O Museu das Ex-Descobertas
Parece que como o mar já existia, não descobrimos nada, e portanto não temos nada de que nos orgulhar nem lembrar no Museu das Descobertas. Eu pensava que sim. (...)

O Museu das Ex-Descobertas
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: Parece que como o mar já existia, não descobrimos nada, e portanto não temos nada de que nos orgulhar nem lembrar no Museu das Descobertas. Eu pensava que sim.
TEXTO: Não sei como alguém teve a ideia de chamar Museu das Descobertas a um museu sobre as Descobertas, que parece que afinal não descobrimos, pois quem estava nos sítios que nós descobrimos já se tinha descoberto. Não é caso único. Lembro-me, quando se preparava o bicentenário da descoberta da América pelo Colombo, de ver na televisão um mexicano, loiro de olhos azuis, a dizer que a América não tinha sido descoberta, porque eles já estavam na América e por isso não precisavam de ser descobertos. Como chegaram loiros de olhos azuis ao México, antes do tonto do Colombo chegar à América, a pensar que tinha chegado à Índia, ele não explicou. Mas não é por isso que acho mal chamar Museu das Descobertas ao Museu das Descobertas. É por razões comerciais. Como todos sabem, o dinheiro é o único valor, repito, único, da nossa sociedade. Ora, qualquer pessoa que por estes tempos mais quentes passeie por Lisboa verificará, facilmente, que Lisboa é um verdadeiro Museu das Descobertas ao ar livre. Ele há-as velhas, novas, altas, baixas, gordas, magras, loiras, morenas, ruivas, chinesas, italianas. Até portuguesas. Lisboa está cheia de descobertas fantásticas. Para que é que alguém, podendo ver as descobertas ao ar livre e sem pagar, há-de entrar num prédio e pagar bilhetes para ver descobertas? Só se for para apanhar um bocado de ar condicionado. Porém, se o ar condicionado estiver muito frio, as descobertas cobrem-se e o visitante, além de pagar, vê as descobertas cobertas, o que não tem graça nenhuma. Acresce que aquilo que nós achamos que foi a nossa glória, a expansão, o encontro de outras terras, o cruzamento com outros povos e costumes, onde deixámos a nossa marca e trouxemos as deles, foi uma coisa horrenda pela qual temos de pedir desculpa. É verdade que andamos a cortar narizes pelo Índico, a bombardear inocentes, a impor a nossa fé e a traficar escravos. Mas, infelizmente, a normalidade da maior parte da vida da humanidade foi mais próxima do que hoje se passa na Síria do que na Suíça. A História mostra-nos que estropiar e matar gratuitamente era o desporto favorito da maioria das “ditas” civilizações de todos os quadrantes e de todas as religiões e que se tratava de façanhas laureadas e não condenadas. A escravatura é, e era, hedionda. Mas era praticada por todos os povos e nós tanto escravizávamos, como éramos escravizados. Fernão Mendes Pinto sete vezes foi cativo. E cativo queria dizer escravo, no tempo em que ele escreveu. E tudo isso ocorreu antes de haver o conceito de Direitos Humanos, ou mesmo de Direitos, e não faz sentido interpretar esses tempos, reconhecidamente bárbaros, à luz dos valores do nosso também bárbaro, e por isso mais repreensível, tempo. O nosso passado esclavagista é vergonhoso e revoltante, sobretudo no período em que mantivemos o tráfico quando já era uma prática reprovável. Mas antes disso, como confirma o único relato existente de um escravo africano levado para os Estados Unidos, os escravos não eram capturados pelos europeus, mas pelas tribos africanas que os vendiam aos chamados negreiros. E não era melhor a sorte dos que não eram vendidos, como testemunham relatos da época. Parece então que quando se descobre uma coisa, não se descobre, porque essa coisa já existia, embora nós não soubéssemos que ela existia. Ora eu pensava justamente que descobrir era encontrar o que não sabíamos que existia. Pensava que tínhamos descoberto a Madeira, que ninguém sabia que existia e onde não havia ninguém. Mas afinal havia as cagarras que descobriram a Madeira antes de nós. Como pensava que tínhamos descoberto o Brasil, que afinal já tinha sido descoberto pelos índios que lá viviam, que nos descobriram quando nos viram, pois não se davam com mais ninguém, e ainda hoje não devem ter descoberto porque lhes chamam índios, que são os povos da índia que o papalvo do Colombo pensava que era nas Caraíbas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A Índia, essa sim, já sabíamos que existia e onde era, mas queríamos descobrir como se chegava lá por mar, porque não nos dávamos com os que estavam no caminho por terra, que não nos deixavam passar. Agora parece que como o mar já existia, não descobrimos nada, e portanto não temos nada de que nos orgulhar nem lembrar no Museu das Descobertas. Eu pensava que sim, pois até historiadores estrangeiros, e todos sabem como é perfeito o tal estrangeiro, achavam ímpares os nossos extraordinários feitos, como o americano Boorstin, librarian da Biblioteca do Congresso, um dos mais prestigiados cargos do país, que considerou a saga da procura do caminho marítimo para a Índia como o primeiro empreendimento científico moderno, que marcou o Mundo para sempre, ou o inglês Toynbee, por muitos considerado o maior historiador do século XX, que dividia o mundo entre a época pré-gamica e pós-gamica, ou seja, antes e depois da viagem do Gama. Viagem que, como é óbvio, deu ao Ocidente cinco séculos de domínio do Mundo, que os Estados Unidos estão a destruir com afinco e os chineses, que sabem de História, querem marcar o termo com a simbólica viagem inversa da nova rota da seda. Mas é claro que o prestígio do Boorstin e de Toynbee caiu a pique em Portugal, por atribuírem mérito a Portugal e aos portugueses, o que é por cá muito mal visto. Mas lá que andámos por todo o lado e por todo o lado deixámos monumentos, orações, comércio, tradições e comunidades com ligações a Portugal, da foz do Amazonas às ilhas das Flores, lá isso é verdade. Para não falar da língua, a quinta mais falada do Mundo, num país continente e em todos os continentes. Proeza só equiparável à das então três maiores potências europeias e sem paralelo em países da nossa dimensão. Fizemos o impossível. Por isso o melhor é chamar ao Museu das Descobertas Museu da Descoberta de Portugal. Porque só percebe Portugal quem conheça essa nossa História.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Entrevista: "Luaty já ganhou uma vitória moral"
O autor do livro Magnífica e Miserável: Angola desde a Guerra Civil prevê que a repressão em Angola persista e se aprofunde. Em entrevista, Ricardo Soares de Oliveira fala sobre as "mudanças vertiginosas" no país desde a paz em 2002. (...)

Entrevista: "Luaty já ganhou uma vitória moral"
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento -0.12
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O autor do livro Magnífica e Miserável: Angola desde a Guerra Civil prevê que a repressão em Angola persista e se aprofunde. Em entrevista, Ricardo Soares de Oliveira fala sobre as "mudanças vertiginosas" no país desde a paz em 2002.
TEXTO: O fim da guerra em Angola em 2002 deu esperança aos angolanos. Um alento que, com o passar do tempo, se transformou numa grande frustração, agora menos silenciosa, da sociedade. A incerteza da crise, com a descida do preço do petróleo desde Junho de 2014, e a indefinição da sucessão de um Presidente que provavelmente se “vai eternizar no poder até morrer”, criam novos desafios ao regime. O Governo liderado por José Eduardo dos Santos vê como uma ameaça o despontar de uma revolta, expressa em movimentos activistas, que rompe com a apatia e desmobilização social do passado. É dessas “mudanças vertiginosas” vividas em Angola que fala o português Ricardo Soares de Oliveira, numa entrevista realizada em Lisboa no dia 1 de Outubro e actualizada esta semana por email. Professor associado de Política Comparada na Universidade de Oxford, no Reino Unido, Ricardo Soares de Oliveira tem, há 15 anos, África e países como Angola no horizonte da sua investigação. Sobre as relações de Portugal com este país, diz que os interesses angolanos exercem “uma influência sem precedentes” na economia, na sociedade e na política. A partir de várias entrevistas realizadas em Angola, Portugal e outros países como o Reino Unido, a França e os Estados Unidos, realça a voz de “pessoas que se gabaram de ser grandes financiadores dos partidos políticos portugueses”. Autor de Oil and Politics in the Gulf of Guinea (Hurst, 2007) e co-editor de China Returns to Africa (Hurst, 2008), o académico de 38 anos estreia-se na editora Tinta-da-China com Magnífica e Miserável: Angola desde a Guerra Civil. O livro expõe o “absurdo” de um país “particularmente complexo”, nas palavras do escritor José Eduardo Agualusa, e descreve “o mundo ideal do oligarca”, na recensão ao livro publicada no Financial Times. O lançamento em Lisboa está marcado para a data dos 40 anos da independência de Angola, 11 de Novembro. Descreve, no livro, uma “proximidade quase incestuosa” entre Portugal e Angola. Onde é isso mais marcante?Os pilares dessa relação, e nomeadamente o estatuto de Lisboa enquanto sociedade permissiva que dá à elite angolana uma série de serviços na banca, nos escritórios de advogados, nos escritórios de relações públicas, de contabilidade, e outros, foram parâmetros bilaterais estabelecidos nos anos [19]90. Sectores importantes das elites portuguesas chegaram à conclusão de que o regime do Presidente José Eduardo dos Santos defendia os interesses portugueses e, por conseguinte, criaram uma relação de grande proximidade, personalizada, com esse regime. Essa relação entrou numa fase diferente com o declínio acelerado da economia portuguesa na última década e com a subida absolutamente mirabolante da economia angolana, cujo PIB se multiplicou por dez entre 2002 e 2013. Nesse contexto, os interesses angolanos chegaram a Portugal e exerceram uma influência sem precedentes na economia, na política e na sociedade portuguesas. Na política, de que forma?Através, por exemplo, do financiamento dos partidos, uma questão que não procurei investigar, porque não me cabe a mim enquanto académico. Financiamento de que partidos?De todos os partidos do arco de governação em Portugal, de acordo com entrevistas que fiz em Lisboa e em Luanda, onde algumas pessoas se gabaram de ser grandes financiadores dos partidos políticos portugueses. Questões básicas de due dilligence — como o questionar quais as fontes do dinheiro, seja ele qual for — não foram colocadas ao longo dos últimos anos. Porém, importa aqui esclarecer uma coisa: a relação que Portugal tem com Angola não é única, e é importante pô-la num contexto mais lato, em que muitos países ricos em recursos naturais compraram influência nas grandes sociedades ocidentais. A mesma coisa acontece em Paris, Londres ou Bruxelas. Importa não demonizar o papel português. Há uma porosidade das economias e sociedades europeias na última década. A grande diferença em relação a Portugal é haver, de um lado, o poder angolano, uma elite muito coesa, muito direccionada e, do outro, a fragilidade, a penetrabilidade da sociedade portuguesa desde 2008. Nunca, como nos últimos quatro anos, tantos membros de um Governo português foram a Angola, incluindo o primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, e o vice-primeiro ministro, Paulo Portas. Enquanto isso, José Eduardo dos Santos não veio a Portugal, apesar de ter visitado alguns países europeus. Esta ausência tem algum significado?Há uma dimensão muito pragmática e racional da influência que os angolanos ricos quiseram construir em Portugal. Portugal é uma praça financeira credível, pertence à União Europeia e à OCDE. Os angolanos ricos, na sua maior parte, não falam mais nenhuma língua além do português. Portugal surge como uma plataforma quase ideal para a internacionalização dos interesses angolanos. E, independentemente de toda a retórica da irmandade lusófona, a relação das elites angolanas com as elites brasileiras é muito mais complicada e muito menos próxima do que com Portugal. Apesar disso, a relação bilateral entre Portugal e Angola tem dimensões importantíssimas de complexo pós-colonial. Daí a forma como os angolanos ricos em Portugal exercem o seu poder de uma forma bruta, até contraproducente para com os seus próprios interesses. Os angolanos começaram a tomar Portugal um pouco como um dado adquirido. Porventura a visão geopolítica da Presidência centrou-se muito mais no cultivar das relações com os Estados Unidos, com o Brasil, com a China, com a Rússia e, mais recentemente, com a África do Sul, que se tornaram mais importantes. Acha normal não se saber o que aconteceu aos milhares de milhões de empréstimos do BES Angola que desapareceram e ajudaram ao colapso do Grupo Espírito Santo? Isso revela o lado obscuro do dinheiro que circula entre Portugal e Angola?Eu gostava que essa pergunta fosse colocada todos os dias nos jornais portugueses, até que a resposta seja encontrada, porque é uma pergunta muito importante, que tem que ver não só com a vida de Angola mas também com Portugal. Mas não fiquei surpreendido. O sistema financeiro angolano quase não existia há 15 anos. Hoje é o terceiro maior da África subsariana e, de certo modo, um faroeste do ponto de vista regulatório e prudencial. O mais provável é que, ao longo dos anos, esse sistema crie escândalos semelhantes. Agora, infelizmente, num quadro mais lato, o sistema financeiro português também não está no alto de um pedestal a dar lições. Com a descida do preço do petróleo e o abrandamento económico da China, país que é o maior comprador de petróleo de Angola, o regime angolano vai defrontar-se com novas dificuldades até às eleições de 2017?Já está a defrontar-se. Depois de uma grande apatia de 2002 a 2012, houve a partir daí um activismo social, de protesto, nomeadamente de jovens — e esse é um primeiro fenómeno. O segundo fenómeno importantíssimo é a fragilidade estrutural que a questão da sucessão cria. Estas questões de fundo, que põem em causa o statu quo em Angola, já lá estavam. Mas não há dúvida nenhuma de que a descida do preço do petróleo tem um papel muito debilitador, porque a legitimidade do regime, pelo menos junto das camadas sociais que o apoiam, está muito dependente da distribuição dos recursos. Num contexto em que esses recursos se tornam mais escassos, esse contrato social que existe ao nível da elite e das classes médias urbanas começa a ser posto em questão. A crise vai ser uma justificação para José Eduardo dos Santos se candidatar de novo?Já em 2013, a questão de saber se o Presidente estava a ser ou não sincero em relação à sucessão era uma questão em aberto. Muito poucas pessoas em Luanda achavam que ele estava verdadeiramente a preparar a sucessão mais óbvia, através do vice-presidente, Manuel Vicente. Desde o início há a ideia de que Manuel Vicente é para queimar, como muitos outros o foram no passado. E que a verdadeira agenda do Presidente, se é uma agenda de sucessão coerente, seria para favorecer o filho [José Filomeno dos Santos]. Agora, no contexto da crise, a hipótese de o Presidente se eternizar no poder até morrer tornou-se muito credível. São os interesses das figuras do círculo mais próximo que mantêm Eduardo dos Santos no poder? Ou é sua vontade manter-se na presidência?As duas dinâmicas são importantes. O Presidente tem um poder executivo quase sem precedentes na África contemporânea. E tem um poder discricionário extraordinário. Por conseguinte, o factor principal para as decisões políticas do Presidente, nomeadamente no que diz respeito à sua continuidade no poder, tem que ver com o seu processo decisório pessoal. Dito isto, não há dúvida absolutamente nenhuma de que a permanência do Presidente no poder é uma garantia para os interesses que se estabeleceram na economia política angolana nas últimas duas décadas. Não são só interesses partidários ou da elite, são interesses mais restritos como monopólios específicos, é a economia inteira. São pessoas muito próximas do Presidente e que porventura verão a sua saída do poder como uma ameaça muito séria à continuidade desse poder que têm sobre a economia. A perda de receitas dá força a eventuais cenários de um litígio interno?Neste momento, a parte da população que está a sentir a crise são as massas, embora não de forma muito directa, porque também nunca receberam muito do regime, e a classe média, a chamada “burguesia nacional”, pessoas no funcionalismo público, ou neste sector privado muito apoiado pelo Estado, pessoas que adquiriram uma certa expectativa de classe média global e que agora, por exemplo, não podem ir ao estrangeiro e usar os cartões de crédito porque a saída dos dólares da economia angolana está a ser controlada. Mas a elite mais elite de todas continua a ser protegida, e essas pessoas continuam a poder trazer o dinheiro para o estrangeiro. Nesse sentido, os custos mais importantes ainda não estão a ser sentidos. Os custos políticos?Os custos políticos e os custos económicos, pelo facto de facções importantes do regime já estarem a ser penalizadas pela crise. Nos próximos seis meses a um ano vai revelar-se esse custo, que não é apenas na sociedade angolana, mas um custo específico dentro das elites. Transpondo para daqui a um ano: esse quadro criará dificuldades para a reeleição em 2017?As eleições vão ser um desafio político importantíssimo para o regime. Mesmo que o regime consiga financiar-se, através de empréstimos que está a tentar recolher em todo o mundo, via chineses, Goldman Sachs, e agora o Eurobank, isso demonstra a necessidade de cash-flow que eles têm. Há uma série de estratégias de última hora que o MPLA pode utilizar para gerir eleições de uma forma que lhes garanta o sucesso. O MPLA tem o controlo total do aparelho de Estado que lhes permite controlar as eleições. Em 2008 e 2012, havia uma hegemonia do MPLA que também tinha na sociedade uma certa apatia e, por parte dos partidos políticos, uma certa incompetência. Agora, e desde 2012, a contestação social aumentou exponencialmente. Pode surgir outro candidato?Eu pensaria não tanto em termos de política formal, mas em termos de contestação, em surdina, escondida, que é a contestação mais importante dentro do partido. Há um desafio interno e um desafio na sociedade. E este último não passa pela oposição formal, parlamentar. Passa pelos movimentos sociais. Desde 1977, que o MPLA tem medo do nitismo [movimento dissidente dentro do MPLA violentamente reprimido pelo Presidente Agostinho Neto], ou seja, de uma forma populista de activismo dos musseques, dos bairros. O MPLA teme muito mais movimentos sociais, particularmente movimentos que não sabe que existem, e não formas estruturadas, formalizadas, de estar na vida política angolana. Do ponto de vista do MPLA, a ameaça virá mais do caos social do que de uma facção do partido?Sim, especialmente da grande Luanda, e daí o medo em relação aos revus [movimento revolucionário] em relação a todos estes fenómenos sociais que aparentemente vistos de fora são inofensivos. As manifestações [contra o poder] nunca atraíram mais do que 200 ou 300 pessoas. Do ponto de vista externo, as pessoas pensam: que reacção bruta e desproporcional. É importante pensar em termos da mentalidade do partido e da ameaça que em 1977 o nitismo constituiu. O nitismo como uma forma populista de bases, de mobilização contra as esferas do partido, e articulada através de grupos de jovens, através do mundo político dos musseques que o MPLA não compreende e não controla bem. Existe esse fantasma de 1977. Mas o medo justifica-se no contexto real actual?Há uma grande frustração da sociedade angolana. Nos anos imediatamente a seguir à guerra, eu diria até 2010, houve uma sensação de esperança e de optimismo na sociedade. Houve uma expectativa dos angolanos, que pensaram que, com ou sem corrupção, havia um caminho, havia um boom petrolífero, com paz e uma ordem política. E que essa ordem criaria uma pluralidade. Pelo menos uma pluralidade de angolanos, se não uma maioria, teria uma vida melhor. Nos últimos anos, as pessoas começaram a perceber que os benefícios do maná petrolífero não eram para toda a gente. Porque a vasta maioria da população não iria beneficiar, nem sequer indirectamente dessas oportunidades. Eu não estou a dizer que o partido tem razão de temer essa explosão social. Mas há uma grande frustração na sociedade angolana e essa frustração necessariamente levará a um questionar forte do statu quo. No seu livro, lembra que os activistas que dão a cara são uma minoria daqueles que realmente contestam o poder de José Eduardo dos Santos. Além disso, são oriundos de famílias da elite. Quais as implicações disso?Na verdade, entre os activistas presos em Luanda, temos pessoas que vêm de origens modestas como o [Manuel Baptista Chivonde] Nito Alves e pessoas que vêm de origens de elite como o Luaty Beirão [filho de João Beirão, já falecido, uma figura muito próxima de Eduardo dos Santos]. Ou seja, temos aqui uma ponte entre as massas e os intelectuais do Facebook que causam preocupação. São pessoas representativas de vários sectores. Exactamente. Por exemplo, o Bloco Democrático, um partido de intelectuais, não conseguiu fazer a ponte com as massas, enquanto partido. Existe um receio de que este movimento seja uma ponte. De algum modo, as acções do partido-Estado em relação a estes revolucionários estão a construir para estes revus a popularidade que eles não teriam há seis meses. Estão a fazer deles heróis. As características específicas deste caso [de uma acusação de preparação de um golpe de Estado] são absolutamente patéticas. Estamos a falar de activistas cívicos que estão a ler um livro de protesto não violento e que estão no país em África que tem a estrutura de Segurança Nacional mais complexa e mais extensa: um exército de 120 mil homens completamente sob o controlo do Presidente, uns serviços de informação competentes e ubíquos, uma polícia de intervenção rápida extremamente violenta e competente na forma como exerce a violência. É patético dizer que estas pessoas estão a organizar um golpe de Estado. Mas é sintomático da ansiedade que o partido reconhece existir na sociedade angolana e da própria turbulência em surdina que existe dentro do partido. Significa que a repressão vai continuar e poderá mesmo agravar-se?Este ano, já tivemos situações a níveis muito diferentes: a condenação de um activista [José Marcos Mavungo] a seis anos de prisão [efectiva] em Cabinda, a perseguição judicial absolutamente inaceitável a Rafael Marques, tivemos aquilo que parece ser um massacre de alta escala, o acto de violência mais sério da África Austral pelo menos na última década [no Monte Sumi, Huambo, em que fiéis de uma seita religiosa foram mortos pela polícia]. Não sabemos ao certo quantas pessoas, mas pelo menos várias centenas de pessoas foram mortas. O Governo, apesar dos pedidos das Nações Unidas, não permitiu que um inquérito idóneo fosse realizado a esta questão do Monte Sumi. Temos a prisão dos revus, nos últimos meses. Ou seja: não são acidentes. E isso vai continuar?O MPLA contém pessoas com um maior pragmatismo, mas também contém uma dimensão trauliteira e securitária que pertence à genética do partido, que é a dimensão que vimos, em 1977, de um Estado policial. Claramente as pessoas que representam essa sensibilidade dentro do MPLA estão a ser viabilizadas, está a ser-lhes dado esse espaço de manobra para seguirem essa repressão. Se pensarmos que isto acontece num contexto macroeconómico de grande instabilidade e que todas as condições que levaram ao aprofundar da repressão se mantêm, eu esperaria, infelizmente, que esse fenómeno continue e se aprofunde. Que consequências para o regime resultarão do caso do activista em greve de fome, Luaty Beirão?O regime está a gerir isto de uma forma idiota, criando mártires. A única explicação é o medo crescente em relação à sociedade angolana e em particular em relação à frustração da juventude. Se Luaty falecer, será uma grande tragédia e as consequências são imprevisíveis. Mas ele já ganhou uma vitória moral, fragilizando muito a credibilidade do statu quo. Como interpreta a mensagem, contida no discurso à nação de dia 15 de Outubro, de que o regime está “vigilante”, alertando contra os interesses estrangeiros que apostam na desestabilização, mas sem uma referência directa aos activistas?As autoridades procuram negar a legitimidade dos protestos falando de complots inacreditáveis, sempre financiados por inimigos externos. Todos os regimes autoritários fazem isto. O Governo quer passar uma mensagem inequívoca, especialmente a países ocidentais tentados a falar sobre os direitos humanos: o acesso aos negócios angolanos depende de estarem calados. Ainda sobre a sucessão, o filho de José Eduardo dos Santos posiciona-se como o mais provável candidato?Como politólogo, em vez de fazer futurologia, o melhor é colocar várias hipóteses em cima da mesa. Existe a possibilidade de ele estar a pensar seriamente no filho como sucessor, como foi feito no Togo ou no Gabão, em que houve a transição de pai para filho. Não há nada de excêntrico na ideia de um Presidente, que está no poder há quatro décadas, pensar que a única forma de segurar o seu legado é garantir que, em vez de um delfim, que depois pode dar uma facada pelas costas ao Presidente, à sua família e amigos, seja alguém do seu sangue. É um raciocínio inteiramente lógico. O facto de ele ter feito um esforço considerável para promover o filho e, apesar de não ter sido uma figura maltratada, o Presidente ter fragilizado por diversas vezes o vice-presidente, Manuel Vicente, faz-me pensar que a possibilidade de o filho suceder é uma possibilidade séria. Mas há outras possibilidades sérias. José Eduardo dos Santos pode querer que o filho o substitua um dia, mas ele só tem 73 anos e Robert Mugabe tem 90 anos. Esse plano de sucessão do filho pode ser um plano a muito longo prazo. O plano imediato pode ser o de não sucessão. Isso é algo que devemos equacionar. José Filomeno dos Santos foi agora reconduzido como responsável máximo do Fundo Soberano de Angola. É a confirmação do domínio familiar deste fundo, uma das maiores organizações de Angola?O filho do Presidente insiste que a posição que ocupa é por mérito próprio e apresenta um currículo que serve, realmente, em algumas áreas. Porém, numa economia tão política como é a de Angola, isto é um pouco como a mulher de César: não basta ser, tem de parecer sério. E não há dúvida nenhuma de que a nomeação do filho do Presidente para esta posição dá uma impressão de grande personalização do Fundo Soberano. Qual é o papel deste fundo, tendo em conta que a Sonangol tem assumido essa função?O modo mais correcto de pensar esta questão é que Angola tem dois fundos soberanos: a Sonangol e o Fundo Soberano. Até agora, é a Sonangol que tem um papel mais activo no estrangeiro, nomeadamente em Portugal. Em parte porque o fundo, apesar de ter sido criado há quase três anos, tem tido uma progressão muito lenta. Em parte porque alguns investimentos estão a ser feitos ao nível doméstico, como a ideia de uma cadeia de hotéis, com expressão africana, e o investimento em infra-estruturas. A Sonangol está no BCP e na Galp, e, apesar de se ter falado que esses investimentos poderiam passar para o Fundo Soberano, tal ainda não aconteceu, e acho que não está a ser equacionado. Este é um fundo que, supostamente, se rege por padrões internacionais. No entanto, não há o risco de que seja também um instrumento financeiro do Presidente?Está nas mãos de quem gere o fundo fazê-lo de uma forma idónea e sobretudo transparente, em que o tipo de especulação que preside a essa pergunta nem sequer se coloque. É verdade que o fundo afirma pautar-se por regras internacionais, mas esses princípios, os princípios de Santiago, são voluntários. Não há uma entidade regulatória acima do fundo que o possa supervisionar de forma coerente e exercer um controlo sobre as suas acções. A única instância em Angola que tem capacidade real de regulação, e isso é verdade para todas as instituições sistemicamente importantes para o país, é a presidência. Ou seja, é o pai do actual responsável pelo Fundo Soberano. Se o fundo quer ter uma reputação internacional credível, tem de levar em conta a imagem de opacidade da economia angolana e ser muito sério para se distanciar claramente desse legado da economia política angolana. A meu ver, nem uma nem outra aconteceram até agora. Como viu a divulgação em Junho de um documento interno da Sonangol, onde o actual presidente Francisco de Lemos põe em causa a forma como a empresa foi gerida nos últimos anos? Foram recados para Manuel Vicente, vice-presidente de Angola e ex-CEO da Sonangol? Isto sabendo que o actual CEO era administrador financeiro da Sonangol. Uma das grandes ironias é que o actual CEO da Sonangol, longe de ser uma figura que caiu ali de pára-quedas, é um quadro da Sonangol desde há muitos anos. E nessa altura não parecia ter estes problemas filosóficos. Dito isto, acho que é uma tentativa de debilitar o vice-presidente de Angola. O relato, factual, dos problemas da Sonangol parece-me correcto e espero que daí surjam algumas reformas importantíssimas. A Sonangol está no seu melhor quando se concentra no sector petrolífero. Mas quando é incumbida, como aconteceu através da Sonip, de gerir o imobiliário em Angola, ou de gerir a industrialização do país na zona económica especial, isso esticou de forma insustentável o que era a competência da empresa. E essas missões, que foram dadas à Sonangol não por Manuel Vicente mas sim pela presidência, não são criticadas. O que me importa, e o que me faz pensar que este relatório é uma forma de culpabilizar Manuel Vicente, é a ausência conspícua de projectos como a industrialização e o imobiliário, que são os problemas mais graves que a empresa enfrentou na última década. Isabel dos Santos está de facto afastada da política, dedicando-se aos negócios?A economia angolana e as circunstâncias especiais da economia do país nas últimas duas décadas são absolutamente estruturantes para a trajectória de Isabel dos Santos, mas ela percebeu há uns anos que queria internacionalizar-se. Neste momento, por várias razões, estamos a viver uma espécie de “portugalização” de Isabel dos Santos, em que o nome dela aparece na voz de algumas pessoas como uma espécie de patriota que vem salvar os bancos portugueses dos chineses e dos espanhóis. Nesse sentido, temos aqui uma estratégia altamente globalizada em que a economia angolana continua a ser uma âncora fortíssima. Não nos podemos esquecer, por exemplo, até que ponto a Unitel — que é um quase monopólio nas telecomunicações em Angola — gera receitas para o império de Isabel dos Santos e muito menos voláteis. Porque as pessoas falam ao telemóvel quer o petróleo esteja em alta ou em baixa. Não quero sugerir que Isabel dos Santos transcendeu a economia angolana e o estatuto altamente privilegiado que ela teve e continua a ter, porque isso gera receitas importantíssimas, mas que estamos perante uma estratégia global da criação de um império que transcende não só o estatuto angolano, mas o contexto africano. Isabel dos Santos aposta no sector privado e assume-se como empresária, independente da presidência. Mas, como refere no livro, quem com ela negoceia sente que está também a fazer negócios com o regime angolano. Até que ponto isso é fonte do seu sucesso? Apesar de Isabel dos Santos continuar a enfatizar o seu talento empreendedor, não há ninguém que não associe um ao outro. Até porque em Angola não há uma esfera económica independente, ou sequer autónoma, da política. Há apenas uma maneira de resolver isto: com a clarificação inequívoca das origens desse dinheiro. É óbvio que nenhum investidor angolano pode ou deve ser submetido a um grau de escrutínio superior ao de outros investidores estrangeiros em Portugal, o que seria discriminatório. Mas o contrário — a total ausência de curiosidade das autoridades competentes a este respeito — é inaceitável. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
Bonga: Coração angolano, voz de musseque
Antes de o conhecermos como músico, foi atleta de eleição. O cantor da resistência anticolonialista transformou-se em estrela internacional. Quarenta anos depois da independência de Angola, continua a ser voz da consciência do seu povo (...)

Bonga: Coração angolano, voz de musseque
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Antes de o conhecermos como músico, foi atleta de eleição. O cantor da resistência anticolonialista transformou-se em estrela internacional. Quarenta anos depois da independência de Angola, continua a ser voz da consciência do seu povo
TEXTO: Recebe-nos de sorriso aberto, como imaginamos que recebe toda a gente, num rés-do-chão em Alfornelos, nos arredores da Pontinha, subúrbio de Lisboa. Abençoadamente jovem nos seus 72 anos, ágil e irrequieto como o atleta de destaque que foi outrora, o homem nascido José Adelino Barceló de Carvalho, em Porto de Kipiri, a norte de Luanda, vive feliz com o que vida lhe trouxe e com a vida que prossegue hoje, sempre activa. Com mais de quatro décadas de carreira, continua a dividir-se entre Lisboa, Paris e Luanda, levando a sua música e as personagens das suas canções, extraídas aos musseques (os subúrbios não asfaltados da grande cidade), ao mundo que o ouve há muito. Leva-lhe o semba, a rebita, o merengue ou a kilapanda, músicas de tradição que assumiu como missão preservar e divulgar. Ao perguntarmos por Bonga Kuenda em Portugal, o mais provável é que a conversa desemboque em Mariquinha ou Olhos molhados, duas canções que, por aqui, se lhe colaram à pele. Acontece que, quando esta última foi editada em 1988, incluída no álbum Reflexão, aquele que foi o primeiro disco de ouro e platina atribuído a um músico africano em Portugal, já Bonga tinha percorrido muito caminho. Quando a Mariquinha nos chegou, já estávamos em 1996 e quase quatro décadas tinham passado desde que o jovem José Adelino, ainda adolescente, ajudara a fundar grupos de folclore angolano que eram também forma de resistência contra o colonialismo português. Aqueles anos de formação foram os determinantes na sua vida. Percorrendo bairros como o Marçal, Coqueiros ou o Bairro Operário, ia tendo consciência cada vez mais plena das injustiças e desigualdades criadas pela colonização. Percorrendo-os, o seu olhar atento absorveu os rituais de vida e a cultura transmitida de boca em boca na rua, que defenderá e exaltará até hoje. Angola é independente há 40 anos e Bonga viveu todo o processo — o antes, o durante e o depois —, ora de forma próxima, ora à distância, fruto da sua condição de emigrado na “estranja”. A sua música foi e será sempre um comentário e uma reflexão sobre a condição angolana, sobre aquilo que permanece de imutável no espírito das suas gentes e sobre aquilo que a realidade vai mudando: a colonização, a independência, a guerra civil e a incompleta ideia de democracia que se lhe seguiu. Numa das paredes da casa de Alfornelos, vemos o diploma com que o Estado francês o distinguiu, no final de 2014, como Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras de França. Há muito mais que Mariquinha ou Olhos molhados. Há o estatuto de maior embaixador da música angolana, cimentado desde a década de 1970. Há o percurso como campeão do atletismo português, correndo pelo Benfica. Há aquele miúdo que se juntava aos irmãos (é o terceiro de nove) para acompanhar o pai, tocador amador de concertina, raspando a dikanza — equivalente ao reco-reco português e instrumento que se tornaria uma das suas imagens de marca. Percussionista, acompanhou músicos angolanos radicados em Portugal e é provável que alguns leitores tenham memória de ver Rui Mingas, outro músico que fora atleta, no famoso Zip Zip — Bonga acompanhava-o nos batuques. Em 1972, acontece algo de milagroso. Em Roterdão, Barceló de Carvalho torna-se Bonga Kuenda. Com o também angolano Mário Rui Silva e o cabo-verdiano Humberto Bettencourt, a voz revela-se por fim. Oito horas em estúdio, nada mais, nada menos. Um disco de estreia, uma obra-prima. Angola 72, cantado em quimbundo, língua do Noroeste de Angola falada por cerca de três milhões de pessoas, é um álbum de uma riqueza interpretativa desarmante, de uma nostalgia desafiante e de denúncia consequente. “As pessoas sentiam-se representadas nele”, dir-nos-á. Impossível, de resto, não nos sentirmos representados, mesmo não sendo angolanos, na força da voz, das guitarras e das percussões (tocadas por ele); não nos sentirmos tocados por aquele jorro de música, tão próxima de tão descarnada, tão à flor da pele. Com Angola 72 percebeu que a voz rouca, que, em pequeno, lhe valera ser dispensado do coro da igreja (“Aqui só voz lírica”, recorda terem-lhe dito), podia, afinal, ser cativante. Mais: aquilo que cantava, e como o cantava, tocou não só os angolanos, cabo-verdianos ou moçambicanos que compreendiam tão bem o que dizia, como outros ouvidos atentos. Da Holanda haveria de saltar para a Alemanha e para a Bélgica. Daí para a Holanda e, por fim, para a França, onde vivem hoje quatro dos seus seis filhos. Foi em Paris que recebeu a notícia da revolução portuguesa. Pouco depois, editava Angola 74, álbum registado com outras condições técnicas e com um grupo de músicos alargado (magistral a participação do saxofonista guineense Jo Maka), mas que retém a força inabalável do seu canto. O estatuto que ganhara leva-o a contactar com todos os principais dirigentes da Angola independente, de Agostinho Neto a Jonas Savimbi, passando por Holden Roberto. Em 2012, Bonga editou Hora Kota, o seu trigésimo álbum. Mais uma vez, e como sempre, a importância da tradição, o apelo a que a sabedoria dos mais velhos seja aproveitada para o bem comum. Bonga é cidadão do mundo, homem viajado que, na semana anterior à entrevista com a Revista 2, actuara num festival em Londres, nova paragem na sua deambulação constante. Recentemente, meteu-se pelos caminhos do fado e gravou com Ana Moura Valentim, tema incluído em As Vozes do Fado, álbum de homenagem a Amália Rodrigues. Nos próximos meses, entrará em estúdio para preparar novo disco. “A tónica desse disco vai ser o reencontro e a família”, revela. “Não tem de ser família de sangue. Pode ser alguém que faz parte da nossa vida e que, portanto, se torna família. Será sobre o reencontro dessa grande massa de angolanos. ”Crítico das falhas democráticas do Estado angolano, comprovadas mais uma vez pela recente prisão de 15 jovens activistas, crítico igualmente da “pouca frontalidade dos governos portugueses sucessivos” perante a situação: “O meu melhor amigo é aquele que me chama a atenção para as coisas que estão mal, não o que fala às escondidas por interesses, neste caso económicos” —, Bonga Kuenda continua a ver-se acima de tudo como um representante do povo a que pertence. Quase no final da entrevista, recordou um concerto que dera no Algarve há alguns dias. “O espectáculo estava a abarrotar de gente que veio de Angola, que veio sei lá de onde, porque não me interessa de onde vêm as pessoas”, recorda. Conta-nos de miúdas e miúdos que “já não são africanos, que já nasceram cá”, mas que dançavam como se dançava nos tempos da sua infância. Sorri novamente aquele sorriso aberto e sincero que é o dele: “Aquilo fez-me pensar que, afinal, contribuí para alguma coisa. Estava ali a nossa música, a nossa tradição, aquilo que eu via e fazia há 50 anos em Angola, a terra de origem. ”Mais de 30 a 35 quilómetros de Luanda. É na zona do Bengo, a norte de Luanda. Os meus pais tinham ali uma chitaka, uma espécie de horta onde plantávamos a jinguba, batata-doce, mandioca. Eu nasço ali acidentalmente, porque não vivíamos lá, vivíamos em Luanda. Foi uma coincidência. Mas nasci ali e, como tradicionalista que sou, tenho muito orgulho em ter nascido naquele lugar específico, longe da grande cidade, que detesto. Deu-me as vivências de garoto no interior do país. Os miúdos daquele tempo [em Luanda] diziam como brincadeira que eu era do mato, que era um ‘matoense’. Faziam-no para tentar diminuir, mas eu dei-me conta que o ‘matoense’ tinha mais importância que os indivíduos da cidade, porque guardávamos a recordação da dança, da música, dos instrumentos típicos tradicionais, dos velhos que tinham muito mais pronúncia, das comidas que vinham de lá para Luanda e que eram totalmente diferentes. A gente tinha a boa mandioca, o bom [peixe] cacusso. Desde miúdo que guardei uma vontade de afirmação dessas coisas do interior. Luanda era a minha vivência. Mas a colonização marginalizava-nos nos musseques, nos bairros mais pobres onde faltava electricidade e água, onde faltava tudo. Eu fui uma das crianças desses sítios. Tínhamos de ir buscar água, porque não tínhamos torneira em casa. A electricidade eram aqueles candeeiros com chaminé ou a candeiazinha a óleo de palma. Estamos a falar dos anos 1940 e dos anos 1950. Fomos evoluindo calmamente, acompanhando aquilo que tinha que ver com a nossa identidade, porque demo-nos conta de que quem mandava no país era um estrangeiro, o colono. Não era muito bom, para dizer a verdade, porque na cidade estavam as pessoas que não tinham grandes carências, os filhos de assimilados à cultura portuguesa. Para nós era mais fácil comer um funge ou moamba e vestir-nos com os nossos paramentos, dançarmos as nossas músicas e os nossos ritmos, do que para os meninos da Baixa. Uns eram os meninos bem-falantes, filhos de funcionários públicos e de assimilados à cultura portuguesa, os outros eram os indivíduos da resistência cultural pró-africana de Angola. Nós tivemos essa consciência desde muito cedo. Uma criança africana de 10 anos já faz coisas de adulto. Vai fazer as compras ao longe na noite, se há uma cobra que entra em casa, é ela que vai ter de a matar, porque é o homem que está em casa. Não éramos crianças à espera que lhes pusessem a papinha toda na boca. Senti essa diferença ao longo dos anos. Era uma criança já adolescente antes de o ser. Tínhamos de nos fazer por nós próprios, com três educações. A da escola, a dada em casa pelos pais e, no meu caso, principalmente, a educação da rua. Porque o africano é muito espontâneo, muito natural. É tudo directo e quase tudo se passa na rua. Eu considero-me um privilegiado por ter tido essa educação. A criança era praticamente filha de toda a gente. A gente fazia uma asneira qualquer e havia um mais velho que ia a passar e repreendia. E puxava as orelhas. Éramos repreendidos duas vezes. Na rua e depois em casa. Mentira, tudo mentira. Todos os colonialismos foram horríveis, todos, com a santa cruz que entrou por ali dentro para benzer os negros. Mas a mesma cruz que os benzia benzia em missa campal os tanques e as metralhadoras para os matar. Fomos enganados, totalmente enganados. Quando os meninos negros iam para a escola, onde havia calmeirões de 20 anos a fazer a instrução primária, porque lhes era vedado o acesso ao liceu, às escolas técnicas e às faculdades, tornava-se muitíssimo complicado. Recriminavam quem não soubesse dizer correctamente “plural”, por exemplo. Há várias línguas em Angola, com gramática e dicionário, e eles falavam com o sotaque que se tem ao falar uma língua estrangeira. Diziam “prural”. Um alemão também não diz correctamente, por causa do seu sotaque, uma palavra portuguesa. Tivemos de combater isso. A maior forma de os povos estreitarem amizades e relações é a convivência, mas dificilmente a gente ia a casa de um branco. Havia hierarquia e autoritarismo, o chefe do posto que batia às pessoas. Senti isso na pele e senti isso no olhar, nas expressões. Vi como todos nós vimos. Não houve quem não tivesse visto os negros a serem maltratados, espezinhados, presos. Toda uma situação que marcou muito a minha geração. Felizmente, tinha a música. Nesse aspecto também sou privilegiado, porque o pai cantava e tocava a concertina. Tocava em casa, não era profissional. A mãe dançava, a avó cantava e marcava o ritmo nas bordas do prato. Embebi-me de música, fui embalado na música, quando era pequeno. Os vizinhos faziam música, nas ruas havia música como há aqui no coreto com a banda. No nosso caso, não era banda, nem pouco mais ou menos, mas era música tradicional. No final de tarde juntavam-se uns grupos com batuques, aquilo a que chamam aqui “tambores”. Todos os dias, cantando coisas improvisadas do quotidiano. A vizinhança era a música. Só tocávamos nos musseques, nos grupos recreativos que existiam e que nós mesmos fundávamos. Não era o colono que organizava essas coisas. O colono, quando organizava, fazia uma espécie de “pseudo-social” para inglês ver: “Cá estamos, a mãe pátria, a promover esses negrinhos. ” Nós tocávamos nas nossas festas, em baptizados, casamentos, aniversários. Foi por ali que comecei as minhas actividades. Depois nos grupos recreativos dos vários bairros, mas sempre nos musseques. Fui fundador de grupos folclóricos, nos Kimbandas do Ritmo e nos Kissueia. Dava uma mão forte no Carnaval, que nós achámos de uma importância capital, porque nos demos conta que, ao fazer o desfile, não para o governador, mas na zona onde morávamos, estávamos a fazer uma grande manifestação sociopolítica, cantando músicas contra o colono, o ocupante. A partir daí, manifestava-se a criatividade de cada um, de cada grupo. Foi formidável, uma mudança radical naquela pachorrice do indivíduo que fica a ver a banda passar. Começámos a reagir, tanto que o Carnaval foi reprimido pelas autoridades, que perceberam o que queríamos. Era a forma de dizermos que, mau grado a colonização, tínhamos música, tínhamos tradição, tínhamos uma maneira de ser e de estar, e que era preciso alimentar e defender isso. Tinha a música em paralelo com o desporto. Era com as duas coisas que ocupávamos os tempos livres. Cedo me dou conta de que tinha dotes especiais [para o atletismo, vindo a ser atleta do São Paulo do Bairro Operário e do Clube Atlético de Luanda]. A partir daí, nunca mais parei até vir para Portugal. Comecei por ser campeão em Angola [aos 23 anos, conquistou o título de campeão nos 100, 200 e 400 metros]. Depois, fui campeão aqui. A primeira vez que corri numa pista profissional de tartã foi em Atenas [Taça da Europa, 1967] e pulverizei imediatamente onacional [dos 400 metros], que demorou dez anos a ser batido. Nessa altura, já não estava em Portugal, já estava na “estranja” da vida. Primeiro tive, antes de chegar, aquela reacção nacionalista: “Não deve haver nada melhor do que Angola. Os amigos, a convivência salutar, isto é o paraíso. ” Mas tinha curiosidade, claro. Quando a gente chega aqui, quer saber o que isso é. Eu cheguei e encontrei a mesma pobreza que havia em Angola e portugueses tão descontentes quanto os angolanos. Depois, claro que as pessoas são diferentes. Vou recordar um episódio. Quando assinei os documentos da secção de atletismo do Benfica, que na altura era no Campo Grande, fui convidado para ir beber um café à Churrasqueira do Campo Grande, que já existia naquele tempo. O homem toma o café dele, tira as moedas e diz-me assim: “Pronto, já paguei o meu, paga o teu e vamos embora. ” Ele é que me tinha convidado. Percebi logo que aqui era diferente, cada qual por si e Deus para todos. Quando nós vamos a um restaurante, quem convida é que paga tudo. Aqui não, é uma forretice incrível (risos). Absolutamente, mas era comunidade de qualidade. Havia os embarcadiços, os melhores jogadores de futebol, os funcionários públicos de férias com dinheiro no bolso para gastar, os estudantes que se vinham formar. Encontrávamo-nos para os lados de um restaurante no Rossio, o Piquenique. Íamos lá para ver a nossa malta e eram os jogadores que nos pagavam uns copos, porque ganhavam mais que nós. Não interessava o clube. Desde que fosse bumbo [negro], não interessava que fosse do Porto, do Sporting ou do Benfica. Eu mesmo era amigo do Eusébio [avançado do Benfica] e do Hilário [defesa do Sporting]. Encontrávamo-nos pela amizade que tínhamos e pelas grandes afinidades que partilhávamos. Um africano de Angola tem grandes afinidades com um africano de Moçambique, quanto mais não seja pelas comidas e pelos sabores. Fazíamos cada farra! Aquilo eram umas kizombas [festas] incríveis, improvisadas. “Parece que fulano trouxe camarão de Moçambique, vamos lá comer o camarão do gajo. ”Não, não tinha ideia nenhuma de fazer carreira na música. Enquanto estive em Portugal, de 1966 até 1972, fui sempre o Barceló de Carvalho do atletismo português. Mas já tinha trazido de Angola alguma experiência com a música e isso não desaparece. Colaborei com Eleutério Sanches, com Vum Vum, com a Lilly Tchiumba, Teta Lando, Rui Mingas, Duo Ouro Negro. Tocava percussão, punha umas vozes para ver se ficava bem. Mas só me voltei a sério para a música depois de 1972, quando saí de Portugal por razões políticas. Estava envolvido com a resistência anticolonialista a funcionar em Luanda. Era como que um estafeta. Como viajava muitas vezes para o estrangeiro, levava cartas de informação sobre o que se passava no interior. Não eram questões forçosamente ligadas a partidos políticos, eu não apoiava partido nenhum, mas questões da consciência dos angolanos. Quando os tipos são presos em Angola, fui avisado: “Cuidado que aquela célula de que fazes parte já foi apanhada. ” Nessa altura até já nem estava no Benfica, treinava no Belenenses. Quando chegou a notícia, “pernas para que te quero”. Muito normal. Afinal, era atleta. Disse que ia comprar uns discos à Holanda — a ingenuidade dos homens — e nunca mais voltei. É já na Holanda que oficializo o nome Bonga, para não dar a conhecer a identidade Barceló de Carvalho. Tinha o receio de, sendo perseguido pela polícia política [portuguesa], poder ser apanhado pela polícia holandesa e devolvido a Portugal. É daí que vem o Bonga. A escolha do nome, que está relacionado com ritmo, com musicalidade, nasce também da necessidade de afirmar as raízes. Bonga Kuenda. Mas na Holanda, em Roterdão, a fome das pistas e do atletismo levou-me a querer treinar. E começo a ser visto. “Que é isso? Quem é esse gajo que corre desta maneira?” Pouco depois saía num jornal que aquele Bonga era Barceló de Carvalho, recordista português dos 400 metros. Assustei-me e fugi novamente, para a Alemanha. Era tudo o que tinha cá dentro e que tinha de sair. Eu já cantava nas festas que fazíamos na Holanda para lembrar Angola, mas não se acreditava que aquela rouquidão da minha voz sobressaísse. Nem eu acreditava. Mas oé gravado e começa a ter um impacto incrível que até a mim me surpreende. Começou a chegar a Angola através de embarcadiços cabo-verdianos, alguns dos quais acabaram presos. O Governo tinha um orelhão… Descobriram logo. A partir daí, comecei a dar mais umas voltinhas para não ser apanhado. Nessa altura a minha voz foi usada pelos grandes partidos angolanos. O MPLA usou-a nas suas rádios, que emitiam fora de Angola, naturalmente, e que eram escutadas por toda a gente. Fui sentindo o impacto [do disco] nos telefonemas para Angola que ia conseguindo fazer. “Pá, não queiras saber, fizeste um” Todo o mundo queria aquele disco, porque as pessoas se sentiam representadas. Atletismo não podia fazer mais. Na Holanda não podia, nem tinha moral e força física para o fazer. Mas, tendo gravado, estava à espera que houvesse uma oportunidade. E iam-me dizendo que eu tinha de assumir o disco que tinha gravado. Olhei em volta e vi vários nomes de música internacional de intervenção: Francesca Solleville, Bob Dylan, Chico Buarque de Hollanda, Fela Kuti, Franklin Boukaka, Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira. Percebi que não estava sozinho. É nesse contexto que chego a França e é a França que me apoia, que me considera, que reconhece o valor do artista enquanto cantor de intervenção. Já em Paris. Tinha gravado oe o 25 de Abril acontece quando o disco estava prestes a sair. Recebi a notícia com risos e lágrimas. Mas risos e lágrimas que emudeceram rapidamente, pela responsabilidade que todos tínhamos a partir dali. Se na guerrilha tínhamos tido aqueles problemas todos com dissensões, inimizades, intrigas, com a independência, que sabíamos que ia naturalmente acontecer, como ficaríamos? Era certo que iriam chegar todas as conotações políticas, mas a nossa prioridade tinha de ser, primeiro que tudo, dar as mãos entre nós e saber o que queríamos e para onde íamos. Mas com todas as coisas apetecíveis que Angola tem, já estávamos a ver o mundo a girar à volta da massa, do, como dizemos, que fazia movimentar os viciados habituais, fabricantes de armamento e fazedores de guerras. Tínhamos de ter tido uma atenção incrível a tudo isso, mas já estávamos divididos. Tínhamos o FNLA, a UNITA, o MPLA. Lá em Paris ficámos a olhar uns para os outros. “Quem é que vai ser quem neste contexto?” Ficámos 48 horas a pensar nisso. Depois começaram a aparecer os angolanos que quiseram logo partir. Na maior parte dos casos, deram-se mal, mas qual é o filho da terra que não tem esse impulso de voltar? O país era nosso e queríamos consertá-lo. Eu fui indo a Angola, mas com a retaguarda defendida. Nunca voltei definitivamente por várias razões. Principalmente porque já tinha a minha actividade artística [em França] e tinha músicos [na banda] que não eram angolanos. Mas, quando era solicitado, ia. Fui a Angola, via África do Sul, para tocar nas zonas da UNITA. Da mesma forma que fui a Moçambique para me encontrar com Samora Machel. Fi-lo porque era solicitado: “Será que o nosso grande artista nos pode dar o prazer de vir cantar para esta grande massa de angolanos?” E eu ia e, como pessoa livre, assumia-o e constatava a realidade. Corri riscos, efectivamente, mas não sou pertença de ninguém. Em 2015 ainda estou a pagar a factura de ter sido amigo de Jonas Savimbi. Nem pouco mais ou menos. O que houve foi medo do diálogo. Nós temos de ter a capacidade de encontrar os nossos líderes e de falar com eles. Como é que não dizemos o que nos vai na alma? Eu, mais uma vez, sou um privilegiado. Falei com o Holden Roberto [da UPA], falei com todos eles, em encontros que não foram públicos, porque o que queria era saber o que pensavam. Tive um encontro com José Eduardo dos Santos, no palácio, e ele recebeu-me de braços abertos. Temos a mesma idade e eu fui como embaixador da sociedade e da cultura musical angolana, aquele que divulga Angola no bom sentido. Tive com ele a mesma postura que com qualquer outro dos dirigentes políticos com quem me encontrei: vamos falar, vamos conversar, vamos rir. Os políticos africanos têm de reaprender a rir. Não é só rir “de caxexe”, às escondidas, mas rir publicamente. Rir por poder dizer coisas sérias. Rir com motivo para rir, por ter seguido uma política boa para o povo — mas raramente os políticos riem. Veja-se o ridículo. Tudo por causa de políticos maquiavélicos. Eram as canções normais que a gente canta quando sente que há um clima que queremos denunciar. Mas, quando fui proibido, as pessoas continuavam a dançar em casa as canções do Bonga. Ai da farra ou kizomba onde não passasse o Bonga. O que me faz manter o bom humor é que 80% das minhas actividades artísticas são lá fora [de Portugal e de Angola]. Dão-me dinheiro para viver, para sustentar as crianças, para ajudar este e aquele e não ter de estar à espera, de mão estendida, pela subvenção de nenhum governo, nem de nenhuma personagem. E assim vou levando a vida de bom humor, fazendo espectáculos da melhor qualidade para demonstrar a este povo o que somos capazes de fazer, musicalmente falando. Isso para mim é muito importante. Digo-o por causa do europeu mal educado, mal formado e desrespeitador da cultura alheia. Principalmente quando se trata de ex-colonizados, têm infelizmente o hábito de denegrir ainda mais. “Bonga, venha aqui cantar, mas não se esqueça de trazer umas mulatas para remexer as bundas. ” Dava a impressão que a bunda da mulata era mais importante do que o canto do Bonga. Mandei lixar esses tipos. Já nas europas lá de cima, queriam fazer de mim um Julio Iglesias africano. Foi o que encontrei [nos anos 1980]. Coube-nos a nós educar essas pessoas a reconhecerem-nos verdadeiramente como artistas. No primeiro espectáculo que fiz em França, fui incluído a título de animador. Nem me consideravam artista. Claro que antes de começar a cantar, já com um fundo de música, tive de dizer umas coisas. A minha tarefa não tem sido fácil. Tive de lutar para ter respeito. A melhor maneira de nos defendermos é saber o que somos e para onde vamos. O que aceitar e ao que dizer não. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não estou a gostar nada dessa brincadeira. Já viu qual é o aparelho necessário para dar um golpe de Estado em Angola? Estamos a ser ridículos. Engrenaram estas prisões para servir de exemplo, que é o que têm feito. A imagem que Angola nos está a dar é que reprime para que outros saibam que é assim que age, para outros terem medo de reagir. Isso é uma vergonha. E eu tenho de perguntar: onde está a comunidade internacional quando acontece isto? A situação é triste para a democracia. Estes nossos países dependem muito da comunidade internacional. Petróleo, jogadas políticas, comércios, indústrias, passaportes diplomáticos. Não é maltratando, aprisionando que chegamos a lado algum. Onde está o diálogo? Então as pessoas não falam entre si? E a nossa casa fica assim, desarrumada? Tem de se dar de comer a quem tem de comer, dar instrução e dar saúde. Esse é o caminho. E parar com aquela campanha sistemática de dizer que quem critica Angola é contra Angola. Já foi assim noutro tempo, no da outra senhora. Então e agora? Como é que estamos a conviver entre nós? Até fizemos uma guerra que nunca devia ter existido. Veja o que diminuímos do ponto de vista humano. Uma tristeza. Não é por aí, tenham paciência. Continuam a fazer sentido e a ter cabimento. E beneficiam de eu não ser explícito, para não vulgarizar as coisas. Ainda temos esta boa maneira de ser, a de não atacar com termos grosseiros. Ainda temos um. Mas será que esses indivíduos não nos ouvem? Como é que vamos falar para sermos escutados e sermos entendidos? Já fomos mais unidos. Noutro tempo, a gente encontrava-se nas ruas. Agora estamos cada qual para o seu lado. As pessoas não estão a falar, não se estão a visitar. Eu não quero que a mundialização nos transforme dessa forma. Até porque é o povo que se está a lixar. Estes 40 anos têm muito que se lhe diga. Temos um ditado que diz “Nós entre nós”, ou seja, temos de estar bem entre nós para receber quem nos vem visitar. Mas as famílias estão divididas e isso é terrível. Por onde é que a gente vai? Por que caminho enveredar? Não é o do chinês, não é o do russo, não é o do brasileiro. Vamos ter de mudar, mas não temos de perguntar a ninguém como se muda, vamos ter de ser nós próprios. Qualquer que seja o teu clube, somos todos mwangolés. Vamos falar e vamos consertar, porque os problemas são da nossa responsabilidade. Quarenta anos depois, ainda vamos condenar o colono? Foram 40 anos nossos e 500 com outros, mas não conseguimos mais do que isto com os nossos 40? Prendemos, matámos, trucidámos, roubámos. Quando fazemos o? Precisamos de conviver. Precisamos do reencontro.
REFERÊNCIAS:
Artistas do universo lusófono vão invadir Macau
Seis exposições de arte contemporânea e uma intervenção de arte pública vão tomar conta daquele território a partir de 9 de Julho, revelando uma geração recente de artistas lusófonos, de Vhils a Yonamine, de Francisco Vidal a Wasted Rita. (...)

Artistas do universo lusófono vão invadir Macau
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Seis exposições de arte contemporânea e uma intervenção de arte pública vão tomar conta daquele território a partir de 9 de Julho, revelando uma geração recente de artistas lusófonos, de Vhils a Yonamine, de Francisco Vidal a Wasted Rita.
TEXTO: Seis exposições de arte contemporânea e uma intervenção de arte pública, nas quais participarão 27 artistas oriundos dos vários países de língua portuguesa, vão espalhar-se por Macau de 9 de Julho a 9 de Setembro. O programa tem curadoria de Alexandre Farto (Vhils) e Pauline Foessel, e nele participarão artistas como Francisco Vidal, MaisMenos, Yonamine ou Wasted Rita. O programa Alter Ego integra-se na iniciativa Encontro em Macau – Festival de Artes e Cultura entre a China e os Países de Língua Portuguesa, e permitirá aferir o momento actual de uma série de nomes das novas gerações artísticas lusófonas. Como o próprio nome acaba por sugerir, centrar-se-á, segundo a organização, numa “investigação das complexidades da construção do Eu com o objectivo de revelar a verdadeira natureza da sua relação com o Outro e o mundo que nos rodeia”, sendo que cada exposição abordará uma dimensão diferente da questão. A exposição O Eu explorará a autoconsciência e o seu papel na capacidade de interagirmos com o mundo à volta, incluindo, entre outros artistas, obras dos portugueses Vhils e João Ó & Rita Machado, do chinês Wing Shya, ou do são-tomense Herberto Smith. Em O Outro, estarão em evidência obras de Abdel Queta Tavares (Guiné-Bissau), Fidel Évora (Cabo Verde), Pedrita (Portugal) ou Tony Amaral (Timor-Leste), enquanto Da Linguagem à Viagem se centrará na comunicação e em experiências imersivas, com obras do brasileiro Marcelo Cidade ou do angolano Yonamine. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Em Choque Cultural, as falhas de comunicação serão pensadas em trabalhos dos angolanos Kiluanji Kia Henda e Nástio Mosquito, do português Miguel Januário (MaisMenos) ou do moçambicano Gonçalo Mabunda, para a Globalização ser reflectida em peças do brasileiro Guilherme Gafi e da portuguesa Wasted Rita. O ciclo é completado por Alter Ego, onde estarão em evidência obras do luso-angolano Francisco Vidal, e por uma intervenção de arte pública do português Add Fuel.
REFERÊNCIAS:
O saneamento de Os Maias
Desiste-se da Escola Pública. Mas também do SNS, cada vez mais descaracterizado e reduzido a um serviço caritativo para pobres enquanto florescem as mil flores dos hospitais privados para quem pode pagar. (...)

O saneamento de Os Maias
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-27 | Jornal Público
SUMÁRIO: Desiste-se da Escola Pública. Mas também do SNS, cada vez mais descaracterizado e reduzido a um serviço caritativo para pobres enquanto florescem as mil flores dos hospitais privados para quem pode pagar.
TEXTO: Depois de ler o artigo de Carlos Reis sobre o “saneamento” de Os Maias, pergunto-me se Portugal não estará a desistir de si mesmo, da sua literatura, da sua língua, da sua Escola Pública?Os mais pobres, aqueles cujos pais não têm biblioteca em casa, não vão ler Eça de Queiroz, nem Garrett, nem Camilo, nem, pelos vistos, Cesário Verde. Fica para os colégios privados, a quem parece estar a deixar-se a preparação das futuras elites. À Escola Pública restará a leitura rápida de textos fáceis e curtos, ao contrário de uma cultura de exigência sem a qual jamais poderá cumprir o seu papel de ser um factor de igualdade de oportunidade para todos. Mas, enfim, Os Maias, como as Viagens na Minha Terra e o Amor de Perdição colidem com o facilitismo, não há espaço nem tempo, não cabem num SMS. Desiste-se da Escola Pública. Mas também do SNS, cada vez mais descaracterizado e reduzido a um serviço caritativo para pobres enquanto florescem as mil flores dos hospitais privados para quem pode pagar. Como é que não se consegue travar a drenagem do SNS para o privado? Como é que se deixa degradar a TAP e os CTT a um ponto nunca visto? E como é que sectores estratégicos da economia continuam em mãos de empresas chinesas que são, como se sabe, instrumentos de um Estado que não é o nosso?Vão com certeza chamar-me soberanista e um dia destes ainda vou ter de pedir desculpa por ser português, gostar do meu país, da sua língua (apesar do acordo ortográfico), dos seus Os Lusíadas e daqueles navegadores que segundo disse Amílcar Cabral, numa entrevista que lhe fiz para a Voz da Liberdade, “deram de facto novos mundos ao mundo e aproximaram povos e continentes”? Sim, eu sei que há limites para o voluntarismo e para uma “intervenção consciente num processo histórico inconsciente”. Mas também sei que foram a abdicação, o conformismo e o politicamente correcto que abriram caminho à vitória de Trump e de todos os populismos que estão a pôr em causa o que parecia definitivamente adquirido. Vejo a pavonearem-se por aí, em várias alas direitas, ex-esquerdistas que, no Verão Quente de 75, queriam substituir Camões pelos textos de dirigentes dos movimentos de libertação africanos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Alguns de nós, que tínhamos estado presos e exilados por nos opormos à guerra e ao colonialismo, não nos calámos nem deixámos sanear Camões. Também hoje não sou capaz de me resignar perante esse atentado à cultura e à Escola Pública resultante da abdicação do Ministério da Educação que remete para as escolas a decisão de eventualmente passar Eça de Queiroz à clandestinidade. Ao primeiro-ministro e ao Presidente da República cabe o cumprimento da Constituição no que respeita à defesa da língua e da Escola Pública. Gostava de saber o que pensam da retirada de Os Maias da “lista de obras e textos para a Educação Literária” no 11. º ano. Sei que há muitos números e contas a fazer até à aprovação do Orçamento de Estado. Mas gostem ou não, nada é tão prioritário como Eça de Queiroz e Os Maias.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra escola cultura educação igualdade
Montepio financiou em 8,5 milhões construtor que deu a Salgado 8,5 milhões
Em 2009, José Guilherme contraiu um crédito de 8,5 milhões no Montepio. Nesse ano deu o bónus de 8,5 milhões ao líder do BES. Investigação do PÚBLICO a uma era de irresponsabilidade na banca. (...)

Montepio financiou em 8,5 milhões construtor que deu a Salgado 8,5 milhões
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em 2009, José Guilherme contraiu um crédito de 8,5 milhões no Montepio. Nesse ano deu o bónus de 8,5 milhões ao líder do BES. Investigação do PÚBLICO a uma era de irresponsabilidade na banca.
TEXTO: Entre Março e Abril de 2009, a Caixa Económica Montepio Geral (CEMG, banco Montepio) financiou em 8, 5 milhões de euros, e pela primeira vez a título pessoal, José Guilherme, o empreiteiro amigo do ex-presidente do BES Ricardo Salgado. O construtor civil da Amadora e de Luanda que, no mesmo ano, alega ter “oferecido” a Salgado 8, 5 milhões de euros (entre outras verbas), gesto que atribui a conselhos que este lhe deu em 2009, mas que as autoridades suspeitam de serem parceiros em negócios. Ao todo, entre 2009 e Junho de 2014, o Montepio concedeu empréstimos pessoais a José Guilherme de cerca de 28, 4 milhões de euros, que estão na quase totalidade por liquidar. O P2 seguiu o rasto das investigações que as autoridades estão a levar a cabo ao grupo que durante anos gravitou em torno do Grupo Espírito Santo (GES) e do Banco Espírito Santo (BES). E descobriu um enredo que mostra como os destinos de Ricardo Salgado e de Tomás Correia, presidente do grupo Montepio desde 2008, se cruzam em torno de vários empreiteiros da Amadora, como o caso de José Guilherme. Desde 24 de Julho de 2014, quando a Polícia Judiciária e o Ministério Público saíram à rua para cumprir o mandato de detenção de Ricardo Salgado, que a ideia de impunidade perdeu força. Foi também a partir deste momento que chegaram ao domínio público descrições de acontecimentos que revelam os interesses a mexerem-se nos bastidores. Relatos de construtores, possíveis biombos de Ricardo Salgado. E que podem, até, ter servido de pára-vento nas relações entre os presidentes do antigo BES e da Associação Mutualista Montepio Geral (AMMG). Os investigadores desconfiam que Ricardo Salgado possa ser o vértice da pirâmide, mas não era o único banqueiro a facilitar a alguns clientes o acesso ao crédito em condições mais flexíveis. Outros banqueiros faziam o mesmo. Entre 2009 e 2014, o Montepio deliberou mais de dez vezes sobre operações de crédito directo a José Guilherme, a quem começou por emprestar 8, 5 milhões de euros, com entrega de letras e livranças. Em 2012, a dívida subira para mais de 12 milhões e a CEMG, no ano seguinte, aliviou as responsabilidades de José Guilherme, passando a exposição para uma empresa de arrendamento imobiliário, a Sintril, o que permitiu continuar a financiar o construtor, a título pessoal. Semanas antes do fim do BES, o banco libertou mais 17 milhões de euros usados parcialmente pelo cliente para liquidar uma dívida de 6, 9 milhões da Vergui, a empresa que recebeu a mais-valia paga pelo GES num negócio em Angola que ainda está sob investigação. Foi o último crédito, mas não a última decisão de Tomás Correia. A 4 de Agosto de 2015, na véspera de deixar o banco, para se concentrar na Associação, o banqueiro reforma a dívida de José Guilherme, ou seja, alarga prazos de pagamento. O detalhe do problema está aqui: em 2010 a maré mudara, e Guilherme tinha empresas em falência técnica, como revelará o Sol em Abril de 2015. Aparentemente, estava com dificuldades para cumprir as responsabilidades, sem condições para pagar as dívidas pessoais que estava a contrair no Montepio. O resultado foi o esperado: os cerca de 28 milhões de euros emprestados ao construtor acabaram por contaminar o banco detido pela AMMG, a maior instituição da economia social do país. Ainda antes, no primeiro semestre de 2009, uma ocorrência chama a atenção dentro do Montepio. O ex-administrador executivo do grupo José Almeida Serra, perante uma operação de crédito de mais de quatro milhões de euros, para comprar a Ludomus, uma empresa angolana, levantou dúvidas. Afinal, o pedido partira de Pedro Correia, filho do líder, Tomás Correia, o que, na sua perspectiva, abria um potencial conflito de interesses. A Ludomus tinha outros investidores e gerentes: Paulo Guilherme, filho do cliente José Guilherme, e o seu sogro e sócio, Eurico Brito. Ao P2, Almeida Serra, ex-ministro do Mar de um governo de Mário Soares, “não desmente” a situação em que se viu envolvido. A tentativa falhada de ir levantar fundos junto do Montepio por parte do filho de Tomás Correia foi interpretada na mutualista como a demonstração da proximidade da família Correia à família Guilherme. No entanto, à SIC, em 2015, interpelado no programa Negócios da Semana, sobre a amizade ao empresário, Tomás Correia não hesitou: “Eu não tenho amizade com José Guilherme. Não há nada disso. ”Tempo depois, a Ludomus passa a figurar na lista de fornecedores do grupo Montepio, que, entretanto, adquirira o Finibanco juntamente com a operação deste em Luanda. Para assinalar a sua presença em Angola, o grupo manda construir uma nova sede. A Ludomus foi a empresa encarregue de promover o projecto, que tinha um preço inicial de sete milhões de euros (2. 777. 950. 000 kwanzas). Acabou em 2016 por ser contabilizada com o custo de 18 milhões. As novas instalações ainda não foram sequer ocupadas. Hoje, as autoridades desconfiam de que o BES e a CEMG foram utilizados por clientes com conta aberta nos dois bancos para branquearem fundos relacionados com as actividades comissionistas em Angola. O BdP “não comenta eventuais processos em curso”. Em Julho deste ano, o P2 apurou que o supervisor solicitou ao Finibanco Angola informações sobre interesses relacionados com clientes, designadamente com a família Guilherme. Mas Luanda clarificou que só o podia fazer com autorização do Banco Nacional de Angola e dos visados. Por seu lado, a CEMG — chefiada desde 2018 por Carlos Tavares — em resposta ao P2 sobre a exposição do construtor ao banco declarou nada poder dizer sobre a relação “protegida pelo segredo bancário”. Já o Ministério Público, inquirido sobre as ligações que se estabeleceram entre o sistema GES/BES, o grupo Montepio, incluindo Finibanco Angola, e o construtor José Guilherme, afirmou o seguinte: “A matéria está a ser investigada no DIAP de Lisboa”, “não tem arguidos constituídos e está em segredo de justiça”. Às perguntas que o P2 dirigiu a Ricardo Salgado — “Qual a relação com Tomás Correia? Alguma vez tiveram negócios juntos? Que vias usou para receber os presentes de José Guilherme? Recebeu o construtor na sede do BES para falar sobre a liberalidade de 8, 5 milhões de euros? Quais as quantias que recepcionou de José Guilherme?” —, o banqueiro respondeu que estes assuntos “não lhe dizem respeito”. Ao longo dos últimos dias, o P2 tentou igualmente contactar José Conceição Guilherme e o seu filho Paulo, não tendo sido possível chegar à fala com nenhum deles. A Finurgest, sociedade de Guilherme, na Venteira, Amadora, informou que os dois se encontravam fora de Portugal. O P2 deixou as suas coordenadas e enviou de seguida um e-mail com os assuntos a abordar. Mensagem que até ao fecho desta edição não teve resposta. A investigação do P2 resgata factos, números e acontecimentos nunca divulgados, mas verificáveis. E junta informações publicadas em vários órgãos de comunicação. Foram ainda recolhidos depoimentos onde todos contam parte da verdade. Da soma fica o retrato de uma época marcada pelo culto do lucro e do encaixe financeiro. E de banqueiros e empresários com pouco em comum. A uni-los havia um modo de actuação: agiam segundo interesses particulares e não o das empresas ou das pessoas que representavam. E, às vezes, fora das regras, com poucos princípios. A partir de 2008, quando o contexto macroeconómico e social se alterou, assumiram mais riscos, com uma finalidade: sobreviver. Aqui estão os factos. No final da primeira metade da década passada, o Ministério Público (MP) leva a cabo a Operação Furacão, desencadeando buscas a várias entidades, descobrindo uma prática generalizada de fuga ao fisco que liga empreiteiros a bancos: BCP, BES, BPN e Finibanco. Fora do esquema está o Montepio, fundado em 1840, que conta actualmente com cerca de 620 mil associados. Conduzido de forma conservadora durante anos por velhos maçons, avessos ao risco, os bancos concorrentes olhavam para o Montepio como um “forasteiro”: sem apetência por grandes lucros e com preocupações sociais. Um “bicho”, onde maçons (José Almeida Serra, Maldonado Gonelha, João Proença, Fonseca da Silva, Braga Gonçalves) se juntam a católicos (Vítor Melícias, Alberto Ramalheira, Maria de Belém, César das Neves, pai). Alguns com afinidades partidárias, outros com distintas sensibilidades, mas movendo-se em alianças pessoais que se confrontam ciclicamente. Sempre com o objectivo: “Salvar o Montepio. ”Em 2004, nas eleições para a liderança da mutualista, José Silva Lopes derrota Maldonado Gonelha, e na sua administração entra António Tomás Correia. Não é um estagiário — tem anos de experiência na CGD. E de tudo o que se pode dizer dele é que percebe de banca, não se assume da maçonaria, mas tem amigos, afirma-se socialista. A 12 de Março de 2005, José Sócrates torna-se primeiro-ministro e logo se percebe quem manda. A receita para a prosperidade é o crédito que chega à economia barato e de fácil acesso. A moda é lançar grandes obras. À frente das empresas mais mediáticas (EDP, PT, Ongoing, CGD, BES, BCP, BPN, BPP) estão gestores de perfil no mínimo controverso e accionistas endividados. Uma “tempestade perfeita” que potencia esquemas alternativos. O procurador Rosário Teixeira, responsável pela Operação Furacão, não é o único a encontrar uma zona obscura nas relações que se estabelecem no sector da construção. A Polícia Judiciária (PJ) estranhava a proximidade entre alguns empreiteiros e alguns autarcas. O presidente da Câmara Municipal da Amadora, Joaquim Raposo, por exemplo, chamara a atenção das autoridades, que suspeitam de que possa estar no centro de uma teia de corrupção. E são as dúvidas que levam a PJ a fazer buscas, em 2004 e 2005, ao seu gabinete e ao de outros vereadores, bem como aos escritórios de empreiteiros da zona. Numa conversa telefónica, Raposo é surpreendido a ajustar pagamentos com um grande construtor, Jorge Silvério, seu mandatário das candidaturas autárquicas. Acertam contrapartidas pela aprovação da construção da Urbanização do Neudel, na Damaia. Como sempre acontece, qualquer inquérito dá pistas. O arquitecto que chefia o Departamento de Administração Urbanística da autarquia tem documentos a comprovar pagamentos, “uma avultada quantia de dinheiro”, pela autorização da urbanização do Moinho da Vila Chã, propriedade de José Guilherme. À medida que correm as investigações, o MP fica a saber de um encontro entre José e o filho, Paulo Guilherme, o arquitecto da câmara, e Joaquim Raposo, no qual combinam “gratificações” — dois cheques de uma empresa do construtor, a Pauguifer, levantados “por pessoa de quem nunca se conseguiu apurar a identidade”. Pelo meio, a PJ “escuta” de novo Raposo ao telefone, agora com um primo do então primeiro-ministro José Sócrates, José Paulo Pinto de Sousa (filho de um tio paterno de Sócrates): “É para ir buscar a encomenda ao Banco Espírito Santo e entregá-la ao José Guilherme. ” Guilherme tem sido referido como sócio em Angola de Pinto de Sousa, a quem terá prometido 20 milhões de euros, segundo informações vindas a público nos jornais. Em 2005, o inquérito parou no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) e assim ficou até 2009, quando foi reaberto. Durante os interrogatórios que se seguiram, os suspeitos entregam-se a um pacto oportuno e a falta de confissão leva o MP a considerar as provas insuficientes para deduzir a acusação. O autarca da Amadora e os outros 23 suspeitos, entre os quais José Guilherme e Jorge Silvério, ficam livres de condenação. Quando o processo deixou de estar sob segredo de justiça, saltaram os pormenores. A PJ reunira provas, como transferências bancárias. E acabou a concluir que, desde o final da década de 1990, havia uma prática generalizada, entre certos construtores, de pagarem subornos ou de partilharem negócios com políticos e financeiros. É mais do que uma tese, os episódios seguintes apontam para um certo padrão. A 14 de Dezembro de 2005, a gestora de fundos do BES, a Gesfimo, lança o Invesfundo II, com 7, 5 milhões de euros de capital, para desenvolver 86 lotes, em Alfragide, no Marconi Park. Os subscritores do Invesfundo II são três conhecidos construtores civis da Amadora: José Guilherme, Jorge Silvério e Amadeu Dias. Parte do dinheiro, que vai totalizar 74 milhões de euros, chega logo do BES: 31, 1 milhões de euros. Só mais à frente, em 2006, é que Ricardo Salgado convoca a CEMG a colaborar [crédito de 25 milhões de euros contratado no MG a 18/9/2006]. Mas o projecto imobiliário nunca chega a desenvolver-se. E agora está no centro de outra investigação policial. No quadro das averiguações ao GES, o Ministério Público vai juntando as peças. E em 2006 descobre possíveis movimentos que ligam os empreiteiros José Guilherme e Jorge Silvério a Ricardo Salgado e a Tomás Correia. O presidente do BES convertera-se, entretanto, numa espécie de comissionista, colocara-se fora do que exigia aos quadros, a quem o código de conduta proíbe “aceitar qualquer tipo de remuneração ou comissão por operações efectuadas em nome do grupo, bem como obter de outro modo proveito da posição hierárquica ocupada”. Talvez para não deixar rasto, constituiu no Panamá a Savoices. É a esta offshore que se suspeita que os sócios da Invesfundo II, Guilherme e Silvério, fazem chegar, entre Maio de 2006 e Março de 2007, dois milhões de euros. José Guilherme envia o dinheiro pela offshore Derinton Overseas Limited, com sede nas Ilhas Virgens Britânicas, e Jorge Silvério, pela Perdix, com sede no Panamá. O semanário Expresso avança que não é só a Salgado que os dois empreiteiros enviam quantias extra. Com pouco tempo de diferença, entre Junho de 2006 e Janeiro de 2007, destinam 1, 5 milhões a uma conta numérica, na Suíça, na Union des Banques Suisses, que as autoridades admitem pertencer a Tomás Correia. Questionado sobre as relações entre Tomás Correia e o cliente José Guilherme, que podem ter dado origem a eventuais pagamentos, o Ministério Público avançou ao P2 que se trata de matéria “em investigação no DCIAP, em segredo de justiça e tem três arguidos constituídos”. Confirmando-se os pagamentos, Ricardo Salgado e Tomás Correia terão dificuldade em esclarecer as afinidades aos dois empreiteiros. À Lusa, a 23 de Outubro de 2018, Tomás Correia (que em 2015 deixou de presidir ao banco) garantiu que nunca recebeu comissões de terceiros, nem de José Guilherme: “Não tenho informação de que alguma coisa, no quadro das relações com esse cliente, tenham corrido mal do ponto de vista do cumprimento. ”A matéria é delicada. Foi o que referiram ao P2 diversas fontes do Montepio. Uma delas retém a imagem: “Ele [T. C. ] desvaloriza as notícias negativas, mas, quando o interpelámos sobre esse caso, perdeu a atitude desafiadora, calou-se. ” O semblante fecha-se. Os amigos confiam: “Não acredito, conheço-o, não o faria. ”Na carta que, em 2015, dirige à Assembleia da República (AR), no quadro da comissão parlamentar de inquérito (CPI) ao BES, José Guilherme reconheceu pagar comissões por intermediações imobiliárias, sem adiantar mais. Aos poucos, o GES tornara-se um caso de promiscuidade extrema, gerando muitas conivências, o que se inscreve, aliás, na estratégia de dar poder a Ricardo Salgado. E de ganhar dinheiro. Luanda era um bom lugar para o conseguir. Qualquer conferência sobre o país enchia-se de assistentes. Fosse em Lisboa ou no Porto. Angola estava nos píncaros, com uma das mais altas taxas de crescimento do mundo (27%). Aí, uma empresa do GES comporta-se como um pequeno estado dentro de um Estado: a Escom. Na capital angolana, constroem-se três torres conhecidas por Torres Escom (agora Sky) — o símbolo da sua prosperidade. Em 2006, Ricardo Salgado foi ter com José Guilherme, que diz conhecer “há 45 anos”, para lhe propor uma transacção: comprar ao GES 33% da Escom Real Estate, por sete milhões de dólares (6, 6 milhões de euros). O construtor aceita. O que ali está em causa é apenas o começo de um grande negócio. Poucos são os munícipes da Amadora que não conhecem Joaquim Raposo, eleito presidente da autarquia em 1997, reeleito em 2005 e em 2011, nas listas do PS. Em 2007, o nome do autarca ainda constava em processos abertos pelas autoridades [arquivados em 2011]. Mas tem a fama intacta. Tomás Correia convida-o para estar presente na inauguração da sucursal de Vila Chã do Montepio, onde José Guilherme desenvolve o empreendimento Moinho de Vila Chã. Um balcão encerrado em 2017, por não ser rentável. Quem também comparece em Vila Chã é Luís Almeida (que estará na comissão executiva de Félix Morgado), que regressara da Guiné, para assumir a direcção da grande Lisboa e arredores. Um nome apontado dali em diante como da inteira confiança de Tomás Correia, o operacional na relação comercial do Montepio com muitos empresários, nomeadamente da zona da Amadora. Mais tarde, Luís Almeida acompanhá-los-á em Angola. Dentro da CEMG, o nome de Tomás Correia está em ascensão, a caminho da presidência, onde chega, em Março de 2008, para substituir José Silva Lopes. Pouco depois, em Setembro de 2008, o banco de investimento norte-americano Lehman Brothers cai com estrondo. Em Portugal, o BPN e o BPP soçobram. Os ventos deixam de soprar a favor do sistema financeiro. E um dos grupos que começam logo a patinar é o Finibanco, da família Costa Leite. Uma avaliação do BPI chega a um cálculo desolador: o banco vale nada. Ao contrário dos concorrentes, que se muniam de cautelas, remonta aqui a intenção de Tomás Correia de avançar com a iniciativa que vai marcar a sua liderança no Montepio. E é à Deloitte, e a três directores, João Neves, Pedro Alves e Pedro Monteiro, que pede estudos sobre o Finibanco, que o filho de Álvaro Costa Leite, Humberto, chefiava. Diferentemente do estudo que está nas mãos do patriarca Costa Leite, os técnicos do Montepio chegam a outro número: a média das avaliações dos activos do banco aponta para 250 milhões de euros. Divergências na família Costa Leite impedem Tomás Correia e Humberto Costa Leite de fechar a compra do Finibanco ainda em 2008. Mas os dois tornam-se aliados e juntos vão planear um meganegócio. Porém, vão ter de esperar por melhor ocasião. Em 2009, as más notícias chegam de todo o lado e às falências dos bancos junta-se a de um país, a Islândia. Nos mercados, o ambiente é impróprio para cardíacos. Mas é neste ano que a relação de parceria entre o GES, o BES, o Montepio e José Guilherme se estreita com vários negócios e decisões de crédito de difícil compreensão. Em Fevereiro de 2009, o mercado imobiliário parou e o projecto para o Marconi Park, do Invesfundo II, congelou. Ainda que, desde 2006, esteja capitalizado pelo BES, em 31 milhões de euros, o empreendimento não avança. Os subscritores do veículo, gerido pelo GES, José Guilherme, Jorge Silvério e Amadeu Dias, estão sob pressão para injectar dinheiro vivo. Sem grande discussão e sem chamar a atenção, o banco Montepio mete 25 milhões de euros no Invesfundo II. Um mês depois, em Março, por coincidência, o nome de José Guilherme estreia-se na lista dos devedores a título pessoal do banco Montepio, com um empréstimo de sete milhões de euros, apoiado numa letra a seis meses. Em Abril, José Guilherme entrega um novo pedido de 1, 5 milhões de euros, também a seis meses. A CEMG passa então a contabilizar créditos ao empreiteiro de 8, 5 milhões de euros, valor que volta a subir, em Novembro, para 9, 250 milhões de euros. Estes são os primeiros de uma sucessão de créditos que o cliente receberá do Montepio, até 2014, e sempre a rolarem. Estão em curso, noutra frente, acontecimentos. É possível medir o grau de gratidão de José Guilherme por Ricardo Salgado pelo nível das ofertas que lhe faz chegar. À luz do que tem sido divulgado, foi em Junho de 2009 que o construtor enviou um presente de 8, 5 milhões de euros a Ricardo Salgado. O banqueiro reconhece que o aceitou, “como uma liberalidade” e sustenta que o gesto se deve ao facto de o ter aconselhado, em 2009, a investir em Angola, onde, aliás, o construtor estava há vários anos. É entre estes episódios que as autoridades acreditam vir a encontrar respostas para as suas dúvidas. Perante quantias equiparáveis e timings, traçam-se cenários possíveis: é pura coincidência? Não há ligação? Guilherme “deu” os 8, 5 milhões a Salgado via BES Angola e tapou o “buraco” com os créditos pessoais [que não necessitam de justificação] do Montepio? Ou transferiu o dinheiro do Montepio para uma conta sua e desta para a de Salgado? O que quer que tenha acontecido, um cenário deste tipo levanta mais perguntas do que respostas. O método habitual é passar de conta em conta até se perder o rasto da origem do dinheiro. Nesta fase, o GES já estava a pagar pelos desmandos do passado, mas, em 2009, continua a ser olhado como a casa da realeza financeira. Ricardo Salgado está, no entanto, na posse de um segredo explosivo: a Espírito Santo Internacional está literalmente falida, com um défice de 1, 3 mil milhões de euros. Deve reportá-lo ao BdP, mas não o faz. Se o fizesse, o grupo rebentava logo. A venda da Escom torna-se então a prioridade. O GES atribui-lhe um número mágico: pede 500 milhões. Na comissão parlamentar de inquérito ao BES (2015), José Guilherme relatou que, assim que a Escom começou a comercializar os andares das três torres de Luanda, Salgado pediu-lhe que revendesse ao GES os 33% da Escom Real Estate, que adquirira três anos antes. Por escrito, o empreiteiro enumera uma complexa rede de sociedades, que dificulta a compreensão do negócio. Mas destapa uma proposta milionária: o GES devolve-lhe os 6, 6 milhões de euros que pagou em 2006, e pela revogação do contrato compensa-o com duas verbas distribuídas por duas das suas empresas: a Vergui recebe 5, 34 milhões de euros e a Guimavi, 8, 2 milhões de euros. Resumindo: pelos 33% da Escom Real Estate, Salgado pagou 21 milhões de euros ao seu sócio construtor, que apura uma mais-valia de 15 milhões de euros. Porém, detecta-se uma pequena, mas significativa diferença na história que Hélder Bataglia, o presidente da Escom, foi levar à mesma CPI: o GES pagou a José Guilherme 25 milhões de euros, e não 21 milhões. Resumindo, de novo: o encaixe é de 18, 4 milhões. Pelo que tem sido noticiado, as autoridades suspeitam de que o empreiteiro possa ter partilhado o lucro com Salgado. E com outros. A par e passo, ocorre dentro da CEMG um pequeno incidente envolvendo o filho de Tomás Correia, com vontade de investir em Angola. Ainda em 2009, Pedro Correia bate à porta da CEMG, para requerer um financiamento superior a quatro milhões de euros. O destino do dinheiro é a compra da já referida Ludomus, a empresa angolana de promoção imobiliária, gerida pelo filho de José Guilherme, Paulo Guilherme, e pelo seu sogro, Eurico Brito. A operação não passa despercebida ao gabinete de risco do Montepio e “derrapa” assim que José Almeida Serra, com responsabilidades no departamento, dá por ela. Não chega ao conselho de crédito. Percebe-se porquê. Envolve o filho do presidente, o que abre um potencial conflito de interesses. Interpelado pelo P2 sobre este episódio, Almeida Serra disse: “Não confirmo, nem desminto. ” Aclarou, porém, que o pelouro do risco estava representado no conselho de crédito e que havia um entendimento para “não analisar propostas entregues à última hora”. De resto, “sempre que se levantassem dúvidas, as propostas eram retiradas para reavaliação”. Pedro Correia salta fora da pauta e a Ludomus — Sociedade Gestora de Investimentos Imobiliário permanece no universo empresarial de José Guilherme. Na cada vez mais delicada situação do GES, os gestores de fortunas Michel Canals e Nicolas Figueiredo acabam de arrancar em Genebra com um esquema para branquear capitais e defraudar o fisco. Para isso, criam, em 2009, a empresa Akoya, detida em 45% pelo presidente do BESA, Álvaro Sobrinho e por Hélder Bataglia. Em Lisboa, a Akoya recorre aos serviços de uma loja de venda de moedas e de câmbios que envia o dinheiro dos clientes para a Suíça. E da Suíça segue para o BPN Cabo Verde, que o introduz nos circuitos oficiais. A actuação será descoberta pela Operação Monte Branco. E os investigadores reparam, especialmente, num cliente da Akoya: o homem que preside ao BES. E também no seu CFO, Amílcar Morais Pires, e em muitos outros. O novelo começa a ser desenrolado. Salgado abrira uma conta, através da Savoices, no Crédit Suisse para aí receber quantias extra. E é da Salutec que chegam os milhões. Esta última empresa tem a particularidade de os últimos beneficiários serem José e Paulo Guilherme. As autoridades admitem que através da Salutec tenham feito chegar a Salgado proveitos imobiliários conseguidos em Angola. Transferências que podem somar 14 milhões de euros. Desde que as investigações ao BES arrancaram, muita informação ficou disponível, nomeadamente, via inquéritos parlamentares (2015) e processos do BdP dirimidos em tribunal. Boa parte, relacionada com Angola. É o que constata, em 2017, a comissão liquidatária do BES. A exposição do banco à Escom passou de 39 milhões de euros, em 2008, para 218 milhões, em 2014. Hélder Bataglia roda entre a presidência da Escom e a administração do BESA, de onde jorra dinheiro para vários bolsos: financia as três Torres da Escom; os apartamentos são colocados pela imobiliária ligada a Welwitschea ‘Tchizé’ dos Santos, filha de José Eduardo dos Santos. Os compradores adquirem os imóveis com crédito do BESA e nem sempre entregam garantias reais. Quando deixam de o pagar, o BESA fica sem o dinheiro que pedira ao BES para o emprestar aos clientes. O carrossel despista-se, evidentemente. E as consequências são conhecidas: do BESA foram desviados 5, 7 mil milhões de dólares de crédito malparado, sem se conhecerem os beneficiários. O Finibanco Angola era pequeno, mas ao lado fazem-se negócios. Um dos grandes clientes do BESA é o grupo de José Guilherme, que, através da Ludomus, constrói as Torres Oceano e o condomínio Dolce Vita, inspirado no modelo de negócio do BESA. Em 2010, os cenários traçados pelos analistas internacionais são filmes de terror. A escalada dos juros da dívida pública faz tremer os PIIGS: Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha. O que se repercute nas contas da banca. Enquanto o Finibanco já estrebucha, há uma instituição a “vender saúde”: a CEMG está no mercado com o melhor rácio de solvabilidade do sector, de 13%. E o rácio de capital (Tier1) de 9, 3% apenas é ultrapassado pelo do Santander Totta. Alguém bem informado nota que Tomás Correia tinha João Neves como “um cérebro financeiro”, com grande imaginação, e rapidamente o bancário se assume como o braço direito. Talvez esteja aí a razão que levou o presidente a confiar a João Neves a direcção do planeamento, depois de este ter estado no gabinete de análise de crédito do banco e de ter chefiado o departamento de estratégia financeira da mutualista. E, portanto, volta a ser a João Neves que Tomás Correia pede que prepare uma oferta pública de aquisição (OPA) sobre o Finibanco. Em cima da mesa há agora uma nova quantia: 341 milhões de euros, mais 100 milhões, face ao cálculo de 2009. A transacção, nos termos em que vai ser concebida, possibilita à família Costa Leite pagar dívidas. E o principal credor é o BES, a reclamar mais de 100 milhões de euros. Enquanto tudo isto se passa, Costa Leite organiza o Finibanco para justificar a dimensão da contrapartida que Tomás Correia lhe vai oferecer. Depois de, em 2008, o Finibanco ter encerrado com capitais próprios de 148 milhões, fecha 2009 com capitais próprios a dispararem para 236 milhões de euros. Com a OPA paga, em Dezembro de 2010, os capitais próprios voltam a cair para 173 milhões. Finalmente, o dia da OPA. Durante a tarde de 30 de Julho de 2010, o conselho geral da mutualista reúne-se. Há quem considere a contrapartida exagerada. Mas Tomás Correia apresenta “uma carta de conforto” da consultora Morgan Stanley, a sustentar o preço de 341 milhões de euros. Na sequência dos acidentes BPN e BPP, o ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, e o governador do BdP, ainda Vítor Constâncio, temem uma terceira ocorrência com o Finibanco. E aplaudem a oferta do Montepio, ignorando que o risco passou para os mutualistas. Estes, desde então, já perderam mais de mil milhões de euros. Quando Silva Lopes liderou o Montepio, tinha declarado África sem “interesse estratégico”. Tomás Correia apoiara-o, como recorda um dos administradores, Almeida Serra. “Todos concordámos”, sublinha Serra ao P2. Ainda com a OPA por fechar, o primeiro executivo do Finibanco Angola, Couto Lopes, procura Humberto Costa Leite, a quem sugere: “Que não vendesse o Finibanco Angola, onde podia vir a ganhar dinheiro, mas ele disse que o Tomás Correia fazia depender o negócio da compra do Finibanco Angola. ” Mais: “Soube que a CEMG avaliara o Finibanco Angola [com seis agências] em quase 100 milhões de dólares [cerca de 88 milhões de euros]. ”O ex-presidente da Bolsa Álvaro Dâmaso, então administrador do Montepio, discorda, pois coube-lhe acompanhar toda a OPA. “O Finibanco Angola nunca fez parte da equação”, lembra. José Guilherme continua a recorrer à CEMG como fonte de financiamento. Depois de, em Janeiro de 2010, ter ido pedir mais 1, 344 milhões de euros, volta em Maio para receber mais 1, 6 milhões de euros (a nove meses). E fica a dever ao Montepio 12, 194 milhões de euros, com entrega de livranças, sem liquidação de capital. Com a crise da dívida soberana a alastrar à economia real, os indicadores de confiança afundam-se e na banca instala-se o sentimento de aversão ao risco. O responsável pela relação comercial com o construtor da Amadora, Luís Almeida, confessa que só se apercebe em 2010 da exposição da CEMG ao Invesfundo II. Em conjunto, o BES e o Montepio já tinham colocado no veículo dos construtores 62 milhões de euros. O bancário fica preocupado, porque a venda dos lotes de Alfragide, do Marconi Park, não será fácil. E recuperar o crédito também não. Por fim, em Dezembro de 2010, a CEMG assume a parceria com o BES, segundo a qual as duas partes financiavam a meias o fundo, aonde fará chegar mais 12 milhões. Um banco pode salvar ou deixar morrer um cliente. Em Janeiro, e perante a falta de pagamento dos créditos pessoais, contraídos em 2009 e 2010, o Montepio promove um ciclo de reformas das livranças de Guilherme, sem, porém, impor reembolsos. E ainda liberta mais 86 mil euros, para que possa pagar os juros em dívida. E os créditos sobem para 12, 280 milhões de euros. Um ex-gestor da CEMG defende: “As empresas do senhor [Guilherme] nunca deram problemas e os seus créditos nunca foram alvo de controvérsia, quer no risco quer no crédito. ” Adianta ainda que “o gerente responsável tinha-o em grande conta”. Esta convicção leva a CEMG, em Agosto de 2012, a aliviar as responsabilidades individuais de José Guilherme, transferindo a dívida de 12, 28 milhões para uma empresa de arrendamento imobiliário, a Sintril. A par desta decisão, o Montepio financia, a título pessoal, o outro sócio de José Guilherme no Invesfundo II, o construtor civil José Silvério, que levanta 16 milhões de euros. E ao banco entrega como colateral um aval do pai, Jorge Silvério. Na condição de chairman do Finibanco Angola, Tomás Correia começa a aparecer em Luanda, onde tem quarto reservado no Hotel Trópico. Certo dia, Couto Lopes, principal executivo da sucursal angolana, espera-o na sala de refeições, onde está a tomar o pequeno-almoço. Conta: “Em Luanda, era hábito os administradores de Lisboa dormirem no Hotel Trópico, como fazia o Correia. Nessa noite despedimo-nos e ele foi para o quarto. ”Tomás Correia dorme mal. De manhã, não apareceu no Hotel Trópico. Mais tarde, explicou a Couto Lopes: “Disse que a meio da noite ouviu muito barulho e como não conseguia dormir foi para o Hotel Presidente. ” Ironiza: “Era onde o José Guilherme ficava em Luanda. Agora, ficam todos no Hotel Sana. ” Dias depois, Couto Lopes regista outra cena: “Tomás Correia embarcou num avião particular do círculo do Guilherme. ”Em Abril de 2012, depois de ter transferido a dívida de 12, 3 milhões para a Sintril, José Guilherme está em condições de voltar a receber crédito a título pessoal, neste caso, de 7, 6 milhões de euros, contra a entrega de 7650 de UP (títulos) do fundo Imomarvãs, gerido pelo Montepio, e sobrevalorizado no dobro daquilo que valia. O construtor deve agora ao Montepio 19, 930 milhões de euros. Em Angola, Tomás Correia acaba a confiar o comando das operações a um antigo quadro da CGD, António Ponte. Couto Lopes não aprecia, pois, na prática, é afastado. E começa a escrever uma carta ao BdP. A 20 de Novembro de 2012, 15 dias antes das eleições para os órgãos sociais do Montepio, chega ao supervisor o pedido de intervenção urgente (PÚBLICO de 24/11/2012) no Finibanco Angola por “actos anómalos”. A tentativa de chamar à razão o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, é infrutífera. E Couto Lopes verifica o mesmo que outros: na Rua do Comércio são todos surdos. No final de 2012, demite-se do grupo. Em 2013, com a saída de Couto Lopes, abrem-se vagas nos corpos sociais do Finibanco Angola, onde o ex-vice-governador do Banco Nacional de Angola, Mário Palhares, se destaca à frente do conselho geral. É discreto, considera um amigo português do banqueiro angolano. Outro elogia-o: “É uma velha raposa. Espertíssimo!” Para além de accionista do Finibanco Angola, Palhares é um dos donos do banco BNI (presente em Portugal) e sócio do veículo Pivot que adquiriu o Banco Efisa (ex-BPN). A filha, Ana Lúcia Palhares, fica na administração não executiva do Finibanco Angola, chefiada por Tomás Correia, onde se senta João Neves. Isto é em Luanda, porque em Lisboa o seu nome não consta da comissão executiva de Tomás Correia, do banco Montepio. E a razão é porque a supervisão do BdP não deixa, na secretária há uma queixa antiga do BES. Quem é deslocado para Luanda, para ser um operacional na articulação com clientes da zona da grande Lisboa, com actividade em Angola, é Luís Almeida, que passa a integrar a gestão executiva da instituição africana. E, a par de João Neves, será um observador atento do que se passará dali em diante. Remonta aqui a narrativa de que o Finibanco Angola deve ocupar um espaço “respeitável”. Da Marginal de Luanda, onde fica a primeira sede, transfere-se para um edifício na Travessa Engrácia Fragoso, n. º 24, R/C, Ingombota, doado em pagamento por um cliente. Ainda não é o local adequado. A gestão ordena a construção de raiz de um edifício-sede no eixo viário na avenida paralela ao Hotel Trópico, em Luanda. E o contrato é atribuído à empresa Ludomus, para onde o filho de Tomás Correia, em 2009, tentara entrar com crédito da CEMG. Os relatórios do Finibanco Angola são públicos e a leitura cria constrangimentos em certas esferas da mutualista. Compreende-se: em 2013, a compra da nova sede está orçada em 7, 9 milhões de euros. Em 2016, a rubrica “investimento em curso para a construção da nova sede” dispara para cerca de 18 milhões de euros (6. 096. 114. 000 kwanzas). Tudo o que envolve um banqueiro tem fortes probabilidades de atrair a atenção. Chegados aqui, na capital portuguesa o emaranhado de fios do novelo da Operação Monte Branco desenrolara-se. Com pouco tempo de diferença, o semanário Sol e o diário i tinham noticiado que Ricardo Salgado aderira, e por três vezes, em 2010 e 2011, ao Regime Excepcional de Regularização Tributária (RERT), o sistema criado para repatriar capitais detidos no estrangeiro mediante uma taxa baixa de impostos. O que está ainda em questão são 8, 5 milhões de euros. O tema é controverso. Só que não lhe dão a devida importância no topo do BdP, onde o presidente do BES é visto como pessoa confiável, a ser alvo de vingança por parte de Álvaro Sobrinho, o proprietário do Sol, com quem se desentendera no BESA. A 4 de Fevereiro de 2013, o PÚBLICO avançou que no BdP há técnicos intermédios indignados, pois “um banqueiro que corrige, por três vezes, e fora do prazo, a declaração de IRS, revela uma possível intenção deliberada de fugir ao pagamento dos impostos. E não pode exercer o cargo”. A partir de 30 de Abril de 2013, começam a chegar ao BdP pedidos de Salgado para ser reconduzido como chairman no BESI, na ESAF, no Banco Best e na tecnológica ESTEC Ventures, para os mandatos de 2013 e 2015. No BdP, porém, atrasam a decisão de lhe conceder o registo de idoneidade. No Verão de 2013, a imagem de Ricardo Salgado é uma mancha no sector. O Sol avança que os 8, 5 milhões que levaram Salgado a corrigir a declaração de IRS são fruto de uma comissão paga por um cliente do BES. Um claro conflito de interesses. E o cliente é José Guilherme. E aqui o construtor fica famoso. A 7 de Novembro, quando a polémica chega ao conselho superior do GES, confrontam o líder. Agastado, segundo o relato do i, Salgado argumenta: “Esta relação com o José Guilherme é um assunto do foro pessoal e não aceito mais conversas. ”No meio da troca de correspondência com o BdP, a Uría Menendez, sociedade de advogados de Proença de Carvalho, que apoia Salgado, deixa cair a tese da comissão para ficar com a da liberalidade (um presente), que anulava, do ponto de vista legal, o conflito de interesse. Nesse período, há desconforto no topo do BdP quando se fala em Salgado. A 5 de Novembro de 2013, envia a primeira carta a pedir esclarecimentos sobre a origem do dinheiro que se esqueceu de declarar. Numa tentativa de se credibilizar, Salgado telefona ao construtor da Amadora e pede-lhe que vá ter com ele ao BES. Nada mais natural. Ao entrar no gabinete do banqueiro, José Guilherme vê-o acompanhado de um advogado. Salgado pede-lhe ajuda num assunto sensível: “Preciso de justificar os 8, 5 milhões de euros. Você não se importa que atribua a um pagamento por uma consultoria que lhe prestei em Angola?”A imagem do presidente do BES é de intocabilidade e a Guilherme não passa pela cabeça que o curso dos acontecimentos se descontrole. Para mais, os termos do entendimento estão definidos. É o que percebe quando o advogado lhe estende um papel pronto a assinar, o que aliás até faz. O seu grupo empresarial devia muito dinheiro ao BES. Assim que Tomás Correia soube do episódio, comentou para o lado: “Coitado do Guilherme, foi ingénuo!”Munido do documento, Salgado foi ao BdP explicar-se: “Um cliente do banco, ‘pessoa humilde’, foi ter comigo em 2009 a pedir conselhos. ” Não convence o supervisor, onde, no departamento de supervisão, há quem desconfie do banqueiro. No final do ano, todos os bancos, CGD, BCP, BPI e Banif, estão a receber apoio do Estado. As excepções são o BES e a CEMG. E o BdP sugere reforços de capital. Em resposta, o Montepio lança em Novembro de 2013 o Fundo de Participação Caixa Económica Montepio Geral (CEMG), constituído por Unidades de Participação (UP), no valor de 200 milhões de euros, que ficará com 11, 75% do banco. Quando a direcção de risco analisa a listagem dos subscritores, identifica 17 nomes com residência fiscal em Angola. Destacam-se três clientes: Paulo Guilherme, com 17 milhões de euros, o seu sogro, e Eurico Brito, 10, 8 milhões, Maria João Rodrigues, três milhões. E são enviadas perguntas a Luís Almeida, que está então no Finibanco Angola. Almeida informa que Guilherme e Brito investiram com crédito garantido por depósitos. Mas, talvez por lapso, não transmite que Maria João Rodrigues adquiriu títulos com crédito obtido pelo pai junto do banco, de que é credor. O que ali pode estar em discussão são os atalhos. É o que detecta o BdP: a CEMG sobe artificialmente o capital; há clientes a retirar o “dinheiro” de Angola, onde há entraves à saída de fundos, já que os títulos são comercializados em Portugal. O problema pode ser ainda de ocultação de informação. Por tudo isto, o BdP classifica a operação das UP de nível de sensibilidade elevado e participa-a ao Ministério Público por possível fraude e branqueamento de capitais. E a justiça agarra o dossier Montepio. Ao P2, o Ministério Público diz que “a matéria está a ser investigada no DIAP, em Lisboa”, e que “ainda não há arguidos”. - Março: 7, 0 milhões de euros, contra a entrega de letra a seis meses; - Abril: 1, 5 milhões de euros, letra a seis meses; - Novembro: 750 mil euros, livrança a 12 meses. Janeiro: 1, 344 milhões de euros, livrança a 12 meses. Maio: 1, 6 milhões de euros, livrança a nove meses. - Reforma das livranças da dívida de 12, 194 milhões de euros; - Em Agosto, o banco empresta 86 mil euros. O cliente passa a dívida pessoal de 12, 28 milhões para uma empresa imobiliária, a Sintril. Sem responsabilidades pessoais, pode voltar a pedir crédito pessoal. - Abril: 7, 65 milhões de euros com entrega de unidades de participação do Imomarvãs, gerido pelo Montepio, e livrança a seis meses- Junho: 17 milhões de crédito de curto prazo, cerca de 7 milhões para liquidar créditos da Vergui; - Com os 12, 28 milhões de dívida da Sintril, as responsabilidades de Guilherme, directas e indirectas, perante o Montepio totalizam agora 28, 4 milhões. - Agosto: reforma da dívida do cliente. O fundo Imomarvãs desvaloriza para metade. - A exposição, directa e indirecta (sem o seu grupo empresarial) de Guilherme à CEMG é tóxica; - Há ainda os 37 milhões que a CEMG emprestou ao fundo Invesfundo II, que o construtor tem com outros empresários. A SIC, a 25 de Outubro, na Edição da Noite, avança com as conclusões da auditoria ao Finibanco Angola, de Fevereiro deste ano: “O banco não tem o conforto de qualquer garantia nem beneficia da cobrança de quaisquer juros ou comissões e os subscritores do Fundo de Participação foram financiados pelo Finibanco Angola directa ou indirectamente. ” O que contraria o que Tomás Correia disse à SIC em 2015: “Não. Não emprestou. ” À estação de Carnaxide, Paulo Guilherme lamentou ter perdido dinheiro com o Montepio. A 5 de Fevereiro de 2014, o BdP está inabalável: não dará a Salgado o registo de idoneidade. É que o gabinete da supervisão identifica contradições e omissões. E é óbvio o conflito de interesses no exercício de cargos no GES e no BES. A 14 de Março de 2014, a equipa de Carlos Costa está em condições de fazer um juízo final: não reconduzir Salgado como chairman do BESI, do Banco Best, da Esaf e da Estec. Salgado antecipa-se, renuncia. E o supervisor deixa de ter objecto e os processos são encerrados. Em contrapartida, abre dossiers sobre Tomás Correia e começa a forçar a sua saída da CEMG. No pico do aperto, o BdP cruzara os pontos de contacto e descobre empréstimos do Montepio ao GES e ao BES. Embora nunca os tenha explicado, Tomás Correia confirma que foram recuperados. O mesmo aconteceu com o que aplicou no ruinoso aumento de capital do BES de Maio de 2014. O hub (centro) financeiro de Singapura é o destino predilecto de muitos de investidores, independentemente da nacionalidade, que o usam para movimentar fundos. Mas não necessariamente para ocultar verbas de origem ilícita. Conhecido por ser um grande banqueiro, ouvido por presidentes da República e governadores de bancos centrais (Portugal e Grã-Bretanha), quando estava no grupo espanhol Santander, António Horta Osório praticava um passatempo: ser cônsul honorário de Singapura em Portugal. Ao mudar-se para o Lloyds Bank, troca de cadeira com Tomás Correia, que não encontra melhor local para instalar o consulado do paraíso fiscal do que a sede da maior instituição da economia social portuguesa, na Rua Áurea, em Lisboa. Não faltam evidências de que muitos empresários com interesses em Angola por lá passam. É o caso da família Guilherme, que em Singapura opera via uma sociedade chamada “Quadralis”. O padrão de actuação altera-se consoante o ambiente. Uns viajam para Singapura, outros para Luanda. Entende-se. Há muitas reuniões. E o meio de transporte preferido é o avião branco da administradora Ana Palhares, modelo executivo GulfStream G450, adquirido em nome de uma empresa com sede em Aruba, a Mariental Holding, em 2013, com crédito de 11 milhões de euros da CEMG. Há “imagens” das viagens de Tomás Correia e João Neves no avião da família Palhares. Um Pitágoras! É como Tomás Correia ainda considera João Neves, que julga capaz de maquinar a mais engenhosa das equações. Talvez esteja no excesso de imaginação a razão que levará o supervisor a tropeçar, em 2016, numa operação que classifica como mirabolante, a Vogais Dinâmicas, que se atribui a Neves. Chumbou-a, claro. Parece delírio e é. Em Abril de 2014, no núcleo duro de Tomás Correia há a expectativa de um grande negócio. O banqueiro pede aos serviços que estudem o interesse em lançar de origem um banco no Congo-Brazzaville. O seu intuito é colocar João Neves como CEO. São várias as deslocações deste director a Brazzaville. O ex-empresário desportivo José Veiga e Paulo Santana Lopes, irmão do ex-líder do PSD, já lá estão. São eles que dominam a rede de contactos. Em Maio de 2014, Tomás Correia tem nas mãos as conclusões do estudo sigiloso de Pedro Monteiro a desaconselhar vivamente o investimento. Motivo? Vários. Um deles: o risco de reputação de estar em território pouco fiscalizado. O jogo pela sobrevivência leva, por vezes, a seguir caminhos de risco e as viagens prosseguem. Ocasionalmente, Tomás Correia e João Neves viajam no avião de Mário Palhares, que, dessa vez, os acompanha à reunião no Banco Nacional do Congo, onde vão solicitar uma licença bancária. À espera está novamente José Veiga. O agente desportivo organiza a vinda a Lisboa de uma delegação oficial do Congo para informar “que, em Brazzaville, há uma licença bancária para dar, mas que a CEMG terá de ter parceiros locais”. José Veiga será apanhado pelo Departamento Central e Acção Penal, na Operação Rota do Atlântico. E acaba por se saber que, em Junho de 2014, adquire, por 7, 1 milhões, em Nova Iorque, um apartamento, no 32. º andar, numa das torres de Trump, em Central Park. O destinatário? O jornal Observador avança que Veiga alegou ser da neta do Presidente da República do Congo. Acessível na aparência, complicada na execução. Na altura, o BdP mantém a pressão sobre o Montepio e José Almeida Serra põe travões a fundo no projecto. E o tão esperado investimento do Montepio no Congo não acontece mesmo. A derrocada do BES não ajuda. A 5 de Junho de 2014, José Guilherme está em actividade plena em Angola. E faz chegar a Luís Almeida uma carta assinada por si, para ser reenviada para Lisboa, com pedido à CEMG de um financiamento de 17 milhões de euros. Sugere prazo de liquidação até 1 de Fevereiro de 2015 e a entrega de um colateral financeiro de 10 milhões de dólares (à época, sete milhões de euros), depositados numa conta em Luanda. Justifica que parte do crédito é para liquidar responsabilidades de 6, 9 milhões de euros de uma empresa do seu perímetro, a Vergui, aparentemente a mesma que em 2009 recebeu parte do encaixe (5, 3 milhões) da revenda ao GES dos 33% da Escom. A 8 de Junho, Luís Almeida reenvia a missiva para a directora da grande Lisboa, Margarida Andrade, que passados dez dias solicita informação adicional sobre a finalidade do empréstimo e pede colaterais mais fortes. Menos de um dia depois, ao início da madrugada de 20 de Junho, às 01h58, chega a resposta. Luís Almeida informa que se reuniu com José e Paulo Guilherme e foi possível clarificar que o dinheiro se destina a negócios imobiliários em Luanda e à necessidade de proceder a pagamentos fora de Angola, estando em contactos com BNA. E o cliente é confiável. O administrador admite avançar com uma contragarantia do banco angolano, a favor da CEMG, com penhor de depósitos do construtor. A 24 de Junho, o Conselho de Crédito concorda e liberta logo sete milhões, para Guilherme liquidar as responsabilidades junto da CEMG, por créditos sem garantia da Vergui. O construtor solicita a Lisboa que os 17 milhões de euros sejam um crédito a título pessoal e não como empresário em nome individual. E a exposição à CEMG (com os 12 milhões transferidos para Sintril) evolui para 28, 4 milhões de euros. O que parecia ser uma operação normal afinal não é. É o que verifica o director financeiro da CEMG, Jorge Barros Luís, em funções desde 2013. Mais tarde, refere que, sem o seu conhecimento, o Finibanco Angola autoriza Guilherme a levantar a penhora que garantia os 17 milhões. Contactado pelo P2, Barros Luís não negou, apenas declinou prestar declarações sobre a matéria, por não poder falar sobre clientes. A 24 de Julho, Ricardo Salgado é detido. Fica a saber-se que o Ministério Público tropeçara em 12 transferências de 27, 3 milhões, que começaram a ser libertadas em Julho de 2009. A partir dali, os acontecimentos precipitam-se. A 3 de Agosto, o BdP surpreende o país ao anular a garantia soberana irrevogável dada pelo Estado angolano ao BESA sobre 3, 5 mil milhões de euros. E obriga o BES a assumir o buraco e colapso. As consequências são as conhecidas. Em Outubro de 2014, Luís Costa Ferreira e Pedro Machado, o director e o subdirector do departamento de supervisão do BdP, demitem-se. E João Neves é, finalmente, autorizado a entrar na administração da CEMG, onde se manterá como CFO na gestão de José Félix Morgado, até Março de 2018 (quando Carlos Tavares é nomeado CEO). No Verão de 2015, o futuro de Tomás Correia está fechado, com José Félix Morgado a caminho. A 4 de Agosto de 2015, o ainda presidente do banco participa no último conselho de crédito, onde leva uma proposta para reformar a quase totalidade da dívida pessoal de José Guilherme, que apenas liquidara 15%. É aceite. Um mal menor. Não o fazer implicaria a perda imediata da quantia. Há um senão. Quatro meses antes, a 4 de Abril de 2015, o Sol avançou com nova informação: as empresas do construtor em Portugal estavam em situação de falência técnica desde 2010. Ou seja: Guilherme nunca tinha tido condições de liquidar a totalidade das responsabilidades que ia assumindo junto da CEMG. A 5 de Agosto, pelas 15h30, em assembleia geral, José Félix Morgado é nomeado presidente da CEMG. E Tomás Correia deixa o banco. E o destino do Finibanco Angola estava definido. Enquanto decorre a mudança de cadeira, o avião da família Palhares, matrícula P4-BFL, faz escala em Lisboa vindo de Nice, de onde partira pelas 11h30. Embarcam “documentos”, rumo a Luanda, de onde seguirápara o Cairo. Ao final da tarde, é anunciado o negócio: Mário Palhares sobe a sua posição no Finibanco Angola para 49% e pagará os 30% ao Montepio à medida dos dividendos que o banco vier a distribuir no futuro. O que aqui fica demonstrado é um negócio montado em lucros que estão para vir. A partir desse dia, Félix Morgado conta com dois pesos na comissão executiva: Luís Almeida, que regressa a Lisboa do Finibanco Angola, e João Neves, indicado CFO. Uma das decisões de Félix Morgado é mandar reavaliar o fundo gerido pelo Montepio, o Imomarvãs, que garantia parte da dívida de Guilherme. Estava registado por 12, 580 milhões de euros, mas valia 7, 28 milhõesde euros. A operação do Invesfundo II, iniciada em 2005, despertara a curiosidade dos investigadores que foram atrás de computadores e de ficheiros, como noticiou o Expresso. Os 76 milhões de euros que o BES e a CEMG injectaram no veículo de José Guilherme, de Jorge Silvério e dos herdeiros de Amadeu Dias serviram de pouco. O empreendimento não foi desenvolvido. Agora, com o imobiliário a subir, os bancos admitem poder recuperar parte do que lá meteram. Quem já apareceu envolvido a negociar com a Invesfundo II foi o ex-deputado do PSD António Preto. Comprou um lote por 1, 5 milhões de euros, 15 mil metros quadrados, e vendeu-o no mesmo dia por dois milhões, realizando uma mais-valia de 500 mil euros. Os tempos, entretanto, mudaram. Espera-se. O que esteve em causa nesta história, com personagens e interesses que se cruzaram entre si, foi uma certa forma de fazer negócios e de gerir instituições. O desfecho é conhecido. O GES e o BES faliram e os contribuintes portugueses arriscam perder sete mil milhões de euros. Um dos pontos a favor de qualquer pessoa é a sua credibilidade, que num gestor aparece à frente da lista. Ricardo Salgado, suspeito de vários crimes muito graves, convive com o desprestígio. No Montepio, Tomás Correia já não é tão popular, pois abrem-se guerras à sua volta. É visado em várias investigações do BdP e do Ministério Público, mas acaba de anunciar, pela quarta vez, a sua candidatura à liderança do Grupo Montepio, ao lado tem Maria de Belém e Luís Almeida, entre outros. Ora, isto passa-se em Lisboa. Em Angola, é diferente. O BESA rebentou com o BES e continua a sua marcha com outra designação: Banco Económico. E novos accionistas: angolanos encabeçados pela Sonangol, o chinês Lektron e o Novo Banco (9, 9%). O Finibanco Angola mantém uma operação irrelevante, o que sempre foi. Mas gastou 18 milhões de euros a pagar a José Guilherme para construir uma nova sede em Luanda para onde ainda não se mudou. Não se sabe que papel desempenhou realmente o construtor da Amadora, que mantém as dívidas à CEMG. Já a exposição consolidada (directa e como fiador de terceiros) ao Novo Banco (ex-BES) cifra-se à volta dos 100 milhões de euros. Fonte próxima deste empresário garantiu ao P2 que o acordo de pagamento celebrado com a instituição detida pelo fundo Lone Star está a ser cumprido na íntegra, prevendo liquidação anual de 10 milhões de euros de capital e juros. As autoridades admitem que José Guilherme possa ter distribuído gratificações por banqueiros. Hoje, passa a maior parte do tempo em Luanda, onde desenvolve os seus negócios. E onde as autoridades portuguesas têm dificuldade em investigar. Assim torna-se difícil fechar o círculo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Na quinta-feira, o P2 dirigiu questões ao presidente da AMMG: “Qual era o valor da exposição da CEMG ao cliente José Guilherme à data da sua saída do banco [Agosto de 2015]? O cliente tem condições para reembolsar o banco? Qual é a sua relação com este cliente? No caso do processo de um alegado recebimento de Guilherme e de Jorge Silvério, confirma que é arguido no processo aberto pelo Ministério Público?” Tomás Correia não respondeu. Quem reagiu foi a agência de publicidade e de comunicação BDC, que trabalha para a AMMG. Por e-mail dirigido ao director do PÚBLICO, e não à jornalista que colocara as questões, e sem referir o nome de Tomás Correia ou da AMMG, Marta Romão, funcionária de BDC, respondeu nestes termos:“As questões formuladas enquadram-se numa linha que nada acrescenta, nada trás [traz] de novo, que vem caracterizando a jornalista. Repudia-se tal comportamento que visa, uma vez mais, atingir a reputação do Montepio e do bom nome das pessoas que compõem esta Instituição. Infelizmente, constata-se uma vez mais a motivação da jornalista, no mesmo quadro eleitoral de há três anos ou de outros vários exemplos em vésperas de importantes eventos institucionais. Quando cerca de 40% (31 em 81) das notícias de autoria da jornalista em 2018 visam o Montepio, e maioritariamente o seu Presidente, tudo fica claro sobre a sua motivação. O exercício de qualquer profissão implica responsabilidade. E a profissão de jornalista não é exceção. Infelizmente, as perguntas formuladas indiciam que, uma vez mais, estaremos certamente perante matéria que, à semelhança da peça publicada pelo vosso jornal em 20. 3. 2016, não passará de um enredo ficcional, sem fundamento, e de uma realidade virtual de quem se coloca ao serviço de interesses contrários aos da responsabilidade que constitui a gestão de uma instituição de quase dois séculos, como a Associação Mutualista Montepio. E porque, quem não deve não teme, continuaremos o nosso caminho, com responsabilidade e determinação, alheados da maledicência, da suspeita e da intriga. O Montepio merece respeito, e os seus associados sabem muito bem distinguir o trigo do joio. ”Correcção: onde se lia que Mário Palhares adquirira um avião com crédito do Finibanco Angola, passou a ler-se que o financiamento lhe foi atribuído pela CEMG. Correção: onde se lia "só mais à frente, em 2009, é que Ricardo Salgado convoca a CEMG a colaborar", passa a ler-se "só mais à frente, em 2006, é que Ricardo Salgado convoca a CEMG a colaborar".
REFERÊNCIAS:
Ponte a ponte, China avança para a África que fala português
Chefe da diplomacia portuguesa diz que está a tentar evitar o “enorme erro” do Banco Central Europeu, que está a provocar um resultado: “A Europa abandonar África e abandonar África à China, à Turquia e à Rússia.” (...)

Ponte a ponte, China avança para a África que fala português
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Chefe da diplomacia portuguesa diz que está a tentar evitar o “enorme erro” do Banco Central Europeu, que está a provocar um resultado: “A Europa abandonar África e abandonar África à China, à Turquia e à Rússia.”
TEXTO: Olhar para o investimento directo de Portugal e da China não dá razões de inquietação a quem teme o avanço de Pequim nos países de língua portuguesa: os valores são próximos. Mas este é um retrato enganador. Em 2016, o investimento directo da China nos países africanos de língua portuguesa, no Brasil e em Timor-Leste foi de 399 milhões de dólares, 351 milhões de euros (Fórum Macau). E no mesmo ano Portugal investiu no Brasil 371, 4 milhões de euros, mas desinvestiu 36 milhões nos PALOP e em Timor-Leste (Banco de Portugal). A verdadeira dimensão da “conquista chinesa de África” está em tudo o resto. Há 30 anos, Pequim decidiu que África seria uma nova prioridade da sua diplomacia e os resultados estão à vista. “A China sempre olhou para África numa lógica de trade-off, uma lógica muito chinesa, de mútuo benefício”, diz ao PÚBLICO um especialista em política chinesa. “E sempre viu África como uma fonte de matérias-primas e fornecedora das commodities de que tanto precisa. ” No caso, a troca parece simples: a China gera desenvolvimento local ao construir estradas, redes ferroviárias e pontes e, em troca, tem acesso às matérias-primas. “Poucos lugares estão a ser transformados pela incrível força internacional da China como África, um continente que há cem anos quase não tinha caminhos-de-ferro novos”, escreveu um repórter do New York Times quando, em Fevereiro do ano passado, assistiu à inauguração da primeira linha de comboios eléctricos transnacional de África, que liga a Etiópia (um país sem costa) ao mar do Índico, através do Djibuti. “A estrela do dia foi a China”, escreveu o jornalista. “Desenhou o sistema, forneceu os comboios e importou centenas de engenheiros durante os seis anos necessárias para planear e construir os 750 quilómetros de linha. E os quatro mil milhões de dólares que custou? Os bancos chineses financiaram quase todo o projecto. ” Três meses depois, a China foi “a estrela do dia” no Quénia, onde foi inaugurada uma linha de comboio de 470 quilómetros entre Nairobi e o porto de Mombassa, um investimento de três mil milhões de dólares. Em Dezembro, a China foi “a estrela do dia” na Nigéria, onde foi inaugurada a primeira parte de um projecto particularmente ambicioso e em várias fases de modernização do sistema de trânsito de Lagos, a antiga capital, e ligação a outras cidades da área metropolitana, que custará 36 mil milhões de dólares. Entre 2000 e 2015, a China emprestou mais de 30 mil milhões de dólares a vários países africanos só no sector dos transportes. Pelo menos 17 países africanos receberam empréstimos para construir ou melhorar aeroportos. Nos países africanos de língua portuguesa o impacto chinês é evidente. Em Moçambique, acaba de ser inaugurada uma ponte que une Maputo a Catambe. É a maior ponte suspensa de África e a obra mais cara desde a independência do país. O projecto custou 700 milhões de euros e, uma vez mais, “a estrela do dia” foi a China. Tal como a linha de comboio do Djibuti reduziu para 12 horas um trajecto que demorava três dias a percorrer, a ponte de Catembe trouxe uma alternativa a uma estrada de 100 quilómetros ou à travessia marítima, num ferry que, embora demore só dez minutos, transporta apenas 15 carros de cada vez. A China também pagou a construção das novas sedes da Assembleia da República e da Procuradoria-Geral de Moçambique. Uma nova ponte já está a ser planeada. A estratégia africana da China começou a ser definida nos anos 1950, com base nas relações com os partidos comunistas africanos. Segundo o especialista ouvido pelo PÚBLICO, a visita de uma delegação da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) à China em 1977 rompeu com o modelo partidário e redireccionou-o para os governos. Nos dez anos seguintes, 230 delegações africanas visitaram a China e 56 delegações chinesas visitaram 39 países de África. O passo seguinte foi a definição de um padrão: desde 1991 que o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês inicia o ano, sem excepção, com uma visita de alto nível a África — em Janeiro o chefe da diplomacia chinês, Wang Yi, foi a Angola e logo a seguir a São Tomé e Príncipe, que há um ano e pouco rompeu os laços com Taiwan e “regressou para a família amistosa sino-africana”, como na altura disse ao PÚBLICO o embaixador da China em Portugal, Cai Run. Nenhuma das escolhas surpreendeu. Angola tem um valor estratégico para a China. Pequim é o principal comprador do petróleo angolano (tem uma quota de 49, 4%) e, no conjunto dos produtos energéticos, Angola está ao nível da Rússia e da Arábia Saudita. A isto estão ligadas linhas de financiamento chinês, cruciais para os projectos de infra-estruturas ambicionados por Luanda. Nos países de língua portuguesa, a China é um dos principais — quando não o principal — concorrente de Portugal. Em Angola, Portugal tem conseguido manter uma intervenção privilegiada, mas a dimensão já foi maior. Se por regra as empresas portuguesas eram as principais exportadoras para Luanda, a partir de 2014 a liderança passou para a China, registo que se manteve em 2015 e 2016 (AICEP). Em troca dos empréstimos, e tendo o petróleo como colateral, são empresas chinesas que ficam encarregadas da construção dos projectos, rivalizando com os grupos portugueses. Para Angola, este tipo de dívida externa ajuda-a a depender menos dos países ocidentais e de instituições internacionais (foi graças ao apoio chinês que o ex-presidente José Eduardo dos Santos conseguiu prescindir de uma maior intervenção do FMI). Apesar dos sinais de mudança, o dinheiro de Pequim chega a Angola e Moçambique com menos escrutínio. Em Outubro, o novo Presidente de Angola, João Lourenço, esteve em Pequim, onde assegurou um empréstimo de seis mil milhões de dólares. Ao todo Luanda deve a Pequim 23 mil milhões, num relacionamento que também privilegia o apoio de Angola à China em palcos internacionais. Ao mesmo tempo, disse ao PÚBLICO um especialista em política chinesa, “desde 2001, Pequim já perdoou a África mais de cinco mil milhões de dólares, o que dá 510 milhões por ano”. Desde 2000, quando Pequim criou o Fórum de Cooperação China-África — o mesmo ano, durante uma presidência portuguesa da União Europeia, da primeira cimeira UE-África — que os laços se expandem. Na cimeira deste ano, há três meses, o Presidente chinês, Xi Jinping, comprometeu-se com um pacote de 60 mil milhões de dólares de apoio a África. Com estes valores a luta para travar a influência chinesa em África parece perdida. Dos 60 mil milhões de dólares, 20 mil milhões são para novas linhas de crédito; 15 mil milhões para ajuda externa, como doações, empréstimos sem juros e empréstimos com taxas de juro e prazos mais favoráveis do que no mercado; 10 mil milhões são para um fundo especial de financiamento para o desenvolvimento e cinco mil milhões para um fundo especial para financiar as importações de África. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Há uns dias, numa conferência na sede da Abreu Advogados, em Lisboa, sobre o lugar de África na política externa de Portugal, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, utilizou mesmo a palavra “abandono”, quando abordou a crescente presença da China em África, em detrimento da Europa. “Continuamos a dizer — sem grande sucesso até agora, mas ainda não desisti — às autoridades bancárias da zona euro que é um erro enorme obrigar à ‘desalavancagem’ do investimento financeiro em África. Um erro que já pagámos e que pagaremos mais, se o Banco Central Europeu nele persistir. Um erro porquê? Porque é assimétrico, porque não devemos usar a mesma forma para pés diferentes e, sobretudo, porque estão a contribuir para o que nós, desde a Comissão Europeia e este vosso humilde servidor, estamos a tentar evitar: a Europa abandonar África e abandonar África à China, à Turquia e à Rússia. ”Com Luís Villalobos
REFERÊNCIAS:
Entidades UE FMI PALOP
Portugal quer redescobrir a Índia. Outra vez
Ainda não encontrámos a fórmula. Estamos há 25 anos a tentar fazer negócios com a Índia, mas o registo tem sido muito ad hoc. Nada parece perdurar. António Costa inicia hoje uma visita oficial. Será desta? (...)

Portugal quer redescobrir a Índia. Outra vez
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DATA: 2018-08-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ainda não encontrámos a fórmula. Estamos há 25 anos a tentar fazer negócios com a Índia, mas o registo tem sido muito ad hoc. Nada parece perdurar. António Costa inicia hoje uma visita oficial. Será desta?
TEXTO: Numa linha simples, a história pode ser contada com estes quatro números: 463, 27, 18 e 25. Desdobrando: durante 463 anos, Portugal foi colonizador na Índia; durante 27 foi inimigo da Índia; durante 18 ignorou a Índia, e há 25 que tenta fazer negócios com a Índia. Hoje há um novo ensaio: o primeiro-ministro António Costa chega a Nova Deli com uma delegação de peso, que inclui cinco ministros, um secretário de Estado e 30 empresários. E aqui impõe-se mais um número: desde o fim da Guerra Fria — quando a Índia se abriu ao mundo após o desaparecimento da URSS, seu grande aliado —, esta é a sétima grande tentativa portuguesa de “redescobrir” o país. Ou seja, o seu mercado. Muito provavelmente, vamos ouvir nos próximos dias o discurso optimista e encorajador que domina este tipo de visitas. Foi assim com Mário Soares em 1992, com Cavaco Silva e José Sócrates em 2007, com Luís Amado em 2008, com Paulo Portas e Rui Machete em 2013. Há no entanto um padrão que explica o cepticismo de alguns observadores, analistas e diplomatas ouvidos pelo PÚBLICO. Como as marés, a relação Portugal-Índia é um vaivém de ondas de entusiasmo, que avançam e recuam, ora deixando coisas boas, ora deixando coisas más. Ou coisa nenhuma. Ondas sempre ensombradas por memórias mistas e ambíguas — como Goa — e enormes expectativas. “As coisas são feitas com vontade e energia mas, para darem frutos, têm que ter seguimento”, resume um veterano do Ministério dos Negócios Estrangeiros português. E a percepção é a de que, em relação à Índia, isso raramente aconteceu. No ranking dos fornecedores da Índia, Portugal está na 106ª posição. A Índia representa 0, 1% das nossas exportações e 0, 6% das importações. “A quiet diplomacy não chega”, diz Constantino Xavier, um investigador português do Carnegie India, que trabalha em Nova Deli e é especialista em política externa indiana. “Para Portugal, que está em crise, o que interessa é termos iniciativa e sabermos ‘vender-nos’ na Índia de forma inteligente. Não podemos viver com a atitude arrogante de termos sido um império. Isto é um novo mundo e o mundo mudou nos anos 1990. A iniciativa tem de estar do nosso lado: onde é que podemos ser úteis?”Desde 1974, quando Lisboa retomou as relações diplomáticas com Nova Deli (cortadas em 1955), o relacionamento bilateral nunca foi intenso em quase nenhuma área, mas nos ministérios indianos há memória de contactos, de ideias e de acordos feitos… deixados nas gavetas. “É sempre ad hoc, sempre pontual”, lamentam diferentes diplomatas. É consensual que há interesse de parte a parte, “mas ou porque Portugal não tinha estratégia ou porque a Índia não tinha estratégia, a verdade é que os últimos anos foram marcados pelo desinvestimento e pelo desinteresse”, diz um embaixador. O potencial existe, mas na região a aposta tem sido a China. Nestes últimos 25 anos, desde que Soares plantou uma magnólia nos jardins do túmulo de Gandhi, foram feitos memorandos e promessas de que não se voltou a ouvir falar. Ainda agora, na preparação da visita de António Costa, o Ministério dos Negócios Estrangeiros descobriu Memorandos de Entendimento acordados com a Índia em 1991 nas vésperas da visita de Soares que não chegaram a sair do papel. A história moderna das relações diplomáticas entre Portugal e a Índia é feita de uma ausência crónica de contactos regulares e de diálogo político, à excepção da ciência e tecnologia. Não há consultas a bom ritmo entre directores de política externa há mais de dez anos, nem entre altos funcionários dos diferentes ministérios. Talvez isso explique o facto de, nesta sétima tentativa de “redescoberta” da Índia, continuar a debater-se qual é a forma mais eficaz de entrar num país que ainda é fechado, que não tem um mercado único, que é classificado como um dos mais difíceis lugares do mundo para se fazer negócios e que é uma federação de 28 estados com regras, leis e licenças diferentes entre si. Goa surge sempre como proposta de porta de entrada. Mas a diplomacia portuguesa parece ter evoluído para uma visão mais pragmática e mais próxima da dos indianos, que vêem Goa como um estado insignificante. “É melhor ter Goa do que não ter nada”, diz um embaixador que conhece bem o país. “Mas Goa não chega. A nossa relação com a Índia tem de ser de futuro. E tem de ir muito para além de Goa”. Outro embaixador, que também trabalhou em Nova Deli, diz que os “indianos têm sempre dificuldade, e com razão, em perceber porque é que os portugueses pensam sempre em Goa como algo de relevante nas relações Portugal-Índia. Para os indianos, Goa é um dos estados menos relevantes da União, com uma população de 1, 5 milhões, 1% da Índia, e um território com praias e pouco mais. ” O que parece pouco como base para um relacionamento bilateral. Goa foi anfitriã da última reunião dos BRICS e tem um bom PIB per capita, mas há poucos ministros indianos vindos de Goa, prova da sua insignificância política. E se Manohar Parrikar, actual ministro da Defesa indiano, é de Goa, também é visto como um político pouco amigo de Portugal. Goa é um pau de dois bicos. É por essa razão que o investigador Constantino Xavier, que tal como o primeiro-ministro António Costa também é de origem goesa, defende que não podemos olhar para a Índia do ponto de vista estritamente bilateral. “Aí não temos muito para oferecer à Índia. Em termos geopolíticos, Portugal tem de pensar trilateral: onde é que vai e com qual dos PALOP?” Xavier acredita que Portugal pode trabalhar esta “triangulação” com a Índia dentro da lusofonia. Dá como exemplos a ajuda ao desenvolvimento, a cooperação técnica e a formação de quadros militares e da polícia. Na diplomacia, no entanto, nem todos acreditam na viabilidade de uma relação triangular, na qual Portugal funcionaria como um vértice que permitiria à Índia acesso às riquezas dos países lusófonos, e também quem não compreenda que interesse tem Portugal em ajudar os outros a ir para os mercados onde Portugal tem à partida vantagens competitivas. “Ao contrário da China, a Índia não entende a globalização e não tem um plano de como a enfrentar e projectar-se economicamente no mundo. A sua política externa limita-se aos seus vizinhos e aos Estados Unidos. Deli gosta do Brexit porque enfraquece a União Europeia e o Reino Unido e acredita que isso lhe vai trazer vantagens”, diz um diplomata. Na eterna rivalidade Índia-China, a Índia “não têm a inclinação nem a capacidade chinesa para pensar e agir estrategicamente”, continua o mesmo diplomata, “e teria uma aversão instintiva à noção de ter um país ocidental como ‘intermediário’ da sua relação com os países africanos com os quais sente um certo companheirismo pós-colonial”. O facto é que a Índia já tem boas relações com o Brasil e tem uma presença forte em Moçambique e em Angola. Ainda este Verão o primeiro-ministro Narendra Modi foi a Moçambique e a outros três países africanos. “A Índia é uma potência mundial. Nós para os indianos somos a Eslováquia”, diz Constantino Xavier. Mesmo assim, no comunicado conjunto de António Costa e Modi está prevista uma declaração sobre os mercados lusófonos. Estrategicamente, uma reaproximação entre Portugal e a Índia pode ser interessante para ambos. Portugal quer fazer negócios e a Índia é um gigante com capacidade de investir. E a Índia quer contrabalançar a força da China, ser uma alternativa e para isso precisa de novos parceiros. “Esse ‘factor indiano’ pode ser bom para Portugal. Hoje os indianos têm uma relação forte com os EUA — e má com a China, que se tornou mais agressiva e assertiva na última década —, mas não gostam de depender dos EUA. Interessa-lhes encontrar novos parceiros. A União Europeia pode ocupar esse lugar”, diz Xavier. O investigador acredita que a resposta para isso é a criação de um Fórum Goa, num modelo semelhante ao Fórum Macau. Mas também esta ideia levanta reservas. O Fórum Macau, diz um conhecedor da Ásia, “funciona porque a China (Pequim e não Macau), é o motor, a gasolina, o condutor e o mecânico — e tudo isso falta na Índia”. E é “um instrumento chinês, não português”, diz um diplomata. Além disso, para haver um Fórum Goa, os indianos têm de ter interesse. O que não aconteceu. É consensual que a relação Portugal-Índia pode ser muito mais intensa e proveitosa. Se na China há muitas empresas estatais geridas por generais reformados, a Índia é uma democracia e é raro ver grandes empresas estatais indianas a investir no estrangeiro. Uma bênção do Estado indiano a parcerias pode de qualquer modo ser útil. Um dos sectores promissores é o da indústria ambiental (resíduos e águas). Mas há outros. Não é conhecida uma estratégia clara para “entrar na Índia” que identifique por exemplo estados e sectores prioritários. “Se nos dispersarmos, não conseguimos nada, porque a Índia é um colosso”, alerta um diplomata. Três estados saltam à vista. Maarastra (cuja capital é Bombaim, tem o maior PIB do país, é o segundo mais populoso e o terceiro mais extenso), Gujarat (o segundo mais industrializado e de onde vem a maior parte dos 70 mil indianos que vivem em Portugal) e Karnataka (cuja capital é Bangalore, a Silicon Valley da India, e é um estado vizinho de Goa). Costa vai a Bangalore, mas não estão previstos encontros bilaterais com as autoridades estaduais. Durante quase cinco séculos, a Índia foi uma colónia especial — chamava-se Estado Português da Índia e Goa era não só a “casa” do único vice-rei português, como a cidade a partir da qual se administravam Moçambique, Macau e Timor. Mas 1947, quando a Índia se tornou independente, tudo mudou. Jawaharlal Nehru pediu à França e a Portugal os territórios ocupados e a França, que tinha a colónia de Pondicherry (“redescoberta” com o livro e o filme Vida de Pi), negociou com Nehru e saiu. “Os franceses já estavam a descolonizar. Foi fácil”, diz um diplomata. “Salazar disse simplesmente: ‘Nem pensar. ’” Das escaramuças na fronteira ao golpe de 1954, descrito pelo regime de António de Oliveira Salazar como uma “emergência grave para a vida da nação”, foi um ápice. Seguiram-se meses de guerra de nervos. Lisboa expulsou o cônsul da Índia em Goa; Deli expulsou os funcionários consulares de Bombaim (oferecida à Inglaterra em 1661 como dote de casamento de Catarina de Bragança). Em Julho de 1955 a União Indiana rompeu as relações diplomáticas com Portugal e em 1961 Nehru deu luz verde à Operação Vijay, nome de código da acção militar indiana que terminou a presença portuguesa na Índia. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Nos anos 1970, num documentário de Diana Andringa para a RTP, um soldado português contou como ficou espantado, ao chegar a Goa, quando um indiano parou na rua, o olhou nos olhos e cuspiu com desprezo para o chão. E como ficou espantado a seguir, ao chegar a Lisboa, em 1961, após a rendição, por ser tratado como um traidor. Salazar dissera que, de Goa, só esperava heróis — vivos ou mortos. “A partir daí, tudo o que a Índia propunha na ONU, nós votávamos contra”, lembra um diplomata. “Votámos a favor do Bangladesh, mantivemos a embaixada em Islamabad e tomámos sempre o partido do Paquistão. ” Na Guerra Fria, de um lado estava a Índia e a URSS, do outro o Paquistão e o Ocidente. “A Índia até ofereceu armas à Frelimo”, lembra Constantino Xavier. Esta semana, no anual Seminário Diplomático em Lisboa, o ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva disse que “Portugal não se cansa e não se cansará de dizer que a Europa tem um interesse estratégico na relação com África, e África na relação com a Europa”. E acrescentou: “E nem a China, nem a Índia, nem as Américas, sendo naturalmente muito importantes, são alternativas para essa relação. ” Em parte, esta visão explica os repetidos ensaios sem continuidade.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU EUA
Dalai Lama cancela visita à África do Sul
Face à demora em ver o seu visto aprovado, o líder espiritual tibetano decidiu esta terça-feira cancelar uma visita à África do Sul. (...)

Dalai Lama cancela visita à África do Sul
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DATA: 2011-10-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: Face à demora em ver o seu visto aprovado, o líder espiritual tibetano decidiu esta terça-feira cancelar uma visita à África do Sul.
TEXTO: O Dalai Lama deveria chegar ao país na próxima quinta-feira, para participar nas celebrações do 80º aniversário do arcebispo Desmond Tutu. Mas até hoje as autoridades sul-africanas ainda não tinham confirmado se a sua entrada seria ou não autorizada. “Estamos por isso convencidos que por alguma razão, ou razões, o Governo da África do Sul considera inconveniente aprovar o visto a sua santidade o Dalai Lama”, afirma um comunicado do seu gabinete, citado pela agência sul-africana SAPA. “Sendo assim, sua santidade decidiu cancelar a sua visita à África do Sul e lamenta o inconveniente causado aos seus anfitriões e a um largo número de pessoas na África do Sul que estavam ansiosamente à espera de o receber e ouvir a sua mensagem”, continua o texto. As visitas internacionais do Dalai Lama – que Pequim encara como um líder independentista apesar de reivindicar apenas uma verdadeira autonomia para o Tibete – são frequentemente alvo de polémica e alguma retaliação por parte do Governo chinês. O Nobel da Paz foi recebido em 1996 pelo então Presidente Nelson Mandela. Mas há dois anos, já não conseguiu visto de entrada na África do Sul, com Pretória a admitir abertamente temer uma retaliação da China, o maior parceiro comercial da África do Sul. Ainda na semana passada, o vice-presidente sul-aficano, Kgalema Motlanthe, visitou a China durante quatro dias, assinando vários contratos de trocas comerciais e investimento. Hoje, o Desmond Tutu Peace Centre lamentou a relutância das autoridades em permitir que uma das mais célebres figuras religiosas do mundo visitasse o país. “Nem tenho palavras para dizer quão triste estou. Este é o dia mais negro. As nossas autoridades acharam que nem sequer era importante responder ao seu pedido” de visto, apresentado em Agosto, comentou o director do centro Nomfundo Wazala.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave negro chinês
Prémio Sakharov para protagonistas da Primavera Árabe
O Parlamento Europeu atribuiu hoje o Prémio Sakharov para a liberdade de pensamento a cinco protagonistas do movimento da Primavera Árabe. (...)

Prémio Sakharov para protagonistas da Primavera Árabe
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-10-27 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Parlamento Europeu atribuiu hoje o Prémio Sakharov para a liberdade de pensamento a cinco protagonistas do movimento da Primavera Árabe.
TEXTO: Os laureados são o manifestante tunisino Mohamed Bouazizi - que será homenageado a título póstumo -, a activista egípcia Asmaa Mahfouz, o dissidente líbio Ahmed al-Zubair Ahmed al-Sanusi, a advogada síria Razan Zeitouneh e o caricaturista sírio Ali Farzat. Mohamed Bouazizi, que se imolou pelo fogo no dia 17 de Dezembro de 2010 na localidade de Sidi Bouzid, morreu duas semanas mais tarde. O seu gesto desesperado - que revelou que o povo tunisino estava no limite das suas capacidades de sobrevivência - desencadeou um movimento popular nacional que levou à queda do regime do ditador Ben Ali. Asmaa Mahfouz é uma das fundadoras do Movimento 6 de Abril que lançou o apelo de reunião na Praça Tahrir, no Cairo, movimento esse que conduziu à queda do regime do ditador egípcio Hosni Mubarak. Foram igualmente distinguidos Ahmed al-Zubair Ahmed al-Sanusi, de 77 anos, um dissidente líbio que passou 31 anos na prisão por causa das suas actividades de dissidência ao regime do falecido Muammar Khadafi; Razan Zeitouneh, advogada de 34 anos que dirigiu os comités de revolta na Síria e Ali Farzat, um caricaturista de impresa que foi espancado em Agosto último pelas forças de segurança sírias. A decisão de atribuição do prémio a estes protagonistas das revoltas que conduziram à queda de vários ditadores árabes foi tomada por unanimidade pelos presidentes dos grupos políticos. Os prémios serão oficialmente entregues aos laureados numa cerimónia oficial que decorrerá em Dezembro. O Prémio Sakharov - que se impôs nos últimos anos como uma espécie de equivalente da UE ao prémio Nobel da Paz - recompensa cada ano um defensor dos direitos humanos e da democracia. Os cinco militantes árabes acabaram por se sobrepor a outros dois finalistas: a Dzmitry Bandarenka, o bielorrusso defensor dos direitos humanos, e à comunidade colombiana de camponeses San José de Apartadó. A vitória final dos militantes árabes era esperada, uma vez que esta candidatura tinha sido apresentada conjuntamente pelos principais grupos políticos do Parlamento Europeu (conservadores, socialistas, liberais e ecologistas). No ano passado o Prémio Sakharov foi entregue ao dissidente cubano Guillermo Fariñas, que levou a cabo diversas greves de fome contra o regime comunista de Havana. As autoridades cubanas não o autorizaram a deslocar-se até Estrasburgo para receber o seu prémio, em Dezembro de 2010. O líder sul-africano Nelson Mandela, a activista birmanesa Aung San Suu Kyi, o secretário-geral da ONU Kofi Annan e o dissidente chinês Hu Jia foram outros dos mais recentes laureados com o Prémio Sakharov. Notícia actualizada às 10h06 e corrigida às 13h24. Na versão original escrevemos que Razan Zeitouneh era um advogado, quando, na verdade é uma advogada.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU UE