto da “geração à rasca”, e se mantém envolvido em diferentes movimentos. Portugal, Espanha, Itália ou Grécia mudaram de forma fundamental nos últimos anos. Em Espanha, o Democracia Real Já! (“o futuro é agora”, gritava-se em 68) e os Indignados deram origem ao que hoje é o terceiro partido do país, o Podemos, de Pablo Iglesias, e as dezenas de movimentos cidadãos que lideram e participam em governos municipais e autonómicos – a eleição de Ada Colau, uma das mais conhecidas figuras da PAH, a Plataforma Anti-Hipotecas que paralisou centenas e centenas de despejos, para a Câmara de Barcelona, foi o expoente desta passagem do activismo à política. Ao mesmo tempo, o renascer da dinâmica de associações de bairros (criadas durante a ditadura) que a crise e o 15-M provocaram não morreu; independentemente do que se possa pensar do processo independentista catalão, sem essa dinâmica de civismo, o referendo ilegal de 1 de Outubro, fortemente reprimido pela polícia, não teria sido possível. Enquanto na Islândia se derrubaram governos e prenderam banqueiros, na Grécia, que sofreu como nenhum outro país europeu a dureza da austeridade, o sistema partidário entrou em colapso, mas o partido que foi farol de toda a esquerda antiausteritária, o Syriza, rapidamente se vergou perante a intransigência da troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional). Em Itália, depois de uma série de primeiros-ministros não eleitos – com o afastamento de Silvio Berlusconi por pressão de Bruxelas e a sua substituição por Mario Monti, no final de 2011, a representar o grau zero da democracia – caminha-se agora para um governo formado pelos mais votados e liderado por um partido populista e fascista, a Liga, em coligação com o Movimento 5 Estrelas, o partido antipartidos e antipolítica – expressão máxima no país do slogan “Não nos representam” do 15-M. O regresso do nacionalismo e do fechar de fronteiras a que assistimos em grande parte da Europa, como na eleição de Donald Trump, são tão consequências da crise como o Podemos, os movimentos Morar em Lisboa ou Stop Despejos! ou o Governo socialista apoiado pelo Bloco de Esquerda e pelo PCP. “Em Portugal, o impacto foi diferente do que em Espanha, onde a cultura de activismo é maior, o que tem que ver com a transição. Mas foi enorme. Sem 12 de Março e Que Se Lixe a Troika, não teria havido ‘geringonça’ e o país não teria o único Governo não austeritário da Europa”, sustenta Guya Accornero. A investigadora e professora lembra que entre os primeiros subscritores do Que Se Lixe a Troika já estavam políticos, como a vereadora da Habitação de Lisboa, Paula Marques. “O movimento integrou actores que dentro das instituições já defendiam e preparavam caminho para novas soluções de governo” – a sua concretização é a grande consequência. Mas Accornero aponta para movimentos relativamente novos, como o Habita e o Stop Despejos!, que “já fazem um trabalho incrível quando o direito à habitação está cada vez mais em risco”. Labrincha fala de um activismo que se abriu, saiu de Lisboa e do Porto, e se atomizou em movimentos que trabalham em diferentes áreas, chegando assim cada vez a mais gente. E sim, também ele, um dos organizadores do 12 de Março, acredita que sem esse dia o Governo actual nunca teria existido. Lembrando os obstáculos enfrentados por menos de meia dúzia de “putos mal chegados a Lisboa” até serem levados a sério e encontrarem pessoas como Raquel Freire e Sérgio Vitorino, especialmente activos no movimento LGBT, que acreditaram neles e, de certa forma, os “validaram”, Labrincha sabe que foi tudo muito rápido. O protesto foi organizado e promovido entre o início de Fevereiro e a data do tudo ou nada, mas na sua cabeça ficou “a sensação de meio ano de trabalho com poucas horas de sono”. O dia 12 de Março, a partida no Marquês de Pombal, as pessoas que chegavam à Avenida da Liberdade pelas laterais, aquela gigantesca massa humana mudou-o para sempre. “Foi o dia mais incrível da minha vida e um momento que recordo até hoje com muita emoção”, descreve. “Foi extraordinário. E foi o momento em que percebi que a minha vida seria dedicada ao activismo. Isso também trouxe um peso, uma responsabilidade, mas que eu tenho prazer em assumir. ”Sem o apoio de gente que não quis dar a cara, mas que os ajudaram a chegar à imprensa e a outros activistas, nada teria sido possível. “Mas também só tivemos o sucesso que tivemos por causa da nossa espontaneidade, por usarmos uma linguagem nova, sem vícios, por tudo o que nos fez ser e parecer algo realmente diferente”, analisa. Depois há o orgulho. Aos 27 anos, idade que tinha em Março de 2011, Labrincha sente que ajudou a “fazer a ponte entre as Primaveras Árabes e os protestos em Espanha”, que começariam em Maio, “ou os movimentos Occupy” em Londres, Washington e, com menos dimensão, em cidades de toda a Europa, ou, mais tarde, o próprio movimento do Parque Gezi, de Istambul. O que nos revolta hoje não é, afinal, assim tão diferente do que revoltava quem fez o Maio de 68. Faltam-nos as estruturas tradicionais, sindicatos e partidos, ganhámos as redes sociais e soubemos reinventarmo-nos. Mas, como lembra Antoine, “o contexto económico degradou-se e a nossa geração só conheceu uma sucessão de crises económicas, políticas, sociais e ecológicas, e é verdade que se instalou um cansaço geral face ao discurso permanente de crise”. Actualmente, e apesar desse cansaço, face “a políticas tão impávidas quanto insolentes e depreciativas em relação à juventude do país”, o movimento estudantil só pode crescer. Hoje, o que mobiliza os estudantes franceses é a lei “que visa excluir as classes mais desfavorecidas da universidade, permitindo ao Estado diminuir o número de estudantes e o orçamento para o ensino superior”. Isto num país que se habituou a ver a sua universidade como “lugar onde todos têm hipóteses de sucesso”. Para Antoine, prova da incompreensão dos políticos “é a repressão policial muito forte, uma violência” que leva os “estudantes a levantar o tom e a procurar novas formas de luta”. Ao mesmo tempo que “demonstra como a democracia francesa está doente”. Habitualmente, a repressão provoca uma escalada dos protestos. Aconteceu em Gezi, quando uma concentração numa cidade se alastrou a 60 províncias; em Atenas (onde foram mortos manifestantes logo em 2008); aconteceu durante algum tempo em Espanha; na Tunísia ou no Egipto. Em Lisboa chegou a haver cargas policiais. Mas a repressão também pode assustar, como a brutal resposta do regime sírio a protestos pacíficos travou movimentos de protesto noutros países árabes. “Se esta situação de força se mantém, eu deveria, para manter a República, tomar, de acordo com a Constituição, outras vias para além do escrutínio imediato do país [legislativas antecipadas]. Em todo o caso, por todo o país, e em seguida, deve organizar-se a acção cívica”, foi o discurso pronunciado na rádio pelo então Presidente Charles De Gaulle, citado por Laurent Joffrin no livro Maio de 68. Uma História do Movimento. Era 30 de Maio e nessa noite dezenas de milhares de gaullistas concentraram-se nos Campos Elísios. “A festa terminou”, escreve Joffrin. Ao agitar o fantasma da guerra civil, De Gaulle “levantou o tabu da morte humana”. “Ninguém até então tinha querido matar; ele fá-lo-ia, se necessário. O Maio de 68 não é uma luta de morte para ninguém. É uma insurreição do verbo. […] Os revolucionários de Maio estão dispostos a tudo menos à verdadeira revolução”, escreve. Na última década morreu-se muito. Na Tunísia, no Egipto, na Síria, no Iémen, na Turquia, mas também na Grécia onde houve mortes às mãos da polícia mas também de frio ou fome. Em Barcelona, nos acampamentos dos Indignados, houve gente a perder a vista com balas de borracha disparadas pela polícia, o que na Tahrir sucedeu com dezenas de activistas e agora voltou a acontecer com uma pessoa, no referendo de 1 de Outubro, na capital catalã. O movimento independentista dos últimos anos que provocou a maior crise política em Espanha desde a transição e a detenção de inúmeros dirigentes políticos acusados de insurreição não se enquadra no movimento antiausteridade ou nos protestos das praças. Mas foi a crise, aliada à descrença no Governo central, que o alimentou. Os mesmos motivos, exacerbados por denúncias de corrupção, má gestão e impunidade que levaram ao nascimento do 15-M e contribuíram para as revoltas que começaram no Magreb. O que a maioria dos catalães quer é o direito a votar sobre o seu futuro político. Claro que nada é assim tão simples. O que alimenta este desejo é a possibilidade de um sonho, de começar de novo, de sentir que tudo é possível, como em 68 ou em Janeiro de 2011 na Tunísia. “O Maio de 68 foi vivido por muitos como o momento zero de choque cognitivo: ‘Tudo é possível’”, diz Accornero. Sobre a Catalunha: “Julgo que isto acontece em momentos em que as pessoas deixam de confiar nas instituições e não há nenhuma força que as mantenha de pé. São momentos de crise, ruptura, incerteza e grandes expectativas. Se nós não reconhecemos as instituições, estas sofrem um abalo. ” Em democracia, as estruturas precisam na nossa confiança para se legitimarem. Ora, muitos catalães deixaram de reconhecer Madrid. Mas a história desta década faz-se precisamente de contestação da autoridade, das instituições, da ideia de inevitabilidade que os políticos, um pouco por todo o mundo, tentaram vender às suas populações. Na Europa e nos Estados Unidos, “desresponsabilizando-se e cedendo o seu poder às grandes corporações e às instituições financeiras, aos mercados”, diz Graeme Hayes. Entretanto, como sublinha Labrincha, o estigma que ainda sobrevivia sobre a ideia de activista ou activismo começou a desaparecer, “apropriado até pela própria publicidade” ou “legitimado”, como lembra Accornero, pela escolha da revista Time para Pessoa do Ano, em 2011, “O Manifestante”. Ao mesmo tempo, defende Hayes, “a desobediência civil, uma técnica de protesto não violento que permite a pequenos movimentos serem mais eficazes e visíveis”, também começou a ser vista cada vez por mais gente como “legítima”, uma forma de sublinhar “que é o próprio Estado que está a abusar da lei”. Em Espanha, isso foi uma constante, das tentativas para impedir despejos executados por polícias aos movimentos criados para recusar pagar um novo imposto, o “euro por receita” (que a Justiça acabaria por considerar inconstitucional), aos médicos que recusaram cumprir a lei que os impedia de atender pessoas em situação irregular. Com consequências como sentenças judiciais a anular leis, juízes a procurarem formas criativas para não fazerem cumprir leis injustas (e contrárias aos direitos humanos), desobedecer passou a ser visto como uma forma de defender a democracia. A desobediência civil, nota Hayes, concretiza-se quase sempre por uma “ocupação de espaço, um reclamar do espaço público, mostrando que se tem legitimidade para o fazer e produzindo diálogo nesse processo”. Trata-se de uma técnica muito “tangível” e que “muitas vezes leva à detenção, o que obriga os envolvidos a explicar-se publicamente” e assim promover a sua causa. Olhando para a desobediência como “uma forma legítima (porque não é violenta) mas de alto risco de praticar activismo”, Hayes lembra que quem o faz “inscreve a sua própria história noutra, que remete para Ghandi e Martin Luther King”. A ocupação do espaço público, a conquista das praças, “é uma forma de dizer ‘isto pertence-nos’”. Face a uma democracia que perdia o demos, “o povo”, o povo recuperou a agora. As decisões importantes nas Portas do Sol eram tomadas por votação de braço no ar, na Tahrir chegaram a organizar-se consultas em urna, na Academia Cidadã tudo se decide por consenso. Accornero fala dos limites de um ciclo de protestos transnacional (e não internacional) em que os temas globais se unem às preocupações locais. Apesar da partilha de experiências e modos de actuação, é difícil pensar num movimento unido em torno de um tema essencial. Antoine também defende que, apesar de haver “um movimento global, é difícil para já antecipar uma convergência de lutas de um ponto de vista mundial”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Hayes lembra que o que de bom saiu da crise de refugiados na Europa foi a criação de um activismo transnacional, com novas ONG e activistas “a perceberem que o Estado-nação não era a forma ideal de luta”. A Academia Cidadã, com sede em Lisboa, integra o Fórum Cívico Europeu que “faz lobby junto dos eurodeputados e da própria Comissão Europeia em temas como políticas de habitação ou a necessidade de democratizar a própria UE e abrir as instituições europeias à participação cívica”. E se Hayes acredita que o “movimento das praças” está aí para ser remobilizado a qualquer momento, Labrincha deixa um aviso: “Imagino que um próximo Governo mais conservador em Portugal deva ter medo. Agora, há raízes e bases que não tínhamos. No momento em que voltar a ser preciso reagir, isso vai acontecer com muito mais força e foco. ” Entretanto, pelo menos na Catalunha, onde o último governo eleito está entre a prisão e o estrangeiro, vai continuar a gritar-se: “As ruas serão sempre nossas. ”Brevemente, em Bruxelas, no Museu da História Europeia, passarão a estar expostos alguns cartazes do 12 de Março, conta Labrincha. Talvez lá vá parar aquele onde se lia “Inevitável é a tua tia”, repto claro e directo aos políticos para voltarem a fazer aquilo que os eleitos deles esperam, decidir, fazer opções ou, simplesmente, fazer política.
REFERÊNCIAS:
Partidos PCP
Extremo ocidental: Na praia, sem nada
De Caminha a Sagres, é possível viajar quase sempre à beira-mar. Durante cerca de 800 quilómetros, até Setembro, vamos percorrer a costa ocidental portuguesa, com uma moto, uma tenda e um bloco de notas. (...)

Extremo ocidental: Na praia, sem nada
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento -0.06
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: De Caminha a Sagres, é possível viajar quase sempre à beira-mar. Durante cerca de 800 quilómetros, até Setembro, vamos percorrer a costa ocidental portuguesa, com uma moto, uma tenda e um bloco de notas.
TEXTO: Havia duas maneiras de fazer esta viagem: de Caminha a Sagres, ou de Sagres a Caminha. A escolha era totalmente livre, parecia-me. Mas logo me fizeram ver que não era bem assim. Seria estranho avançar do Sul para o Norte. Por alguma razão, o normal seria começar no Minho e terminar no Algarve, disseram-me. Por alguma razão, em Portugal, quando alguém parte, parte para sul. Não sei se esta lógica se funda nos habituais trajectos de férias, nos vectores dos fluxos migratórios das últimas décadas, ou nas pulsões ancestrais da Reconquista, mas a verdade é que há algo de libertador no acto de rumar a sul. Quando se progride no terreno, sente-se que cada etapa é uma vitória, uma ascensão a esferas mais limpas e puras. Há um despojamento, um abandono de bagagem, à medida que avançamos para o meridiano, que no entanto é uma miragem que se afasta. O que vem a seguir é sempre experimentado como uma espécie de recompensa. A cada cem quilómetros entramos num novo círculo, pleno de características, marcas específicas inconfundíveis, ainda que ilusórias, definidas pela sua posição geográfica relativa e a direcção de onde se provém. É assim que, a partir de Santa Cruz, nos sentimos chegar ao Sul. A paisagem altera-se, faz-se mais árida e plana, a luz torna-se mais clara. Seguindo pela Estrada Nacional 247, junto às arribas de Ribamar e da Ericeira, parece no entanto ter-se entrado numa zona de transição. É uma área de excepção, diferente, com personalidade de oásis, que liga, ainda que numa estranha atitude de ruptura, os pinhais e as dunas do Norte com as planícies arenosas do Sul. Aqui, ao contrário de quase toda a orla costeira portuguesa, a terra chega verde até ao mar. Há campos agrícolas muito próximos das praias, vegetação densa e fresca cobre o dorso das falésias, que surgem em cortes abruptos, sem transições dunares, ou de plantas de zonas secas, como se o mar aqui tivesse chegado há pouco tempo. Faz lembrar, mais do que outras zonas do litoral português, as Rias Altas da Galiza, ou os tons contrastados da húmida costa cantábrica. É nestes caminhos traçados em terrenos altos, em que, de braços abertos, quase podemos tocar os campos de milho e a água, que nos sentimos seres de vários mundos, capazes de compreender o continente e o mar, a Europa e o Atlântico, e os seus nexos subtis e inquebráveis. A serra de Sintra cria e abriga este mundo de neblinas, e define-o como um pequeno “Norte”, por oposição ao “Sul” da Linha do Estoril. O cabo da Roca marca a divisão. A praia da Adraga, a Praia Grande e a Praia das Maçãs, tal como a Ericeira e todas as estâncias a norte da serra, são húmidas e ventosas, e inauguram até os seus dias de Verão com densos nevoeiros. Se obedecermos ao percurso ribeirinho, saindo da EN246 para as praias de Sintra, e daí tomar a estrada da montanha que vai ao cabo da Roca, desce pelas aldeias da Azóia e da Atalaia até ao Guincho, e daí até Cascais, pode quase sempre observar-se a mudança climática a olho nu. Descendo pela Malveira da Serra, é frequente acontecer sairmos de uma nuvem, como quem aterra numa superfície com luz própria. Depois, se olharmos para trás, lá está a aura de fumo sobre a serra, a nuvem endémica e espessa que nos faz acelerar convictamente para sul. A marginal que liga Cascais a Lisboa é um universo à parte, com os seus superlotados bares de praia, os seus hotéis de luxo e apartamentos de milhões de euros. Também isto contribui para que olhemos a zona como um outro “Norte”, em relação ao “Sul” que é a Costa de Caparica, o Meco e Sesimbra. Nestes raciocínios subjectivos, a serra da Arrábida funciona como a némesis da serra de Sintra. Se esta invoca atmosferas góticas do Norte da Europa, aquela é toda Mediterrâneo, Grécia e Palestina. O percurso a seguir é pela Ponte 25 de Abril, chegando à Costa de Caparica por Cacilhas e Cova do Vapor (ou, em abreviatura preguiçosa, pela auto-estrada directa para a Caparica). Se exceptuarmos o interregno constituído pelo eixo Sintra-Cascais, todas estas praias a sul da Nazaré, designadamente Santa Cruz, Ericeira e Caparica, projectam uma imagem de desleixo, caos urbanístico, falta de estruturas de desporto e veraneio, incúria das autoridades municipais, má qualidade das construções. Que diferença entre estas praias da zona de Lisboa e as de Esposende, Vila do Conde, Francelos, Miramar, Espinho ou Figueira da Foz. Neste capítulo, descer a EN246 depois da Estrada Atlântica da Costa de Lavos significa passar da civilização para a barbárie, e a libertação, claramente, consiste em rumar a norte. A estrada que une a Costa de Caparica à Fonte da Telha dá acesso a praias incríveis, de areais imensos e dunas, ligados sem interrupção. É uma zona ambiental protegida, pelo que não há construção para além dos bares de praia. Mas existe o sinistro parque de Campismo da Caparica, pertencente ao Clube de Campismo de Almada, onde milhares de pessoas vivem em “alvéolos” pegados uns aos outros como num campo de refugiados, e há todo o bairro clandestino da Fonte da Telha. Aqui, em plena zona protegida das Arribas da Caparica, há centenas de casas e barracas, terrenos com caravanas, construções em tijolo e chapa, e até mansões com piscina. Os terrenos ocupados e apropriados são depois vendidos, trocados, aumentados. Há quem vede um espaço, o atafulhe de roulotes e tendas e o arrende à semana, ao mês ou ao ano, a turistas no Verão, ou a novos moradores, expulsos de várias regiões pelo desemprego e a crise. Desde uma série de demolições ocorridas em 1982, as autoridades resolveram deixar em paz os habitantes do bairro da Fonte da Telha, por não ter solução para eles. António Amorim, presidente da Associação de Moradores da Fonte da Telha, e uma espécie de autoridade suprema e informal do bairro, disse-me que está prevista para 2017 uma nova acção na urbanização clandestina, decorrente da aprovação no novo Plano de Pormenor para a zona. Até lá, só pede que asfaltem a única estrada de acesso, para que a “povoação” não viva permanentemente envolvida em poeira. “Aqui tudo é ilegal”, diz ele. “Vivemos com uma espada em cima da cabeça. Nós não mandamos nada. Um ministro pode vir aqui e dar ordem para demolir tudo no dia seguinte. Mas isso não impede as pessoas de tentarem melhorar as suas casas e as suas condições de vida. Por isso fazem obras, prolongam os seus alojamentos, para receberem novos familiares e amigos, que precisam. Mas não são pessoas de fora. São apenas as velhas famílias de pescadores desta terra, e os seus filhos e famílias, que vão crescendo. ”Vivemos com uma espada em cima da cabeça. Nós não mandamos nada. Um ministro pode vir aqui e dar ordem para demolir tudo no dia seguinteHá anos, esta Comissão de Moradores teve alguma força, contactou as autoridades, informou os media. Agora está em decadência. “Os jovens não querem saber de nada, não se reúnem connosco, para resolver os problemas”, diz Amorim, que tem 82 anos e é dono do enorme restaurante Amorim, que começou por ser uma barraca. “Já não conseguiremos resolver nada. Isto não tem solução, por causa das autoridades da zona protegida. A gente desse gabinete não tem nenhuma compreensão pelo que se passa aqui. Querem saber da natureza, mas não querem saber das pessoas. Por isso isto não vai ter nenhuma solução. ”Há anos, um bem-sucedido empreendedor do bairro começou a construir um gigantesco palacete na encosta, decorado com uma colossal escultura de uma ave (talvez uma gaivota, ou uma águia) saindo da parede central. Até a Câmara de Almada, que nunca faz nada quanto às construções que nascem todos os dias, parece ter achado que aquilo era demasiado, e embargou a obra. Resta agora uma ruína em tijolo e cimento, com o enorme o pássaro de asas abertas, em frente do mar. Em poucos lugares do país é tão evidente o contraste entre o esplendor da natureza e a miséria humana. Só muito mais à frente se recupera a harmonia. Só após o estuário do Sado, depois da travessia no ferry-boat para Tróia, seguindo ao longo da costa da Comporta, voltamos a ter ordem e beleza, talvez porque as barreiras naturais reservaram estas regiões para os ricos, ou os muito pobres. A pressão urbana ficou detida nas escarpas da Arrábida, que deixaram para trás a luta pela sobrevivência, a lei da selva, o desespero da concorrência pelos bens escassos, e abrem o caminho para, agora sim, o verdadeiro Sul. Mais uma ilusão produzida pela viagem, agora formada por solidão, planície, casas caiadas, sombras definidas e mar turquesa. O Sul. Uma doçura que só tem equivalente nas praias a norte de Viana do Castelo. Mas aqui há mais distância à nossa frente. Teremos a imensidão da costa alentejana e vicentina, podemos deslizar em paz pelo Sul, o grande Sul português. É um milagre que tudo isto tenha sobrevivido. Onde estão os hotéis hediondos, os prédios encavalitados, as rotundas e os centros comerciais? Nada. Há apenas o necessário, as estruturas que permitem viajar, comer, dormir, habitar. Ou talvez isto seja um exagero, apenas mais uma ilusão do viajante. A sensação, que a moto oferece, de planar sobre uma terra primordial, limpa e cristalina. Tudo isto nos reconcilia com o que ficou para trás. Recobramos a força, aceitamos, com uma espécie de indulgência criativa, o país a que pertencemos, porque existe esta beleza preservada. Nada está perdido, enquanto for possível conduzir uma moto pela estrada a sul de Sines, por São Tormes, ondulando pelas curvas até Porto Covo. Aí, na aldeia que se popularizou e cresceu por efeito de uma canção, encontramos o equilíbrio urbanístico próprio das povoações alentejanas, mesmo quando se trata de construções novas e modernas. Quem, vindo de todas as regiões, escolhe Porto Covo para passar férias, parece animado por uma filosofia, provavelmente extraída do poema de Carlos T. “Venho para cá todos os anos”, diz Carlos Pereira, 48 anos, professor do Porto. O naturismo ajuda a transformar as relações sociais. Ao colocar os preconceitos de lado, elas concentram-se no que é mais verdadeiro e importante. O naturismo é uma grande arma contra a hipocrisiaCarlos, a mulher e a filha vão muitas vezes para a Praia do Salto, uma das várias entre as falésias a norte da povoação. Situa-se entre as praias do Cerro da Águia e Cerca Nova, tem acesso por uma longa escadaria de madeira, e é uma das sete praias oficialmente nudistas em Portugal. Destas, não há nenhuma a norte do Meco (junto a Sesimbra) e da Bela Vista (ao lado da Fonte da Telha). A maioria das praias nudistas, ou naturistas, situa-se na costa alentejana e algarvia. Poucos quilómetros a sul da Praia do Salto, encontramos a das Adegas, contígua à praia de Odeceixe. Ao contrário de todas as outras, que são frequentadas maioritariamente por estrangeiros, jovens “alternativos” e casais acima dos 60 anos, a do Salto é essencialmente uma praia familiar. As pessoas provêm de várias regiões do país, mas conhecem-se, na sua maioria, porque vêm para cá todos os anos, e têm a consciência de pertencerem a um determinado grupo e a um movimento. “Para nós, o naturismo é uma filosofia de vida”, diz Carlota, uma designer de 36 anos que vive na zona de Lisboa. Veio com o marido e os dois filhos, ficará alguns dias, antes de partirem para as outras praias nudistas, ao longo da costa, rumo a sul, até à da ilha de Tavira. “Além da sensação de liberdade, da saúde e bem-estar físico que proporciona, acreditamos que o naturismo ajuda a transformar as relações sociais. Há um convívio diferente entre as pessoas. Ao colocar os preconceitos de lado, elas concentram-se no que é mais verdadeiro e importante. O naturismo é uma grande arma contra a hipocrisia. ”A meio da tarde, a praia está cheia. Não é um areal grande, pelo que não há a dispersão que vemos no Meco, em Odeceixe ou em Tavira. Aqui as pessoas estão próximas e, como se conhecem, falam umas com as outras, dentro de cada grupo, mas também entre grupos. Uma família no centro da praia inclui pais, filhos, avós e uns primos, instalados noutro canto, perto das rochas. As crianças de uma família brincam com as de outra. Os adolescentes de dois grupos juntam-se para jogar cartas, sentados em roda. Todos nus, é claro, embora ninguém repare nisso. Grupos de homens, geralmente acima dos 50 anos, juntam-se à beira da água a conversar. Estão muito bronzeados, integralmente, e não parecem sentir qualquer constrangimento com as particularidades anatómicas de cada um. Há quem se desloque de um grupo para ir meter conversa com outro. Quem se sente junto de outra família, para partilhar o lanche, mostrar uma imagem no telemóvel, ou emprestar um livro, ou uma revista. Os pais brincam com os filhos, crianças ou adolescentes, sem evitar o contacto físico, sem embaraço ou vergonha. Por vezes, ao ver os grupos humanos deitados na areia, com os seus corpos quase sempre imperfeitos movendo-se com naturalidade, vem à cabeça de um repórter ainda muito imbuído de preconceitos da sociedade do pudor a imagem de grupos de animais relaxando à beira da água. Passando a óbvia incorrecção política da metáfora, ela não deixa de sugerir a questão: o nudismo desumaniza-nos?Mark, um holandês de 55 anos que acaba de sair da água com a mulher e a filha de 19 anos, responde à pergunta. “O naturismo devolve-nos a humanidade. Olhe à volta, repare bem. Veja como todo o comportamento é tão humano. ”Mark é um intelectual e um activista. O nudismo é para ele um acto político. “As pessoas vestem-se, na nossa sociedade, para marcar relações de poder e dominação. A origem dos trajes é a necessidade de esconder o corpo da mulher, para manter a posse sobre ele, por parte do homem. Tratava-se de guardar e proteger a propriedade, impedindo a usurpação, por parte de outros machos, e a liberdade da mulher, enquanto ser humano autónomo. E com a simbologia das roupas geriu-se, ao longo da História, todo um tráfico dos corpos e das individualidades. ”Na sequência destas considerações, despirmo-nos é um acto simbólico de revolta. “Note como as pessoas, sem roupa, passam a agir com muito mais autenticidade. Não mostram arrogância e prepotência umas com as outras. Não ostentam poder, mas também não têm medo. É como baixar as armas. As pessoas ficam sem nada, excepto a sua humanidade. É só isso que trazem para aqui, mais nada. E com isso ficam mais ricas. ”Na presença de tal teórico, e vendo como a filha não parece tão descontraída como os pais atravessando nua a praia, por entre os banhistas, aproveito para lhe colocar uma questão que me confunde. Uma vez, numa reportagem com o INEM, vi trazer para a ambulância uma mulher de mais de 80 anos, que tinha perdido os sentidos em casa, devido a uma crise cardiorrespiratória. Quando a mulher foi colocada na maca pelos técnicos de emergência médica, a sua camisa de dormir levantou-se até ao cimo das pernas, deixando as cuecas à vista. Foi nesse momento que a mão daquela mulher, que estava inconsciente, surgiu de repente, das profundezas da sua quase-morte, a puxar freneticamente a saia para baixo. Será possível que o pudor seja uma coisa natural? Mark não se comoveu com a história. “Essa mulher foi condicionada durante toda a vida. Convenceram-na de que perderia a sua dignidade, se o seu corpo fosse visto por alguém. ”É possível ser-se condicionado até à morte? “Sim. Nem a morte nos liberta. É enquanto estamos vivos, enquanto temos forças, que temos de quebrar as algemas. ”O importante não é tirar a roupa. O importante é sermos capazes de nos aproximar uns dos outros sem nada nas mãos, nada no corpoCarmen e Maria, espanholas na casa dos 30 anos, procuram sempre praias nudistas, quando fazem férias juntas. Não fornecem explicações políticas, como Mark, mas a sua lógica parece confirmar a dele. “Como somos lésbicas, aqui sentimo-nos muito mais à vontade. Há sempre muitos casais gay nas praias naturistas, por essa razão. Aqui ninguém nos julga, nem nos sentimos diferentes ou estranhas. ”Tudo se passa como se, eliminadas as roupagens, fossem também neutralizadas as regras e os códigos de comportamento convencionais. Alguém que não está interessando em jogar com essas regras sente-se aqui mais livre. “Aqui somos olhadas como pessoas normais”, diz Maria. “Como pessoas. ”De vez em quando, no cimo das falésias, surgem os inevitáveis mirones, especando em transe pasmado, ou não resistindo a fotografar, com os telemóveis. Neste caso, alguém dá um alerta, e toda a praia desata a gritar e a assobiar. “Não, não! Estás a fotografar o quê? Vai-te embora!” As crianças, em especial, parecem adorar estes momentos. Gritam com orgulho, muito compenetradas do seu papel, as frases que já ouviram gritar, várias vezes por dia. “Vem cá abaixo tirar uma selfie!”São as únicas alturas em que a praia nudista funciona como tribo. Unidos contra um inimigo comum. Chegam a parecer um grupo fechado e preconceituoso, no zelo exagerado com que defendem a sua liberdade. Quando o mirone foge, envergonhado, riem e conversam uns com os outros sobre o caso, com expressões de indignação. “Se toda a gente fizesse nudismo de vez em quando, o país estaria bem melhor”, diz Carlota. “Se as pessoas voltassem à estaca zero, se se despojassem de tudo, voltassem à sua essência, seria mais fácil pensar, resolver os problemas. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Carmen mantém as pernas entrelaçadas nas de Maria enquanto diz: “O importante não é tirar a roupa. O importante é sermos capazes de nos aproximar uns dos outros sem nada nas mãos, nada no corpo. Sermos nós, sem mais nada. ” Carlos, que se aproximou delas, acrescenta: “E ser capaz de vaguear sem horas marcadas pela costa alentejana. ”Só depois do pôr do Sol é que os nudistas abandonam a praia. Um a um, sobem a estreita escada de tábuas. Só um rapaz muito magro, de cabelo comprido, fica no areal. Tem uma pequena tenda, está ali a viver. Aquece uma chávena de chá numa pequena fogueira junto aos rochedos e acena-me, quando por fim também eu começo a subir a escada. Opto por não o entrevistar. Está tudo dito no seu silêncio. É tempo de amarrar a mochila à moto e rumar a sul.
REFERÊNCIAS:
Tsunami na Indonésia matou pelo menos 429 pessoas, e o vulcão continua a rugir
Cães pisteiros, drones e maquinaria pesada estão a ser usados para procurar vítimas soterradas, e há milhares e pessoas em abrigos. Continua a não ser seguro ir para as zonas costeiras, porque pode haver novos tsunamis. (...)

Tsunami na Indonésia matou pelo menos 429 pessoas, e o vulcão continua a rugir
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento -0.25
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Cães pisteiros, drones e maquinaria pesada estão a ser usados para procurar vítimas soterradas, e há milhares e pessoas em abrigos. Continua a não ser seguro ir para as zonas costeiras, porque pode haver novos tsunamis.
TEXTO: Estão a ser usados drones e cães farejadores para procurar vítimas soterradas, e o último balanço feito pelas autoridades é de que pelo menos 429 pessoas tenham morrido por causa do tsunami que atingiu a Indonésia no sábado. Há ainda 1485 feridos e 154 desaparecidos, mas é provável que estes números venham a aumentar. As buscas por sobreviventes continuam até ao final desta semana, ainda que as autoridades locais admitam que a probabilidade de encontrar alguém com vida é “diminuta”. O vulcão Anak Krakatau continua a expelir grossas nuvens de cinza. Foi o colapso de uma parede lateral do vulcão, provocando um deslizamento de terras, que tenha estado na origem do tsunami que atingiu as ilhas de Java e Samatra. Na segunda-feira, as autoridades indonésias confirmaram que este foi o mecanismo que criou as ondas destruidoras. A agência meteorológica diz que uma área de cerca de 64 hectares, o equivalente a 90 campos de futebol, tinha colapsado e caído no fundo do mar. Os socorristas estão a usar máquinas pesadas, cães pisteiros e câmaras especiais para detectar e desenterrar corpos soterrados pela força devastadora das águas e das lamas que arrastam ao longo de uma faixa de 100 km na costa ocidental de Java, diz a Reuters. A destruição é bem visível ao longo da costa, onde ondas de dois metros esmagaram veículos, deitaram árvores abaixo, ergueram grandes pedaços de metal, vigas de madeira e arrastaram móveis e objectos que estavam nas habitações e deixaram-nos espalhados nas estradas e nos arrozais. A busca deverá em breve ser estendida mais para Sul. “Há vários locais que pensávamos que não tinham sido afectados, mas estamos a chegar a zonas cada vez mais remotas, e na verdade há muito mais vítimas”, disse Yusuf Latif, porta-voz da agência nacional de protecção civil indonésia, citado pela Reuters. As autoridades não descartam a possibilidade de haver novos tsunamis. “Uma vez que o Anak Krakatau entrou em actividade, não é de excluir essa possibilidade”, disse à Reuters Hermann Fritz, geólogo do Instituto de Tecnologia da Geórgia, nos EUA. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mantém-se por isso o aviso para que os habitantes não regressem à costa, e há milhares de pessoas em tendas e abrigos temporários, que funcionam em mesquitas ou escolas, por exemplo. “Está toda a gente em pânico”, disse um responsável municipal na cidade de Labuan, Atmadja Suhara, que está a ajudar a tomar conta de 4000 refugiados. A Indonésia está numa zona de especial actividade sísmica, mas como este tsunami não foi precedido por um tremor de terra significativo, não houve alerta, porque os sistemas de aviso dependem da detecção de actividade sísmica. As autoridades chegaram a confundir inicialmente o tsunami com uma maré crescente e chegaram a apelar à população que não entrasse em pânico. O pior tsunami na Indonésia aconteceu em 26 de Dezembro de 2004, após um gigantesco sismo de 9, 1 na escala de Richter, com epicentro em Aceh, que afectou uma vasta área do Sudeste asiático. Causou cerca de 230 mil mortes numa dezena de países banhados pelo Oceano Índico, dos quais 168 mil em território indonésio.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Portugal, o país pobre, bonito e honrado da "National Geographic"
Quando o mundo descobriu África, a "National Geographic" andou por Angola e Moçambique. Quando quis conhecer Mao, foi espreitá-lo em Macau. Na guerra, visitou Lisboa, um ninho de tranquilidade e de espiões na Europa. As mulheres eram bonitas. O país, esse, era atrasado, analfabeto, sem infra-estruturas. Um retrato de Portugal de 1907 à encruzilhada - a guerra colonial, o fim do Império. (...)

Portugal, o país pobre, bonito e honrado da "National Geographic"
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 5 | Sentimento 0.224
DATA: 2010-05-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Quando o mundo descobriu África, a "National Geographic" andou por Angola e Moçambique. Quando quis conhecer Mao, foi espreitá-lo em Macau. Na guerra, visitou Lisboa, um ninho de tranquilidade e de espiões na Europa. As mulheres eram bonitas. O país, esse, era atrasado, analfabeto, sem infra-estruturas. Um retrato de Portugal de 1907 à encruzilhada - a guerra colonial, o fim do Império.
TEXTO: Foi apenas por ter havido uma revolução que a "National Geographic" se debruçou pela primeira vez sobre Portugal. Relevando uma capacidade notável de adaptação à rapidez da História, a revista norte-americana conseguiu incluir um artigo, na sua edição de Outubro de 1910, escrito originalmente para a publicação The Contemporary Review, de Edimburgo. Caída a monarquia, quis a publicação relatar que pequeno país era este, cheio de glórias passadas. A introdução ao texto ("The Greatness of Little Portugal") começa logo por explicar que os portugueses, cuja população cabia em Nova Iorque, tinham as maiores cabeças da Europa mas eram os mais baixos. A partir de Portugal, os navegadores tinham achado o Brasil e descoberto o caminho marítimo para a Índia. No entanto, no início do século XX, três quartos da população com mais de seis anos não sabiam ler nem escrever. Quando opta por incluir Portugal nas suas páginas, forçada pela actualidade, a publicação norte-americana de base científica tinha já 22 anos de idade. No entanto, o mundo parecia então maior e havia muitos outros assuntos por analisar. Além disso, só 11 anos antes é que a revista, presidida por Graham Bell (a quem se atribui a invenção do telefone) e cujo editor era Gilbert H. Grosvenor, decidira abandonar os "frios factos geográficos. " A partir daí, assumia-se como veículo de divulgação, verdadeira e de interesse humano, de todos os aspectos deste "nosso maravilhoso planeta". O Portugal relatado na edição de Outubro de 1910 é ainda o de um reino, já que o autor, Oswald Crawfurd, não teve tempo de fazer a devida actualização política. Crawfurd equilibra os dados básicos da História de Portugal com informações úteis ao viajante. Fica-se a saber que quem fale espanhol será facilmente entendido, mas não irá perceber nada do que lhe é dito, e que os nomes das estações de comboio não eram anunciados em voz alta, pelo que o mais certo era ir parar a um destino indevido em caso de desatenção. Passando por cima da História, o retrato de Crawfurd pode ser descrito da seguinte maneira, algo familiar: Portugal é um país pobre mas bonito, tolerante, honrado e hospitaleiro. E a verdade é que as descrições feitas pelos posteriores enviados da National Geographic nas décadas seguintes não irão mudar muito. Mal governadosO Portugal apresentado em 1910 é um país rural, onde as técnicas ainda são "as mesmas desde os tempos dos romanos", com regiões mais ricas, como o Douro. As pessoas "são deploravelmente mal governadas", com os partidos políticos infestados de subornos e corrupção, e o país, na corrida contemporânea das nações para o bem-estar, não atingiu nenhum marco significativo. Já o povo, diz o autor, é perspicaz, um "sofredor de longo curso", e dos menos "antipatrióticos do mundo". Maravilhado pela capacidade dos artesãos, sejam eles joalheiros ou carpinteiros, Crawfurd defende que Portugal não é, como alguns pensariam, "uma Espanha de segunda classe", com gente preguiçosa, má literatura e uma linguagem feia. Simplesmente, diz, o português dificulta a compreensão do país por parte dos estrangeiros, já que poucos o falam, e é menos alvo de atenção devido à sua reduzida dimensão e importância na Europa. E para que não restassem dúvidas de que Portugal era uma das apostas da edição de Outubro de 1910, a revista inclui ainda um artigo sobre as florestas e jardins de Portugal, escrito por Martim Hume em 1908. Destacando o exotismo e a beleza do Buçaco e de Sintra, Hume não se restringe apenas à flora, acabando por iniciar dois temas que serão retomados no futuro: o da beleza das mulheres portuguesas e a aversão aos sapatos. No primeiro caso, à entrada de Coimbra, Hume dedica todo um parágrafo aos grupos de bonitas mulheres que encontra, inevitavelmente, com "pesados fardos à cabeça". "Vão invariavelmente descalças, com os seus bonitos e longos ombros, peitos cheios, faces clássicas", de lenços garridos, fixando o olhar, bonito, com uma "modesta dignidade". A visita, indirecta, da "National Geographic" a Portugal continental não foi, no entanto, o primeiro contacto da revista com os territórios portugueses. Antes, já Moçambique e a Madeira tinham sido alvo das suas atenções. No caso deste pequeno arquipélago do Atlântico, a viagem feita por David Fairchild é descrita na edição de Dezembro de 1907, que apresenta a Madeira como "um dos locais mais calmos do mundo, para o qual as almas cansadas das nossas grandes cidades se estão a virar para descansar". O que Fairchild observa é uma ilha com clima temperado, onde as plantas estão perpetuamente em flor, mas onde as pessoas são extremamente pobres. Se aqui era o paraíso para alguns, como no caso dos ingleses de férias, o mesmo sentimento não era partilhado pelos "que são forçados a viver aqui e a ganhar a sua vida". Com cerca de 150 mil habitantes, não há uma escola agrícola ou industrial, e os acessos, em grande parte da ilha, são dignos das cabras. Os tempos áureos do vinho da Madeira tinham chegado ao fim (até porque os médicos começaram a dizer que o líquido era mau para a gota), e Lisboa, segundo Fairchild, não tinha uma lógica de desenvolvimento para a ilha. Com população a mais e sem grandes perspectivas de futuro, muitos madeirenses emigram para as plantações de açúcar do Havai. A ilha do turismo de massas com as largas dezenas de hotéis do Funchal ainda era uma realidade distante. Caberá a Clifford Albion Tinker o privilégio de ser o primeiro redactor a fazer um relato directo de Portugal Continental para a "National Geographic", em Novembro de 1922, mas dedica-se apenas a Lisboa. Apelidada de "Cidade da baía amigável", Tinker percorre as ruas da capital e os seus arredores, misturando dados históricos com as suas impressões, apresentando Almada como a Brooklyn de Lisboa. A capital, que almejava então ser um ponto de referência para os voos intercontinentais entre a Europa e os Estados Unidos, é vista como um "mosaico civilizacional". Seja pela mistura de sangue celta, mouro, judeu e africano, seja pela combinação de automóveis e carros de bois no meio da Baixa pombalina. Sobre as jovens mulheres, diz, estas são belas, carregando na cabeça, "com um certo ar de graça", cestos com fruta, peixe ou vegetais. No seu olhar, os portugueses são parecidos com os gregos, mas "mais urbanos, cordiais e com melhor temperamento". Ao nível das classes mais abastadas, retrata-as como sendo das "mais culturais e graciosas do mundo", tendo a hospitalidade como das principais características. Esta era a Lisboa de uma Alfama com vestígios medievais e dos pescadores de sardinha que lavavam as redes no Tejo, que contrastava com a modernidade da Avenida da Liberdade, com os seus cafés e esplanadas com música ao vivo. A urbe onde as fotografias, pintadas a cor, mostram as varinas sempre descalças. Seriam precisos 16 anos para a "National Geographic" voltar a Lisboa, mas, desta vez, o alvo é percorrer o país, já controlado pelo Estado Novo de Salazar. Robert Moore falava agora de "castelos e progresso em Portugal", uma mistura de passado e presente que terá certamente agradado ao ditador. Durante dois meses, Moore percorreu o país, que assistia de fora à Guerra Civil de Espanha, tirando proveito da nova rede de estradas, às quais tece vários elogios. Em Lisboa, nota que os cafés são dominados pela presença masculina, o que parece lamentar, uma vez que "muitas das mulheres são atractivas", com os seus já conhecidos lenços garridos e formosura "inigualável" quando carregam os cestos. Algumas delas, trabalhadoras, andam descalças, não obstante a existência de recente legislação que o proíbe. Para Moore, torna-se claro que "tanto os sapatos como a lei parecem ser considerados demasiados severos". As obras de SalazarO Portugal que vê é o das obras de Salazar, tal como é o de um país que vive da terra e do mar, com as suas exportações de cortiça, peixe e vinho. Moore visita o Douro e assiste às uvas serem pisadas com os pés, para depois ser transportado rio abaixo pelos barcos rabelos. Fica impressionado com a "alegria dos camponeses" ligados à vindima, apesar das suas condições de vida. Vê a apanha do sargaço para fertilizante no Norte e a pesca na Nazaré. Passa pelo Gerês, Buçaco, Montalegre, Tomar e Fátima, desce pelo Alentejo, onde vislumbra apenas um tractor, e vai até à Ponta de Sagres, onde presta a devida homenagem ao passado português, mais visível do que o seu progresso e modernidade. E desenha todo um roteiro que será seguido anos depois pelos seus sucessores. Lisboa da livre expressãoQuando a revista envia Harvey Klemmer nos primeiros meses de 1941 para perceber que país é este, funcionando Portugal como ponto de comunicação entre os Estados Unidos e a Europa em guerra, Lisboa torna-se de novo o centro exclusivo das atenções (o texto seria publicado em Agosto desse ano). Neutral, a capital portuguesa é ponto de encontro de espiões e porto de abrigo de refugiados de todas as classes. Visto do outro lado do Atlântico, é aqui que terminam, desde o início da II Guerra Mundial, os voos da Pan American Airways, que, com partida em Nova Iorque, ainda precisam de fazer escala na Bermuda e nos Açores (em Setembro de 1941, muito antes do interesse motivado pela erupção dos Capelinhos, a National Geographic dedicou especial atenção à importância estratégica deste arquipélago, onde os veículos motorizados eram a excepção, realçando que as ilhas estavam mais perto dos EUA do que o Havai). Com os hotéis repletos de quem conseguiu escapar ao conflito, do qual Klemmer não se mostra muito convicto de que Portugal possa escapar, os barcos e aviões, encarregues de decidir quem fica e definha ou parte e floresce, passam a estar imbuídos de poderes mágicos para os cerca de 40 mil refugiados. Transtornado pela guerra que vira na Europa e pela censura militar verificada em Hamilton, na Bermuda, Klemmer considera que há mais livre expressão em Lisboa do que noutro lugar da Europa. "Talvez o meu sentido de valores tenha sido distorcido por ter estado numa zona de guerra", diz, para exemplificar o poder de atracção que sente por Lisboa, com as praias sem minas e arame farpado, com luzes, música, boa comida e bebida. E, invariavelmente, as varinas que teimam em andar descalças. É certo que as principais fontes de receitas ainda são as sardinhas e o vinho, além da cortiça exportada em bruto, porque faltam indústrias. Que muitos são pobres, e que dois terços são analfabetos. O que não impede Klemmer de destacar que este pequeno país tem muito para oferecer aos turistas, para logo sublinhar o seu espanto por Portugal continuar não só independente como ter na sua posse vastos territórios além-mar. "Seria descuido negar que Portugal e o seu império está hoje numa posição precária. É quase demasiado esperar que os cães de guerra se quedem às portas da fronteira portuguesa", afirma. O certo é que ficaram, o que foi constatado por Clement Conger, sete anos depois de Klemmer e dois anos após o fim da II Guerra Mundial. Se a Europa ainda recupera dos escombros quando o novo enviado da "National Geographic" chega a Portugal, pouco ou nada tinha mudado no país, não obstante este defender, no título seu artigo de Novembro de 1948, que "Portugal é diferente". Até as varinas mantêm o seu jogo de toca-e-foge com as autoridades policiais, evitando a lei e os sapatos. A única diferença é que, tendo em conta o relato de 1941, já não havia massas de refugiados nem espiões em Lisboa. Conger, que parece ter os exemplares anteriores da "National Geographic" sobre Portugal na sua mala de viagem, vai aos cafés da avenida, ouve o fado, sobe ao Porto, assiste às comemorações do Estado Novo em Braga e vislumbra um Salazar aparentemente imutável e resistente aos ventos da democracia da Europa. Vê camponeses trabalharem "como nos tempos da Bíblia", conhece Aveiro, Viseu e Coimbra, com seu novo Portugal dos pequeninos, verdadeira metáfora em miniatura. Consegue estar presente em Fátima a 13 de Maio, com a aparição já transformada em milagre, passando de carro por milhares de peregrinos que seguiam a pé ou de burro. Ali, vê meio milhão de pessoas a entoarem "ave, ave", com igual número de velas, e que no dia seguinte serão cerca de 700 mil, com igual número de chapéus-de-chuva pretos que se abrem ou fecham em conjunto conforme os humores de S. Pedro, substituídos depois por lenços brancos. Com o roteiro desenhado, desce para ver a cortiça do Alentejo e espanta-se por os turistas ainda não terem descoberto o Algarve. Regressa então a Lisboa, onde os pescadores ainda lavam as redes no Tejo. Se Portugal era diferente, era apenas no olhar de que o visitava. As praias douradas Olha-se para o título, "As praias douradas de Portugal", e pensa-se em turismo, mas a missão de Alan Villiers era a de retratar a pesca. Apesar de mencionar a existência de turistas na Nazaré (alguns vindos de Paris), é o fascínio pelas pesca artesanal que o faz publicar um artigo em Novembro de 1954. De norte a sul visita praias e portos de pesca, destacando os que os métodos utilizados são "inspirados nos antigos fenícios". Cerca de 40 mil homens fazem-se ao mar por todo o território, sem barcos a motor, contando apenas com os animais e os homens. A sua preferência vai para a costa algarvia, soalheira e florida, onde os pescadores pintam olhos aos barcos para que estes se possam guiar melhor. Participa na pesca do atum, onde ouve os cânticos, que lhe soam a árabe, entoados pelos homens enquanto esperam a presa. Quando surgem os primeiros peixes voadores, sinal de que o atum vem a caminho, os homens começam a puxar as redes e a empurrá-los para os navios, iniciando a matança pintada de tons de vermelho. Ao todo, Villiers vê serem apanhados cerca de 150 atuns, prontamente encaminhados para as fábricas de conserva. Estes não irão ser vendidos pelas varinas, várias das quais, diz Villiers, colocam os sapatos junto ao cesto de peixe, equilibrado na cabeça, mal a polícia vira as costas. De todos os artigos da "National Geographic", o de Howard La Fay, publicado em Outubro de 1965, é o mais analítico. Acompanhado por Volkmar Wentzel, que viajara por Angola e Moçambique, e agora assume o papel de fotógrafo, La Fay mostra um país "numa encruzilhada". É o Portugal que tem um novo metropolitano, mas que esconde, debaixo das suas luzes e sorrisos, "uma nação em crise". Perdera os territórios na Índia e resiste à onda das independências em África, com demonstrações patrióticas carregadas de cartazes onde se diz que "lutaremos sempre". Há novos edifícios e alguma industrialização, mas isso quase parece desapontar la Fay. Feito o percurso típico do território nacional, parando nos principais localidades, queixa-se que o vinho no Douro já não é pisado com os pés, entre risos e música. Confirma, no entanto, que ainda há muitos pescadores com recorrem às técnicas dos fenícios, e que cerca de 60 por cento da população trabalha na agricultura. Fazer crescer o AlgarveEm Lisboa, onde se encanta com a luminosidade e com Alfama, para se entristecer com o som do fado, assiste à edificação dos primeiros alicerces da ponte sobre o Tejo, a maior do seu género na Europa. A ideia, explicam-lhe, é fazer crescer a capital, sobrelotada, para a outra margem, ganhando cidades satélite. Ao mesmo tempo, pretende-se abrir o sul ao turismo, passando o Algarve a ficar a quatro horas de viagem. A região, de tanto ser falada, já atraía cerca de 50 mil turistas por ano, para os quais tinham sido construídos meia dúzia de hotéis de luxo entre Monte Gordo e Sagres. Se la Fay tinha dúvidas no título que iria colocar no texto, estas devem ter ficado resolvidas quando entrevistou um historiador, que manteve o anonimato. Portugal, é-lhe dito, defronta-se com "um momento crucial na sua história". "Virámos as nossas costas à Europa", constata o historiador. "Seja lá o que vier a acontecer", acrescenta, "quer fiquemos ou não com as províncias ultramarinas, Portugal vai reunir-se à Europa". Quanto às varinas, essas, já usavam sapatos, mas contra a sua vontade.
REFERÊNCIAS:
Tornar possíveis algumas utopias
2015 é o Ano Europeu para o Desenvolvimento e a Plataforma Portuguesa das Organizações Não-Governamentais para o Desenvolvimento completa nesta segunda-feira 30 anos. O sector é mínimo, mas muito comprometido com a construção de um mundo melhor. (...)

Tornar possíveis algumas utopias
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: 2015 é o Ano Europeu para o Desenvolvimento e a Plataforma Portuguesa das Organizações Não-Governamentais para o Desenvolvimento completa nesta segunda-feira 30 anos. O sector é mínimo, mas muito comprometido com a construção de um mundo melhor.
TEXTO: Foi um dos maiores desafios que Fátima Proença já enfrentou: unir um conjunto de organizações, a maior parte das quais guineenses, e com elas persuadir o Governo da Guiné-Bissau a fechar a mais antiga esquadra da capital, que foi uma prisão, que era um “símbolo de opressão, de violência política”, e a cedê-la para que fosse transformada num espaço de cultura de direitos humanos. O lugar, na parte velha de Bissau, desmonta, por si só, ideia feitas sobre a Guiné-Bissau — “um país que não funciona, sem instituições, à espera da ajuda internacional”. “Foi ali que encontrámos interlocutores, pessoas que querem lutar pela liberdade, pela justiça social e que se organizaram para isso”, diz. A União Europeia nem sequer concedia financiamento para projectos de direitos humanos no país. O consórcio liderado pela Associação para a Cooperação entre os Povos (ACEP) e a Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH) obteve financiamento da Cooperação Portuguesa e abriu a Casa dos Direitos no início de 2012. Volvidos dois meses, houve um golpe de Estado. “Os dirigentes da Liga estavam lá dentro, o quartel-general estava mesmo em frente, os militares perseguiam pessoas na rua, mas ninguém foi lá procurá-los”, recorda. “A Casa dos Direitos já é. ”Não tinha uma relação próxima com a África imaginada, como era comum no Portugal da década de 1970. “Não tinha necessidade de defender uma África que tinha que ver com Portugal. ” Contava 18 anos quando começou a colaborar com o Boletim Anti-Colonial. A sua primeira tarefa foi dactilografar um relatório sobre o massacre de Wiriyamu (Moçambique, 16 de Dezembro de 1972). Entrou no sector da ajuda ao desenvolvimento por via do Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral, actual Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral (CIDAC), associação nascida logo em Maio de 1974, na sequência da luta pela libertação. Começou como voluntária. “Foi um processo natural”, diz Fátima Proença. Não teve, como tantos outros, de fazer um corte violento com a família, com a profissão ou com o país. “O que sou hoje tenho sorte de ter começado a ser em pequena, quando a minha mãe me contava histórias sobre um mundo longínquo. ”Aterrou pela primeira vez em África em 1983. Ia passar dois meses em Bissau a dar formação sobre documentação a técnicos das Forças Armadas e dos vários ministérios. “Foi um dos maiores processos de crescimento que vivi”, conta. Esforçou-se para “entender um país, uma cultura, que só conhecia em teoria, à distância”. E percebeu que iria ficar ligada a África para sempre. Regressou mais depressa do que pensava. Regressou volvidos dois anos, com o marido, para passar um ano inteiro a trabalhar como cooperante do Estado português. “Trabalhei num projecto novo, o início do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa da Guiné-Bissau, com pessoas fora de série, que me ajudaram a perceber quais eram os meus limites, do que era ou não capaz. ”Era grande a tensão na Guiné-Bissau em 1985-1986. Houve uma tentativa de golpe de Estado que culminou com detenções, torturas, fuzilamentos. Tentando sentir a espessura das coisas, Fátima Proença enquadrava tudo no processo de transição da luta armada pela independência para a construção de um estado civil. “Há ali uma legitimidade ao nível das armas que é difícil de transformar…”Há 30 anos, o sector estava a despontar em Portugal. A Plataforma Portuguesa das Organizações Não-Governamentais de Desenvolvimento foi formada por 13 entidades com mais desejo do que experiência de acção humanitária e cooperação para o desenvolvimento. Coordenava-a Eugénio Anacoreta Correia. Fátima Proença pediu reforma antecipada ao Ministério do Comércio, onde começara a trabalhar ainda estudante de Economia, e dedicou-se a tempo inteiro ao CIDAC. Só de lá saiu em 1996, a caminho da ACEP, que fora criada para trabalhar na integração dos imigrantes africanos em Portugal e ambicionava passar a actuar nos seus países de origem. Era mais uma etapa do mesmo caminho. Ia ajudar a construir sociedades mais democráticas, mais abertas aos “outros”, nos países de língua oficial portuguesa. Ia fazê-lo numa lógica de “educação para a igualdade”, não de “tolerância paternalista”. Partia do princípio de que todos podiam ajudar a “fazer mudança”. E ainda parte. “Não queremos falsos êxitos alimentados por pessoas que estão de passagem, que têm de fazer as coisas a correr”, explica. “As pessoas que estão lá têm de ter as rédeas, têm de dominar os processos, têm de estabelecer connosco uma relação de poder dizer ‘não’. ”Através dos seus projectos de comunicação, que amiúde envolvem jornalistas e artistas, a ACEP tenta fortalecer laços entre ONG, sensibilizar opiniões públicas, desmontar visões simplistas. “Não temos uma pressa desalmada de mostrar resultados, até porque muitas vezes os nossos resultados são invisíveis. Têm que ver com o que está na cabeça das pessoas, com capacidade de arriscar, de trabalhar em conjunto. E isso leva tempo. Temos de conquistar esse tempo. Com tempo, podemos cozer um elefante numa panela. ”Pode ser estafante. Há uma “pesada carga burocrática e administrativa” relacionada com obtenção de financiamento, sobretudo, junto da União Europeia, mas também nas instâncias nacionais. E isso, diz, “exige um profissionalismo que desvia do que deve ser o centro da actividade”. Talvez fosse mais fácil se trabalhassem em áreas mais palpáveis como a vacinação ou a distribuição de comida. Nunca foram por aí. “Somos uma associação de gente que trabalha com associações de gente que tem o mesmo tipo de preocupação que nós. Somos cidadãos a tempo inteiro, digamos assim. Procuramos tornar algumas utopias possíveis. ”Na década de 1990, quando João José Fernandes começou a trabalhar, era clara a divisão Norte-Sul. “Os problemas de desenvolvimento viam-se nos países do Sul, embora relacionados com a ordem internacional, a que as políticas de comércio dos países do Norte não eram alheias. ”Foi com base nessa visão do mundo que se delinearam os Objectivos do Desenvolvimento do Milénio, aprovados pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2000, agora prestes a expirar. Não por acaso, os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável, que estão a ser aprimorados para a assembleia geral de Setembro, destinam-se a todos os países, ainda que com metas distintas. Onde já vai o mundo da juventude de João José Fernandes. Quase não havia ONGD no Portugal dos anos 1980 em que ele se fez seminarista. “O seminário era o mais parecido que havia”, diz. Problema: queria ajudar a construir um mundo sem pobreza nem injustiça, mas não queria evangelizar. Crescendo na fronteira luso-espanhola, via melhor canais espanhóis do que portugueses. Atraía-o mais a América Latina do que África. “Era um território efervescente, quer em termos políticos, quer teológicos. ” Saiu do seminário, decidido a ir para o Peru. Queria trabalhar com comunidades indígenas, nos Antes, no pico dos confrontos entre militares e guerrilheiros do Sendero Luminoso. Tratou de adiar o serviço militar obrigatório. De repente, chegou-lhe às mãos uma carta de divulgação dos Leigos para o Desenvolvimento, organização católica que actua através de voluntários. Entusiasmou-se: em 1990, estava em São Tomé e Príncipe a viver as primeiras eleições multipartidárias e ele a ensinar Filosofia a adultos no Instituto Diocesano de Formação João Paulo II. Era certo o seu gosto pela ajuda ao desenvolvimento, mas tinha de terminar os estudos teológicos e filosóficos iniciados em Évora. Durante anos, conciliou-os com o apoio, ainda que à distância, às missões dos Leigos para o Desenvolvimento em África. Depois, entrou na Oikos — Cooperação e Desenvolvimento. Naquele ano, 1994, o sector deu alguns passos decisivos: a Assembleia da República aprovou a primeira lei das ONGD; nasceu o Instituto de Cooperação Portuguesa, a quem cabia propor e executar a política de cooperação portuguesa, funções desde 2012 exercidas pelo Instituto Camões. Associação ecuménica fundada em 1988, a Oikos dedica-se à acção humanitária, à cooperação para o desenvolvimento, à influência pública. João José Fernandes entrou no gabinete de projectos. “Participei na abertura de uma série de missões, como a das Honduras, a de Timor-Leste, a de Cuba. ”Depressa assumiu a liderança dos projectos. Desdobrava-se em contactos. Supervisionava equipas. “Era solteiro. Trabalhava fora de horas, não tinha fins-de-semana, viajava com frequência. A partir de certa altura, temos de encontrar equilíbrio entre o que fazemos e o que somos…”Abrandou ao tornar-se director executivo, já lá vão dez anos. Tem hoje “menos responsabilidades operacionais e mais responsabilidades de gestão”. E a verdade é que, depois de “tantos anos de hiperacção”, na redução da pobreza, na prevenção de catástrofes, na segurança e soberania alimentar, no desenvolvimento rural, na prevenção, adaptação e suavização das alterações climáticas, sentia que precisava de reflectir. Inscreveu-se num doutoramento sobre alterações climáticas e políticas de desenvolvimento sustentável e está a trabalhar numa tese sobre segurança alimentar. E, pela primeira vez, está a devotar mais atenção a Portugal. Os donativos em Portugal estão a baixar desde o início do século. A partir de 2008, com o adensar da crise económica e social, as ONGD começaram a ouvir perguntar: “Por que não fazem trabalho social em Portugal?”Sim, o mundo mudou. Emergiram economias a sul. Ganharam visibilidade bolsas de subdesenvolvimento a norte. E na Oikos uma escolha teve de ser feita: “Insistir no discurso de sensibilização para a cooperação para o desenvolvimento baseada no paradigma Norte-Sul ou repensar tudo. Como outras ONGD, alargou a acção a Portugal. Está, por exemplo, a fazer inquéritos e análise documental para lançar as eventuais bases de uma política pública multissectorial (agrícola, educativa, social, ambiental, saúde) destinada a garantir o direito à alimentação adequada. E a criar respostas práticas que passam pela agricultura familiar e pelos circuitos curtos de comercialização. “Em Portugal, não há uma estratégia integrada de segurança alimentar e nutricional”, diz. É o único membro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa sem um plano desse tipo. “Que respostas existem? Bancos alimentares e cantinas sociais [para assegurar que todos têm duas refeições por dia]. Algo não está certo…”João José Fernandes espera que o Ano Europeu do Desenvolvimento, que agora se assinala, sirva para encarar esta nova realidade. “Ou conseguimos discutir o desenvolvimento como um todo ou dificilmente em países como Portugal o debate será feito”, acredita. As preocupações dos portugueses estão viradas para dentro. “Ao mesmo tempo que reivindicamos solidariedade do Norte da Europa connosco, também temos de reivindicar solidariedade de Portugal com outros parceiros. Isto não é só receber. ”Anima-se, em particular, com o trabalho que está a fazer na educação. “Sendo um sector muito clássico e convencional, tem grande impacto na vida das pessoas, dos países. ” “A Guiné-Bissau, por exemplo, tem muitos professores sem formação inicial específica. Muitas vezes, começam as frases em português e acabam-nas em crioulo. ” A língua portuguesa, sendo oficial, é pouco falada no país. Cada grupo étnico tem a sua língua e a língua franca é o crioulo. “Os miúdos chegam à escola sem saber falar português, sem nunca terem estado num contexto educativo. ”A Fundação Fé e Cooperação (FEC), fundada em 1990 pela Conferência Episcopal Portuguesa e outras estruturas católicas, dá formação a professores, a directores, a inspectores integrados no sistema de ensino formal na Guiné-Bissau. O programa inclui matemática, ciências, português, pedagogia, educação para a cidadania e para a paz. “Durante anos, trabalhámos só no ensino básico. Há quatro anos, começámos a trabalhar na educação de infância. Agora, no ensino secundário. ”Nem sabe como tudo isto começou. Ainda miúda, depois da missa, ouvia missionários de barba comprida a falar em missões distantes. De vez em quando, dava por ela a trautear canções feitas para combater grandes fomes. Do They Know It’s Christmas?, gravado no Reino Unido. We Are The World, gravado nos EUA. “Não houve uma revelação”, diz. “Isto é um puzzle que se vai construindo. ” Tanto que se imaginou a cuidar de vacas e de bezerros. Estudou Medicina Veterinária. E ainda exerceu dois anos antes de perceber que talvez se tivesse enganado. Começou a fazer voluntariado no início do secundário. Escreveu cartas a presos políticos no Chile, então debaixo do poder ditatorial de Augusto Pinochet, visitou doentes no Hospital Dona Estefânia, perto da Faculdade de Medicina Veterinária, e entreteve miúdos na Casa do Gaiato. Tinha uma enorme vontade de ser útil e sentia que em África podia fazer uma diferença maior. Inscreveu-se n’ O GAS’África — Grupo de Acção Social em África e Portugal e preparou-se para avançar para Angola. Não foi logo. A guerra civil intensificou-se. Passou o Verão no Bairro da Serafina, em Lisboa. “Foi uma grande lição”, sem sair da sua cidade, estar numa “realidade completamente desconhecida”. “Percebi que é indiferente o sítio onde se está desde que se faça alguma coisa. ”Decorria 1997 quando partiu para Angola. Foi com os Leigos para o Desenvolvimento. O domínio religioso não lhe fazia confusão. “Para mim, fazia sentido associar a dimensão de fé”, recorda. Tinha por missão montar um aviário em Benguela. “Havia assaltos a tudo o que era produção animal. ” Pôs-se a trabalhar com mulheres num bairro feito de gente que fugira aos confrontos. “Foi um baque”, recorda. “Nunca tinha estado em África. Atirei-me de cabeça. Fui por dois anos. ” Estava dentro de um perímetro de segurança, mas senti muito a pressão da guerra civil. Os pais viviam numa inquietação permanente por causa dos combates, das doenças, das não notícias. “É preciso ver que na altura não havia telemóveis. No primeiro ano, não tínhamos Internet. ”Entrou tanto naquela realidade que só com muito custo se readaptou à Europa. E ainda fez um doutoramento em parasitologia antes de abandonar por completo a veterinária e se entregar à cooperação para o desenvolvimento. “Eu queria sentir que o que estava a fazer me fazia sentido, era útil, honesto, sério. ”Fez um mestrado em cooperação, desenvolvimento e ajuda humanitária em França. E trabalhou na Delegação Católica para a Cooperação (França), na Agência Católica para o Desenvolvimento no Exterior (Reino Unido) e na Cooperação Internacional no Ministério da Saúde (Portugal). Não haverá na Europa melhor sítio para trabalhar do que o Reino Unido. “Há muita massa crítica, muito cruzamento entre mundo académico, organizações não-governamentais, sector público”, esclarece. Só que era em Portugal, onde o sector é mínimo e quase todo virado para o mundo lusófono, que ela e o marido queriam ver crescer os dois filhos. Queriam que tivessem avós, tios, primos. "Fruto das circunstâncias", não tardou a regressar a uma organização católica. “Tenho um perfil de sociedade civil”, diz. Recebeu um convite para a FEC, que tem projectos nas áreas da educação, da saúde e da capacitação institucional. “Na sociedade civil há mais liberdade — não de meios, mas de fazer coisas. ”A ONGD conta com 15 pessoas em Lisboa e outras 50 na Guiné-Bissau, onde, pela "instabilidade política" e a dificuldade em encontrar para "perfis específicos, competências locasi", faz muito trabalho directo. Em Angola têm só um representante. Em Moçambique, outro. E Susana Réfega não está confinada ao escritório, embora saia muitíssimo menos do que antes de se ter tornado mãe. “Todos os anos tenho feito pelo menos uma missão”, assegura. Precisa disso. E gostava que o Ano Europeu do Desenvolvimento servisse para se perceber o que isso é. “Estamos todos neste planeta. Precisamos uns dos outros. ”Director executivo ADRA, 39 anosAterrou em Luanda a 27 de Março de 1999. Devia seguir para Malanje, mas a cidade foi cercada por elementos da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA). Teve de esperar três meses. Pôs-se a trabalhar nos campos de refugiados, onde a Associação Adventista para o Desenvolvimento, Recursos e Assistência (ADRA) fazia distribuição alimentar e educação infantil. Embarcou no primeiro voo humanitário. “Encontrámos uma situação indescritível. Tínhamos um raio de 20 quilómetros para nos movimentarmos. De resto, havia perigo de bombardeamentos desde que o sol se punha até que nascia. Vi crianças, mulheres, homens a morrer de fome. Uma cidade de 70 mil pessoas tinha mais 300 mil vindas de outras partes. ”Foi uma estreia dura aquela a que João Martins teve direito. Sentia que só havia duas hipóteses: reagir e socorrer quem tanto precisava ou horrorizar-se e fugir. Reagiu. Outros fizeram o mesmo. Aliaram equipas da ONU e de várias ONGD. “Montámos um programa. Cada um ficou com um plano de acção. A ADRA ficou com um projecto na área da saúde e outro na área da nutrição infantil. ”Para lá do horror da guerra, chocava-o a “hipocrisia”. Não era só o violento confronto entre a UNITA e o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Havia ali uma forte intervenção estrangeira. Angola foi uma espécie de palco da Guerra Fria e teve impacte no Congo e na Namíbia. “Era tudo uma questão de interesses”, diz. “As pessoas morriam de fome ou bombardeadas porque havia outros estados que estavam a tirar de lá recursos, petróleo ou diamantes, ao desbarato. Portugal vendia fardas, mas a África do Sul, os Estados Unidos, a Rússia…”Tudo aquilo mexia com as suas entranhas. “Via passar grandes tanques, que destruíam estradas”, conduzidos por estrangeiros, e perguntava-se se estar ali, ainda que a prestar ajuda humanitária, de certo modo não era compactuar com tudo aquilo. Ao regressar a Portugal, afastou-se daquele universo. Licenciado em Gestão de Empresas, João Martins começou a trabalhar numa multinacional de uma área em expansão, a informática. Tinha um bom salário e, ao mesmo tempo, um grande vazio. “Não me motivava saber que estava a contribuir para uns accionistas ganharem muito dinheiro. Achei que era interessante desenvolver a minha formação na área da cooperação para o desenvolvimento. Fui para Inglaterra fazer Mestrado em Estudos de Desenvolvimento Aplicados. ”Valorizaram-no no retorno. “Fui contactado por várias ONGD. Entretanto, a ADRA falou comigo. Primeiro, fiquei responsável pela parte financeira e pelos projectos internacionais. Depois, fui convidado para assumir a direcção”, recorda. Foi há quase dez anos. João Martins tinha 30. Era “um grande desafio”. A ADRA existe em 125 países. Atendendo a tal critério, é uma das maiores ONGD do planeta. Poder-se-á pensar que isto facilita o acesso aos fundos internacionais, mas não. Ainda que trabalhem em rede, mantêm independência. “Os conselhos de administração são nacionais. Cada ADRA está registada no seu país como ONGD nacional. ”Unem-se para responder a desastres naturais ou crises humanitárias ou para montar projectos de desenvolvimento comunitário. O vírus do Ébola na África Ocidental, por exemplo, está a ocupar diversas equipas. Uns distribuem alimentos a pessoas de quarentena, na Libéria. Na Serra Leoa, outros desenvolvem um programa de descontaminação para prevenir o avanço do vírus. Entre as iniciativas portuguesas, João Martins destaca o projecto das bibliotecas escolares em São Tomé e Príncipe. Numa primeira etapa, a ADRA-Portugal divulgou a iniciativa, recolheu livros infantis e didácticos e outro material escolar. Numa segunda, São Tomé fez a distribuição pelas escolas. Ainda há pouco lá esteve. Aprofundaram a intervenção com crianças do ensino primário das escolas de Vila José e Ribeira Funda — tratam de distribuir uniformes aos alunos, de lhes providenciar duas refeições diárias, de apoiar as suas actividades. Mas não lhe falta trabalho por cá. Com a crise a galgar, a ADRA, como outras ONGD, decidiu agir em Portugal. “Começamos com apoio alimentar a famílias carenciadas, mas temos progredido e já temos projectos de formação, de capacitação. ”João Rabaça, Director comercial da CESO, 39 anosCritica “o voluntarismo do ‘vamos construir poços em África’”, critica “o voluntarismo do ‘vamos dar água às pessoas’”, critica “o voluntarismo do ‘não vamos pensar muito na manutenção’”. A João Rabaça, vem-lhe à memória São Tomé e Príncipe e os seus inúmeros fontanários abandonados. É um princípio. “Não basta construir uma escola, pintá-la, dizer: está feito. É preciso pensar: É sustentável? Consegue perdurar? Como se pagarão os professores e a alimentação das crianças? Vamos recorrer à ajuda internacional? Pode ser, mas, como modelo de longo prazo, não funciona. ”Que não haja equívocos. Não nega a importância das acções de emergência. Aprendeu que cooperação para o desenvolvimento é outra coisa. “Não acredito na bondade pela bondade, na doação pela doação. Uma coisa é o cidadão comum fazer uma doação e outra coisa é quem tem obrigação de a transformar limitar-se a transferi-la. Nisso não acredito. Nisso nunca acreditei. ”Veio de outro mundo. Licenciou-se em Biologia. “Queria mergulhar. ” E mergulhou, mergulhou logo. Foi investigador de ecologia marinha, em Sines. Mas não, não era aquilo. “Na Biologia faltavam pessoas. ” Não se livrou de um elemento. “Acabei quase sempre por cair dentro de água. ”“Há um magnetismo”, confessa. “Não consigo aceitar que em 2015 haja pessoas que não têm acesso a água e a saneamento. Temos carros, telemóveis, aviões, todo um sistema mundial de produção, e há pessoas sem água? É tão elementar que é irreal. Tem sido esse o enfoque do meu trabalho. ”Vem-lhe à cabeça uma imagem que captou no Cazenga, um bairro da periferia de Luanda. “Era a altura das chuvas. Numa avenida larga, um camião com lixo a sair. É uma metáfora. Todo aquele lixo no meio da água. A água é importante e as pessoas não têm água, a água está com o lixo. ”Frequentava a Universidade de Évora quando se interessou por algo que não conseguia ainda identificar, que só mais tarde percebeu ser “cooperação para o desenvolvimento”. Participou num projecto na área científica, com o Museu de História Natural de Maputo. “Ficou-me esta coisa. . . ” Mas o que fazer com ela? Em Portugal, o sector permanecia “um submundo”. Como entrar?Testou as suas capacidades na comunicação de ciência (trabalhou no jornal Água e Ambiente), só que “a coisa” continuava dentro dele, a remoer. “Há uma dimensão política. Não no sentido da política partidária, no de compromisso que cada um pode assumir enquanto cidadão do mundo. O mundo não é só Lisboa, Portugal, Europa. Esquecemo-nos muitas vezes que a responsabilidade de cada um vai para além de nós enquanto cidadãos de uma cidade, de um país, de um continente. ”Decidiu voltar a estudar. Fez as malas e rumou a Inglaterra para frequentar um mestrado que lhe permitia relacionar recursos naturais e pobreza, agricultura e desenvolvimento rural. As portas abriram-se. Empregou-se na Alemanha, na ICELI — Local Governments for Sustainability, uma rede de municípios com escritórios em diversas partes do mundo. Entusiasmou-se com um projecto de cooperação destinado a promover a participação de governos locais na gestão de recursos hídricos — Moçambique, Zimbabwe, Botswana e África do Sul. Viajou várias vezes, sem meter as mãos na massa. “Era um projecto de investigação para desenvolver ferramentas de trabalho. ” Só passou à acção directa quando voltou a Portugal e começou a trabalhar na TESE-Associação para o Desenvolvimento. Marcou-o Bafatá, na Guiné-Bissau. “Foi um dos primeiros projectos com uma certa dimensão que a TESE teve”, conta. “Numa cidade de cerca de 30 mil habitantes, as pessoas abasteciam-se no rio, numas fontes em mau estado. Hoje, há um centro de distribuição e a água é paga. A água é um serviço, deve ter um pagamento, o que não quer dizer que toda a gente deve pagar ou pagar o mesmo. ”Há todo um debate sobre ONGD. João Rabaça não quer ir por aí: “Há gente mais pragmática, menos pragmática, mais comprometida, menos comprometida em todo o lado. O que não há, se calhar, é gente tão comprometida e situações tão sem sentido como esta de haver tanta gente sem acesso a água. ”Já não trabalha numa ONGD. Mudou-se para uma empresa de consultadoria, a CESO — Development Consultants, com sede em Lisboa. Acredita “em transferir serviços ou capacidade de prestar serviços” e, de certo modo, é isso que continua a fazer. “Ajudamos a desenvolver ferramentas, competências técnicas, estudos que permitem aos estados reforçar a actuação e com isso promover o desenvolvimento. ” Também ajudam a gerir a ajuda ao desenvolvimento, essa transferência de verba que “decorre de uma responsabilidade global que temos enquanto pessoas”. Mediadora cultura do CPR, 36 anosQuando vai às escolas, os mais pequenos perguntam-lhe por que fogem as pessoas. Mónica Frechaut fá-los pensar em variáveis como etnia, nacionalidade, religião. “Se existem tantos refugiados no mundo, por que Portugal tem tão poucos?” Ela mostra-lhes o mapa, fala na distância a que o país está dos principais conflitos. “Ficam um bocado surpreendidos quando digo que alguns apanham um avião. Têm ideia de que os refugiados vêm todos de barco, não têm condições económicas, vêm de países africanos. Desconstruímos essa ideia. Dizemos que o refugiado pode ser qualquer um. No fundo, nunca sabemos quando é que podemos ser perseguidos, quando é que o Estado deixa de nos proteger, quando temos de procurar um lugar seguro. ”Cresceu no Bairro da Bela Vista, em Setúbal. Conviveu com o preconceito, a discriminação. Viu efeitos disso tudo nas relações entre pares, nas repartições públicas, no acesso ao mercado de trabalho. Ainda estudante de Psicologia, entrou no movimento anti-racista. Na hora de fazer a tese, quis estudar o racismo. “Como é que uma pessoa é racista?”, perguntava-se. “Tem que ver com esquemas mentais, com a forma como formamos impressões sobre outras pessoas. E tem que ver com experiência pessoal. Muitas vezes, não têm conhecimento, não olham para os outros como indivíduos mas como membros de grupos. Têm ideias preconcebidas, fazem generalizações. ”Ainda fez investigação no ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa, dois anos antes de Teresa Tito Morais a convidar para o Conselho Português dos Refugiados (CPR), uma ONGD fundada em 1991 com dois trabalhadores, alguns voluntários e o patrocínio da Agência da ONU para os Refugiados — ACNUR. Tinha andado a estudar migrações. Tinha-se debruçado, ainda que pouco, sobre a problemática das mulheres refugiadas. “Já conhecia os desafios. Já conhecia as diferenças brutais que existem entre imigrante e refugiado, entre deixar um país de forma voluntária e deixar um país porque se é obrigado, porque não garante a segurança, o respeito pelos direitos humanos. ”Pode não ser óbvio, mas existem pontes entre migração forçada e desenvolvimento. Desde logo, “o ‘mau desenvolvimento’ é gerador de refugiados”. Há sempre gente a fugir “quando não há processos democráticos, quando falta liberdade, quando falta respeito pelos direitos fundamentais”. Um afluxo pode gerar tensão na região. Na sequência do conflito que se arrasta há cinco anos, 620 mil sírios refugiam-se na Jordânia, por exemplo. Ainda há pouco, o alto-comissário da ONU para os Refugiados, António Guterres, disse que tal suscita uma “pressão dramática na economia e na sociedade do país”. “É um exercício de solidariedade, de partilha de responsabilidades”, salienta Mónica Frechaut. “Faz sentido que os países europeus se possam comprometer mais na reinstalação de refugiados”, prossegue. É uma solução prevista pelo ACNUR, quando não é possível o retorno voluntário ao país de origem nem a integração no país de acolhimento. Há uma quota por país. Portugal comprometeu-se a receber até 30 por ano. No ano passado, ficou-se pelos 14. No ano anterior, pelos 29. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os números são sempre baixos em Portugal. No ano passado, houve 442 pedidos de protecção internacional nos postos de fronteira ou no território nacional: 279 foram admitidos — 19 com estatuto de refugiado (Irão, Arménia, Marrocos, Rússia, Quénia) e 89 com autorizações de residência por razões humanitárias (Ucrânia, Paquistão, Guiné-Conacri, Eritreia). “É importante dar ferramentas ao nível da educação, dar formação a estas pessoas”, diz. “Um dia, podem querer voltar aos seus países de origem e podem ajudar a reconstruí-lo, podem ser centrais no seu desenvolvimento. Tudo o que Portugal lhes oferecer está a oferecer ao desenvolvimento. ”Até pelo número diminuto, pouco se sabe sobre refugiados. “Cabe-nos tentar que a população esteja mais esclarecida”, refere. Dedica-se à informação pública. Auxilia jornalistas. Faz sessões nas escolas. E, de certa forma, é como se voltasse ao princípio. “A questão da discriminação é um problema e é transversal. Tentamos sensibilizar os mais jovens para os problemas dos refugiados em particular. As crianças e os jovens interessam-se e isso é importante para se criar uma cultura de respeito. ”
REFERÊNCIAS:
Israel: A ópera da contradição
Israel tem um problema de imagem e, como diz um analista, “nem o melhor relações públicas do mundo” o conseguiria resolver. A paisagem e um bom húmus não são suficientes para mudar a realidade. Mas o Governo vai tentando, e o turismo é uma das armas do seu soft power. (...)

Israel: A ópera da contradição
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Israel tem um problema de imagem e, como diz um analista, “nem o melhor relações públicas do mundo” o conseguiria resolver. A paisagem e um bom húmus não são suficientes para mudar a realidade. Mas o Governo vai tentando, e o turismo é uma das armas do seu soft power.
TEXTO: Ele está sentado à porta da sua tenda, com a mulher e o filho, de uns sete anos, ao colo. Ela retira-se discretamente, mas a criança fica, em silêncio e agarrada ao pai. Ao lado desta tenda há outra e mais outra e o chão é só pedras e pó. Está de noite e a pouca iluminação eléctrica dá apenas para ver que é um homem alto e corpulento e para lhe adivinhar a expressão. Estamos literalmente no meio do deserto, o da Judeia, com montanhas a toda a volta e o Mar Morto ali em baixo. Ficasse a descrição por aqui e poderíamos pensar que temos à frente um beduíno e a sua família. Mas não. Quem está diante de nós é o maestro israelita Daniel Oren, que se prepara para, dentro de poucos minutos, dirigir a Tosca. Aqui?Aqui mesmo. Uma ópera no meio do deserto?Isto é Israel, terra de muitas contradições. Uma ópera — que pode chegar a confundir-se com um excêntrico festival de som e luz — já nem sequer é novidade aqui. Desde 2010 que se faz este festival no sopé de Massada, um planalto onde há dois mil anos se achou por bem construir um palácio. Há três meses que 2500 pessoas estão a trabalhar intensamente para que do nada cresça um palco de 64 metros de comprimento, uma plateia de 6030 lugares, meia dúzia de camarins, tendas de bebidas — é toda uma “aldeia” de 45 mil metros quadrados. No intervalo para o II e III actos avisam que haverá tiros em palco, para ninguém se assustar porque são encenados. Se há local onde o aviso é necessário, é este. É o sítio ideal para a Tosca?, pergunta a Oren um dos jornalistas estrangeiros convidados pelo Ministério do Turismo a vir assistir ao espectáculo. “É o sítio ideal para qualquer ópera, não só as bíblicas mas qualquer uma”, responde o director musical da Ópera de Israel. Como irão os músicos lutar contra o calor e o pó “está nas mãos de Deus”. Além disso, “esta peça tem tudo a ver com Massada”, diz. A forma como a diva da obra de Puccini se entrega à morte para não cair nas mãos dos soldados de Scarpia, o chefe da polícia que ela acabara de matar para não ser desonrada por ele, pode ser comparada ao suicídio de 960 judeus que antes preferiram morrer a tornarem-se escravos dos soldados romanos que se preparavam para tomar a fortaleza. Uma comparação um pouco rebuscada, talvez, mas Oren não foi o único a fazê-la ultimamente. No dia seguinte subirá ao palco uma feérica Carmina Burana, um códice de poemas do século XIII musicados por Carl Orff em 1936. O espectáculo abriu com cinco homens montados a cavalo a irromper pelo palco e foi sempre conduzido por um Indiana Jones de chapéu e casaco de cabedal porque, diz o programa, esta é “a viagem de um arqueólogo que chega ao deserto e descobre um mundo antigo, que desconhecia, tal como Orff descobriu pela primeira vez os poemas antigos que musicou”. Forçado? Muito. Mas dali a duas semanas, tudo estará como antes. Só pedras e pó. Como se nada nem ninguém tivesse passado por Massada. E para o ano há mais. Hanna Munitz, directora da Ópera de Israel, refere numa conferência de imprensa que o país tem uma tradição de música instrumental, mas não de ópera. Este festival serve para “educar o nosso público”. E também para “mostrar [ao exterior] que temos uma vida normal, uma vida cultural. Israel também é isto, não é só [o primeiro-ministro Benjamin] Netanyahu, Irão e Gaza”. “Bem-vindos à terra da criação”, diz a seguir aos jornalistas Pini Shani, director do departamento estrangeiro do Ministério do Turismo. Shani admite que é preciso “mostrar Israel de uma nova forma” e que este é um passo para isso. E é também através do turismo que o Governo pretende mudar a percepção que no estrangeiro existe sobre o país. A BBC realiza regularmente sondagens sobre como o mundo olha para Israel. Os resultados publicados em Julho do ano passado — e que incluíam três anos de auscultações, que começaram ainda antes da impopular campanha aérea contra Gaza em 2012, nota a estação britânica — mostram que a maioria das pessoas dos 22 países inquiridos (Portugal não consta) tem uma imagem “sobretudo negativa” de Israel. É assim em todos os países da Ásia, Europa e América do Sul que foram analisados. E é nos Estados Unidos e na África subsariana que o Estado israelita é visto com mais simpatia. Pini Shani explica à Revista 2 os desafios que o seu Governo enfrenta para contrariar a ideia de um país sistematicamente em conflito: “Temos desvantagens, sim, mas também temos vantagens. ” E enumera-as: “Jesus nasceu em Belém [no Norte de Israel] e não em Lisboa. Se andar por Jerusalém, vê a história [cristã] desde a via sacra à Igreja do Santo Sepulcro. Não é uma viagem longa para quem vem da Europa. Tem o maior spa natural do mundo [Mar Morto]. Estamos a tentar transmitir essas vantagens. Não tentamos convencer ninguém de que é um lugar seguro, isso não vale a pena. ”Do outro lado da campanha está o movimento BDS (boicote, desinvestimento e sanções), que quer passar para o exterior a mensagem de que tal como o boicote ao regime do apartheid na África do Sul surtiu efeitos, o mesmo poderá acontecer em Israel, relativamente às violações dos “direitos de liberdade, igualdade e autodeterminação dos palestinianos, através da limpeza étnica, colonização, discriminação racial e ocupação militar”. O movimento foi criado em 2007 por representantes de palestinianos refugiados no exílio, palestinianos em territórios ocupados na Cisjordânia e na Faixa de Gaza e por cidadãos do Estado israelita que se sentem discriminados por serem palestinianos. O BDS pede um boicote “às instituições desportivas, culturais e académicas”. Não especifica aqui o turismo, mas “qualquer um pode boicotar os bens israelitas simplesmente assegurando-se de que não compra produtos fabricados em Israel ou por empresas israelitas”. Para o representante do Ministério do Turismo, “é difícil dizer se o BDS tem impacto [na vinda de estrangeiros] ou não. Mas não acho que impeça os turistas de vir a Israel”. E se quiserem ver a realidade palestiniana, “os turistas podem viajar para a Cisjordânia, mas para Gaza não. Há uma disputa e não achamos que seja seguro. Também não há lá nada para ver”, diz Shani. Já Israel “é um destino turístico por excelência, apesar dos desafios”. Quem chega vê um país empreendedor, com boa comida, uma paisagem deslumbrante e diversificada — tão depressa desértica como verdejante, aponta Yossi Mekerlberg, analista da Chatham House, um think tank britânico, numa conversa telefónica. “Israel projecta uma imagem de modernidade e ao mesmo tempo com uma história antiga. ” O turismo é “sem dúvida” uma arma de soft power (a capacidade de influenciar de forma não bélica). Há outras: “A indústria cinematográfica, a música (de fusão com o Ocidente); uma economia muito high-tech; a academia; a literatura, que é traduzida para muitas línguas. . . ”Mas o outro lado da moeda é bastante mais pesado. “Israel tem um grande problema de imagem que vem da própria realidade: da ocupação, dos colonatos, do bloqueio a Gaza. Nem o melhor relações públicas do mundo conseguiria resolvê-lo. E isto é uma coisa que corrói também a sociedade israelita. Podemos passar umas férias óptimas em Israel, mas a democracia está a sofrer. A paisagem, a gastronomia, não mudam a realidade. ”E daí que, segundo o analista, as ideias do BDS — mais do que o movimento em si, “devido à linha que defende a violência” — têm vindo a acolher cada vez mais seguidores. “Há a crescente percepção na comunidade internacional que a expansão dos colonatos, a falta de vontade em dialogar, são sinais claros de que Israel não está empenhado num acordo de paz, e que por isso tem de sofrer consequências económicas — isto faz já parte do discurso na Europa e nos Estados Unidos. As medidas económicas poderão tornar Israel mais flexível e, a não ser que [o Governo israelita] faça um esforço, são agora mais prováveis, mais do que eram há cinco anos. ”De cima vê-se bem o Mar Morto, separando Israel da Jordânia — um mar que é na verdade um gigantesco lago azul-celeste, esbranquiçado por causa do sal, que se situa 400 metros abaixo do nível do mar e que a cada ano que passa está mais encolhido. E vêem-se bem desenhados, lá em baixo, os quadrados formados por pedras que delimitam o local onde os romanos se estabeleceram antes de lançar o ataque à fortificação, no ano 73. Tudo em volta é cenário bíblico, metafórico e, em alguns casos, literalmente também. “Fez [Deus] chover sobre Sodoma e Gomorra enxofre e fogo [vindo] do céu; e destruiu estas cidades, e todo o país em roda, todos os habitantes das cidades, e toda a verdura da terra. ” A zona a que se diz corresponder às cidades castigadas pela ira divina está a poucos quilómetros de Massada. Montes que parecem templos em ruínas. Grutas onde a temperatura desce abruptamente devido ao ar que passa por paredes de sal. Um guia beduíno conta que os nómadas que ali habitavam aprenderam a ler nos animais os sinais das enchentes avassaladoras dos rios: quando coelhos e cabras escapavam para lugares mais altos e quando os burros punham as orelhas para trás, era tempo de deixar as margens até então secas e firmes. Massada é hoje património mundial da UNESCO. Visto a dois mil anos de distância, a construção de um palácio ali parece quase uma alucinação provocada pelo calor. Mas resultou num dos mitos fundadores da identidade israelita e é agora um dos pontos de maior atracção turística do país. O sol está implacável e só raramente sopra uma brisa. O brasileiro António Carlos Neves caminha com um pequeno grupo de amigos. Percorre como um guia experiente as ruínas do palácio que terá sido mandado construir por Herodes e que ninguém sabe se ele alguma vez pisou. Vai apontando para o que antes eram armazéns de armas, uma sauna, aposentos para convidados. . . e avançando com as suas explicações. Não exageramos se dissermos que já veio a Massada umas três centenas de vezes. Poucas foram as que a viu tão vazia como agora. Pele escura, olhos claros, cabelo quase branco e muita energia na voz, não fosse ele pastor evangélico. Procura uma sombra, um telheiro de canas no que antes era uma zona de banhos, e apresenta-se: “António Carlos Neves, 63 anos, sou brasileiro. Venho da cidade de Santos e estou aqui há 20 anos já. ”Não foi por ser judeu que decidiu vir, apesar de tanto ele como a mulher terem ascendência judaica. “O que nos fez vir para cá foi a parte bíblica desse país. A história que [aqui] é viva. É como se pudéssemos viver a Bíblia em 3D ou 4D, não é? Você cheira, sente, vive a realidade da história, comprova muita coisa que está escrita na Bíblia. Também descobre que muita coisa de que se fala é um pouquinho lenda. ”Na sua função de pastor evangélico, recebe em casa outros pastores vindos do Brasil. “Quando descobrem que vivo aqui dizem: ‘Vou para tua casa, que é mais barato!’”Os amigos de António Carlos Neves juntam-se assim aos milhares de evangélicos que anualmente visitam Israel. Não é por acaso. O Governo tem tentado converter o amor deste grupo religioso pela Terra Sagrada em apoio político, “com alguns proponentes [desta ideia] a declarar que a diplomacia com base na fé é a arma mais poderosa do arsenal diplomático de Israel — apesar de as suas capacidades e alcance precisos ainda estarem por provar”, referia o Christian Science Monitor num artigo de Fevereiro de 2013. A revista explicava que o crescimento rápido desta congregação em países como o Brasil e a Nigéria, “que tradicionalmente não são apoiantes do Estado de Israel”, se pode converter em apoio em fóruns internacionais, como as Nações Unidas. Para isso, “o Governo israelita aposta na herança religiosa comum entre judeus e cristãos para aumentar o turismo e a posição no palco internacional”. O CSM adianta que o Governo gasta milhões de shekels para atrair pastores que depois virão com os seus rebanhos, que pelo caminho, espera, se converterão em apoiantes mais fervorosos do Estado de Israel nos seus próprios países. Mas a fé nem sempre é suficiente para fazer face ao medo. “[Quando cheguei] em 95, a quantidade de turistas era muito grande”, continua António Carlos Neves. “Viajávamos no país e havia muito mais liberdade de caminhar [a primeira Intifada, que começara em finais de 1987, acabara dois anos antes, em 1993]. A Intifada [a segunda, 2000-2005] e esses problemas religiosos realmente assustaram muito as pessoas. . . Toda a vez que há um conflito, a maioria dos turistas cancela o voo para cá. ” Ele, pelo contrário, sente-se confortável. “Nunca corri perigo. Tenho esposa, tenho filhos, tenho netos. Estudam, trabalham, vive-se muito bem. Tem muita tranquilidade nas ruas. É muito seguro. Tirando excepcionalmente as épocas em que há conflito. . . Esse conflito faz parte do dia-a-dia. Convivemos bem com isso e superamos. Aconteceu, aconteceu. A vida não pára, o país não pára. ”Os números reflectem a desconfiança. Uma notícia do Jerusalem Post de 15 de Junho referia que o Turismo ainda não recuperou dos 50 dias de conflito no Verão passado — período durante o qual soavam constantemente as sirenes de alerta contra os rockets lançados a partir de Gaza (território controlado pelo grupo palestiniano Hamas), tendo mesmo chegado a haver a suspensão do tráfico aéreo quando um deles foi cair próximo do aeroporto internacional Ben-Gurion. As operações terrestres das IDF em Gaza mataram 2251 palestinianos (incluindo 1462 civis); do lado israelita morreram 67 militares e seis civis. Uma investigação da ONU publicada recentemente concluiu que ambas as forças terão então cometido crimes de guerra e apontava para níveis de destruição e sofrimento “sem precedentes”. Também a crise na Rússia e a queda do rublo está a reflectir-se nas entradas de estrangeiros, adianta o diário. Resultado, no primeiro trimestre de 2015, o sector atingiu os níveis mais baixos dos últimos cinco anos. O centro de estatísticas israelita estima que, nesse período, os rendimentos do turismo baixaram 12% em relação ao ano anterior; as estadias de estrangeiros em hotéis decaíram 27, 4% (e aumentaram 9, 4% as de turistas israelitas). Segundo o responsável do Turismo de Jerusalém Eli Nachmias, em 2014 visitaram o país 3, 5 milhões de turistas estrangeiros (a maioria, 700 mil, dos EUA, seguidos pela Rússia, com 600 mil). “O presidente da Câmara de Jerusalém disse que quer 10 milhões até 2020”, afirma à Revista 2. Se o sector enfrenta dificuldades, é também por causa da crise na Europa, refere. Mas essa é “a razão leve”. A razão pesada é “a situação geopolítica: infelizmente, não somos a Suíça, que tem por vizinhos a Itália, a França e a Alemanha, países pacíficos. Os nossos vizinhos são o Iraque, a Síria, onde está o Estado Islâmico; todo o mundo árabe está a arder”. Nachmias adianta que a estratégia do Governo é “mostrar que não há bombas a explodir nas ruas”, trazendo opinion makers, académicos, jornalistas ou organizando eventos culturais, conferências, tours para famílias, “que levam o testemunho que a realidade não é exactamente o que se vê na CNN”. Um muro cinzento divide o espaço mas apenas pela cintura. No topo estão fotografias a preto e branco do verdadeiro muro, o que separa Israel da Cisjordânia. Wall, do fotógrafo Josef Koudelka, é uma “visualização épica de um dos símbolos mais definitivos da soberania israelita e do conflito israelo-palestiniano”, lê-se na ficha que acompanha a obra exposta no Museu de Arte de Telavive (e que integra a exposição This Place, em que 12 fotógrafos estrangeiros olham para este ponto do globo). O muro dos olhos de Koudelka às vezes parece uma serpente que rompe a paisagem, outras uma barreira de betão que nada permite perscrutar, outras ainda um emaranhado de arame farpado que torna tudo mais turvo. É sempre um corte, uma ferida, uma prisão. O muro vê-se bem a partir de vários locais de Jerusalém — locais onde os guias levam os turistas para lhes mostrar as magníficas vistas da cidade velha, reclamada como capital tanto por israelitas como palestinianos (e sagrada para judeus, muçulmanos e cristãos) e não reconhecida internacionalmente como tal em nenhum dos casos. Jerusalém está, pois, em cima desta cisão, faz parte dela, é o seu epicentro. Mas Telavive acaba por ser um bom posto de observação. Dentro do edifício da Ópera de Israel, Neta Amit Moreau, directora de palco e responsável do programa educativo, afirma que é preciso acabar com o equívoco entre “o que é ser judeu e o que é ser israelita. Se o turismo puder ajudar, óptimo”. Voltemos ao deserto, sem sair da mesa onde estamos, neste átrio moderno e com ar condicionado: “Quem estava na orquestra a tocar? Apenas israelitas, mas todos vindos nos anos 80. Quem está à entrada a revistar a sua mala para ter a certeza de que não vai lançar uma bomba em Massada? Árabes, muçulmanos. Se ninguém nos explicar nada, não ajudará [a esclarecer]. Mas se como jornalista puder abrir esta caixa de Pandora que é Israel e ver que para além das serpentes há pessoas de todas as cores e religiões e etnias, então pode ver que não é tão simples como pode parecer visto de fora, da Europa rica e segura. ” Perceber o que se passa neste país talvez não seja possível. “Se não o vivemos, não o conseguimos compreender. O Dalai Lama diz ‘sejam amáveis’. E é isso: não sabemos por que lutas as pessoas passaram, por isso devemos ser amáveis para elas. É assim que olho para os árabes à minha volta. ”A cultura pode ser uma porta. “As pessoas que vêm cá não são palestinianas, mesmo os árabes são uma minoria. . . Mas o papel da arte é abrir a mente. E independentemente de sermos palestinianos, de Gaza, ou israelitas, quando choramos, choramos, quando rimos, rimos. E é disso que o palco trata, de sentimentos. Talvez possamos levar esses sentimentos aos corações frios dos políticos que vêm cá com frequência. ”Não será fácil. Recentemente, a ministra do Desporto e da Cultura ameaçou retirar financiamento às instituições que “deslegitimam” Israel, levando centenas de artistas israelitas a protestar nas ruas. Antes, Miri Regev tinha ameaçado cortar o subsídio a um teatro dirigido pelo actor árabe israelita Norman Issa, em Jaffa, por este se ter recusado a participar numa performance na Cisjordânia ocupada. Neta Amit Moreau não tem dúvidas: “É nestas alturas que surge a melhor arte. O seu próximo espectáculo será o melhor. Porque quando tocamos nos nervos das pessoas. . . ” E é mesmo com a arte que se deve responder. “[A arte] é uma forma não agressiva de levar as nossas opiniões às pessoas. Não conheço artistas muito violentos. Podem ser agressivos nas ideias que trazem ao palco, ao cinema, às suas músicas, mas não fisicamente violentos. É a única forma branda de lá chegarmos. ”Moreau garante que a Ópera de Israel tem a liberdade de apresentar o que quiser. Mas, afirma agora a um pequeno grupo de jornalistas ibéricos, há tabus que subsistem: “Não vemos Wagner em Israel, mas acabaram de ver a Carmina Burana. Bach e Carl Orff [ambos alemães] também não gostavam muito dos judeus. [Wagner é proibido] talvez por ter a sua própria teoria, escrita, e por Hitler o adorar. É uma contradição que existe desde que aqui estamos e estamos sempre a encontrar contradições destas. Se os sobreviventes do Holocausto têm um problema com Wagner, não ouvimos Wagner. É como um tabu que não se quebra. Os maestros israelitas vão a Berlim dirigir O Anel de Nibelungo, mas em Israel não o podem fazer. Podemos chamar-lhe hipocrisia, ou não querer ferir susceptibilidades, mas, como dizia a minha avó, ‘os factos estão no pudim’. [O que é certo é que] não tocamos. . . Está tudo tão recente. Talvez daqui a uma geração. ”O que não precisa de esperar uma geração é a manifestação do orgulho gay. A marcha que nos dias anteriores tinha invadido Telavive continua a respirar nas ruas. Bandeiras com o arco-íris estão espalhadas por toda a cidade, em bares, lojas de roupa, bancas de sumos. Duas raparigas beijam-se despudoradamente no meio do passeio, dois homens seguem abraçados pela rua fora, e a cena repete-se vezes e vezes sem conta e sem complexos. Aqui não se tapam ombros nem se prolongam patilhas em canudos — ou não tanto como em Jerusalém, pelo menos. As adolescentes andam de saltos altos e saias curtas. Passeia-se junto ao mar e sente-se uma brisa de Copacabana. Se Jerusalém é cor de pedra — há mesmo uma lei que impede a construção em qualquer outro material que não seja a meleke, “a rainha das pedras” — Telavive é a “Cidade Branca”, luminosa. O centro de arquitectura Bauhaus foi declarado património da humanidade pela UNESCO e os prédios baixos são suficientemente numerosos para não nos sentirmos engolidos pelos arranha-céus. Três brasileiros preparam-se para aterrar em Telavive: Pedro, Felipe e Nelson formam um trio que no Brasil já será reconhecido por muitos. Os vídeos humorísticos do Põe na Roda, que todas as semanas colocam no YouTube, chegam a ter um milhão de visualizações, sobretudo da comunidade homossexual. Vieram porque foi o próprio Ministério do Turismo que os convidou — faz parte da promoção do país como destino gay friendly. E Telavive é realmente gay friendly?, perguntamos dias depois por Facebook. “Isso é inegável”, diz Pedro HMC (é pelas iniciais que é conhecido), ex-roteirista de programas de humor na MTV Brasil. “Você conversa com as pessoas na rua e sente isso. Não se sente às margens da sociedade, nem julgado ou observado, como acontece sendo gay em muitos lugares do mundo. Você vê um monte de casais gays com filhos nas ruas, drag queens, transexuais, coisas que mesmo em cidades grandes do Brasil onde ser gay é possível, não chega a ser tão normal e tranquilo quanto em Telavive. ”O grupo fez uma série de vídeos que são publicados faseadamente no canal. “Mostramos a praia gay, Hilton Beach, o Gay Center, que é um centro público de apoio à comunidade LGBT, entrevistámos gays idosos, fizemos matéria em uma festa gay num parque aquático, além de entrevistarmos a Conchita Wurst [vencedora do festival Eurovisão da Canção de 2014, que se tornou popular por ser uma transexual com barba], o que foi uma honra. A intenção é mostrarmos Telavive como um destino gay incrível para o público gay brasileiro. Nem todo o mundo sabe disso, muitos, quando pensam em Israel, pensam apenas em Jerusalém, guerras e turismo religioso. ”No centro de Jaffa, a cidade portuária colada a Telavive, está uma rapariga com uma enorme cabeleira afro, olhos sorridentes e dentes brancos. Passeia-se entre um lado e o outro da rua, conversando, fumando um cigarro. Maayan Shimomi é gerente do Puua, um restaurante que começou por ser uma loja de flores — depois a proprietária começou a servir cafés e a coisa foi expandindo. Tem uma mistura de peças de datas e estilos variados, sofás onde as pessoas se podem sentar, cadeiras e mesas vintage, loiças e naperons que podiam ter vindo de casa das avós. “Esta é a minha Israel. Uma grande misturada que mostra o que o país poderia ser”, diz Maayam. Poderia, mas ainda não é. E se ela está aqui hoje foi porque um dia alguém disse aos seus bisavós, maternos e paternos, que havia uma nação para construir. “Vieram do Iémen [pouco depois da proclamação do Estado de Israel em 1948]. Eram judeus. Alguém lhes prometeu uma coisa e eles partiram. É assim que funciona. ”Daqui, a vida até parece um lugar tranquilo. Mas se tivesse de definir resumidamente os israelitas, Maayam diria no seu inglês hesitante: “São barulhentos. Metem-se na vida das outras pessoas, para o bem e para o mal. Ou tentam ajudar ou repreendem. ”Não é preciso partilhar com ela os resultados dos estudos sobre a forma como Israel é visto fora de portas porque ela conhece-os intuitivamente. “As pessoas têm medo de vir”, afirma. “À distância tudo parece pior do que quando se está no lugar. ” Aponta alguma da responsabilidade aos media, que sistematicamente mostram a parte como se fosse o todo. O guia turístico Aviram Politi diz o mesmo — sem as críticas que Maayam lança ao Governo, que queria ver “todo mudado”. “Eu acredito, e também o Ministério do Turismo [para quem trabalha ocasionalmente], que o turismo é uma boa forma de combater o boicote e os preconceitos contra o Estado judaico. Quando as pessoas cá vêm e vêem com os seus próprios olhos, não estão a ser induzidas em erro pelos media, que infelizmente descrevem os hebraicos como másculos e os árabes como os bonzinhos, sem dar as múltiplas dimensões. ”Nas suas visitas guiadas em inglês, italiano ou hebraico, Politi não entra “no terreno minado da política, por ser uma base de conflito entre os elementos do grupo, e entre o grupo e o guia”. Mas acha que este é um debate “fácil de manipular, especialmente por europeus, que durante séculos e séculos tiveram ódio aos judeus. . . , culpando-os por tudo o que acontece, quer seja verdade ou não”. Conta que a sua família, tanto do lado do pai como da mãe, são judeus sefarditas expulsos de Espanha em 1492 por causa da Inquisição. Em casa ainda falam um dialecto que mistura castelhano com hebraico — “os meus pais recebem uma revista trimestral em ladino”. No século XV, um antepassado do lado materno, da família Ginio, foi forçado a converter-se ao cristianismo; estava encarregue do Tesouro do Rei D. Fernando, e ele próprio fez a ligação entre Cristóvão Colombo e os reis de Espanha, garante. “Há documentos [emitidos por] Espanha que o comprovam. ”Alguns membros da família morreram nos campos de concentração nazi, outros instalaram-se na Grécia antes de se fixar aqui, “no único estado hebraico do mundo. Os judeus tiveram de tomar o seu futuro em mãos, porque não se pode confiar em nenhum outro país”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Em hebreu, há esta frase: ‘Não perdoamos, não esquecemos. ’ Talvez o perdão venha quando o esquecimento vier também, ou vice-versa”, diz Neta Amit Moreau, da Ópera de Israel. “Quando construímos uma cultura, um Estado, assente nesta declaração. . . Israel está a viver uma síndrome pós-traumática. É um país pós-traumático. O que é isso de Massada? É uma loucura, não é? Tomámos como símbolo um suicídio colectivo (que ninguém sabe se é verdade ou não, mas isso não importa, o que importa é o mito). Precisamos disso? Eu gostava de ter um símbolo melhor. Não é que não seja fascinante do ponto de vista arqueológico, mas um símbolo do triunfo do espírito, em que todos acabam mortos no fim?! É isto que temos de glorificar? Talvez devêssemos mudar de história. ”
REFERÊNCIAS:
Moçambique: terra de todos, terra de alguns
No Corredor de Nacala, uma das áreas mais férteis e povoadas de Moçambique, milhares de camponeses ficaram sem terra em troca de promessas de uma vida melhor. Hoje, resistem e travam uma luta de David contra Golias com empresas vindas de todo mundo. Portugal, com a Portucel Moçambique à cabeça, é o país da Europa que mais área explora nesta zona. (...)

Moçambique: terra de todos, terra de alguns
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: No Corredor de Nacala, uma das áreas mais férteis e povoadas de Moçambique, milhares de camponeses ficaram sem terra em troca de promessas de uma vida melhor. Hoje, resistem e travam uma luta de David contra Golias com empresas vindas de todo mundo. Portugal, com a Portucel Moçambique à cabeça, é o país da Europa que mais área explora nesta zona.
TEXTO: Até há pouco tempo, Maria tinha a certeza de que a terra onde nasceu, a terra que lhe calejou as mãos durante uma vida, seria a mesma onde iria morrer. A única riqueza que deixaria aos seus filhos, a mais preciosa de todas. Ser camponesa é uma profissão que não escolheu, mas que, aos 63 anos, descreve como a mais bela. Maria não se chama assim, mas não quer revelar o verdadeiro nome. Tem medo. “Tenho medo por causa das ameaças. Queremos falar daquilo que sentimos, queremos ralhar com o Governo de Moçambique, estamos contra tudo o que está a acontecer. Mas, se o fazemos, sofremos represálias. ” Não se cansa de repetir que a vida do camponês merece respeito e diz que se o Governo quer acabar com a fome, como diz, tem de parar as grandes empresas de investimento agrícola que estão a “roubar terra” e a deixar as pessoas sem terrenos férteis para cultivar alimentos. As ameaças de que Maria fala começaram em 2008, quando a crise de alimentos levou muitas empresas de agricultura, silvicultura e pecuária de larga escala a deslocaram-se para países africanos, asiáticos e latino-americanos à procura de terras produtivas e de mão-de-obra barata. Na última década, mais de 70% das aquisições de terras agrícolas de grande escala foram feitas na África subsariana. A apetência pelo Corredor de Nacala — umas das áreas mais férteis e povoadas de Moçambique que atravessa as províncias de Cabo Delgado, Niassa, Nampula, Zambézia e Tete — foi uma das mais vorazes. Pelo menos 38 empresas instalaram-se na região e receberam do Estado moçambicano o Direito de Uso e Aproveitamento de Terra — aquilo a que em linguagem local se chama um DUAT — de 1, 4 milhões de hectares, de acordo com os dados recolhidos pela Organização Não Governamental para o Desenvolvimento (ONGD) Grain em 2016. O Governo de Moçambique apoia-as e defende que estes investimentos ajudam a criar postos de trabalho, a acabar com a fome e a melhorar a nutrição no país, onde um terço da população sofre de insegurança alimentar, ou seja, tem dificuldade em aceder a alimentos. Mas continuam a ser os pequenos camponeses, que representam 80% da população, os responsáveis pela produção da quase totalidade (90%) dos alimentos consumidos no país. Também com a bandeira de melhorar a nutrição na África subsariana, os países do G8 (sigla que denomina os oito países mais ricos do mundo — Estados Unidos, Japão, Alemanha, Canadá, França, Itália, Reino Unido e Rússia — e que passou a denominar-se G7 depois de a Rússia ter sido excluída em 2014, em represália pela anexação da Crimeia) promoveram parcerias público-privadas entre muitos Estados africanos e multinacionais do sector agrário. O programa chama-se Nova Aliança para a Segurança Alimentar e Nutricional em África [NASAN] e foi selado em 2012. O relatório de avaliação do programa, escrito em Maio de 2016 pela redactora independente da União Europeia Maria Heubuch, não podia ser mais explícito, põe em causa as boas intenções da NASAN e considera-a uma “ameaça” aos camponeses: “As políticas acordadas nos países de acolhimento visam criar um ambiente favorável às empresas”, arriscam-se a “facilitar as expropriações, marginalizar ainda mais os pequenos produtores e as mulheres, apoiando, simultaneamente, práticas agrícolas não sustentáveis”. O mesmo documento salienta ainda que “os pequenos agricultores praticamente não foram consultados aquando do estabelecimento dos Quadros de Cooperação por País, embora devam ser os beneficiários últimos da NASAN”. Em Moçambique, o acesso à terra foi uma das grandes lutas da Guerra de Libertação. Durante o regime colonial, uma pequena elite explorou quase em exclusivo os terrenos mais férteis e atirou os camponeses para os solos menos produtivos, para longe dos mercados. Com a independência, em 1975, a terra foi nacionalizada. A primeira Lei de Terras proibiu a venda de terrenos no país e o Estado tornou-se o responsável pela sua distribuição — a terra passou a ser vista como um meio de criação de riqueza e bem-estar social. Mas os melhores talhões foram, entretanto, tomados pelo poder político e os camponeses continuaram sem lhes poder aceder. Depois de 1997, as empresas estatais deixaram de ter o monopólio das explorações agrícolas. O DUAT passou a ser gratuito e vitalício — um direito que, em teoria, protege todas as explorações familiares e pequenas cooperativas que utilizam a terra há pelo menos dez anos. Segundo a lei, se uma empresa nacional ou estrangeira quiser hoje ter acesso a terra em Moçambique, é obrigada a consultar as comunidades locais para confirmar se essa área está livre e se a sua presença é autorizada, antes de pedir ao Governo o direito a explorá-la. Mudanças que, segundo Maria, não foram capazes de reverter o essencial: “Porque é que a quem vem de fora pagam um salário alto e a nós nos dão o valor mínimo? Se trazem as máquinas para produzir, porque é que não nos ensinam a usá-las e as deixam aqui para nós? Também sabemos conduzir. Como não nos calamos, dizem que somos contra o desenvolvimento, mas que tipo de desenvolvimento é este? Estamos é contra a escravatura que nos fazem. Os negros não são pessoas? São pessoas!”Jogo de forças“Nós, os pobres. ” É assim que Francisco Chicompa apresenta as famílias camponesas que vivem em Napai II, uma aldeia no distrito de Mecuburi, província de Nampula, no Norte de Moçambique. O rótulo pegou-se-lhes que nem lapa: pobres lhe chamam, pobres se vêem. Ainda assim, com 60 anos, Francisco nunca pensou ser outra coisa que não camponês. Uma vida difícil que o ensinou a resistir aos caprichos da natureza e à incerteza das sementeiras. Uma vida difícil que lhe vergou o corpo já franzino. Da terra trazia a comida para ele, a mulher e os 11 filhos. Da terra trazia o dinheiro para comprar roupa e mandar as crianças à escola. Na terra, conservava as memórias dos seus antepassados, um diamante que tinha obrigação de passar intacto às gerações futuras. Aos sete hectares que os pais lhe deixaram, somou mais três que desmatou com as próprias mãos. Era tudo o que tinha e hoje sabe que era tanto. O desaire começou num dia perdido no ano de 2011. Soprado pelos ventos do progresso, o projecto de plantação de árvores Lurio Green Resources (iniciativa da empresa Green Resources) apresentou-se aos camponeses de Napai II como a solução dos seus problemas: “Viemos acabar com a vossa pobreza. ” As promessas eram muitas: construção de uma escola, de um centro de saúde, duas fontes de água, emprego permanente. Em troca, os camponeses teriam de ceder a única coisa que lhes garantia o sustento: as suas terras. Seis anos depois, a produção e rendimento agrícolas diminuíram, as compensações e indemnizações não foram pagas como acordado, o emprego continua a ser sazonal e precário e as terras onde a comunidade construía as habitações e produzia alimentos para consumir e comercializar estão agora ocupadas por plantações de eucalipto. “Dizem que há muito espaço disponível, que não existe nenhum motivo para conflito, mas se há muita terra livre porque é que querem exactamente o sítio onde estão os camponeses? Porque é que não vão para as matas onde os reassentam?”, questiona Vicente Adriano, da Acção Académica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais. Quase sem uma pausa para respirar, dá a resposta: “Porque não querem desbravar mata, querem terra fértil, já cultivada, com água. ”Em Napai II, numa manhã de Janeiro de 2017, dezenas de homens e mulheres estão dispersos numa roda à espera que comece a reunião de resolução de conflitos onde estarão também presentes os representantes do governo local e da empresa Green Resources. Francisco Chicompa ensaia uma última vez a leitura de uma carta escrita pela comunidade, como se tivesse receio que lhe falte a voz no momento de falar. Os camponeses podem até ser o elo mais fraco neste jogo de forças, mas estão unidos, não desistem. A folha de papel manuscrita que Francisco segura entre as mãos é prova disso: “Pedimos aos Serviços de Cadastro para virem delimitar os 30 hectares que nos pediram e nos devolvam 370, porque o que nos fez a Green Resources é uma tristeza inesquecível para o povo. ” Mas, entretanto, os 400 hectares a que se refere já estão plantados com eucaliptos e as famílias que aí viviam foram obrigadas a sair. A empresa norueguesa Green Resources, a Portucel Moçambique, controlada pela empresa portuguesa The Navigator Company — anteriormente conhecida por grupo Portucel Soporcel — e a emiradense Vale do Rio Lúrio gerem 67% da totalidade de terra cedida pelo Governo de Moçambique a explorações de larga-escala depois de 2008. Sozinhas ocupam sete vezes mais hectares (961. 298) do que as sete empresas moçambicanas que operam na região (119. 012 hectares), segundo os números compilados ONGD Grain. Escoltado pela polícia, o entretanto substituído administrador do distrito de Mecuburi está sentado numa cadeira de plástico — uma espécie de trono improvisado para a reunião. Quando Francisco termina de ler a carta, Hilário Anapacala dá a palavra ao representante da empresa, que garante ter negociado a cedência da terra com a “rainha [chefe tradicional] e toda a sua equipa de liderança”. O engenheiro Aníbal dos Anjos repete que o objectivo do projecto Lurio Green é “ficar para sempre” e construir uma fábrica de papel na província de Nampula, motivo pelo qual “precisa de uma machamba grande” para plantar eucaliptos. Já o líder governamental pressiona a população a ceder às exigências da Green Resources e mostra-se incomodado com a presença “inesperada” de “pessoas da Europa”. Ambos recusaram falar para esta reportagem. Apartada da roda de pessoas, está uma mulher vestida com uma farda que faz lembrar a da polícia. Rosto cerrado, não diz uma palavra. É a chefe de Napai II, a “rainha”, como lhe chamam. Foi ela a representante dos camponeses desde o início das negociações e a única que parece não estar contra a plantação em massa de eucaliptos. As promessas por cumprir estão à vista de quem as quer ver. Mais difícil é perceber se existe, ou não, ilegalidade em todo o processo. De acordo com a lei, é obrigatória a organização de uma consulta comunitária — espécie de acordo de cavalheiros, selado pelo Governo, entre a comunidade e a empresa. Mas são muitos os esquemas usados para contornar as regras: “As consultas comunitárias resumem-se a conversas com os líderes tradicionais e as empresas. É obrigatório que esteja presente pelo menos um representante do Governo, mas os administradores, os chefes de posto, que deveriam defender o povo, só pensam na agenda do dinheiro. Para conseguirem o direito a explorar a terra, pedem às pessoas para assinar uma folha sem título e anexam as assinaturas a um documento onde está escrito que a cedência foi autorizada. Se a rainha recebeu cabeças de cabrito e uma casa nova, imaginem quanto é que não deram ao administrador do posto. . . ”, denuncia o coordenador de projectos na Comissão Arquidiocesana Justiça e Paz, Anselmo César. “A questão principal é que o Estado não se demitiu das suas funções, o Estado definiu como suas funções servir o capital, servir o desenvolvimento do capital”, acrescenta o economista Carlos Nuno Castel-Branco. “Os impactos negativos são mais do que os positivos”, avalia o estudo sobre “O Avanço das Plantações Florestais sobre os Territórios dos Camponeses no Corredor de Nacala: o caso da Green Resources Moçambique”, proposto por um grupo de três organizações moçambicanas — Livaningo, Justiça Ambiental e União Nacional Camponeses — e realizado em 2016 pela consultora Lexterra. Os representantes do Governo moçambicano não partilham a mesma análise: “A Constituição da República de Moçambique define a agricultura como base do desenvolvimento económico do país. As terras são ocupadas de acordo com uma dinâmica — demográfica, de produção. . . São áreas que estão subaproveitadas neste momento. Quase 90% da agricultura nacional é composta por pequenas explorações, temos pouco sector privado. A cultura empresarial ainda é incipiente, resta muita área para ser trabalhada”, avalia o director provincial de Agricultura e Segurança Alimentar de Nampula, Pedro Zucula, numa entrevista que deu ao P2 no seu gabinete. Uma posição que é reforçada pela vice-ministra da Agricultura e Segurança Alimentar: “Não existe nenhum conflito de interesse, pelo contrário, o que nós estamos a notar é que o pequeno produtor actualmente está preocupado em aumentar as suas áreas de produção, já tem consciência do que realmente tem de produzir (. . . ) É uma novidade para nós que existam camponeses a queixarem-se da presença destas empresas”, diz Luísa Caetano Meque, enquanto lê um documento projectado na parede que o seu assessor vai escrevendo ao mesmo tempo que o P2 lhe coloca questões. “Agora estamos no aguenta, aguenta, aguenta. Dantes havia produção, conseguíamos vender e comprar no mercado. ” Francisco chama-lhe “aguenta, aguenta, aguenta”, o Governo diz que é o “desenvolvimento”. É como a pobreza, depende sempre dos olhos de quem a vê. Falta de terra para cultivar e menos comida, é essa a cara com que o progresso se apresentou aos camponeses de Napai II. “Só pagaram os cajueiros, mas os outros produtos que havia ali dentro da machamba, nada. Na minha terra tinha 90 cajueiros. Por ano, tirava cinco mil, seis mil meticais [90 euros]”, queixa-se Francisco. As outras árvores de fruto não sabe quanto é que davam, era a mulher que fazia a colheita e a vendia no mercado. Não sabe, nem quer saber, a terra é um património que não se pode traduzir em meia dúzia de tostões: “Não vale a pena ser analista, saber que gastei tanto ou apanhei tanto”, explica. CatarseChegamos ao Ruace na província da Zambézia. Para trás, à esquerda, os campos que noutros tempos alimentavam os moradores da aldeia estão hoje cobertos de soja. É essa a herança visível das “promessas doces” feitas pela empresa de agricultura intensiva Hoyo Hoyo. O frenesim nas ruas anuncia que a missa de domingo está prestes a começar, só as 44 pessoas reunidas no edifício da antiga escola quebram a normalidade. Dez anos depois, perdido o que havia para perder, o medo de falar desnudou-se. A sua revolta já não tem filtros, querem “descarregar”. As mesmas histórias repetiram-se vezes sem conta, como se tivessem sido passadas a papel químico: “Não éramos ricos, mas tínhamos uma vida boa, podíamos mandar os nossos filhos à escola, construir as nossas casas. Agora perdemos tudo. . . ”Durante três horas, o que ali se viveu foi uma catarse colectiva. Todos os presentes eram antigos trabalhadores da Urari Kapel, uma empresa pública que começou a produzir milho, feijões, girassóis e soja depois da independência de Moçambique, a 25 de Junho de 1975. Faliu logo depois, com a intensificação da Guerra Civil, que começou em 1977. Nessa altura, as pessoas que ficaram desempregadas tomaram conta das terras, tudo com o aval do Governo: “Veio um grupo de extensão rural da província que fez a distribuição das áreas pelos próprios trabalhadores. Começámos a produzir, a produzir, a produzir, 30 anos a produzir. Esses, quando vieram, encontraram tudo limpo. As pessoas conseguiam meter tractores, lavravam. . . Trabalhámos desde que a Kapel saiu até ao momento em que eles entraram. ” Baptista Frisado, 54 anos, nunca chama a Hoyo Hoyo pelo nome. Como se evitá-lo a pudesse tornar menos real. A Hoyo Hoyo (que em changana, uma das línguas do Sul de Moçambique, significa “bem-vindo”) é uma empresa registada no país em 2008. Era detida pelo grupo Quifel Resources, controlado pelo empresário e piloto de automóveis Miguel Pais do Amaral. Já depois de o Governo ter aprovado a exploração de 28 mil hectares nas províncias da Zambézia e de Tete, a empresa foi vendida e registada como Hoyo One nas ilhas Maurícias — conhecidas por serem um paraíso fiscal — e passou a ser controlada pela Hoyo Hoyo B. V, com sede na Holanda. Ambas integram o Grupo BXR, dos Países Baixos, detido por banqueiros com fundos ligados ao Credit Suisse e pelo checo Zdenel Bakala, com uma fortuna avaliada em 1, 6 mil milhões de euros, segundo a revista Forbes. O relatório “Os usurpadores de terra do Corredor de Nacala”, publicado pela ONGD Grain, reúne esta informação e adianta ainda que em 2012, ano em que a empresa passou para as mãos do Grupo BXR, as pessoas já tinham sido expulsas das suas terras, mas o investimento em produção era ainda nulo. Ainda hoje, os camponeses de Ruace conseguem descrever, ao detalhe, aquela terça-feira — dia 12 de Agosto de 2008 — em que se encontraram com os representantes do Governo local e da empresa de agro-negócio. O dia em que, recordam, a Hoyo Hoyo entrou na sua aldeia com uma “política do açúcar” e lhes garantiu que, se desistissem das 136 associações a que pertenciam e fossem trabalhar para a empresa, conseguiriam aumentar a produção. “Disseram que queriam fazer um campo de demonstração para fomentar a produção de soja e que seriam os nossos compradores locais”, recorda Teresa Augusto, 43 anos. “Prometeram ajudar-nos a lavrar as machambas para aumentarmos a produção e termos uma agricultura avançada. Ficámos muito satisfeitos. Foi uma festa grande. Mas já está a fazer dez anos e nada. Nada. . . ”, acrescenta Baptista Frisado. Os camponeses de Ruace foram reassentados no Moja, uma zona montanhosa a mais de quatro horas a pé da aldeia. Nunca mais puderam voltar a entrar no recinto onde lhes tinham sido prometidas as hortas de experimentação. Até o cemitério, onde antes velavam os seus mortos, está agora cercado. “Desde 2011, nenhum de nós trouxe dali um cesto de milho. Nem pelo menos dez quilos de soja. Depois de chover, aqueles terrenos tornam-se um pântano. Em 2011, ficámos na miséria. Em 2012, ficámos na miséria. Em 2013, ficámos na miséria. Em 2014, quando voltámos a estar na miséria, decidimos alugar outra machamba”, conta Teresa. Queixa-se dos solos pouco férteis e dos conflitos com outros camponeses que reivindicam ter direito às mesmas terras. “Ficar na miséria” é trabalhar durante meses no campo e não conseguir trazer comida para casa porque a terra é árida. Berta Assane, 61 anos, não demorou muito a perceber que teria de se virar por outro lado. “Abandonei aquilo, não me trazia benefício, sofria de graça. Os 1500 meticais [20 euros] que a empresa me deu de indemnização ajudaram-me a conseguir outro terreno no lado do Niassa [província que faz fronteira com a Zambézia]. Quando vou para lá, chego a passar dias longe de casa, é impossível ir e voltar, antes estava a poucos minutos da minha horta”, conta. Berta e Teresa acabaram por desistir e renunciar ao talhão onde foram reassentadas. Arminda Ambrósio põe os olhos nas amigas e diz que gostaria de fazer o mesmo, mas não tem dinheiro para isso. Com 42 anos e nove filhos, três falecidos, queixa-se de que “já não era para estar nesta situação”: “Antigamente, eles iam à escola porque eu tinha dinheiro, produzia soja, milho e conseguia vender. Até roupa nova os meus filhos tinham. Agora não tenho nada. Não tenho maneira de comprar cadernos, livros, canetas, de pagar a matrícula. Não tenho. Estão em casa e aí ficam. Sentados. ”Os camponeses já tinham pedido muitas vezes ao Governo local para legalizar o terreno onde as associações trabalhavam há quase 30 anos. A resposta era sempre a mesma: “A terra é do Estado, não se vende. ” “Porque o nosso pai nos traiu?” A pergunta é retórica, mas, ainda assim, repetida até à exaustão. Como se, na resposta, pudessem encontrar uma solução. O “pai” de que falam é a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), partido no poder desde a independência do país. O mesmo movimento revolucionário que lutou contra o colonialismo, que se bateu para que os camponeses pudessem ter acesso à terra, usa-os agora “como isca para poder apanhar peixe”. As palavras são do camponês Custódio Mulotiba: “O antigo director do posto veio como isca, com uma política de açúcar, e dominou-nos. Disse-nos que, depois de a empresa abrir, ficaria dois anos, mas nem um dia aqui dormiu. Está a viver em Maputo, com uma vida boa. Nós é que ficámos. Há um provérbio que diz que, quando os elefantes lutam, quem sofre é o regadio. ”“Há uma justificação histórica para isto. Depois da independência, num contexto em que não podíamos fugir da influência imperialista, mas não queríamos que os recursos do país fossem totalmente saqueados pelo capital externo, formou-se uma burguesia nacional que protegesse os recursos de Moçambique. E quem é mais patriótico do que aqueles que lutaram pela libertação da pátria? A primeira onda de expropriação foi feita pelo Estado para fazer emergir este grupo de proprietários que não teve sucesso. Depois, uma boa parte destas empresas ficou obsoleta: os sistemas de financiamento não eram adequados, não havia serviços de apoio à reabilitação empresarial. A ligação com o capital estrangeiro tornou-se uma opção viável por vários motivos: são multinacionais que dominam os mercados internacionais, têm tecnologia, têm reputação, têm experiência. O grande problema é que tornar os recursos apenas disponíveis para as multinacionais significava que a burguesia capitalista oligárquica moçambicana iria perder no processo. Para que isso não acontecesse, ligou-se a penetração do capital internacional ao desenvolvimento do capital nacional — não é por acaso que houve uma enorme campanha de divulgação das riquezas de Moçambique, “temos gás, temos petróleo, temos carvão, temos minerais”, explica Carlos Nuno Castel-Branco, doutorado em Economia e professor no Instituto de Estudos Sociais e Económicos, em Maputo, e no Instituto de Economia e Gestão, em Lisboa. E continua: “A maneira de fazer esta ligação entre capital nacional e internacional foi colocar os primeiros a negociar com os segundos. Mas, para este processo acontecer sem custos adicionais, o Estado teve de abdicar dos seus ganhos: minas, recursos, foi tudo posto à disposição a baixo custo, tornando qualquer negócio favorável. ”Os camponeses de Ruace sentem na pele esta indefinição nas fronteiras que deveriam separar a acção do Estado daquilo que são os interesses de privados. Sabem estar a travar uma luta de David contra Golias, mas, mesmo assim, recusam-se a entregar aquilo que garantem ser seu. Em Outubro de 2016, voltaram a confrontar o Posto Administrativo de Lioma, ao qual pertence Ruace, e a Hoyo Hoyo, com uma carta onde pediam uma resposta às promessas que lhes foram feitas: “Por verificar que a empresa Hoyo Hoyo demorou aproximadamente nove anos sem cumprir os seus compromissos, a comissão comunitária dos produtores de Ruace (. . . ) lamenta o facto de a empresa ter prometido actividades enganosas ao povo — construção de uma escola e de um hospital rural, água canalizada, reabilitação da estrada entre Ruace e Lioma e assistência técnica aos produtores associados (. . . )” e pede a “devida resposta”. Mais de um ano depois, continuam à espera. Quando contactados pelo P2, o então chefe do Posto de Lioma, João José Nwole, e o director de investimentos agrícolas da Hoyo Hoyo, Gordon Cameron, aceitaram explicar o seu lado da história e quebrar o ciclo de silêncio que, dia após dia, corrói um pouco mais a esperança dos que só pedem que o prometido seja cumprido. “Não tem havido conflitos. Para começar a trabalhar, a empresa precisa que lhe seja cedida área e, para isso, fazem-se consultas comunitárias. Nada tem entrado em contradição com as populações. A área explorada pela empresa é diferente da área onde as famílias produzem. As empresas vêm incrementar a própria agricultura, conseguem produzir em grandes quantidades, enquanto a população produz em pequenas quantidades”, diz o responsável do Governo local, alheio às queixas dos camponeses de Ruace. Já o director de investimentos agrícolas da Hoyo Hoyo garante, por email, que os responsáveis locais da empresa estão em “estreita comunicação” com os líderes comunitários e atira a culpa para os anteriores donos: “Os portugueses, proprietários originais da Hoyo Hoyo, fizeram muitas promessas que não cumpriram ou não puderam cumprir. Quando assumimos a empresa, avaliámos esses compromissos — já que agora exploramos apenas 3 mil hectares [os portugueses tinham dez mil] — e, portanto, temos um negócio muito menor. De acordo com o nosso tamanho actual, a Hoyo Hoyo construiu uma ponte na estrada entre Ruace e Lioma; construiu e mantém quatro poços de água em Ruace; forneceu, em 2012, uma ambulância, combustível e a sua manutenção; dá assistência material e alimentar a dois orfanatos; dá assistência alimentar aos membros mais carenciados da comunidade; oferece estágios a estudantes de universidades locais. Não foi possível realizar grandes projectos, como a construção da escola, porque os 10 mil hectares iniciais não se materializaram, portanto, as receitas não foram suficientes. ” O responsável não comenta os solos arenosos para onde as hortas dos camponeses foram transferidas, mas garante que “todos os reassentamentos ficaram concluídos em Outubro de 2016, bem como os pagamentos de reinstalação”. “Sabemos que, em alguns casos, a população não aceitou ser reassentada porque as suas outras machambas ficavam longe. Preferiram receber o dinheiro e, em seguida, desenvolver mais machambas perto das suas áreas”, explica. “Ter machamba é um direito humano!” Teresa não tem dúvidas de que o direito a ter um pedaço de terra para cultivar deveria fazer parte de um dos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O documento, adoptado pelas Nações Unidas em 1948, diz que todo o ser humano deve ter acesso “a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos (. . . )”. Mas Berta, Teresa e Arminda não conseguem imaginar como é que isso será possível sem que antes lhes garantam o chão onde vão buscar tudo o resto: “A Lei da Terra foi feita para que os moçambicanos pudessem explorar as suas terras, e agora estamos a passar fome. Antes, fazíamos quatro refeições por dia — o mata-bicho [pequeno-almoço], almoço, lanche e jantar, mas agora já não estamos a conseguir. Perdemos corpo”, queixam-se. Mais do que em soluções universais, mais do que em vozes que estão lá longe, Berta acredita que é em Moçambique, nas mãos do Presidente Filipe Nyusi, que pode estar o antídoto para quebrar a “maldição” que caiu sobre Ruace. Pedem aos jornalistas, em quem identificam um instrumento capaz de ampliar a sua voz, para ir a Maputo perguntar “porque não olham por eles, porque é que o ‘pai’ os abandonou”. Pedem ao Governo, a quem chamam “pai”, para ir até ao Ruace ver aquilo a que estão sujeitos. E deixam-lhe uma mensagem: “Se ele [Filipe Nyusi] estivesse aqui mais perto, até podíamos ir a pé. Dormíamos no caminho até chegar lá, onde está o nosso Presidente. Assim, seria possível contar-lhe o que se está a passar, o que estamos a ver, o que estamos a sentir. ”A resistência mora aquiHá 19 anos, quando Nakarari ainda não era Nakarari, Agostinho Mcerneia pegou numa faca de mato e desbravou o caminho que o levou ao sítio onde hoje vive com a mulher e os sete filhos. Orgulha-se de ter sido o primeiro a chegar à aldeia. De ter sido aquele que chamou os outros. Olha em volta — para as crianças que brincam debaixo da mangueira, para as mulheres sentadas num tapete de palha — e com um sorriso de glória conta como foi: “Dava medo passar aqui. Era só mato, não vivia ninguém. Como fui comandante das milícias [forças armadas, apoiadas pelo Estado, que protegiam as zonas rurais], tinha experiência e consegui. Vi que era uma boa terra, que tinha o rio perto, água para regar as hortas. ”Agostinho não sabe ao certo quantos anos tem, mas garante serem mais de 60. É o líder da aldeia de Nakarari, uma aldeia que pertence ao distrito de Malema, na província de Nampula. Um homem recto em quem todos confiam. Era também a ele que o Governo da região recorria sempre que tinha algum assunto para tratar. Até ao dia em que rejeitou a oferta do chefe do Posto Administrativo de Mutuali — 150 mil meticais [cerca de 2 mil euros] em troca do direito de exploração dos 31. 292 hectares que a comunidade de Nakarari explora colectivamente. Era mais dinheiro do que aquele que alguma vez teve de uma só vez, mas não pagava o que não tem preço. Como não se dobrou, foi posto à margem: o homem-ponte, por quem passava toda a informação, é agora mal aceite pelos representantes do Governo. “Ele disse-me: ‘Você é velho, fique com esse dinheiro. ’ Mas como é que eu ia dizer isso às pessoas? Este mangueiro é nosso, fomos nós, todos, que o semeámos, que o levantámos. Vou receber os 150 mil e obrigar toda a gente a sair? Isso não vale a pena. ” A resposta não deixou margem para negociações, preferia as terras que ficam para sempre ao dinheiro que se evapora: “Queriam deixar entrar a Agromoz, queriam deixar entrar o ProSavana. . . ” Para Agostinho, a Agromoz e o ProSavana são duas faces de uma mesma moeda, ambos representam uma ameaça. A Agromoz é uma empresa de agricultura de larga escala que explora uma extensão de 10 mil hectares em Wakua, a aldeia que faz fronteira com Nakarari e estabelece a divisão entre as províncias da Zambézia e Nampula. Resulta de uma parceria entre o Grupo Américo Amorim (accionista maioritário) — que deve o seu nome ao empresário português que faleceu em Julho de 2017 e foi considerado pela revista Forbes o homem mais rico de Portugal, com uma fortuna avaliada em 4, 4 milhões de dólares; a Focus 21 — gerida pela família do ex-presidente de Moçambique Armando Guebuza; e o Grupo Intelec — uma das maiores sociedades moçambicanas de investimento privado. Sem site institucional ou presença nas redes sociais, chegámos a duvidar da sua existência. Uma pesquisa por “Agromoz” no motor de pesquisa da Google remete-nos apenas para artigos publicados na imprensa e relatórios de diversas organizações da sociedade civil. O ProSavana é um projecto ainda mais ambicioso. Foi apresentado, em 2011, pelos Governos de Moçambique, Brasil e Japão como um “programa de desenvolvimento agrícola” e prevê a ocupação de 14 milhões de hectares em 19 distritos da região do Corredor de Nacala. Várias organizações da sociedade civil consideram que, se o programa for para a frente, representará um dos maiores ataques à agricultura camponesa em Moçambique. Até agora, têm conseguido travar o seu avanço, mas as negociações nunca cessaram e a sua implementação continua a ser uma hipótese. Agostinho não precisa que lhe contem o que acontece quando um projecto de agricultura de larga escala chega a uma aldeia do interior do país. Viu-o com os próprios olhos: “As pessoas desalojadas pela Agromoz, que estavam do lado da Zambézia, vieram para Nampula. Eram 120 refugiados — mulheres, crianças. . . Não tinham onde ir, ficaram sem terra, não tinham nada. Disse-lhes onde poderiam construir as suas casas, que ficassem aqui mesmo. Ia fazer o quê? Mas a terra onde estão não é tão boa como a que tinham, não podíamos ajudar mais, apontámos apenas as áreas disponíveis e eles tiveram de fazer tudo sozinhos. ”“Os refugiados”: é assim que quem vive em Nakarari chama aos que lhes pediram um poiso onde pudessem reconstruir a vida. “Refugiados” não porque foram obrigados a abandonar o seu país por motivo de guerra, desastre natural, perseguição política, religiosa ou étnica, mas porque ali chegaram vulneráveis, a pedir refúgio, a naufragar em terra firme. Desde que chegou a Wakua, em Setembro de 2012, a Agromoz dedica-se sobretudo à produção de soja e milho, e tem tentado introduzir o cultivo de girassol (utilizado para ração animal). Dos 10 mil hectares que lhes foram cedidos pelo Governo para exploração, já desmataram 2500 e prevêem aumentar a produção numa média de 500 a 750 hectares por ano. “A nossa ideia é, inserindo sempre a comunidade na nossa actuação, expandir a área e continuar a crescer. Depois de quatro anos de experiência, estamos focados em tornarmo-nos uma empresa mais eficiente, racional e optimizada”, diz o administrador da empresa, Justiniano Gomes. Confrontado pelo P2 com a situação dos desalojados de Wakua, Justiniano Gomes garante que a Agromoz seguiu a lei moçambicana: “Quando chegámos à zona de Wakua, envolvemos, desde o início, os líderes e as autoridades locais. O processo de atribuição do DUAT é legal, tivemos dezenas de reuniões comunitárias em que explicámos o que seria o projecto da Agromoz — as vicissitudes, os aspectos positivos e negativos. Dentro dos aspectos negativos, o maior é sem dúvida o desalojamento das pessoas. Houve um conjunto de indemnizações — valores definidos por lei — para cada bananeira, cada árvore de manga, cada casa, cada hectare de terra lavrado. Foi feito um levantamento exaustivo do número de pessoas que trabalham e moram na zona que queremos explorar. O que é que quero dizer? Que ainda temos população nos nossos hectares, só nos preocupámos em desalojar aqueles que estão na área que queremos cultivar. ” Já João José Nwole, chefe do Posto Administrativo de Lioma, distrito ao qual pertence Wakua, mostrou desconhecer a situação dos “refugiados”: “Aquilo que sei é que no princípio da campanha havia um pequeno conflito em relação aos limites da área da Agromoz. Nessa altura, fomos lá gerir e alertámos a empresa que não podia entrar na área da população. O conflito ficou resolvido e, desde então, não tenho informação de que a população tenha sido prejudicada. ”Julião Antre foi um dos primeiros a pedir ajuda à comunidade de Nakarari: um terreno para capinar e outro para construir uma casa já dava para “avançar com a vida”. Chegou com a mulher, os sete filhos e a roupa que traziam no corpo. “Apontámos o terreno livre onde podiam ficar, mas não é terra boa. Não é!”, reforça Agostinho. “Em Wakua, tinha 37 plantas, 2, 5 hectares de machamba e quatro casas. O dinheiro da indemnização foi 14 mil meticais [cerca de 190 euros]. Era pouco. Comecei a queixar-me e disseram-me: ‘Você é filho da empresa, vai ficar aqui até morrer. ’ Quando ouvi isso, acalmei-me. ” Julião conta que trabalhou na empresa entre 18 de Setembro de 2012 e 24 de Março de 2014 — com dois contratos de seis meses e um de um ano. “Depois, fui expulso. Sem motivo, disseram só que o serviço acabou. Agora já não quero voltar, prefiro ter a minha própria machamba, plantar para comer, para vender. Ser livre. ”Da parte da Agromoz, Justiniano Gomes garante que a empresa não ficou a dever nada a ninguém e diz ter “todo o prazer” em recapitular o processo de indemnizações: “Muitas vezes, as pessoas são entrevistadas, sentem-se importantes naquele momento, e depois dizem que a Agromoz lhes deve cem mil ou um milhão de dólares. Se efectivamente existiu um processo de desalojamento, o funcionário que venha ter connosco. Nós identificamo-lo no nosso arquivo e fazemos prova do que foi tratado na altura. Se alguém diz isso, das duas uma: ou tem más intenções ou pode estar esquecido do processo a que foi submetido juntamente com todos os outros vizinhos. Na altura, todos ficaram muito contentes por vir trabalhar para a empresa. ”Os camponeses desalojados de Wakua e a Agromoz põem lentes diferentes para descrever o que se tem passado nos últimos anos: uns vêem mais pobreza, outros mais progresso. Uma diferença inconciliável que se traduz, muitas vezes, em duelos silenciosos travados nos bastidores. “No dia 8 de Maio de 2016, era um domingo, os membros da União Nacional de Camponeses [UNAC] vieram de várias regiões de Moçambique para visitar os camponeses desalojados pela Agromoz. Poucos dias depois, recebemos uma notificação da polícia e fomos acusados de ter cavado uma picada na estrada que dá acesso à empresa, e de fazermos parte de um encontro entre os homens da Renamo [Resistência Nacional Moçambicana, o segundo maior partido político] e do MDM [Movimento Democrático de Moçambique, a terceira força política no país]”, conta o Presidente da União Distrital de Camponeses de Malema. A acusação de que Manuel Massana fala é resultado de uma carta enviada pela empresa aos diversos representantes do Governo local e regional. Nesse documento, Mana Luft, directora de recursos humanos da Agromoz, refere-se a uma reunião que terá sido organizada próximo da sede onde “a população é convidada a invadir a empresa, queimar pneus e partir para o confronto físico”. A responsável salienta ainda que não estava presente “nenhum único membro do Governo ou do partido Frelimo” e que se ouviram frases como “vou convocar um feiticeiro para enfraquecer os brancos, eles vão abandonar a empresa; vamos começar com uma guerra aqui”. Mana Luft recusou ser entrevistada e não autorizou a recolha de imagens no interior da Agromoz, mas aceitou receber-nos para uma conversa informal — “apenas para vos enquadrar, tudo o que digo é em off, não têm autorização para usar”, salientou. Mas não é só a Agromoz que está atenta às movimentações dos habitantes de Nakarari. O DUAT de 31. 292 hectares que a comunidade explora de forma colectiva há quase duas décadas também chamou a atenção do Governo: “Pediram-nos para apontar numa folha o terreno que estamos a capinar, o número de hectares, o nome do camponês, e entregar essa informação no Posto de Mutuali. Convocámos uma reunião na comunidade para decidir o que fazer e as pessoas disseram que não queriam marcar nada. Recusaram-se porque nos pediram para não contar o mato, só a terra cultivada. Não se pode contar só a terra que estamos a capinar, o mato também é nosso, há-de ser de quem? Decidimos que vamos esperar alguém vir aqui explicar-nos para que quer esta informação”, conta Agostinho. O pedido para a demarcação individual das terras de Nakarari vem na sequência do programa Terra Segura, uma iniciativa do Governo, implementada pelo Ministério da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural, que prevê até 2019 “o registo e regulamento da ocupação de 5 milhões de parcelas feitas de acordo com as normas costumeiras”. “O programa Terra Segura é tão engraçado. Há um Estado que, em 30 anos, conseguiu delimitar e atribuir cerca de 100 mil DUAT [Direito de Uso e Aproveitamento de Terra] em todo o país. Hoje, temos um ministério que se propõe conceder 5 milhões de DUAT em cinco anos. Como vai fazê-lo, com que critérios? Olhando para o programa Terra Segura, é claro que pretende atribuir DUAT em áreas propensas a conflitos. Na minha opinião, este programa é um instrumento que vai legitimar claramente a usurpação de terra, na medida em que poderá delimitar terras confinando os camponeses a terrenos marginais, improdutivos e limitados; vai permitir que o Estado consiga ter uma reserva, uma espécie de banco de terras para fazer a sua própria alocação de terrenos. E, em cinco anos, não vão poder ser atribuídos 5 milhões de DUAT, é extremamente falacioso”, critica Vicente Adriano, da Acção Académica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais. Durante a reunião em Nakarari, Helena Victor foi a primeira a levantar a voz contra a demarcação de terras: “Já viram o que aconteceu aos refugiados? Se quiserem alguma coisa, venham cá e falem connosco. ” Quando chegamos à casa onde vive com o marido e os cinco filhos, chamamos pelo seu nome mas, aos 56 anos, Helena aprendeu que as ameaças nos podem vir bater à porta quando menos esperamos: “Quero falar primeiro com o Agostinho, para saber do que se trata”, trava-nos. Depois do aval do “secretário”, lá começa a explicar o motivo da desconfiança: “As pessoas não podem vir aqui e achar que ainda vivemos na época colonial. Não! Têm de nos explicar o que querem e nós é que decidimos se vamos falar ou não. Desde que a Agromoz entrou na Zambézia, temos de estar atentos, com os olhos bem abertos. ” Helena e o marido, Bernardo Mulodoua, são camponeses por conta própria e não há nada — nem o dinheiro, nem um contrato de trabalho, nem as férias — que os convença de que “ir trabalhar para os outros” lhes pode melhorar a vida: “Talvez ao início até seja bom, mas e depois? Mandam as pessoas para a rua, a terra que antes capinavam já não está pronta para cultivar, vão fazer o quê? Comer o quê?”Da venda do milho, da soja e das diversas variedades de feijão (nhemba, boer, manteiga, jugo, holoco) que cultivam em oito hectares de terra, a família de Helena retira por ano, em média, 45 mil meticais (629 euros) — um valor que, dividido por 12, fica ligeiramente acima do ordenado mínimo mensal estabelecido para o sector agrícola em Moçambique (3642 meticais, cerca de 50 euros). Com esse dinheiro, compram sementes, produtos hortícolas, roupa, calçado e pagam a escola dos filhos que ainda estão a estudar. “E não é só o que ganhamos, é preciso não esquecer que é dessa terra que tiramos a comida com que nos alimentamos o ano inteiro”, acrescenta. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A vida de Helena resume-se ao trabalho no campo. Acorda, vai para o campo, toma o mata-bicho e vai para o campo, vem fazer o almoço, descansa até o sol baixar, e volta para o campo. Ainda assim, não consegue entender como é que ser dependente, estar à mercê dos outros, lhe vai trazer garantias de um futuro melhor. Por isso, pede a Deus que lhe dê saúde para continuar e ao Governo de Moçambique apoio, não só para si, mas para todos os camponeses que querem continuar a sê-lo. Sobre o boato que se espalha quase em surdina — de que há empresas de agricultura de larga escala interessadas nas terras de Nakarari —, Helena arregala os olhos e nega-o três vezes. Como se estivesse a enxotar um pensamento mau que lhe tenha vindo à cabeça: “A maldade que chegou a Wakua vem para aqui? Não, não, não. Para onde havemos de ir, para as montanhas? Não nos vão apanhar porque estaremos aqui, à espera, para os receber. ”Esta reportagem é parte do webdocumentário publicado na revista de jornalismo de investigação Divergente, que pode ser visto em terradealguns. divergente. ptEste trabalho foi realizado com o apoio do Journalismfund. eu e da Free Press Unlimited
REFERÊNCIAS:
Sete ideias para sair esta semana
Siga a festa entre barcos a remos, bolas de Lamego, sons, retratos e humor. (...)

Sete ideias para sair esta semana
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Siga a festa entre barcos a remos, bolas de Lamego, sons, retratos e humor.
TEXTO: Todos a bordoLisboa, Lago do Campo GrandeDia 16 de JunhoPartir à conquista do lago… num barco a remos. Ao desafio lançado pela 6. ª Regata de Barquinhos a Remos chega meia centena de equipas, trajadas a rigor. Nesta competição náutica as milhas fazem-se em pequenas embarcações e a tripulação (que deverá ter entre dois e quatro elementos) entra na corrida com o espírito que se impõe: com um lema, adereços, imaginação e a ambição de levar a taça para casa. A ideia tem o cunho de Fernando Alvim que apresenta a prova em conjunto com Xana Alves e Catarina Moura. Às 17h, a cereja no topo do bolo, neste caso no meio do lago, com o concerto dos lisboetas Capitão Fausto. Quem não quiser participar na regata pode ficar nas margens a ver passar barquinhos e a torcer pelas "delícias do mar, bravos marujos e sensuais sereias" que por ali andam. Horário: sábado, às 14h30. GrátisFeira da BolaLamego, Avenida Dr. Alfredo de SousaAté 17 de JunhoHá as mais tradicionais, de presunto, carne ou bacalhau, e as propostas que arriscam combinações com sabores como frango de caril, marmelada ou chocolate. A cultura da bola volta a estar em destaque nesta feira que dá a conhecer a riqueza gastronómica do concelho numa montra com vista para o Santuário de Nossa Senhora dos Remédios. Para além do produto estrela, a décima edição do certame traz consigo a Feira dos Sabores, Néctares e Tradições de Lamego, onde se mostram licores, fumeiros, vinhos e artesanato local, bem como a Exposição Canina Nacional, agendada para o último dia, que reúne 400 animais de criadores nacionais e internacionais. Horário: sábado e domingo, das 17h às 22h. GrátisVocê Não Está AquiLisboa, Parque das NaçõesAté 30 de SetembroDe sucata e território abandonado a espaço de referência na cidade de Lisboa, o Parque das Nações é um exemplo de renascimento e transformação urbana. Duas décadas volvidas, a propósito das comemorações dos 20 Anos da Expo’98, mostra-se o antes e o depois da zona oriental alfacinha, captado pela lente de Bruno Portela. Entulho, barcos podres, contentores, barracas, poças de lodo e bidões de petróleo fazem parte de Você Não Está Aqui, a exposição que documenta as memórias e ajuda a contar a história através de 78 fotografias de grande escala espalhadas por sete núcleos: Torre Galp, Oceanário, Pavilhão de Portugal, Centro Comercial Vasco da Gama, Pavilhão Atlântico, Torre Vasco da Gama e Ponte Vasco da Gama. A curadoria é de Francisco Leong e José Manuel Ribeiro, os textos são assinados por João Paulo Cotrim, numa produção com o carimbo EGEAC. No primeiro domingo de cada mês, às 10h30, há visitas guiadas e comentadas pelo fotógrafo e pelos convidados João Paulo Velez (1 de Julho), Ana Sousa Dias (5 de Agosto) e Rui Cardoso Martins (2 de Setembro). Nas palavras do autor, "uma cidade pode esconder outra: cuidado a atravessar". Horário: todos os dias. GrátisSantuários e prisõesLisboa, Estúdio 1 da Tóbis (Lumiar)De 19 a 24 de JunhoDepois da passagem por campos de refugiados europeus, o sul-africano Brett Bailey e a sua companhia Third World Bunfight apresentam Sanctuary, uma performance-instalação estreada em parceria com o Teatro Maria Matos, no âmbito do Ciclo Migrações. Em cena, uma prisão labiríntica onde o artista recria episódios com refugiados e migrantes vindos de várias latitudes para pensar as questões e condições da mobilidade. Uma experiência que reflecte o limbo em que muitas pessoas vivem diariamente e a xenofobia, exclusão e violência de que são alvo. Ao público pede-se que se aproxime: que percorra esta "jornada virtual através do terreno surreal de uma União Europeia em crise" e que se sensibilize com a "visão alternativa à narrativa oficial dos políticos sobre as migrações". Histórias na primeira pessoa, com materiais reais. Horário: terça a sexta, entradas às 19h, 19h15, 19h30, 19h45 e 20h; sábado e domingo, entradas às 21h, 21h15, 21h30, 21h45 e 22h. Bilhetes de 6€ a 12€Traços de humorCaldas da Rainha, Centro Cultural e CongressosAté 28 de JulhoReferência no mundo do humor gráfico de imprensa, a exposição World Press Cartoon regressa para apresentar os melhores trabalhos produzidos e publicados em jornais e revistas nas áreas de cartoon editorial, caricatura e desenho de humor. Dirigida pelo cartoonista António (Antunes), realiza-se pela segunda vez nas Caldas da Rainha, terra natal do caricaturista Rafael Bordalo Pinheiro. Uma volta ao mundo em 281 desenhos marcada pelos traços comuns de Donald Trump, das fake news e da liberdade de expressão, e pelos trabalhos vencedores de Cau Gomez e Silvano Mello (Brasil), Fadi Abou Hassan (Noruega), Hicabi Demirci (Turquia), Luc Descheemaeker (Bélgica), Marilena Nardi (Itália), Nedeljko Ubovic (Sérvia), Peter Nieuwendijk (Holanda) e Thomas Antony (Índia). Horário: segunda e terça, das 10h às 13h e das 14h às 19h; quarta a sexta, das 10h às 13h e das 14h às 21h; sábado e domingo, das 11h às 13h e das 14h às 18h. GrátisTempos medievaisGuimarães, Centro históricoDe 21 a 24 de JunhoOutubro de 1143. D. Afonso Henriques e o seu primo Afonso VII, rei de Leão e Castela, assinam o Tratado de Zamora, que reconhece a independência e soberania portuguesa. O episódio serve de cenário à oitava edição da Feira Afonsina que, durante quatro dias, se instala no centro histórico de Guimarães e propõe uma viagem à época medieval, contada com a sabedoria de quem tem nos genes a identidade histórica nacional. Ao burgo chegam mercadores, artesanato, iguarias, torneios, arqueiros, guerreiros e animação de rua, para dar cheiro e cor às memórias de outros tempos. Horário: quinta, das 18h à 1h; sexta e sábado, das 11h à 1h; domingo, das 11h às 22h. GrátisSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Sons da CidadeCoimbraDe 22 a 24 de JunhoPor estes dias, Coimbra tem mais encanto. A cortesia vem do Sons da Cidade, a iniciativa que celebra o quinto aniversário da classificação da universidade como Património Mundial pela UNESCO. O programa é extenso e convida à deambulação e descoberta de espaços e património, cruzando as artes e trazendo novas leituras da cidade. Há música, cinema, performances, visitas guiadas, uma festa Joanina, uma caminhada inclusiva e até um roteiro gastronómico. Ficam alguns dos momentos a não perder: Jungle Red de Carlota Lagido no Jardim Botânico (dia 22, às 18h30); o filme Universidade de Coimbra, Alta e Sofia: Vamos Descobrir? no Teatro Académico Gil Vicente (dia 22, às 21h30); Alta(s) Histórias Soltas no Largo S. Salvador (dias 23 e 24, às 16h30); Já Só o Vento Canta de Américo Rodrigues junto ao Colégio de S. Bento (dias 23 e 24, às 18h30); o Jantar Joanino no Largo do Poço (dia 23, às 20h) e o concerto de Adriana Calcanhotto no Teatro Académico Gil Vicente (dia 24, às 21h30). Grátis (excepto concerto de Adriana Calcanhotto, 10€, e Jantar Joanino)
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O dia em que os discos do Zeca ficaram para trás
Falamos de menos sobre isto. Passou-se muito, muito tempo antes de voltarmos a conversar sobre aqueles dias que mudaram as nossas vidas. Na verdade, quase 40 anos. Metade dos seis que seguiam naqueles dois carros de Sá da Bandeira a Windhoeck já não estão entre nós. (...)

O dia em que os discos do Zeca ficaram para trás
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.2
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Falamos de menos sobre isto. Passou-se muito, muito tempo antes de voltarmos a conversar sobre aqueles dias que mudaram as nossas vidas. Na verdade, quase 40 anos. Metade dos seis que seguiam naqueles dois carros de Sá da Bandeira a Windhoeck já não estão entre nós.
TEXTO: Naquele dia, ao fim da tarde, o nosso pai pôs aquele olhar assustadoramente grave e foi buscar às entranhas um tom mais pesado do que aquele que usava quando cantava Os filhos da madrugada do Zeca Afonso — ou cantaria depois daquele dia, talvez seja mais exacto, mas já antes lia Mao Tsetung no café… “Houve uma revolução em Lisboa, não sabemos o que vai acontecer!”, anunciou, deixando no ar a garantia de que, fosse o que fosse, nada seria como dantes. Mas ao princípio até foi…Desde aquela tarde de 25 de Abril de 1974 até Julho de 75 muita coisa aconteceu. Para nós, a mais importante foi a mudança de cidade. O nosso pai deixou o escritório em Moçâmedes e o repertório do Zeca, a nossa mãe deixou o liceu onde dava aulas, e nós — Ricardo, 11, e eu, 9 — a maior fatia da infância ali, entalada entre o mar e o deserto do Namibe. Não haveria mais domingos de aventura deserto adentro, numa espécie de safari visual, ou de caça às ágatas, que se amontoaram no escritório até que o pai construiu aquela geringonça para as polir e nos dar uma teórica lição de vida. Era uma caixa mal-amanhada de madeira com uma manivela que fazia as pedras roçarem umas nas outras lá dentro, o que, com tempo e paciência, tornaria luzidios os veios terra-esverdeados daquelas pedras. “É como nós nesta vida”, dizia: “É no esfrega-esfrega diário uns contra os outros que vamos evoluindo e ficando mais polidos. ” Hoje tenho dúvidas, mas não das suas boas intenções. Quase da noite para o dia metemo-nos no carro pela madrugada e fomos, os quatro, para a ainda Sá da Bandeira. O pai tinha sido eleito presidente do conselho directivo da Faculdade de Letras do Lubango, um pólo da Universidade de Luanda — onde dava aulas de História da Arte Africana e Angolana. Mudámo-nos quando lhe foi atribuída casa de serviço: o primeiro andar de uma moradia mobilada, numa rua perto da universidade onde havia também residências de estudantes. As nossas coisas — brinquedos, móveis, muita roupa — não voltaram a sair dos anexos dessa casa. O nosso despojamento tinha começado de forma camuflada. Nesse ano de 75, quando as contas bancárias foram congeladas e não se podia levantar mais do que uma pequena quantia por semana, já os aviões estavam esgotados, os barcos parados e os pais de família entravam em desespero. Não o nosso. Era corajoso e determinado, mesmo sabendo que a casa era vigiada dia e noite. Naqueles meses de incerteza que antecederam a independência, ser independente podia ser muito incomodativoEstar à frente de uma universidade ou de um pólo universitário representa poder. Naqueles meses de incerteza que antecederam a independência, ser independente podia ser muito incomodativo. São alturas em que todos têm de ser identificados ou como amigos ou como inimigos. Alguns processos democráticos começaram a ser praticados mas não eram interiormente bem aceites por alguns quando os resultados das eleições desagradavam. O nosso pai, que era independente, tinha sido eleito presidente do conselho directivo numa lista em que o outro professor (também português) era simpatizante da UNITA e o representante dos alunos (angolano) era militante da UNITA. Esta lista derrotara uma outra do MPLA. Tinha havido campanha e voto secreto. Mas desde a tomada de posse até à tomada da universidade pela força não passaram muitos meses e estes nunca foram pacíficos. O pomo da discórdia era a “independência” da Universidade do Lubango da de Luanda. Corriam os primeiros meses de 1975. Na “metrópole”, o 11 de Março estava a acontecer e o Verão Quente estava em marcha. A situação em Lisboa era tão confusa que pouco sobrou de atenções para o que se passava lá longe, em África. Pelo menos do lado da opinião pública. Mas a 31 de Março criou-se, em Lisboa, o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais. Nós nunca viemos a precisar dele. O Acordo do Alvor, assinado no Algarve em Janeiro de 75, criara um governo de transição liderado pelo alto-comissário para Angola (cargo que teve vários protagonistas antes de cair, em fins de Agosto) e ministros dos três partidos, MPLA, UNITA e FNLA. O ministro da Educação, Jerónimo Wanga, era da UNITA, mas o partido com mais peso desse governo era o MPLA e este considerava a educação um sector estratégico, que devia ser centralizado. Não era esse o entendimento de Wanga, que apoiava a criação de uma segunda universidade no país, precisamente a do Lubango. Foi nesse contexto que foi crescendo a guerra de facções dentro da universidade — reflexo da guerra fria que se vivia no próprio governo de transição — e começou aquilo a que a nossa mãe chama “perseguição ao conselho directivo”. Em Sá da Bandeira havia muitos estudantes do MRPP que, dizia-se, tinham sido enviados de Portugal para estudar em Angola na pré-independência e para apoiar o MPLA. Em frente à nossa casa havia uma residência de estudantes do MRPP e era daqui que os nossos movimentos eram vigiados, isso era visível para nós, os miúdos. Da varanda de casa, onde eu brincava às casinhas, ou da rua onde andávamos de bicicleta, era flagrante a vigilância: havia sempre alguém às janelas ou varandas, havia comunicações via rádio a relatar os nossos movimentos, comentários. Na universidade, havia as frases ditas de forma audível nas costas dos pais, ameaças, algumas de morte, que depois também chegariam em papel por baixo da porta de casa. “Pelo menos instalavam o medo”, diz a mãe. Para concretizar o plano de tornar independente a Universidade do Lubango, o ministro da Educação telefonou ao pai dizendo que ia no dia seguinte a Sá da Bandeira para se encontrar secretamente com ele. Mas o MPLA soube desse encontro secreto e fê-lo abortar. Muitos estudantes foram para o aeroporto esperar pelo ministro e acompanharam-no durante todo o tempo, tanto o que durava a visita oficial à universidade, como o tempo que ele tinha reservado para se encontrar com o conselho directivo. O encontro não aconteceu, mas a narrativa estava construída: começaram as acusações de conivência entre o conselho directivo e o ministro com vista à separação da Universidade do Lubango da de Luanda. Foi o que aconteceu 34 anos depois, em 2009, quando o campus da Universidade Agostinho Neto se tornou autónomo, mantendo o carácter público e ganhando o nome de Universidade Mandume ya Ndemufayo. No site da UMN conta-se que, em Junho de 1974, o alto-comissário Silva Cardoso e o então ministro da Educação desdobraram a Universidade de Luanda em três: Universidade de Luanda, Universidade do Lubango e Universidade do Huambo. “Mas na prática esta abordagem nunca chegou a funcionar” devido à guerra civil, lê-se no site. Autonomizar a universidade, “seria um crime de lesa-pátria?”, pergunta a mãe. A tentativa era grave o suficiente para desencadear um “julgamento” na universidade. Os três membros do conselho directivo foram intimados a comparecer à vez em interrogatórios prévios perante assembleias de estudantes. Entravam numa sala de aulas onde dois inquisidores os interrogavam e os alunos se apinhavam no chão, nas mesas, nas janelas. Foi o que a nossa mãe viu pela porta quando foi a vez de o nosso pai entrar. “Mas fez, não fez, diga, mas diga!” Demorou horas! Queriam saber se tinha ou não havido um contacto prévio para um encontro secreto com o ministro com o objectivo de criar uma universidade independente. Era o prenúncio do julgamento popular que prometeram fazer logo que fosse possível. [A 28 de Agosto, o Diário de Lisboa relata o primeiro julgamento popular, ocorrido em Luanda. Seis elementos das FAPLA, braço armado do MPLA, foram acusados de violar, roubar e assassinar 11 pessoas. Foram julgados por um tribunal popular no bairro suburbano de Sambizanga, e logo ali condenados e executados, em público. ]Desde Fevereiro — nem um mês depois do Acordo do Alvor e da posse do governo de transição — tornara-se óbvio que a desconfiança entre os movimentos estava longe de diminuir. O poder residia, de facto, nos exércitos que cada movimento não cessava de armar. Por esses dias de Junho, realiza-se no Quénia a Cimeira de Nakuru — para a qual Portugal não foi convidado —, promovida pelo Presidente queniano, Jomo Kenyatta, com a presença dos líderes dos três movimentos: Agostinho Neto (MPLA), Jonas Savimbi (UNITA) e Holden Roberto (FNLA). A 21 de Junho de 75, os três reconhecem culpas e prometem pôr fim à violência. Mas, como rapidamente se percebeu, eram apenas boas intenções. Algures em meados de Julho de 1975 a universidade foi tomada pela força. Um secretário foi ao gabinete do director avisar o pai que o campus estava a ser ocupado. Nem o deixou chegar à porta, ele teve de sair pela janela do seu gabinete, um segundo andar: valeu-lhe ser arquitecto e conhecer as rugas do edifício onde se agarrar… Mas saiu à pressa e teve de lá voltar. Nessa mesma noite, fomos todos para um posto militar português. Havia sopa quente e café que a mãe bebia às canecas, envolta em fumo, do café e dos cigarros que fumava sem parar. Nessa mesma noite, fomos todos para um posto militar português. Havia sopa quente e café que a mãe bebia às canecas, envolta em fumo, do café e dos cigarros que fumava sem pararEntre o quartel e a universidade havia um enorme campo, talvez cultivado, em que o nosso pai mergulhou na escuridão. Ele ia com outra pessoa — as memórias não são consensuais sobre este episódio. Na minha memória, ele atravessou o negro, demorou uma eternidade e emergiu por fim com aquele seu ar atrevido e determinado. O que o nosso pai teve de voltar para ir buscar — dessa vez ou de outra — foi o selo branco da universidade com que se oficializavam os documentos. Nos dias seguintes, o conselho directivo continuou a trabalhar na clandestinidade, que é como quem diz, na nossa casa. Mas era preciso ter cuidado: o rapaz que trabalhava lá em casa — fazia as limpezas, cozinhava e vivia num anexo — era do MPLA. Era o tempo dos comunicados políticos lidos na rádio. Em Lisboa, em Luanda, no Lubango. As lutas universitárias tinham espaço garantido na Rádio Clube de Sá da Bandeira (onde trabalhou o estudante Emídio Rangel), que transmitia os comunicados de um lado e de outro. Do conselho directivo e dos opositores. Em tempo de guerra não se limpam armas e muitas vezes os “tiros” vinham sujos de mentiras e insinuações. “A certa altura, disseram na rádio que o pai tinha sido membro do campo de concentração de S. Nicolau, o que era uma absoluta mentira. O pai foi lá uma única vez porque na universidade pensou-se em fazer daquele lugar um pólo agrícola”, relata a mãe. “Eles pegavam em tudo o que podiam, inventando, para denegrir a imagem do conselho directivo. ”Foi nessa altura que, uma ou duas vezes, à saída para a escola de manhã, havia envelopes por baixo da porta. O pai abriu, a mãe leu e disseram: “Hoje vocês não vão para a escola. ” Deve ter sido numa dessas noites longas, em que adivinho a insónia dos nossos pais, que eles traçaram o primeiro plano de saída. De fuga. Uma manhã, a mãe e nós (os miúdos) estávamos a conversar no anexo da máquina de lavar:— Isto está a ficar complicado. O melhor é vocês irem para Portugal. Vão ter com a família. Nós vamos logo que pudermos. — Não! — disse Ricardo, o irreverente, 11 anos de furacão interior, de tempestade perfeita. Nós preferimos morrer com vocês do que ficar sem pais. Esta foi a memória que ficou na minha cabeça. A dele é mais prosaica: não gostava da ideia de irmos sozinhos os dois num avião para o desconhecido Portugal. Diz que nunca disse que preferia morrer…Não chegámos a ter telefone naquela casa (e a televisão não tinha chegado a Angola). Sabia-se dos focos de conflito que iam acontecendo sobretudo por ouvir dizer, pouco passava na rádio ou nos jornais. Ouviam-se relatos tenebrosos de pessoas desaparecidas, de pilhagens, roubos, violações. Ouviam-se relatos tenebrosos de pessoas desaparecidas, de pilhagens, roubos, violaçõesAlgures entre Junho e Julho, o pai contactou uma última vez o ministro da Educação. Disse que tinha de ir a Luanda. Decidiu-se que simularíamos uma doença dele, ficaríamos os três a dormir no quarto grande, e assim foi durante dois dias. Numa noite, ele saiu pela janela, percorreu as traseiras das moradias onde vivíamos e umas ruas à frente meteu-se num carro e foi apanhar o avião. Em Angola era tudo longe. Nós encostávamos um móvel à porta do quarto à noite e da janela daquele primeiro andar pendia uma corda, para descer caso fosse preciso. Não foi. O pai voltou em 48 horas e trazia um papel que seria o salvo-conduto para algumas dezenas de pessoas. Era um documento assinado pelo director-geral dos Serviços da Educação, por ordem do ministro. Uma ordem do governo de transição para ir ao Brasil estudar os currículos das faculdades de Arquitectura para, no regresso, criar a primeira licenciatura em Arquitectura de Angola. Com ele trazia também os bilhetes de Windhoek para Curitiba, para cerca de duas semanas depois. Havia que chegar a Windhoek. Ricardo, o irreverente, já então era um espírito livre e selvagem. Não suportava, por exemplo, ver aqueles pássaros lindos amontoados numa gaiola que homens transportavam pela cidade a vender. Por mais que uma vez ia ter com o vendedor, perguntava quanto queria por todos, corria a pedir dinheiro à mãe e voltava para abrir a gaiola. Daquela vez sobrou um passarito. Não saiu da gaiola, não conseguia voar. Tinha partido uma asa, provavelmente na armadilha em que caiu. Ricardo coração de leão e manteiga levou-o para casa. E a mãe cuidou dele como de um filho, deu-lhe de comer no bico, migalhas de pão pequeninas que mastigava primeiro, não sei bem porquê mas ela lá sabe. O passarito viveu lá em casa até ao fim. Partiu connosco no carro, umas semanas depois, em direcção a sul e à liberdade. Na véspera da saída (princípios de Agosto), o nosso pai arranjou três ou quatro jerricans com gasolina, colocou-os no Ford Capri GT verde. Descoseu a parte de trás do assento do lugar da mãe e escondeu ali dinheiro, os passaportes e (possivelmente) os bilhetes de avião. A mãe fez as malas para a viagem sem regresso. Mais do que roupa de vestir, linhos bordados da família, peças em prata, bens com algum valor que se pudessem dar ou vender se fosse preciso. Cozeu mais de 50 ovos e acomodou algum ouro dentro de um penso higiénico camuflado. Uns dias antes ela tinha tentado comprar comprimidos para dormir, mas as farmácias estavam despidas. Não havia nada, os abastecimentos de Lisboa tornaram-se irregulares ou desapareceram. As contas bancárias eram congeladas. Os aviões voavam quando podiam. As outras colónias africanas já eram independentes, faltava Angola. O império esboroava-se assim, peça a peça, família a família, criança a criança. A minha infância ruiu com ele. As outras colónias africanas já eram independentes, faltava Angola. O império esboroava-se assim, peça a peça, família a família, criança a criança. A minha infância ruiu com eleOs comprimidos para dormir eram a porta de emergência que a nossa mãe criara para o plano de fuga. Um plano B, caso não pudéssemos escapar das atrocidades de que se ouvia falar. Violações até à morte de mulheres e crianças, barrigas abertas, pêlos da barba arrancados um a um — e nessa altura o pai já tinha barba…Como não havia barbitúricos, a alternativa eram lâminas da barba, daquelas de dois gumes, encaixe a meio. “Tinha visto um filme em que se falava da doce morte dos pulsos cortados, um esvaimento, sem dor”, conta a mãe, com dor. Naquela madrugada saímos os seis de casa — nós os quatro, a avó que viera uns dias antes de Luanda, onde vivia sozinha, e o Américo, o velho solteirão, amigo de sempre da família, que vinha de Silva Porto com outra coluna de portugueses à procura de saída por terra. Acabou por ficar connosco. Saímos de madrugada sozinhos, sem ninguém à nossa espera. Só o destino. E ali estava ele: à saída da cidade, uma caravana de cerca de uma dúzia de carros, com pessoas de Moçâmedes (actual Namibe), onde tínhamos vivido tanto tempo. Juntámo-nos a eles. Direcção sul — Cuiange, Vila General Roçadas (quartel), Vila Pereira d’ Eça (actual Ondjiva), fronteira de Santa Clara. Cerca de 470km de má estrada pelo interior para sair de Angola, atravessar a fronteira e chegar a Oshakati, o mais próximo campo de refugiados no Sudoeste africano (actual Namíbia). Ainda era noite. Descemos em fila indiana pelas encostas laterais da Serra da Leba, por terras com nomes que hoje nada me dizem. Havia música no carro e ouvimos um anúncio da Coca-Cola em brasileiro que nós cantávamos como se fôssemos de férias: “Hei, você aí, venha para o lado de cá, a gente espera aqui…”Tivemos de parar três vezes. Uma foi por ordem de um grupo armado. Mandaram sair toda a gente dos carros, quiseram ver tudo, mandaram abrir malas, ficaram com coisas. Aos nossos pais tiraram uma faca de abrir envelopes em prata, com o argumento de que era uma arma. Essa paragem demorou muito tempo, ou então foi da tensão que se viveu. Muitos carros foram revistados, muitas perguntas foram feitas. Foi nesta desarrumação de entra e sai que o tal passarinho da asa partida fugiu do carro. A asa já tinha recuperado e o pássaro voou, cantando. E a mãe disse baixinho: “Se ele conseguiu, também vamos conseguir. ”Foi nesta desarrumação de entra e sai que o tal passarinho da asa partida fugiu do carro. A asa já tinha recuperado e o pássaro voou, cantando. E a mãe disse baixinho: “Se ele conseguiu, também vamos conseguir. ”Outra paragem foi no Quartel de Roçadas, um dos aquartelamentos das Forças Armadas Portuguesas ainda no terreno. Os homens da nossa caravana decidiram pedir ajuda aos militares para chegar à fronteira. A mãe ficou impressionada com o estado dos militares: “Estavam sujos, magros, com as roupas estragadas, desanimados. ” O quartel estava cheio de civis portugueses que já tinham deixado as suas casas e procuravam ajuda oficial para sair do país. Nós não entrámos. Seguimos viagem em pouco tempo, depois de partilharmos alguns alimentos entre todos. E agora com escolta militar, paga pelos homens da caravana, um serviço que os tropas aceitaram fazer, mas apenas até Pereira d’Eça, a 40km da fronteira de Santa Clara (Ochicongo). Em Ondjiva (Pereira d’Eça), havia que recolher autorizações de trânsito junto dos três movimentos. O nosso pai volta a assumir o comando e vai de posto em posto recolher as assinaturas necessárias. Vemo-lo passar, num jipe militar descapotável, mais armas que homens ao seu lado, na estrada de pó. Chegámos à fronteira, fisicamente uma linha de arame farpado interrompida por uma cancela de pau e um pequeno exército de homens, militares dos três movimentos. Foram horas de espera, não se sabe bem do quê. Ou melhor, sabia-se: era preciso o consenso dos três partidos para podermos cruzar a fronteira. Mas o MPLA não concordava, achava que devíamos esperar pelo amanhecer, dormir ali, algures, parece que havia por ali uma espécie de pensão de beira da estrada, mas ninguém o viu. Só a sanzala…O pai liderava as negociações da parte da caravana. Passaram-se horas. As pessoas todas do lado de fora dos carros, as crianças como nós a brincar umas com as outras e também com um ou dois miúdos negros que por ali apareceram. Nós entendíamo-nos. Os adultos não. As conversas eram interrompidas e retomadas a espaços. A certa altura, o pai usou os últimos argumentos: exibiu o documento do Ministério da Educação do “governo deles” a enviá-lo em missão ao Brasil. E ameaçou os relutantes: “Se vocês não nos deixam passar, vou fazer queixa de vocês ao Governo e vocês é que terão de dar explicações. ” Resultou. Ou quase. “Está bem, você passa, os outros não. ” Agora improvisa, o pai: “Não pode ser porque a minha missão é secreta. Eu tenho de passar no meio deles para ninguém perceber a minha passagem. ”Seja. Mandaram fazer a lista das matrículas dos carros e passou um a um, todos os que ali estavam, 15 famílias, talvez. O pai ficou apeado, com a lista na mão, mandou a mãe avançar com o carro, mas ela parou a seguir à cancela, em terra de ninguém, à espera do pai. Os carros passaram todos e ficou o breu, nem carros nem pai, só o silêncio e a escuridão, e a mãe avançou devagar, numa “pilha de nervos”. Até que viu o pai vir na nossa direcção: o último carro que tinha atravessado a fronteira era o do Américo e da avó, ele atirou-se lá para dentro pela porta de trás e seguiram, passaram por nós e nem nos vimos. Abraçaram-se com força. Dessa única vez, a mãe chorou. O pai ficou apeado, com a lista na mão, mandou a mãe avançar com o carro, mas ela parou a seguir à cancela, em terra de ninguém, à espera do paiOs militares sul-africanos (na altura, a Namíbia integrava a África do Sul), enormes, contaram em inglês que tinham acompanhado os nossos movimentos durante todo o tempo, por binóculos. Estavam preparados para intervir caso não nos tivessem aberto a fronteira. Daquela vez não entraram em Angola, não foi preciso. Mas muitas outras vezes o terão feito. Nas semanas seguintes, a situação agudizou-se ainda mais. A 30 de Agosto de 1975, o Diário de Lisboa titulava: “Tropas sul africanas avançam sobre Sá da Bandeira”. E noticiava que Pereira d’Eça já estava ocupada. Que “ontem havia indícios seguros de que aviões e helicópteros da África do Sul estariam a sobrevoar General Roçadas”. As forças sul-africanas, noticiava o DL, eram “constituídas por cerca de 800 homens, entre os quais se encontram mercenários portugueses da ex-PIDE/DGS e ex-comandos moçambicanos, apoiados por meios militares sofisticados, tais como carros blindados, obuses de longo alcance, etc. ”Chegámos a Oshakati já seria de madrugada. Ali, no interior da Namíbia, os dias são quentes e as noites geladas. O campo de acolhimento ainda estava a ser montado, fomos os primeiros refugiados a chegar. Havia grandes tendas militares e lá dentro camas de campanha sem colchões, apenas uma rede de aço, sem cobertores. Não havia electricidade, só estrelas. Abriram-se as malas, as roupas e tecidos finos serviram de colchão, almofada e cobertor. Estava mesmo frio. Numa enorme fogueira do meio do campo fizeram feijão e café. Mas não havia pratos, talheres ou copos: cada um arranjasse o que pudesse. Nós — as mulheres e os miúdos — comemos todos de uma salva de prata que a mãe ainda metera no carro. No dia seguinte improvisaram umas casas de banho. Eram umas estacas espetadas no chão seco da savana, pelas quais passava uma lona grossa para resguardar os buracos na terra que serviam de sanitas. Nessa noite já havia colchões e cobertores para as mulheres e crianças. Mais um dia e fomos escoltados até ao campo seguinte, Grootfontein. Muitas vezes maior que Oshakati, mas já a abarrotar. As pessoas acotovelavam-se à passagem dos carros mesmo à noite, para ver quem chegava, se o primo, a irmã, o amigo. À entrada, o registo. Mulheres para um lado, homens para outro. Sopa (água e batatas) para as crianças, café e pão duro para os adultos. Felizmente foi só uma noite. Dali seguimos sozinhos, os seis. Rumo a Windhoek, onde íamos apanhar o avião. Mas ainda faltavam uns dias. Instalámo-nos num pequeno hotel de estrada na cidade, íamos ao supermercado comprar comida que dispensasse fogão — pão, manteiga, leite, bolachas, café, sopas de pacote, chocolate, bananas. Muito melhor que no campo de refugiados!Na véspera de embarcar, o pai negociou com o dono do hotel: os dois carros pelo pagamento dos quartos. Conseguiu. E nós voámos para Joanesburgo. E foi lá, naquele imenso aeroporto, que deixei o que restava da minha infância. As minhas mãos faziam falta para levar outras coisas. Não a minha necessaire com a última boneca e suas roupinhas. Essa ficou atrás de uma coluna de pedra. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A 29 de Agosto, o alto-comissário interino de Angola, general Ferreira de Macedo, declara o fim do governo de transição (dias depois de suspenso o Acordo do Alvor, que assentava na ideia de união política e militar dos três movimentos). De imediato, num comunicado publicado no Diário de Lisboa a 30 de Agosto, o MPLA reagiu afirmando que assumiria sozinho as responsabilidades governativas a partir de 11 de Novembro. Nesse dia, a independência foi declarada separadamente pelos três partidos, mas só a proclamação, em Luanda, da República Popular de Angola pelo MPLA foi reconhecida. A guerra civil angolana prosseguia. As minhas mãos faziam falta para levar outras coisas. Não a minha necessaire com a última boneca e suas roupinhas. Essa ficou atrás de uma coluna de pedraA 2 de Novembro terminara a ponte aérea — a última missão dos militares portugueses em Angola — que trouxe para Portugal mais de 238 mil pessoas. Muitos outros saíram por mar e outros ainda, como nós, por terra. Nós, nessa altura, já estávamos em Curitiba, onde o pai rapidamente arranjou trabalho e onde fomos felizes durante cinco anos. Quando regressámos a Portugal, em 1980, já não nos chamaram “retornados”. Éramos apenas um pouco estranhos.
REFERÊNCIAS:
Esquerda grega quer investigar condições em centro de detenção de imigrantes
Revolta no sábado à noite, com queima de colchões e fuga de dez imigrantes, relançou o debate sobre as condições em que são mantidas milhares de pessoas num país da União Europeia. (...)

Esquerda grega quer investigar condições em centro de detenção de imigrantes
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 21 | Sentimento 0.025
DATA: 2013-08-12 | Jornal Público
SUMÁRIO: Revolta no sábado à noite, com queima de colchões e fuga de dez imigrantes, relançou o debate sobre as condições em que são mantidas milhares de pessoas num país da União Europeia.
TEXTO: A coligação de esquerda Syriza pediu uma investigação às condições de vida no principal centro de detenção de imigrantes na Grécia, onde no sábado à noite estalou uma revolta que levou à fuga de dez pessoas. A polícia grega garante que o centro de Amygdaleza, nos arredores de Atenas, tem "condições respeitáveis", apesar das críticas de organizações de defesa dos direitos humanos. "Tomámos todas as medidas necessárias para que as condições de detenção sejam respeitáveis e para que não haja hipótese de fugas", disse nesta segunda-feira o porta-voz da polícia, Christos Parthenis, ao canal Mega. Em relação às acusações de superlotação do centro, o responsável disse que Amygdaleza tem capacidade para 2000 pessoas e que actualmente estão detidas 1600 (algumas fontes referem 1650). O líder do sindicato da polícia, Christos Fotopoulos, queixou-se das condições no interior do centro, mas disse que são muito piores para os agentes. "Puseram-nos a guardar almas humanas em condições muito piores do que aquelas em que se encontram as pessoas que nós guardamos", disse Fotopoulos ao canal ANT-1. Dezenas de imigrantes sem documentos revoltaram-se no sábado à noite num dos maiores centros de detenção da Grécia, depois de terem recebido a notícia de que iriam ficar retidos por mais seis meses. Durante a confusão, pelo menos dez imigrantes conseguiram escapar do centro de detenção – localizado em Amygdaleza, nos arredores de Atenas – e estão ainda a ser procurados pelas autoridades nesta segunda-feira. A polícia deteve 41 pessoas, originárias do Paquistão, Afeganistão, Bangladesh e Marrocos, que atearam fogo aos colchões dos contentores e atiraram pedras e garrafas contra os guardas. Pelo menos dez polícias de intervenção ficaram feridos durante a operação para controlar a revolta. Segundo a edição online do jornal grego To Vima, as autoridades não avançaram qualquer balanço em relação à possível existência de vítimas entre os imigrantes. A revolta terá começado quando os mais de 1600 imigrantes colocados no centro de Amygdaleza foram informados de que o período de detenção iria passar de 12 meses para 18 meses. No momento em que os guardas distribuíam alimentos, algumas dezenas de detidos atearam fogo a colchões, o que acabou por destruir pelo menos oito contentores, segundo os media gregos. A situação foi controlada pela polícia por volta da 1h de domingo (23h em Portugal continental). Para alguns responsáveis políticos gregos e para muitas organizações de defesa dos direitos humanos, esta era uma situação já esperada. O prefeito do município de Acharnes, Sotiris Ntouros, disse à agência de notícias ANA-MPA que as condições no centro de Amygdaleza "são terríveis". "A revolta dos imigrantes era algo que eu já esperava (. . . ) Não é possível ter 1650 pessoas a viver em contentores, num Verão com temperaturas que chegam aos 50 graus Celsius", disse o responsável. Para agravar o clima de tensão, o jornal To Vima avançou que os guardas tinham cortado a energia cinco dias antes, depois de alguns detidos terem ligado o ar condicionado sem autorização dos responsáveis. Na semana passada, o movimento grego de esquerda KEERFA (Unidos Contra a Ameaça Racista e Fascista) denunciou que os detidos muçulmanos foram agredidos durante um momento de oração. Em Julho, a mesma organização revelou que um afegão morreu no centro com uma infecção pulmonar, depois de a sua doença ter sido ignorada pelas autoridades durante meses. "Crise humanitária"O centro de Amygdaleza foi inaugurado a 29 de Abril de 2012 – o primeiro de um total de 50 que o Governo prometeu abrir para lidar com a chegada de 130 mil imigrantes sem documentos por ano ao país. Rodeado de arame farpado, o centro mantém detidos imigrantes e refugiados que chegam ao país sem documentos, para deportação. Em Dezembro de 2012, a Amnistia Internacional declarou a existência de uma "crise humanitária" na Grécia, denunciando as "vergonhosas e chocantes" condições de vida de milhares de imigrantes. O relatório descreve a situação de "crianças desacompanhadas", mantidas em "condições muito deficientes". Um mês antes, deputados europeus do grupo dos Verdes visitaram o centro de Amygdaliza e partilharam um vídeo no YouTube ("Amygdaleza "The five star Detention Centre"). No relato feito após a visita, os deputados dizem ter-se deparado com "condições inumanas" e com "menores desacompanhados". "A detenção de crianças por questões relacionadas com imigração nunca é justificável e representa um falhanço abjecto da protecção dos direitos humanos das crianças", escreveram os deputados europeus.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos humanos imigração doença alimentos humanitária racista deportação