No seu 70.º aniversário, ONU lança roteiro para o mundo perfeito
Cimeira das Nações Unidas vai aprovar uma agenda com 17 objectivos e 169 metas de desenvolvimento sustentável até 2030. (...)

No seu 70.º aniversário, ONU lança roteiro para o mundo perfeito
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 1.0
DATA: 2015-10-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Cimeira das Nações Unidas vai aprovar uma agenda com 17 objectivos e 169 metas de desenvolvimento sustentável até 2030.
TEXTO: Um mundo sem fome nem pobreza extrema. Sem sida, sem malária, sem tuberculose. Com educação básica gratuita para todos. Onde as mulheres não são discriminadas nem agredidas. Onde todos têm acesso a água potável, saneamento e energia moderna. Um mundo com mais renováveis, mais eficiência energética. Com crescimento económico e emprego universal. Em que as cidades e os transportes são verdes. Com mais indústrias e menos poluição. Com os ecossistemas conservados. Em paz e livre da corrupção. É este o mundo idílico que as Nações Unidas aspiram atingir dentro de apenas 15 anos. Está tudo numa ambiciosa agenda para o planeta até 2030, que será adoptada numa cimeira mundial que começa esta sexta-feira em Nova Iorque e que coincide com o 70º aniversário das Nações Unidas. É uma nova e ampla lista de intenções rumo ao desenvolvimento sustentável. Mas há muitos obstáculos para que esta cartilha seja cumprida. Os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável vão substituir os oito Objectivos do Desenvolvimento do Milénio, adoptados em 2000 e que expiram este ano, com resultados mistos. Houve inegáveis avanços. A parcela da população mundial que vive com menos de 1, 25 dólares (1, 11 euros) por dia caiu de 47% para 14%, segundo um balanço feito este ano pela ONU. Nos países em desenvolvimento, a subnutrição diminuiu de 23% para 13%, o número de crianças na escola primária subiu de 83% para 91%, e a população que vive em bairros de lata reduziu-se de 39% para 30%. Mesmo assim, hoje o mundo ainda tem 800 milhões de pessoas em pobreza extrema, 160 milhões de crianças que passam fome, milhões de mulheres que são discriminadas e quatro vezes mais refugiados do que há apenas cinco anos. Os novos objectivos da ONU não procuram apenas emendar o que ainda não foi resolvido – como a fome e a pobreza. Vão mais além e tocam em mais domínios da actividade humana e de uma forma mais detalhada. O resultado é um roteiro pós-2015 com 17 objectivos e 169 metas, que vão das energias renováveis às mortes nas estradas, do trabalho infantil à regulação da banca, dos desastres naturais aos subsídios à pesca. “É ambicioso, quase beirando a utopia, mas realizável”, afirma Pedro Krupenski, presidente da Plataforma Portuguesa das Organizações Não-Governamentais para o Desenvolvimento. “Nunca a agenda do combate à pobreza esteve tão ligada às boas práticas de desenvolvimento sustentável. Esta é a grande novidade”, avalia. A nova agenda é diferente da anterior noutro aspecto: agora o foco são todos os países, quando antes a atenção estava voltada sobretudo para a melhoria das condições de vida nas nações mais pobres. Temas como a desigualdade de rendimentos, a protecção dos ecossistemas ou a adaptação às alterações climáticas aplicam-se também ao mundo industrializado. Garantir padrões sustentáveis de produção e consumo também. “É um dos grandes desafios para os países desenvolvidos: conseguir produzir com menos recursos”, afirma o secretário de Estado do Ambiente, Paulo Lemos, que vai intervir, domingo, numa das sessões da conferência das Nações Unidas. Os novos objectivos da ONU são mais um ponto num processo com quatro décadas, desde a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, em 1972, em Estocolmo. O conceito do desenvolvimento sustentável ganhou força na Cimeira da Terra, em 1992, no Rio de Janeiro. Mas duas avaliações realizadas dez e vinte depois concluíram que ainda havia muito a fazer. Foi na segunda avaliação, em 2012, também no Rio de Janeiro, que se lançou formalmente a ideia dos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável para o pós-2015. Em três anos, chegou-se a um consenso, o que contrasta com as negociações para um novo tratado internacional para as alterações climáticas, que se arrastam há uma década. A explicação está sobretudo no formato daquilo que será adoptado: uma declaração política, que não obriga os países a cumprir as metas. Esta é uma das fraquezas da iniciativa, segundo Pedro Krupenski. “Falta um elemento mais vinculativo. Deveria ser eventualmente um tratado internacional”, explica. “A verificação vai ficar um bocado ao critério dos mecanismos da sociedade civil”. O ex-secretário de Estado do Ambiente Carlos Pimenta, que tem acompanhado a questão do desenvolvimento sustentável desde Estocolmo, aponta outro problema. “As instituições que gerem os global commons [bens globais comuns] estão muito enfraquecidas. Nunca foi tão grande a destruição das florestas ou a degradação dos oceanos”, afirma. “Estou pessimista ao nível da governança global”, completa.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
A vida no Estado Islâmico
O que é ser mulher ou criança no autoproclamado Estado Islâmico? O que se compra e o que falta no território? Como é aplicada a justiça? Três dezenas de pessoas que vivem ou viveram sob o regime extremista dão as respostas. (...)

A vida no Estado Islâmico
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O que é ser mulher ou criança no autoproclamado Estado Islâmico? O que se compra e o que falta no território? Como é aplicada a justiça? Três dezenas de pessoas que vivem ou viveram sob o regime extremista dão as respostas.
TEXTO: As carrinhas brancas saem por volta da hora do jantar, carregadas de refeições quentes para os combatentes islâmicos solteiros da cidade de Hit, no Oeste do Iraque. Equipas de mulheres estrangeiras, que deixaram a Europa e vários países do mundo árabe para se juntarem ao Estado Islâmico (EI), trabalham em cozinhas comunitárias para preparar o jantar dos guerrilheiros, entregue nas casas que foram confiscadas a pessoas que fugiram ou foram mortas, diz o ex-presidente da câmara da cidade. O EI tem atraído dezenas de milhares de pessoas de todo o mundo, prometendo o paraíso na pátria muçulmana que está a erguer nos territórios conquistados na Síria e no Iraque. Mas, na realidade, os islamistas criaram uma sociedade desigual, onde a vida quotidiana é radicalmente diferente para ocupantes e ocupados, de acordo com entrevistas conduzidas a mais de 30 pessoas que vivem ainda no EI ou fugiram recentemente. Os combatentes estrangeiros e as suas famílias têm direito a habitação gratuita, serviços médicos, educação religiosa e até a uma espécie de entrega de refeições ao domicílio, de acordo com os entrevistados. Recebem salários pagos com os impostos e taxas que sobrecarregam milhões de pessoas que eles controlam, num território que agora tem o tamanho do Reino Unido. Aqueles que vivem nas mãos do EI dizem que têm de enfrentar não só a brutalidade dos islamistas — que decapitam os seus inimigos e transformam em escravas sexuais as mulheres que pertencem às minorias — como também uma escassez extrema de vários produtos básicos. Muitos têm electricidade durante apenas uma ou duas horas por dia e em algumas casas a água canalizada fica vários dias sem aparecer. Há poucos postos de trabalho, por isso uma grande parte não consegue pagar os preços exorbitantes dos alimentos, que em alguns casos mais do que triplicaram. Os cuidados médicos são deficientes, a maioria das escolas está fechada e as restrições às saídas para o mundo exterior são impostas pela força das armas. Ao longo dos últimos dois anos, os islamista produziram uma torrente de propaganda sofisticada na Internet, que ajudou a convencer pelo menos 20 mil combatentes estrangeiros, muitos com famílias, a vir de locais tão remotos como a Austrália. A campanha, que é sobretudo veiculada pelo YouTube e pelas redes sociais, mostra uma terra de rodas gigantes e algodão doce, onde as populações locais convivem animadamente com estrangeiros fortemente armados. Mas os entrevistados dizem que as suas vidas no “califado”, onde são governados por homens que impõem uma versão extremista da sharia (a lei islâmica), estão a transbordar de medo e escassez. “Regressámos à Idade da Pedra”, diz Mohammad Ahmed, de 43 anos, antigo funcionário da Liga Árabe de Deir al-Zour, uma cidade perto de Raqqa, a autoproclamada capital dos islamistas, no Norte da Síria. “Antes tínhamos uma casa linda, com chão em mármore e azulejos”, diz Ahmed, que fugiu da sua terra em Junho e que agora vive com outros 20 mil sírios no campo de refugiados de Azraq, na Jordânia. “Durante toda a nossa vida tivemos tudo o que precisávamos. Depois, quando eles chegaram, passámos a cozinhar numa fogueira na rua e a lavar as nossas roupas em baldes. ”Várias das pessoas ouvidas afirmam que na verdade o Estado Islâmico é menos corrupto e oferece serviços públicos mais eficazes, como a construção de estradas e recolha de lixo, do que os anteriores governos sírio e iraquiano. No Iraque, dizem alguns, os militantes sunitas tratam-nos melhor do que o Governo central de Bagdad, dominado por xiitas. Mas nenhuma das testemunhas afirma tolerar os islamistas e todos concordam que uma governação mais eficiente não ajuda a desculpar o comportamento fanático e brutal do EI. “Nós odiamo-los”, diz Hikmat al-Gaoud, o antigo autarca de Hit, de 41 anos. Fugiu em Abril e agora divide o seu tempo entre Bagdad e Amã, na Jordânia. O Estado Islâmico conquistou poder na sequência dos combates na Síria e no Iraque que já tinham deixado de rastos muitas das instituições públicas. Mas as pessoas entrevistadas afirmam que o EI apenas piorou a situação, de formas que poderão ser sentidas durante as próximas décadas — fazendo regredir os progressos alcançados no ensino público, arruinando a infra-estrutura médica, criando um sistema judicial que assenta no terror e expondo toda uma geração de crianças a uma violência, física e psicológica, devastadora e grotesca. Para as mulheres, viver no EI significa frequentemente serem sujeitas a uma linha de montagem que serve para garantir noivas aos combatentes, ou às vezes serem sequestradas e levadas para casamentos forçados. Muitos dos entrevistados apenas quiseram dar o primeiro nome ou recusaram-se a ser identificados fosse de que forma fosse, para proteger a sua segurança e a das suas famílias que ainda vivem em território controlado pelo EI. Foram entrevistados por Skype ou telefone, a partir da Síria e do Iraque, ou pessoalmente, no Iraque, Turquia e Jordânia. Aqueles que falaram a partir de áreas nas mãos dos islamistas fizeram-no correndo grande perigo, afirmando que estes controlam rigidamente o acesso à Internet. Concordaram em falar para poder contar a sua história sobre a vida dentro do “califado” do Estado Islâmico. Quase todos os entrevistados dizem ter testemunhado uma decapitação ou outro castigo igualmente selvagem. É praticamente impossível confirmar estes testemunhos, tal como é impossível verificar as afirmações feitas através do material de propaganda que é editado pelo EI. Os militantes raramente permitem a jornalistas ou outros observadores independentes entrar no seu território e já divulgaram vídeos de decapitações de vários capturados. As entrevistas, conduzidas ao longo de vários meses, foram combinadas bastante ao acaso ou através de contactos mantidos há tempo na região. Apesar de vários activistas terem sido ouvidos, o Washington Post não quis depender deles para estabelecer outros contactos. No campo de Azraq, os jornalistas analisaram os registos de chegadas e procuraram aqueles que tinham partido recentemente das áreas controladas pelo EI. Muitas das conversas duraram duas horas ou mais. Os militantes controlam pequenas comunidades rurais, mas também grandes zonas urbanas, incluindo Mossul, uma cidade iraquiana com mais de um milhão de pessoas. As suas políticas diferem de região para região, por isso não há um estilo de vida único e uniformizado; mas nas entrevistas houve temas que apareceram consistentemente: mulheres, saúde, educação, justiça e economia. (. . . )“A vida no Daesh é um pesadelo todos os dias”, diz uma antiga professora de Matemática que vive em Mossul, usando o nome árabe do Estado Islâmico. “Temos um futuro incerto”, afirma, pedindo para não ser identificada. “Talvez o Daesh nos mate, ou talvez morramos na guerra, ou talvez depois. Aquilo por que estamos a passar agora é uma morte lenta. ”Os islamistas criaram checkpoints para impedir as pessoas de sair. Mas, segundo os entrevistados, há cada vez mais redes de tráfico para ajudar quem decide fugir e estes estão a entrar em cada vez maior número na Jordânia, Turquia, Líbano e nas áreas do Iraque que não estão sob controlo do EI. Responsáveis da ONU afirmam que 60% dos refugiados que atravessaram recentemente a fronteira entre a Síria e a Jordânia fugiam das áreas controladas pelos islamistas. A propaganda apresenta-os como libertadores; num vídeo recente apareciam, armados, a distribuir doces num lar da terceira idade. Mas, segundo as testemunhas, a maior parte da população vê-os como uma força ocupante impiedosa e tenta manter-se à distância o mais possível. “Mesmo que nos cruzemos na rua ou em lojas, não há convívio”, relata um activista que se identifica como Abu Ibrahim al-Raqqawi, natural de Raqqa, e que gere um site chamado Raqqa Is Being Slaughtered Silently. As pessoas de Raqqa, diz, “sentem-se estrangeiras na sua própria cidade”. O EI tem tido algum êxito no recrutamento da população local. As pessoas ouvidas dizem que muitos dos seus amigos e vizinhos na Síria e no Iraque escolheram juntar-se aos islamistas, tornar-se combatentes, professores ou funcionários dos seus gabinetes governamentais. Alguns fazem-no porque acreditam no seu objectivo de unir o mundo sob a sua interpretação radical da lei islâmica. Mas a maioria é por desespero. Em locais onde o preço da comida disparou e muitas pessoas vivem com pouco mais que pão e arroz, alguns homens concluíram que tornarem-se guerrilheiros do EI é a única forma de sustentar a família. “Não há trabalho, por isso temos de nos juntar a eles se queremos sobreviver”, diz Yassin al-Jassem, de 52 anos, que fugiu de sua casa em Raqqa em Junho. “Tantos habitantes locais se juntaram a eles. A fome empurrou-os para o Daesh. ”Peter Neumann, director do Centro Internacional para o Estudo da Radicalização da Violência Política do King’s College, em Londres, afirma que embora os combatentes estrangeiros tenham dado um fôlego ao EI, “a longo prazo, acabarão por se tornar um fardo”. O investigador recorda que as tribos locais revoltaram-se contra a Al-Qaeda no Iraque em meados dos anos 2000 em parte porque viam o grupo como uma organização estrangeira. É da opinião que as pessoas que estão agora sob o controlo do EI poderão fazer o mesmo — sobretudo no Iraque. No entanto, os entrevistados afirmam que o ISIS não poupa esforços no que se refere à supressão de potenciais levantamentos, matando qualquer um que suspeite de deslealdade. Faten Humayda, uma avó de 70 anos que deixou a sua terra perto de Raqqa em Maio e que agora vive no campo de Azraq, é da opinião de que a violência faz aumentar o ódio das populações em relação aos islamistas, mas também cria desconfiança entre os locais. E é mais difícil a qualquer movimento de resistência formar-se quando as pessoas pensam que os amigos e vizinhos podem ser informadores. “Eles põem-nos uns contra os outros”, afirma Humayda. Ahmed, que também abandonou a sua terra nas proximidades de Raqqa, em Junho, adianta que alguns dos combatentes árabes tentam misturar-se com a população local, mas que os europeus e os não árabes nunca o fizeram. E apesar de o EI proclamar que o seu objectivo é proporcionar uma vida melhor aos muçulmanos, parece estar sobretudo concentrado nos combates com os outros grupos rebeldes e as forças do Governo. “Eles foram sempre muito agressivos e parecem zangados”, diz. “Estão ali para lutar, não para governar. ”Na sua tenda de zinco em Azraq, Jassem conta que quando vivia sob o controlo do EI o neto de dois anos desenvolveu um tumor no cérebro. Os médicos pediam quase 700 euros para o tratar. Jassem, que é agricultor, estava sem trabalho desde que os islamistas tomaram a sua vila. Estava desesperado, e por isso em finais de Maio foi implorar pela vida do neto. O EI fez uma proposta: “Eles disseram-me: ‘Se nos deres o teu filho para ele lutar por nós, nós pagamos o tratamento do teu neto’”, recorda. A ideia de ter um dos filhos a combater pelo Estado Islâmico revirava-lhe o estômago, e a ideia de perder o neto despedaçava-lhe o coração. Então pegou na família e fugiu no camião de um traficante. Agora, o filho está a pedir apoio médico às autoridades jordanas para salvar o menino. “Nunca mais vou voltar para a Síria”, diz Jassem, na sua tenda de 5, 5 por 3, 5 metros, olhando para o vazio do deserto jordano. “Já não é a minha Síria. ”I Parte Até que o martírio nos separeAlgures no território sírio controlado pelo Estado Islâmico, uma jihadista holandesa põe um post no Twitter com a fotografia de um cheesecake de bolachas Oreo que acabou de fazer. É uma vívida acção de propaganda que partilha com outros que estejam a pensar viajar para a Síria para se juntar à causa. Mas também tem um toque pessoal islamista: o cheesecake foi fotografado ao lado de uma granada. A cerca de 320 quilómetros para sul, num campo de refugiados da Jordânia onde faz um calor abrasador, Rudeina, de 17 anos, diz que a sua vida no Norte da Síria, numa zona controlada pelo Estado Islâmico, e que abandonou em Abril, era miserável. Morava numa localidade perto da cidade de Raqqa, e conta que durante mais de um ano não saiu de casa, com medo de ser raptada ou forçada a casar com um combatente estrangeiro. “Eles cortaram a Internet, mas nós já nem a queríamos”, diz ela. “Se olhássemos para a Internet, veríamos como as pessoas vivem lá fora. Isso entristecia-nos. Ver o mundo lá fora era mais uma tristeza. ”Na propaganda do EI, a vida das mulheres do autoproclamado califado está repleta de amor, crianças e alegrias domésticas, tais como um bolo de Oreos. Mas a realidade é, frequentemente, bem mais dura para as que abandonam o mundo árabe, a Europa, os Estados Unidos para ir para lá, afirmam especialistas que analisam as contas nas redes sociais ligadas ao EI. Essas mulheres, que geralmente são atraídas por ideias românticas de apoio aos revolucionários e da vida num estado que venera a sua religião, vêem-se rapidamente num sistema institucionalizado, quase uma linha de montagem, que fornece esposas, sexo e filhos aos combatentes. E quando os maridos são mortos, espera-se que celebrem o seu “martírio” e rapidamente casem com outros islamistas. A situação é ainda pior para milhões de mulheres na Síria e no Iraque que viram as suas cidades e vilas ser tomadas pelo EI, revelam os entrevistados, com testemunhos semelhantes a outros dados a organizações de ajuda humanitária e activistas dos direitos humanos. “O nosso maior medo era irmos para uma prisão de mulheres”, conta Rudeina, sentada na barraca de zinco onde agora vive, no campo de Azraq. Recusou-se a dar o apelido por razões de segurança. Diz que os islamistas usariam qualquer pretexto para prender mulheres. “Usam as mulheres prisioneiras como esposas de combatentes estrangeiros. Se fores parar a uma prisão, sabe-se lá o que pode acontecer. ”A mãe, Nabiha, de 42 anos, conta que esse foi o destino da filha de um vizinho, que foi presa por o marido ser soldado do Exército sírio. “Eles disseram-lhe: ‘Ou casas com um combatente ou cortamos-te a cabeça e penduramo-la na praça. ’ Então, ela casou com um combatente e nunca mais soubemos dela. ”De acordo com a ideologia do Estado Islâmico, o lugar da mulher é em casa, a cuidar do marido e a procriar. “O criador decidiu que não há responsabilidade mais digna para ela do que ser a esposa do seu marido”, refere o manifesto “Mulheres do Estado Islâmico”, publicado este ano pela Brigada al-Khanssaa, um grupo feminino do “califado”. O documento foi traduzido para inglês por Charlie Winter, investigador da Quilliam Foundation, em Londres, e oferece a maior descrição feita até aqui sobre a forma como as mulheres são tratadas pelo EI. Determina que as mulheres só devem sair de casa para circunstâncias específicas, incluindo estudar religião ou trabalhar em situações em que as mulheres estão absolutamente segregadas. O manifesto rebela-se contra os valores ocidentais. As mulheres que optam por se juntar ao EI, quer sejam estrangeiras ou locais que acreditam na sua ideologia, parecem aceitar e até apreciar o seu novo papel. Algumas acabam por se casar por amor e apoiam entusiasticamente um sistema que rejeita os ideais ocidentais de moda e beleza. Mas muitas locais acham que as restrições são exageradas, antiquadas e aterrorizadoras, segundo as entrevistas. As regras são particularmente chocantes para as habitantes das zonas urbanas, como Raqqa ou Mossul, onde as mulheres se vestiam modestamente, mas muitas usavam simplesmente um lenço sobre o cabelo, calças de ganga e sandálias. Agora, são obrigadas a usar, em público, véus que lhes cobrem o rosto todo e vestidos, e não podem sair de casa sem a companhia de um homem. Amina Mustafa Humaidi, de 40 anos, fugiu de Raqqa em Maio, e diz que nunca deixava a filha de nove anos sair à rua, com medo dos radicais. “Ouvimos muitas histórias de sequestros de raparigas nas ruas por parte de guerrilheiros estrangeiros”, conta no seu abrigo em Azraq. “Quando eles chegaram, anunciaram que iriam buscar uma rapariga a cada casa e casá-la com combatentes estrangeiros. Nunca aconteceu. Acho que só disseram isso para nos aterrorizar. ”Mas o medo de Humaidi pela sua filha é justificado: o manifesto diz que as raparigas podem casar-se a partir dos nove anos. Para além disso, o EI também tem feito sistematicamente das mulheres escravas sexuais, nomeadamente mulheres e meninas da minoria yazidi no Iraque, referem grupos como a Human Rights Watch (HRW) e a Amnistia Internacional. Os próprios militantes, na sua publicação Dabiq, de Outubro de 2014, anunciaram que mulheres yazidis tinham sido oferecidas a combatentes como “despojos de guerra”. Um documento oficial do EI publicado no final do ano passado definia as linhas mestras de como as escravas devem ser tratadas, declarando que é permitido espancá-las e ter relações sexuais com elas antes de chegarem à puberdade, adianta a HRW. Os pais de Kayla Mueller, uma activista humanitária na casa dos 20 anos que foi feita refém, disseram em Agosto aos jornalistas que a filha tinha sido levada como “esposa” e foi repetidamente violada por Abu Bakr al-Baghdadi, o líder do grupo, de acordo com uma adolescente yazidi que estava com ela. Mueller morreu nas mãos do EI, mas não se conhece a causa exacta da sua morte. Entre os seus próprios membros e milhões de mulheres iraquianas e sírias que vivem nos territórios conquistados, os islamistas criaram uma complexa arquitectura social para garantir aos combatentes um fluxo constante de noivas e escravas sexuais. Quando um guerrilheiro estrangeiro chega ao Estado Islâmico com a mulher e os filhos, recebe uma casa, que geralmente foi confiscada a famílias locais que fugiram ou foram mortas, ou forçadas a sair. As estrangeiras solteiras são obrigadas a ficar numa pensão, onde recebem comida e uma “mesada”, segundo um relatório recente do Instituto para o Diálogo Estratégico, de Londres, que analisou as experiências de dezenas de mulheres estrangeiras seguindo os seus posts nas redes sociais. O investigador Shiraz Maher, do Centro Internacional para o Estudo da Radicalização e Violência Política, afirma que os combatentes solteiros estão autorizados a entrar na pensão, conhecer as mulheres e pedir-lhes que levantem os véus. Se gostarem do que vêem, podem ficar imediatamente noivos. Maher adianta que as mulheres no EI têm alguma palavra a dizer sobre com quem casam, mas não muita. “O processo não é longo”, afirma. “Conhecem-se numa manhã e à tarde estão noivos. ”Ainda assim, e porque as famílias sírias locais mantêm as filhas longe dos jihadistas, tem havido escassez de mulheres para os combatentes. Alguns, incluindo um britânico, queixam-se no Twitter da incapacidade de encontrar uma esposa — um raro sinal de discórdia na abundante propaganda cor-de-rosa. “Alguns destes tipos estão a ficar realmente frustrados”, afirma Maher. Uma mulher que diz chamar-se Shams, uma agente de propaganda online do EI, descreveu o seu casamento na conta de Tumblr. Diz que esteve solteira durante meses na Síria, onde chegou em Fevereiro de 2014, mas que viver assim era “muito difícil” e por isso optou por casar com um combatente, com quem se encontrara duas vezes. Fez um post com uma fotografia sua de véu branco, só com os olhos a verem-se, e o marido com uma camisa de manga curta branca e uma gravata preta muito fina. A legenda: “Casamento na terra da jihad. Até que o martírio nos separe. ” Shams identifica-se como uma médica de 27 anos da Malásia e o marido é marroquino. Postou ainda aquilo que disse ser uma selfie dos recém-casados: um estetoscópio pendurado numa AK-47. Muitas mulheres estrangeiras que vão para o EI sentem-se frustradas porque não partem para casar, mas para lutar, o que é proibido. “Temos vistos várias mulheres que não estão contentes com o facto de não poderem combater e que o expressam claramente”, afirma Peter Neumann. As queixas, adianta, reflectem o fosso entre as sociedades ocidentais — sobretudo da Europa —, onde estas mulheres cresceram, e a sua nova casa, que é moldada pela sociedade islâmica de há 1400 anos. “Obviamente são atraídas pela ideologia medieval, mas, ao mesmo tempo, algumas das suas atitudes são muito ocidentalizadas”, diz Neumann. Erin Marie Saltman, investigadora do Instituto para o Diálogo Estratégico, adianta que a frustração entre as mulheres estrangeiras era visível através dos seus posts cada vez mais duros. “Há mais mulheres agora, e mais mulheres ocidentais, e elas estão na verdade a revelar uma voz mais violenta. ”Muitas, acrescenta Saltman, ficam chocadas por descobrir que a vida no EI está repleta de violência e muita privação, incluindo escassez de electricidade e água potável — longe do paraíso que é apregoado pela propaganda. “Quando chegam ao Estado Islâmico, nunca é aquilo que diz na embalagem”, diz a analista. “Quase são forçadas a radicalizar-se ainda mais para justificar a viagem que fizeram, para justificar terem deixado as suas casas para trás. ”Algumas acabam por ter um papel de quase combatentes nas brigadas policiais femininas que aplicam as regras do EI, controlando sobretudo a forma de vestir das mulheres e as suas actividades. Outras ajudam a revistá-las em checkpoints. Mas, de acordo com o manifesto, as mulheres só receberão ordens para combater se for emitida uma fatwa declarando que a “situação dos muçulmanos é desesperada”. Para Neumann, é inevitável que o EI comece a recorrer a mulheres como bombistas suicidas, como fez, no Iraque, a Al-Qaeda, que deu origem ao Estado Islâmico. Há alguns sinais de que algumas têm já guardados em casa coletes suicidas. O relatório do Instituto para o Diálogo Estratégico cita uma mulher que diz chamar-se Umm Khattab e que, em Dezembro do ano passado, escreveu no Twitter que ouviu tiros em Raqqa e ficou com medo de que a sua casa fosse atacada — de tal forma que, escreveu, “pus o cinto [de explosivos] e tudo”. Por definição, o Estado Islâmico estará quase sempre em guerra, já que o seu objectivo declarado é criar um califado mundial por imposição das armas. Isso significa um ciclo de morte infindável dos seus combatentes e incontáveis jovens viúvas que serão encorajadas a voltar a casar com outros guerrilheiros. Apesar de a maioria dos casamentos no EI parecerem apenas combinações pragmáticas para a procriação, Saltman refere que muitos envolvem, no entanto, laços profundos entre marido e mulher. “Há um elemento romântico, de escape, para muitas destas mulheres”, acrescenta. “Quando se é novo, quando se perdeu a virgindade com alguém, teve-se um filho com essa pessoa, ela torna-se o nosso pilar. Não é o tipo de amor que vemos num filme ocidental sobre adolescentes, mas é uma ligação a alguém. E é um amor muito profundo à sua maneira. ”II PartePara os rapazes, Deus e armas. Para as raparigas, Deus e cozinhadosA guerra fechou a maior parte das escolas na terra de Yahyah Hadidi, em 2013, com o agravamento dos combates entre os rebeldes e o Governo sírio. Hadidi, com um diploma acabado de tirar e uma grande paixão pela Educação, decidiu fazer alguma coisa em relação a isso. Começou a dar aulas de improviso numa escola abandonada do seu bairro, atraindo mais de 50 rapazes e raparigas por dia. Até que, no início de 2014, chegou o Estado Islâmico e ordenou o encerramento de todos os estabelecimentos de ensino. Hadidi ficou desolado e pediu autorização para reabrir a escola, na vila de Manbij, entre as cidades de Raqqa e Aleppo, no Norte. Um combatente saudita, alto e barbudo, disse-lhe que, se queria ensinar, poderia dar aulas de religião na mesquita, apenas a rapazes e sob supervisão do EI. “Eu não podia fazer isso”, diz Hadidi, de 26 anos, que em Julho fugiu da Síria com a mulher e que agora vive no campo de refugiados de Azraq. “Eu queria dar uma educação boa às crianças e não fazer-lhes lavagens ao cérebro. ”O EI arrasou com a educação pública de milhões de crianças, agravando os danos provocados por anos de uma guerra devastadora na Síria e no Iraque, dizem as três dezenas de entrevistados. De acordo com a propaganda do EI, o ensino primário é um pilar da vida quotidiana do autoproclamado califado. Mas estes entrevistados dizem que os islamistas praticamente o eliminaram. Fecharam muitas escolas públicas, e, em alguns casos, reabriram-nas depois de darem nova formação a professores e readaptarem os currículos à sua interpretação extremada do islão. Eliminaram disciplinas como música, arte e geografia. Os testemunhos recolhidos sugerem que o sistema de educação do EI, segregado e desigual, não tem conseguido atrair muito apoio popular. Os jovens deixam de ir à escola e os combatentes estrangeiros enviam os filhos para instituições que os doutrinam. Os testemunhos reflectem largamente as conclusões de analistas que estudam o Estado Islâmico. “O objectivo do sistema de educação é doutrinar as crianças”, comenta Peter Neumann. “Todos os movimentos totalitários, os nazis ou o que for, põem grande ênfase no doutrinamento dos jovens e na formação de uma geração que constituirá a sociedade combativa que eles pretendem”. O EI faz parte da complexa rede de problemas da Síria, e os jihadistas têm desempenhado um papel significativo na regressão de décadas no ensino público. Um relatório de Março da Save the Children concluiu que as inscrições de alunos diminuíram para 50%, quando eram de praticamente 100% antes do início da guerra civil, em 2011. O EI tem tentado afincadamente que as crianças frequentem as suas escolas religiosas, nomeadamente através do uso do “Daesh Bus”. Hadidi refere que os radicais atravessam cidades e vilas num velho autocarro branco e chamam as crianças através de um altifalante, desafiando-as para uma boleia ou para ver desenhos animados num grande ecrã de televisão. Mas quando os miúdos entram, adianta, recebem sermões de islamismo extremista e panfletos para distribuírem aos pais. “Isto é muito perigoso; o nosso país está a regredir 20 anos”, diz Hadidi. “Não só as nossas crianças não estão a receber educação, como estão a ser arrastadas para caminhos errados. Vivíamos numa zona rural e levámos muito tempo a convencer os camponeses pobres a enviarem os miúdos para a escola. E agora isso está a morrer. ”Em vez de aprender a ler e escrever, os rapazes aprendem a lutar. Muitos dos entrevistados adiantam que existem campos de treino militar para rapazes que são na maioria adolescentes, mas onde também se encontram meninos de sete anos. Hikmat al-Gaoud diz que o EI criou um campo de treino para rapazes numa mina de sal abandonada nas imediações da cidade. “Eles levavam-nos durante três ou quatro meses para os treinar e eles regressavam combatentes”, afirma numa entrevista em Amã. “No meu bairro, todos foram, menos o meu filho, que se recusou. ”Gaoud afirma que muitos rapazes sunitas de Anbar se juntaram ao EI devido à sua revolta contra o Governo de Bagdad, dominado por xiitas, que vêem como demasiado próximo do Irão, também xiita. Mas alguns dos entrevistados apontam outras razões. “Para os jovens, não se trata propriamente de ideologia”, diz Mohammad Ahmed, de 43 anos, que vivia numa zona rural perto de Raqqa até fugir com a família para a Jordânia, em Junho. “Vêem os amigos alistarem-se e a voltarem dos treinos com uma AK-47 e com medalhas no peito. Pensam: ‘O meu vizinho agora é importante e eu também quero ser importante’. ”O seu filho de 14 anos, Ziad, diz que pelo menos 50 rapazes da sua escola, que foi encerrada, se juntaram aos militantes. “Adoram ter as suas armas”, comenta Ziad. O Estado Islâmico não atribui muita importância à educação das raparigas, a julgar pelo manifesto “Mulheres do Estado Islâmico”. Satiriza as mulheres ocidentais que se dedicam a “ciências inúteis… que estudam as células cerebrais de vacas, grãos de areia e as artérias de um peixe!”O documento salienta que as mulheres não podem cumprir os seus papéis de esposas e mães se forem “iletradas ou ignorantes”. Mas adianta que a educação das raparigas deve ir dos sete aos 15 anos e focar-se na religião e “aprendizagem de tarefas como têxteis, costura e cozinha básica”. Nabiha, uma mãe de Raqqa, de 42 anos, entrevistada no campo de refugiados de Azraq, diz que os islamistas descobriram que a sua sobrinha estudava numa universidade numa zona da cidade de Homs controlada pelo Governo. Confrontaram-na com isso e ameaçaram executá-la caso a filha não regressasse a Raqqa em 30 dias. “Todos sabemos que esta gente não tem misericórdia, por isso ela mandou vir a filha”, conta. Nabiha conta que os militantes vão porta a porta à procura de pessoas que se tenham licenciado: “Reúnem os diplomas e queimam-nos numa grande fogueira. ”III ParteÉ como se vivêssemos no séc. XVIIIAntes de o Estado Islâmico ter capturado a cidade de Faten Humayda, no Norte da Síria, há quase dois anos, uma bilha de gás propano para o seu fogão custava-lhe o equivalente a 50 cêntimos. Mas quando os islamistas se instalaram, o preço subiu para os 27 euros, obrigando Humayda a cozinhar numa fogueira no quintal. “Antes era um paraíso”, diz, descrevendo a sua antiga vida, passada nas margens do rio Eufrates. Agora está sentada numa barraca de zinco de Azraq, onde chegou com ajuda de traficantes. O Estado Islâmico tem tentado fazer aquilo que a Al-Qaeda e outros grupos jihadistas nunca tentaram sequer: criar um estado, com governo e instituições e uma economia funcional. Apesar de os jihadistas terem algum sucesso de governação, para milhões de pessoas que estão sob o seu comando tem sido impossível encontrar — ou conseguir pagar — comida, combustível e outras necessidades básicas. As entrevistas conduzidas neste campo da Jordânia sugerem que o Estado Islâmico criou um sistema no qual a maior parte dos habitantes locais luta por sobreviver, enquanto os ocupantes têm electricidade e alimentação gratuitas e até produtos importados, incluindo bebidas energéticas, como Red Bull. As pessoas ouvidas referem que é mais fácil encontrar alimentos nas áreas onde se cultivam frutas e vegetais ou onde há pastagens de animais. Mas, com o encerramento das rotas tradicionais de abastecimento devido aos combates, até produtos básicos, como açúcar ou leite em pó para bebé, têm de ser contrabandeados e são terrivelmente caros. A situação é ainda mais grave devido ao número elevado de desempregados. Fábricas e grandes lojas fecharam as portas, por os donos terem fugido ou porque as matérias-primas de contrabando são demasiado dispendiosas. “Eu só cozinhava lentilhas com arroz. Era tudo o que tínhamos”, afirma Amina Mustafa Humaidi, que recentemente abandonou a cidade de Raqqa com a família e que agora vive no campo de Azraq, no deserto jordano, a 65 quilómetros de Amã. Diz que no ano passado o marido foi abatido a tiro pelos combatentes do EI. Depois de ele morrer, a família dele deu-lhe uma panela de pressão eléctrica, mas só tinha uma hora por dia de electricidade. “Quando a electricidade chegava, meu Deus! Eu ia a correr cozinhar”, conta. “Se deixasse passar essa hora, os meus filhos não comiam. Tínhamos frigorífico, mas não podíamos usá-lo. ”Sentada no chão de cimento, Humaidi conta que o filho mais novo tinha nove meses quando os islamistas chegaram a Raqqa, e de repente ela deixou de conseguir encontrar leite em pó para lhe dar. “O Estado Islâmico não trouxe ordem. Trouxe caos”, diz. Os novos governantes também se mostravam contra a ajuda humanitária estrangeira. Em Abril, apareceram fotografias em sites do Estado Islâmico que mostravam islamistas a queimar dois carregamentos de frango vindos dos Estados Unidos e destinados às vítimas da guerra civil síria. Os cuidados médicos e os medicamentos também escasseiam, e muitos hospitais só tratam de membros do EI ou reservam as melhores equipas e equipamentos para eles, segundo relatos de pessoas entrevistadas na Síria e no Iraque. Muitos profissionais de saúde fugiram quando os combatentes do EI chegaram. Agora, se um médico pedir autorização para se deslocar para fora das áreas controladas pelos islamistas, é-lhe exigido que tenha até cinco pessoas a garantir que regressará, dizem testemunhas. Se não voltar, os familiares ou amigos que apresentaram a garantia serão punidos ou mortos. Em Mossul, uma cidade com mais de um milhão de pessoas, os médicos queixam-se de que lhes falta praticamente tudo: radiologistas, anestesias, sangue. “Todas as dificuldades que possa imaginar nós temos”, declarou uma médica iraquiana do hospital de Mossul. A mesma profissional adianta que o hospital deixou de fazer cirurgias preventivas, reservando os recursos somente para as operações destinadas a salvar vidas. Os cortes de energia significam que o hospital tem de depender de geradores, mas muitas vezes é difícil encontrar combustível para eles. Se não houver electricidade para as bombas de água, não há água. “Imagine um hospital sem água”, diz a médica. “É como se estivéssemos a viver no século XVIII. Estou a tentar sair de Mossul, mas tenho uma casa boa, que resultou dos meus 25 anos de trabalho. Não posso deixar a minha casa, é o fruto da minha vida. Mas isto não é vida. ”Para controlar as pessoas que governa, o EI criou governos locais que regulam serviços como licenças de construção ou de pesca. (Pescar com dinamite ou baterias eléctricas é agora proibido. )Nas entrevistas, algumas pessoas referem que os serviços públicos pararam, enquanto outras dizem que o EI os melhorou. Um líder religioso de Fallujah, cidade no Centro do Iraque, que pediu para não ser identificado por razões de segurança, disse numa entrevista por telefone que é contra os islamistas, mas que eles instalaram um governo eficiente. Adianta que criaram gabinetes que emitem licenças de casamento e bilhetes de identidade ou resolvem contenciosos. Funcionários pagos pelo EI varrem as ruas e arranjam geradores que garantem iluminação em algumas ruas, diz. Também instalaram tribunais da sharia [lei islâmica] e uma delegação da Hisbah, uma espécie de departamento da polícia religiosa. “Eles controlam os preços; se alguém subir demasiado os preços, é punido”, afirmou o responsável religioso. Várias das pessoas entrevistadas referiram que nos anteriores governos sírios e iraquianos pediam-se subornos descaradamente, mas que o EI parece ter regras mais estritas contra o recebimento de luvas por parte dos seus oficiais. “As coisas estão bem regulamentadas”, afirma um empresário de Raqqa, entrevistado via Skype, reconhecendo com relutância que alguns dos engenheiros, arquitectos e outros profissionais com habilitações recrutados pelos islamistas em várias partes do mundo melhoraram os serviços. “Já não vemos lixo atirado para o chão como era costume”, exemplifica. Mas também há quem diga que os membros do EI estão muito mais preocupados em combater do que em melhorar a vida do dia-a-dia dos cidadãos. O Estado Islâmico é financiado através do desvio de petróleo, assalto a bancos, extorsão, sequestros, venda de antiguidades no mercado negro — e da cobrança de impostos às populações locais. As pessoas ouvidas pelo WP dizem que costumavam reservar entre 2, 5% e 10% dos seus rendimentos para o zakat, uma contribuição de caridade que os muçulmanos fazem para ajudar os pobres. Mas agora o EI exige que esses pagamentos sejam feitos à própria organização. O activista Abu Ibrahim al-Raqqawi acusa o EI de usar o zakat e outros impostos e taxas para pagar aos seus combatentes e outros estrangeiros que vieram juntar-se ao Estado Islâmico. Os estrangeiros não pagam impostos. Humayda, a avó que fugiu de uma aldeia perto de Raqqa, acusa os islamistas de terem levado 10% da colheita de trigo da sua família, argumentando que era para os pobres. Diz que uma ou duas vezes por ano o EI distribui um carregamento de comida na aldeia e que quem a queria tinha de lutar por ela. “Acho que estão a tentar que fiquemos iguais a eles”, afirma. “E depois dão chicotadas aos pobres que não pagam os impostos. ”IV Parte A lei do medo e da violênciaOs jihadistas arrastaram o homem vendado para a praça central de uma localidade perto de Raqqa. Foi numa sexta-feira, logo a seguir às orações, e o mercado estava a abarrotar de pessoas. Gritaram que ele era um espião do Governo e retiraram-lhe a venda para que todos lhe pudessem ver a cara. Nabiha, uma mulher de 42 anos que fugiu da cidade e vive agora em Azraq, lembra-se de como se sentiu enojada pela forma como os radicais forçaram o homem a baixar-se até um bloco de madeira, daqueles que são usados no abate de ovelhas, e levantaram um cutelo de talhante. “Bastou um golpe”, diz Nabiha, que pediu que o seu apelido não fosse usado por razões de segurança. “O corpo foi para um lado, a cabeça para outro. Nunca me vou esquecer. ”O EI usa o seu brutal e tantas vezes arbitrário sistema de justiça para manter sob controlo os milhões de pessoas que vivem nos seus territórios. Com as decapitações e crucificações públicas de pessoas que podem ser apenas suspeitas de deslealdade, criaram uma cultura de horror e pavor tal que praticamente ninguém tem coragem de contestar. “Para vocês que nos vêem de fora pode parecer tão simples perguntar: ‘Mas por que é que não há mais pessoas a enfrentar o Daesh? Por que é que não se ouvem mais vozes a contestá-los?’”, diz um homem de negócios em Raqqa com quem falámos por Skype e que recusou ser identificado. “Mas isso é porque não são vocês que têm de viver com eles, debaixo das suas ordens. ”Segundo os entrevistados, quem vive sob o jugo do EI está sujeito a um regime extremo de leis impostas pela polícia e pelos juízes, na sua maioria estrangeiros vindos da Tunísia, Líbia, Arábia Saudita, Rússia, França, Grã-Bretanha e outros países. Os relatos são considerados fidedignos e consistentes com as conclusões dos analistas que se têm dedicado ao estudo do EI e de activistas dos direitos humanos. As decisões dos tribunais assentam numa interpretação extrema da sharia. E para algumas localidades é mesmo deslocado um departamento da polícia feminina para reforçar as disposições legais para as mulheres e garantir que nas escolas, nos hospitais e noutros serviços públicos reina a segregação por género. Para todos os que fumam cigarros, bebem álcool, mantêm as lojas abertas durante as horas de oração ou se vestem à ocidental está-lhes reservado serem chicoteados em público — ou pior. Yassin al-Jassem lembra-se bem do dia em que o EI apanhou um adolescente, filho de um vizinho, a fumar um cigarro. “Prenderam-lhe a mão esquerda em cima de um bloco de madeira e com uma enorme faca de talhante deceparam-lhe dois dedos, precisamente aqueles com que segurava o cigarro”, conta Yassin. “Depois, atiraram-no para o meio da rua, entregue à sua sorte. ”Os suspeitos de espionagem ou de colaboração com os inimigos do EI são executados. As mortes acontecem geralmente em dias de mercado ou depois das orações das sextas-feiras, em locais de grande visibilidade, de forma a garantir que um número máximo de pessoas assiste à barbárie. Yahyah Hadidi diz que a principal praça da sua cidade, perto de Aleppo, ficou conhecida como “Praça do Julgamento” por ser o palco de execuções todas as sextas-feiras. “Puseram lá um mastro em forma de L e dependuravam os corpos e as cabeças com ganchos de talho”, diz. “Querem aterrorizar as pessoas. Muitos muçulmanos são boas pessoas e como não pensam como eles são chacinados”, acrescenta. Ahmed Ali Humaidi, 19 anos, fugiu recentemente com a sua família de Raqqa para a Jordânia. Diz que os revolucionários decapitam as pessoas numa rotunda mesmo no centro da cidade e deixam as cabeças penduradas em postes. “A minha vida sempre me correu bem e nunca tinha sentido medo. Mas quando vi o que acontecia, aí pela primeira vez senti medo”, relata. De acordo com alguns dos entrevistados, o sistema de justiça criminal do EI é menos corrupto do que as instituições sírias sob governo do Presidente Bashar al-Assad. E no Iraque houve quem se tivesse juntado ao EI porque os sunitas preferem isso a viver sob o Governo de Bagdad, dominado por xiitas. Hikmat al-Gaoud, o antigo presidente da Câmara de Hit, no Iraque, tem tentado recrutar nómadas sunitas para lutar contra o EI, que diz odiar. Mas acrescenta que há iraquianos que se juntaram aos revolucionários com o seguinte discurso: “O Governo do Iraque não me me respeita, nem à minha mulher e à minha família. Se tiver de andar de mãos dadas com o mal para poder viver a minha vida com dignidade, fá-lo-ei. E o Estado Islâmico é o menor dos dois males. ”Por outro lado, Jassem afirma que o sistema de justiça do EI é caprichoso e abusivo. Diz que três dos seus vizinhos foram mortos porque tinham inimigos que contaram mentiras sobre eles ao Daesh. Uma mulher que vive em Mossul, no Iraque, e que pediu para não ser identificada, diz que recentemente o EI cortou as mãos a quatro rapazes, de 14 ou 15 anos apenas, porque foram acusados de roubar fios de electricidade para conseguirem luz nas suas casas. Em entrevista por Skype, disse ainda que soube de um homem a quem cortaram as orelhas por ter feito queixas do EI. “Tenho medo deles. Olho para eles, com as suas armas e as suas facas, e penso: ‘São uns monstros. Como é que chegaram até aqui?’ Roubaram-nos a nossa cidade”, conclui. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Noutra entrevista por Skype, uma outra mulher de Mossul diz que receia pelo futuro dos filhos, que estão a ser criados e educados a assistir a tamanha violência. “Na semana passada, o meu filho de seis anos roubou um rebuçado ao irmão. E depois disse: ‘E agora, vais cortar-me a mão?’ Preferia já ter morrido a ter de ouvir do meu filho uma coisa como esta”, conta. Recorda ainda como há pouco tempo, quando seguia de carro com a família, se deparou com uma execução. Era tanta gente a assistir que a estrada estava bloqueada. “Comecei a chorar e tapei os olhos dos meus filhos para que não vissem. Não sei como será o futuro deles. Mas não temos condições para fugir. ”Hadidi, que vive numa localidade perto de Aleppo, diz que frequentemente há estrangeiros que militam no EI a chegar à sua loja de telemóveis para o revistarem e verem as suas contas. Depois, vão a casa dos seus clientes para lhes inspeccionar os telefones. Diz que chicotearam um adolescente só porque ele tinha descarregado música para o telemóvel e que executaram dois outros porque descobriram que tinham a bandeira da Síria nos telefones e por isso eram apoiantes do Governo. “Pensam que toda a gente é espia”, conclui. Com Souad Mekhennet, em Marrocos e Berlim, Loveday Morris, Erin Cnningham e Mustafa Salim, no Iraque, Karla Adam, em Londres, e Taylor Luck, na Jordânia. Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
REFERÊNCIAS:
A noite do fim do mundo
Na madrugada de 25 para 26 de Novembro, a água tomou de assalto os arrabaldes pobres que Lisboa não conhecia. Há 50 anos, morreram mais de cinco centenas de pessoas. Mês e meio depois, os jornais calaram-se e o Governo já tinha parado de contar os mortos. (...)

A noite do fim do mundo
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Na madrugada de 25 para 26 de Novembro, a água tomou de assalto os arrabaldes pobres que Lisboa não conhecia. Há 50 anos, morreram mais de cinco centenas de pessoas. Mês e meio depois, os jornais calaram-se e o Governo já tinha parado de contar os mortos.
TEXTO: A noite ia alta quando Joaquim, marido de Maria Emília, voltou do trabalho. O ajudante de camionista parou com uns conhecidos em Castanheira do Ribatejo e ajudava a suportar a porta de um café que a força da água queria deitar abaixo. — Se tu estás aqui a salvar-te e a salvar-nos, que fará da tua família, disse-lhe um amigo. — Mal todos os das Quintas se a água chega à minha família. Apressou-se. Em Quintas, os relógios pararam às 2 horas da manhã. Por essa hora, a água chegou ao tecto do quarto onde Maria Emília dormia. O inferno chegou com a noite. A água ultrapassou os telhados na várzea do pequeno lugar enfiado num vale a meia dúzia de quilómetros do centro de Castanheira do Ribatejo, em Vila Franca de Xira. Na noite de 25 para 26 de Novembro de 1967, as cheias levaram metade da povoação. Contaram-se 94 mortos. Dia 25 era um sábado e até as famílias de fora tinham vindo à terra. A chuva caiu durante todo o dia. Miudinha. À noite abateu o dilúvio. Era madrugada alta, estava muito escuro e poucos se deram conta. Ninguém esperava que a água entrasse, sem aviso, em poucos minutos e levantasse as camas até ao tecto. Lá ficaram as marcas da ondulação, dos berços, dos dedos enlameados à procura de socorro. Mariana Guerra afastou com as mãos a lama para encontrar a trança da irmã. Maria Emília estava junto à porta do seu quarto. Mais à frente, o filho bebé, depois as duas crianças. “Estava um arame entrançado na trancinha dela. Era tudo lodo. Então, limpámos muito bem a carinha. E eu disse: ‘Olha a minha irmã está aqui’. ” Mariana fala da irmã sempre com diminutivos. Às vezes, a fala pausada, fininha, de miúda, demora-se nas descrições. Fica, fixa, a olhar em frente porque ainda hoje consegue ver tudo. Passaram 50 anos. Mariana tem o peixe ao lume e as recordações voltam-lhe de rompante, interrompendo-lhe a serenidade e a preparação do almoço. Quer mostrar as fotos da irmã, que andava a buscar desde manhã cedo. As mãos tremem-lhe tanto como a voz — e o sopro da água a escaldar — ao pegar nos retratos esbranquiçados da mulher bonita e dos seus filhos de cabelos lisos e olhos grandes. Mariana tinha 29 anos quando foi enterrar a irmã de 31. As casas eram velhas, “contavam-se pelos dedos as que tinham condições mínimas”. Não havia esgotos. António Macedo, que ia a Quintas — a terra da mulher — passar o fim-de-semana, não sabe como se chamavam casas a algumas “estruturas enfaixadas”. As telhas não tinham forro, o chão era a terra. “A tromba de água caiu num instante” e o Rio Grande da Pipa encheu com a mesma rapidez. A ponte junto ao cano de Alviela entupiu com o que a enxurrada levara — o campo, que antes era repleto de caniços e oliveiras, ficou despido. A água acumulou-se a montante. As paredes romperam, as casas foram levadas na corrente. Quem se salvou andou a partir muros para mandar embora o que não pedira para entrar. Os corpos foram alinhados à porta da casa onde Luísa Fajardo vivia com os pais. Cada um colocado sobre os taipais de madeira que o pai tinha trazido da fábrica da Ford — que nunca mais voltou a usar. Naquela noite, Luísa, de 13 anos, queria ficar no aconchego da avó, mas esta não deixou. Ficou lá a irmã, um ano mais velha, a dormir na casa na parte baixa do lugar de Quintas, junto ao rio e à escola, a dois passos da ponte. Luísa dormiu na casa dos pais, umas ruas acima. De madrugada, a mãe jurava que ouvia gritar. A luz, instalada na aldeia um ano antes, não deu de si. O pai tentou descer várias vezes, sem que a água e as terras o deixassem. A dimensão das chuvas chegou-lhes com a exclamação de um vizinho. O homem entrou-lhes em casa, resguardando a cabeça num saco de sarapilheira: “Ai Maria, tanta gente morta nesta aldeia. ” Outros foram chegando à medida que o breu desaparecia. “Tinham deixado os seus mortos em casa. Vinham encharcados. E a minha mãe, da pouca roupinha que tinha, ainda assistiu essa gente toda. ”Na manhã em que o sol mostrou o fim do mundo, o pai foi lá em baixo e voltou outro homem. “A casa nem telhado tem, não está lá nada dentro”, descreveu à família. Ficaram as empenas e, na escola, os degraus da entrada. O corpo do avô foi o último a aparecer, nove dias depois, ao pé do Tejo. Nessa noite, Luísa perdeu 28 familiares. E continuou a chover por mais três ou quatro dias. Na madrugada de sábado para domingo, a água inundou rapidamente as zonas baixas da península da capital — de Vila Franca de Xira, Alenquer, Loures, Odivelas a Oeiras — e as histórias repetiram-se: as das famílias refugiadas nos telhados, daqueles que não saíram a tempo, dos que voltaram atrás, dos guarda-fatos caídos, das portas que se fecharam, dos carros arrastados. Foram cheias rápidas: o Tejo e os afluentes subiram três a quatro metros em poucas horas. Morreram centenas — o Estado Novo falou em 462 mortos, os jornalistas Pedro Alvim, Joaquim Letria e Fernando Assis Pacheco contaram perto de 700. (leia a crónica de Pedro Alvim "Os mortos e os fósforos" associada a esta reportagem)Morreram os pobres, que viviam em habitações precárias nos leitos de cheia, construídas ilegalmente enquanto Lisboa crescia para fora da cidade. E os pobres em sorte, que habitavam os andares baixos e as caves, que dificilmente deram pela entrada da água. A lama, que cobriu os destroços e os mortos, pôs a descoberto a miséria. “Os estudantes associativos, a elite política das universidades, comunistas, católicos progressistas, esquerdistas e muitos voluntários atraídos por uma solidariedade que não sabiam ser proibida iam pela primeira vez conhecer o Portugal sobre o qual falavam em abstracto nos panfletos”, retrata o historiador António Araújo. Na manhã de domingo, poucos jornais chegaram ao Ribatejo. “Houve inundações em Vila Franca e o comboio não passou”, disse o ardina do Entroncamento a António Macedo, que saía da beira da mãe para ir ao encontro da família em Quintas. Àquela hora da manhã, a telefonia a pilhas dava conta dos primeiros “três ou quatro mortos” na freguesia dos Cadafais, em Alenquer. Viriam a aparecer corpos até 14 de Janeiro. Por essa altura, o Governo já tinha deixado de os contar. “Chuva e morte: mais de 200 vítimas” titulava o Diário de Lisboa na primeira página de domingo. Nesse dia, cada jornalista foi enviado para o seu lado. Alice Vieira foi para Quintas, nos carros que os estudantes, reunidos no Instituto Superior Técnico, tinham organizado para levar quem quisesse ajudar. À data, tinha 24 anos e era enviada pelo Diário de Lisboa. Três dias depois, “427 mortos” eram confirmados pelo Diário de Notícias. Fontes oficiais chegaram a falar de 462 vítimas mortais. Depois, a censura ligou: “A partir desta hora, não morre mais ninguém”, disse um dos funcionários dos serviços da censura ao jornalista da Rádio Clube Português João Paulo Guerra, amigo de Alice Vieira. “A censura carregou com mão de ferro, cortando notícias, distorcendo informações, impedindo os números certos de ser divulgados”, porque nessa altura o Governo de António de Oliveira Salazar percebeu “que seria perigoso deixar que as pessoas soubessem a dimensão exacta do que estava a acontecer”, conta a escritora. “A censura falava quase de cinco em cinco minutos. ”Desde segunda-feira, dia 27, que enviava telegramas às redacções: “Gravuras da tragédia: é conveniente ir atenuando a história. Urnas e coisas semelhantes não adianta nada e é chocante. É altura de acabar com isso. É altura de pôr os títulos mais pequenos”, cita o trabalho de Francisco da Silva Costa, Miguel Cardina e António Batista Vieira, “As inundações de 1967 na região de Lisboa: Uma catástrofe com diferentes leituras”. Na quarta-feira, determinava-se: “Os títulos não podem exceder a largura de meia página e vão à censura. Não falar no mau cheiro dos cadáveres. Actividades beneméritas de estudantes — Cortar. ”Alice Vieira “só queria gritar às pessoas: ‘Vejam lá o que está a acontecer às portas de Lisboa’”. Como outros jornalistas, via pela primeira vez as “terríveis condições em que muita gente vivia, com casas de construção tão precária que eram incapazes de aguentar o embate das águas, gente amontoada em bairros clandestinos”. Percebeu de imediato que “o que estava a acontecer era a prova da miséria que alastrava no país e isso a ditadura não permitia que fosse conhecido”. “Um lamaçal de perder de vista. A lama dava-nos para cima dos joelhos e a gente punha as mãos na lama e trazíamos animais mortos. E aquilo era um cheiro. Ainda hoje me lembro desse cheiro. ”O cenário, que só se lia nas entrelinhas, foi por fim dado a conhecer aos portugueses, a 2 de Dezembro, nas fotografias que O Século Ilustrado conseguiu publicar. O país nunca soube ao certo quem morreu. Para os autores do estudo sobre as “diferentes leituras” da catástrofe, é seguro falar em “500 mortos”. Na semana seguinte ainda se retiravam corpos “das lamas acumuladas em Algés e se continuava a falar de desaparecidos” que teriam sido levados pelo Tejo. “Nestas situações, e em especial quando os poderes públicos não querem revelar toda a dimensão da tragédia, a imprecisão é grande”. Mês e meio depois, o tema já não vinha nos jornais. Era 1967: a Guerra Colonial ia a meio e faltava pouco menos de um ano para Salazar passar a presidência do Conselho de Ministros a Marcelo Caetano. O Governo atribuiu às cheias uma retórica de fatalismo. Dizia o Ministério de Interior, numa nota oficiosa, que “somente a violência do fenómeno de carácter excepcional” poderia explicar “cabalmente a grandeza dos prejuízos causados”. Os jornais próximos apoiavam o “carácter inesperado da catástrofe”, dando ênfase à “onda de comoção gerada”. Para um desses jornais, o Diário da Manhã, esta “cadeia de solidariedade humana” era o reflexo da “vitória do homem, que a natureza tinha esmagado”. O tempo passou e os autores que se debruçaram sobre o assunto dividiram as culpas. Choveu tanto na noite de 25 para 26 que chegou a um quinto daquilo que choveu no ano todo. E eram anos de chuvas: só no ano anterior (1965-66) houve 20 inundações em Lisboa e foi aquele em que choveu mais (1214 l/m2) num período de 80 anos, entre 1918 e 1998, concluíram Pedro Elias Oliveira e Catarina Ramos, autores do estudo sobre as Inundações na Cidade de Lisboa durante o século XX. Em 2015, Helena Abreu e Ana Paula Torres, entre outras pessoas ligadas à biblioteca municipal de Algés, começaram a escrever as memórias das gentes de Oeiras e que haviam de dar origem ao site Histórias de Vida. As cheias tornaram-se um tema premente, por ser “tão desconfortável e pouco reavivado na memória”. “O facto é que toda a gente tinha um vizinho que fugira à lama, uma amiga que não saia a tempo. E muitos nunca tinham falado sobre isso. Fomos agitar as águas”, caracteriza Helena Abreu. Da recolha de testemunhos, Ana Paula, historiadora, quis uma exploração mais profunda e meteu-se nos arquivos para juntar um contexto às memórias que tinha recolhido. Escreveu um livro – o primeiro livro publicado exclusivamente dedicado aos acontecimentos de 25 para 26 de Novembro de 1967 - e chamou-lhe “As ‘gotas de ar frio’ que inundaram a Grande Lisboa”. O livro estará disponível nas bibliotecas universitárias, nas bibliotecas dos concelhos afectados e numa edição e-book. Porque entende que a “negação do nome é a negação da própria pessoa”, Ana Paula Torres quer agora construir a lista completa de vítimas das cheias de há cinquenta anos. A recessão da actividade agrícola nos 40 anos anteriores deixou os solos nus de vegetação e ao abandono. Consequência da expansão urbana, os terrenos perderam permeabilidade e a água ficou à superfície. Havia “estrangulamentos artificiais” que a impediam de escoar e esgotos igualmente incapazes de a drenar, compila o estudo de Francisco da Silva Costa. Mas o cerne da questão era social. “Na realidade, a água foi muita. Mas se as ‘casas’ (barracas) fossem verdadeiras casas, teriam sido arrastadas pelas águas?”, questionava a 10 de Dezembro o Comércio de Funchal, um semanário crítico do regime. Acossados pelo regime, que os acusava de “perturbarem a ordem”, estudantes e a imprensa não afecta ao salazarismo afastavam a hipótese de o fenómeno natural justificar a dimensão da tragédia. O Solidariedade Estudantil, boletim dos estudantes que se organizaram para apoiar as populações afectadas, deu a conhecer as estatísticas do Serviço Meteorológico Nacional que mostravam que tinha chovido mais no Estoril, uma zona rica de Cascais, onde não houve mortes nem grandes danos materiais. Para o Comércio do Funchal, cita o estudo de Francisco da Silva Costa, a culpada pela maioria das mortes era a “miséria que a nossa sociedade não neutralizou”. “Até na morte é triste ser-se miserável. Sobretudo quando se morre por o ser”, lia-se. Eram “zonas mártires de inundações”, apelidava o Avante!, o jornal do Partido Comunista, então na clandestinidade, na edição de Dezembro de 1967. “As inundações não teriam originado semelhante tragédia se o Governo se tivesse preocupado em resolver da habitação para os trabalhadores, se tivesse cuidado da regulamentação dos rios e da defesa das populações ribeirinhas, se tivesse tomado as medidas de emergência que as circunstâncias impunham. ” “Porque não foram destruídos pelas chuvas diluvianas os bairros residenciais de Lisboa, mas sim os bairros de Urmeira, Olival Basto, Pombais, Quinta do Silvade, Odivelas?”, questionava. A memória colectiva das cheias é escassa. Não há livros publicados. “Não me lembro de a censura ter agido com tanta força noutra altura e isso nota-se”, diz Alice Vieira. “Se as coisas não aparecem nos jornais nem nas televisões, não existiu, não é? As pessoas não se metiam em políticas, como se dizia. Nunca entenderam o que é que aquilo foi. ”A real dimensão da catástrofe “não ultrapassou a espessa cortina da censura”, como nota o estudo de Francisco da Silva Costa, nem mesmo nos anos recentes, quando autores como o geógrafo Fernando Rebelo consideraram as cheias de 1967 uma das três grandes catástrofes em Portugal, juntamente com o terramoto de Lisboa de 1755 e o aluvião do Funchal de 1803. A academia estudou mais os fenómenos meteorológicos e os efeitos no solo do que as consequências sociais e os impactos políticos. E isto, tece a historiadora Ana Paula Torres, que se dedicou ao estudo das cheias no concelho de Oeiras, “é a prova de que esta foi uma das campanhas de silêncio mais eficazes de Salazar”. Vasco Pereira abre a porta de duas voltas e segue de passos rápidos, apoiados numa canadiana, a acender as luzes. Dá a volta à capela de São Sebastião, em Barcarena, e pára depois do altar para apontar para o coro. Era ali, no andar de cima, o quarto dos pais de uma família de sete que “durante anos” viveu na capela. “À entrada, lá ajeitaram as coisas. ” Usavam o pequeno corredor lateral, mas nunca o altar nem o redondo da assembleia daquela igreja agora usada para cerimónias fúnebres. A família perdeu a casa, no Bairro dos Pescadores, para a cheia. Por isso, o padre João — “um canadiano” — ofereceu-lhes a capela por uns tempos. Os filhos ainda casaram por lá. Vasco tinha 35 anos nas cheias. Estava desde os 16 nos bombeiros de Barcarena e já tinha as memórias marcadas pelas explosões na Fábrica da Pólvora. Havia de ver e socorrer outras tantas, mas não há forma de esquecer o domingo da “enxurrada”. “Ninguém sabia o que vinha com a chuva. Mas, quando o domingo passou, os ânimos acalmaram. Olhámos à volta e vimos que afinal em Barcarena não se tinha passado nada de especial. ”Nos dias seguintes, foram recolher e distribuir roupas, alimentos e móveis. Alguns foram ajudar as populações “que acatavam os seus mortos em frente ao Palácio de Queluz”. “Era o ofício dos bombeiros. ” (leia “Às 4h da manhã começaram a chegar cadáveres de homens, mulheres e crianças”, o relatório da corporação de bombeiros de Odivelas nas 48 horas que se seguiram às cheias, associado a esta reportagem)O que não podiam escrever nos seus jornais, Alice Vieira e Fernando Assis Pacheco, acabados de sair do curso de Filologia Germânica, contaram à revista alemã Quick (que saiu de circulação em 1992). “Contámos tudo o que vimos e o que aquilo representava. Aquilo era a falência do Estado. ”A imprensa internacional foi o socorro dos jornalistas nacionais e não escapou, por isso, às amarras do regime. A PIDE interrogou o então correspondente da United Press International, Edouard Khavessian, depois de a agência ter publicado sobre os protestos estudantis contra a inacção do Governo. As estradas em Quintas eram de terra batida, estreitas. Não havia comunicações nem como comprar mantimentos. Os bombeiros foram os primeiros a chegar. Depois, os estudantes. Para Alice Vieira, os bombeiros em Quintas eram iguais àqueles que, um ano antes, tinham estado em Sintra a enfrentar o fogo que consumiu a serra e matou 25 militares. Nem uns nem outros “sabiam como travar aquilo”. “Como se trava uma calamidade destas com tão poucos meios? Sem comunicações. Estava-se preso às cabines. E eles, pobres, nem sabiam bem o que haviam de fazer. ” A GNR e a PSP? “Nada. ”Nos primeiros dias, “as autoridades do regime ficaram paralisadas”. Moveram-se os estudantes, perto de seis mil, uns a pedido das associações católicas, outros pelas suas próprias organizações — entre eles, António Guterres, Diana Andringa, Helena Roseta, José Pacheco Pereira, Marcelo Rebelo de Sousa, Mariano Gago. Aí também os estudantes se aperceberam das condições paupérrimas das populações e da passividade das autoridades. “Não só a mobilização dos universitários foi muito importante, como contribuiu para os universitários verem a realidade do país”, nota Alice Vieira. “Aquilo deu-lhes a imagem do que era o regime. ”Durante duas semanas, os estudantes reuniram-se em Lisboa numa comissão que funcionava na associação de estudantes do Instituto Superior Técnico, da qual fazia parte a Juventude Universitária Católica e associações de estudantes do Porto e Coimbra. Organizaram-se brigadas de estudantes de Medicina que vacinavam contra a febre tifóide, outros limpavam casas e ruas, ajudavam nos funerais, recolhiam e entregavam mantimentos, educavam para a segurança sanitária. No total, compilou o historiador António Araújo, esta comissão deu mais de mil refeições por dia, envolveu 5760 estudantes em 44. 080 horas de trabalho voluntário. E a sua vontade de tirar estes acontecimentos da sombra era quase palpável: a primeira edição do Solidariedade Estudantil, com 10 mil exemplares, esgotou numa manhã. Depois apareceu o Movimento Nacional Feminino, a Cruz Vermelha, a Mocidade e a Legião Portuguesa, as forças armadas. “Andavam por lá freiras e jovens estudantes a lavar casas, nomeadamente em Caneças e em Odivelas”, recordou Raul da Silva Pereira, numa entrevista publicada no livro Habitação e Sociedade. No Natal, a Marinha ainda servia refeições em Quintas. “A dada altura, estava toda a gente lá, mas não como o regime dizia: a nação estava profundamente dividida. De um lado, os estudantes e cidadãos de atitude mais crítica que, não estando inseridos na lógica corporativa do regime, eram logo desacreditados. Do outro, associações do aparelho do Estado”, diz Ana Paula Torres. Há um consenso generalizado: para muitos estudantes, esta foi a primeira tomada de consciência política. Para outros, marcou a ruptura definitiva com o Estado Novo. “Os estudantes saíram da academia e despegaram-se das reivindicações focadas nas questões pedagógicas, na comida da cantina e o preço das propinas, para assumirem um papel de maior intervenção social”, nota a historiadora. António Araújo, no capítulo As cheias de 1967 e o progressismo católico português, na sua tese de doutoramento, vai mais longe: “O movimento de solidariedade teve como efeito não só um conhecimento muito próximo — e dilacerante — da realidade social por parte de milhares de estudantes, como uma politização destes num sentido vanguardista, a ponto de alguns, como Pacheco Pereira e Jorge Simões, afirmarem que foi desde então que o Partido Comunista Português foi ultrapassado no meio estudantil. ” Pacheco Pereira viu um novo país emergir das cheias de 67: “Subitamente, apercebemo-nos de que em Portugal havia gente que vivia na miséria e que todas as estruturas que a deviam proteger não funcionaram. ”Depois, “o regime acordou”. “Os seus ministros multiplicaram-se em reuniões e visitas aos concelhos mais atingidos” — Américo Thomaz, o Presidente da República, foi a Quintas —, fizeram-se inquéritos nas juntas de freguesia, montaram-se postos informativos e atribuíram-se subsídios, enumera Ana Paula Torres. A Cruz Vermelha e a Fundação Calouste Gulbenkian reconstruíram estradas e bairros — por isso se chama Gulbenkian a rua onde Mariana Guerra mora desde 1972. E, recorda António Araújo, “chegaram donativos dos governos britânico e italiano, do principado do Mónaco, e o general De Gaulle chegou a contribuir com uma ‘dádiva pessoal’ de 30. 000 francos”. Espanha ofereceu mil doses de vacina contra a febre tifóide e uma subscrição do Diário de Notícias, em conjunto com a da Cruz Vermelha, arrecadou 25 mil contos de receita. Seguiram-se leis para alterar o regime jurídico dos terrenos e impedir a construção em leitos de cheia. Só aí se tornou “obrigatório o licenciamento dos terrenos privados situados nas zonas críticas e das obras neles inseridas”, prossegue Ana Paula Torres. O “ensinamento da catástrofe” revelou-se “fundamental na legislação portuguesa”, não resolveu tudo, mas permitiu diminuir as “vulnerabilidades” face ao risco de cheia rápida, acreditava o geógrafo Fernando Rebelo. Quando choveu com a mesma intensidade em Novembro de 1983 e em Fevereiro de 2008, a destruição repetiu-se, mas a crise “esteve longe” da de 1967, reparou o especialista no estudo “Um novo olhar sobre os riscos: O exemplo das cheias rápidas em domínio mediterrâneo”. José Saldanha Matos, especialista em hidráulica, também não tem dúvidas de que as cheias de 1967 “aumentaram a consciencialização e o controlo” sobre as construções em zonas de risco. “Há 50 anos, as pessoas tinham muretes na linha de água que foram levados pelas cheias e criaram autênticas barragens e impediram a água de circular. O que já não é possível”, muito à custa das normas da directiva europeia contra as inundações — Directiva-Quadro Água, da criação de zonas especiais e de planos para mitigar os efeitos das alterações climáticas, nota. Os perigos agora, numa região densamente povoada como a da capital, são outros. É certo que as precipitações intensas vão sempre ocorrer — e ainda é muito difícil de prever quando — e “a sua gravidade vai aumentando à medida que o território ocupado também aumenta”. É maior a “cascata de efeitos”, na expressão usada pelo especialista: nos serviços públicos, nos transportes, nas telecomunicações e na energia. E a permeabilidade dos solos cai “drasticamente” com a ocupação intensiva. A continuar esta tendência de o betão tirar lugar ao solo infiltrável, as águas das chuvas vão ficar cada vez mais à superfície e, com isso, “correr mais rápido”. “Agora, acontece que a mesma precipitação dá um efeito mais grave”, sublinha José Saldanha Matos, um dos autores do plano geral de drenagem de Lisboa. Em Quintas, na manhã de domingo, outros corpos foram acatados no largo junto à fonte, onde escadas e portas serviam de maca. Eram lavados, levados para o cemitério. A maioria nunca constou nas contas oficiais. O que o regime não fez, Luísa Fajardo e um amigo, morador em Quintas, quiseram fazer: o registo de todos os que ali perderam a vida, com os seus nomes, idades, famílias. “Foi a nossa forma de dar um nome e dignidade àqueles que perdemos”, os mortos “que Salazar não quis nem ouvir falar”, explica Luísa. “Lembro-me de ouvir: tem cuidado, vê lá o que dizes. Depois da dor, ainda havia o medo. ”Luísa mora na casa que fora dos pais — na altura, de chão de terra sob a telha vã (sem forro). Encostada a um armário com vasos de flores, de camisola de tons rosa, suspira ao fim de uma lufada de recordações. Fizeram-se os funerais. Retirou-se a lama. Limparam-se as ruas. Reconstruíram-se as casas em lugares mais altos — a povoação migrou uns metros para cima. Dificilmente se limpou a memória. Facilmente Luísa se lembra da irmã: é um cheiro, é um toque, é uma expressão mais arrebitada, é o frio, é a chuva. Os novembros “são um desastre”. Não há dia em que não volte àquela noite. “A minha mãe a ficar sem uma filha e sem os pais no mesmo dia foi muito doloroso. Se eu já era adulta porque trabalhava desde os 11 anos, aí eu tive de ser mesmo mulher. Só não o imagina quem nunca perdeu ninguém. Ela ficou de rastos a vida toda. ”Apoio psicológico era coisa “que não se usava”. E 50 anos depois há quem nunca tenha conseguido fazer o luto. “Quanto mais anos passam, mais vincado fica. E a mim estava a acontecer-me isso. A saudade era cada vez maior. ” O tempo não curava e, há poucos anos, Luísa procurou ajuda para não se “aninhar” na tragédia. Ficou melhor. Há dois anos não teria falado connosco. Em 1967, os apoios tardaram. Quando chegaram, foram aproveitados “por quem tinha cabeça para tudo — quem não tinha passado por nada”. Nenhum governo ou associação alguma vez lhe voltaram a falar de ajuda. “Quem procurou procurou, quem não procurou passou e toda a gente se esqueceu”, diz Luísa. “Aos 63 anos, estou a aprender a conseguir viver com isto. Sarou um bocadinho, não curou. Há quem nunca venha a fazer o luto. E é assim. É o país que temos. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Este ano, a terra está seca, pedrosa. Quintas é castanha e verde, com casas brancas, mas mesmo assim parece a Luísa que Novembro chegou mais cedo. De uma maneira ou de outra, a tragédia de Pedrógão Grande e os incêndios de 15 de Outubro entraram naquele lugar e aparecem nos discursos de todos. Até do Presidente da República que, a propósito da divulgação dos nomes das vítimas do incêndio de Pedrogão, recordou como, “há 50 anos, era possível haver tragédias e nunca ninguém percebia bem quais eram os contornos”. Mas Luísa só consegue comparar o “sufoco e uma falta de comunicações tão parecida”. António Macedo fala “na mesma solidariedade” dos portugueses. Alice Vieira recorda a “mesma sensação de ver o mundo a acabar”. Antes das cheias, Mariana Guerra achava que Quintas era um lugar “bonito, de quintais arranjadinhos, com um larguinho que era lindo”. A beleza era também das pessoas — “mesmo sem ser de sangue, era tudo uma família”. Agora, o lixo amontoa-se nos terrenos ao abandono e contorce a memória. “Se aquilo estivesse limpinho, a gente pensava que elas tinham ido trabalhar. Uma pessoa pensava nelas e pensava bem. Assim é uma tristeza. ”Esta reportagem encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO
REFERÊNCIAS:
Entidades GNR PSP
A história do maior conflito na cúpula do capitalismo português do pós-25 de Abril
A guerra entre o Grupo Queiroz Pereira e o Grupo Espírito Santo veio abalar fortemente uma relação de oito décadas. Envolveu irmãos, primos, parceiros. Esta é a história da batalha entre os dois titãs. (...)

A história do maior conflito na cúpula do capitalismo português do pós-25 de Abril
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 1.0
DATA: 2018-08-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: A guerra entre o Grupo Queiroz Pereira e o Grupo Espírito Santo veio abalar fortemente uma relação de oito décadas. Envolveu irmãos, primos, parceiros. Esta é a história da batalha entre os dois titãs.
TEXTO: A guerra entre o Grupo Queiroz Pereira e o Grupo Espírito Santo veio abalar fortemente uma relação de oito décadas. Envolveu irmãos, primos, parceiros. Terminou agora, com a mão do Banco de Portugal, que quis impedir uma grave perturbação no sistema financeiro, que certamente traria consequências à economia. Esta é a história da batalha entre os dois titãs. As batalhas entre accionistas são o terror de qualquer grupo empresarial e as mais mortíferas são as que ocorrem entre irmãos de sangue. E esta foi uma guerra típica familiar. Uma guerra entre “tios”, irmãos e primos Queiroz Pereira. Uma guerra sem diabos nem santos. Uma guerra de interesses e onde o combustível, como quase sempre, foi o dinheiro. Mas os conflitos à volta do Grupo Queiroz Pereira têm vários anos e reflectem um outro dado: a ascensão e a perda de influência do Grupo Espírito Santo. Um núcleo importante do poder económico privado com posições em grandes empresas e que a dada altura acreditou (diz-se) que poderia controlar a Semapa, hoje o maior grupo industrial português. Quando os problemas financeiros, as polémicas — algumas associadas a investigações policiais — e as lutas pelo poder dentro do Grupo Espírito Santo se tornaram evidentes, Ricardo Salgado deixou de ter condições para se manter no Grupo Queiroz Pereira (dono da Semapa, que agrupa a Secil, Portucel, Soporcel e Inapa). E assinou um pacto de separação de águas com Pedro Queiroz Pereira (PQP), pondo fim a uma parceria empresarial de oito décadas. Ricardo Salgado, em processo de sucessão, já não se podia dar ao luxo de ter um corpo estranho (o próprio PQP) na cúpula do Grupo Espírito Santo, com 7% do capital (e ainda muita informação, poder arbitral e capacidade de influenciar). A Revista 2 revela agora os detalhes dos bastidores desta disputa que se travou entre os dois grupos — uma história cheia de incidentes e omissões. Há 12 anos, Pedro Queiroz Pereira, presidente do Grupo Queiroz Pereira (GQP), interrogou Ricardo Salgado sobre quem eram os verdadeiros donos da Mediterranean (uma sociedade luxemburguesa que agregou três offshores, com presença forte na Semapa) e que o BES representava. O industrial conta que sempre ouviu a explicação: “Pertencem a investidores que não querem ser conhecidos, são discretos. ” Não ficou elucidado. Dez anos mais tarde, a resposta de Salgado continuava a mesma. E dois dias depois de PQP ter recusado nomear um delegado da Mediterranean para os órgãos de gestão das holdings familiares, por desconhecer a sua verdadeira titularidade, o BES assumiu, finalmente, o controlo. Foi a gota de água que fez transparecer a discórdia. Se a acção de Salgado foi táctica ou outra coisa, não se sabe. Mas na Semapa (com actividade nas áreas do cimento, do papel e pasta de papel e do ambiente, e a jóia da coroa do Grupo Queiroz Pereira) estas movimentações accionistas são conhecidas como “o assalto à diligência”. PQP foi, nos últimos dois anos, o general das tropas anti-“investida” de Salgado, com um lugar-tenente, Fernando Ulrich (à frente do BPI, que detém 10% da Semapa e que assessorou PQP) e um oficial, José Maria Ricciardi (presidente do BES Investimento, BESI, e opositor assumido de Salgado na família Espírito Santo). Queiroz Pereira acusa Salgado de o ter “iludido” para prosseguir um plano paciente e sistemático para dominar a Semapa, que reconstruiu após a morte do seu pai, Manuel, fundador do Grupo Queiroz Pereira em 1940. Já os círculos próximos de Salgado garantem que o banqueiro nunca quis mandar na Semapa e procurou ainda, por razões de afinidade histórica, proteger as irmãs Margarida Queiroz Pereira Simões e Maude Queiroz Pereira Lagos. Estas, por sua vez, não vendo os seus interesses particulares salvaguardados, recorreram a Salgado, em períodos distintos do tempo, para se defenderem do irmão. Há acções judiciais a correr entre todos, mas sem acusações de ilícitos ou de roubos. Os detractores de PQP não lhe contestam o mérito, mas o caminho que escolheu para dominar: não ouviu ninguém, atropelou quem quis. O industrial discorda: nunca adquiriu para si uma única acção do grupo que herdou. E insiste no argumento central: “O meu pai deixou aos filhos uma empresa, que eu multipliquei infinitamente…” O Grupo Queiroz Pereira tornou-se líder industrial e o maior exportador nacional em valor acrescentado. Em 2012, o volume de negócios da Semapa foi de cerca de dois mil milhões de euros (1, 5 mil milhões de pasta e papel). A Revista 2 ouviu os círculos próximos dos intervenientes e personalidades independentes. Apenas PQP, antes de os acordos com o BES e a família terem sido firmados nas últimas semanas, aceitou comentar aspectos históricos do grupo. Já os restantes actores (BES, Maude Lagos e os primos Carrelhas, accionistas minoritários), por intermédio dos seus advogados e assessores, declinaram abordar o conflito que minou uma relação que remonta às primeiras décadas do século passado. Da fundação à revolução1937. Datam daí os primeiros contactos entre os grupos Queiroz Pereira e Espírito Santo. Manuel Queiroz Pereira, filho de Carlos Pereira, accionista do Banco Comercial de Lisboa, cruzou-se com Ricardo Espírito Santo Silva (avô de Salgado e de José Maria Ricciardi), herdeiro do proprietário da Casa Bancária Espírito Santo. As duas instituições funcionavam paredes meias na Rua do Comércio e decidiram avançar para a fusão. “O Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL) foi desde o primeiro momento presidido por figuras do Grupo Espírito Santo, pois o meu pai, ao contrário dos irmãos Espírito Santo, apresentava-se como industrial. Mas houve sempre um grande entrosamento entre eles”, sublinha, 73 anos depois, PQP. Era, portanto, o começo de uma bela amizade… mas com percalços. Ora, o primeiro desentendimento entre as duas famílias deu-se, na década de 1930, quando Oliveira Salazar decidiu, por decreto, criar uma indústria nacional de refinação e se concertou com Ricardo Espírito Santo numa “parceria-público ou privada”: a Sacor, de capitais públicos e onde o BESCL tinha uma posição, destinava-se a assegurar 100% da refinação e 50% da distribuição de crude. Assim que a Sacor estivesse a funcionar, a capacidade de distribuição da Sonap ia reduzir-se de 40% para 25%. Como a Sonap era detida por Manuel Queiroz Pereira (em conjunto com Manuel Boullosa), o industrial foi surpreendido e não gostou de ver o banqueiro desalinhar dos seus interesses particulares, pois era accionista do BESCL, para além de administrador. Formado em Ciências Económicas e Financeiras de Lisboa, com 17 valores, Ricardo Espírito Santo era mais do que banqueiro. Era polifacetado, mecenas, amante de Amália, era ainda um homem de poder e de grande influência política — visitava Salazar todos os domingos à tarde. “Era brilhante, uma figura proeminente que marcou uma época”, enquanto “o meu pai, embora muitíssimo respeitado, era discreto”, considera PQP. 1937. 17 de Maio. Sain o quê? A Manuel Queiroz Pereira, o nome Martin Sain nada dizia, mas a dupla Salazar e Ricardo Espírito Santo vão envolver na construção da Sacor este romeno, refugiado em Paris. Nesse ano, o Estado concedeu alvará à Redeventza, de Martin Sain, para construir em Cabo Ruivo uma unidade de refinação e de distribuição de petróleo. 1939. 1 de Setembro, início da Segunda Guerra Mundial. Visitar São Bento era um direito reservado a um núcleo restrito. O pai de PQP foi ter com Salazar: “O custo da refinaria [Sacor] está a ser pesado e a deixar ‘comissões’ em todo o lado, Martin Sain não é pessoa fiável. ” De onde vinha o poder de Sain? Com olhar malicioso, o ditador respondeu: “Saiba Vossa Exa. que empreendimentos desta grandeza [Sacor] não se fazem com meninos de coro. ”1949. A 5 de Março, nas vésperas do renascimento da Europa pós-guerra, nasceu, em Lisboa, Pedro Queiroz Pereira, cinco anos depois de Ricardo Salgado (Cascais). Um período que coincidiu com a primeira grande vaga de industrialização do país (obras públicas, barragens, electrificação), a que se seguiram os planos de fomento. A receita é sempre a mesma. Para promover a modernização da economia, Salazar criou o Banco de Fomento Exterior que entrou no capital da Sodim (hoje da família Queiroz Pereira) para construir, em Lisboa, o primeiro hotel de cinco estrelas. E pediu a Ricardo Espírito Santo que juntasse empresários para levar por diante o plano. Após a morte do banqueiro, em 1955, Manuel Queiroz Pereira ficou encarregue de executar a obra. 1960. Os dois sócios da Sonap, Manuel Queiroz Pereira e Boullosa, estão numa encruzilhada porque defendem estratégias diferentes para a empresa e decidem separar-se. O que, na prática, se traduziu numa grande zanga. Amigo de Manuel Queiroz Pereira, o novo presidente do BESCL, Manuel Espírito Santo Silva, aceitou financiar-lhe a compra da posição de Boullosa, pois estava convencido de que este aceitaria vender a sua parte. Mas com o industrial dos petróleos não se brincava, era mais esperto do que imaginavam. Boullosa meteu-se num avião e foi ao estrangeiro levantar os fundos que lhe faltavam. Acabou por ser Manuel Queiroz Pereira a deixar a Sonap. O volte-face deu sururu na época. José Roquette, ex-banqueiro do BES e hoje empresário da Herdade do Esporão, tinha na altura 23 anos e acabara de chegar ao BESCL para assessorar tecnicamente o presidente. E ainda se lembra “que era suposto que fosse o sr. Queiroz Pereira a ficar com as acções, pois tinha mais património [do que Boullosa] e o BESCL era o grande banco. Era alguém de peso na administração, muito activo”. Com a acumulação de capital resultante do negócio da Sonap, o relacionamento entre os grupos Queiroz Pereira e Espírito Santo vai aprofundar-se. A partir daí, o industrial começou a diversificar os negócios sectorial e geograficamente e investiu não só em África, como no Brasil, o que era invulgar na época, mas ajudará o grupo a resistir fora de Portugal após a revolução. 1970. No poder, Marcelo Caetano procurava vias para liberalizar a economia. “Como havia uma clara intenção de forçar o aparecimento de um concorrente no sector dos cimentos dominado por Champalimaud [dono da Siderurgia Nacional], o Rogério Martins [secretário de Estado da Indústria de Caetano] ficou satisfeitíssimo quando o Queiroz Pereira, com capacidade financeira, requereu a instalação de duas novas unidades”, evoca agora Torres Campos, à época director-geral da Indústria. “Ele [Rogério Martins] queria usar a concorrência para contornar o condicionamento industrial, aprovou com o argumento de que ia quebrar o monopólio do Champalimaud. ” E foi assim que a família Queiroz Pereira se envolveu na área dos cimentos, que perdeu com a revolução. Vinte anos depois, PQP voltaria aos sectores da celulose e do cimento, onde a família já tinha estado, ganhando um pouco dos dois. 1971. “Pêquêpê” era amante de ralis e o curso no Instituto Superior de Contabilidade e Gestão estava a ficar para trás. Tinha 23 anos quando foi mobilizado para cumprir o serviço militar em Angola, onde se encontrava no 25 de Abril. Pertencia à elite burguesa da época, que circulava entre Lisboa e Cascais. “A casa dos Queiroz Pereira era a melhor do Restelo [vendida à Embaixada do Brasil depois da revolução], sem comparação com nenhuma das outras e eram todas boas”, recorda um ex-vizinho, hoje no mundo dos negócios, que ainda se lembra de que “os filhos Queiroz Pereira tinham ‘bombas’ em casa que nunca estacionavam na rua como acontecia com as restantes famílias ricas”. E acrescentou: “‘Pêquêpê’ era o segundo filho, um enfant terrible, mas encantador com os amigos, a quem, ainda hoje, gosta de proporcionar boas coisas. ” Onde uns viam um enfant terrible, outros olhavam para um miúdo determinado. Conta Pedro Roriz, ex-jornalista da área automobilística, que o conheceu no Colégio Militar, com 12 anos, “quando já era um desportista, um excelente jogador de futebol”: “Apesar de ter um estatuto que lhe permitiu começar num plano elevado, agarrou no grupo do pai e tornou-o no maior grupo industrial que para mim é o importante. Não vendeu, não fechou, expandiu. Que importância tem ter sido aventureiro se ao chegar a hora da verdade se superou?”1973. No final deste ano, se em África o conflito se agudizava, em Portugal verificava-se uma grande aceleração monopolista. Na revista Análise Social, o académico Américo Ramos dos Santos refere no artigo “Desenvolvimento Monopolista em Portugal” que, entre 1968 e 1973, o núcleo do poder económico era formado por 14 famílias, onde pontuavam os nomes Espírito Santo, Mendes de Almeida, Queiroz Pereira. Um espaço de cruzamentos. Em 1972, PQP casou-se “para a vida” com Maria Rita Mendes de Almeida, de quem tem três filhas [Filipa, Mafalda, Lua]. Nesse ano, em retaliação ao apoio norte-americano a Israel, os Países Exportadores de Petróleo aumentaram em 300% o preço do petróleo. As bombas de gasolina, em Portugal, encerravam ao fim-de-semana. Um dos capitães de Abril, Sousa e Castro [13/3/2000], contou ao PÚBLICO: “Nas vésperas do 25 de Abril, assisti, no supermercado militar, a uma bulha entre clientes para ver quem chegava primeiro às prateleiras. ” “Um factor que ajudou a acelerar a Revolução”, explicou. Relançamento do grupo1974. 24 de Abril. O que em Janeiro valia uma nota de 100 escudos custava agora 133. Na madrugada de 25, na Escola Prática de Cavalaria de Santarém, os relatos contam que o capitão de Abril Salgueiro Maia discursou: “Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados sociais, os corporativos e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! […] Quem não quiser sair fica aqui. ” O batalhão marchou para a capital. Manuel Queiroz Pereira assistiu em casa, em Lisboa, à rendição de Caetano no Largo do Carmo. Manuel Alfredo de Mello, filho de Jorge de Mello do Grupo CUF, estava, então, na dupla condição de militar e filho de industrial [PÚBLICO 13/3/2000]: “Pensou-se que a mudança se reflectiria sobretudo nas saídas de Américo Thomaz e de Caetano. E as declarações de Spínola indicavam que a descolonização ocorreria progressivamente, não se prevendo para a economia grandes rupturas. ” Puro engano. 22 de Agosto. Eis um papel que o povo não imaginaria um ano antes: os ricos sofriam. Excluídos do coração do novo poder, os homens do Estado Novo procuraram refúgio na Confederação da Indústria Portuguesa para se reorganizarem como força viva. Só que a revolução andava a passo de galope e, por esses dias, o Copcon foi ao Ritz buscar Manuel Queiroz Pereira, detendo-o na Polícia Judiciária, até ao dia seguinte. Foi libertado por indicação de Spínola, de quem era amigo. Pouco depois, partiu para Paris, onde se manteve até 1982, entregando ao sucessor natural, o filho mais velho, Manuel, a condução dos negócios em Portugal. Em Outubro, PQP continuava destacado em Angola, quando chegou a Luanda Rosa Coutinho, conhecido por “almirante vermelho”, dada a proximidade ideológica ao PCP. “A ordem era desarmar e nós fazíamos buscas nos musseques com o objectivo de desarmar os pequenos comerciantes portugueses brancos”, evoca agora PQP. 1975. 14 Março. Depois de as chefias e de os gestores dos grupos Mello e Espírito Santo terem sido detidos, a revolução obrigava: foram decretadas as nacionalizações, abrangendo o Grupo Queiroz Pereira. Na imprensa, na televisão e na rádio, circulavam notícias de sabotagem económica, de fuga de capitais para o estrangeiro. PQP que, entretanto, voltara para Lisboa, estava na sede da Cimianto (hoje Semapa), na Avenida Fontes Pereira de Melo, quando chegou a 5. ª Divisão das Forças Armadas. “Levaram-me a minha casa com ordem do Otelo [Saraiva de Carvalho] para abrir o portão, à frente do qual tinham estacionado três viaturas para impedir a saída dos tanques que diziam estar lá escondidos”, revive PQP, quase 40 anos depois. O jovem movimentava-se em terreno inimigo e percebeu o sentido da metáfora: “As pernas tremem como varas verdes. ” Foi o que sentiu ao subir a rampa do jardim, seguido por um cabo que lhe tocava na espinha com o cano de uma metralhadora Uzi: “Nem me digas que o teu pai não roubou tudo isto ao povo, senão é que descarrego mesmo. ” Durante três horas, insistiram que “eu estava a esconder as armas para fazer a contra-revolução”. Quando entraram na garagem, “viram uns pneus próprios de ralis, parecidos com os usados pela Jeep, e perguntaram-me: ‘Onde estão os ‘Jeeps’ da contra-revolução?’” Explicou-lhes: “Eu e o meu irmão participamos em ralis. E identifiquei-me como o ‘Pêquêpê’. O clima aliviou. Os cabos viraram ‘uns tipos porreiros, epá Pêquêpê. . . ’ e já não revistaram mais nada. ”O Brasil adivinhava-se o passo seguinte. “O meu pai acreditava na minha capacidade de empreender e de desenvolver e financiou-me um negócio de café que comecei com 20 mil pés e que chegou aos anos 90 com mais de três milhões. ”Final de 1975. No estrangeiro, a cúpula do GES tentava reagrupar-se. Manuel Ricardo vai procurar o sogro, Fernando Moniz Galvão, e o velho aliado Manuel Queiroz Pereira. “Depois do 11 de Março, o sr. MQP já estava fora e tinha as bases financeiras de suporte para se manter no estrangeiro, mas também para garantir ao GES, entre 1975 e 1984, resistir fora de Portugal e manter-se numa posição que lhe permitiu regressar mais tarde”, sublinha José Roquette. 1976. Manuel Ricardo Espírito Santo perguntou ao industrial com que percentagem pretendia ficar no capital da ES Control, a “mãe” de todas as holdings do Grupo Espírito Santo. O industrial respondeu: “Por mim, não quero nada. Se vos der jeito, posso ficar com o que entenderem. ” E ficou nessa altura com 10, 7% da holding, uma posição que vai estar, 37 anos depois, no epicentro das batalhas entre os dois grupos familiares. Entretanto, fruto das nacionalizações, o Estado assumira cerca de 40% da Sodim (dona do Ritz) e, quando os privados recompraram as acções, Manuel Ricardo Espírito Santo procurou o industrial: “Nós ficámos com a maioria dos activos financeiros que nos ajudou a recuperar, mas o controlo da Sodim deve ficar consigo. ”Já se sabe que Manuel Queiroz Pereira era um homem do Estado Novo. Um dia, um amigo do filho mais velho encontrou-o em Paris e ouviu o desabafo: “Não vale a pena investir em Portugal, aquilo não tem futuro. ” Só que o exílio não era forçosamente o paraíso e o industrial nunca cortou o cordão umbilical com Portugal. Já falava no regresso, continuava a ser um capitalista produtivo. Cada visita de Manuel Queiroz Pereira a Portugal era sentida como um calvário. Um dia disse a Frederico da Cunha, casado como uma Espírito Santo, hoje a trabalhar na Semapa: “‘Venho cá por obrigação, mas não gosto de cá estar, isto atormenta-me. Não gosto de pensar que existem pessoas inteligentes a colaborar com tudo isto. ’ Era de uma enorme lealdade aos seus princípios e severo com o incumprimento da ética. ” Pertencia a uma geração de valores muito fixos e, por exemplo, morreu sem perdoar a António Spínola o ter assumido o marechalato após o 25 de Abril. 1980. A época, por enquanto, é ainda de escassez de liquidez para a família Espírito Santo, que não tinha reconstruído o grupo. Uma irmã Espírito Santo procurou Manuel Queiroz Pereira para lhe perguntar se estava interessado em adquirir-lhe as suas acções da Sodim. Ele concordou, mas avisou-a: “O máximo que posso pagar é 3500$00 por acção. ” Mais tarde, pediu novo encontro com a parceira de transacção. Em causa estava o seguinte: “O Beirão da Veiga [ligado ao Grupo Espírito Santo] telefonou-me porque também quer vender as acções do Ritz. Mas, em vez de 3500$00, pede mais 500$00. Como há três meses te paguei 3500$00, toma lá o cheque com o diferencial. ”1983. Manuel Queiroz Pereira morreu com 77 anos e deixa os quatro filhos surpreendidos com os activos que herdam, nomeadamente em cash. Entre os irmãos Manuel e Pedro Queiroz Pereira, havia uma rivalidade expressa nas corridas de automóveis: “Mêquêpê” era mais veloz do que “Pêquepê”, e mais charmoso do que o mais novo. E era no mais velho que o pai via o garante da perenidade do grupo. Quando morreu, a mãe, Maud (sem e), na altura com 61 anos, entregou-lhe os destinos das empresas. Mas os dois irmãos combinaram repartir entre si responsabilidades. Manuel (com 36 anos) sugeriu a Pedro (com 34 anos) que gerisse os activos industriais (Cimianto, que tinha sido em parte nacionalizada depois do 25 de Abril), enquanto ele se manteria à frente da Sodim (Ritz e negócios imobiliários). O mais novo aceitou. Naquela discussão, as mulheres estiveram fora da equação. Tal como noutros grupos familiares (Mello ou Espírito Santo), o industrial também não programara as duas filhas Maude e Margarida para serem líderes — o que pode lançar alguma luz sobre as tensões que mais tarde se vieram a verificar entre irmãos. Um colaborador do pai recorda uma frase que terá ouvido: “Dizia que não gostava de ver a Maudezinha e a Margarida, que eram novas e vistosas, aparecerem na empresa de mini-saia, porque desorientavam o pessoal. ”As irmãs não ficaram quietas. Depois de um braço-de-ferro, travado na década seguinte, Margarida vendeu as suas acções na Semapa e foi lançar empresas. A mais velha, hoje com 63 anos, continuou ao lado de Pedro. Ao Expresso [122013], Joana Lemos, a sua assessora de imprensa, também ela ligada aos desportos motorizados, esclareceu recentemente, já depois de os dois irmãos terem firmado o acordo: “Maude trabalhou ao lado do irmão, patrocinou a sua gestão e contribuiu para a construção do grupo tal como existe hoje. ” Em Londres, onde vive actualmente a herdeira, entretanto separada do empresário João Lagos, mais do que “mágoa”, os amigos asseguram que o sentimento é de “injustiça”. 1992. Tal como no Grupo Queiroz Pereira, com a morte do patriarca, também no Grupo Espírito Santo, com a morte de Manuel Ricardo Espírito Santo, se abriu um novo ciclo. A família elegeu Ricardo Espírito Santo Salgado, que será o artífice de uma estratégia sustentada numa rede empresarial complexa. A partir de holdings sediadas na Suíça e no Luxemburgo, as operações do grupo invadem zonas nevrálgicas da economia. Fontes próximas do presidente da Semapa — o activo mais relevante do Grupo Queiroz Pereira — recordam que nos anos 1990, e apesar da presença do GQP no GES, “quando o Ricardo Salgado formou a primeira administração do BES não convidou Pedro Queiroz Pereira, optando por ir buscar outros empresários”. O que foi lido nos círculos próximos do presidente da Semapa como uma desconsideração não esquecida. Construir um grupo industrial estava a tornar-se uma fixação para PQP, na altura com 43 anos. E quando, em 1993, foi constituída a Semapa, já tinha em vista participar na privatização da Secil. “Ele [PQP] chegou do Brasil com ganas de reconstruir o grupo, muito na imagem do pai, a quem citava como seu inspirador”, observa José Manuel Galvão Teles, o advogado que o apoiou nesse período. Quando o Governo anunciou a venda da Secil, não hesitou. Numa primeira fase, o irmão Manuel, mais reservado, levantou questões, mas acabou por aceitar. E se os irmãos Pedro e Maude queriam dar um passo em frente, a mais nova, Margarida, não se convencia [Expresso 1995]. 1993. O Grupo Queiroz Pereira está prestes a sofrer o seu segundo rombo que levou a nova mudança de liderança. Um dia, durante uma reunião de trabalho para preparar as obras de reformulação do Ritz, Manuel, a quem tinha sido diagnosticada uma leucemia e que estava a ser acompanhado num hospital em Paris, recebeu um telefonema a informá-lo de que PQP era compatível para o transplante e que devia partir imediatamente. Mas não vai resistir à intervenção, e a 4 de Março morreu na capital francesa. A mãe Maud voltava a estar perante o dilema: a quem entregar a chefia do grupo cujo controlo o marido quis deixar aos filhos, seus continuadores? A uma equipa profissional (family office)? Mas como PQP mostrava empenho, Maude aconselhou a mãe a confiar a gestão ao irmão, o que a deixa hoje com amargos de boca. A irmã Margarida debatia-se com o problema: tem 20% das holdings do grupo — Cimipar, Cimigest e Sodim — mas não tinha comprador. Só os irmãos podiam estar interessados. A família pediu-lhe paciência. Ela deu-lhes 15 dias. Margarida tinha então 40 anos e pressa. O advogado Carlos Adrião Rodrigues surgiu, pouco depois, com acções das holdings em seu nome, a convocar assembleias gerais e a gerar burburinho. Quando lhe perguntavam por que não vendia, resistia: “Estou muito interessado nos cimentos. ” Anos depois, Margarida informou os irmãos de que tinha recomprado a posição a Adrião Rodrigues. 1994. Com a privatização da Secil a rolar no mercado, o industrial procurou Eduardo Catroga, ministro das Finanças. E apresentou-se com o carimbo de garantia de idoneidade, acompanhado de dois colaboradores da Semapa, Frederico da Cunha e Alberto Falcão, ex-colegas de Catroga no grupo Mello. O ex-ministro relata à Revista 2 o que ouviu: “[PQP] Veio assegurar-me que estava a fazer todos os esforços para conseguir uma engenharia financeira que lhe permitisse disputar a Secil. ” Catroga respondeu: “Vejo com bons olhos, pois a lei das privatizações define que o processo deve contribuir para fortalecer os grupos portugueses. ”A meio do negócio, a irmã Margarida apareceu a levantar obstáculos, conforme divulgou então o semanário Expresso. Catroga lembra-se: “Pedro pediu para voltar a falar comigo para garantir que, apesar do conflito com a irmã, tinha a engenharia financeira praticamente montada e que não seria isso que o impediria de adquirir a Secil. ”19 de Abril. Com a privatização concluída, PQP está em condições de arrancar com a primeira vaga de desenvolvimento do grupo pós-25 de Abril. Venderá, pouco depois, 49% da Secil à CRH (grupo irlandês de materiais para construção) para se capitalizar. Mais tarde, vai querer recomprar as acções, e entrou numa bulha com os irlandeses. Em 2011, para recuperar o domínio da Secil, por sentença de um tribunal arbitral, PQP teve de pagar 574 milhões de euros à CRH. O primeiro stress entre Pedro Queiroz Pereira e Ricardo Salgado remonta a meados da década de 1990. Uma das cláusulas do sindicato bancário (grupo de 11 bancos que financiaram PQP na compra da Secil, liderado pela Caixa Geral de Depósitos e pelo BES) impedia os accionistas da Semapa, com acções hipotecadas aos bancos credores, de as venderem até o empréstimo ser liquidado. O BES tinha uma posição no grupo. “Três meses depois do acordo, Ricardo Salgado mandou transferir as acções para os fundos de investimento geridos pelo banco e que pertencem aos clientes”, conta PQP. “O sindicato bancário podia ter-nos exigido o pagamento integral do empréstimo, uma vez que tinha sido violada uma cláusula do contrato”, acrescenta. O que disse Salgado? “Que se tratava de um movimento sem importância, pois preferia ter a posição da Semapa em fundos de investimento geridos pelo BES. ” Ou seja: o banco não aplicava fundos directamente e mantinha poder de decisão. 2000. Este foi um ano em que todos gostavam de ter Ricardo Salgado como amigo. Com os canais de liquidez oleados, o BES estava a beneficiar de uma época de prosperidade e tornava-se um núcleo importante do poder económico privado, com influência na sociedade e no Estado. As forças políticas PS, PSD, PP sempre conviveram bem com o BES, aí recrutando governantes (três exemplos: os ex-ministros da Economia Manuel Pinho e António Mexia, e o social-democrata Miguel Frasquilho). Em 2012, ao PÚBLICO, depois de ter apoiado em simultâneo Sócrates e Passos Coelho, o banqueiro justificou-se: “O BES relaciona-se com todos os partidos e limita-se a ter um relacionamento institucional com os governos. ”Assistiu-se nesta fase à construção de posições do banco em grandes empresas como a PT e a EDP (acções que agora tem estado a alienar). Tudo isto a par e passo com os negócios em Angola, em áreas estatais, via Escom (uma holding instrumental do GES, que há dois anos está em processo de venda ao Estado angolano). Data também desse período a conexão do BES aos donos da Ongoing — Nuno Vasconcellos e Rafael Mora —, instrumentos de uma estratégia de poder. Os jornais falavam, então, em mexidas nos bastidores para entregar à Teixeira Duarte (TD), que já possuía 18%, o controlo da Cimpor. Mas PQP não andava distraído e surpreendeu ao aliar-se à suíça Holcim para lançar uma oferta pública de aquisição (OPA) sobre a cimenteira portuguesa. No dia da OPA, informou o BES de que seria o espanhol Banco Santander o líder do sindicato bancário, mas que salvaguardara para o BES a posição de co-líder. E justificou-se dizendo que os bancos portugueses não tinham balanço para o financiar. No BES, o acto de “independência” de PQP foi lido como traição. Quase seis décadas depois da aliança entre Salazar e Ricardo Espírito Santo, na Sacor, PQP viu a cena repetir-se. O poder isolava-o. Havia sinais de movimentações partindo do ministro das Finanças Joaquim Pina Moura para que Ricardo Salgado encabeçasse a resistência à OPA de PQP sobre a Cimpor. Verdade ou imaginação? O BES surgiu, pouco depois, a apoiar a francesa Lafarge na compra de 17% da cimenteira nacional, o que contribuiu para a OPA ser travada. 2001, 31 de Dezembro. Foi num quadro de consolidação da influência do Grupo Espírito Santo na economia portuguesa que se vão dar, daqui em diante, várias transacções à volta do Grupo Queiroz Pereira. Nesse ano, o BES elevou o capital em 500 milhões de euros, com as acções a negociarem-se a 14 euros cada. A herdeira mais nova de Manuel Queiroz Pereira não tinha, evidentemente, digerido o conflito com os irmãos. No restrito mercado da banca de investimento, falava-se à boca pequena que, por troca das acções das holdings do Grupo Queiroz Pereira, a irmã mais nova, Margarida, assumira cerca de 2% do BES. No meio, havia crédito da instituição. Uma operação de 30 milhões. Por enquanto, ainda nada se saberá. 2002. Suspeitas fundadas. Por carta, Margarida comunicou aos irmãos que vendera as suas acções, sem revelar a identidade do comprador. Daí a alguns dias, o BES surgiu, em nome de terceiros, a representar a Gaunlet, a Allord e a Relcove, que tinham adquirido as posições da herdeira mais nova. Uma das rotinas dos parceiros empresariais são as reuniões periódicas. Numa delas, logo a seguir, PQP questionou Salgado sobre o verdadeiro interesse das três offshores na Semapa, ao que foi esclarecido: “Disse que não estavam nem vendedoras, nem compradoras, nem tão-pouco queriam tomar posição estratégica no nosso grupo. ”2004. Agora, era a Portucel/Soporcel que aparecia na mira da Semapa. Pela frente, na privatização de 30% da empresa, PQP tinha Belmiro de Azevedo, com 29%. Sabendo do passado do engenheiro em matéria de confrontos, o industrial quer evitar desentendimentos. “O eng. Belmiro de Azevedo disse-me que não ia à operação e eu pedi-lhe se ele me vendia as acções, o que acabou por fazer”, conta agora PQP. A compra de 60% da Portucel dará origem ao segundo salto de crescimento da Semapa após o 25 de Abril. 2005. Bancos, seguradoras, fundos de investimento giravam, agora, em roda livre. Para o ex-governador do Banco de Portugal Jacinto Nunes, “o sistema financeiro, em especial o anglo-saxónico, entrou numa coboiada que permitiu o endividamento que deu a bolha que estourou em 2008”. Foi precisamente a um fundo australiano artificialmente capitalizado, o Babcock & Brown, que, antes de o ano terminar, PQP vendeu a Enersis, uma start-up criada em 1998 dentro da Secil. Um negócio que lhe rendeu uma mais-valia de 377 milhões de euros. Quatro anos depois, o Babcock & Brown faliu e arrastou para o fundo os pensionistas australianos. 21 de Dezembro. Oito meses depois da eleição como primeiro-ministro, na agenda de José Sócrates entrou o tema PQP. Circulavam rumores sobre a possível construção da fábrica da Portucel no estrangeiro, o que o levou a convidar o industrial para um pequeno-almoço em São Bento. Eram 8h da manhã quando entrou na residência oficial do primeiro-ministro, acompanhado de um dos seus braços-direitos, José Honório. Tinha à espera um batalhão de assessores, incluindo o ministro Manuel Pinho, e o presidente do ICEP, Basílio Horta. O que pode haver de mais convincente?PQP lembra como Sócrates foi direito ao assunto: “Dizem-me que quando comprou a Portucel se obrigou a fazer a fábrica em Setúbal. ” Ele contestou: “Se lhe dizem isso, então dizem-lhe mal, sr. primeiro-ministro. Mas diga-me onde consta, pois quero cumprir com as minhas obrigações. ” Em simultâneo, o industrial confirmou que “a fábrica podia ir ou para a Alemanha ou para o Brasil”. Sócrates não gostou do que ouviu e esgrimiu o argumento extremo: “Se não fizer cá a fábrica, eu coloco em causa a privatização. ” PQP não resistiu, lançou a ameaça do tribunal: “Se preferir essa via, daqui a 15 anos encontramo-nos a ver quem tem razão. ”O industrial questionou a audiência: “Porque hei-de ficar em Portugal, se posso estar na Alemanha, no coração do consumo?” Quem esteve presente assistiu à cena. José Honório avançou com uma lista de exigências com 49 pontos. “Para a Auto Europa, o Estado fez um porto e a Portucel, enquanto exportadora líquida, até é mais importante. A nova fábrica dará origem à saída diária de 500 camiões de contentores. Mas as estradas de Mitrena são estreitas, sem condições para escoar a mercadoria. ”Sócrates insistia na unidade em Setúbal. “Se o sr. primeiro-ministro sentir coragem para dobrar as forças vivas, eu farei aqui a fábrica. ”Já fora de São Bento, PQP deu indicação ao colaborador para mudar a agulha do investimento para Portugal. Oito anos depois, diz PQP, “é verdade que Sócrates não cumpriu os pontos todos, mas o que me motivou foi ver a grande vontade dele em que a fábrica ficasse cá e em resolver os obstáculos. Subsídios? Recebia em qualquer dos lados”. PQP afirma-se como “o industrial” português2006. Este foi um ano em que os lucros da Semapa recuaram de 164, 3 milhões (em 2005, a venda da start-up Enersis gerou uma mais-valia substancial) para 91, 3 milhões. Mas os sete executivos da Semapa receberam 18, 199 milhões de euros, ou seja, uma média de 2, 6 milhões por cabeça. Uma medida que acabou por gerar controvérsia. 2007. Muito antes de PQP e Maude entrarem em litígio, já os primos Carrelhas (filhos de uma tia de PQP), minoritários nas holdings familiares, tinham desencadeado as hostilidades. Carlos Pardal (casado com uma herdeira Carrelhas) questionou, entre outras coisas, as orientações do presidente do grupo, nomeadamente devido às elevadas remunerações aos gestores. Ora, os investidores minoritários vivem o eterno drama: não têm veleidades de chegar ao poder para impor caminhos favoráveis (dividendos, bónus, nomeações). E ou vendem ou são bem remunerados. A estratégia de PQP passava por não distribuir o grosso dos dividendos pelos accionistas, retendo-os nas empresas (Portucel e Secil). Uma fonte do sector argumentou que “um dos problemas dos accionistas é quererem garantir dinheiro imediato, o que é legítimo, mas não olham para as estratégias a longo prazo”. Ainda assim, um operador de bolsa diz que “quem entrou no início na Semapa tem tido um retorno médio anual de 20%”. Para quem acompanhou as lutas dentro da Semapa, foi em meados de 2007 que começou a ser equacionado um novo capítulo de confronto. PQP voltou a tentar apurar quem se escondia por trás das três sociedades representadas pelo BES. Porém, chegar à verdadeira titularidade de qualquer offshore é como procurar uma agulha num palheiro. A sede do BES, na Avenida da Liberdade, no 15. º piso, onde Salgado tem gabinete, era o ponto de encontro semestral. Foi aí que PQP lhe transmitiu a vontade do seu grupo em adquirir as acções detidas pela Gaunlet, a Allord e a Relcove. Segundo o industrial, o banqueiro disse nada poder fazer, pois as acções não pertenciam ao BES, que era o mero gestor, e os proprietários não estavam vendedores, nem queriam ser conhecidos. A partir daqui, há novos registos de contactos, mas até haver uma clarificação os dois vão continuar a brincar ao jogo do gato e do rato. Antes do fecho de 2007, as três offshores juntaram-se na sociedade luxemburguesa Mediterranean. Salgado não baixava a guarda. PQP invoca que ele lhe repetiu que “a Mediterranean pertencia a investidores ingleses e noruegueses”. As evasivas de Salgado deixavam o industrial da Semapa “nervoso” e vão contribuir para o conflito que vai estourar daí a quatro anos. 2008. Entretanto, os sobrinhos Manuel e Matilde, filhos do irmão mais velho Manuel, vão afastar-se das três holdings familiares, vendendo as suas acções e entregando a gestão da fortuna a um family office. Mas tornam-se accionistas directos da Semapa e da Portucel, onde se fazem representar por um executivo, Vítor Gonçalves. “O Pedro tem sido bom para os garotos [os sobrinhos], de quem gosta e a quem procurou proteger os interesses, mesmo quando, na família, tentaram voltá-los contra ele”, refere um amigo dos irmãos Queiroz Pereira, que declinou identificar-se, por não querer tomar partido no diferendo familiar. E lembrou: a 5 de Março de 1993, “dia em que o irmão Manuel foi enterrado, em Lisboa, é o dia em que o Pedro e o sobrinho Manuel fazem anos”. 2009. 6 de Novembro é uma data que PQP dificilmente esquecerá, pois representou a sua consagração pública como “o industrial” português. Nessa manhã, o Presidente da República Aníbal Cavaco Silva estava em Setúbal a participar na inauguração da nova fábrica da Portucel/Soporcel e preparava-se, também, para condecorar o patrão da Semapa com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Industrial. Num discurso comovido, perante o Presidente e os colaboradores, PQP assumiu-se como o vértice da pirâmide: “Sou eu que a recebo [condecoração], mas ela é oferecida a todos os meus colaboradores, entre eles, o Carlos Alves e o José Honório. ”Do pai, PQP reteve: “O problema não é os ricos terem muito dinheiro, o problema está na utilização que dão aos recursos ao seu alcance. Uns usam o dinheiro para produzir mais desenvolvimento, mais postos de trabalho e arriscam; outros dizem: já tenho o meu, quero lá saber. ” Conclui: “Eu não sou assim. ” “Hoje, se o pai ressuscitasse, tirava o chapéu ao filho mais novo, em quem nunca acreditara”, refere agora um ex-ministro do pós-25 de Abril que se cruzou com o industrial. E remata: “Ele reconstruiu o grupo com bom senso, aproveitando as oportunidades e rodeando-se dos melhores. ”O BES/GES era uma peça importante da engrenagem e, entre 2009 e 2012, no meio de grande confidencialidade, tornou-se um accionista do Grupo Queiroz Pereira (sustentado num esquema complexo de três holdings, Cimipar, Cimigest, Sodim, que se cruzam entre si com o mesmo objectivo: a Semapa geradora lucros) com maior peso do que os irmãos Maude (8%) e Pedro (8%), mas não da mãe Maud, aliada de PQP. Naquele período, o GES reforçou a sua presença na Cimigest (de 20% para 40%) e na Sodim (20%), as únicas onde estava presente, o que lhe permitiu dominar indirectamente cerca de 20% da Semapa. Um dos “vendedores” foi Joe Berardo, mas o movimento derivou da execução de dívida ao BES. 2011. Antes de o ano terminar, PQP comunicou aos accionistas da Cimipar (onde o BES não estava e que era detida em 40% por PQP, 40% por Maude Lagos e 20% pelos Carrelhas) que ia alienar 10% da Cimigest à Sodim (posição contabilizada em 36 milhões). A razão? A Cimipar (capital social de um milhão) estava falida, com dívidas ao BES e a PQP e a Maude de 30 milhões de euros. Uma transacção que vai mudar a relação cordial entre investidores. Mas passou um ano até que o BES, Maude e os Carrelhas argumentassem que os equilíbrios internos tinham mudado. Estala a discórdia2012. Em Janeiro, o presidente da Semapa executou a venda por 17 milhões de euros e pagou dívida ao BES. A transacção foi aprovada por todos os administradores das holdings e teve luz verde em AG. “O Pedro pensou: tenho de controlar o meu grupo, que herdei do meu pai e que expandi em mais de 90% e tenho de ‘afastar’ toda a gente”, diz um dos intervenientes do conflito. “E foi tomando decisões sem ouvir ninguém. Mas sem pagar o prémio de controlo. ” Uma tese que as hostes de PQP contestam: “O industrial tem desde sempre a mesma posição accionista da irmã, a Cimipar estava falida e a operação foi aprovada pela Maudezinha. ”Nos primeiros meses do ano, o industrial continuava determinado em descobrir quem estava por trás da Mediterranean. A irmã Maude colocava questões e ele temia, agora, ser surpreendido com uma acção hostil dos seus accionistas (BES, Maude e Carrelhas). Semanas antes de a Cimigest eleger os novos órgãos sociais (onde a sociedade luxemburguesa estava representada pelo BES), PQP procurou Salgado: “Pergunto-te uma última vez: quem são esses senhores da Mediterranean que representas e que nós não conhecemos?” O banqueiro repetiu o que sempre lhe dissera e PQP pediu-lhe que fizesse chegar aos “clientes” uma oferta. Ora, o banqueiro é redondo a falar, binário a actuar: se interessa ao BES, faz, se não interessa, deixa cair. Para mostrar que a Mediterranean não estava vendedora, explicava: “Eles não querem receber propostas, nem ser conhecidos, são discretos. ” Aos ouvidos do parceiro industrial, o disco estava riscado. As palavras de pouco servem sem gestos persuasivos. O episódio faz parte dos processos judiciais a correr no quadro da guerra accionista. A meio de 2012, semanas antes da data da reunião magna da Cimigest, PQP começou a deixar cair sinais de que não reconduziria Rui Silveira, o gestor do BES, indicado por Salgado para representar a Mediterranean. Antes do encontro, o BES comunicou o desejo: a Mediterranean queria nomear um delegado para a gestão. PQP reagiu à patada. “Não conheço os senhores da Mediterranean e sem os conhecer, não meto ninguém no board. ” O recado estava dado. Junho de 2012. O mistério ia ser esclarecido. Nas vésperas da AG da Cimigest, o GES comunicou, então, que ia adquirir a Mediterranean. O industrial propôs-se formalizar uma oferta, em nome do grupo, e dirigiu uma carta ao líder do GES, António Ricciardi. Pouco depois, Ricciardi notificou o mercado de que a Espírito Santo Resources (holding para os negócios financeiros) tinha assumido a Mediterranean. Hoje, PQP não perdoa a Ricardo Salgado o pecado capital de lhe ter “escondido”, ao longo de dez anos, que o BES era o verdadeiro proprietário das sociedades accionistas, o que “se traduziu”, do seu ponto de vista, “num plano” secreto para dominar a Semapa. Por seu turno, os círculos do banqueiro alegam que a suposta “ocultação” partiu de um “pedido da Margarida”, isto, apesar de, em 2003, a herdeira ter informado os irmãos de que deixara as holdings familiares. Do lado do BES, “a tese conspirativa de PQP” sobre a eventual tentativa de domínio da Semapa é contestada: “Se fosse assim, porque é que Manuel Fernando Espírito Santo lhe vendeu acções da Sodim?” A isto uma fonte da Semapa encolhe os ombros. Final de 2012. Depois de ter sido o único grande banco a dispensar a recapitalização com verbas públicas, o BES começava a dar sinais de vacilar. O impacto da crise financeira e económica prolongada, as exigências regulatórias e as orientações seguidas na instituição, com excesso de exposição ao imobiliário, tiveram consequências: aumento do crédito malparado, maiores imparidades (perdas potenciais). O cenário impediu Ricardo Salgado de ser “generoso” com a família e obrigou-o a desacelerar os financiamentos às empresas do grupo. Tal como o PÚBLICO noticiou a 18 de Setembro, entre 2008 e 2013, em alternativa ao apoio do BES, a gestora de fundos do grupo recorreu aos clientes da instituição para financiar em larga escala (2, 2 mil milhões de euros) a área não financeira através de dois fundos, o ES Liquidez e o ES Rendimento. Uma via polémica. Já este mês, a 12 de Dezembro, o The Wall Street Journal veio dar grande ênfase ao tema na primeira página do seu site. Há uma certa unanimidade na interpretação: Ricardo Salgado esteve sempre ao lado das duas irmãs de PQP, alegando uma parceria histórica entre as duas famílias e uma relação pessoal. A cumplicidade manteve-se quando Maude Lagos entrou em rota de colisão com o irmão. E no último mês de 2012, Salgado e Maude assinaram um acordo de tag along (um mecanismo de protecção dos investidores minoritários), que garantiu a cada uma das partes que, em caso de venda das suas acções da Cimigest e da Sodim, a outra teria o direito de acompanhamento ao mesmo preço e em idênticas condições. A fronteira entre a obsessão e a necessidade de conhecimento pode parecer, às vezes, um pouco turva. O industrial acreditava numa coisa: que no seu “gabinete” Ricardo Salgado tinha uma aliada, a sua irmã Maude Lagos. Dentro da Semapa, à volta de PQP, fala-se no “assalto à diligência”. Sendo accionista do GES (7%), o industrial sabia das divisões internas e que a família Espírito Santo sofria o impacto da mudança do ciclo económico. E preparou-se para um braço-de-ferro. Por essa altura, realizou-se uma reunião no conselho superior do GES onde PQP participou (apesar de não integrar a estrutura) e que estabeleceu a normalização do relacionamento entre os dois grupos. 2013. Nos primeiros meses do ano, são desencadeadas negociações. Salgado sugeriu, então, um pacto parassocial, onde reconhecia a liderança de PQP na Semapa, mas queria ter decisão em matérias estratégicas. O plano foi chumbado. Em contrapartida, PQP avançou com uma oferta de aquisição das acções do GES nas holdings familiares, que este recusou. O BES exigiu-lhe um prémio de controlo. Mas a capacidade de manobra de Salgado estava diminuída e a partir daqui PQP vai jogar os trunfos todos. É corredor de automóveis, talvez não se importe, por vezes, de passar fora da curva, de ir até ao limite do risco. Uma tese que recusa com irritação: “Não tem que ver com os automóveis, é da minha natureza, da capacidade de formar equipas, de ter sócios, da vontade de empreender. Nunca pus em risco os activos do grupo, o que seria extremamente arriscado era não ter feito nada. ” Insiste sempre: “O meu pai deixou aos filhos uma empresa, que eu multipliquei infinitamente, sem pedir um único euro aos accionistas, nunca houve um aumento de capital. Fiz tudo com o pêlo do cão [e dívida], com o que sobrou do 25 de Abril. ”Entretanto, a Cicleleader, sociedade dos primos Carrelhas, enviou uma carta ao industrial com um conjunto de questões sobre a operação do ano anterior, de venda, pela Cimipar, de 10% da Cimigest à Sodim. A resposta foi enviada em 15 dias. Só nessa altura é que os Carrelhas perceberam que a operação mudara a configuração accionista. Depois disso, formou-se uma “aliança” de interesses entre o BES, Maude e Carrelhas. A guerra com PQP tornou-se inevitável. Os momentos que se vão seguir são de grande litigância: a troika accionista disparou com 14 providências cautelares a pedir a anulação da venda das acções da Cimigest à Sodim. Foi num quadro de aceleração que a 24, 28 e 29 de Maio , se sucederam as AG inflamadas no Grupo Queiroz Pereira e que resultaram na destituição de Maude Lagos dos órgãos sociais e no seu afastamento da Sodim, onde geria o Ritz e o Hotel Villa Magna, em Madrid. Em paralelo, continuavam as negociações que serão acompanhadas até ao final, do lado do BES e de Maude, por Francisco Cary, do BESI, e pelo advogado Luís Cortes Martins. Maude Lagos foi também assessorada por Gabriela Martins. Por seu turno, PQP atravessou-se com Fernando Ulrich (o BPI tem 10% da Semapa), que há quase duas décadas mantém com Salgado (de quem é, aliás, primo) uma relação distante que resultou de uma concentração falhada entre os dois bancos. Ricardo Pires e Miguel Ventura, colaboradores de PQP, acompanharam Ulrich. Já os Carrelhas indicaram o advogado Tito Arantes Fontes. Julho. No dia de aceitação do grau de Doutor Honoris Causa, entregue pelo reitor do ISEG, Ricardo Salgado surgiu a mostrar grande respeito pela família Queiroz Pereira e pelas tradições “como parte do código genético do GES”. Setembro. A comunicação social é por vezes usada como arma. Os adversários da Semapa, no GES, alegam que à mesa das negociações o industrial deixou um aviso: “Ou me dão o que eu quero, ou ponho uma equipa a colocar tudo nos jornais. ” Inquirida sobre o tema, a Semapa negou-o. Mas todos terão sido “cúmplices” em esgrimir o mesmo argumento da comunicação social. A 31 de Agosto, os conflitos internos no GQP começaram a ser descarregados no espaço público, depois de as primeiras acções e providências cautelares terem caído nos tribunais. O Expresso noticiou: “PQP é acusado pela irmã Maude de controlar ilegalmente o grupo. Este diz que o GES quer ficar com a Semapa. ”7 de Setembro. Ricardo Salgado estava de visita aos balcões do BES nos Açores quando mandou testemunhos de boa vontade: “O grupo quer ser parte da solução e não do problema. ” Só que o BES preparava-se para descer à terra e juntar-se aos outros bancos para divulgar prejuízos (381 milhões de euros). Outono. As maratonas negociais são um traço das guerras familiares. No Verão, o governador Carlos Costa dirigiu avisos a Salgado para que chegasse a acordo com PQP, de quem recebera mensagens com “muita informação”. E em Outubro, no pico da tensão accionista, o Mercedes topo de gama cinzento metalizado do industrial foi visto a estacionar à porta do BdP. PQP estava acompanhado de um colaborador “carregado” de documentação. Mau sinal. Os dois reuniram-se com o vice-governador Pedro Neves e o director José Queiró, com a supervisão prudencial. Uma fonte da instituição garantiu que do encontro nada transpareceu. Só que, a partir dali, Carlos Costa já não podia ignorar que tinha os dossiers em cima da mesa. O vice-governador chamou Salgado ao BdP a quem pediu esclarecimentos, que este terá dado. O BdP queria impedir que do confronto nascesse uma vulnerabilidade para o sector financeiro. Em paralelo, o primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, pediu a Eduardo Catroga que colaborasse no consenso. Nesse período, existiu ao mais alto nível uma preocupação real de que do conflito pudesse resultar uma perturbação muito grave em dois dos maiores grupos portugueses, GQP e GES, com impacto na economia e, por arrastamento, na população. Um risco que não foi perceptível para a opinião pública porque, meses depois, Salgado e PQP assinaram o acordo. Accionistas celebram a pazFinal de Outubro. Nesta fase, já as hostilidades tinham ultrapassado a mera dimensão da Semapa. Com a ida do industrial ao BdP, o núcleo duro dos problemas de Salgado passou a estar no coração do GES, onde se travava (e trava), em surdina, um combate entre primos direitos. A atitude desafiante de PQP, accionista do GES, com poder arbitral, contribuía para a estratégia anti-Salgado do presidente do BESI. Ricciardi e PQP têm, ainda hoje, uma relação menos infectada e, por vezes, assumem, nos negócios, estilos de actuação de pit bulls. Num contexto de luta de poder pela liderança do GES/BES, a acção de Ricciardi culminou (já depois do acordo entre Salgado e PQP) em declarações públicas de falta de confiança no presidente do banco, isto, horas depois de o Jornal de Negócios ter publicado um trabalho sobre a sucessão de Salgado — “O golpe de Estado ao estado de golpe no GES”. A família percebeu rapidamente que o diferendo, ao ser dirimido à vista de todos, arriscava tornar-se o folhetim do ano. E 24 horas depois retirou-o do espaço público com um comunicado assinado pelos dois primos direitos. Mas é evidente que as movimentações internas continuam e que o BdP está a vigiar o que se lá passa. Finalmente, o acordo entre Salgado e Queiroz Pereira. O caminho que estava a ser trilhado já não interessava a nenhuma das partes. E beneficiou do “dedo” de Ricardo Abecassis Espírito Santo Silva, amigo de PQP, a viver no Brasil. Dizem que foi o luso-brasileiro que ajudou a desatar o consenso. Mas que foi José Maria Ricciardi quem apareceu a carimbar a paz. Parceiros há 80 anos, os grupos Espírito Santo e Queiroz Pereira selaram um pacto de separação de águas (o BES saiu do GQP e o GQP saiu do GES). Os Carrelhas aproveitaram e saltaram fora. Mas Maude Lagos só apertou a mão ao irmão um mês depois. Há uma pergunta legítima: sem as divisões accionistas, sem as polémicas (Escom, Submarinos, Sobreiros, Monte Branco, Operação Furacão, Álvaro Sobrinho, escutas telefónicas, venda de acções da EDP, revisão da declarações fiscal por parte de Salgado, escutas a Ricciardi) e sem as contingências financeiras no GES, PQP teria tido margem de manobra para impor a saída do parceiro? Dificilmente. Se o cenário fosse mais favorável, presumivelmente, não haveria guerra interna no GES, os escândalos envolvendo Angola já teriam sido compensados de qualquer maneira. O mais provável é que Salgado ou não fechasse o acordo tão rapidamente ou forçasse PQP a vender as acções ou, ainda, que optasse por ficar na Semapa. O fim dos tumultos entre PQP e o GES, tal como o Expresso já divulgou, implicaram que PQP escrevesse uma carta ao BdP a garantir que as suas dúvidas sobre a má gestão do Grupo Espírito Santo estavam sanadas. E o BdP já pediu esclarecimentos ao BES para saber quais os efeitos patrimoniais do acordo com PQP. Os mercados financeiros admitem que num futuro não muito distante se possa abrir outro capítulo, quando os três irmãos e os dois sobrinhos forem chamados a lidar com a herança da matriarca, Maud Queiroz Pereira, com 99% da Vertice e 30% da Sodim. De fora do acordo entre os dois irmãos e tal como defendeu Maude Lagos, ficou a Quinta de Vialongo, no Ribatejo, avaliada em muitos milhões de euros e onde cada herdeiro de Manuel Queiroz Pereira detém 25%. A mãe é a usufrutuária. Mas não é provável que o poder de PQP (que tem tido desde o primeiro momento o apoio da mãe, de quem é, aliás, muito próximo) seja de novo posto em causa. O industrial é, assim, aparentemente, o vencedor da guerra. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Problema? Qual problema? O mundo dos negócios é mesmo assim. O acordo entre PQP e a troika accionista (BES, Maude Lagos, Carrelhas) trouxe entre 150 e 180 milhões de euros e um compromisso: o silêncio. Hoje, quem ouvir qualquer uma das partes, em público, não pode deixar de ficar com a sensação de que a guerra nunca existiu. Oficialmente, a paz chegou, portanto. Nada de mais enganador. Nunca pedi um único euro aos accionistas, nunca houve um aumento de capital. Fiz tudo com o pêlo do cão, com o que sobrou do 25 de Abril PQP Partilhar citação Partilhar no Facebook Partilhar no Twitter PUB
REFERÊNCIAS:
Raed Fares foi assassinado e deixou “a Síria inconsolável”
Autor dos cartazes que fizeram da pequena Kafranbel a “consciência da revolução”, era uma das vozes mais respeitadas entre os que recusavam capitular perante o regime e os extremistas que sequestraram a revolta. (...)

Raed Fares foi assassinado e deixou “a Síria inconsolável”
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Autor dos cartazes que fizeram da pequena Kafranbel a “consciência da revolução”, era uma das vozes mais respeitadas entre os que recusavam capitular perante o regime e os extremistas que sequestraram a revolta.
TEXTO: A “Síria está inconsolável”, escreveu o grupo de defesa de direitos humanos The Syria Campaign a propósito do assassínio de Raed Fares e de Hammoud al-Juneid, na madrugada desta sexta-feira em Kafranbel, província de Idlib. Pode parecer exagero, mas “a Síria” a que o comunicado se refere tinha no activista transformado em jornalista (ex-agente imobiliário) Raed Fares um dos seus heróis – e um dos últimos, depois de tantos mortos e exilados. A notícia da morte de Raed Fares provocou uma vaga de mensagens de pesar nas redes sociais. Activistas, jornalistas, sírios no exílio e sírios que resistem na Síria. Todos choram o homem por trás da “consciência da revolução”, como ficou conhecida Kafranbel, pequena cidade de 30 mil habitantes. Sírios e não só habituaram-se a esperar pelas sextas-feiras para saber o que Kafranbel lhes preparara: faixas em árabe e inglês com mensagens dirigidas ao mundo; desenhos e palavras capazes de comentar a actualidade trágica da Síria (e não só) com humor e sarcasmo. “Costumávamos acordar cedo a cada sexta-feira para ver o que o brilhantismo de Raed Fares tinha inventado para as últimas faixas de Kafranbel. Esta sexta acordámos com notícias impensáveis. O homem excepcional desapareceu. O meu amigo desapareceu. A nossa dor colectiva é avassaladora”, escreveu no Twitter Lina Sergie, sírio-americana, arquitecta e escritora, uma das fundadoras e a actual presidente da organização não-governamental Karam Foundation, que trabalha com refugiados e deslocados dentro da Síria. Raed Fares participou pela primeira vez num protesto a 1 de Abril de 2011 – a primeira manifestação acontecera em Deraa, a 18 de Março – em Kafranbel. Acordou cedo e nunca deixou de acreditar na revolução. Fundou a Radio Fresh, onde empregou 600 pessoas e com a qual tentava preservar a sanidade dos sírios, encurralados entre um regime assassino e jihadistas sem escrúpulos. O primeiro centro de media que criou foi bombardeado duas vezes pelos aviões de Bashar al-Assad e atacado outras tantas pelo Daesh. Raed Fares sobreviveu a um atentado, atingido com três disparos no peito, em 2014. Levou quatro meses a recuperar e muito mais a conseguir respirar normalmente. Em 2016, foi raptado e torturado pela Frente Nusra (antiga Al-Qaeda na Síria). Antes e depois foi convidado a viajar pelo mundo, aceitou algumas vezes, recusou muitas mais, e voltou sempre à Síria. Quando era entrevistado era invariavelmente fotografado a sorrir, sempre que alguém lhe pedia ajuda respondia. “A pressão da sociedade civil e dos media funcionou e ganhou, derrotou a violência. A Al-Qaeda libertou-me”, disse no ano passado, numa intervenção nas conferências da plataforma Oslo Freedom Forum, em Nova Iorque. “A revolução são ideias e as ideias não podem ser mortas com armas. ”Raed Fares terá sido morto por combatentes da Aliança Hayat Tahrir al-Sham (coligação que incluiu o que resta da Frente Nusra), que controla grande parte da província de Idlib e tinha tentado calar a Radio Fresh. “É preciso ser-se um tipo especial de pessoa para gerir uma rádio numa área controlada por militantes islamistas no Norte da Síria. A música está proibida, tal como as mulheres apresentadoras. Mas Raed Fares inventou uma resposta criativa para as exigências dos jihadistas”, noticiava a BBC no ano passado. Pássaros a cantar, ruído de galinhas, cabras, longas sequências som do relógio Big Bang, de Londres, o assobio dos mísseis a voar antes de caírem, explosões… Estes sons passaram a antecipar os noticiários e continuavam em pano de fundo enquanto se ouviam as notícias. Em vez de canções, a rádio de Raed Fares começou a passar hinos entoados por claques de futebol, só palavras, nenhuma melodia. E as mulheres jornalistas foram substituídas por homens? “Não, tenho outra solução para isso. Passamos as vozes delas por um programa de computador que faz com que soem como homens”. Percebe-se que Raed Fares fosse uma inspiração para a Síria dos que iniciaram a revolução em 2011 ou dos que, sem terem participado nesses primeiros protestos, acreditaram no sonho de uma Síria livre. Declarado inimigo pelo Estado e por todo o tipo de radicais que combatia com as palavras, estava cada vez mais sozinho. Era um dos últimos líderes activistas de 2011 vivo e na Síria. No Oslo Freedom Forum recordou a primeira manifestação que ajudou a organizar: “Parecia irreal. Estava ultrapassada a barreira do medo. A 1 de Abril deixámos de ser animais”, disse. “Há uma constante na guerra da Síria: os bons morrem. O activista pró-democracia Raed Fares foi assassinado com o seu colega Hammoud al-Juneid”, escreveu no Twitter Liz Sly, chefe da delegação do jornal The Washington Post que cobre a região. “Heróis absolutamente excepcionais. Perdas maiores do que as palavras permitem expressar”, reagiu Wendy Pearlman, professora de Ciência Política especialista em Médio Oriente que foi várias vezes à Síria nos últimos anos e publicou livros sobre o país. “A revolução síria perdeu um dos seus mais importantes activistas pela paz”, afirmou outro activista dos direitos humanos e jornalista sírio, Abdalaziz Alhamza. “Estou a ficar sem palavras. Prometemos continuar a luta até alcançarmos a nossa liberdade. ”“Sexta-feira era sempre dia de Raed. Raed é um ícone para muitos sírios, vemos Raed e pensamos nos conhecidos cartazes de Kafranbel, lembramo-nos dos protestos pacíficos contra todas as atrocidades”, escreve a organização The Syria Campaign. “Em 2013, Raed criou uma rádio independente para avisar as pessoas de Idlib sobre ataques iminentes e criticar o extremismo. Por causa do seu trabalho revolucionário foi ameaçado por grupos terroristas e por apoiantes do regime. ”A Radio Fresh era apoiada pela Human Rights Foundation (a mesma que organiza o Oslo Freedom Forum), e chegou receber dinheiro dos Estados Unidos destinado a grupos humanitários. Quando Donald Trump decidiu congelar o orçamento para estas organizações, Raed Fares publicou um texto de opinião no Washington Post: “Sem grupos como a Radio Fresh para oferecer mensagens alternativas, outra geração vai pegar em armas para fundar a segunda e terceira edições do Estado Islâmico”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Raed Fares tinha 45 anos, era casado e pai de três filhos. A vida em Idlib era insuportável mas o activista não parou de organizar manifestações, mesmo que já não fosse possível realizar protestos a cada sexta-feira. Na sua página de Twitter a última publicação é de 5 de Outubro: um vídeo de uma multidão a manifestar-se em Kafranbel, a uma sexta-feira. A anterior é de 21 de Setembro, de novo sexta-feira, e Raed com os filhos Mohamad e Ahmad a caminho de uma manifestação.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Os premiados 2013 do DocLisboa voltam a falar português
E Agora? Lembra-me , de Joaquim Pinto, é o grande vencedor da 11ª edição do festival de cinema documental. Gonçalo Tocha ganhou o concurso nacional com A Mãe e o Mar (...)

Os premiados 2013 do DocLisboa voltam a falar português
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-11-03 | Jornal Público
SUMÁRIO: E Agora? Lembra-me , de Joaquim Pinto, é o grande vencedor da 11ª edição do festival de cinema documental. Gonçalo Tocha ganhou o concurso nacional com A Mãe e o Mar
TEXTO: Acontecera há dois anos, repete-se hoje: é um filme português o grande vencedor do concurso internacional do DocLisboa. Depois de ter conquistado três prémios no festival de Locarno, E agora? Lembra-me, o diário da luta de Joaquim Pinto com um tratamento experimental contra a hepatite C, sagrou-se triunfador no Doc, com três estatuetas entre os quais o galardão máximo do festival, o Grande Prémio Cidade de Lisboa. Gonçalo Tocha, que venceu a competição internacional em 2011 com É na Terra, não É na Lua, ganhou este ano o prémio de melhor longa-metragem com A Mãe e o Mar, o seu olhar para as desaparecidas companhas femininas de pesca de Vila Chã. O júri da competição internacional foi formado este ano pelas artistas Vera Mantero e Louise Wilson, pelo académico Philippe Dubois e pelo crítico Boris Nelepo, e presidido in absentia pelo realizador iraniano Mohammed Rasoulof. E escolheu premiar duas das grandes linhas condutoras da edição 2013: a dos documentários “na primeira pessoa”, que usam experiências pessoais para falar do mundo que nos rodeia, e as dos “filmes de memórias” que buscam no passado as raízes do presente. E agora? Lembra-me é o “bloco de notas” de um ano de vida de Pinto, uma das figuras-chave da geração do cinema português revelada na década de 1980, e do seu companheiro, Nuno Leonel; longamente aclamado pela crítica internacional, o filme venceu ainda os prémios Universidades e CPLP (para o melhor filme de língua portuguesa das secções competitivas). A menção honrosa foi para Sangue, onde o actor e encenador italiano Pippo Delbono parte das últimas semanas de vida da sua mãe para uma meditação sobre o passado, o remorso, a vida e a morte. E o Prémio Especial do Júri coube a Once I Entered a Garden, onde o israelita Avi Mograbi e o seu professor de árabe, Ali al-Azhari, evocam a multiculturalidade perdida dos territórios do Médio Oriente enquanto buscam traços das suas famílias. A abordagem “na primeira pessoa” prolongou-se para o concurso nacional, julgado pela realizadora Teresa Villaverde, pela programadora Birgit Kohler e pelo programador Michael Renov. Em A Mãe e o Mar, encomenda do Curtas Vila do Conde, Gonçalo Tocha regista as recordações dos grupos de mulheres que saíam para o mar em Vila Chã, caso único no mundo. A menção honrosa coube a Os Caminhos de Jorge, olhar de Miguel Moraes Cabral sobre um amolador da região de Braga; o prémio de melhor primeira ou segunda obra coube a Os Dias com Ele, onde a brasileira Maria Clara Escobar investiga o passado activista do seu pai, o académico Carlos Henrique Escobar. Os concursos de curta-metragens premiaram Tabatô, de João Viana (nacional), e Mauro em Caiena, do brasileiro Leonardo Mouramateus (internacional). Num palmarés assaz honroso, foram ainda atribuídos quatro prémios por júris distintos. São eles Revelação (melhor primeiro ou segundo filme apresentado no concurso internacional e nas secções Investigações e Riscos: Eclipses, olhar sobre a Singapura moderna); Investigações, de entre os filmes apresentados naquela secção (Les Chebabs de Yarmouk, sobre jovens palestinianos num campo de refugiados sírio); Escolas, para a melhor longa da competição portuguesa (A Campanha do Creoula, videodiário de uma viagem científica às Selvagens); e o Prémio do Público para a melhor longa portuguesa (A Última Encenação de Joaquim Benite, exibido na secção Retratos). Os filmes premiados serão repetidos durante o dia de hoje. O Grande Auditório da Culturgest mostrará A Mãe e o Mar e Tabatô (15h), e E agora? Lembra-me e Mauro em Caiena (21h), enquanto o Pequeno Auditório da Culturgest exibirá Eclipses (21h), o cinema São Jorge Os Dias com Ele (19h15) e o City Alvalade Les Chebabs de Yarmouk (19h15).
REFERÊNCIAS:
Entidades CPLP
Autoridade Palestiniana marca um “Dia de Raiva” para esta sexta-feira
Cinco palestinianos morreram na Cisjordânia. Fontes dizem que os protestos, que envolveram cerca de 10 mil pessoas, foram os maiores desde a última Intifada. (...)

Autoridade Palestiniana marca um “Dia de Raiva” para esta sexta-feira
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.7
DATA: 2014-07-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Cinco palestinianos morreram na Cisjordânia. Fontes dizem que os protestos, que envolveram cerca de 10 mil pessoas, foram os maiores desde a última Intifada.
TEXTO: Esta sexta-feira, a última do Ramadão – o mês sagrado para os muçulmanos –, é de alto risco no Médio Oriente. A Autoridade Palestiniana marcou para hoje um "Dia de Raiva contra o banho de sangue em Gaza", que é um apelo a todos os palestinianos para saírem à rua e expressarem descontentamento e frustração pelo ataque israelita contra a Faixa de Gaza. O exército israelita entrou em alerta máximo nos territórios ocupados da Cisjordânia e em Jerusalém Oriental (também ocupada por Israel e que os palestinianos consideram a sua capital). O protesto marcado pela Autoridade Palestiniana, presidida por Mahmoud Abbas (líder da Fatah, que governa a Cisjordânia), começou depois das orações do meio-dia. Foi marcado para assinalar a indignação palestiniana depois de, na quinta-feira, uma escola das Nações Unidas que abrigava deslocados da Faixa de Gaza ter sido atingida por um morteiro. Quinze pessoas morreram, a maior parte delas mulheres, crianças e membros da equipa de apoio humanitário; 200 pessoas ficaram feridas, muitas perderam membros. O Governo israelita argumenta que o Hamas (o partido que governa a Faixa) usa estas instalações para armazenar armas - na semana passada a ONU denunciou ter encontrado armas numa das instalações que gere. O que se passou com o ataque de quinta-feira à escola (quem o fez) está ainda por apurar. As autoridades de Gaza culpam Israel. o Estado hebraico diz que o tipo de danos deverá ter sido causado por morteiros, e que tanto os seus soldados como os combatentes do Hamas estavam a utilizar estas armas. O exército israeltia diz que vai investigar. O incidente ocorreu num dos dias mais mortíferos em Gaza, quando morreram mais de 100 pessoas, e foi particularmente desesperante: a ONU tentou em vão negociar a abertura de um corredor para levar os refugiados daquele centro para um mais seguro. Muitas das pessoas, na maioria mulheres e crianças, foram atingidas quando esperavam um autocarro para mudar de refúgio. Havia poças de sangue no chão, nas paredes, nas pequenas secretárias. Ovelhas corriam pelo local pouco depois do ataque, ainda havia sapatos e pedaços de roupa rasgados para fazer curativos pelo chão. Na quinta-feira à noite já houve um primeiro sinal de que a violência pode eclodir na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. Duas pessoas morreram quando dez mil pessoas se manifestaram contra Israel. Um grupo avançou sobre um posto de controlo israelita perto de Ramallah e, na troca de tiros (do lado israelita) e de pedras e cocktails Molotov (do lado palestiniano), dezenas de pessoas ficaram feridas. Um adolescente morreu. Partes da estrada entre Ramallah e Jerusalém estavam cobertas de pedras usadas por palestinianos, na maioria jovens, contra as forças israelitas, diz a correspondente da Al-Jazira na Cisjordânia Dalia Hatuqa. A dimensão das manifestações fez lembrar os protestos durante a última Intifada, de 2000 a 2005. Nesta sexta-feira, morreram mais cinco palestinianos na Cisjordânia - dois em Nablus (um alegadamente morto por uma habitante de um colonato) e outros três em Hebron, atingidos com balas reais numa manifestação. Duas semanas para destruir túneisA operação militar israelita em Gaza entra esta sexta-feira no 18. º dia, tendo morrido até agora 804 palestinianos (a grande maioria civis) e mais de 30 israelitas (33 soldados e três civis, um dos quais um trabalhador tailandês). Neste contexto de escalada no conflito, o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, apresentou às duas partes uma nova proposta destinada a pôr fim à guerra. Kerry avança com uma solução de duas semanas de trégua durante as quais o exército israelita teria a permissão dos palestinianos para destruir os túneis do Hamas (a justificação do Governo de Telavive para este conflito), que permitem aos palestinianos entrar em território ocupado por Israel para realizar atentados e também para fazerem entrar na Faixa bens essenciais. A Faixa de Gaza está há oito anos sujeita a um bloqueio económico. No plano de Kerry, que o Governo israelita vai analisar nesta sexta-feira, essas duas semanas seriam aproveitadas pelos negociadores para chegarem a uma solução de cessar-fogo permanente. Mas a proposta, dizem os analistas, não deverá ser aceite pelos palestinianos. Na quarta-feira à noite o líder do Hamas no exílio, Khaled Meshaal, disse que o movimento não concordará com um cessar-fogo na Faixa de Gaza antes de Israel pôr fim ao bloqueio ao território. “Não aceitaremos qualquer iniciativa que não leve ao fim do bloqueio e que não respeite os nossos sacrifícios”, disse Meshaal numa conferência de imprensa no Qatar, onde vive desque que deixou a Síria devido à guerra neste país.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU EUA
Ainda não há conclusões sobre quem disparou contra a escola da ONU em Gaza
Palestinianos acusam o Exército israelita. Militares do Estado hebraico dizem que não sabem ainda se os projécteis foram disparados pelas suas forças ou por combatentes do Hamas. (...)

Ainda não há conclusões sobre quem disparou contra a escola da ONU em Gaza
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2014-07-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Palestinianos acusam o Exército israelita. Militares do Estado hebraico dizem que não sabem ainda se os projécteis foram disparados pelas suas forças ou por combatentes do Hamas.
TEXTO: Quatro morteiros caíram sobre uma escola da ONU em Gaza. Civis, que se tinham lá refugiado, morreram e ficaram mutilados. Num conflito que tem tido uma longa lista de vítimas civis, este ataque causou particular emoção. A primeira reacção dos palestinianos, e até da agência da ONU de apoio aos refugiados (UNRWA) que gere a escola, foi culpar Israel pelo ataque de quinta-feira. O Estado hebraico atingiu, durante esta ofensiva, três escolas (ataques sem vítimas), avisou várias vezes para o facto de o Hamas usar civis como escudos humanos, e na véspera a ONU disse que encontrou rockets escondidos em duas das escolas da UNRWA. Israel diz, pelo seu lado, que não sabe ainda se o ataque foi provocado pelas suas armas ou pelas do Hamas. A escola estava num bairro onde decorriam fortes combates, e o Exército israelita disse que respondeu a disparos de combatentes do Hamas vindos de perto do local. Os projécteis usados parecem ter sido morteiros, que são usados quer por Israel, quer pelo Hamas, disse um porta-voz militar, Peter Lerner, admitindo que “há uma hipótese” de terem sido as suas armas a atingir a escola. Mas também, dizem os militares, poderiam ter sido disparados pelo Hamas, que podia ter errado o alvo. Israel já anunciou uma investigação ao incidente de quinta-feira, em que morreram 15 pessoas, sobretudo mulheres, crianças e também funcionários da ONU, disse o secretário-geral da organização, Ban Ki-moon. Houve ainda 200 feridos, e muitos deles perderam membros. Quinta-feira foi um dos dias mais violentos em Gaza, quando morreram mais de 100 pessoas, e o caso da escola foi particularmente desesperante: a ONU tentou em vão durante um dia inteiro negociar a abertura de um corredor para levar os refugiados daquele centro para um mais seguro. Muitas das pessoas, na maioria mulheres e crianças, foram atingidas quando esperavam por um autocarro para mudar de refúgio. Quanto o ataque acabou, muitos jornalistas não conseguiram chegar ao local, porque continuava a haver combates e bombardeamentos muito perto. Um jornalista da Reuters descreveu um local vazio, com poças de sangue no chão, nas paredes, nas pequenas secretárias. Ovelhas corriam pelo local, ainda havia sapatos e pedaços de roupa rasgados para fazer curativos pelo chão. Israel afirma ter dado um período de várias horas para que os ocupantes do edifício saíssem, e que foi o Hamas que não permitiu a retirada dos civis, a UNRWA nega ter recebido qualquer aviso de ataque ou pedido de evacuação do local por parte dos militares israelitas. Mais, o chefe da agência, Pierre Krahenbuhl, diz até ter enviado 12 vezes as coordenadas GPS da escola ao Exército de Israel. A União Europeia pediu que fossem estabelecidos corredores humanitários para permitir aos civis fugir dos combates e pediu um “inquérito imediato e completo” sobre o que aconteceu na escola da UNRWA.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU
Dezenas de mortos nos mais violentos bombardeamentos em Gaza
O guia supremo do Irão, o Ayatollah Ali Khamenei, disse ao mundo árabe que deve “armar” os palestinianos. (...)

Dezenas de mortos nos mais violentos bombardeamentos em Gaza
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.16
DATA: 2014-07-29 | Jornal Público
SUMÁRIO: O guia supremo do Irão, o Ayatollah Ali Khamenei, disse ao mundo árabe que deve “armar” os palestinianos.
TEXTO: Os bombardeamentos desta terça-feira na Faixa de Gaza são os mais violentos desde o início da ofensiva israelita, a 8 de Julho. Segundo os jornalistas da AFP no terreno, na madrugada e na manhã desta terça-feira morreram dezenas de pessoas, incluindo civis palestinianos e militares israelitas. Segundo as fontes locais, entre os palestinianos mortos estão nove mulheres e quatro crianças. A casa do líder do Hamas, Ismaïl Haniyeh, no campo de refugiados de Chati, foi bombardeada. E a única central eléctrica da Faixa, que já estava danificada e a funcionar parcialmente, foi totalmente destruída. O edifício da televisão local também foi destruído. Gaza, relatava um jornalista da AFP, foi iluminada durante a madrugada pelos clarões dos rebentamentos das bombas e amanheceu debaixo de um cobertor de fumo negro. Relatam os jornalistas da Al-Jazira que os bombardeamentos foram alargados a toda a Faixa de Gaza - o Governo israelita fez novos avisos aos palestinianos, dizendo-lhes para abandonarem mais uma série de bairros e localidades alvos. A agência das Nações Unidas na Faixa de Gaza actualizou os dados e diz que há, neste momento, mais de 167 mil palestinianos refugiados nas suas escolas e abrigos. Em Israel as sirenes também continuam a soar, apesar de poucos rockets do Hamas escaparem ao sistema de defesa anti-míssil Iron Dome. Nos últimos dias, porém, alguns rebentaram junto de locais estratégicos, por exemplo o aeroporto internacional Ben Gurion de Telavive. Segundo o Hamas - Israel não confirma imediatamente as suas baixas militares -, dez soldados israelitas foram mortos. Um em combates na Faixa, quatro num tanque atingido por um morteiro junto à fronteira e os restantes caíram em combate junto a um túnel do Hamas que desemboca junto ao kibutz de Nahal Oz (sul). A destruição destes túneis são um dos objectivos israelitas desta guerra. O primeiro objectivo definido foi travar a chuva de rockets que o Hamas faz cair em Israel. Finalmente, o primeiro-ministro israelita Benjamim Netanyahu, acrescentou um terceiro objectivo: desmilitarizar a Faixa de Gaza e advertiu, na segunda-feira, que esse objectivo alargado está longe de estar alcançado e que os israelitas se devem preparar para "uma campanha longa" em Gaza. "A nossa missão não estará terminada e não poremos fim a esta operação sem termos neutralizado todos os túneis que só têm um propósito, destruir os nossos cidadãos e matar as nossas crianças. Temos que nos preparar para uma campanha longa. Vamos continuar a agir com força e determinação até que a nossa missão esteja concluída", disse Natanyahu. Sami Abu Zuhri, porta-voz do Hamas, repsondeu-lhe: "As ameaças não assustam o Hamas e o povo palestiniano e os ocupantes [israelitas] vão pagar o preço deste massacre de crianças e civis". O exército israelita diz já ter atingido 3900 "locais terroristas" e morto 300 combatentes do Hamas e da Jihad Islâmica. O conflito, que no dia 17 de Julho foi alargado quando o Governo isarelita mandou avançar as tropas terrestres, já matou mais de 1100 palestinianos e mais de 50 israelitas. A guerra já vai mais longa do que a de 2008-09, que também começou por iniciativa israelita com o objectivo de parar os bombardeamentos do Hamas contra o seu território. Morreram 1400 pessoas e, diz a AFP, foi a mais mortífera das quatro guerras israelo-palestinianas desde a retirada de Israel da Faixa de Gaza, em 2005. A comunidade internacional continua a pressionar as duas partes no sentido de porem fim aos combates e o secretário-geral das Nações Undias, o coreano Ban Ki-moon, pediu-lhes para pararem, "em nome da humanidade". Mas não há sinais de cedências - a única iniciativa diplomática anunciada não tem data marcada mas será no Cairo (Egipto) e juntará o presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmoud Abbas, e membros do Hamas e da Jihad Islâmica. Do lado árabe, apenas do Irão, que não reconhece a existência do Estado de Israel, surgiu uma posição oficial sobre este conflito. O guia supremo do Irão, o Ayatollah Ali Khamenei, disse que Israel é “um cão raivoso” que comete “genocídio” na Faixa de Gaza e defendeu que o mundo árabe deve “armar” os palestinianos. Israel é “um cão raivoso, um lobo selvagem (. . . ) que ataca pessoas inocentes, crianças que perderam a vida inocentemente. O que os dirigentes do regime sionista estão a fazer é um genocídio e uma catástrofe histórica”, disse Khamenei num discurso transmitido pela televisão iraniana para assinalar o fim do Ramadão, o mês santo do islão.
REFERÊNCIAS:
Por trás do muro, a obra da vida de Roger Waters
Roger WatersLisboa, Pavilhão Atlântico21 de Março, às 21h4 (...)

Por trás do muro, a obra da vida de Roger Waters
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.4
DATA: 2011-03-22 | Jornal Público
SUMÁRIO: Roger WatersLisboa, Pavilhão Atlântico21 de Março, às 21h4
TEXTO: “The Wall” não é apenas o álbum no limite da autobiografia a que Roger Waters conduziu os Pink Floyd em 1979. “The Wall” é o projecto da sua vida. É o seu álbum manifesto contra o potencial totalitário da política, contra o carácter criminal da guerra, contra a opressão que o homem exerce sobre o homem, mal tenha oportunidade, desventura, ou ambas, para o fazer. E por isso Roger Waters, que imaginou o álbum pondo no centro da acção aquilo que melhor conhecia – a sua própria vida e o circo rock'n'roll -, regressou a ele em 1990 e regressou ao ele o ano passado, no início da viagem que passou agora por Lisboa. O perigo de vermos “The Wall Live” em 2011, como o vimos ontem, na primeira das duas datas esgotadas no Pavilhão Atlântico que marcaram o início da parte europeia da digressão, era depararmos com um mero exercício de nostalgia, tecnicamente inatacável, mas incapaz de falar ao presente. Ora, o conceito de ópera rock pode ser antigo e ultrapassado, mas “The Wall Live” não foi um espectáculo saudosista e anacrónico. Impressionante e majestoso visualmente, pode ter coberto a totalidade de um disco antigo de três décadas, repleto de pormenores datados (os solos senhores, aqueles solos que não abrilhantavam, emperravam a narrativa), mas foi uma vitória. O muro foi sendo construído entre as memórias da II Guerra Mundial, a experiência de estrelato de Waters (muitas mulheres, muitos corpos durante o pub rock de “Young lust”) e o mundo actual onde, como sempre, se mata e morre demasiado. Vimos crescer o muro entre ganância empresarial e paranóia muito pessoal, Waters isolou-se do público nele refugiado e no fim de tudo, depois das explosões e dos raides aéreos, do ruído interminável das televisões e do julgamento grotesco que marca o final da narrativa, tudo caiu com estrondo: tijolo a tijolo dos 10 metros de altura e 75 de comprimento que compunham o muro. Depois, reapareceu com a banda entre o pó e os destroços e cantou “Outside the wall”, acompanhado pelo coro dos companheiros, pelas guitarras acústicas, mandolin e concertina. Uma brisa folk simples e directa, como que um regresso às raízes despido de toda a opulência anterior. “Quando escrevi este disco tinha problemas em estar perante tanta gente. Muito mudou desde então. Obrigado”, disse então. “Roger?”. “Over and out”. Missão cumprida. Num momento em que as grandes produções de palco da música popular urbana, das crucificações de Madonna às libertinagens castiças de Lady Gaga, são fogo-de-artifício pretensamente provocatório, há algo de digno e muito respeitável na ambição de Roger Waters. “The Wall” é uma megalomania, e quanto a isso não tenhamos quaisquer dúvidas – basta atentar no avião que, no final de “In The Flesh”, logo a início do espectáculo, desce dos céus de madeira do Pavilhão para se despenhar contra o muro com estrondo, originando uma explosão de pirotecnia, ou, bem mais tarde, no gigantesco porco insuflável que flutuou sobre a plateia durante “The show must go on”. Essa escala grandiosa, porém, nunca descambou para fogueira de vaidades de uma estrela rock multimilionária. Num Pavilhão Atlântico onde a maioria de veteranos não foi tão esmagadora quanto se podia pensar, onde um pai, prestes a lançar-se em dança de guitarra imaginária em punho, dizia ao filho adolescente “esta conheces!” (anunciava-se “Another brick in the wall” e o filho não dançou, mas esteve atento) e onde outros filhos cantavam com outros pais qualquer canção que se apresentasse, não houve sombra de memória de que este foi o álbum que levou a geração punk a inscrever um explícito “I hate” sobre t-shirts dos Pink Floyd.
REFERÊNCIAS: