NASA quer recolher material de asteróide em 2020 e volta a apostar em viagens humanas
O calendário e os objectivos da NASA para a próxima década começam a ser delineados. Nos últimos dias, a Agência Espacial Norte Americana anunciou que vai repescar o trabalho já investido na cápsula Orion para realizar viagens espaciais humanas. Mas já em 2016, quer lançar uma nave não comandada para recolher material de um asteróide. (...)

NASA quer recolher material de asteróide em 2020 e volta a apostar em viagens humanas
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DATA: 2011-05-27 | Jornal Público
SUMÁRIO: O calendário e os objectivos da NASA para a próxima década começam a ser delineados. Nos últimos dias, a Agência Espacial Norte Americana anunciou que vai repescar o trabalho já investido na cápsula Orion para realizar viagens espaciais humanas. Mas já em 2016, quer lançar uma nave não comandada para recolher material de um asteróide.
TEXTO: A Orion, uma cápsula para transportar humanos no espaço, que fazia parte do Programa Constelação apoiado pelo antigo Presidente George W. Bush e que foi cancelado depois do Governo de Barack Obama ter entrado em funções, vai ser agora reciclada pela agência com o nome Multi-Purpose Crew Vehicle (MPCV, siglas em inglês) – veículo tripulado para vários propósitos. “Estamos comprometidos a apostar na exploração humana para lá de órbitas próximas da Terra e queremos desenvolver a próxima geração de sistemas para nos levarem lá”, disse em comunicado Charles Bolden, administrador da NASA. O anúncio, feito na quarta-feira, vem numa altura em que o futuro da NASA é visto com apreensão. A última missão da frota dos vaivéns dos Estados Unidos vai ser feita em Julho, pelo Atlantis. A missão será a última até à Estação Espacial Internacional, num voo de órbita baixa, depois disto, os astronautas norte-americanos vão ficar dependentes dos veículos russos para ir até à ISS. Bolden explicou que o sistema se ia basear nos desenhos que originalmente estavam planeados para o veículo tripulado de exploração Orion. Já se tinham gasto cinco mil milhões de dólares (3, 54 mil milhões de euros) na Orion, estava previsto um investimento total de nove mil milhões de dólares (6, 37 mil milhões de euros). Desta forma, a NASA defende que as lições de engenharia que se aprendeu durante a construção do veículo e o investimento não serão perdidas. A empresa Lockheed Martin Corporation, que começou a trabalhar na Orion em 2006, vai continuar a construir a cápsula. A MPCV está preparada para viagens de 21 dias. É uma espécie de cone cortado ao meio de 23 toneladas com um volume habitável de mais de três metros cúbicos. Irá ser lançada por um foguetão e estará programada para cair na Terra no oceano Pacífico, perto da Califórnia. Ao contrário dos vaivéns, a NASA defende que a MPCV está desenhada para ser “dez vezes mais segura durante o lançamento e a entrada”. O projecto está longe de estar pronto. “Ainda estamos a trabalhar na arquitectura integrada, e isso inclui o sistema de lançamento assim como os sistemas da base e outros projectos de suporte”, disse Douglas Cooke, citado pela AFP, que também pertence à administração da agência. “Neste momento não temos datas específicas”, acrescentou. “Em termos de exploração do espaço profundo esperamos obviamente que haja testes de voo nesta década. Não sabemos exactamente quando, mas o mais cedo possível. ” A NASA explicou ainda, que para viagens que durem mais tempo, outros módulos serão ligados à cápsula. “Durante estas missões a asteróides ou a Marte, ou às luas de Marte, este veículo seria num modo mais adormecido enquanto a tripulação estaria num outro compartimento com que teria consumíveis de longo termo e capacidade de suportá-los”, disse Cooke. Ida e volta ao asteróideMas não é necessária gente para ficarmos a saber mais sobre asteróides e o início do Universo. Em 2016 a NASA vai lançar uma nave que irá até ao asteróide 1999 RQ36 para recolher cerca de dois quilos de material. “Este asteróide é uma cápsula do tempo, vinda do nosso sistema solar e inaugura uma nova era de exploração planetária”, disse Jim Green, director da divisão da agência para a ciência planetária, no comunicado da NASA a anunciar a nova missão. “O conhecimento obtido para esta missão também vai ajudar-nos a desenvolver métodos melhores para seguir as órbitas do asteróide". O OSIRIS-REx, acrónimo para Origins-Spectral Interpretation-Resource Identification-Security-Regolith Explorer, está projectado para ser lançado em 2016, chegar ao asteróide em 2020 e voltar à Terra em 2023. O custo da missão, excluindo o dinheiro para o lançamento, será de 568 milhões de euros.
REFERÊNCIAS:
Entidades NASA
Quatro portugueses entre as 54 obras semifinalistas do Prémio PT de Literatura
Quatro escritores portugueses estão nomeados para o Prémio Portugal Telecom de Literatura em Língua Portuguesa: José Saramago (“Caim”), António Lobo Antunes (com duas obras:”O meu nome é legião” e “Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?”), Mário Cláudio ("Boa noite, Senhor Soares") e Maria Teresa Horta (“Poemas do Brasil”). (...)

Quatro portugueses entre as 54 obras semifinalistas do Prémio PT de Literatura
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Animais Pontuação: 3 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-05-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: Quatro escritores portugueses estão nomeados para o Prémio Portugal Telecom de Literatura em Língua Portuguesa: José Saramago (“Caim”), António Lobo Antunes (com duas obras:”O meu nome é legião” e “Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?”), Mário Cláudio ("Boa noite, Senhor Soares") e Maria Teresa Horta (“Poemas do Brasil”).
TEXTO: Os quatro fazem parte da lista de semifinalistas do prémio, que foi apresentada hoje, no Real Gabinete de Leitura, no Rio de Janeiro. Da lista fazem ainda parte os angolanos Ondjaki (“Avó dezanove e o segredo do soviético”) e José Eduardo Agualusa (“Barroco tropical”) e o moçambicano Mia Couto ( “Antes de nascer o mundo”, que em Portugal foi editado com o nome de “Jesusalém”). Os brasileiros Rubem Fonseca (“O seminarista”), João Ubaldo Ribeiro (“O albatroz azul”), Dalton Trevisan (“Violetas e pavões”), Luis Fernando Veríssimo (“Os espiões”), Milton Hatoum (“A cidade ilhada”), Chico Buarque (“Leite derramado”), Luiz Ruffato (“Estive em Lisboa e lembrei de você”), Bernardo Carvalho (“O filho da mãe”), Mario Sabino (“A boca da verdade”), Michel Laub (“O gato diz adeus”) e Rodrigo Lacerda (“Outra vida”), Reinaldo Moares (“Pornopopéia”), Carlito Azevedo (“Monodrama”) e Edney Silvestre (“Se eu fechar os olhos agora”) são alguns dos seleccionados. Um júri composto por Alcides Villaça, Allison Marcos Leão, Antonio Carlos Secchin, Antonio Torres, Beatriz Resende, Cristovão Tezza, Jerusa Pires Ferreira, José Castello, Lorival Holanda, Regina Zilberman, Sérgio Sá e pelos curadores do prémio (Benjamin Abdala Jr. , Leyla Perrone-Moisés, Manuel da Costa Pinto e Selma Caetano) irá decidir quais serão os dez finalistas. Os nomes dos finalistas serão divulgados em Agosto e o júri final elege a 8 de Novembro os três livros vencedores. O Prémio Portugal Telecom de Literatura em Língua Portuguesa contempla três vencedores. O primeiro receberá 100 mil reais (45. 700 euros), o segundo 35 mil reais (15. 900 euros) e o terceiro 15 mil (6. 800 euros). O vencedor do ano passado foi Nuno Ramos, com o romance “Ó”. Notícia corrigida às 21h06
REFERÊNCIAS:
Reportagem: o Mindelo já tinha blogue antes da Internet
A montra do Djibla é como um blogue e vem do tempo em que ninguém conhecia a palavra Internet. É lá que, desde há mais de quatro décadas, os mindelenses procuram novidades, casos curiosos - o tubarão enorme trazido pelos pescadores, o barco encalhado, o acidente que deixou o carro em cima da árvore ... "Qualquer coisa estranha que apareça eu imprimo e ponho na montra." (...)

Reportagem: o Mindelo já tinha blogue antes da Internet
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Animais Pontuação: 3 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-02-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: A montra do Djibla é como um blogue e vem do tempo em que ninguém conhecia a palavra Internet. É lá que, desde há mais de quatro décadas, os mindelenses procuram novidades, casos curiosos - o tubarão enorme trazido pelos pescadores, o barco encalhado, o acidente que deixou o carro em cima da árvore ... "Qualquer coisa estranha que apareça eu imprimo e ponho na montra."
TEXTO: E assim continua a ser: a montra da loja de fotografia e óptica de Djibla na Rua de S. João, uma transversal da Rua de Lisboa, bem no centro do Mindelo, é lugar de romagem, mesmo para quem nada quer comprar: estudantes, desempregados, funcionários, polícias, todos se habituaram a parar para ler e comentar notícias e curiosidades que o próprio Daniel Mascarenhas, nome de Djibla no bilhete de identidade, coloca e, por vezes, comenta. "Se aconteceu alguma coisa estranha, já se sabe que no Djibla tem", confirma Carlos Fernandes, ajudante de despachante e estudante de gestão. Tem 39 anos e desde criança que ali passa para saber as últimas. A montra mais famosa do Mindelo é mais do que um jornal de parede, os seus assuntos são motivo de conversa. "Uns dizem que é mentira, outros que é verdade", afirma o próprio Djibla. O hábito de parar no Djibla enraizou-se de tal modo que se as novidades tardam, logo há quem estranhe. Há tempos, avariou-se-lhe a impressora em que estampa informações que agora também recolhe na Net. Logo houve quem estranhasse: "O Djibla não põe nada de novo? O Djibla está com medo"?"Os meus comentários também agradam. Eu digo coisas que muita gente gostaria de dizer e não diz", afirma. Um dos últimos acompanha uma notícia sobre a decisão governamental de colocar polícia militar nas instalações da Electra, a produtora de electricidade, depois de um recente e polémico "apagão" na ilha de Santiago. O Governo do PAICV, Partido Africano da Independência de Cabo Verde, alegou sabotagem, a oposição atribuiu a quebra às más condições da rede eléctrica. "Sabotagem - longa-metragem tecnicolor. Mais um filme policial a correr no Eden Park", ironizou Djibla. Daniel Mascarenhas, hoje com 70 anos, cabelo grisalho, não é apenas um precursor dos bloggers. É um crítico da governação do PAICV. Por estes dias, com as eleições de domingo à vista, a sua montra é um manifesto político. Os jornais e escritos não escondem a preferência pelo MpD (Movimento para a Democracia), partido que na década de 1990, depois de instaurado o multipartidarismo, representou como deputado independente. Djibla, também eleito municipal no tempo em que Onésimo Silveira, ex-embaixador em Portugal, presidiu à Câmara de São Vicente, considera que, tal como "o PAI", o MpD cometeu erros: "Também ficaram uns sabichões e a coisa foi-se abaixo. " Mas as suas críticas são bem mais corrosivas para o partido da independência, que responsabiliza pela "pouca evolução" do país nos primeiros anos, pela perseguição de adversários e estatização da economia. Afinal, é um empreendedor, que a guerra terá desviado de um destino de cirurgião. Tinha o antigo 7. º ano por concluir quando, no início dos anos 1960, a tropa chamou este filho de funcionário de alfândega nascido na ilha de Maio, onde o pai estava então. Foi militar em Portugal continental e Angola, onde o gosto e jeito para a fotografia, que começara a cultivar aos 14 anos no Liceu do Mindelo, lhe traçou o caminho. Estava colocado no gabinete de estudos e planeamento do Exército, em Luanda, quando um dia foram precisas fotografias e não se encontrou na cidade quem as fizesse com a rapidez necessária. Disponibilizou-se para o trabalho e a coisa correu tão bem que ficou como fotógrafo oficial do quartel, a cobrir juramentos de bandeira e a fazer fotos para documentos dos recrutas. Quando regressou ao Mindelo, havia perdido quatro anos e quatro meses e faltava-lhe acabar o 7. º ano. Ao mesmo tempo que completa o secundário, Djibla continua a dedicar-se à fotografia. Em São Vicente só havia dois fotógrafos e o trabalho correu bem. "Vi que era um ramo que dava e já não me interessou a formação superior. " Foi por essa altura, pelo ano de 1967, que começou a afixar na montra informações estranhas e curiosas que se habituou a recolher e a fotografar.
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
União Africana pede a Gbagbo que “ceda imediatamente o poder”
A União Africana (UA) pediu hoje ao presidente cessante da Costa do Marfim, Laurent Gbagbo, que “ceda imediatamente o poder” ao seu rival e vencedor das eleições de Novembro, Alassane Ouattara. (...)

União Africana pede a Gbagbo que “ceda imediatamente o poder”
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 10 Animais Pontuação: 3 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-04-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: A União Africana (UA) pediu hoje ao presidente cessante da Costa do Marfim, Laurent Gbagbo, que “ceda imediatamente o poder” ao seu rival e vencedor das eleições de Novembro, Alassane Ouattara.
TEXTO: O presidente da comissão da UA, Jean Ping, “pede ao sr. Laurent Gbagbo que ceda imediatamente o poder ao Presidente Alassane Ouattara, a fim de encurtar o sofrimento dos marfinenses”, lê-se num comunicado daquela organização, citado pela AFP. No mesmo comunicado, Jean Ping recorda a recusa de Laurent Gbagbo de aceitar as propostas do painel de cinco chefes de Estado escolhido pela UA e que assumiram funções no dia 10 de Março, acrescentando que a sua “rejeição de todas as outras iniciativas para uma saída da crise” não permitiram “encontrar rapidamente uma solução pacífica para a crise”. A UA tinha confirmado anteriormente Alassane Ouattara como o legítimo vencedor das eleições, uma posição considerada inaceitável pelo campo de Gbagbo. Segunda-feira, as Forças republicanas - que controlam o norte do país desde 2002 - lançaram uma vasta ofensiva em direcção ao sul, para porem termo a essa crise nascida do escrutínio presidencial contestado do passado dia 28 de Novembro e que, segundo a ONU, já fez cerca de 500 mortos, essencialmente civis. Os combates desenrolam-se em torno de Abidjan, nomeadamente em redor da residência de Gbagbo e do palácio presidencial.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU UA
Como é envelhecer bem? A arte e os truques de Maria Cavaco Silva, Maria João e Nayma Mingas
Nenhuma tem uma fórmula do tipo "comer uma taça de mirtilos por dia". É sobretudo uma questão de atitude: não sofrer por antecipação, trabalhar para ser feliz, querer ser, não ter medo de rir nem de chorar. Três mulheres de três gerações falam sobre envelhecer, pintar o cabelo, o amor e a morte (...)

Como é envelhecer bem? A arte e os truques de Maria Cavaco Silva, Maria João e Nayma Mingas
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 5 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nenhuma tem uma fórmula do tipo "comer uma taça de mirtilos por dia". É sobretudo uma questão de atitude: não sofrer por antecipação, trabalhar para ser feliz, querer ser, não ter medo de rir nem de chorar. Três mulheres de três gerações falam sobre envelhecer, pintar o cabelo, o amor e a morte
TEXTO: Esta é uma conversa em que se pergunta a idade às senhoras e por isso aqui vai: a manequim Nayma Mingas tem 44 anos, a cantora de jazz Maria João tem 62 e a antiga primeira-dama Maria Cavaco Silva tem 80. O tema é o envelhecimento e a escolha é simples: são três mulheres que, por causa da sua vida pública, estão a envelhecer à frente de todos nós. No fim, depois de falarem sobre viver bem e morrer bem; pintar o cabelo e ir para um “asilo”; máscaras do Congo e eutanásia; fazer trail e ler Séneca; imortalidade e respeito pela Terra; rir e chorar; ter fé e ser ateu; mais os medos e as alegrias que aparecem com os anos e a solidão da viuvez, alguém disse: “Seria impossível ter esta conversa com três homens. ”Igual não seria, isso é certo. Maria Cavaco Silva conta que tem “uma relação amistosa” com a idade e que durante anos se achou parecida com a actriz Audrey Hepburn. Quando o marido, Aníbal Cavaco Silva, foi eleito Presidente, em 2006, sentiu que era olhada como a “imagem-padrão da mulher portuguesa” e preocupou-se um pouco com isso. Mas foi com a avó materna que aprendeu a envelhecer. Maria João diz que nunca pensa no envelhecimento (“juro!”) e que “querer ser” o que é agora é o que a ajuda a não pensar na idade. “Como quero, sou”. Já que tem de morrer, pelo menos que não seja no Verão. Não gosta de falar sobre isso, mas já fez um pedido improvável a um grande amigo. “As pessoas têm de ter o direito de escolha. ”Nayma Mingas tem os pais vivos e por isso ainda é “a filha de”. No caso, de Ruy Mingas, músico (autor do hino nacional angolano), ex-ministro do Desporto de Angola e embaixador em Portugal, e Julieta Mingas, antiga professora de Biologia Celular na Universidade Agostinho Neto, em Luanda. É ela, mas não só, quem leva a conversa para África, onde os velhos morrem em casa e “cota” é uma palavra bonita. Diz que quando o seu cabelo começar a ficar branco, não o vai pintar. Os truques destas mulheres não são servidos em forma de receitas do tipo “x” comprimidos de vitamina B12 ou uma taça de mirtilos por dia. É mais uma questão de atitude: não sofrer por antecipação, trabalhar para ser o mais feliz possível, não ter medo de rir nem de chorar. P: Começo pela Nayma, a mais nova das três. Tem 44 anos e está rodeada por mulheres com metade da sua idade. Sente-se velha?Nayma Mingas (N. M. ): Não, de todo. O peso do envelhecimento tem muito a ver com o ambiente em que estamos. No meu caso, embora as pessoas com quem trabalho sejam muito mais novas do que eu, sei que faço parte da geração que quebrou esse tabu, da geração das mulheres que conseguiu provar que pode continuar a trabalhar como manequim independentemente da idade que tem. P: Como é que se quebrou esse tabu?N. M. : Tem a ver com a surpresa das pessoas quando digo a minha idade. As pessoas acham que eu tenho 30 anos. Ainda hoje o Paulo Macedo [ex-director criativo da Vogue Portugal] me disse: “Miúda, tu não envelheces!” Continuam todos a tratar-me por “miúda”. Perguntam-me se estou conservada em formol… fazem muitas piadas à volta da minha aparência. Mas uma das coisas mais importantes para a longevidade da minha carreira, independentemente da minha aparência, tem a ver com as campanhas internacionais feitas contra a discriminação, a favor da diversidade e a aceitação dos vários tipos de beleza. Isso é muito importante. A própria publicidade mudou. Há 20 anos, lembro-me de ver jovens com 25 anos a venderem cremes anti-rugas e não fazia sentido. Até era desrespeitoso em relação ao cliente. Maria João (M. J. ): Continua. Continua a haver anúncios desses…N. M. : Já não tanto. Até há o resgatar de manequins mais velhas para fazerem essas publicidades. M. J. : É verdade. N. M. : O público já é mais inteligente, já não vai atrás da miragem da beleza perfeita. As pessoas querem ser aceites tal qual elas são. Maria Cavaco Silva (M. C. S. ): Eu já vejo manequins da minha idade, senhoras fantásticas, com a sua idade marcada. . . Acho isso uma grande conquista. P: Hoje há sobretudo o culto do corpo estilizado e asséptico? Esse é o novo preconceito?N. M. : Sim. Vivemos no mundo das redes sociais, muito digital, onde podemos acordar com má cara, mas há uma aplicação que nos tira as olheiras, que nos suaviza a pele e até podemos mudar o cabelo, podemos estar completamente despenteadas e pôr um cabelo perfeito…M. C. S. : …Disto eu não sei nada…N. M. : … E isto cria uma forma de estar na sociedade que é errada. As pessoas estão a habituar-se à perfeição, à vida editável, e isso é mau porque no dia-a-dia as pessoas escondem-se, escondem-se atrás de maquiagens e de muitas formas de estar naturais que devem ser aceites naturalmente. P: Já não há a pressão da juventude eterna?N. M. : Ainda continua a haver, porque as pessoas cada vez mais a procuram. P: Na música há essa pressão?M. J. : Não. Não sinto isso, não senti até agora. Não senti, aliás, nenhum tipo de discriminação neste tempo todo. Sinto-me uma privilegiada. Tive muita sorte, estive sempre rodeada de pessoas incríveis, músicos absolutamente inspirados e que me ajudaram a ser a cantora que eu sou, a música que eu sou. Até agora não sinto, mas não sei se quando ficar mais velha se vou sentir. P: Diz que o seu instrumento “é” o seu corpo e “está dentro” de si. Não tem medo que o corpo envelheça mais depressa do que a cabeça?M. J. : Que os nossos corpos envelhecem mais depressa do que nós, do que nós pensamos e do que nós somos enquanto pensamento e pessoas, isso eu reparo. E reparo nas minhas amigas e nas pessoas à minha volta. Infelizmente é assim. Mas até agora tenho tido essa sorte. P: Como é que trata do seu corpo-instrumento, que truques usa para enfrentar a parte física do envelhecimento?M. J. : Sempre fiz desporto. Desde miúda que faço natação, agora comecei a correr, comecei a sonhar com triatlo, corro trail. Fiz aikido durante 40 anos (agora só parei porque me lesionei)… O desporto é uma coisa maravilhosa para nos mantermos bem. É essa a minha opinião e a minha experiência. Fiz isso com o meu filho: insisti desde sempre que ele fizesse desporto. P: Ele é atleta. . . M. J. : Sim, faz natação de competição e passou ao lado da droga, álcool, fumo. Sou muito fã de desporto e continuo a fazer, custe o que custar. Às vezes levanto-me e penso: “O que é que vou fazer? Vou correr, tenho que ir correr!” Tem de ser, todos os dias, e isso ajuda-nos e dá-nos muitas ferramentas em termos de disciplina, de sacrifício, de esforço, e mantém-nos bem, saudáveis e fortes. E mantém o sangue a correr. P: As cordas vocais envelhecem?M. J. : Até agora, não senti e continuo com esta “vozinha”!… Eventualmente, elas tenderão a envelhecer connosco, estão dentro do corpo…P: O que é que acontece às cordas, já estudou?M. J. : Não, não estudei, nem quero pensar nisso! Até agora, está bem, portanto não quero pensar nisso. Falar de envelhecimento, e debruçar-me muito sobre esse assunto, vai acabar por acabrunhar-me, vou ficar mais perdida. Continuo a fazer tudo o que sempre fiz e sinto-me bem e por isso prefiro não falar nisso, acho uma perda de tempo. P: Acaba de fazer 80 anos. Se pensar nas coisas importantes que aprendeu, o que é que não sabia quando tinha a idade da Nayma Mingas?M. C. S. : Quando tinha a idade da Nayma, estava dar uma grande reviravolta à minha vida. Quase sem sentir e quase sem saber, caiu-me em cima, de pára-quedas. Sei muito mais coisas hoje, mas provavelmente muitas das coisas que sabia quando tinha a idade da Nayma, já esqueci. Há um equilíbrio entre o que se vai limpando, porque é necessário, e o que vamos aprendendo. Continuo a sentir-me como professora, apesar de já estar reformada, mas isso é válido para todas as pessoas: todos os dias aprendemos qualquer coisa e o dia em que não aprendemos há qualquer coisa que falhou. Não creio que seja de ignorar que é importante aprender, mas também será importante desaprender. E é esse equilíbrio entre o aprender e o desaprender que vai continuando e, como a Maria João dizia, talvez haja determinadas coisas que, quando elas aparecerem, logo as enfrentamos. A Maria João disse: “Eu não vou estar já preocupada com isso. ” Lembro-me de uma coisa que o D. Manuel Clemente [cardeal patriarca de Lisboa] me contou há muitos anos, que havia uma senhora que lhe dizia, na parte final da vida, era ele apenas padre: “Ai, padre Manuel, tantas coisas com que eu me preocupei ao longo da minha vida e que não vieram nunca a acontecer!…”. Nunca me esqueci disto, porque isto é muito importante. P: Não sofrer por antecipação…M. C. S. : Não vale a pena estar a sofrer por antecipação. Acabei de fazer 80 anos, mas os meus amigos ainda dizem: “Continuas a ter uma voz de menina. ” [Envelhecer] não quer dizer que a Maria João não vá continuar a ter a sua voz e aquilo que tem feito ao longo dos anos. Ainda há bem pouco tempo a Celeste Rodrigues…P :… que tem 90 e tal anos…M. C. S. : Sim. Eu levei-a a Belém, para uma noite de poesia, e ela foi acompanhada pelo bisneto. O bisneto tocava e ela cantava. E ela dizia: “Tenho de sair de casa, tenho que cantar todos os dias, senão não sou eu, não me sinto bem. ”P: A sua opinião, a sua forma de pensar, mudou com a idade?M. C. S. : Sim, em relação a muitas coisas. Vi aquele filme, achei o filme extraordinário na altura. Agora vou ver outra vez: “Ai não, afinal não é assim tão extraordinário. . . ” Não quer dizer que seja uma questão de exigência… é uma questão…M. J. : … de ponto de vista…M. C. S. : … Não. É estar diferente, encarar as coisas de uma maneira diferente. No meu caso, mais madura. Mas a Maria João dizia — e é verdade — que a cabeça envelhece mais devagarinho. E é uma sorte quando isso acontece, porque depois há todas as doenças com o envelhecimento, as senis, os Alzheimers. Mas quando o envelhecimento é normal e natural, a cabeça vai mais devagar do que o corpo. Às vezes olho para um escadote e digo: “Vou subir. ” E depois digo: “Não, vamos lá tentar…”M. J. : … é melhor não!…M. C. S. : E digo: “Vamos lá tentar… É melhor não. ” E depois começo e concluo: afinal não é tão fácil como parecia. E o meu marido dá-me gritos: “Tu não penses sequer em subir o escadote!” É um risco que se corre com uma certa idade: a pessoa está em casa sozinha, tenho tido muitos exemplos disso, acha que vai, sobe, as coisas correm mal e uma fractura no colo do fémur muitas vezes é mesmo fatal. Portanto, temos de manter o equilíbrio entre a cabeça e o corpo. P: Diz-se que com a idade ficamos mais conservadores e mais de direita — e que isso acontece até às pessoas de esquerda. Como tem sido no seu caso?M. C. S. : Não, não acho. Eu era muito rebelde, mas as minhas colegas aqui [na entrevista] já me disseram: “É tal e qual como eu a conheço. ” Continuo bastante rebelde. P: É rebelde em quê?M. C. S. : Rebelde até nas reacções imediatas, coisas simples do dia-a-dia. Elas estão a dizer que sim [com a cabeça] porque foi nessa linha que elas disseram…M. J. : Foi sempre assim que a conheci, sempre, sempre…M. C. S. : Portanto, não mudei e os meus amigos dizem: “Tu estás sempre na mesma”, nesse aspecto de reagir de imediato, nariz arrebitado, linguinha afiada. . . P: Não é uma mulher ponderada, hoje que tem 80 anos?M. C. S. : Ai, não! Vê, como eu rio?! É que… “Di” jeito nenhum! As duas disseram-me isso. [Nos bastidores], a Nayma disse-me: “Ah, isto é de professoras, porque a minha mãe também é assim. ” Não tem de ser: há professoras muito calmas, muito cordatas, mas eu nunca fui. Não é agora que vou mudar. Mas não sei o que está para me acontecer. P: Quando era pequenina, a Nayma imaginava que ser velha era o quê?N. M. : Para mim, alguém com 40 anos já era muito velha. Tenho uma irmã que é oito anos mais velha do que eu e lembro-me de, a certa altura, olhar para ela, já era uma mulher e eu era ainda uma criança, e de ter jurado a mim mesma que nunca seria igual a ela. Tal era a minha ignorância sobre o crescimento e o desenvolvimento do corpo de uma mulher. Mas para mim ser-se velha nunca foi um termo depreciativo. O mais velho em África é sempre muito respeitado, tanto é que a forma como a palavra “cota” — palavras que vêm de Angola e que foram adoptadas em Portugal — são vistas em Portugal de uma forma… Em Portugal “cota” é ofensivo, para nós é respeito. Hoje já sou tratada por “mãe-grande”, “cota”, por miúdos que têm 18, 20 anos, que conhecem a minha carreira, e por respeito, já me tratam desta forma. Para nós, a pessoa mais velha é a pessoa com mais conhecimento, é a que nos educa, a que nos põe no caminho correcto. Em África, é assim. . . M. J. : É muito verdade, em Moçambique também é assim. M. C. S. : A Europa está um bocado virada. N. M. : A primeira vez que estive num asilo fiquei… não digo em estado de choque… mas em estado de choro. P: Foi em Portugal?N. M. : Sim. Nunca tinha visto os idosos serem tratados assim. P: O que é que viu?N. M. : Vi pessoas abandonadas, o que para nós não existe. Os nossos “cotas” morrem em casa, nós fazemos questão de os ter connosco. P: Em Luanda ainda é assim?N. M. : Sim. Ainda agora estive em Luanda e tive uma situação muito engraçada. Toda a gente ouve falar do trânsito, que é caótico. E eu estava a chegar a casa com a minha irmã, estávamos a entrar na rua da casa dos meus pais, de repente vimos uma senhora a atravessar a rua e eu reparei que estava com muletas. Disse “pára” e saí do carro para a auxiliar. O carro de trás começou a buzinar. No momento em que eles perceberam que eu estava a auxiliar uma senhora mais velha, pararam e começaram logo a pedir desculpa. “Ai, desculpa, desculpa. . . ” É assim que nós reagimos em relação às pessoas mais velhas. P: Não há lares de terceira idade em Luanda?N. M. : Neste momento, não posso dizer que não existam, porque temos muitos refugiados em Luanda, mas quando vim para Portugal, nunca tinha visto um asilo, não sabia o que isso era. M. C. S. : A Nayma chama “asilo” e nós chamamos “lar de terceira idade”. Aqui está a diferença do “cota” em África e do “cota” na Europa e em Portugal. O asilo é uma coisa muito mais negativa. Esta história da língua, para mim que sou professora, é muitíssimo interessante. P: Essa é a principal diferença entre envelhecer em Luanda e em Lisboa: os velhos não estarem sozinhos nos anos finais da vida?N. M. : Talvez. Não quero fazer uma acusação e dizer que todos os idosos são abandonados em Portugal. Talvez se deva ao facto de em Angola termos uma população muito jovem, e por isso cuidamos tão bem dos nossos idosos. A população em Luanda acima dos 65 anos é de 2%. P: É verdade que a pele negra envelhece melhor do que a pele clara?N. M. : Parece que sim. Parece que a melanina tem um peso muito grande na elasticidade da pele. A minha mãe é bióloga, poderia explicar melhor. Estou em crer que sim. Quando me deparo com colegas minhas da minha idade, a pele delas tem uma aparência completamente diferente da minha. Penso que já está provado: quanto mais melanina se tem, mais elástica é a nossa pele e menos tendência tem para envelhecer. P: A Maria João está no meio: se lhe pedisse uma palavra para definir que mulher era aos 20, aos 40 e agora aos 60 anos, qual seria?M. J. : Acho que diria a mesma. Eu sempre achei uma festa fazer anos. Fiz 20, hey! Fiz 30, oh! oh! Fiz 40, ah! Fiz 50, fiz 60, eh! eh! Sempre foi uma felicidade, nunca foi um peso para mim. Sinto-me sempre surpresa quando falamos disto e é a primeira vez que participo numa entrevista em que se fala sobre a idade. Porque eu, realmente — juro! — não penso nisso. Não é que não queira pensar porque tenho medo. Não costumo pensar. Como tudo funciona ainda bem… Olho para trás e vejo que a João dos 20 anos era a mesma coisa dos 30. OK, nos 30 tive o meu filho, portanto, talvez tenha ficado com mais essa responsabilidade, de tomar conta, ajudar a crescer e criar uma outra pessoa, e depois com 50… Julgo que sou a mesma pessoa. Mas se calhar há uma diferença entre aquilo que julgamos e aquilo que somos de facto — e aquilo que queremos. Eu gostaria de manter-me a mesma pessoa, de achar que continuo a ser a mesma João, com os mesmos defeitos e as mesmas qualidades. P: Hoje quer as mesmas coisas que queria há 30 anos?M. J. : Quero ser feliz, quero ser saudável, quero que me deixem fazer as coisas que eu quero, quero ser livre, quero não ter problemas, quero poder amar, não ter problemas para que possa fazer tudo, inclusive amar, porque quando temos problemas, financeiros, por exemplo, não conseguimos nem amar. É isso que eu ambiciono, mas julgo que sempre ambicionei. Quero um dia de sol, quero poder correr, quero que o meu filho esteja saudável, os bichos que eu tenho, os meus amigos…P: Quando vai em digressão — com os concertos, as noites e o peso físico que isso implica — faz coisas diferentes do que fazia há uns anos?M. J. : Não, eu continuo a fazer directas. Uma pessoa chega toda rota ao destino final, mas sempre cheguei toda rota aos destinos finais, porque directas não se fazem, nem agora nem em altura nenhuma. Mas continuo a fazer, tem de ser…P: Não canta a seguir a uma directa…M. J. : Então não!? Tem de ser! Se hoje tenho um concerto em São Paulo e a seguir um em Buenos Aires e se eu não fizer directa já não posso fazer… Não posso fazer o quê?! Claro que vou! Sou viciada em música, eu amo música, e por isso faço estas coisas. P: Quando é que fez a sua última directa em palco?M. J. : Em palco… cantar logo a seguir? Bom, eu arranjo sempre um bocadinho à tarde para desinchar! Para desinchar e para dormir um pouco. Não, não pode ser chegar e fazer o concerto. Isso nem se consegue, porque a voz não sai. Há uma diferença entre aquilo que nós queremos ser e aquilo que somos de facto. Mas o querer ser ajuda. E eu quero ser esta mesma pessoa. Quero as mesmas coisas. Eu quero e, como quero — e isto tem muita força. . . M. C. S. : Querer é poder…M. J. : Como quero, sou. P: No seu caso, faço a pergunta ao contrário: quando tinha 20 anos, como é que imaginou a mulher que seria se chegasse aos 80?M. C. S. : Nunca imaginei. Tenho uma relação bastante amistosa com o passar dos anos…M. J. : . . . “Relação amistosa. ” Não me vou esquecer. M. C. S. : Tenho boas razões para isso. Tenho uma mãe que morreu com 24 anos, com a praga da tuberculose — aliás, a minha avó materna perdeu os dois filhos que tinha. A minha mãe eu não conheci, mas o meu tio, que conheci, morreu dez anos depois com a mesma doença. A vida para mim é um dom, um dom que eu tenho de apreciar, dar muitas graças a Deus, permanentemente. Com 20 anos, eu estava debaixo daquela marca, porque fui criada de uma maneira um bocado calamitosa. Não fui criada com a minha avó. Fui criada com uma mulher da idade da minha mãe, irmã do meu pai, minha tia, em Lisboa, enquanto a minha avó permaneceu no Algarve. A minha avó — e percebe-se: quando eu tinha dez anos, morre-lhe o outro filho — eu espirrava e ela levava-me a Fátima. Costumo dizer: as avós levam os netos ao médico, a minha levava-me a Fátima. Isso fez de mim uma criança um bocadinho frágil, uma criança muito magrinha, assim como a Nayma — agora já sou mais anafadinha —, [uma criança com] um problema que só a Audrey Hepburn, com quem durante uns tempos me achei parecida, é que me salvou, porque a minha avó dizia, quando ela apareceu, muito magrinha. . . P: Uma revelação, Audrey Hepburn…?M. C. S. : Do meu marido eu digo que é parecido com o Cary Grant e ele diz: “A minha mulher era parecida com a Audrey Hepburn. ” Portanto, com 20 anos, tinha essa espada em cima da cabeça. Depois passou-me. Quando cheguei aos 30, já tinha dois bebés e isso saiu-me completamente da cabeça. E depois aos 40 continuei a fazer anos. Continua a ser um presente, portanto eu celebro. Tenho todas as razões para celebrar a vida. Há pouco perguntava à Nayma como é que se envelhece: eu lembro-me que quando a minha avó foi ao meu casamento, não tinha 70 anos ainda, as fotografias mostram uma velhinha, uma velhinha carcomida. P: É a alimentação, o tipo de vida?M. C. S. : Não sei. A minha avó, apesar de ser essa velhinha antes dos 70, viveu até aos 90 e, com esses desgostos grandes, todos os dias a vi dar uma gargalhada e a chorar ao lembrar-se dos filhos que tinha perdido. P: Todos os dias chorava e ria?M. C. S. : Todos os dias chorava e ria. São as faces fundamentais da vida. Uma mulher que chega aos 90 anos, sozinha (o meu avô também já tinha morrido) e que consegue todos os dias dar uma gargalhada, mas uma gargalhada franca, com alguma coisa que alguém dizia, e todos os dias tinha a memória daquilo que tinha perdido. O que tinha perdido nunca a impediu de dar uma gargalhada à vida. Foi ela que me ensinou a envelhecer. P: O seu marido foi primeiro-ministro a primeira vez em 1985 — estamos a falar de 33 anos à frente das câmaras de televisão e sob escrutínio público…M. C. S. : … Pior para ele. P: Isso impôs-lhe uma disciplina particular?M. C. S. : Não. Não me impus nenhuma disciplina. Aliás, falava-se muito nas “gaffes da Maria Cavaco Silva” porque eu continuava a ser a tal criatura…M. J. : … Isso fazia parte do seu charme. M. C. S. : Não pensar, dizer. Não me impus nenhuma disciplina porque isso não tinha a ver com a minha maneira de ser. P: Disciplina no sentido de ter de cuidar de si. . . M. C. S. : Não, não cuidava muito de mim. Tentava apresentar-me arrumadinha, gosto de ser uma velhota arrumadinha. Não me “produzia”, porque não é a minha profissão, a minha é ser professora. Talvez tenha tido mais cuidado quando o meu marido foi Presidente. Enquanto o meu marido era primeiro-ministro, eu trabalhava muito. Mas quando o meu marido foi eleito Presidente, achei que podia ser considerada uma certa imagem da mulher portuguesa e aí já tinha cuidado. Também já era mais velha. P: O que é essa “certa imagem da mulher portuguesa”?M. C. S. : Eu não sabia qual era a imagem da mulher portuguesa. Não há propriamente uma imagem da mulher portuguesa, da mulher inglesa… Eu achava é que as outras pessoas, quando eu viajava — e viajávamos muito — quando olhassem para mim, iam dizer: “Esta é uma imagem-padrão da mulher portuguesa”; “a mulher portuguesa é assim”. Achava eu que eles podiam pensar isso e portanto eu tinha de dar. . . eu dava, no fundo, a imagem daquilo que eu era. . . P: Concordam? Maria Cavaco Silva é a imagem-padrão da mulher portuguesa?M. J. : Acho que sim. N. M. : Também acho que sim. M. J. : E durante muito tempo representou-nos e eu senti sempre orgulho quando olhava para si. M. C. S. : Ai, esta é bonita!. . . M. J. : Sentia-me bem representada. Como mulher portuguesa — enfim, sou meio-meio — sentia-me bem representada por si. P: Para Nayma, o que é “a mulher portuguesa”?N. M. : É uma mulher altiva, por norma fala…M. J. : … pelos cotovelos!N. M. : E é uma mulher muito forte. Nesse aspecto, a mulher portuguesa e a mulher angolana são muito parecidas. São mulheres muito batalhadoras, bastante trabalhadoras, e acima de tudo altivas. O português, de um modo geral, tem esta coisa de falar assim um pouco… de cima. E eu gosto muito desta característica. M. C. S. : A propósito de a Nayma dizer que a mulher portuguesa é altiva, lembro-me de que, na Bulgária, não havia primeira-dama, porque ela não queria, era muito nova, com filhos… e o gabinete [do Presidente] tinha só mulheres, talvez para compensar. Uma delas veio ter comigo — ainda hoje mantemos contacto por e-mail — para dizer: “Sabe o que dizem aqui de si? She walks like a queen. ” Não é que seja mais importante ser rainha… É claro que eu caminhava melhor do que a rainha de Inglaterra caminha actualmente, mas ela continua a caminhar!P: A Maria João está quase a ter descontos nos comboios, nos teatros…M. J. : … Ai, que horror!. . . P: … nos cinemas, nos museus…M. J. : … Ai, que horror!. . . M. C. S. : Recuse os descontos!P: Justamente, é essa a pergunta: vai pedir “bilhete de terceira idade” ou vai fazer de conta?M. J. : Acha?! Nunca!M. C. S. : Tenho uma amiga que fez isso durante muitos anos! Recusou bilhetes mais baratos para não dizer que tinha mais de 65 anos. N. M. : Mas porquê…?!M. J. : Porque estas pequenas coisas acabam por nos influenciar. Uma vez, quando o Mário Laginha partiu um pé, eu andava a empurrá-lo nos carrinhos dos aeroportos, ele sentava-se e eu empurrava. Depois ele precisava de ir à casa de banho e eu dizia: ‘Mário, vai à casa de banho dos deficientes. ’ E ele dizia: ‘Não vou nada. ’ Eu dizia isto para o picar, mas eu compreendo, uma pessoa não quer. . . Nunca hei-de ter esses descontos. Quero lá saber!M. C. S. : Afinal essa minha amiga não está sozinha…N. M. : Eu vou usar os descontos. M. J. : O que é que é isso?!N. M. : Vou, vou. Fiquei tristíssima quando perdi todos os meus privilégios de ter menos de 25 anos. Portanto, quando chegar aos 65, vou aproveitar todos. M. J. : Isso vai influenciar-te…N. M. : Não influencia nada. M. J. : Vais ver. Vais para a fila e ao teu lado estão as pessoas… “nha, nha, nha”…P: A Maria João não sente pressa, não sente que o tempo está a passar e que tem que fazer coisas?M. J. : Ai, não! Não sinto nada disso. Sinto os dias normalmente. Acho que isto acaba por nos influenciar. Se formos para uma fila dos 60, ao nosso lado só estão essas pessoas. Prefiro não. P: Não há filas separadas, é só dizer “tenho mais de 65” e mostrar o B. I. …M. J. : Era só o que faltava, não, não, não! Não, porque eu não me sinto assim e espero que não me façam sentir assim. Tudo o que está relacionado com mais idade e ter mais idade, nunca partiu de mim. Nunca pensei: “Ah, estou mais velha, portanto, oh…!” Já aconteceu, mas vem de fora, alguém que menciona. Apanha-me sempre de surpresa. P: Se calhar a expressão “terceira idade” já não se adequa e está na altura de inventar a “quarta idade”…M. C. S. : Ou quinta e sexta…! O professor Adriano Moreira é da terceira idade?M. J. : A única diferença que sinto dos 20 para agora é que, antes, eu era filha de alguém e depois passei a ser mãe de alguém. Depois de os meus pais faleceram, fiquei “a mãe”, a mãe de alguém. Isso eu senti. Isso foi duro. Deixei de poder dizer: “Oh mãe, eu…” Isso desapareceu. P: Há pouco utilizou a expressão “velhota”. Velhota, velha, idosa, pessoa da terceira idade… Qual é a melhor palavra?M. C. S. : Cada pessoa usa a sua. Eu acho graça à palavra velhota. Terceira idade já não faz grande sentido, como estávamos a dizer. Pessoas como o Adriano Moreira, o Eduardo Lourenço…M. J. : … “Cotinha”… gosto de “cotinha”…M. C. S. : … pessoas com mais de 90 mas que não atiraram a toalha ao chão. Quando digo isso, é por graça. Mas [os anos] estão todos cá. É a tal história do escadote: posso querer subir o escadote, mas se subir pode correr mal e vai doer aqui, vai doer ali, e posso “despencar-me”, como dizem os brasileiros, do escadote abaixo. P: Nas três fases diferentes em que estão, que truques usam para enfrentar o envelhecimento? É a taça de mirtilos diária, é a vitamina B12, é fazer sudoku, desporto, rir e chorar?…M. J. : Comer bem e compreendermos o nosso corpo. Isso é muito importante. Como cantora, preciso de compreender o meu corpo. Como é que ele funciona, o que é que me faz estar cansada, o que posso fazer para melhorar, para colocar a voz bem, o que posso fazer pelo meu corpo. Essa compreensão que eu ganhei, muito por ser cantora e por praticar desporto desde sempre, é muito importante. Se nos compreendermos bem, sabemos ajudar o corpo e a cabeça a caminhar todos os dias. P: Isso exige alguma autocontemplação…M. J. : Não. P: Como é que se faz?M. J. : É viver. Ouvir, ouvir o meu corpo, ver como ele funciona. Dói, não dói, o que falta. P: Estuda os alimentos?M. J. : Agora, sim, tenho cuidados, sou vegetariana. Não é por estar mais velha, é porque tomei consciência da forma como os humanos tratam os animais, que é inadmissível, e causa-me uma dor, uma revolta que é insuportável para mim. A maneira que eu tenho de protestar é não comer carne, não comer peixe, comer coisas saudáveis. Tenho um filho e tenho cães e, portanto, tenho que ir ao talho, porque eles comem carne. Mas se é frango, compro frango do campo, se é ovos, compro biológicos, se é queijo, é biológico. Tento que a minha passagem nesta vida esteja sempre ligada a boas coisas e não à tortura e ao sofrimento. P: Há um estudo que dá como explicação para a extrema longevidade dos japoneses — que têm o recorde mundial de centenários, mais de 65 mil — o facto de terem começado a comer carne. . . M. J. : Eles, se calhar, tratam melhor os seus animais; se calhar, não fazem as barbaridades que nós fazemos. . . P: Os seus truques, Nayma?N. M. : Vou dar uma resposta um bocado cliché, mas acho que tem mesmo a ver com a felicidade. Não troco a mulher que sou hoje pela mulher que era quando tinha 20 anos. Aprendi a estar comigo, a entender-me melhor, aprendi a dizer “não”. Antes, dizia “sim” com muito facilidade, mesmo quando pretendia dizer “não”. E isso deu-me uma serenidade e uma forma de estar, comigo e com os outros, que faz com que me sinta muito mais feliz. Esse é o primeiro passo. Depois, tal como a Maria João, pelo pai que tenho, fui obrigada a praticar desporto. O bem-estar físico é essencial, uma boa alimentação é essencial. Mas a nossa longevidade passa muito por sermos um pouco rebeldes, por termos a capacidade de dizer “não” e gostarmos muito, primeiro, de nós, tratarmo-nos bem. Só assim conseguimos estar bem na sociedade. Eventualmente, ganhar alguns cabelos brancos, que acho bonitos, ganhar algumas rugas. P: Os cabelos brancos serão bonitos, mas noto que todas pintam o cabelo…N. M. : Eu não pinto o cabelo. Já tenho alguns cabelos brancos, mas o meu cabelo é muito escuro. P: Não vai pintar daqui a uns anos?N. M. : Não. Quando a minha mãe pintou o cabelo [para tapar os brancos], eu e os meus irmãos tivemos uma atitude… não agressiva… mas ficámos revoltados, porque achámos que ela tinha de envelhecer naturalmente, com os seus lindos cabelos brancos, que mantém até hoje. Acho que é a melhor forma, aceitarmos o que vem com a idade. Não tenho nada contra os sinais do envelhecimento. P: E a Maria João?M. J. : Acho que fico muito feia com cabelos brancos. Tenho muito pouquinhos, como a minha mãe, mas não gosto de me ver, acho que fico baça, ficamos sem brilho. P: Identifica-se?. . . M. C. S. : Não, não foi tanto isso. A Nayma não vai cumprir, quase de certeza. M. J. : Não vai quê?P: Cumprir…M. J. : Também acho que não. M. C. S. : Vai ficar escrito e gravado e daqui a uns anos vemos!… Começaram a aparecer muitos cabelos brancos quando eu era bastante nova. Tinha uns 30. Quando fiz os 40, disse: “Acabou. ” Comecei por fazer riscas…. Agora, é capaz de ser mais difícil, porque me habituei a não ser baça. M. J. : Castanho é mais bonito do que cinzento. O cinzento é uma cor mortiça. M. C. S. : Há pessoas que ficam muito bem todas brancas. A Barbara Bush, que morreu agora, começou muito cedo, porque teve um problema na vida que fez com que ela, um pouco como a Maria Antonieta — um desastre dos pais e uma filha que morreu com uma leucemia muito bebé e [tudo] isso foi muito próximo — assumisse. Eu achava que ficava bem, não a imaginava de outra maneira. Não era por ter o cabelo branco que parecia mais velha. Mas há uma coisa que eu queria dizer, porque elas não têm experiência: o que nos envelhece, francamente, é a falta de saúde. Agora tive essa experiência: fiz a festa para celebrar os meus 80 anos e, das minhas amigas, quase ninguém pôde estar. Umas tinham morrido, outras estavam doentes ou em lares — os “asilos” — por causa de problemas de saúde graves. O que nos envelhece a sério é quando temos um problema de saúde grave. A saúde é um bem a que eu tenho de agradecer todos os dias. As pessoas dizem: “Mas todos os dias?” Agradeço todos os dias. Quando olho para o espelho de manhã, agradeço. P: Reza todos os dias?M. C. S. : Sim, sim, rezo todos os dias. P: Agradece especificamente o facto de ter saúde?M. C. S. : Agradeço a Deus tudo, mas sabendo que essa é uma das graças. Ter saúde, e o meu marido também, estarmos os dois bem, estarmos os dois um com o outro, porque quando desaparece um… é complicado. P: Fala sobre a viuvez com o seu marido?M. C. S. : Não, não falamos sobre a viuvez, mas falamos muito sobre a doença. E dizemos… O meu marido tem uma coisa que é dizer: ‘Hum. ’ E eu digo: ‘Um, não: dois. ’ E rimos. E dizemos sempre: “Dois é muito melhor do que um. ”P: Isso é uma forma de não falar da morte. . . M. C. S. : Não. É uma forma de agradecer o facto de estarmos os dois ainda. Também não somos assim tão velhos, [mas] sabemos de muitos dos nossos amigos em que já está só um. . . P: Estatisticamente, são sobretudo as mulheres que ficam viúvas. M. C. S. : Porque são mais valentes, lá está, como nós dizemos. M. J. : Sim, somos mais valentes. P: É difícil falar da morte?M. C. S. : É, é difícil falar da morte. Para a minha avó, e para a sua geração, não era. A minha avó nasceu no fim do século XIX e morreu em 1984 — a morte era uma grande naturalidade. As pessoas morriam em casa, na aldeia, fazia-se o velório em casa, era uma grande naturalidade. A nossa contemporaneidade chuta a morte para debaixo do tapete. Mas temos que nos habituar a saber que é para todos. Mas como a Maria João dizia, enquanto estamos bem, temos de aproveitar. Porque sabemos que tudo vai acabar. Para mim, não acaba tudo, porque tenho fé, há um outro lado. Mas não, não é uma coisa que as pessoas… à Maria João é melhor nem lhe perguntar!P: A sua avó não terá lido o Séneca…M. C. S. : Não leu o Séneca!…P: É talvez o filósofo que mais escreveu sobre a morte e que falava, justamente, sobre a naturalidade da morte. . . M. C. S. : A minha avó não considerou natural perder uma filha com 24 anos e um filho com 26. Isso não era natural. Os filhos morrerem à frente dos pais não é natural. E ela, coitada, foi confrontada com isso e passou décadas da sua vida sem filhos. Quando eu nasci, a minha avó tinha 44 anos. P: Outra coisa que o Séneca diz aos amigos é: “Estuda a morte”, “ensaia a morte”. Faz sentido esta ideia de estudar a morte para a recebermos de forma natural — a ideia de saber “viver bem” e saber “morrer bem”?M. C. S. : Depende do que nos acontecer em termos do tipo de doença. . . Eu não gostava nada de morrer num acidente de carro. Era uma morte brusca de mais. Outro dia estava num sítio onde havia vários médicos e um disse: “Eu já decidi: quero morrer com Alzheimer, com um cancro, não. ” E porquê? “Porque com Alzheimer chateio os outros, com o cancro chateio-me a mim próprio. ” Este médico tem esta teoria. Eu não sei. Ninguém sabe. M. J. : Eu espero… já dei por mim a falar com o meu melhor amigo e a dizer: “Um dia que eu fique mesmo toda doente e se vires que eu não tenho safa, tu acaba comigo, ouviste? Porque o João, que é o meu filho, não vai ser capaz. Por isso, tu acaba comigo, que eu não quero isto para nada, por favor. ” Às vezes, nos meus momentos mais lamechas, penso: “Ah, aquelas pessoas que protestaram tanto a meu respeito vão sentir a minha falta e vão estar todas no meu funeral!” Que disparate…M. C. S. : Uma vez estive num debate onde estava o João Lobo Antunes, a Bárbara estava a apresentar aquele livro…P: Na FLAD, sobre imortalidade, da bioeticista Maria do Céu Patrão Neves…M. C. S. : E o João, que morreu novo e que teve um papel muito importante sobre o envelhecimento activo, disse: “Nós não sabemos o que vai acontecer. ” Acho sempre difícil dizer, como a Maria João diz: “Ai acaba comigo”. Sei lá!. . . M. J. : Mas eu estou a torcer [para que haja vida para além da morte]! Seria uma surpresa maravilhosa. Não sabemos. Pelo sim, pelo não, vou tirar o maior partido possível, agora que estou aqui. Não sei se há. Se aparecer, se acontecer outra vida, se continuarmos de alguma forma, será uma bela surpresa. Estou disponível para isso, mas não tenho a certeza. M. C. S. : Certezas não há. Há pessoas que dizem: “Ter fé é uma grande sorte”, mas não. A fé é a interrogação permanente. Estou a ler agora o [padre-poeta José] Tolentino [Mendonça], o retiro que ele preparou para o Papa Francisco [O Elogio da Sede, Quetzal, 2018]. E ele diz isso várias vezes: a crença é uma interrogação permanente, é um grande salto no vazio. Ajuda? Não ajuda? A um amigo que era franciscano, e estava gravemente doente, eu perguntava-lhe isso e ele dizia: “Dá-me impressão que não, que não ajuda, que complica muito, porque nós pomos, talvez, mais questões permanentes do que os ateus. ” Eu acredito e tenho muita fé nessa surpresa. M. J. : Em África é diferente. A vida e a morte estão muito próximas e os mortos coabitam connosco e estão presentes e influenciam-nos e nós sentimos a sua presença. N. M. : Posso falar só por mim? Eu lido muito mal com a morte. Além de gostar muito de estar viva, gosto muito de ter as pessoas que amo à minha volta. Lido muito mal quando perco alguma destas pessoas. Os meus pais, como já passaram dos 70, às vezes gostam de mandar aquelas bocas: “Nós não vamos durar para sempre. ” Nem esse tipo de frases gosto de ouvir. Agora falando de Angola, nós lidamos com os mortos de forma muito respeitadora, são feitas muitas celebrações relacionadas com a evocação do poder de quem já foi, porque acreditamos que eles estão sempre connosco. Recentemente, ofereceram-me uma máscara [de etnia] cuba, do Norte do reino do Congo, lindíssima, que me foi oferecida porque sou coleccionadora de máscaras. Quando fui estudá-la, descobri que é uma máscara de celebração de nascimento e de morte. Até a nossa própria arte liga o nascimento à morte. M. J. : Para nós, europeus — estou sempre a dizer “nós, europeus”, “nós, africanos”, é sempre uma mais-valia, isto de ser moçambicana e portuguesa — mas este peso na Europa, quando morre alguém, será que vem da religião católica? A culpa com que nós ficamos… Um peso, uma coisa horrível. Preferia encarar com uma maior leveza, como os africanos. M. C. S. : Não acho que seja da religião católica. M. J. : É uma pergunta que eu faço. . . M. C. S. : Uma das coisas más de envelhecer é que perdemos muitos amigos e muitos familiares. Acabamos por estar sozinhos. P: Sente essa solidão?M. C. S. : Talvez não sinta tanto porque somos dois, mas isso é difícil. Noto que a própria Igreja Católica e os padres jovens puxam-nos para cima, os funerais têm música, estamos mudando isso. P: Há pouco falou do livro sobre a bioética, que é muito interessante e assustador: sobre como a ciência se prepara para nos dar a imortalidade. Os olhos biónicos, os exo-esqueletos, as impressoras 3D que imprimem órgãos…M. J. : Pensem nesse sonho: uma pessoa está doente e tem um cancro e substitui o órgão, isso é uma boa notícia!M. C. S. : E a cabeça, e o miolo, e o que está cá dentro?M. J. : A nossa alma… é isso?. . . M. C. S. : Não só a nossa alma, mas o cérebro. M. J. : Onde é que fica a nossa individualidade? Aquilo que somos, eu, a D. Maria, a Nayma… se começarmos a substituir tudo?P: Imaginam-se a ter 500 anos?M. J. : Não, mas imagino-me a ter um problema num órgão e substituí-lo. Vou morrer se não o substituir. M. C. S. : Isso já se faz. M. J. : Mas não será para toda a gente. Mais uma vez, a saúde e a imortalidade será para as pessoas que têm posses. M. C. S. : As imortalidades que estão a construir não me interessam. A criogenia, essas partes, esses sobresselentes todos… Se isso fosse possível, já não era uma pessoa. Daqui a 500 anos, era um robô. M. J. : Mas se tiver, de hoje para amanhã – Deus queira que não –, um problema num pulmão, não substitui?M. C. S. : Sim. M. J. : É saber até onde é que vamos substituir as coisas. . . Até à capacidade do nosso bolso!M. C. S. : Já tenho amigos a viver com um coração novo. O seu colega da música, o Salvador Sobral, foi uma alegria. Para um jovem, é uma coisa fantástica. Para uma pessoa de 90 e tal anos, já não sei se será, não sei. M. J. : Será que, quando formos mais velhos, não nos vamos agarrar ferozmente a isto? E todos os dias levantamo-nos e dizemos: “Está um belo dia de sol!”? Eu, quando morrer, espero bem não morrer no Verão. Sentir-me-ia tão triste. Morrer no Outono, ainda vá. Agora no Verão…M. C. S. : A minha mãe morreu na Primavera. N. M. : Não acho nada interessante a ideia de imortalidade. Se o ser humano se torna imortal, o planeta não evolui, vamos ficar com um planeta repleto de pessoas com as mesmas ideias. O interessante da humanidade é a evolução, a diversidade. Podemos, como o Salvador, trabalhar a ciência para salvar os jovens…M. J. : E os outros menos jovens?N. M. : Calma, deixa-me terminar. Eu sempre disse que queria morrer cedo. Acho que o interessante é deixarmos uma história escrita, deixarmos algo. P: É isso que o Séneca diz: “A vida é como as histórias: o importante é como é feita, não se é comprida. Não importa em que momento a acabamos. Pára-a quando quiseres. Mas dá-lhe um bom fim. ”N. M. : Concordo. M. J. : Se pudermos decidir, porque a maior parte das mortes são péssimos fins: doentes, em dor, em sofrimento. A maior parte das mortes que eu vejo são assim. Isso não é nada desejável. Poder aceder à sua morte, poder planear e morrer em beleza, morrer saudável. Eu digo sempre: “Eu vou morrer, mas vou morrer saudável. ” A minha amiga, que fuma, fuma, fuma, diz: “Eu hei-de morrer toda podre. ”P: É a favor da eutanásia?M. J. : Acho que sim. As pessoas têm de ter o direito de escolha. E de decidir. Mais uma vez: nós sabemos de nós. Eu amo a vida, penso que nunca me irá acontecer, a não ser que esteja profundamente doente e em pleno sofrimento. E se eu estiver em pleno sofrimento e se não tiver um caminho para ir, se não tiver… no purpose… nenhum propósito, e se eu escolher, espero que me respeitem. Agora estarem em cima de mim, a proibirem-me, “não, não, não pode porque, porque, porque. . . ” Deixem-me escolher. Mas este é um tema muito profundo. P: E no seu caso?M. C. S. : Sou contra esta visão da eutanásia à escolha, porque muitas pessoas acham que vai ser óptimo, mas o resultado não tem sido tão bom, aquela rampa deslizante tem sido tremenda. Já temos muitos meios, e teremos mais com certeza, para dar uma morte tranquila. Mas também acho que não é neste tipo de conversa que vamos pôr em jogo todas essas…M. J. : …É muito profundo, não há certezas absolutas, não é? É um assunto demasiado delicado, demasiado forte…P: A socióloga Maria Filomena Mónica diz que durante muito tempo se opôs à eutanásia e que o que a fez mudar de opinião foi ver a morte de dois amigos e da sua mãe. M. J. : Há essa pequena coisa. Imaginem-se lá: completamente em pleno sofrimento, não vamos sair dali, temos um cancro terminal, não há um caminho e é só sofrimento a nossa vida, e se eu escolher, se eu escolher em plena lucidez, eu quero terminar isto…M. C. S. : … Se está assim tão mal, a lucidez já não deve estar muito boa. M. J. : E se eu estiver lúcida? Se eu escolher isso, espero que não me venham dizer: “Não vais porque eu acho. . . ”P: Se o corpo está em sofrimento e já nem há lucidez, somos o quê?M. C. S. : Somos uma criação divina que encontrará o seu caminho. A falta de lucidez não nos deixa tomar decisões. Há a decisão, de que os meus filhos estão informados, que é dizer: “Nada de encarniçamentos terapêuticos. ” Mas ainda há muita coisa a fazer para a calma da morte. Tive vários casos a que assisti e percebi que isso foi bom, em que foi possível dar uma morte tranquila. P: Para acabar, se tivessem que escolher um único conselho sobre envelhecer bem, qual seria?Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. N. M. : Para mim, é a felicidade. Começa de dentro para fora. M. J. : Para mim, também. Sermos o mais felizes que conseguirmos. Compreendermo-nos, respeitarmos os outros, respeitarmos a Terra em que vivemos, as outras formas de vida. É a felicidade, realmente. M. C. S. : Talvez recordasse o exemplo da minha avó: conseguir todos os dias ter uma gargalhada e lágrimas, que também fazem parte da felicidade.
REFERÊNCIAS:
De sofá em sofá na Terra Santa
Um casal com um bebé a fazer couchsurfing em Israel e na Palestina? Parece loucura, mas é a forma mais fascinante de viajar. Com a família, à descoberta de templos, praias e iguarias nos sofás de judeus e árabes. (...)

De sofá em sofá na Terra Santa
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um casal com um bebé a fazer couchsurfing em Israel e na Palestina? Parece loucura, mas é a forma mais fascinante de viajar. Com a família, à descoberta de templos, praias e iguarias nos sofás de judeus e árabes.
TEXTO: Todas as manhãs, o velho Youssef vai ao jardim colher ervilhas. Chegado à sala, onde da salamandra ainda emana o calor da lenha da madrugada, coloca as vagens num alguidar e começa a descascá-las para a Lia, a nossa filha de 15 meses. Depois, sentado na poltrona de que é dono e senhor, pega-a ao colo com a suavidade que só os avôs sábios sabem ter e vai-lhe passando, um a um, os grãos verdes brotados em terra palestiniana. Na mesa, há chá, pão e labneh, um dos queijos mais antigos do mundo, temperado em azeite. Estamos em Beit Ummar, uma vila a escassos quilómetros de Hebron, a cidade mais problemática da Cisjordânia, onde os muros da escola têm pintadas as caras dos mártires adolescentes caídos durante a Intifada. Mas em casa de Youssef respira-se tranquilidade. Ele, a mulher e os cinco filhos tratam-nos como parentes, deram-nos um quarto alcatifado e até montaram uma rede de baloiço para a Lia no quintal. Do terraço, a que Youssef insiste em levar-me todos os fins de tarde, vê-se o Mediterrâneo que banha Telavive, que ele bem conhecia quando, enquanto camionista, transportava frutas e legumes para Gaza. Depois da construção da barreira de separação entre Israel e a Cisjordânia, em 2003, o mar ficou reduzido a uma linha no horizonte que só daqui pode vislumbrar. À noite, visitamos a sua filha mais velha e o neto no campo de refugiados de Al-Arroub. Existe há 70 anos: já não é um acampamento, é bairro de tijolo e cimento. Ignorando os dois soldados armados que patrulham a entrada, a Lia e o pequeno Ahmed pulam, descontrolados, nos sofás arabescos. Mais um serão nos territórios ocupados. Nove folhas arrancadas ao calendário e estamos em Netanya, 30km a norte de Telavive, com Gilad, engenheiro hidráulico, a acender uma vela e a entoar um harmonioso cântico para dar com a família as boas-vindas a mais um shabbat, o dia de descanso semanal no calendário judaico. À mesa, a acompanhar uma deliciosa sopa de lentilhas, frango e massa, somos brindados com uma história familiar contada pela mãe de Gilad, que veio nascer a Israel porque os pais fugiram da Alemanha logo nos primeiros anos da ascensão nazi. Foi nessa época, no início dos anos 1930, que os pioneiros sionistas ergueram Netanya a partir de dunas arenosas, irrigaram-na, cultivaram-na e transformaram-na ao longo das décadas numa das maiores cidades de Israel e sede de algumas das principais empresas tecnológicas. Julia, mulher de Gilad, alemã ateia como Ilka, a minha namorada, é relações públicas no Ebay. As três filhas do casal são evidências da ironia da história: judias alemãs, com avós carrascos e vítimas da Segunda Guerra Mundial, falantes de hebraico e alemão. Filhas do Holocausto, mas também de Israel 2. 0. , país que mais incuba startups depois dos EUA. Gilad gosta que o acompanhemos a passear o cão na zona agrícola que circunda a sua vivenda, decorada com dezenas de bandeirinhas de Israel, assinalando o 70. º aniversário da nação hebraica. Explica-nos a complexa engenharia necessária para irrigar esta região árida e, no topo de um barranco, aponta-nos a pujante expansão de Netanya, que com as suas torres espelhadas ameaça transpor a barreira da autoestrada para engolir este arrabalde bucólico e sereno. A cidade, habitada por um mosaico étnico que vai desde eslavos a etíopes, transformou-se numa das maiores estâncias balneares do país. Os seus 14km de costa de areia fina, praias animadas com campos de futebol, basquete, vólei, skateparks, ginásios e esplanadas, são um chamariz para o turismo interno e além-fronteiras, com destaque para russos e franceses. O mar é tranquilo e tépido. Só a silhueta dos arranha-céus nas falésias macula o cenário. Sábado é dia de piquenique. Orgulhoso do percurso do seu país, Gilad leva-nos até aos jardins de Ramat HaNavid, um memorial ao Barão Edmond de Rothschild, que ao adquirir terras a árabes nesta zona, pantanosa e infestada de mosquitos maláricos, se tornou num dos percussores do sionismo - “O Famoso Benfeitor”, como é conhecido. Para além da faceta histórica, o jardim é de uma beleza exuberante, com centenas de espécies de flores, árvores e ervas aromáticas a salpicarem estátuas e fontes aos pés do Monte Carmelo. Lia, que há uns dias brincava com árabes num campo de refugiados, corria agora com três meninas judias diante do túmulo de um dos homens que abriu caminho para a fundação de Israel e para a expulsão dos palestinianos em 1948. Brincar da mesma maneira com israelitas e palestinianos que, geralmente, nunca têm a possibilidade de coexistência. Esse é o privilégio de qualquer criança estrangeira que pisa estas terras. E a forma de mostrar que a inocência vem antes do preconceito. Este acesso à vida familiar de judeus e muçulmanos não estava previsto. Poucos dias antes do voo para Telavive, fomos surpreendidos pelos preços exorbitantes dos hotéis em Israel num mês de Abril carregado de festas e feriados – Pesach (celebração do êxodo dos judeus do Egipto para Israel), Páscoa, Shoah (Dia Memorial do Holocausto) e o Dia da Independência. Íamos viajar um mês e, com aqueles valores, rebentaríamos o orçamento em menos de uma semana. Assim, tivemos de procurar alternativas. O couchsurfing surgiu à cabeça: ambos já o tínhamos experimentado com bons resultados mas, desta vez, íamos com a bebé. Estariam os anfitriões disponíveis para aceitar o choro nocturno de uma criança? Para apanhar os cacos de copos e bibelôs partidos? Na pesquisa, descobrimos que havia um parâmetro “children-friendly”. E que alguns dos anfitriões até tinham catraios em casa. Foram esses que receberam primeiro os nossos pedidos. Sem saber, estávamos a ingressar numa viagem pelos lares da Terra Prometida: a melhor maneira de conhecer diferentes pessoas e culturas, comidas e monumentos, opiniões políticas e religiosas, enfim, entender a viagem. E entreter a Lia. Não foi fácil explicar esta opção aos familiares. Já uma ida à região numa altura em que os telejornais mostravam as manifestações em Gaza era difícil de conceber. Mais ainda, eliminando o conforto para pernoitar em sofás de estranhos. Mas quem já esteve no país sabe que, evitando-se as áreas conflituosas, se trata de uma zona segura. Longe de nós colocar a nossa filha numa situação arriscada. Quanto aos sofás, revelaram-se mais confortáveis do que muitos quartos de hotel. A vasta varanda do apartamento de Moishe Kerber, de 28 anos, era razão suficiente para termos ido a Israel. Fica na Rua Levinski, no sul de Telavive, numa zona marginalizada mas em rápida transformação graças ao processo de gentrificação que se alastra do vizinho bairro hipster de Florentin. Tem três sofás velhos, uma mesa com um tabuleiro de xadrez, várias garrafas de cerveja vazias e plantas em vasos lascados. Mas não era a decoração que a embelezava: era a brisa morna que a varria e os sons que lhe chegavam das buzinas e das melodias do Médio Oriente. A casa de Moishe não estava na lista de receptividade para crianças. Ele, solteiro, produtor de televisão, amante de whisky e bicicletas, acudiu a um pedido de alojamento que publicámos numa página de Telavive no Facebook. Filho de pai russo e mãe americana, cresceu em Indiana, nos EUA, optando por Telavive para iniciar a vida adulta. Frequentou o exército, como todos os israelitas, e participou na guerra em Gaza em 2014. Este era um tema que o incomodava – confessou ter perdido amigos mas não se estendeu sobre as suas acções enquanto militar. Guardava uma bala e óculos de visão nocturna. A sua inaptidão inicial com a Lia terminou com os dois a jogarem futebol no terraço. Telavive é uma bolha de liberdade e de laicismo no Oriente Próximo. À “cidade branca”, património mundial pelos seus edifícios de arquitectura Bauhaus, confluem ateus e pecadores, gays e intelectuais, empreendedores e pacifistas. Podem ser vistos a passear de trotineta e de auscultadores no jardim central da Avenida Rothschild, numa festa bissexual de uma discoteca árabe em Jafa ou de biquínis reduzidos e tatuagens na praia. “A praia é o lugar a que toda a gente vai depois do trabalho”, diz Moishe. “Uns calções de banho e uma prancha de surf fazem parte dos equipamentos indispensáveis a qualquer morador desta cidade. ” É, portanto, o melhor ponto de partida para conhecer a capital de Israel. Um mergulho nas águas cálidas, enquanto a Lia roubava baldes e ancinhos a outras crianças, auspiciava um mês épico. A sul, as praias têm menos gente, enquanto as do norte são mais populares. No milenar porto de Jafa, bons restaurantes de peixe escondem-se em vielas misteriosas, encimadas pela mesquita Al-Bahr (Mesquita do Mar), onde as mulheres dos pescadores árabes rogavam o seu regresso da faina. Após um sumo natural de romã, o passeio prosseguiu no charmoso bairro de Neve Tzedek, que já cá estava antes de Telavive nascer, há 109 anos. Há várias galerias, pequenas livrarias e esplanadas que servem vinho de qualidade. Daí, uma caminhada de 15 minutos levou-nos ao mercado de Carmel, o epicentro da vida comercial em Telavive. Tudo se compra e tudo se vende: morangos carnudos, grão-de-bico para o húmus, pão quente, queijo de cabra e muitos vegetais frescos, com uma prevalência de beringelas. Há ainda t-shirts e quadros com Donald Trump e Vladimir Putin vestidos de mulher. Telavive não perde uma oportunidade para se assumir como capital da tolerância numa região conhecida pelas restrições às liberdades individuais. O Parque Yarkon, a norte, junto aos museus Palmach (história/política) e Eretz (arqueologia) faz as delícias das crianças com dezenas de parques infantis e gaivotas para navegar no rio. Perto de casa, o mercado gastronómico de Levinski oferecia uma excelente selecção de queijos frescos, azeitonas e especiarias e ainda pequenos restaurantes com húmus e falafel divinais. Ao fim da tarde, a esplanada do Toni & Esther enchia-se de clientes ávidos de aperitivos e de cerveja nacional em horário promocional. Moishe chegava do trabalho todas as noites pelas 23h. Sentávamo-nos nos sofás descarnados a discutir a actualidade de Israel em animadas tertúlias sobre política e religião, em que o meu anfitrião me elucidava sobre pormenores para os quais eu não encontrava explicação. Era um dos interlocutores mais isentos e esclarecidos que jamais encontrara no país. Explicou-me as razões de os judeus ortodoxos estarem livres de serviço militar, a simbologia da indumentária das diferentes correntes judaicas (“os sionistas usam quipá azul”), como é que nasceu um batalhão transexual no exército, o que se celebra em cada feriado. Naquela varanda, aprendi mais sobre Israel do que na minha estadia anterior. Escolhemos mal o dia para chegar a Haifa. É feriado, último dia de Pesach, não há transportes públicos e escasseiam os táxis, pelo que tivemos de empurrar o carrinho de bebé encosta acima até ao apartamento de Dima e Schlomit, os nossos cicerones. Há cidades íngremes e depois há Haifa, que só os deuses impedem de resvalar do Monte Carmelo. Felizmente, o casal reconheceu o nosso esforço e premiou-nos com um jantar comemorativo de borrego e arroz de passas regado com vinho branco, na companhia de um par amigo e de Lenny, o miúdo da casa, de dois anos, que logo quis mostrar à Lia a sua tara por pistas de comboios. Da janela, uma panorâmica do mar rubro ao entardecer. Ali perto, o Mosteiro de Stella Maris, sede mundial dos cristãos carmelitas, assinala a caverna onde o profeta Elias se refugiou na sua luta contra os profetas de Baal. É uma igreja pequena mas extremamente bela, hoje local de peregrinação. Logo em frente, chegam e partem os teleféricos panorâmicos para a costa. No entanto, é a mais recente das religiões monoteístas que ocupa um lugar central na cidade: os Jardins Suspensos de Haifa, ou os Terraços da Fé Bahá'í, desfilam do topo à base da montanha, dispondo jardins coloridos e frondosos por socalcos em redor do Santuário de Báb, percussor desta crença nascida no actual Irão. Descalços e em absoluto silêncio, visitámos o mausoléu, pedindo a Báb que a Lia não acordasse aos berros. Lá fora, a vista desfiava-se pelo bairro da Colónia Alemã até ao mar, delimitada por flores e sebes. Tudo evocava harmonia, equilíbrio e limpeza. Com 15% de árabes, Haifa é uma das cidades mais multiculturais de Israel e isso pode ser visto no Fattoush, um ilustre restaurante palestiniano com aroma a açafrão e vapores de narguilé, ou em Wadi Nisnas, o quarteirão árabe, com um mercado tradicional onde fomos surpreendidos por um carro forrado a carpetes e pelos deliciosos knafehs, um doce à base de queijo, pistácios e uma espécie de aletria, embebido em xarope de açúcar. À hora da oração islâmica, um grupo de árabes – rapazes e raparigas, provavelmente cristãos - deliciava-se com uma sandes de bacon, salame e verduras num talho local, acompanhada por shots de whisky trazidos pelo proprietário, Abdulkarim: “Somos árabes israelitas, solidários com a Palestina mas orgulhosos de viver aqui. Principalmente em Haifa, que é uma cidade que aceita todos os povos e religiões”, diz. De regresso a casa, ficámos a saber mais sobre Dima e Schlomit. Ele veio de Moscovo com a família em 1991, depois da queda da União Soviética, enquanto ela pertencia a um clã religioso originário do Médio Oriente. Aquando do casamento, experimentaram o mesmo problema que afecta milhares de casais hebraicos: apesar de se considerar um Estado democrático e secular, só se podem casar em Israel judeus com as origens devidamente documentadas. Schlomit não teve qualquer problema em fazê-lo. Porém, Dimitri (Dima) e os seus parentes tiveram de ocultar publicamente as suas crenças religiosas durante o regime comunista e não tinham como provar que eram judeus a sério. “Nem queria acreditar quando eu e a minha mãe fomos chamados a um tribunal especial para provarmos que éramos judeus. A ela perguntaram-lhe se sabia falar iídiche [a língua dos judeus asquenazes, do leste europeu] e a mim perguntaram-me quando tinha sido circuncidado. É inaceitável”, afirma Dima. Acabaram por conseguir. Muitos não têm a mesma sorte e preferem fazê-lo em Praga ou em Nicósia. Todas as manhãs, Lenny e Lia ficavam a brincar com os comboios e com os gatos e nós podíamos dormir mais um bocado no sofá. O mundo é um lugar estranho. Estávamos no monte Bental, nos Golã israelitas, com vista desimpedida para a Síria. No dia anterior, a 60km dali, tinha havido um ataque com armas químicas. Mas ali as crianças corriam por entre as flores e os turistas pagavam cinco shekels para ver a Síria por binóculos. Dizem que dá para ver vacas a pisarem minas e a irem pelos ares. Da última vez em que estive na Síria já havia armas mas não minas. As pessoas andavam aflitas mas as vacas pareciam em paz. Meio milhão de sírios já não estão. Guerra total. Horas atrás, aqueles céus tinham sido rasgados por aviões israelitas que bombardearam uma base iraniana. Os de Trump seriam os próximos. A fronteira estava em alerta vermelho. Uma cor a que os israelitas estão habituados: há dezenas a fazer caminhadas, jovens a rezar na montanha e visitantes a beber café na esplanada de um restaurante chamado Coffee Annan (nuvem, em hebraico, mas também um trocadilho com o nome Kofi Annan, do ex-secretário-geral das Nações Unidas). Chegámos a este bizarro mundo de carro alugado, depois de passar por Tzfat, um local sagrado do judaísmo completamente colonizado por ortodoxos e com um centro pejado de edifícios antigos e de galerias de arte judaica. Os Golã são uma espécie de Alpes de Israel – remotos, silenciosos e verdejantes. Terra anexada à Síria em 1967, na Guerra dos Seis Dias, e nunca mais devolvida. Contudo, o ambiente é bem diferente do que se vive na Cisjordânia: os israelitas que aqui residem também são considerados colonos mas não são ideológicos e praticamente não há árabes, só druzos, que gozam de alguma autonomia e se adaptaram bem ao jugo de Telavive. Recebemos guarida na pitoresca moradia de Yosefa e Dudi, no kibbutz de El Rom, que por estar implantado a 1000 metros de altitude tem noites frias só combatíveis com cobertores. Os sexuagenários foram criados em kibbutz – comunidades agrícolas de ideologia sionista e socialista – numa época em que todos recebiam o mesmo salário, as colheitas eram divididas pela comunidade e as crianças viviam juntas na mesma casa. “Hoje é tudo diferente”, diz Yosefa, assistente social, com nostalgia. “O lema era 'trabalha o máximo que conseguires, recebe o que houver'. Mas as pessoas viviam neste sistema capitalista e fartaram-se disso. Hoje ainda há resquícios dessa génese mas quase todos têm trabalho fora de El Rom. ” As famílias do casal pertenciam a dois grupos paramilitares rivais – o Haganah e o Irgun – que ofereceram resistência aos britânicos durante a sua vigência na Palestina e desempenharam um papel preponderante no conflito contra os árabes em 1948. Dudi trabalha hoje na construção de jardins, mas na juventude foi cowboy, chegando inclusivamente a visitar ranchos no Texas. Combateu nos Golã na Guerra de Yom Kippur, em 1973, quando estava noivo de Yosefa, e acabou por trazê-la para a reconstrução do kibbutz entretanto destruído. Ficaram até hoje. A hospitalidade e amabilidade com que nos receberam não correspondem ao estereótipo de vaqueiros e de descendentes de milicianos. Yosefa e Dudi são cultos, viajados e foram extremamente dóceis com a Lia, a quem brindaram com o caixote de brinquedos dos próprios netos. Ele, devoto da gastronomia druza, levou-nos ao Sulthan, um restaurante da vizinhança onde comemos a melhor tehina (pasta de sésamo) de que há memória. Apesar das diferenças étnicas e religiosas, Dudi e o dono do estabelecimento eram grandes amigalhaços. No fim, um knafeh de comer e chorar por mais. El Rom era a base perfeita para percorrer os Golã. Em 15 minutos, estávamos nas magníficas Cascatas de Banias, um jorro de água conduzido desde o colossal monte Hermon, onde no Inverno se faz esqui virado para o Líbano e para a Síria. Ficam ao lado das ruínas da cidade perdida de Dan, antigo feudo de Herodes e onde Jesus, escondido nas cavernas, quis saber dos discípulos o que pensavam dele. Estrada acima, as ruínas da Fortaleza de Nimrod, um bastião com mais de 800 anos que viu mais guerras do que Gengis Khan. Entre o nevoeiro e as rochas, os Golã escondem segredos milenares, mesquitas e sinagogas, ruínas, bunkers, medos e glórias. Na cidade druza de Majdal Shams, onde uma intransponível vedação separa Israel da Síria, as famílias druzas afastadas pela Guerra dos Seis Dias costumavam, antes do advento dos telemóveis, gritar de uma montanha para a outra para anunciarem mortes e casamentos. Ainda hoje há quem vá para o vale de megafone. Deixámos os Golã a caminho do mar da Galileia – esse mesmo, onde, segundo a Bíblia, Cristo caminhou sobre a água – a tempo de umas braçadas antes do cair do sol. Uma luz quente coloria as escarpas dramáticas a leste do grande lago. Já sabia que andar sobre a água só estava ao alcance de um predestinado, mas desconhecia o calvário de passar descalço sobre as pedras pontiagudas da orla. Pernoitámos no tapete de uma escola de ioga em Degania, o primeiro kibbutz de Israel, fundado em 1912, quando 10 homens e duas mulheres se fixaram no local anteriormente ocupado por uma aldeia árabe. Amos deixou a chave escondida à entrada e colchões macios preparados para a Lia. Chegou tarde, vindo de um biscate bizarro: actor de pequenos filmes para uma promissora startup que pretende criar uma base de dados com imagens para todas as situações possíveis – desde sequestros a perseguições de carro – para serem usadas nas redes sociais e em publicidade. Uma nova ferramenta para fake news?Após a Lia ter chapinhado nas águas em que Jesus foi baptizado – e onde turistas de todas as latitudes vêm fazer o mesmo – viajámos a tarde inteira paralelos ao impactante Vale do Jordão, uma bênção de fertilidade no coração do deserto. A maioria dos vegetais que abastecem Israel vêm daquelas várzeas e não surpreendem todos os esforços que Telavive despende para desalojar ilegalmente os agricultores palestinianos. Chegados ao mar Morto, procurámos encontrar uma nesga de terra que não estivesse apropriada por privados, de forma a não pagarmos para boiar nas salgadíssimas águas do lago mais baixo do mundo. Impossível! Não importa: o reservatório está a perder continuamente volume e mais tarde ou mais cedo desaparecerá. A experiência valia os 15 euros. Mas dispensava as excursões de turistas russos e príncipes das Arábias que transformaram o banho numa espécie de pista de carrinhos de choque flutuantes. Exceptuando os dias preguiçosos em Beit Ummar, a nossa base na Palestina foi a casa do chileno Andrés Cuche em Doha, um bairro conservador de Belém. Andrés, voluntário pela causa palestiniana na ONG Saint-Yves, é irmão de um velho amigo de Santiago do Chile e rapidamente nos mostrou as mercearias do bairro – onde os vendedores chegam a oferecer peças de fruta – e os sítios para comprar sandes de falafel a um euro no campo de refugiados de Dheisheh, um dos locais mais gaseados do mundo. As noites eram passadas em castelhano a conversar sobre as questões irresolúveis do conflito israelo-palestiniano. Belém é a localidade mais turística da Cisjordânia. No entanto, poucos são os visitantes que ficam a conhecer a cidade: em Jerusalém, são metidos em autocarros e atirados rapidamente para a Igreja da Natividade, suposto local de nascimento de Jesus, e para a Capela da Gruta do Leite, local que a Bíblia indica como o refúgio encontrado pela Sagrada Família durante o Massacre dos Inocentes, cujo chão ficou para sempre branco quando uma gota de leite caiu do peito de Maria, sendo depois transportados de regresso aos hotéis israelitas. Recentemente, a cidade ganhou mais uma atracção para todos aqueles que se interessam pelo conflito. No Walled Off, o hotel que o artista britânico Banksy fundou de frente para a muro que separa a Cisjordânia de Israel, encontra-se um museu interactivo especializado na história da ocupação, em que os visitantes são confrontados com vídeos explicativos, documentos que ilustram o regime de apartheid vivido pelos palestinianos e destroços retirados de casas destruídas. Destaque para um telefone que toca incessantemente: ao atendê-lo, o visitante é confrontado com a mensagem que os soldados israelitas costumam transmitir antes de se apropriarem de uma residência: “A sua casa vai ser destruída devido a fins militares. Tem dez minutos para sair. ” A recepção do hotel conta ainda com várias obras magníficas do próprio Banksy, que assinou numa parede de Jerusalém o famoso stencil de um manifestante a arremessar um ramo de flores. O muro tem frente e verso. Do lado israelita está o Túmulo de Raquel, sepulcro sagrado para judeus, cristãos e muçulmanos, agora interdito aos últimos, destino de peregrinação para devotos da Torah. Na parede palestiniana, desenhos de motivações políticas de vários artistas nacionais e internacionais. Entre milhares de inscrições, aquela que se tornou viral: “Make Hummus, Not Wars” (Façam Húmus, Não Muros). Os donos do restaurante Afteem, refugiados de 1948, seguiram este conselho e fazem a pasta de grão de uma forma sublime. À noite, o bar Bandido é ponto de encontro para cerveja e conversa. Belém revelou-se uma excelente plataforma para visitar outras cidades da Cisjordânia. As carrinhas de nove lugares, única forma comunitária de deslocação dentro das áreas sob controlo da Autoridade Palestiniana, demoram mais de uma hora a percorrer os 30km para Ramallah, mas permitem experienciar o quotidiano da vida palestiniana: a passagem pelos checkpoints, os caminhos sinuosos que se desviam de Jerusalém, as paisagens dramáticas, a proliferação de sucateiras e de ferro-velho, os diferentes paradigmas nas zonas A, B e C, debaixo de diferentes legislações. Em Ramallah, capital de um país sonhado, não perder o Museu Yasser Arafat, onde se encontra o túmulo do antigo líder da Fatah, o anexo em que viveu dois anos debaixo de cerco e fotos e vídeos sobre a resistência palestiniana. Em Nablus, no norte, o queixo cai perante a sumptuosidade das montanhas e o estômago abre-se às tentações do mais tradicional dos mercados. Hebron é diferente de tudo o resto. A história dos povos que acreditam num só Deus começou com Abraão em Hebron. Por isso, é tão disputada e cobiçada: a medina árabe está rodeada por colonatos hebraicos. De um lado e do outro, os apoiantes mais radicais. O Túmulo dos Patriarcas é o único local de culto híbrido: metade sinagoga, metade mesquita. Nele estão as sepulturas de Abraão e Sara, Isaac e Rebeca, Jacó e Lea e até de Adão e Eva. É sítio de poucos sorrisos. Pelo menos, até a Ilka ter coberto a Lia com uma túnica islâmica, provocando gargalhadas entre os fiéis. Antes de partir, um encontro com o pacifista palestiniano Issa Amro, sitiado entre colonatos em Beit Hadassah, um assentamento de sionistas radicais colado ao centro de Hebron. Issa tem pulseira electrónica, 18 casos em tribunal contra ele, maioritariamente por desobediência, e está convencido que não tarda irá preso um ou dois anos. Vive com a família nas instalações da Youth Against Settlement, a instituição que dirige há mais de uma década à revelia da Autoridade Palestiniana e do Estado israelita. “Agora já não nos tratam por nomes mas por números, como os nazis faziam aos judeus”, acusa. “A vida nunca foi tão má na Cisjordânia como hoje. Os colonos estão a viver os seus melhores dias”. Entretanto, a entrevista foi interrompida por Lia, que se veio agarrar às minhas pernas. Olhei para os filhos de Issa e imaginei como seria estar na iminência de ser preso apenas por manifestar a minha opinião. Esses pensamentos assombravam-me quando deixámos Hebron, já de noite. Nenhuma visita a Israel fica completa sem Jerusalém. Mais que qualquer profeta ou mensageiro, aquelas muralhas morreram e ressuscitaram vezes sem conta. Com o propósito maior de mostrar a todos os que não acreditam que a fé existe e há-de engoli-los. Uma voz assalta o agnóstico quando pisa a cidade de Deus: “Podes pensar que todos à tua volta são tolos mas rende-te porque são muito mais que tu. ” Cúpula da Rocha, Muro das Lamentações, Igreja do Santo Sepulcro – são apenas três dos magníficos baluartes que marcam a fé dos homens e a guerra das civilizações. Jerusalém comove e revolta. Ninguém fica indiferente. Nem mesmo quando se vêem aberrações como clérigos a enviar SMS encostados à sepultura de Cristo ou fiéis a gravar vídeos enquanto rezam com a testa no mármore. Uma espécie de alegoria para a chegada de um Deus com ecrã táctil. Na praça adjacente à sinagoga Hurva, no centro de Jerusalém, tivemos uma das raras más experiências da viagem. A Lia tentou aproximar-se de crianças de orientação ortodoxa que brincavam em conjunto mas, assim que se aproximava, eles afastavam-se. Como se tivessem receio. Eu e a Ilka concluímos que, devido à indumentária muito marcada – com as tranças, os chapéus e as saias compridas –, aqueles meninos e meninas, membros de uma comunidade muito fechada, não estavam habituados a conviver com crianças com t-shirts dos Rolling Stones. Acontecimento ofuscado pelo entardecer a partir do Monte das Oliveiras; a velha Jerusalém a surgir de caras por cima da gigantesca necrópole habitada por gatos vadios que saltavam de campa em campa. Mensagem: as pessoas são mortais, Jerusalém é imortal, dos gatos ninguém sabe. A descontracção dominou os últimos dias passados em Herzliya, às portas de Telavive, em casa de Hagay e Keren, de cuja filha Elle a Lia se tornou rapidamente compincha. Passavam as tardes de intenso calor na piscina da marquise. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Dali, voltámos à casa de Moishe, na Rua Levinski, para o último dia antes do voo, marcado para a madrugada. Lamentavelmente, apercebi-me de que tinha perdido as chaves de casa somente quando chegámos ao patamar do quinto andar pelas 22h. Tínhamos tudo dentro do apartamento. Moishe não abria a porta nem atendia o telemóvel. Uma situação tramada que nos podia levar a perder o voo. Entrámos em ansiedade, com excepção da Lia, que dorme mesmo em situações de stress. Pedimos auxílio aos vizinhos do lado, na esperança de se conseguir saltar de varanda para varanda. Era demasiado perigoso. Naquele apartamento, viviam 10 indianos que se disponibilizaram prontamente para tentar abrir a porta com cartões bancários e facas de cozinha. Nada feito! Quando as esperanças começavam a esmorecer, Moishe apareceu. Era 1h da manhã e vinha de um passeio de bicicleta. Deparou-se com dez indianos a esfaquear-lhe a fechadura, dois hóspedes desesperados a bufar diante de uma ventoinha e um bebé a dormir. Não se chateou. Pediu desculpa por ter chegado tarde, não nos deixou pagar a chave e convidou-nos a voltar quando quiséssemos. Já ouviram falar da hospitalidade do Médio Oriente? É isto. Os judeus e os árabes são dos povos mais solidários para os visitantes. Só falta que o sejam uns com os outros.
REFERÊNCIAS:
Arqueólogos nas barbas do "Estado Islâmico"
Quando o “Estado Islâmico” pisou Palmira, cinco jovens arqueólogos portugueses, um belga, uma italiana e dois curdos estavam a salvar um pouco da Mesopotâmia, numa colina do Curdistão, não muito longe da linha da frente. Em vez de bandeiras negras, cachecóis do Benfica. Retrato de um mundo partido, entre guerras. Da nossa enviada Alexandra Lucas Coelho, no Norte do Iraque (...)

Arqueólogos nas barbas do "Estado Islâmico"
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Quando o “Estado Islâmico” pisou Palmira, cinco jovens arqueólogos portugueses, um belga, uma italiana e dois curdos estavam a salvar um pouco da Mesopotâmia, numa colina do Curdistão, não muito longe da linha da frente. Em vez de bandeiras negras, cachecóis do Benfica. Retrato de um mundo partido, entre guerras. Da nossa enviada Alexandra Lucas Coelho, no Norte do Iraque
TEXTO: O comandante Ato apoia-se nos sacos de areia e aponta para o horizonte, uma linha ocre debaixo de um céu azul, cortada por uma coluna de fumo: “Ali é o ‘Estado Islâmico’. ” A que distância? “Um quilómetro vírgula oito”, responde ele, com precisão de carta militar. “Mas em Agosto estavam aqui. ”Aqui é uma trincheira no Norte do Iraque, um dos pontos da longa linha da frente que divide as tropas curdas dos jihadistas. E por toda a parte há sinais de como no Verão passado os jihadistas aqui chegaram. Nas nossas costas, Hassan al-Sham, a aldeia mais perto, está deserta, abandonada, possivelmente minada, e as ruínas da ponte que eles fizeram explodir continuam à vista, penduradas sobre o rio. Os soldados curdos, conhecidos como peshmergas, tiveram de fazer outra ponte até à trincheira. Trincheira mesmo: guaritas, barracas para a troca de turno, barreiras de metal, madeira e sacos de areia empilhados, com espaços para enfiar as armas, fazer mira. Estamos entre Erbil, a capital curda, e Mossul, a maior cidade do Iraque dominada pelos jihadistas. Não exactamente a meio porque Mossul está mais perto. Caminhando em linha recta, chegaríamos aos escombros de Nimrud, a antiga cidade assíria que o “Estado Islâmico” fez explodir como a ponte, só que com mais dinamite, e direito a trailer. Assim acontecera em Mossul, em Hatra, teme-se agora em Palmira. Porque à ficção do “Califado”, mais que imperialista, apocalíptica, não basta arrasar para a frente, “conquistar Roma, ser dono do mundo”, como proclama o “califa” Abu Bakr al-Baghdadi. É preciso arrasar para trás, destruir a história que vai do século XXI ao primeiro islão e a história anterior a ele até não haver história, apagar rostos, figuras, símbolos, templos, e portanto o começo da escrita, da troca de bens, das cidades. Esse começo deu-se aqui na Mesopotâmia, a terra entre os rios Tigre e Eufrates que hoje corresponde à Síria e ao Iraque, sobre a qual conhecemos apenas fragmentos, o pouco que ficou em pé ou foi escavado. Teria sido preciso escavar muito mais, e guerras de várias espécies travaram a arqueologia nesta região, sobretudo na segunda metade do século XX. Mas à actual autonomia curda, sempre em braço-de-ferro com Bagdad, interessa trazer a história ao de cima, afirmar um mapa. E uma das coisas que se aprendem numa colina da antiga Mesopotâmia é como a arqueologia avança através de pequenas sondagens: cortes na paisagem por onde o arqueólogo desce, milénio a milénio, até avistar um mundo. Eis o que estão a fazer durante as próximas semanas cinco portugueses, um belga, uma italiana e dois curdos numa colina junto a Sulaymanyiah, segunda cidade do Curdistão. Quando a repórter os deixou para ir um par de dias à linha da frente, preparavam a logística que implica uma escavação nesta parte do mundo. Começam a conhecê-la: na temporada anterior, em 2013, antes da proclamação do “Estado Islâmico”, acharam uma tabuinha de argila com cinco mil anos que representará o início da economia, comprovando trocas entre Norte e Sul da Mesopotâmia. Não é um pedaço da Epopeia de Gilgamesh, o que representaria o início da literatura, mas isso também não seria impossível, como veremos ao longo desta estadia entre refugiados, soldados, checkpoints, caveiras, cacos de cerâmica, panelões de massa com atum, mais dias sem água do que com água, nunca esquecendo que o Benfica foi fundado em 1904, porque haverá um cachecol pendurado na despensa e outro no frigorífico. Vieram na bagagem deste regresso ao Iraque, agora nas barbas do “Estado Islâmico”. “Ainda bem que o André já levou a estação total”, diz Ricardo, contemplando o monte. Uma estação total é um pesado instrumento de medição que não pode viajar no porão, por ser delicado, nem na cabine, por não caber. André Tomé, 28 anos, o outro director português do projecto, levou-a no cockpit há uns dias. Foi adiantar os preparativos em Sulaymanyiah, incluindo achar uma casa para a equipa, porque a da escavação de 2013 fica num lugar isolado do vale e, com o advento do “Estado Islâmico”, os responsáveis curdos acharam que não era segura. Horas depois, o voo de Istambul, lotado, sobrevoa o Norte do Iraque, passando por cima de Mossul, até descer para Sulaymaniyah, uma profusão de linhas bem iluminadas. O Curdistão cresceu desde a invasão americana de 2003, para os lados e para o alto, muita construção alimentada pelos negócios locais, petróleo, cimento. Dois autocarros modernos escoam os passageiros para um terminal moderno, onde os seis guichets de passaporte estão abertos, apesar de ser meio da noite. As bandeiras são do Curdistão, e basta um carimbo de entrada, nada de visto iraquiano. Só quem fica mais de 15 dias tem de passar depois por outra burocracia, também especificamente curda. É como entrar num país dentro de outro, sensação que os próximos dias só vão confirmar, em todos os sentidos. A autonomia curda é um facto, e um dos bocados em que o Iraque está partido. Mas enquanto se mantiverem os obstáculos internacionais a que o Curdistão seja um país — a começar pela Turquia, onde os curdos rondam um quarto da população —, vai manter-se a hostilidade entre este bocado do Iraque e os restantes, xiitas por um lado, sunitas por outro, tensões fratricidas que explodiram durante a ocupação americana (2003-2011), favorecendo a ascensão do “Estado Islâmico”. Mossul, a “capital” iraquiana dos jihadistas, fica apenas a 80 quilómetros de Erbil, a capital curda. Os militantes do “Califado” só recuaram do cerco a Erbil quando Obama ordenou ataques aéreos, em Agosto. Mas ainda conseguiram detonar um carro-bomba junto ao Consulado americano, e isso aconteceu agora, a meio de Abril. O carimbo nos nossos passaportes diz 7 de Maio, começo da madrugada. Em seguida, passageiros e malas empilham-se até ao tecto num mini-autocarro do tempo de Saddam, porque não se pode ir a pé até ao checkpoint das chegadas. O Curdistão passa o tempo nesta oscilação de quem gostava de ser o Dubai mas continua a ser o Iraque. André está à nossa espera, dois carros para caber toda a gente e lá vamos pelo meio da noite até à aldeia onde fica a casa que, finalmente, depois de várias questões, foi possível alugar. Uma questão “sensível” para a vizinhança era a equipa ser mista, homens e mulheres. Além de trolhas e cientistas, os arqueólogos têm de ser diplomatas, e o facto é que a casa, mais que grande, são duas, portanto os homens vão dormir em cima, as mulheres em baixo. Mas como não há nada lá dentro, André só teve tempo de ir buscar uns colchões à casa antiga e limpar o piso de baixo, onde esta noite toda a gente vai dormir. De resto, o chuveiro há-de ser instalado, o autoclismo também, a sanita é de cócoras e o lavatório às flores, para compensar. Amanhã, ou seja, daqui a pouco, vai ser preciso montar uma casa para dez onde se durma, cozinhe, coma e trabalhe. Além de comprar pás, picaretas, picos, cordas, estacas, carrinhos de mão, uma roçadeira para cortar as ervas da colina, loiça em segunda mão, mesas e cadeiras de plástico, caixas para guardar milhares de cacos de cerâmica, sacos para guardar centenas de ossos humanos, etiquetas, canetas, pincéis, arrobas de arroz e de comida em lata, garrafões de água porque a da torneira, quando há, não se bebe, e ainda trazer o fogão e o frigorífico de 2013 seja em que estado for, porque isto é uma escavação que todos os dias faz contas ao dinheiro. O objectivo é chegar o mais perto possível de Mossul, e isso quer dizer ir primeiro a Erbil. Duas estradas levam lá, uma passando junto a Kirkuk (cidade que era controlada por Bagdad e os curdos acabaram por tomar no meio da disputa com o “Estado Islâmico”); outra pela montanha (ao longo da fronteira com o Irão). Faremos a da Kirkuk à ida e a da montanha na volta. O tradutor contratado é amigo de amigos, chamemos-lhe Adan, quem guia é o irmão. Colinas verdes, fábricas de cimento, boas estradas, uma das vias ainda do tempo de Saddam, a outra já da autonomia curda. Adan fala do medo dos carros-bomba e dos refugiados que não param de chegar, centenas de milhares vindos das zonas que os jihadistas vão tomando no Iraque e na Síria. Rebanhos de ovelhas convivem com fábricas, por exemplo, de gás. Desde casa já passámos dois checkpoints com peshmergas que nos mandam seguir. Um carro de matrícula curda e ocupantes que falam curdo tem mais hipótese de não ser parado. Adan explica que “peshmerga” quer dizer “pronto a morrer”. Os curdos estão sempre a honrar os seus peshmergas, tudo o que possa ser remotamente curdo, aliás. Kirkuk é uma zona rica em petróleo, passamos o mais antigo campo do Iraque, e torna-se claro que há combates a menos de 70 quilómetros quando se multiplicam os checkpoints e nos revistam. Depois, curvando para Norte, nenhum sobressalto até Erbil, que parece tranquila, com a sua cidadela ao alto. As alas do bazar onde se troca dinheiro estão desertas mas cheias de pacotões de notas, porque um dólar vale quase 1200 dinares. Mais movimento na ala da fruta, nêsperas, pêssegos, morangos, menos na dos alfaiates. E ninguém no artesanato. “O movimento caiu para metade desde há um ano”, diz Ali, o jovem vendedor. Vir comprar os tradicionais sapatos feitos à mão, por exemplo, não é uma prioridade agora. Ainda assim, Ali nunca pensou partir. “Temos de nos orgulhar do nosso chão. Quem nos quer tirar o sangue é que tem de ter medo. Se precisarem de mim, estou pronto a combater. ”Meio em obras, e cheia de bandeirinhas curdas, a cidadela tem aquele ar das ruínas demasiado refeitas, modesta herança comparada com outras no Iraque, e sobretudo na Síria. Mas a vista lá de cima abarca todo o horizonte além de Erbil, cidade planíssima, encostada ao deserto. É quinta-feira, o que aqui significa pré-fim-de-semana desde o fim da manhã, altura em que andámos pelo Ministério dos Peshmergas de edifício em edifício, tentando uma autorização para ir à linha da frente. Incontáveis telefonemas depois, ao longo de todo o dia, um amigo de um amigo de Adan dá-lhe o contacto de um comandante que aceita receber-nos no dia seguinte. “Têm sorte porque é sexta-feira, temos algum tempo”, diz o comandante Ato Zibary, cumprimentando-nos no seu gabinete, com fotografia em destaque do presidente curdo Massoud Barzani, que ainda domingo esteve com Obama em Washington. É um acampamento organizado, blindados alinhados cá fora, peshmergas marciais na continência, gabinetes bem mobilados. Zibary, um peshmerga “político”, foi nomeado pela presidência, e a seu lado está o general Dedawan. O batalhão deles controla uma faixa de 35 quilómetros da linha da frente diante de Mossul. Como explica o comandante que uma cidade tão grande tenha caído em quatro dias, mil e tal jihadistas contra 30 mil soldados iraquianos, vai fazer agora um ano? “Erros de Bagdad”, responde Zibary. “A divisão sectária entre árabes xiitas [no governo em Bagdad] e sunitas levou a isto. Agora arrependem-se porque vêem que não conseguem lutar sozinhos. Essa divisão não tem que ver com os curdos, nós somos sunitas mas temos yazidis, cristãos, todos a viverem juntos. ” E se as tropas iraquianas vierem com milícias xiitas, avisa o comandante, os curdos não participarão na retomada de Mossul. “Porque temos a certeza de que as milícias matarão muitos civis [sunitas] em Mossul. ” Mas até à luz verde para a retomada, os peshmergas aguentarão em terra. “A força aérea americana ajuda-nos muito, alemães, canadianos, italianos, franceses. . . Demoram 12, 15 minutos a chegar do Kuwait. ”Retomar Mossul é “uma decisão política”, diz Zibary. “Depende de quando o exército iraquiano estiver pronto, porque nós estamos prontos há muito. Mais: se não fôssemos nós, o ‘Estado Islâmico’ já teria conquistado Bagdad. ”E nisto vão todas as tensões desta amálgama militar: curdos sunitas, árabes sunitas desmotivados, xiitas apoiados pelo Irão e força aérea de Obama e aliados. Um caldeirão de ex-inimigos que agora têm um fim em comum, derrubar o “Estado Islâmico”, quando há dois anos, em alguns casos, estavam a erguê-lo, ao armarem rebeldes sírios jihadistas contra Assad. Há dois anos, nada era pior do que Assad, e hoje nada é pior do que o “Estado Islâmico”, esse Frankenstein gerado pela guerra civil dos dois lados de uma fronteira que já não existe, a que dividia Síria e Iraque. Se na Síria a guerra era contra Assad, e no Iraque entre sunitas e xiitas, hoje há um “estado” maior do que a Grã-Bretanha a meio dos dois países, com uma capital em cada lado (na Síria, Raqqa, no Iraque, Mossul), e à volta está tudo partido. No balanço das intervenções e contra-intervenções estrangeiras desde 2003, dos Estados Unidos à Rússia, da Arábia Saudita ao Irão, é difícil imaginar pior. Zibary, este comandante curdo de 50 anos que combateu Saddam, vê o “Estado Islâmico” como “uma continuação da Al-Qaeda, fortalecida pelos erros de Bagdad” desde 2003: “A América derrubou Saddam, deu o poder aos xiitas e assim beneficiou o Irão. O resultado da invasão americana foi dar o Iraque ao Irão. Todos estes erros levaram ao ‘Estado Islâmico’. ”O general Dedawan acrescenta: “O ‘Estado Islâmico’ junta a experiência de guerra no Afeganistão, na Tchetchénia, do regime de Saddam, da guerra civil síria, dos soldados ocidentais. São o mais forte inimigo da humanidade. ” E olhando bem de frente a repórter: “Se eles derrotarem os peshmergas, você não se sentirá segura em Portugal. Estamos a lutar por si também. ”Cerca de 800 peshmergas revezam-se nesta região, substituídos de dez em dez dias. Há muito fumo no ar, do mato que os soldados queimam para ser mais fácil ver avanços do inimigo. A coluna militar pára junto a um pequeno monte. Os peshmergas saltam dos carros, armas em riste, e marcham pelos calhaus até à barricada. Quem está de turno cumprimenta o comandante e os forasteiros. Na tenda montada junto aos sacos de areia dorme quem fez o turno da noite. O horizonte parece quieto, uma planície árida com areia no ar, muito ao fundo recorte de edifícios. O perigo não são só os tiros, os soldados falam dos veículos que os jihadistas enchem com explosivos e lançam contra as trincheiras. “Há um mês foram duas escavadoras e três Humvees”, conta o comandante. “Foi a meio da noite, em geral atacam à noite, quando chove ou faz nevoeiro, porque aí a força aérea não pode actuar tanto. ” O Humvee é um jipe militar americano, um dos muitos equipamentos que o “Estado Islâmico” arrebatou. “Eles têm armas muito sofisticadas do exército sírio, iraquiano, americano, russo. . . ”De novo a bordo do blindado, o comandante não aceita não como resposta. Teremos de ficar para o almoço no acampamento. Boa comida curda, arroz, frango, sopa, vegetais, azeitonas, frutas várias. Quase um feriado. Falam curdo e farsi, e lutam pela autonomia onde estiverem. Por exemplo, Shilan, 28 anos, perdeu dois irmãos no combate com as tropas iranianas e envolveu-se na causa curda aos 15. “Fui treinada por homens, somos a primeira geração de mulheres peshmergas. Primeiro houve homens que se espantaram, mas agora a presença de uma atrai outras. ”Kani, 27 anos, já combateu contra o exército iraniano e agora está aqui. É casada, o marido está na frente. Elas revezam-se para ir lá, em pequenas temporadas. “Não temos medo, estamos habituadas. ” Sahar, 25 anos, casou mas agora fica por aí, em nome da luta. “Neste momento não queremos ter filhos. ” Uma frase rara num contexto muçulmano. Shilan tem dois filhos, mas só foi uma vez à frente. E a mais bonita, Aiwan, 27 anos, nem pensa em casar. “Sou peshmerga, quero lutar. ” A primeira luta é a independência, mas o “Estado Islâmico” tornou-se uma urgência. “Lutamos contra eles porque somos humanas, é dever de todos. ”Kamal, peshmerga de 47 anos que há muito mora na Suécia e agora voltou para treinar os jovens, fala na força do “Estado Islâmico”. Não é só “terem a experiência de guerrilha com armas muito modernas”. É o ânimo: “O que os distingue é que querem morrer, são suicidas, não batem em retirada. Ficam até à última bala e são impiedosos. ”Ele sabe do que fala, veterano da guerrilha curda antes de todo este conforto de tropas peshmergas com gabinetes e ministérios. “Vivíamos nas montanhas. Só às vezes conseguíamos um pouco de comida. Cheguei a estar 45 dias sem tirar os sapatos. ”Para não falar nos anos 80, quando milhares de curdos foram exterminados pelas tropas de Saddam num genocídio com armas químicas, e milhares de combatentes presos e torturados. Mesmo sem Saddam, Adan continua a não ter boas palavras para Bagdad. Há meses que não recebe a sua bolsa de doutoramento, congelada pelo governo xiita iraquiano. Milhares de funcionários também não recebem os salários. O boom do Curdistão está suspenso no ar, como as centenas de prédios que passamos nos arredores de Erbil, bairros inteiros que ficaram a meio porque entretanto caiu o petróleo, veio a crise e o “Estado Islâmico”. Ao longo da soberba estrada de montanha, Adan e o irmão têm ainda outra memória, a de quando resolveram trepar por estas rochas e descobriram que elas ainda estavam minadas, desde a guerra com o Irão nos anos 1980. Tiveram de voltar saltando de pedrinha em pedrinha, sem pisar o chão. Entretanto, rapazes penduram na estrada faixas em homenagem a combatentes curdos que acabam de ser mortos pelo “Estado Islâmico”. Tiago Costa, 27 anos, o perito nos cacos de cerâmica que veio à frente com André, faz um ponto da situação aos que chegaram depois. Ana já escavou na Síria, Ricardo na Síria e no Iraque, mas João está a estrear-se nesta parte do mundo, e Mustafa Ahmed, o entusiástico estudante que hoje cá está em visita, também quer ser arqueólogo. “O mais importante é pensar isto como algo único, que vale pela própria experiência”, diz Tiago. “Idealmente encontraremos um compartimento cheio de cerâmica, mas não podemos esperar nada. ”A repórter é apresentada a Awaz Shadan, 26 anos, e Zana Abdulkarim, 30, os dois arqueólogos curdos nomeados pelas autoridades locais para viverem com a equipa; a Giulia Gallio, 25, a italiana mais inglesa das redondezas, que não por acaso mora em York, e será a antropóloga responsável pelos ossos; e Steve Renette, 33, o flamengo de barba ruiva que é um dos três directores deste projecto, ao lado de Ricardo e André. Como Steve está ligado à Universidade de Pensilvânia e Ricardo e André à Universidade de Coimbra, institucionalmente isto é uma parceria entre as duas universidades e as duas partes vão-se revezando no financiamento. Para 2015, foi Steve que arranjou o orçamento. Mas os três estão sempre a pensar como viabilizar a escavação no futuro. Esta colina foi pessoalmente escolhida por eles e ninguém aqui recebe salário. João veio apesar de estar planear a sua tese de mestrado, porque queria mesmo trabalhar na região, ajudar os amigos. Os cinco portugueses são grandes compinchas em Coimbra, colegas de turma, de apartamento, de escavações e férias, há anos. Ao fim de dez dias com eles, uma pessoa até pondera voltar a Coimbra. Onze à mesa. Numa comuna deste género só deve haver duas hipóteses, ou o humor ganha ou a falta de humor mata, sobretudo ao fim de um mês a trabalhar 12 horas com hérnias e 50 graus ao sol. Aqui, tanto quanto a repórter verá, até a discreta Giulia tem de tirar os óculos para limpar as lágrimas de rir. Ricardo é o Seinfeld do Mondego, e Zana, o curdo, um viking da stand up, mesmo sentado. Tudo isto sem um grau de álcool, nem na grande noite que espera o Benfica, porque o álcool é uma daquelas “questões sensíveis” na vizinhança. Awaz estreia-se no chá com canela, que se tornará um must da casa. Copos e gente pelo chão da sala, o capitão André abre o saquinho do tesouro, aquele que diz: “KS 13 / 1017 / SF-27”. Traduzindo, KS é Kani Shaie, o nome da colina; 13, o ano do achado; 1017, a camada; SF, Small Findings (Pequenos Achados), e 27 o número do achado. Eis a tabuinha de argila com mais de cinco mil anos que prova como André, Ricardo e Steve escolheram bem a colina: há talvez 5200 anos, um homem rolou o cilindro em relevo que era a sua assinatura, imprimindo num bocado de argila fresca o desenho nítido de veados a serem transportados de barco. À direita, fez uma perfuração, indicando a quantidade, provavelmente dez, algo que ainda não era praticado aqui. Estamos assim perante o começo da burocracia, da contabilidade, da economia: uma factura. E uma factura que aponta para uma relação com a Uruk de Gilgamesh, então a grande cidade da Baixa Mesopotâmia. Talvez a nossa colina tenha sido uma colónia de Uruk e venha a revelar como as primeiras cidades se expandiram para Norte, e porquê. “Nossa colina” porque isto já se tornou uma observação participante. Steve teme pelo chá na vizinhança do tesouro e a tabuinha volta ao saco de plástico. Tiago espalha cacos como quem estuda um puzzle, coadjuvado por Ricardo e João. Mas nada bate a imagem de Giulia no chão, a esfregar uma caveira com uma escova de dentes, incluindo os próprios dentes da caveira. “Podemos ver pela forma da mandíbula que é uma mulher, e devia ser jovem porque os dentes estão bons. ”Este projecto não anda à procura de caveiras, gostaria mesmo de as evitar. O problema é que tendo de escavar de cima para baixo vai ter de lidar com os ossos de todos os defuntos enterrados por cima das camadas milenares, que são as que importam neste caso. E como isto não é um filme do Indiana Jones, nem sequer a época de Max Mallowan, tudo o que um arqueólogo vá achando deve ser cuidadosamente escavado, identificado e guardado, mesmo que não lhe interesse nada e pese nas hérnias e no orçamento. As conversas cruzam-se. Ouvindo que a repórter foi a Lalish, o santuário dos yazidis, Ricardo, que ama os yazidis, explica-nos o problema que eles têm com a alface. Há uma propensão para amar os yazidis nesta equipa. “Lalish é o meu lugar favorito”, anuncia Steve. Entretanto, noutra zona da sala, alguém pergunta se há corda, alguém responde que há corda para dez temporadas, o frigorífico regressa com porta, e o capitão André recapitula os problemas: “Temos de ir tratar do prolongamento dos vistos, temos de ir arrancar as ervas…” Se não chover, porque ameaça. Entretanto, como depois de amanhã temos de ir ao Museu de Sulaymaniyah, e hoje o poente promete, os três directores não querem acabar o dia sem um pulo à colina. Ricardo enfrentará a roçadeira que comprou no bazar. Já inventou até um escudo para as pernas com os cartões de uma embalagem e, como não tem máscara, vai de óculos de sol. De Tasluja, a aldeia onde moramos, à colina da escavação, tudo depende do checkpoint a meio, varia entre 15 e 30 minutos. Há um ponto em que o carro sai da estrada e entra por um caminho com estufas de um lado e do outro. Aí, estamos em pleno vale de Bazian, atravessado desde há milénios, vastidão mansa de colinas verdes, pedra branca e campos de trigo, hoje ensombrada por três cimenteiras que lentamente comem as colinas, com um rugido permanente. A região não só foi pouco estudada, como agora estão a rebentá-la com dinamite. Ao poente já tudo passa de verde a dourado em silêncio. O sol que apareceu no Irão desaparece na Síria, lá adiante, onde os deuses de Palmira hão-de ver chegar bandeiras negras. Estar aqui é escavar contra essa destruição, quase um trabalho de Sísifo, recomeçando de cada vez. Por exemplo, desde 2013, o mato tomou a colina, mas é para isso que serve uma roçadeira. “Kani Shaie!”, exulta André, saindo do carro como se voltasse a casa. Trepamos. Papoilas, trigo selvagem, ninhos de vespas. No cimo há uma pequena árvore, a vista é assombrosa e só de pisar aparece cerâmica. “É uma colina tão pequena que tendem a não lhe dar importância, e agora está toda a gente espantada com o que achámos”, diz Steve. Uma das poucas escavações neste momento no Iraque, uma das únicas portuguesas no mundo. “Em 2013, fizemos um corte para chegar aos níveis mais antigos de forma rápida”, explica André. “E agora queremos expandir cada degrau. ” Ou seja, cada milénio. Com o seu colherim — uma espécie de colher de pedreiro mas em forma de losango e muito mais forte —, André cava entre o terceiro e o quarto milénio a. e. c. (antes da era comum), enquanto Ricardo já anda com a roçadeira a zunir, impávido perante as ervas e pedras que vão saltando. Em meia hora, André e Steve acharam mais cacos do que conseguem trazer nas mãos. “A cerâmica é o nosso melhor amigo [para situar épocas], mas também pode ser o amigo mais aborrecido”, diz André. Escurece, cheira intensamente a erva, o operário Ricardo descansa, antes de logo começar a debater onde vão cortar a terra, abrir mais sondagens. É um diálogo que só arqueólogos podem ter: “Repara, aqui estou no terceiro milénio”, diz um, em pé na encosta. Medem o terreno às passadas, decidem o número de trabalhadores. “Podemos começar com 12”, propõe Steve, prudente: 12 salários a sair do orçamento. E ao serão, no pátio, entre os relatos de uns, bolseiros; outros, professores só metade do ano; outros, desempregados depois de estágios de 600 euros; Ricardo compara arqueologia e astronomia. “Quando olhamos uma estrela, também estamos a ver o passado. São duas máquinas do tempo. ”Kani Shaie é a colina que escolheram, e escavar, o que mais gostam. Talvez não haja outra forma de estar num lugar como o Iraque. Ainda bem que o gabinete é grande, porque, à boa maneira oriental, vai acumulando gente à espera de ser recebida. Pouco depois de nós, chegam três arqueólogos japoneses, que trazem presentinhos, e depois um arqueólogo espanhol, que tem pelo menos uma coisa em comum com todos os portugueses em Sulaymaniyah: é um fã de Cláudio Torres. Mulheres de preto servem copinhos de chá, os sofás são de napa, há fotografias do presidente na parede, lenços de papel na mesa, ao lado de um calendário da Asia Oil. O director desdobra-se. Enquanto André e equipa vão tratar dos vistos, incluindo tirar sangue, ele atende a repórter entre os japoneses e o espanhol. “Nesta região de Suleymaniyah, só houve duas escavações no século XX, uma entre 1947 e 1955, de ingleses, outra entre 1957 e 1959, de dinamarqueses”, resume. “Depois, o regime de Saddam não autorizou mais. Foi por isso que em 2003 abrimos portas e janelas a estrangeiros. Temos vestígios desde a Idade da Pedra ao islão, um espectro muito longo, e tentamos que cada projecto escave um período diferente. ” André, Steve e Ricardo estão focados no terceiro e quarto milénio a. e. c. “É a primeira equipa a trabalhar esta era, muito importante para nós, das primeiras cidades, dos primeiros impérios, a relação entre Norte e Sul, e eles já encontraram muitas coisas. ” Os resultados são publicados por ambas as partes, mas todos os materiais ficam no museu, que neste momento é o segundo mais importante do Iraque (depois do de Bagdad), com destaque para um estupendo fragmento inédito da Epopeia de Gilgamesh recentemente identificado. O edifício, onde há baldes a conter infiltrações, espera ser modernizado em colaboração com a UNESCO. O outro interlocutor dos arqueólogos estrangeiros é o próprio director do museu, Hashim Hawa. A cena do gabinete repete-se quando a repórter lá chega. Cá estão os japoneses, distribuindo presentes, cá está o simpático espanhol. Hashim também é simpático, toda a gente é simpática, ainda vão chegar consultores, funcionários, a mulher do director, e acabou de sair o embaixador da Letónia, o que gera um debate local sobre se a Letónia é a Lituânia. “Queremos focar o museu nas peças achadas aqui”, diz Hashim, depois de atender toda a gente sem perder o sorriso. “Antes, este museu era para mostrar a Mesopotâmia, era como o Museu de Bagdad. Agora, a vinda de arqueólogos estrangeiros é muito boa porque as peças ficam todas aqui e podemos fazer convergir o que sabemos. ” Lido politicamente, isto quer dizer que o Curdistão quer ter um museu curdo, com bom material local, afirmando-se, portanto, num mapa antiquíssimo, além de criar laços internacionais, que simultaneamente vão formando novas gerações de arqueólogos curdos. O “Estado Islâmico”, crê este director, não pode ameaçar isso. “Suleymaniyah está segura. Eles conseguiram tomar Mossul porque contaram com a ajuda das pessoas na região [árabes], que odeiam o governo [xiita] de Bagdad. Aqui ninguém os deixaria ficar, destruir a nossa herança. ”Tobin tinha as malas feitas para se mudar para cá quando o “Estado Islâmico” cercou Erbil, em Agosto passado. Mas não mudou de ideias. É casado com uma arqueóloga iraniana, têm uma filha que se desdobra em inglês, farsi e curdo. Esta parte do mundo foi a que ele escolheu. “Para quem quer estudar a Mesopotâmia, estar no Curdistão é uma prioridade”, diz Tobin. “Cada descoberta que fazemos é um grande salto em frente. ” Enquanto as gigantes Ur ou Uruk, no Sul do Iraque, são escavadas há um século “e ainda sabemos tão pouco”, aqui numa escavação pequena é possível avançar muito. “O ‘tell’ deles é espantoso”, elogia, referindo-se à colina de Kani Shaie, escolhida por André, Steve e Ricardo. “Tell” é o nome que se dá a uma colina artificial, resultado de várias camadas de ocupação humana. “O que eles estão a escavar é o nascimento de uma civilização. ”Tobin acredita que as montanhas curdas vão revelar toda uma outra Mesopotâmia, diferente do que sabemos das civilizações urbanas. “O que estamos a tentar ver aqui são impérios e não cidades. Todas as grandes dinastias vieram das montanhas ou lutaram para controlar as montanhas, de onde o perigo vem. Mas ainda não sabemos que civilização começou nestas montanhas. Acho que foi um tipo de civilização não centralizada, colaborativa, de partilha de poder. ” Em suma: “O federalismo pode ter começado aqui. ”E se o “Estado Islâmico” é “uma ameaça à diversidade”, mais uma razão para ficar. “A destruição deles só torna o nosso trabalho mais importante. Não há futuro estável do Curdistão sem arqueologia. As pessoas precisam de provas para falar de quem são. ”Os trabalhadores contratados são pontuais, o que de repente faz 20 pessoas em cima da colina. Ricardo, que ontem desencantou uma máscara no bazar, põe gasolina na roçadeira, uns enfiam as pás na terra, outros arrancam ervas à mão, todos fazem tudo, erva, terra, pás, baldes. Talvez Portugal não afunde se o futuro da investigação for isto, é a alegria no trabalho. Centenas de pazadas depois, entra em cena o colherim para definir o contorno das pedras, o terreno. É a fase do contacto zoológico: dois escorpiões, uma aranha, um lagarto, assim onde a repórter está. Às 7h30 parece que já passaram horas. O sol queima, talvez nasça uma hérnia. Quando uma pessoa escava de colherim, não há boa posição para as costas, só menos más. Descanso de dez minutos e voltamos a meter o nariz na sepultura. Porque do que se trata aqui, nesta camada de cima, é de várias sepulturas islâmicas, está claro já, pela disposição das pedras. Então, primeiro as pedras à volta do esqueleto são escovadas a pincel e colherim, e depois vai-se escavando com cuidado a terra no meio, tão delicadamente que a certa altura já nem podemos usar o colherim, tem de ser uma colher de sopa e depois uma pequena espátula de madeira. O arqueólogo oscila assim entre a força bruta e o bisturi, fora o que ainda vai lavar, estudar, fotografar, escrever. Aparece um fémur. A seguir, um sapo, vivíssimo, e a seguir um escorpião. Depois da morte não se sabe, mas definitivamente há vida sobre a morte. “Alguns arqueólogos recusam-se a escavar sepulturas por razões éticas”, diz Steve. “Imagina pensares que vais ficar ali para sempre, chega alguém, desenterra-te, põe-te dentro de um saco de plástico. ” Exactamente o que vai acontecer a este esqueleto, quando acabarmos de o escavar, o que demorará dolorosas horas. “A cremação é uma grande coisa!” Mais abaixo, Tiago continua às pazadas, está a escavar há horas. Um arqueólogo sem bolsa e sem emprego pode sempre recorrer à enxada, é um perito (alô FCT). Ao mesmo tempo, também percebe de fotografia em 3D e quadricópteros. Ricardo empunha uns comandos tipo PlayStation e o famoso drone sobe como um insecto. Tem quatro hélices nos cantos e uma câmara na barriga, a missão dele é fotografar a grande altura, mas para quem não sabe parece um zangão extraterrestre. Os rapagões curdos largam as pás, tudo de queixo no ar. Às 9h30 faz-se a refeição que corresponde a um primeiro almoço, já que começámos às 5h. Piquenique de pão com triângulos de queijo, pepino, tomate, fruta, ovos cozidos. Dá meia hora de pausa, à sombra da árvore. As sepulturas multiplicam-se. No dia seguinte, Giulia e João passam horas semideitados a escavar ossos: pá, vassoura, colherim, pincel, espátula e infinita delicadeza. Há ossos que se transformam em pó mal são tocados. Giulia é a especialista, mas João trabalha como se não houvesse amanhã, nada parece pesar-lhe. E Ana está como Tiago ontem, uma heroína de pá, picareta, vassoura, balde, num dos outros níveis que é preciso tratar, além de cozinhar todos os dias para dez, porque no ano passado foi André, e é consensual que ela cozinha melhor. De resto, para lavar loiça e limpar a casa, há uma escala. Steve e André juntam-se noutra sepultura, crânio já exposto. O bom estado dos dentes impressiona. “No século IX, as pessoas comiam um quilo de açúcar por ano”, diz Giulia. “E era açúcar natural, de fruta e cereais. Nós comemos 65 quilos por ano. ”Às 13h, já são oito horas de trabalho, os trabalhadores contratados terminam o dia, mas parte da equipa vai só a casa almoçar e volta, porque há ossos expostos, é preciso acabar de os escavar, fotografar e guardar, para não ficarem abandonados uma noite. Quem não vai lava centenas de cacos de cerâmica entretanto achados, vai comprar mantimentos, resolver a crónica falta de água. Jantar pelas 19h, hora a que Ricardo Seinfeld pode, por exemplo, dedicar o seu episódio de hoje à cimenteira mais vizinha da colina, um gigante mundial que talvez esteja disposto a patrocinar a escavação. Investigou tanto sobre eles que descobriu uma secção de responsabilidade social de que eles próprios nem se devem lembrar. Até Giulia, que de tanto sol e trabalho ficou doente, não come mas ri. Uma casa precária, feita entre as estufas, moscas, calor. As crianças vêm descalças à porta, Saado estende a mão. Tem 25 anos, é ele quem fala inglês porque estudou Engenharia em Mossul. Agora está neste buraco, e é porque não morreu, ao contrário de milhares de yazidis da sua idade, apanhados pela conquista do “Estado Islâmico” na região do Sinjar (Noroeste de Mossul). Saado tinha saído da aldeia onde toda a família vivia e foi ao Sinjar em visita. Calhou lá estar na tarde em que os jihadistas chegaram, “com muitos carros, Toyotas, armas e bandeiras negras”, conta, sentado numa das espumas que à noite fazem de cama, enquanto um irmão mais novo traz um copo com água, depois outro com chá. “Nós não tínhamos armas. Eles primeiro disseram: ‘Têm de levantar uma bandeira branca’, e nós levantámos. Depois separaram homens, mulheres, crianças e disseram a todos que se tinham de converter ao islão. Depois disseram um a um e começaram a matar os homens que diziam que não. ” Falavam em curdo, explica, porque sabiam que eles falavam curdo, mas Saado também ouviu árabe e inglês. “Diziam que nos iam libertar. Libertar do quê?” Viu cortarem cabeças e crianças pequenas serem mortas, guardarem as mais velhas como combatentes. Tudo isto demorou horas, era muita gente. Às oito da noite já estava escuro e Saado decidiu fugir. “Pensei: se ficar aqui vão matar-me com uma faca. Se correr terei duas hipóteses, morrer com um tiro ou escapar com vida. ” Qualquer uma dessas lhe pareceu melhor. Teve sorte, caminhou até à Síria, e por mais sete horas. Mas um dos seus primos foi levado pelos jihadistas para Tal Afar, a ocidente de Mossul. “Disse-lhes que se convertia para se salvar. Não consegue fugir. Há duas semanas falámos com ele e só chorava. Disse que os jihadistas fazem o que querem e as pessoas só ouvem. Obrigam os homens solteiros a lutar. Casou com uma rapariga yazidi para a salvar. ” De ser feita escrava. Saado e família acabaram refugiados aqui, como tantos. Arranjaram trabalho nas estufas de pepino, Saado, a mulher e dois irmãos. Pagam-lhes 80 dólares por mês, para todos. O que ele gostava de fazer? “Ir para fora do Iraque”, responde, sorrindo da pergunta. E não vale a pena perguntar-lhe do que precisa. “De tudo e nada. Veja como vivemos. Sou engenheiro e trabalho nesta estufa. Isto é um país islâmico e yazidis e cristãos não podem viver aqui. ” Mesmo no Curdistão? “Mesmo os curdos às vezes perguntam porque não nos convertemos. ” O governo local defendeu-os de pressões, mas Saado acha que aqui não terão paz. Quer ir para qualquer lugar da Europa ou dos Estados Unidos. A propósito de vida depois da morte, “quem gostaria de ter 70 virgens à espera?”, pergunta João. “Eu não. ” Uma canseira ensiná-las, sobretudo quando se é arqueólogo, e já tem de se saber de geografia, topografia, paleobotânica, antropologia social, sistemas de datação carbono 14, sistemas de informação, digitalização, legislação local, políticas públicas, marketing, cartografia, fotografia, aeromodelismo, roçadeiras, cozinha em massa, e tudo isto sobrevivendo ao “Estado Islâmico”, e à maldição de Tutankhamon. De volta a Lisboa, fazemos um skype para André mostrar mais um caco, que não é mais um caco. É o bordo de uma jarra com três homens, um escorpião, mil anos posterior à tabuinha e, como ela, vinda certamente do Sul. “É uma descoberta muito importante porque, ao contrário do que se pensava, indica que não deixou de haver contactos entre Norte e Sul”, explica André. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para eles, é só o princípio, quem sabe não fazem uma casa lá. A TV curda até transmitiu a vitória do Benfica. Ah, Saado, o yazidi, mais irmãos, já estão a escavar na colina. Ainda acabam em Portugal.
REFERÊNCIAS:
“Num mundo pós-comunista, há muitas pessoas que não sabem viver sem um inimigo”
Podia ser bispo, podia até ser Presidente da República Checa, mas o padre Tomás Halík preferiu manter o exercício do sacerdócio e da docência. Autor de diversos livros, esteve em Portugal para promover o último, que é uma autobiografia. Diante de Ti, os Meus Caminhos. (...)

“Num mundo pós-comunista, há muitas pessoas que não sabem viver sem um inimigo”
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.318
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Podia ser bispo, podia até ser Presidente da República Checa, mas o padre Tomás Halík preferiu manter o exercício do sacerdócio e da docência. Autor de diversos livros, esteve em Portugal para promover o último, que é uma autobiografia. Diante de Ti, os Meus Caminhos.
TEXTO: Em Diante de Ti, os Meus Caminhos, o sacerdote checo Tomás Halík escreve sobre a primeira vez em que esteve em Portugal, há dois anos, e como Lisboa o fez lembrar Praga. Então correu o país num par de dias: Lisboa, Fátima, Porto, Braga e Coimbra. Desta vez, o périplo ficou-se por Lisboa, mas com várias conferências e muitas entrevistas. O motivo é o seu novo livro, publicado pela Paulinas Editora, que o faz reflectir sobre a fé e a razão e a era dos populismos. Este é uma autobiografia que nos leva à República Checa de antes da Guerra, à ditadura, às perseguições comunistas, à Primavera de Praga, à queda do Muro de Berlim e ao regresso da democracia, em paralelo com a sua vida, a vida de um jovem que descobre a religião, que decide ser sacerdote e é ordenado no seio de uma Igreja que vive na clandestinidade, logo, em perigo constante. Nas suas memórias, não esconde que teve crises de fé que o fizeram mergulhar no abismo — “bati no fundo, era ali que Deus estava”, escreve — e que se confrontou com o “rosto repulsivo” do clero, numa clara crítica aos sacerdotes presos aos seus pequenos poderes. Halík foi nomeado por João Paulo II para o Pontifício Conselho para o Diálogo com os Não Crentes, em 1992. Fez parte do ciclo próximo do Presidente Václav Havel, foi seu conselheiro e foi incentivado por diferentes partidos a candidatar-se para o suceder. Em vez disso, preferiu continuar a dar aulas na Universidade Carolina de Praga e a exercer o seu ministério. O filósofo e teólogo católico recebeu o prémio Templeton, em 2014, por “contribuições excepcionais ao desenvolvimento da dimensão espiritual da vida”. Ao longo dos séculos, a Igreja Católica tem sido criticada por não seguir o Evangelho. Agora são os casos de pedofilia e abusos sexuais. Como é que um católico sobrevive a tudo isso sem perder a sua fé?A fé é a confiança de que estamos em boas mãos e que tudo tem um sentido na vida. Às vezes não é fácil descobrir sentido em acontecimentos da nossa vida, do espaço público ou da Igreja. Mas todas as crises são um desafio. Estes abusos são uma tragédia. É como o Holocausto. Depois da Guerra, pudemos perceber que a maioria dos alemães não teve nada que ver com isso, mas que tudo foi feito em nome da germanização e eles tiveram de se confrontar com essa realidade. Na altura, foi feita uma grande reflexão sobre o nazismo. Depois, a Alemanha tornou-se a nação mais democrática na Europa, com uma sensibilidade para o sofrimento das gentes, dos migrantes, etc. Precisamos de algo como isso. Espero que dentro da Igreja reflictamos e que haja um eco profundo. Mas são precisas reformas. Isto não é apenas o colapso de vários indivíduos, é um problema mais profundo. É preciso repensar a nossa antropologia, a atitude da Igreja perante o sexo e também perante o poder, porque não foram apenas abusos sexuais mas também abusos de poder. O Papa Francisco tem falado desse clericalismo. É preciso olhar para a formação dos futuros sacerdotes. Repensar a atitude da Igreja perante o sexo, é permitir que os padres possam casar?Estou feliz por o Papa Francisco ter aberto a discussão desse tabu. Pessoalmente, penso que o celibato é possível, ele nasceu nos mosteiros, enquanto os padres e até os bispos podiam ser homens casados. Penso que no futuro podemos voltar a esse sistema, em que será mais nos mosteiros ou entre os missionários. Por exemplo, eu viajo muito, portanto, seria impossível para mim constituir família e ser responsável por ela. Mas há outras experiências, dentro e fora da Igreja, por exemplo entre os ortodoxos, anglicanos ou evangélicos em que não há problema [os pastores serem casados]. A transformação da energia sexual em espiritual é possível, mas é muito exigente em termos espirituais e psicológicos. Penso que é mais fácil na formação das ordens contemplativas. No futuro, haverá padres casados. Esse tempo está a chegar. E quanto às mulheres? No seu livro, conta que na clandestinidade no seu país houve um padre que ordenou mulheres, o que lhes aconteceu?Foi-lhes pedido que suspendessem a sua actividade. Essa discussão foi fechada por João Paulo II. Temos a experiência das mulheres na Igreja Anglicana no trabalho pastoral, teológico, na pregação, etc. Pessoalmente, consigo imaginar isso, mas respeito a disciplina da Igreja. Não espero que haja uma mudança neste tema no futuro próximo. Deus é que sabe!Ao longo do livro, vai confessando que teve as suas crises de fé. Nesses momentos, deixou de ter fé na Igreja ou em Deus?Todas as crises são uma oportunidade. As mais típicas acontecem na adolescência, quando se perde a fé de criança. Às vezes, a Igreja não tem capacidade de oferecer uma fé mais madura, mas estas crises são uma oportunidade. A minha fé nasceu quando eu era adolescente, antes não tive uma educação religiosa. Aos convertidos acontece por vezes que, depois da euforia da conversão, surge uma crise. A pessoa reconhece que a Igreja tem muitos problemas. Uma das minhas crises mais profundas surgiu antes da ordenação — teria de trabalhar na clandestinidade, debaixo de um perigo constante, além de pensar sobre como conseguiria viver sem uma família — estive em retiro, a fazer exercícios espirituais, foi muito, muito exigente. Mas até os santos passam por essas crises. Outra aconteceu mesmo depois da queda do comunismo, altura em que descobre os pequenos poderes dentro da Igreja. Antes disso, eu cooperei com padres que eram como santos, eram verdadeiras testemunhas da fé, passaram anos em campos de concentração e prisões estalinistas. O meu conceito de Igreja eram esses homens e esperava que todos os padres fossem assim. Eu tinha idealizado a Igreja [à luz desses homens]. E depois da queda do comunismo, tantas possibilidades e tantas oportunidades que havia e o que sucedeu foi um retrocesso e foi difícil para mim. Foi um tempo em que descobri o misticismo, a tradição dos místicos que falam da noite escura da alma, foram eles que me ajudaram a compreender. Os místicos João da Cruz e Teresa de Ávila foram importantes no fortalecimento da sua fé, mas fala também dos exercícios espirituais zen, que já praticou, da sua admiração pelo budismo. São tudo formas semelhantes de chegar a Deus?Não é o mesmo, mas temos mais proximidade na dimensão espiritual mais profunda do que na doutrina. Estudei religião e tenho o contacto pessoal com essas religiões porque depois da queda do comunismo pude viajar muito, visitei todos os continentes e conheci os seus líderes religiosos. É amigo do Dalai Lama?Sim, somos amigos, já estivemos juntos várias vezes e no meu dia de anos recebo as saudações do Papa Francisco e do Dalai Lama! (riso) É muito bom. Eu escolhi a fé cristã, eu decidi ser padre, mas eu tentei outros caminhos espirituais e por isso entendo que o diálogo entre as religiões é muito importante. As diferenças entre as religiões está na doutrina, nos rituais, mas não há assim diferenças tão profundas nas questões éticas. Todas as grandes religiões são escolas que nos ensinam a como superar o nosso egoísmo, como transformar as nossas emoções e como viver em paz com os outros. O mais profundo é a experiência de ficar em silêncio perante o grande mistério que é Deus e aí as semelhanças são grandes. Temos a meditação em silêncio, que é muito semelhante [à das religiões orientais], já temos feito em conjunto. Por isso penso que o ecumenismo a nível espiritual é importante porque toda a actividade e todas as palavras nasceram do silêncio. Hoje as pessoas procuram a espiritualidade fora da Igreja, muitas vezes nas filosofias orientais. Não creio que essas pessoas possam voltar à Igreja, mas esta é um organismo vivo. A grande diferença não é entre os crentes e os não crentes, mas entre os acomodados e os que procuram. Os acomodados são aqueles que estão completamente satisfeitos com a situação da sua comunidade religiosa, e o número de pessoas que está completamente satisfeita com a Igreja está a diminuir. Mas o número de ateus também está a diminuir. Portanto, eu penso que entre os crentes há um grande número que procura um caminho, que procura uma espiritualidade, alguns acreditam em “algo”. São pessoas que costumam dizer: “Eu não acredito em Deus, mas existe algo. ” São a mais vasta religião dos nossos tempos. A Igreja futura depende da capacidade de comunicar com os que procuram e de os acompanhar, o que é diferente das missões clássicas. A ideia não é empurrá-los para as estruturas da Igreja já existentes, mas abrir essas estruturas. No futuro, haverá muitas formas e artes de ser cristão, tal como aconteceu no início dos tempos, quando o cristianismo era muito, muito plural. A comunidade de São Paulo era diferente da de Pedro, etc. ; nos primeiros séculos, havia tantas diferenças entre os cristãos de Roma, os celtas, os germanos, mais tarde, os da Índia e outros. Portanto, havia um grande pluralismo. Depois da separação da Igreja de Ocidente e Oriente, a do Ocidente foi romanizada e a pluralidade foi suprimida. Mas o Concílio Vaticano II veio abrir a Igreja a esse pluralismo, à globalização. A Igreja é muito pluralista e será ainda mais. É muito importante criar um ecumenismo mais vasto: como viver juntos nas nossas diferenças. Por vezes, há tensões dentro da Igreja. Por vezes, o ecumenismo é mais difícil entre católicos do que entre religiões!Os movimentos mais conservadores da Igreja, não sei se a sua dimensão é grande ou pequena, mas são muito. . . Barulhentos! (risos)Exactamente! E conseguem fazer ouvir as suas críticas ao Papa Francisco? Eles fazem uma grande oposição ao Papa, serão cerca de 10%, mas fazem muito barulho, fazem-se ouvir nas redes sociais. O conservadorismo não tem nada de mal, o que tem é o reaccionarismo. João Paulo II disse que a Igreja é um par de pulmões, um é o Ocidente e o outro é o Oriente, e eu penso que os católicos acomodados estão mais focados na tradição — há comunidades que preservam tesouros do nosso passado e isso é importante. Mas há pessoas mais abertas ao futuro, com uma espiritualidade mais flexível. O problema é que os conservadores nem sempre conseguem compreender esta pluralidade, querem ser os únicos donos da verdade, e isso é um problema. São eles os grandes defensores da vida, que dão a cara contra o aborto e a eutanásia? Contudo, defende que a resposta não está em condenar, mas está no amor. Esses temas são importantes, mas não são a mensagem do Evangelho. São uma reacção à revolução sexual dos anos de 1960 e a Igreja ficou demasiado focada na moralidade sexual. Se perguntarem, quem são os católicos, a resposta será: são aqueles que são contra o aborto, a contracepção, a homossexualidade. . . contra, contra, contra. E se perguntarem, então são a favor do quê? Ninguém sabe a resposta, só sabemos que são contra. Por isso, temos de defender a vida, a moral sexual é importante, mas a grande missão do Papa Francisco é descobrir o coração do Evangelho e da cristandade. O âmago é o amor, a solidariedade, a responsabilidade pelos pobres, pela natureza, pela criação, como viver na justiça e na paz. Isto é o que o Evangelho diz. Essa é uma mensagem mais difícil de pôr em prática do que erguer a voz para condenar?Claro que é mais fácil dizer que somos contra, contra, contra. É preciso levar o Evangelho a sério. É uma mensagem muito exigente. A missão do Papa Francisco é muito difícil?Sim, é muito difícil. Admiro João Paulo II e Bento XVI. Conheci-os pessoalmente, foram muito próximos um do outro, são muito importantes na história da Igreja e no confronto com a modernidade. Mas esse tempo acabou e vivemos num mundo pós-moderno, global e plural. E o Papa Francisco é o homem certo para este momento. A sua personalidade, o seu estilo de trabalho pastoral, de comunicar com as pessoas, de falar de questões que eram tabu são uma inspiração. Por isso, estou profundamente convicto de que é a maior autoridade neste mundo dividido. No seu livro e nas intervenções que tem feito, revela uma grande preocupação com o populismo. Não aprendemos com o comunismo e o fascismo?Eles têm muito em comum: o ódio, a visão a preto e branco. O comunismo, o bolchevismo, o fascismo ou o nazismo nasceram por causa da grande depressão e da crise económica na década de 1930. Temos tido crises, mas não tão grandes como aquela — além das económicas, também temos tido as de identidade. É um mundo complicado, onde as pessoas têm medos e ansiedades. Não é fácil encontrar as respostas para este mundo plural. Então, as pessoas procuram um alvo, porque têm medo, estão zangadas, ansiosas. Quem é responsável? Nos anos 1930 foram os judeus e agora são os muçulmanos, os refugiados, a União Europeia, etc. Há um aspecto importante: os meios de comunicação social. Na história, as grandes mudanças de paradigma sempre estiveram ligadas a novos meios de comunicação. Por exemplo, para o protestantismo, foi importante o nascimento da imprensa; a rádio foi importante para Hitler ou Mussolini; e a televisão tornou a política um espectáculo. Portanto, a grande mudança é a Internet e as redes sociais. Apenas uma elite está a beneficiar da globalização, porque as pessoas comuns sentem que são os perdedores, são os novos proletários. Têm acesso às redes sociais mas vivem em bolhas e só vêem informação que confirma os seus preconceitos e demonizam o mundo exterior. Isto é uma tragédia. É o reverso da medalha da globalização, esta divisão, estes pequenos mundos em que as pessoas não comunicam umas com as outras. Os populismos beneficiam desta situação e oferecem-se como messias, como quem vai resolver os problemas. Num mundo pós-comunista, há muitas pessoas que não sabem viver sem um inimigo porque se habituaram a ter um. As redes sociais são as responsáveis pelo crescimento dos movimentos populistas?Não sei dizer se são. Nós, as pessoas, é que somos responsáveis. Não podemos demonizar a tecnologia. Depende de como lidamos com ela e pode ser mal usada. Os novos messias são Duterte, Trump, Orbán ou, mais recentemente, Bolsonaro?São falsos messias. Não podemos dizer que os ditadores são culpados porque mais culpado é o povo que os elege em democracia. O povo é quem tem o poder e deu-lhes poder. Foi o que aconteceu com Hitler na Alemanha ou com o comunismo no nosso país [República Checa], e esse é o problema da democracia quando esta é usada apenas como um mecanismo. Estou profundamente convicto de que a democracia é a cultura de relações entre as pessoas e não apenas o mecanismo das eleições livres, porque esse, já vimos, pode ser mal usado. A democracia precisa de um clima moral. Pessoas como Putin, Trump ou Orbán são o espelho de algo que está errado no nosso coração e na nossa mente. Já falou da comunicação social. E, na escola, como é que se luta contra os populismos? Se eu tivesse a resposta, não teria recebido apenas o prémio Templeton, mas o Nobel! (risos). Uma coisa muito importante é desenvolver o pensamento crítico. Acredito na aliança entre a fé e a razão, foi a mensagem de João Paulo II. A fé sem racionalidade é muito perigosa e dá origem aos fanatismos. Mas a razão sem ética também pode ser perigosa. Nos meus livros, escrevo que a fé e a razão são como irmãs e precisam uma da outra. A economia é muito importante — eu costumo dizer que vivemos no moneyteism, por oposição ao monoteísmo —, mas precisamos do capital social, o capital da confiança e sem isso é cada vez mais perigoso. O testemunho da vossa geração, aquela que foi perseguida no tempo do fascismo ou do comunismo, também deveria servir de alerta para não se repetirem os mesmos erros?E essa é a razão por que escrevi este livro, não para falar de mim, não sou assim tão importante, mas para dar um testemunho, porque foi uma experiência que, por vezes, foi muito difícil e que é um dever nosso oferecer a nossa experiência aos outros. E a Igreja também tem um papel no combate ao populismo?A Igreja deve ser parte de um sistema imunitário da sociedade. No nosso corpo, há células doentes, mas se o sistema imunitário trabalhar bem, essas serão menos perigosas; se falhar, então as células proliferam e pode transformar-se num cancro muito grave. Mas não é só a Igreja [que faz parte desse sistema], também a imprensa livre e as universidades. Acredito que a Igreja tem um papel importantíssimo para fazer a ponte entre o mundo islâmico e o secularizado do Ocidente, que são dois mundos em tensão. Os cristãos têm muito em comum com esses dois mundos — somos uma religião abraâmica, tal como o islão, e fazemos parte do humanismo do Ocidente (este nasceu no seio cristão). Há muitas formas de estes dois mundos dialogarem e a Igreja pode ter essa função. É um enorme desafio. Mas acredita que o Papa Francisco tem esse poder e que lhe é reconhecido pelo mundo?Acredito que tem esse papel, mas não tenho a certeza de que todos compreendam e aceitem esse papel como uma oportunidade. Escreveu que João Paulo II desejava uma Europa unida do Atlântico aos Urales. Putin é o grande responsável por essa Europa não se concretizar?Sou muito céptico em relação à Rússia. Não está ainda preparada para a democracia, pois é muito diferente, em termos culturais [da Europa ocidental]. O país tem uma oposição democrática muito fraca, a imprensa também (muitos jornalistas têm sido assassinados), por detrás do Putin há um forte lobby dos chamados “novos russos” que têm o seu capital no Ocidente, onde os seus filhos estudam, onde compram propriedades, palácios, obras de arte. A ideologia de Putin, que está a ser replicada por Orbán, é muito perigosa. A Rússia tem problemas e investe imenso dinheiro em propaganda — Putin é um ex-agente da KGB, portanto é um conhecedor da importância da propaganda —, fazendo uma guerra verdadeira contra o Ocidente e a União Europeia. As fake news, as mentiras que são espalhadas. O Ocidente não está preparado para levar esta guerra a sério. O alvo são as antigas colónias, as antigas repúblicas soviéticas e satélites. A Rússia nunca aceitou a queda da URSS e tem saudades do império soviético. Estaline é o grande herói de Putin. Portanto, é muito perigoso. O comunismo caiu, mas o imperialismo e o nacionalismo russo continuam de pé. Outro problema é a China, especialmente a campanha que faz na tentativa de nacionalizar as religiões. São dois grandes problemas, porque o caminho do comunismo para a democracia é muito difícil. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A Rússia é um perigo para a República Checa?Sim, claro, porque os russos estão envolvidos em muitas eleições. Vimos isso nos EUA e no nosso país também. Eles usam “cavalos de Tróia” para entrar na União Europeia e na NATO. Eles apoiam os populistas e precisam deles como marionetas para seu interesse. Por isso, apoiam políticos não apenas no meu país, mas noutros, para conseguir que existam tensões. Com essas investidas de que fala e o “Brexit”, a União Europeia (UE) corre o risco de acabar?Não. O “Brexit” foi uma enorme estupidez. Eu estava na Universidade de Oxford para receber o doutoramento honoris causa um dia antes [do referendo] do “Brexit” e falava com os meus amigos professores e todos estavam convencidos de que o “não” iria vencer. Mas o taxista e a empregada do hotel eram pela saída. Mais uma vez, a propaganda resultou. A UE é muito importante e é importante que se mantenha. Mas precisa de reformas, falta-lhe a dimensão cultural e espiritual para criar uma identidade europeia, para dar uma resposta a: “O que é ser europeu?” Não podemos responder apenas com frases feitas e repetidas. Há políticos que usam o catolicismo para dizer que são contra os refugiados porque têm uma fé diferente da nossa ou que são contra os homossexuais. Esse é um mau uso. Mas tenho a esperança num mundo mais ecuménico, mais alargado e cooperante. Nesse mundo, a Igreja pode ser um importante parceiro.
REFERÊNCIAS:
Religiões Cristianismo Budismo Protestantismo
Necrópole mediterrânica
As ideologias esculpidas nos territórios africanos não passam de pérfidas réplicas daquilo que há de pior nos capitalismos europeus do século passado. (...)

Necrópole mediterrânica
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: As ideologias esculpidas nos territórios africanos não passam de pérfidas réplicas daquilo que há de pior nos capitalismos europeus do século passado.
TEXTO: A Europa está de novo a fazer contas à vida, engasgada entre o constrangimento real de um imprevisível superpovoamento e o sentimento de culpa de que não se livra, ao olhar as pregas da História da colonização africana. Em A África Começa mal, René Dumont (ed. D. Quixote) alerta para o primeiro modelo civilizacional (a corrupção mercantil) que os europeus ofereceram aos africanos: no século XVI, os agentes negreiros vendiam armas e álcool aos chefes tribais, corrompendo-os, para que estes lhes oferecessem homens e mulheres a serem integrados no tráfico humano. Foi um bom princípio. Os mapas manipulados em Berlim, em 1885, resultantes do tratado que retalhou África em fatias atribuídas a alguns países europeus, permitiram quebrar as organizações indígenas, eliminaram imensas distinções autóctones e inventaram pátrias onde as não havia. Além disso, impuseram uma lógica civilizacional baseada na “ilusão de que o etnos [europeu] constituía o centro do universo cultural, o núcleo paradigmático de normas, instituições e valores em torno do qual giram, para sua glória, todas as outras culturas como satélites” (Urrutia). Sem darem por isso (exceptuando-se as elites corruptíveis), os africanos ficaram fora do processo histórico de que eles deveriam ser protagonistas — como se sabe, apenas na segunda metade do século XX surgiram os movimentos de consciencialização e de libertação dos povos africanos. “Nada está fora de um território ideológico”, enuncia Jorge Urrutia (Leitura do Obscuro, Uma Semiótica de África, Teorema). E não. Acontece que as ideologias esculpidas nos territórios africanos não passam de pérfidas réplicas daquilo que há de pior nos capitalismos europeus do século passado. Entretanto, tem-se como seguro que a repatriação dos desesperados que atravessam o Mediterrâneo (fugidos às guerras, à seca, à pobreza e ao banditismo), vítimas de redes mafiosas a quem pagam montantes elevadíssimos por documentação que de nada lhes servirá, deverá ser a única saída possível de um complexo jogo em que tudo está em causa: a inclemência de uma Europa que fecha as portas aos outros (e aos seus); a inflexibilidade dos angariadores de migrantes nos países africanos; a severidade das redes mafiosas que garantem liquidez aos bancos europeus e confortam o BCE; a montagem do circo humanitário, gerador de novos empregos filantrópicos e paliativos (e este é um caso de matéria sensível); a indecência das redes de adopção clandestina, de lenocínio e tráfico de menores. Os tempos não estão bons para acusar ninguém, de tal modo estão todos os agentes relacionados. Nem as nossas lágrimas conseguem afirmar que não são as de crocodilo. O Frontex faz o que pode (e seria prudente que a agência pudesse ser ainda dotada de mais meios); os centros de refugiados e a ONU actuam como podem e conhecem-se casos de verdadeira abnegação; as organizações religiosas (especialmente católicas) denunciam as situações. Mas neste cenário, nem os românticos (os que teorizam sobre as razões do caos e imputam à Europa o crime global) nem os pessimistas (aqueles que, no fim de contas, pensam como os românticos, mas sem chorar) têm razão. Não é um tempo para razão. É talvez um tempo para aceitar que o mundo é um lugar terrível, mas merecedor de uma pequena tarefa diária. De resto, é impossível uma leitura do obscuro, sem a sensação de nos enganarmos. Professor
REFERÊNCIAS:
Há um antes e depois do sismo para o património do Nepal
Pelo menos quatro dos sítios classificados como Património da Humanidade pela UNESCO foram atingidos. Templos, pagodes e outro edificado centenário reduzidos a escombros. (...)

Há um antes e depois do sismo para o património do Nepal
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20150501182805/http://www.publico.pt/1693796
SUMÁRIO: Pelo menos quatro dos sítios classificados como Património da Humanidade pela UNESCO foram atingidos. Templos, pagodes e outro edificado centenário reduzidos a escombros.
TEXTO: O devastador sismo que atingiu sábado o Nepal matou mais de 3700 pessoas e deixou mais de 6500 feridos, mas os danos patrimoniais que causou destruíram também parte da memória do país. Pelo menos quatro dos sete locais classificados como Património da Humanidade pela UNESCO foram atingidos e alguns dos monumentos mais importantes do Nepal estão agora reduzidos a escombros. O símbolo imediato da destruição causada pelo sismo de magnitude 7, 8 na escala de Richter, no sábado, é a histórica torre Dharhara (1832), em Katmandu – agora uma pilha de escombros de tijolo com apenas alguns pedaços da sua estrutura branca visíveis, antes uma obra encomendada pela rainha e um promontório há dez anos reaberto ao turismo ao qual se acedia por uma escada em caracol. Com 60 metros de altura, nela morreram pelo menos 60 das perto de 200 pessoas que lá ficaram presas durante o sismo, que há muito se temia que pudesse atingir violentamente a zona oeste do pequeno país devido à sua posição tectónica de risco. Restam apenas, de acordo com a agência de notícias Reuters, dez metros irregulares do edifício que tinha nove andares e um minarete de bronze datado do século XIX. Na praça da torre, o sismo, cujo epicentro se situou a 50 kms de Katmandu, destruiu ainda o templo a Shiva, um pagode majestoso também conhecido como Maju Deval, e outro pagode menor, o Narayan, relata a CNN. Que descreve ainda como agora, entre os destroços e as pedras, um buldózer trabalha entre “testemunhas chocadas e tristíssimas e um sentido de perda insubstituível visual e espiritual”. Locais de culto, mas também de reunião, de comércio local ou de peregrinação para turistas, estes dois templos foram arrasados enquanto outros elementos da praça monumental parecem ter resistido, como é o caso das casas-templo dedicadas a Kumari e a Shiva-Parvati, relata o canal de notícias norte-americano. Já no sábado, o New York Times dava conta da violência com que foram atingidos quatro dos sete sítios classificados como Património Mundial da Humanidade – o templo de pedra em forma de búzio na praça Durbar de Bhaktapur, a escassos quilómetros da capital, toda a praça do século III Durbar em Patan, pavimentada com tijolos vermelhos, a praça Durbar de Basantapur, onde vivia a família real nepalesa até ao século XIX e por fim um dos mais antigos monumentos budistas nos Himalaias, a stupa de Boudhanath – as stupa são estruturas circulares que albergam relíquias budistas. Esta última, que é não só um santuário budista mas também um local onde convergem refugiados tibetanos, está no entanto envolta em relatos contraditórios. O diário canadiano National Post corrobora o New York Times, escrevendo que ficou praticamente destruída, só restando a sua cúpula, mas a CNN indica esta segunda-feira que foi uma stupa próxima que foi arrasada. No mesmo local, a CNN faz o apanhado do que terá resistido: o templo Sundari Chowk, o Krishna Mandir (1637), o Bishwa Nath Mandir (século XVII) , guardado por elefantes de pedra, e o pagode Bimsen Mandir (século XVII). As imagens partilhadas no Twitter por nepaleses e estrangeiros no Nepal mostram isso mesmo: a praça Durbar de Basantapur arrasada, dois dos seus templos são uma pirâmide de escombros. “Parte-me o coração”, twitou o utilizador Funny Gooner. Já a praça de Patan mostra apenas toros de madeira e parte de um pagode de pé, sendo que a estátua dourada do rei Bhupatindra Malla que ali ficava foi também reduzida a pó. A jornalista e realizadora Subina Shrestha, que vive em Katmandu, escreveu esta segunda-feira no Twitter que em Patan são os jovens da cidade que estão a proteger o património arquitectónico. "Não há autoridades para tomar conta da situação", nota. Katmandu fica no sopé dos Himalaias, um vale onde se concentram os sete locais Património da Humanidade que agregam vários conjuntos e complexos monumentais que são testemunhos do cruzamento de várias civilizações e religiões – do budismo ao hinduísmo, passando pelo tantrismo ou pelo edificado dos Newar (indígenas do vale de Katmandu). A UNESCO destaca os três palácios históricos em Katmandu, Patan e Bhaktapur, os dois centros hindus (Pashupatinath e Changu Narayan) e os dois centros budistas (Swayambunath e Boudhanath). Já se sabe que as praças Durbar – o nome dado às praças fronteiras a templos no Nepal – das povoações de Katmandu, Patan e Bhaktapur foram afectadas. Só em Katmandu, a Durbar concentra o complexo de Hanuman Dhoka, que inclui o Palácio Real dos reis Malla e da dinastia Shah. Dos complexos religiosos destacam-se, em Swayambhu, o mais antigo monumento budista do vale, uma stupa; em Bauddhanath está a maior stupa do país. Já em Changu Narayan fica um povoado tradicional Newar e também um exemplar, num templo hindu a Vishnu, de uma das mais antigas inscrições da região, datadas do século V. No que toca a Swayambunath, um mosteiro no cimo de uma colina nos arredores da capital e que é conhecido como o “Templo dos Macacos” devido à colónia de animais que ali reside e que atormenta os visitantes, bem como ao templo hindu de Pashupatinath, ainda não se sabe se sofreram danos. A fragilidade destas estruturas é clara na descrição feita pela UNESCO dos materiais que a compõem: templos “feitos de tijolo cozido, tijolo de adobe [cozido ao sol] e estruturas de madeira”; os povoados Newar são descritos como “únicos” pela sua “ornamentação intrincada” em “tijolo, pedra, madeira e bronze”, exemplos “marcantes” de manufactura e artesania. Em Maru, também na zona de Katmandu, o templo de Kasthamandap, um dos mais antigos pagodes do Nepal, é agora apenas uma pilha de madeira e pedra. “Estava a acontecer uma campanha de doação de sangue; o sismo aconteceu, aprisionando/matando pessoas”, relatava Kashish Das Shrestha no Twitter no sábado. “É uma perda irreparável para o Nepal e para o resto do mundo”, disse à AFP o responsável pelo departamento de História e Arqueologia da Universidade de Madras. “O restauro completo não é possível devido aos extensos danos nos locais históricos do Nepal”, atestou P. D Balaji. No sábado, a directora-geral da UNESCO tinha já enviado condolências e assinalado a perda de vidas e também os “extensos danos, incluindo nos monumentos históricos e edifícios no sítio Património da Humanidade do Vale de Katmandu”, prometendo que a agência das Nações Unidas está a postos para “ajudar o Nepal a reconstruir e a fortalecer a sua resiliência”.
REFERÊNCIAS: