A diversidade mora em Águeda — e a cultura também
A cidade já está em polvorosa e prestes a viver 23 dias consecutivos de animação intensa. O festival AgitÁgueda é um óptimo pretexto para rumar ao maior município do distrito de Aveiro, mas não é o único. Por estas bandas, há muito para ver, fazer e sentir. (...)

A diversidade mora em Águeda — e a cultura também
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: A cidade já está em polvorosa e prestes a viver 23 dias consecutivos de animação intensa. O festival AgitÁgueda é um óptimo pretexto para rumar ao maior município do distrito de Aveiro, mas não é o único. Por estas bandas, há muito para ver, fazer e sentir.
TEXTO: Foi sendo conhecida como a capital da bicicleta, devido à quantidade de indústrias do sector das duas rodas que nela laboravam. Depois, afirmou-se como smart city, destacando-se mesmo como um dos maiores exemplos a nível nacional. Mas há algo que começa a ser cada vez mais evidente: Águeda é uma cidade com uma dinâmica cultural invejável, muito por força de colectividades como a d’Orfeu ou do seu novíssimo Centro de Artes. E também pelo peso que começa a ganhar, por estas bandas, a arte urbana. Pelas ruas da cidade há já várias instalações para apreciar, num circuito que não pára de crescer por obra e graça de um festival que leva o nome de AgitÁgueda e que atrai milhares de visitantes — a grande maioria por causa da famosa instalação de chapéus de chuva (ou guarda-chuvas, para quem é do Norte) coloridos. São 23 dias de festa rija e que acabam por apresentar-se como apenas mais um bom motivo para rumar a este concelho da região de Aveiro (é o maior do distrito em termos de área). Águeda também é dona e senhora de uma lagoa natural única, de aldeias tradicionais, museus detentores de um património ímpar e cerca de 100 quilómetros de circuitos pedestres. E se há coisa que importa relevar é a diversidade da paisagem: tão depressa está quase ao nível do mar como atinge os 760 metros de altitude. Mas já lá vamos. Por ora, somos atraídos ao centro da cidade, mais concretamente à zona da baixa, junto ao rio Águeda — afluente do Vouga —, que é o epicentro da festa. Estamos em plena Rua Luís de Camões, a principal artéria comercial do centro, sob o pretexto de assistir aos trabalhos de instalação dos guarda-chuvas (vamos optar pela expressão nortenha, ok?), mas acabamos por cair em tentação. Um café e um pastel de Águeda, por favor. “Existem muito poucas pessoas a fazer o nosso doce tradicional, uma vez que a receita tem alguns segredos”, conta a nossa guia, Célia Laranjeira. No caso da pastelaria Trigal, a produção é assinada pela “dona Ermelinda”, mas há mais uma meia dúzia de pessoas “a produzir pastéis de Águeda muito bons”, acrescenta a técnica de turismo da autarquia local. Uma delícia feita à base de amêndoas e gemas de ovos. E mais não dizemos (tanto mais porque ninguém nos revelou a receita). Um pouco mais abaixo, somos atraídos pelo sorriso de Manuela Ferreira Martins. Está instalada na Rua Luís de Camões há 38 anos, com uma loja de decoração, e aos 64 anos de idade ainda vai acusando alegria e satisfação por ver a sua rua “invadida” por milhares de pessoas por alturas do AgitÁgueda. “Há famílias, vindas de longe, que fazem questão de passar sempre por aqui, nem que seja só para dizer olá”, assegura. E o negócio? “Também se vende mais, principalmente estas lembranças que começaram a produzir a propósito do festival”, relata, referindo-se aos ímanes e pins alusivos à festa e à cidade. “São coisas baratinhas, a cerca de três euros, mas as pessoas também não podem gastar muito. Já têm tanta despesa a vir até cá”, nota a comerciante. Da baixa da cidade até à montanha é um saltinho. Dúzia e meia de curvas e contracurvas e, ao fim de uns 20 ou 30 minutos, já estamos a 760 metros de altitude, nas encostas da serra do Caramulo, mais concretamente na Urgueira. Um pequeno lugar que continua a manter bem viva uma lenda à volta do seu forno comunitário e que, uma vez por ano, atrai milhares de visitantes por conta da celebração do chamado “milagre da Urgueira”. Conta-se que, “num dia de romaria, e quando a procissão ia a passar, um homem tirou uma flor do andor e, com ela presa na boca, entrou no forno para lá colocar o pão a cozer”. “Embora o homem estivesse descalço e sem protecção alguma não sofreu qualquer queimadura, tendo a flor saído de lá com a mesma frescura e viço com que entrou”, anuncia-se na placa informativa instalada junto ao forno. O feito acabou por ser considerado um milagre e, anualmente — a cada terceiro domingo de Agosto —, cumpre-se a romaria à Senhora da Guia e o “milagre” é recriado: um homem entra no forno para retirar o pão com as suas próprias mãos. E, jura a pés juntos quem já teve oportunidade de testemunhar o feito, o pão que sai deste forno não apanha bolor. Em época de romaria ou não, quando subir ao alto da Senhora da Guia fixe o olhar no horizonte em direcção à costa: em dias de céu limpo, garantem, é possível avistar o mar — não podemos comprovar a tese pois aquando da nossa visita estava um nevoeiro cerrado. E aproveite para cumprir o trilho das terras de granito, percurso pedestre com cerca de oito quilómetros de extensão e que passa por outras aldeias dignas de uma visita. Macieira de Alcôba é a principal de todas — tanto mais porque já foi sede de freguesia — e merece uma visita mais prolongada, para caminhar ao longo do seu casario de granito, visitar os moinhos de rodízio e descobrir o Centro Interpretativo do Milho Antigo — um espaço que explica o ciclo do milho (do grão ao pão). É também no centro desta aldeia que encontrará um restaurante que pretende ser uma montra dos melhores produtos das aldeias serranas. Instalado na antiga escola primária, o espaço gerido por Zulmira Marques e António Novo não renega o passado, mantendo o ambiente das antigas salas de aulas do Estado Novo — o crucifixo, a foto de Salazar e o mapa de Portugal insular e o império colonial português pendurados na parede —, e acrescentou-lhe uma boa dose de sabores tradicionais. “Queríamos que este fosse um restaurante domingueiro, como quando íamos à casa dos nossos pais ou avós e comíamos assados”, nota Zulmira Marques. E a carta do restaurante A Escola aí está para comprovar que o desafio é cumprido: bacalhau com broa, cabrito assado, lampantana, vitela. “Tudo assado no forno a lenha e feito com produtos de cá. Gosto de comprar aos produtores da terra”, assegura-nos a proprietária, que é também quem manda na cozinha. A carta de sobremesas também faz jus à classificação de “restaurante domingueiro”: tigelada, gelado de mirtilo, leite creme, compotas caseiras e pastéis de Águeda — e não é que tivemos a oportunidade de as provar a todas? Com um remate final: licor de mirtilo ou licor de figueira, ambos produção caseira da dona Zulmira. Vai ser difícil deixar Macieira de Alcôba para trás, mas quando tiver de o fazer aproveite a viagem para dar um salto à aldeia de Lourizela, que, apesar de ter apenas uns 10 habitantes, começa a ser um exemplo ao nível da requalificação e preservação das suas casas tradicionais — muitas delas como casas de férias ou de fins-de-semana. E o mais curioso de tudo? Apesar de estar ali tão próxima das aldeias de granito, em Lourizela o casario é feito de xisto. Falar de Águeda sem mencionar a Pateira seria um grande pecado. Bem vistas as coisas, esta lagoa natural constitui o maior ex-líbris natural do concelho e está classificada como importante zona húmida. Especialmente procurada para a observação de aves, pesca desportiva, fotografia de natureza e actividades ao ar livre, a Pateira é conhecida localmente como a “lagoa encantada”. Tem uma área de cerca de cinco quilómetros quadrados e goza da fama de ser “uma das maiores lagoas naturais da Península Ibérica”. Para quem gosta de andar à beira (ou dentro) da água, há ainda as opções dos parques fluviais do concelho. Tome nota dos nomes: Souto do Rio, Redonda, Alfusqueiro e Bolfiar. Em cada um deles encontrará zonas verdes e águas cristalinas, com a possibilidade de ir a banhos. Já o tínhamos dito, e voltamos a lembrá-lo: Águeda é um município pujante a nível cultural. Além das quase 30 obras de arte urbana que estão presentes nas ruas da cidade — e não só, uma vez que uma das pinturas mais afamadas está instalada em Recardães, no reservatório de água —, a terra de Manuel Alegre é, ainda, “guardiã” de uma colecção de cerca de 5000 obras — pinturas, esculturas, joalharia e relojoaria — de grande valor. Faz parte do espólio da Fundação Dionísio Pinheiro e Alice Cardoso Pinheiro, que tem as suas portas abertas ao público. “A peça mais antiga que aqui temos são os vasos gregos, do século IV a. C”, destaca Vieira Duque, director da fundação-museu, a propósito do vastíssimo conjunto de peças que está em exposição e que reserva ainda lugar de destaque para a prataria, porcelanas chinesa, japonesa e portuguesa, marfins e pintura. Algumas peças são verdadeiras relíquias e já foram alvo de classificação (património nacional), como é o caso da papeleira indo-portuguesa, feita, no século XVIII, “na costa oriental da Índia”, desvenda Vieira Duque. Também no Centro de Artes de Águeda — equipamento que conta com pouco mais de um ano de vida — as artes plásticas encontram um palco privilegiado. Além de um auditório com capacidade para quase 600 espectadores, este centro tem uma sala de exposições temporárias que com dimensão generosa — são cerca de 600 metros quadrados de área — e aposta numa programação própria. Pois eu é um outro é o título da mostra que está agora patente — estende-se até Outubro — e que apresenta obras de artistas portugueses e estrangeiros que abordam questões sociais. Um conjunto de pinturas e esculturas pertencentes à colecção Norlinda e José Lima — desenvolvida pelo empresário José Lima, natural de Águeda e radicado em São João da Madeira. Noutra vertente da cultura, mais concretamente na música, os holofotes viram-se para um espaço em particular, o da associação d’Orfeu. A colectividade que é responsável por produções como o Festim, Gesto Orelhudo, Outonalidades e o Festival i, e que conta com uma escola de palco, abre as portas do seu espaço ao público, com regularidade, para vários concertos e apresentações. Fundada em 1995, a colectividade que nasceu pela mão de quatro irmãos músicos envolve cerca de 400 pessoas — entre sócios e amigos — e continua apostada em “procurar preencher o espaço de algo que esteja a faltar”, nota Luís Fernandes, o seu presidente. As viagens no comboio histórico do Vouga, iniciadas no Verão do ano passado e retomadas no passado dia 30 de Junho, vieram trazê-lo para a ribalta, mas nunca é de mais lembrar: em Macinhata do Vouga, existe um museu ferroviário que guarda várias relíquias (é ponto de paragem, para visita, nas viagens do comboio histórico). Instalado junto à estação de comboios de Macinhata, neste espaço museológico encontrará vários tipos de locomotivas e veículos relacionados com os comboios. A máquina mais antiga é do ano de 1886, destacando-se, ainda, as automotoras dos anos 40 do século passado, que tinham 1. ª e 3. ª classe, e foram construídas nas oficinas de Sernada do Vouga. Também encontrará por ali, por exemplo, um quadriciclo a motor, dos anos 1920-30, que servia para inspecções à linha e era utilizado pelos inspectores. A melhor forma de aceder a este museu é de comboio (claro está), seja através das viagens históricas ou das linhas regulares do “Vouguinha”, mas também é muito fácil lá chegar de carro. As propostas são muitas e prometem agradar a diferentes tipos de públicos. Espectáculos, animação de rua, DJ, performances, tasquinhas e arte urbana irão tomar conta, a partir deste sábado e até dia 29 de Julho, do centro da cidade de Águeda. Contas feitas, são 23 dias consecutivos de programação cultural e sempre com entrada gratuita. A grande estrela da festa volta a ser o The Umbrella Sky, instalação artística que enche as ruas da baixa da cidade de guarda-chuvas coloridos. O projecto de arte urbana que correu mundo — quem nunca viu uma imagem desta instalação nas redes sociais ou em revistas? — e tem vindo a ser replicado noutras cidades, promete tornar a encher de cor e alegria o AgitÁgueda. E como a arte urbana é sempre uma boa forma de dar a conhecer os espaços da cidade e a sua história, ao The Umbrella Sky juntam-se outras instalações e projectos. Bancos de jardim, escadarias, colunas, entre outros, estão pintados com variações cromáticas apelativas e convidam os visitantes a circular ao longo de uma verdadeira galeria de arte urbana a céu aberto (há um roteiro da cidade dedicado a estas instalações). É também nas ruas que irá ser servido outro dos “pratos” fortes da festa. Está previsto um Encontro de Homens Estátua (dias 7 e 8), um Encontro de Fanfarras (dia 15) e um Carnaval Fora d’Horas e cortejo Color Day (dia 22). Para o desfile de Carnaval está já garantida a participação de centenas de músicos e sambistas, pertencentes a várias escolas de samba e grupos carnavalescos — nomeadamente, Samba Renascer, Samba Juventude Vareira, Samba Tribal, Samba Novo Império, Samba Vila régia, Samba real imperatriz, Grupo Africano Alantatou, Associação Kung Fu do Minho, Caretos de Podense e Grupo Bombos Vale Tudo. A parada terá início às 16h30, na Avenida Eugénio Ribeiro. Destaque, também, para a acção de bodypaiting, prevista para este fim-de-semana (dias 7 e 8). Segundo avança a organização do AgitÁgueda, “sete bodypainters da Suécia, Lituânia, Itália, Áustria e Alemanha criarão uma peça original de bodypainting, sobre os corpos de 14 bailarinas”. Se os quiser ver pintar ao vivo é só rumar ao centro da cidade. Para aqueles que são atraídos pelos concertos musicais, aqui ficam alguns dos nomes que irão passar pelo palco da Tenda AgitÁgueda: Carlão (hoje, dia 7), Tim & Orquestra 12 de Abril (dia 8), Dubioza Kolektiv (dia 13), Mariza (dia 14), Bárbara Bandeira (15), Diogo Piçarra (20), Anavitória (21), Mário Mata (22), Blaya (27), Ella Eyre (28) e Paula Fernandes (29). E nesta que é já a 13. ª edição do evento mantém-se a aposta de reservar uma área para os mais novos, o chamado AgitaKids, assim como para o desporto — tanto mais porque estamos em ano de Mundial. Haverá transmissão de jogos na Tenda AgitÁgueda, um encontro de desportos náuticos, provas de BTT e ténis. E com mais ou menos vitórias, há uma conquista que já ninguém tira ao AgitÁgueda: recebeu, este ano, o selo FEST300 2018 – The World’s Best Festivals. Hotel Conde d’Águeda Praça Conde de Águeda 3750-109 Águeda Tel. : 234 610390 E-mail SiteSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Restaurante A Escola Rua da Escola, Macieira de Alcôba, 3750-561 Macieira de Alcôba Tel. : 967 709 806 Horário: de terça a domingo, das 10h às 23h. Para quem vem do Porto ou de Lisboa, a A1 é a melhor forma de chegar ao concelho, através dos nós de ligação de Albergaria-a-Velha (a norte), e Oiã, (a sul). Também pode optar pelo comboio, uma vez que o município é servido pela linha de caminho de ferro do Vouga, uma via estreita que liga Aveiro a Sernada do Vouga. A Fugas viajou a convite da câmara municipal de Águeda
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
BES: Crónica do fim do império
Durante vários meses, a Revista 2 tentou perceber como se gerou a bola de neve que ninguém conseguiu controlar, mas que acabou por arrasar o segundo maior banco português e um grupo com quase 150 anos. (...)

BES: Crónica do fim do império
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Durante vários meses, a Revista 2 tentou perceber como se gerou a bola de neve que ninguém conseguiu controlar, mas que acabou por arrasar o segundo maior banco português e um grupo com quase 150 anos.
TEXTO: Durante vários meses, a Revista 2 tentou perceber como se gerou a bola de neve que ninguém conseguiu controlar, mas que acabou por arrasar o segundo maior banco português. Uma actuação imprudente e de suspeita de ilicitudes do seu accionista, o GES, contribuiu para o fim de um grupo com quase 150 anos. A comissão de inquérito parlamentar à falência vai começar nos próximos dias, ouvindo dezenas de pessoas. A “detenção” para interrogatório neste Verão do ex-presidente do BES, Ricardo Salgado, considerado, até então, uma das figuras mais influentes da sociedade portuguesa, cabe num filme em que a realidade parece superar a ficção. Neste enredo, há um pouco de tudo: contornos policiais, traições, intrigas e muita desorientação. Um grupo mergulhado em entropias; uma crise económica mais longa do que o expectável; operações ruinosas (por exemplo, negócios que deram prejuízos, investimentos a preços superiores ao valor real dos activos), ou de duvidosa legalidade (veículos que podem ter servido para ocultar prejuízos); exposição descontrolada do BES à filial angolana (o BES Angola, BESA), com dinheiro a escorrer para vários bolsos (5900 milhões de euros que não se sabe onde param). A mistura foi explosiva. E havia ainda um primo, José Maria Ricciardi, que desde cedo se tentou distanciar das irregularidades cometidas no grupo, desafiando a autoridade e a cadeira do chefe do clã que se perdeu no mundo do poder. A história inclui também um psicodrama: um procurador a reunir os fios das várias meadas; um Banco de Portugal (BdP) hesitante em atacar eficazmente os problemas que iam surgindo; e um governo que para escapar às críticas associadas à nacionalização do BPN se mostrava desinteresasdo em intervir; e um primeiro-ministro e uma ministra das Finanças que, ao não actuarem a tempo com as armas todas — por não perceberem ou por não quererem perceber —, não evitaram a falência de um grupo de expressão internacional ancorado no segundo maior banco privado. O castelo de cartas desmoronou-se. Mas o que levou ao colapso não foi a guerra entre primos, as falhas de regulação ou a ausência de empenho do executivo. Foram os erros de gestão, as irregularidades, a falta de compreensão, por parte de Ricardo Salgado, hoje com 70 anos, de que o tempo mudara com a crise e já não tinha dinheiro para preservar a influência. Atrás de si arrastou a maior operadora de telecomunicações, com gestores apanhados na rede dos interesses do accionista BES e não nos da empresa. É uma história com diferentes leituras e muitos protagonistas a tentarem fazer passar as suas versões. Que se conta pelos detalhes. Para perceber como se gerou uma bola de neve que ninguém conseguiu controlar, a Revista 2 ouviu várias personalidades, coligiu muitos dados e consultou múltiplos documentos. E todas as informações deste texto têm por base testemunhos directos e verificáveis recolhidos junto de fontes, que aceitaram identificar-se ou não. Ricardo Salgado declinou falar com a Revista 2 e não respondeu às questões que lhe foram dirigidas por email, por estarem em segredo de justiça. José Maria Ricciardi escusou-se a ser entrevistado. O Banco de Portugal remeteu para declarações públicas onde explica que tudo fez para garantir a sustentabilidade do sistema financeiro. Final da década de 1990A economia cresce, o processo de privatizações do sector financeiro chega ao fim, os mercados internacionais revelam dinamismo. Mas o novo século irá colocar grandes desafios: a moeda única europeia estava a rolar, a China já não era um dragão adormecido, o preço do petróleo iniciara uma trajectória de subida imparável. E Portugal estava prestes a ficar anémico. 7 de Junho de 1999. O grupo espanhol Santander anuncia que vai comprar 40% da holding seguradora Mundial Confiança (BPSM/CCP/Totta), dominada por António Champalimaud, sem ter a autorização prévia do Governo que a lei exigia. O ministro das Finanças Sousa Franco acusa o banco espanhol de se ter articulado com o industrial “para enganar o Estado português” e veta a operação. 18 de Junho. O braço-de-ferro entre Sousa Franco e Emilio Botín, presidente do Santander, abre espaço a um ataque do BCP, então liderado por Jorge Jardim Gonçalves, que lança uma OPA sobre o grupo de Champalimaud. Ao bater-se pela partilha do espólio do industrial, o BCP, que já absorvera o Banco Português do Atlântico e o Banco Melo, pretende garantir o primeiro lugar do ranking da banca privada. Conta-se que o presidente do BES, Ricardo Salgado, estava em Lausanne num encontro familiar e, ao ser informado, se sentiu mal. O passo exige-lhe uma acção. E num contacto com Artur Santos Silva, presidente do BPI, abordaram uma fusão. 200017 de Janeiro. Na sala do Hotel Ritz para onde entram Ricardo Salgado e Artur Santos Silva, o ambiente não é de festa, apenas cordial. A concentração bancária pode mudar a configuração do sector. Se vingar, o BES e o BPI passarão a deter, respectivamente, 59% e 41% do denominado BES. BPI, que será líder. Em processos de concentração, a tendência é irresistível: cada uma das partes pensa que pode dominar a outra. O BES confiava que ia amarrar o BPI pois era maior, enquanto o BPI, por se julgar mais profissional, acreditava que ia influenciar e condicionar a sua estratégia. Quando as equipas dos bancos já estavam no terreno a ultimar a fusão, surgiram os primeiros equívocos. 6 de Março. Em declarações ao Diário de Notícias, Ricardo Salgado dá a entender que a designação “BPI” é para cair: “A marca BPI é jovem, não tem a notoriedade do BES. ” A frase gera mau clima no parceiro. Três dias depois, a 9 de Março, o vice-presidente do BPI, Fernando Ulrich, reage em entrevista ao PÚBLICO: “Não estou disponível para um projecto Espírito Santo. Considero, aliás, que a fusão pode trazer muito mais valor para os dois grupos do que um projecto apenas Espírito Santo. ” Mas uma família como a Espírito Santo dificilmente aceitaria acrescentar outro nome ao seu. Então, numa segunda ronda negocial, Salgado e Santos Silva acordam dar mais poder ao BPI, o que não vai ser aceite pelo Grupo Espírito Santo (GES). 26 de Março. Um domingo. A família Espírito Santo foi sempre uma estrutura de aritmética difícil e o seu conselho superior, que reúne os cinco ramos, uma caixa negra. Salgado é adepto da fusão, mas terá o poder absoluto? Com a entrada de investidores, como o Banco Itaú e o La Caixa, no universo do GES, os primos deixavam de ser dominantes. Há outra questão: o estilo de governação teria de mudar. O que, na prática, se traduzirá, entre muitas outras coisas, na alteração do esquema remuneratório generoso (dividendos e salários) que protege os membros Espírito Santo. No dia seguinte, Salgado, indicado para ser o CEO, telefona a Santos Silva (que colocava reticências à concentração), que ficaria chairman, e diz-lhe: o BES não assina o acordo. Na opinião do ex-ministro das Finanças Eduardo Catroga, colega de Salgado na Faculdade de Economia do Quelhas, em Lisboa, a aproximação do BES ao BPI “não só visava contrariar o peso crescente do BCP, mas também libertar o banco e os negócios da pressão da família e da dependência dos seus interesses”. Na altura, diz, “já era possível detectar deficiências no modelo de governação, pela escolha dinástica do chairman do GES [António Ricciardi, hoje com 90 anos], que é quem deve representar o equilíbrio do poder”. Por isso, o actual chairman da EDP (Catroga) defende que “não é possível compreender o que se passou sem olhar a dois factores estruturais”: o facto de o GES “ter renascido no estrangeiro” depois do 25 de Abril, “associado à credibilidade do nome”, e ter-se endividado para comprar o BES e a Tranquilidade. Trinta anos depois, o peso da dívida continuará a persegui-los. Foi a partir de 2000 que Salgado iniciou uma estratégia tentacular junto do poder político e económico? Catroga responde: “Essa visão é redutora. Não passa de um feeling. ” Mas a verdade é que esse foi o ano que marcou a ascensão do banqueiro. E também o fim de um grupo com quase 150 anos. 29 de Março. Para ganhar quota de mercado e esgotada a via da fusão, o banqueiro tem agora pela frente um caminho estreito: o crescimento orgânico. O que exige mudanças nas estruturas de governação do BES, que passam a integrar uma maioria de gestores e directores independentes recrutados fora da família. Data da época a criação de um gabinete de imprensa que vai ser muito útil para a afirmação pessoal do banqueiro. Nos anos seguintes, Salgado conquistará crescentemente uma aura de infalibilidade que o tornará uma figura dominante na sociedade portuguesa. O estilo de exercício do poder ajuda: raramente levanta a voz; os nãos são em regra suaves. E ainda por cima apresentar-se-á com “êxito”. Verão de 2000. Remonta a Agosto o primeiro grande confronto com Pedro Queiroz Pereira (P. Q. P. ), presidente da Semapa. O industrial é accionista do GES e lança uma oferta pública de aquisição (OPA) sobre a Cimpor e, em vez de procurar financiamento junto do BESI, foi ter com o Santander. A equipa de Salgado leva a mal e vai ajudar a que a cimenteira fosse antes parar à Teixeira Duarte. Ora, o industrial tem o seu feitio e os insultos aparecem. A disputa está ao rubro quando Patrick Monteiro de Barros, administrador da Espírito Santo Financial Group (ESFG) (holding da família com a posição directa no BES), oferece uma recepção na Quinta Patino, pertença do GES. Conta quem assistiu: “A certa altura, o Pedro [P. Q. P. ] entrou e vendo o ‘Ia’ [como Ricciardi é conhecido entre os amigos] foi falar com ele: ‘Vocês [ES] são inconcebíveis!’” O ainda administrador do BESI argumenta: “Não é altura para discussões. ” Mas o industrial teima: “Sim porque vou vender a minha posição no grupo. ” Ricciardi rebate: “É pá vende, vende…” O que aquece o diálogo: “Esse … [Salgado] é um…” Não tinha completado a frase, já o outro estava a protestar: “É pá não faço aqui mais nada para não estragar a recepção do Patrick e nunca mais te dirijo a palavra até me pedires desculpa. ” Quem presenciou lembra que “o ‘Ia’ abandonou o recinto de cabeça perdida e o Pedro não se calava. ” Antes de sair, Ricciardi comenta para um amigo: “Vou-me embora com o estômago a dar voltas. ”Dias depois, Ricciardi janta num restaurante em Cascais, quando entra P. Q. P. , que se lhe dirige. Só que o administrador do BESI via ainda em Salgado um mentor e deixa-o de braço estendido. O episódio repete-se outra vez, noutra ocasião. Como os dois são impulsivos e da mesma geração, não fazem cerimónia. Ricciardi volta-se para o industrial e diz: “É pá ainda não percebeste? É que eu não te falo, não te falo mesmo. ” Vão passar três anos até que o diferendo fique sanado. 2 de Novembro. O tenente-coronel Luís Silva vende a participação de 58% na Lusomundo [que possuía o Diário de Notícias, o Jornal de Notícias, a TSF, 170 salas de cinema] à Portugal Telecom (PT). A PT classifica o negócio de estratégico e paga 267 milhões de euros. A venda é assessorada pelo BESI e nela participam Manuel Serzedelo, presidente, e Salgado. Logo aí já se ouve muito sururu, pois o valor de compra é classificado como “absurdo”, dado o interesse reduzido que o activo tinha para a PT. 200131 de Dezembro. Através da Espírito Santo Control, onde os ramos da família estão representados, o grupo domina, com recurso a um esquema de cascata de holdings, as duas áreas: financeira (BES e Tranquilidade) e não financeira (Comporta, Portugália, Hotéis Tivoli, propriedades na América Latina). Esta estrutura permite controlar a jóia da coroa (o BES) com uma reduzida posição (5%) face ao efectivo poder que têm no banco. Para aliviar o esforço da família em termos de endividamento, todos os anos são atraídos para as holdings novos accionistas. O BES vai aumentar o capital em 500 milhões. Pouco depois, Margarida Queiroz Pereira, em guerra com os irmãos, Pedro e Maude Queiroz Pereira, assumiu cerca de 3% da ESFG (dona do BES), parte com crédito do banco e parte com o fruto da venda das suas acções da Semapa a três offshores representadas pelo BES. O episódio foi já revelado pela Revista 2 [22/12/2013]: ao manter segredo sobre a real titularidade das três sociedades, que sempre pertenceram ao GES, Salgado vai alimentar um caldo de desconfiança entre parceiros. E, em 2013, culminará na saída do GES da Semapa e da Semapa da ESFG. 2002Este é o ano em que o BES cria uma extensão financeira a Angola: o BESA. “A aposta óbvia seria Carlos Silva, mas Salgado optou por entregar a presidência [do BESA] ao Álvaro Sobrinho. Os dois são tecnicamente muito bons, não há dúvida. Mas o Sobrinho e o Salgado tinham as suas agendas que convergiram durante anos”, recorda um ex-colaborador do BESA, onde Sobrinho, Carlos Silva e Ricardo Salgado são accionistas a título individual. O actual vice-presidente do BCP, Carlos Silva, hoje à frente do angolano Banco Privado Atlântico, será considerado, em 2014, pelo Jornal de Negócios o 34. º mais poderoso da economia portuguesa. Já Sobrinho está a braços com problemas na justiça. 27 Março. João Rocha, ex-presidente do Sporting e ex-quadro do BES, anda às turras com Salgado. E escreve uma carta aos accionistas do banco e aos da PT Multimédia (de que era investidor) a chamar a atenção para “operações pouco transparentes” resultantes de financiamentos “mistério” de “7, 5 milhões de euros a três companhias nas ilhas Caimão”, com “um capital ridículo de cerca de 30 mil euros”. O BES argumenta que os movimentos decorrem “ao abrigo da supervisão do Banco de Portugal (BdP)”. Por detrás das disputas, estão sempre interesses. Neste caso, está um empréstimo antigo concedido pelo BES para Rocha comprar um palacete na Rua de São Bernardo à Lapa, em Lisboa. O banco reclama “um crédito de 2, 97 milhões de euros”, mas o sportinguista contrapõe com “1, 665 milhões de euros”. O desacordo arrasta-se e, a dada altura, Rocha foi ter com Joe Berardo, cliente e accionista do BES: “Podes arbitrar um acordo com o Salgado?” O amigo indaga: “Qual é o teu preço?” De seguida, Berardo procura o banqueiro: “Isto é uma chatice para vocês. Mas, para o Rocha retirar as providências cautelares [sobre o banco], compram-lhe as acções do BES e incluem no negócio a dívida da casa. ” Ao PÚBLICO, Berardo confirmou que foi “intermediário”, mas nada mais pode dizer por “estar sujeito a confidencialidade”. Enquanto o acordo não é assinado, Rocha bombardeia o BdP e a CMVM com informação a queixar-se de que “o BES se recusa a explicar os contornos pouco transparentes do negócio de compra e venda dos prédios do Marquês de Pombal, assinado com a Ibervisão, que se supõe ser do senhor Vítor Santos”, o construtor benfiquista com o petit nom “Bibi”, “sócio” de José Neto, gestor do Banco Internacional de Crédito (BIC), do BES. Sempre houve grande vizinhança entre a indústria de betão e o BES, que chega a ter uma agência no Saldanha dedicada apenas a servir clientes construtores das zonas de Lisboa e de Sintra. A ligação vai acentuar-se nos anos seguintes e revela-se, aliás, com a crise económica, um detonador dos problemas financeiros do grupo. Em 2013, o banco foi obrigado a registar 1, 423 milhões de euros de provisões para fazer face às imparidades de crédito (perdas potenciais por financiamentos na área imobiliária). Esta é uma época de caçadas em herdades alentejanas, como a do construtor José Guilherme, que juntam alguns banqueiros, advogados, políticos, dirigentes de clubes de futebol. Ricardo Salgado participa, pois o seu relacionamento com José Guilherme era de casa. Também vão José Neto, José Manuel Espírito Santo, administrador do BES, ou o sportinguista Sousa Cintra e o benfiquista Luís Filipe Vieira. 6 de Abril. José Manuel Durão Barroso é eleito para chefiar o Governo. O que remete para uma cena ocorrida três anos antes. À hora de almoço, no restaurante Pabe, em Lisboa, coincidiram na mesma sala, por mero acaso, jornalistas do PÚBLICO, da SIC e de O Independente. E ainda donos de duas agências de comunicação. O ex-ministro das Finanças Sousa Franco estava acompanhado do ex-director-geral do Tribunal de Contas José Farinha Tavares e andava irritado com António Guterres que o substituíra por Pina Moura, na sequência do veto à venda do controlo da Mundial Confiança ao Santander. Sousa Franco era surdo de um ouvido, falava alto e tinha o seu quê de “extrovertido”. Depois de classificar o governo remodelado de Guterres como “o pior desde o de Dona Maria”, considerou com desdém: “Durão Barroso é o homem do BES” de quem recebe “uma avença [e ainda carro e motorista]” e “foi às custas do banco que foi para os EUA tirar o doutoramento que nem concluiu”. O Independente fez manchete da conversa. 10 de Julho. O BES anuncia que investiu dois milhões de euros para patrocinar o Benfica, o Porto e o Sporting. A decisão foi precedida de um debate na comissão executiva do BES à volta do posicionamento no negócio futebolístico que é, por natureza, mediático. O ex-gestor José Manuel Espírito Santo relata a um grupo de amigos: “A área de comunicação do banco quis apostar no futebol, mas estavam todos contra por ser muito caro e porque teriam de patrocinar o Sporting, o Benfica e o Porto. ” O director contraria-os: “Os benefícios de imagem vão ultrapassar em muito os custos, quando passarmos a patrocinar a selecção nacional. ” Então, Salgado delibera: “Ou apoiamos todos ou nenhum. ” E apoiaram todos. Em 2013, os analistas admitiam que a dívida ao BES dos três principais clubes de futebol (Benfica, Sporting e Porto) era de 215 milhões de euros. Final de 2002. Quando a CMVM começa a investigar o ex-presidente do BESI, Manuel Serzedelo, por participação em negócios paralelos ao banco, Ricciardi, ainda administrador, vê uma aberta para o substituir. Mas Salgado defende Serzedelo. Um ex-quadro do BESI lembra-se que Ricciardi, ainda administrador do BESI, foi pedir “a ajuda de um amigo com pontes na comunicação social”. Versão que este nega. Seja como for, o tema chega às primeiras páginas dos jornais. 200317 de Janeiro. Uma sexta-feira. O Independente avança que Serzedelo, que também é administrador da PT e do BES, deu ordens de compra de meio milhão de acções da PT Multimédia. O negócio gera uma mais-valia de cerca de 1, 5 milhões de euros ao vendedor, a Companhia de Cervejas Estrela, de que Serzedelo é accionista e também gestor. Na sequência da polémica, Serzedelo anuncia que se afasta de todas as empresas, e José Maria Ricciardi é eleito presidente do BESI. 2004Janeiro. O BES estava a tornar-se um pólo de atracção de interesses empresários, financeiros, políticos. E os centros de poder geram conivências e laços de solidariedade. O mandato presidencial de Jorge Sampaio vai concluir-se a 9 de Março de 2006 e nos corredores políticos correm rumores de que Santana Lopes planeia avançar. É tempo de encontrar um candidato. Quem melhor do que o ex-colaborador do banqueiro, Durão Barroso, agora em São Bento, para debater o tema? Então, Salgado convida o ainda primeiro-ministro e a mulher, Margarida Sousa Uva, para um jantar na casa de Cascais, que estende a mais dois casais: Aníbal e Maria Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa e Rita Amaral Cabral, que viria a ser administradora não executiva do BES. Salgado justifica o encontro como “um jantar privado de casais com laços de amizade”. 15 de Janeiro. As multinacionais e as grandes empresas têm uma prática de oferecer viagens aos media, o que gera um ambiente informal favorável a passar mensagens que interessam. Entre Salgado e a comunicação social sempre houve uma empatia recíproca. Salgado gostava de falar através dos jornalistas, os jornalistas viam nele o poder. Se necessitava de enviar recados, o banqueiro promovia encontros em locais inesperados. Um deles decorre em Megève, nos Alpes franceses, onde fala da tentativa de concentração com o BPI: “Não se concretizou devido ao grande peso que o La Caixa (16%) tinha. Não somos ingénuos e percebemos o risco. ” Observações reproduzidas na imprensa do dia seguinte. Ora, Fernando Ulrich, do BPI, não tinha, evidentemente, digerido a reviravolta da fusão com o BES e, de Lisboa, replica: “Foi o BES, e não o BPI, que rompeu as negociações. ” “Nem temos nada a aprender com o dr. Ricardo Salgado em matéria de independência da gestão, de apoio a centros de decisão nacional e de obtenção de mais-valias por vendas a estrangeiros. ” Salgado e Ulrich vão nos anos seguintes protagonizar fortes embates públicos. Mas o dado relevante decorreu à margem do encontro com os jornalistas. Três anos depois da zanga, em Lisboa, P. Q. P. está ao telefone com Ricciardi, em Megève. O industrial quer pedir-lhe desculpa pelo episódio ocorrido na Quinta Patino e reatar relações. Dias depois, já em Lisboa, frente a frente, o presidente do BESI intui “uma coisa extraordinária”: “Apesar de o meu primo [Salgado] saber do que levara ao corte, continuou a falar com o Pedro como se nada fosse. ”10 de Fevereiro. Chega a hora de a geração na casa dos 40 anos (entre muitos outros, o ministro da Economia António Pires de Lima, José Maria Ricciardi, Fernando Ulrich) disputar o topo das empresas. Organizam, então, uma iniciativa mediática no Convento do Beato, a que dão o nome Compromisso Portugal. O evento neoliberal marca o início do discurso político que passa a veicular a tese de que o interesse público se esgota no “interesse dos contribuintes”. Março. Neste mês, o novo presidente do BESI tem o seu primeiro embate com o primo direito, ambos filhos das duas irmãs herdeiras de Ricardo Espírito Santo Silva: Salgado tem 59 anos, Ricciardi 49. O choque dá-se logo que o mais novo aparece a conceder a sua primeira entrevista como sucessor de Serzedelo. À questão colocada pelo PÚBLICO — “como vê o facto de o seu nome ser referido como sucessor de Salgado?” responde em linguagem “futebolística”: “Como gosto muito de futebol, digo que em equipas ganhadoras não se mexe. Temos um grande presidente [Salgado], […] se não mesmo o melhor banqueiro do grupo desde sempre, tendo elevado o BES ao mais alto nível […]. Espero, por isso, que ele se mantenha à frente do grupo durante muitos anos. ”No dia seguinte, Salgado chama-o a sua casa, em Cascais: “É pá, não sei se sabes que o Zé Neto é presidente do BIC, o Zé Manuel é do BES Espanha, e nenhum deles dá entrevistas, apesar de serem presidentes. A única pessoa aqui que concede entrevistas sou eu. Tu não podes começar a dar entrevistas. ” Ricciardi contra-ataca: “Podes ter a certeza de que vou continuar a dar entrevistas. E sabes porquê? Porque as pessoas querem saber a minha opinião sobre os problemas do país, não é só sobre o BES ou o BESI. ” Ricciardi reclama junto do PÚBLICO por lhe ter sido atribuído, erradamente, 50 anos se tinha 49. Num contacto com o PÚBLICO, pouco depois, Ricciardi envia ao “chefe” novo recado: “Nesta família sempre houve grande colegialidade e escrutínio, e as pessoas quando chegam a uma certa idade o que querem é que os mais novos os substituam, puxando por eles e motivando-os. E vão fazer aquilo de que mais gostam, o que é visto como um prémio. ”Angola cresce a dois dígitos. Salgado quer apostar no BESA, mas a estratégia gera atritos, pois a parceria histórica do GES é com a Escom, com sede nas Ilhas Virgens Britânicas, onde detém 67% do capital. A empresa presidida por Hélder Bataglia (33%) tem influência e notoriedade e é-lhe concedida a condição de canal diplomático entre Angola e China. Em 2004, o consultor Miguel Horta e Costa “anda entretido” a estudar o tema das contrapartidas: ajudar os vendedores de equipamento militar a estruturar as ofertas ao Estado português. E foi ter com o irmão, Luís Horta e Costa, gestor da Escom. Para o convencer, diz-lhe: “Há aqui um bom nicho de mercado. ”21 de Abril. E mal o ministro da Defesa Paulo Portas valida a compra dos dois submarinos para a Marinha portuguesa à empresa alemã German Submarine Consortium, já a Escom, do GES, aparece a assessorar o consórcio alemão, cobrando cerca de 3% sobre o valor total da venda dos submarinos: 769 milhões de dólares. A comissão será classificada como excessiva, dado o trabalho prestado pela Escom. Há outra iniciativa simultânea de Portas a gerar ruído: o Governo assina um contrato de financiamento (para o Estado pagar os submarinos aos alemães) com um consórcio bancário formado pelo Credit Suisse e pelo BES. O GES está, deste modo, dos dois lados do negócio. Os alemães impõem ainda que o contrato seja carimbado com uma entidade europeia, o que obriga a Escom a criar a Escom UK. Esta transacção vai levar a prisões na Alemanha e, em Lisboa, a uma polémica comissão de inquérito parlamentar, encerrada, em Outubro de 2014, de forma apressada pelos dois partidos do Governo: PSD e PP. 17 de Julho. Durão Barroso é substituído por Santana Lopes como primeiro-ministro, o que vai dar origem a um período de grande turbulência. A partir daqui, o director Amílcar Morais Pires é recrutado para a comissão executiva do BES e assume-se como braço direito de Salgado com o pelouro financeiro. O que deixa para trás o até aí CFO, Manuel Pinho (menos permeável a Salgado), chutado para o BESI, onde já era vice-presidente não executivo. Ora, Pinho reage encostando-se à política e aparece no PS com a proposta do plano tecnológico, o que, à falta de ideias partidárias, depressa se torna a bandeira. A meio da década, não é no BES, mas no BCP que se concentra o verdadeiro núcleo do poder financeiro e político. O presidente Jardim Gonçalves não gosta do economista António Borges, sentimento partilhado por Ricardo Salgado, a quem Borges lança farpas em público. O episódio que se conta em seguida é a prova de como, muitas vezes, é difícil ir contra a opinião de um banqueiro. A Caixa Geral de Depósitos é o principal banco português e o poder do seu presidente é grande. Se o Governo deixa e a gestão quer, a CGD pode ser o farol em termos de disciplina e de boas práticas. Um moderador da concorrência. O ministro Álvaro Barreto, em nome de Santana Lopes, convida Borges para presidir à CGD, que responde: “O convite atrai-me profissionalmente. ”Setembro. Borges está em Bruxelas quando Barroso, já presidente da Comissão Europeia, o avisa: “Vai ter uma surpresa assim que chegar a Lisboa, eles [Governo] não vão confirmar o convite para a CGD. ” Semanas depois, Borges vai jantar ao BES a pedido de Salgado, que o informa de que os membros da Associação Portuguesa de Bancos se opõem à ida dele para a CGD, incluindo o BES. O banqueiro não precisava de ter dito nada, mas fez questão de mostrar uma posição. 25 de Setembro. Pouco depois de ser eleito secretário-geral do PS, José Sócrates indica Manuel Pinho como porta-voz para a Economia e confia-lhe a elaboração do programa eleitoral. O vice -presidente do BESI comunica a Salgado a intenção de aceitar, mas este diz-lhe: “É melhor não. ” Arrepende-se. À noite, o banqueiro liga-lhe de volta e dá-lhe força para avançar. Ao mesmo tempo, no PSD, as funções de porta-voz da Economia tinham sido entregues ao deputado Miguel Frasquilho, do gabinete de estudos ES Research, e subordinado de Pinho. “Os dois trocavam informações nos corredores do BESI”, recorda quem ali trabalha ainda. O grupo sai sempre vencedor. 3 de Outubro, um domingo. Com muitas polémicas a rodear a acção de Santana Lopes, as intervenções de Marcelo Rebelo de Sousa na TVI são de terra-queimada, o que incomoda o chefe do Governo. Marcelo critica a decisão do executivo de dar “tolerância de ponto” aos funcionários públicos, por reflectir “o pior do pior de António Guterres”. Foi a gota de água que entornou o copo de Santana, que pede ao ministro dos Assuntos Parlamentares, Rui Gomes da Silva, que elabore considerações sobre o comentador. 4 de Outubro. Gomes da Silva declara publicamente estar “revoltado” com um comentador que “tem um problema” e apontou para o facto de sob a capa de comentário político “transmitir sistematicamente um conjunto de mentiras” sobre Santana “com desfaçatez e sem qualquer vergonha. ”5 de Outubro. O comentador “sem vergonha” remete para domingo a resposta ao ministro. Marcelo Rebelo de Sousa e Rita Cabral vão, nesta noite, jantar a casa de Salgado com o presidente do Bradesco, accionista do BES. Quando Marcelo saiu, o banqueiro já sabe que ele se prepara para romper com a TVI. Só desconhecia o timing. Os acontecimentos vão precipitar-se. As conversas nos bastidores políticos ajudam a compreender como se movem interesses. No dia seguinte, Salgado está em São Bento a debater com Santana Lopes o negócio de venda da Galp, disputado pelo GES. Pelo meio, o banqueiro avisa-o de que Marcelo pode estar de saída da TVI, o que deixa Santana tão nervoso que lhe pede que se torne o facilitador do consenso entre os dois. Mas enquanto decorre a conversa, já Marcelo batera com a porta da TVI. E com estrondo. Santana será acusado de interferência nos media. 22 de Dezembro. Jorge Sampaio convoca eleições legislativas para 20 de Fevereiro. E a 29, a Escom UK recebe o primeiro pagamento de 24 milhões de euros da Man Ferostaal [do consórcio alemão que vendeu os submarinos ao Estado]. Nas vésperas da passagem de ano, ocorre um episódio que se converte numa saga judicial com vários incidentes interligados. A lei exige às entidades bancárias que comuniquem operações suspeitas. Seguindo esta orientação, um gestor de agência do BES participa ao Ministério Público ter detectado 115 depósitos em numerário no valor de pouco mais de um milhão de euros. O cliente que os movimentara era o responsável pelas finanças do CDS-PP, o empresário Abel Pinheiro, que a partir dali fica sob escuta. E contamina um grupo alargado de interlocutores, muitos deles do CDS-PP, como Luís Horta e Costa, da Escom, e o então ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território, Nobre Guedes. Os três falam muito e com muita gente. 2005No início deste ano, o caso das contas-fantasma de Augusto Pinochet abertas no BES Miami e no BES Caimão está na agenda do Senado norte-americano. Washington queixa-se de que o BES coloca dificuldades ao acesso à informação pedida sobre os movimentos do ditador chileno. As queixas incendeiam o discurso da esquerda portuguesa, que reclama transparência na divulgação dos dados. 16 de Fevereiro. O Governo já não está em funções plenas quando um despacho conjunto dos ministros da Agricultura, Pescas e Florestas (Costa Neves), do Ambiente e do Ordenamento do Território e do Turismo (Telmo Correia) reconhece a imprescindível utilidade pública de um empreendimento turístico na Herdade da Vargem Fresca, a executar pela Portucale, do GES. A decisão possibilita à empresa o abate de 2605 sobreiros e potenciar o investimento. 24 de Fevereiro. José Sócrates é eleito com maioria absoluta. Manuel Pinho quer ser ministro. De preferência das Finanças. Se há uma parte genuína no desejo, por acreditar que as suas ideias fazem a diferença, há também um entusiasmo de principiante. E depois de Sócrates o sondar para tutelar a Economia, Pinho comunica ao presidente do BES a decisão. Após renunciar ao Governo, Pinho regressa ao BES em 2009 como não executivo e com um ordenado mensal superior a 35 mil euros. Salgado é pragmático: sabe desenvolver uma agenda convergente com o poder político. O Governo vai precisar de financiamento e de apoio para levar por diante os seus projectos e o BES arranja soluções, não coloca problemas. É vida de banqueiro. 10 de Maio. Na sequência da denúncia do gerente do BES, o Ministério Público desencadeia buscas à Escom e tropeça numa minuta do despacho ministerial a caucionar o abate de sobreiros. O documento está em cima da secretária de Luís Horta e Costa e foi-lhe entregue por Abel Pinheiro. O que faz adensar as suspeitas de que a decisão do governo PSD-CDSPP foi negociada fora do Ministério do Ambiente. Nobre Guedes, Horta e Costa e Abel Pinheiro são constituídos arguidos. Ao rol de dúvidas das autoridades somam-se mais duas: a comissão milionária cobrada pela Escom ao consórcio alemão que vendeu os dois submarinos ao Estado português terá servido para pagar a políticos envolvidos na decisão? Os depósitos em numerário de Abel Pinheiro, tesoureiro do PP — e que desencadearam o processo Portucale —, estão relacionados com esta pista? As investigações vão prosseguir durante os próximos anos e dar ainda muito que falar. Por enquanto, não há conclusões conhecidas. 20 de Maio. O tema Portucale está no centro do debate. O PÚBLICO edita um trabalho onde desenvolve um “retrato do GES”, nas suas várias implicações, políticas, empresariais e financeiras. Um grupo capaz de influenciar os decisores na aprovação de projectos que está a desenvolver, referindo-se ao caso Portucale. E dedica na mesma edição uma página à Escom, com o título: “A empresa instrumental do GES para os negócios que não estão na praça pública”. Sem conhecimento prévio, na mesma edição, o suplemento satírico Inimigo Público [estrutura autónoma do jornal] faz manchete: “Sobreiros foram torturados antes de serem abatidos”. No interior disserta: “Quem sabe sabe. Mas o BES não sabe nada. ” “Preveja o seu futuro com o BES Plano Poupança Cadeia. ” A equipa de Salgado vê ali uma concertação para ferir o bom nome do grupo e reclama junto da administração do jornal. 5 de Julho. A Escom UK recebe a última tranche, de 1, 2 milhões, do bolo de 24 milhões de euros da comissão paga pelo consórcio alemão. Para além dos pagamentos a Bataglia, Pedro Neto, Luís e Miguel Horta e Costa, a Escom transfere cinco milhões para cinco contas pessoais abertas num banco na Suíça. Início de Agosto. No Brasil, investigam-se subornos a deputados. Depois de Miguel Horta e Costa (primo do consultor da Escom), ex-presidente da PT e vice-presidente do BESI, e de António Mexia, na qualidade de ministro das Obras Públicas, chegava a vez de Salgado ser infectado pelo caso Mensalão, o maior escândalo de corrupção do Brasil. O empresário Marcos Valério conta que organizou reuniões com o BES Brasil e a PT para libertar verbas para financiar o Partido dos Trabalhadores (PT) no poder. Os gestores portugueses desmentem, o que não evita esclarecimentos à justiça brasileira, que os ilibará anos depois. 17 de Outubro. Elementos da Direcção Central de Investigação e Combate à Criminalidade Económica e Financeira da Polícia Judiciária e da Inspecção-Geral de Finanças entram em quatro bancos — BES, BPN, BCP e Finibanco — e nas instalações do GES na zona franca da Madeira. Está em curso nova investigação do DCIAP, a que se dá o nome de Operação Furacão — ainda a correr — e que identifica uma fraude fiscal superior a 280 milhões de euros, com 30 arguidos e 70 processos. Porém, a acção não constitui uma verdadeira surpresa para os quatro bancos. O presidente do BPN, Oliveira Costa, foi avisado antecipadamente e no fim-de-semana anterior convocou quadros para empacotar documentação relacionada com o Banco Insular (ainda desconhecido das autoridades e que servia para o BPN esconder prejuízos) e retirá-la do banco. No contexto do seu julgamento, o inspector tributário Paulo Jorge Silva, testemunha arrolada pelo Ministério Público, considera que a “fuga” de informação atrasa em dois anos a descoberta da megafraude que já lesou o Estado em pelo menos 3000 milhões de euros (a verba pode chegar ultrapassar 5000 milhões). É aqui que as vidas do procurador Rosário Teixeira e do juiz Carlos Alexandre se vão entrelaçar com a de Ricardo Salgado. Num prédio de Lisboa funciona a Esger, especializada em serviços de consultoria e suspeita de ajudar clientes do BES a ocultarem um esquema de facturas falsas. O circuito atrai pequenas e médias empresas, nomeadamente construtoras, e é apanhado pela rede da Operação Furacão. A Esger pertence ao BES, em parceria com o BIC e dois sócios individuais: Ricardo Salgado e José Manuel Espírito Santo Silva, ambos da comissão executiva do BES. O BdP não vê ali problema. Portugal vive um quadro de crise, mas não a banca, que tem acesso aberto aos mercados internacionais e “compra” o dinheiro barato. Ter capacidade de emprestar dinheiro é essencial para um banco. E quanto maior é o fôlego, maior a disponibilidade para alargar a esfera de acção, em especial se a economia (empresas e Estado) estiver descapitalizada. Um banqueiro dispõe de um trunfo: apoiar a empresa ou o Estado, ou negar a ajuda e criar obstáculos. 2006À entrada do ano, o BES já surfava na crista da onda com lucros de 281 milhões a dispararem 85% face ao ano anterior. Salgado tornara-se um banqueiro superstar. Um dia recebe o presidente de uma pequena e média empresa da área da construção, no outro senta-se ao lado de Sócrates a promover os seus projectos ou anuncia um investimento numa grande empresa. 6 Janeiro. O BES apresenta-se como o novo accionista estratégico da EDP. Dois dias antes, Manuel Pinho confirma Mexia (seu colega no BESI) como presidente. O que leva Salgado a avançar com uma estratégia tentacular em sectores onde o Estado tem presença? Para além dos dividendos, impunha o BES como o banco da empresa e o grande intermediário do Governo. A EDP e a PT dão esse poder. 6 de Fevereiro. A Sonae lança a OPA sobre a PT e Salgado opõe-se. E foi procurar peças de xadrez. Dois jovens consultores da Heidrick & Struggles, Nuno Vasconcelos (cunhado de um quadro do BES, Bernardo Espírito Santo) e o espanhol Rafael Mora, sabem bem onde estão os pólos do novo poder e são atraídos para a órbita do GES. A conjugação de vontades vai unir Salgado a Vasconcelos e Mora numa aliança produtiva. A ascensão é meteórica. E de pouca duração. 13 de Abril. Na sequência da guerra accionista no BCP para afastar Jardim Gonçalves e do falhanço da OPA hostil lançada por este banco sobre o BPI, instala-se um grupo de bloqueio no maior grupo financeiro privado português. Destacam-se os nomes de Vasconcelos e de Mora. O então CEO do BCP, Teixeira Pinto, que ambos apoiam, e que se opõe ao fundador, empresta à Ongoing 400 milhões para aumentar a posição na PT. O BES disponibiliza 280 milhões. Houve quem interpretasse a desestabilização no BCP como uma forma de o BES ter poder sobre o seu rival. Hoje, oito anos depois, Filipe Pinhal, então da equipa de Jardim Gonçalves, assiste ao colapso BES com ironia: “Quem tudo fez para afundar o BCP e partilhar os despojos está agora em risco de ver o BCP partilhar os despojos do BES. ”A meio de 2006, a empresa do GES em Angola era um pequeno estado dentro de um Estado, com interesses em vários domínios: petróleo, diamantes, construção. E os projectos eram financiados pelo BESA, de que Bataglia era administrador. A Revista 2 apurou que, por essa altura, a pedido do presidente do BES, o construtor José Guilherme adquire à Escom, por 7 milhões de dólares, cerca de 30% das 3 Torres de Luanda em fase de construção. Mais tarde, e pouco antes de a Escom começar a comercializar os andares, José Guilherme revende à empresa a sua posição, agora por 34 milhões. O nome de José Guilherme chega ao domínio público quando Salgado divulgou que recebeu do construtor uma comissão presente, o que o levou a três correcções à declaração fiscal de 2011. 31 de Outubro. O Governo, através do ministro Mário Lino (que tutelava a Portugal Telecom e a TAP), aparece a dar luz verde à TAP para comprar por 140 milhões de euros a Portugália, a companhia aérea do GES historicamente deficitária. A transacção é vista pela oposição como tendo também a mão do ministro da Economia, Manuel Pinho, e um sinal do grande entendimento que se estabelecera, entretanto, entre o banqueiro e o primeiro-ministro, José Sócrates. 2 de Novembro. Quando a Guarda Civil espanhola, de coletes fluorescentes, entra nas instalações do BES Espanha, as televisões já lá estavam. O raide visa apurar se proporcionara aos clientes mecanismos financeiros para branqueamento e evasão fiscal: o dinheiro ia para a filial do banco na Madeira e regressava a Espanha, limpo, através de França e do Luxemburgo. Os documentos na posse do juiz Baltazar Garzón apontam para clientes recrutados na sociedade espanhola e a acção policial é mediatizada por o BES ser conhecido pelo relacionamento com a família real. 20087 de Maio. O ex-executivo da Union des Banques Suisses (UBS) Bradley Birkenfeld declara-se culpado de conspiração para defraudar os Estados Unidos, ajudando clientes do banco a fugir ao fisco. Na sequência, Birkenfeld torna-se informador das autoridades e contribui para desmontar o mega esquema. A acção terá, em breve, impacto em Portugal. Setembro. A crise de crédito espalha-se. Quem lhe dá importância? Os mercados não se auto-regulam e não funcionam na base da boa vontade e da ética. Nas “cities” fazem-se investimentos imprudentes e há bancos com dificuldades em saldar os compromissos. Com 150 anos, o respeitado Lehman Brother de rating sólido (AAA) é afinal um gigante com pés de barro, pois os gestores manipularam os números para ocultar prejuízos e excesso de dívida. O filme é conhecido: o banco faliu. E em Portugal, entre Novembro e Dezembro, o BPN e o BPP declaram-se insolventes e pedem ajuda ao Estado. Sócrates deixa cair o BPP e nacionaliza o BPN, o que gera ondas de choque na oposição, que faz campanha contra a decisão. A estatização deverá implicar um custo para o Estado superior a 5 mil milhões de euros. 2009A crise financeira globaliza-se e alastra à economia real. Esta é a época em que Salgado é apresentado como um génio da Finança. Aquele que reergueu e recuperou o prestígio de um grupo centenário. A ideia formatara-se na maioria dos cerca de 400 membros da família, o que dá ao chefe grande poder, poder esse que a partir de certa altura pode ter exorbitado. Mas quem liga? Os resultados iam chegando. E os primos dizem: “Ó Ricardo, tu é que sabes. ” E brincam: “Ele [Salgado] gosta de trabalhar, não tem passatempos e quando chega a sexta-feira à noite entra em depressão porque vai começar o fim-de-semana. ”O banqueiro está habituado ao convívio social, mas, um ex-colaborador de Ricardo Salgado observa que “chegava ao banco cedo e saía muitas vezes noite dentro, raramente era visto fora do 15. º andar, onde tomava as refeições”. Mas não lhe conhecem grandes distracções. O que não acontece com o primo direito Ricciardi, que também vive em Cascais. No jardim, construiu um lago onde cria carpas e tem gaiolas para procriar canários de competição. Um vício de criança, que diz tirar-lhe o stress, o que o remete para 1977, a viver no Brasil, quando desfilou pela escola de Samba da Portela, entre operários e sapateiros. A banca portuguesa apostara no financiamento em larga escala aos seus clientes, contando com o fácil acesso aos mercados interbancário e de emissão de dívida, e de baixas taxas de juro. Mas o ciclo terminara. Em 2009, mais de metade da carteira de crédito do sector estava sustentada em dívida contraída junto de credores internacionais. O BES revela o maior desequilíbrio na relação crédito/depósitos (192%), logo a seguir ao Santander Totta (215%). O Banco de Portugal recomenda um rácio não superior a 120%. O tempo esgota-se para o clã Espírito Santo. O BES tem pela frente um período crítico que introduz uma exigência de mudança nos métodos de gestão. Havia outras soluções, mas Salgado escolhe a fuga em frente. “O contágio dos interesses da família ao BES acentuam-se depois de 2007, com a crise financeira, quando deixou de ser possível manter o modelo de financiamento sustentado em dívida que seria paga com a venda de activos”, salienta Catroga, para quem “Salgado raciocinou sempre numa óptica patrimonial, em que o grupo se pode endividar, pois em certo momento vai fazer mais-valias significativas e paga as dívidas. Mas devia ter privilegiado uma perspectiva de rendimento e de libertação de fundos”. Ainda assim, defende que “durante 20 anos teve sucesso e transformou o BES num banco com uma quota de mercado significativa, seguindo até à crise financeira critérios rigorosos de gestão e de solidez do balanço”. “A parte não financeira do GES fazia uma enorme pressão para continuar a expandir-se e, ainda que Ricardo procurasse pôr travão, não conseguiu”, evidencia agora um quadro do BES que declinou identificar-se. “O Amílcar Morais Pires (então CFO do BES) passou a delfim e deixou-se envolver numa relação promíscua com o GES”, adianta. Onde estava o pecado? “No excesso de dívida que foi sendo acumulada e nas operações ruinosas que engendravam para permitir esconder as dificuldades. ” O grupo passa a ser jogador de casino: perde 10, joga mais 10 para recuperar o investido e, depois de perder o que tinha colocado, volta a pôr em cima mais 10… E a certa altura… perde tudo. Parecia ter aderido ao esquema Ponzi (investimentos em pirâmide). Por esta altura, já os operacionais das holdings do GES, que reportam directamente a Salgado, se tinham dado conta da embrulhada. Há facturas por pagar. As contas da ESI vão ser manipuladas para ocultar a situação descontrolada (a 30 de Setembro de 2013 o passivo era de 5600 milhões). Em entrevista ao Jornal de Negócios (22/5/2014), Salgado remete as culpas para o contabilista Machado da Cruz: “O comissaire aux comptes assumiu a responsabilidade dos erros. Perdeu o pé no meio da situação. ”O Expresso revelará em 2014 uma carta de Machado da Cruz a garantir que Salgado, José Castella (controller financeiro), Manuel Fernando Espírito Santo (Rioforte, holding não financeira) e José Manuel Espírito Santo (BES) sabiam desde 2008 “que parte do passivo (na altura 1300 milhões) não estava nas contas”, ainda que desconhecessem o valor. O recado é claro. E Machado da Cruz foi “recambiado” para o Brasil. Mas, para fora, o grupo ganha sempre. O que ajuda a mascarar os problemas. Se os prejuízos assustam, activavam-se os veículos não financeiros Eurofins (onde estavam parqueados negócios ruinosos), com sede na Suíça, usados como banco virtual (uma espécie de Banco Insular do BPN). A auditora KPMG considerou, já este ano, que estas sociedades sustentaram “um esquema de financiamento fraudulento entre as empresas do GES”, o que levou o BdP a pedir esclarecimentos às autoridades helvéticas. A suspeita é que, via endividamento da ESI junto de clientes do BES, possam ter sido desviados fundos de 800 milhões de euros para tapar o buraco dos Eurofins. Esta é uma das matérias por esclarecer. 2 de Abril. O New York Times anuncia que os EUA estão a investigar mais de 100 clientes da UBS por fuga ao fisco. O banco chama alguns quadros a quem comunica que deixara de haver condições para se manterem na instituição, mas continuarão a trabalhar na sua esfera. No grupo estão Michel Canals e Nicolas Figueiredo, gestores de conta de Salgado na UBS, com quem Catarina Salgado (administradora do Banque Privée), a filha do banqueiro, trabalhou na Suíça. Os dois suíços reinventam-se rapidamente e criam uma nova sociedade gestora de fortunas para se focar, nomeadamente, no mercado africano. Nasce a Akoya com vários sócios: Canals (20%), Figueiredo (15%), Hélder Bataglia (22, 5%), Álvaro Sobrinho (22, 5%), José Pinto (15%) e a advogada Ana Bruno (5%). Como a condução das operações está centrada em Canals e Figueiredo, quer Sobrinho, quer Bataglia, este agraciado em 2007 com a Ordem do Infante Dom Henrique, levam tempo a descobrir que Salgado e Morais Pires são clientes da Akoya. E estes, por seu turno, desconhecem que há outros sócios na gestora para além de Canals e Figueiredo. A ignorância possibilita a todos operarem sem reservas. Setembro. As escutas desencadeadas em Dezembro de 2004 a Abel Pinheiro continuam a produzir inquéritos. A partir da certidão retirada do processo Portucale, o Ministério Público abre duas novas frentes: uma associada a facturas falsas relacionadas com as contrapartidas dos submarinos; outra para determinar quem são os titulares das cinco contas abertas na Suíça na sequência do negócio. Ora a pressão para encerrar investigações complexas, que exigem cooperação de praças offshores, pode revelar-se prejudicial se a tarefa é apurar os factos. E vai começar para o Ministério Público uma saga de pedidos às autoridades suíças. Aos quais não são dadas respostas, pois os advogados dos receptores do dinheiro metem recursos sucessivos para travar os esclarecimentos. E instalam-se novas dúvidas: esconderiam pagamentos ilícitos a políticos? Os gabinetes de advocacia envolvidos na complexa transacção receberam comissões e repassaram-nas para terceiros?O que tem de tão terrível o segredo? As cinco contas abertas na Suíça, para onde a Escom transferiu cinco milhões de euros, da comissão de 24 milhões, que recebeu do vendedor alemão dos submarinos, pertencem aos cinco membros do conselho superior do GES. Só que António Ricciardi, Salgado, Manuel Fernando Espírito Santo, José Maria Espírito Santo e Mário Mosqueira do Amaral resistem a assumir a sua titularidade, algo que só farão, aliás, já no Verão de 2013. Na altura, Salgado reconhece ter havido um “desvio” para uma sexta entidade, fora do universo do grupo, associada ao dossier, mas não divulga o nome. Deixa apenas o sinal. Outubro. O BES não é um simples banco. É uma espécie de “caixa de socorro”. Na sua órbita gravitam pequenos grupos familiares que formam uma rede de interajuda. E quando o passivo da Ongoing se torna excessivo, 831 milhões, para permitir rolar a dívida, o Montepio Geral empresta 50 milhões e a PT mais 75 milhões. O BES, já se sabe, tinha uma relação privilegiada com a empresa e ajudava quando era preciso. Vasconcelos e Mora (administrador da PT) não estão dispostos a ficar na fila de trás. E acham que vão dominar o mundo. Criam ficheiros sobre pessoas, onde misturam ficção com realidade. Vêem filmes a mais. “Vou ao 15. º falar com o Salgado”, dizia o presidente da Ongoing (com 2% da ESFG). Um dia, Vasconcelos foi almoçar ao Ritz com um director de uma agência de comunicação e um gestor do Santander, a quem pede reforço de financiamento. O administrador questiona: “Qual é a exposição da Ongoing à banca?” Como não o convence, Vasconcelos observa: “Se você me ajudar, eu deixo-o fazer parte do projecto que tenho para o país. ”Dezembro. Cerca de 30 economistas assinaram um manifesto a aconselhar Sócrates a rever os grandes projectos de investimento. Entre os signatários, está Catroga. O curso de 1969 do ISEG celebra 40 anos com um jantar no Salão Nobre do Quelhas, onde tem lugar uma conversa que ajuda a compreender o que vai na cabeça do banqueiro. Salgado convida Catroga a sentar-se à sua mesa e a meio envolvem-se num debate acalorado. A crise é o tema. Catroga menciona a trajectória galopante do endividamento e defende que Sócrates deve suspender as grandes obras públicas: TGV, novo aeroporto, Parcerias Público-Privadas. Salgado reage em defesa do Governo socialista: “Lá estás tu com essas teses tecnocráticas e contabilísticas. O Japão tem maior nível de endividamento do que nós. ” Catroga conta que argumentou: “Mas o Japão deve aos japoneses, não é dívida externa. E nós corremos o risco de um dia os nossos credores fecharem a torneira e temos aqui um problema de tesouraria. ”20108 de Março. Quando responde às perguntas dos jornalistas, Ricardo Salgado acaba as frases com um arrastar da voz: “Tá, tá beeem?” O PÚBLICO arrancava assim com novo trabalho sobre a network de 400 empresas do GES e o seu “poder excessivo”. De Salgado, Joe Berardo dizia: “É um banqueiro que é também um homem de negócio, que compreende muito bem os clientes se lhe dizem que estão apertados [a necessitar de financiamento ou de renegociar a dívida] e percebe que as coisas não correm sempre como se espera. ” O que hoje repete ao PÚBLICO: “Tenho grande consideração, até se provar que é culpado. E não há dúvida de que ele ajudou muito a indústria e as empresas. ”28 de Julho. A PT vende 50% do capital da operadora brasileira Vivo à Telefonica por 7500 milhões. O BES (incluindo dividendos) encaixa 206 milhões de euros e a CGD 151 milhões. Sócrates exige uma solução alternativa à Vivo para garantir um operador luso-brasileiro para o espaço lusófono. Brasília sugere a Oi, com necessidades de consolidar uma estrutura accionista que está muito endividada junto do banco estatal brasileiro. 30 de Setembro. A PT aplica 4500 milhões (do valor que sobra da venda da Vivo à Telefonica depois de fechar o negócio da OI) pelos bancos accionistas: CGD e BES. Ter cash é uma prioridade para qualquer banqueiro, sobretudo se carrega um grupo endividado. E o grosso da tesouraria da PT é canalizado para a esfera do GES: 3118 milhões de euros (50, 9% do total). Destes, 250 milhões foram para comprar títulos de dívida na ESI (onde já está nesta altura o buraco que vai rebentar com o grupo). O presidente da PT, Zeinal Bava, contraria assim pela primeira vez a prática das aplicações em depósitos do banco. 2011Em Portugal as más notícias sucedem-se. Os juros da dívida pública escalam os 7%. A banca está sem recursos para melhorar os capitais próprios e cumprir o rácio de solidez de 9% até final de 2011, que no BES rondava 8, 1 % e tornava urgente novo apelo aos accionistas (GES). A família está curta de capital e a venda da Escom avaliada pelo GES em 500 milhões de euros passa a ser uma prioridade. Salgado comunica a decisão a Hélder Bataglia (presidente e accionista minoritário da Escom), que abre conversações com o Estado angolano. Mas, “como gosta de ter o controlo da informação e de perceber tudo, afastou o Hélder das conversações, apesar de ser ele quem dominava o tema de Angola e com boas relações com o Governo”, explicou uma fonte ligada ao dossier. “A parte angolana [o Estado] nunca foi a Sonangol. O Estado tinha decidido comprar, mas não nomeou o comprador. E Salgado esteve sempre à espera que fosse indicado um nome. ” Só que o banqueiro já não pode esperar. Como as dívidas da Escom ao BES já se cifram em mais de 500 milhões, a venda é crucial, pois permite-lhe ir ao BdP dizer que o vínculo à Escom se eliminou. O que terá um efeito: reduzirá as necessidades de capital do BES. Janeiro. Então, perante o impasse, Salgado vai ter com Álvaro Sobrinho, do BESA, a quem pede ajuda para formalizar o acordo. E anuncia publicamente que a Escom deixou de ter uma relação accionista com o GES, ainda que continue a ser apoiada pelo banco. Não revela nem montantes nem o nome do comprador. Para dar credibilidade, o BES deixa “escapar” que o adquirente é a Sonangol. O contrato de promessa compra e venda é assinado, no escritório de Lisboa da advogada Ana Bruno (sócia da Akoya), que representa a Newbrook, detida por Sobrinho. Na sala estão Salgado, Bataglia e Manuel Vicente, o actual vice-presidente de Angola, que estava à frente da Sonangol, que não se associa a nenhuma entidade. Semanas depois, saem de uma conta da Newbrook, no BESA (de que Álvaro Sobrinho era presidente e Bataglia administrador), cerca de 85 milhões de euros para sinalizar o negócio da Escom. A partir daqui não foi realizado mais nenhum pagamento. O negócio entrou em agonia e a Escom em banho-maria. E vai criar confusão. Fevereiro. Não é só com Salgado que Sobrinho se dava. Com o presidente do BESI, cruzava-se no clube de Alvalade. Ricciardi, que leva a sério a paixão pelo Sporting, é uma figura central com influência nos conclaves leoninos. Após nova derrota frente ao Paços de Ferreira, o então presidente do Sporting, José Eduardo Bettencourt, recrutado no núcleo de Ricciardi, demite-se. O vazio vai levar alguns sportinguistas (Ricciardi, Dias Ferreira, Paulo Abreu, Filipe Soares Franco, Miguel Ribeiro Teles) a reunir para encontrar substituto. Nos clubes de futebol predominam grupos de poder que determinam, muitas vezes, quem vai ser o presidente. Têm força e dinheiro. E quando Godinho Lopes, o engenheiro e dirigente responsável pelas construções do novo estádio e da academia, foi ao BESI dizer que queria ser presidente, Ricciardi acha-o válido para o cargo. 22 de Fevereiro. Ricciardi declara na imprensa desportiva o apoio ao candidato e valoriza o seu perfil e credibilidade junto das instituições financeiras. “Acredito que leve o Sporting a bom porto. […]. É importante que o clube não cometa mais erros, porque já ‘esticou a corda’. ” E lança directas a Bettencourt (que o destino pôs agora no Novo Banco, como chefe de gabinete de Stock da Cunha), “pelo mau uso do dinheiro ao seu dispor”. 29 de Março. A entrada da troika está por dias. Em Londres, a propósito de uma operação financeira do BESI, Ricardo Salgado e José Maria Ricciardi participam num almoço com jornalistas onde o presidente do BES presta declarações sobre a situação económica do país, à beira do resgate. Mas é interrompido quando os jornalistas se voltam para Ricciardi e lhe pedem um comentário sobre a vitória de Godinho Lopes, o que remete Salgado para um silêncio incómodo. Quanto mais procurava travar o tsunami de perguntas a Ricciardi, mais este se debruçava com entusiasmo sobre a equipa de Alvalade. Um discurso acompanhado de toques na mesa: “[o Sporting] Tem de ser grande e bater-se de igual com os outros dois grandes rivais. ”Assim que Salgado consegue interromper o tema sportinguista, lança avisos aos políticos a sugerir que avaliem as consequências “que certas decisões têm nos mercados”, pois “ninguém sabe ao certo onde poderemos chegar. Mas, poderemos ganhar tempo até às eleições. E talvez seja possível evitar a intervenção do FMI”. A 6 de Abril, Portugal ajoelha-se e pede ajuda externa. Nesta fase, Ricciardi começou a olhar para o primo direito como um chefe centralizador que resiste a largar o poder. Ou encontra uma maneira de co-existirem, ou segue o seu caminho. Pensa para si: “Este tipo vai ficar aqui até aos 100. ” Um dia, enche-se de coragem e foi falar com ele: “Quero fazer um grupo internacional a partir do BESI, tipo Rothschild de raiz portuguesa, que trabalhe e desenvolva a actividade nas principais praças financeiras e em muitos mercados emergentes. ” Remata: “Ou me ajudas ou vou à minha vida…” O chefe anuiu: “Sim, estou de acordo. ” Se tem outra opinião, não a terá dado. Esta é apenas a versão de Ricciardi. 31 de Agosto. Ainda mal tinha tomado posse, já o Governo colocara à venda 21, 35% da EDP. E contrata, sem concurso público, o que a lei impede, a sociedade norte-americana Perella para prestar a assessoria financeira ao Estado neste negócio. A intenção do ministro das Finanças, Vítor Gaspar, podia ser a de introduzir um independente no circuito, mas a solução gera controvérsia. Depois de convidar a Perella, o Governo percebe que cometera um erro e dá instruções para ser a CGD a assinar o contrato com os norte-americanos, partilhando o trabalho. O que Gaspar não imagina é que o afastamento do BESI e a adjudicação directa à Perella está a colocar Ricciardi em órbita, que dispara com queixas, nomeadamente, junto de quem manda: Miguel Relvas, ex-ministro adjunto, e do próprio primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, como dão conta as escutas feitas na altura ao banqueiro. Passos terá dito: “Bom, vou ver o que se passa. ”Dias depois, Jorge Tomé, da CGD (também escutado), dá os “parabéns” a Ricciardi: o BESI está na operação. Tomé estava afinal equivocado, pois a Perella não aceita partilhar com um terceiro os 16 milhões de comissões que o Estado vai pagar aos assessores financeiros. Quando a ex-secretária de Estado, agora ministra, convoca Ricciardi ao ministério na Praça do Comércio, confirma as suspeitas: o BESI não ia auxiliar o Estado na privatização. “Então porquê?”, pergunta Ricciardi. A secretária de Estado terá explicado: o BES é accionista da EDP e há um conflito de interesses. Tese que o interlocutor rejeita: “Se estivéssemos do lado do comprador, até podia haver, pois quem compra quer comprar o mais barato possível, já o vendedor quer fazer subir o preço. E quanto mais alto o Estado vender, melhor é para o BES. ” O banqueiro continua: “Concorda que nas privatizações há dois grandes momentos, a venda e a avaliação? Como foi o BESI que avaliou a EDP para ser vendida, como é que nesse caso não houve conflito de interesse e há para assessorar o Estado na venda?”Excluído dos 16 milhões, havia que encontrar novo cliente. Ricciardi foi à China sondar investidores. No final de 2011, o BESI surge a apoiar a Three Gorges, mas a luta está renhida pois há nota de telefonemas insistentes de Angela Merkel para Passos. Na corrida está a alemã Eon. Ao contrário dos ocidentais, os chineses, por razões culturais, não estabelecem grandes diálogos, o que deixa os banqueiros inseguros, pois nunca sabem o que pensam. Quem esteve envolvido no dossier conta que a Three Gorges “ouvia-nos e ia-se embora, e evitava sentar à mesma mesa o BESI e o Credit Suisse, ambos a apoiar a empresa”. Como sabia da propensão do Governo para aceitar a oferta da Eon, Ricciardi sugere à Three Gorges um preço no intervalo entre 3, 50 e 3, 75 euros. Por telefone, o presidente do BESI troca impressões com Salgado e Morais Pires, sem desconfiar que do outro lado da linha estão os escutas do procurador Rosário Teixeira. Depois de os ouvirem dizer “é preciso fazer os chineses subir o preço, para ganharmos o negócio”, os investigadores do Ministério Público terão concluído: “Aquela malta está toda feita. ” O que Ricciardi também não sabia é que enquanto fala com Salgado e Morais Pires, os dois compravam acções da EDP para o seu portfólio pessoal. A 22 de Dezembro, a Three Gorges garante o controlo de 22% da empresa portuguesa. A vida de “polícia” é cheia de coincidências. Na sequência da Operação Furacão, iniciada em 2005, o Ministério Público abre um novo dossier, a que designa Monte Branco. No contexto das investigações relacionadas com uma rede de branqueamento de capitais e fraude fiscal, que tem no centro Francisco Canas (Zé das Medalhas), com escritório na Rua do Ouro, Rosário Teixeira esbarra numa engrenagem complexa. A sociedade de Canals, Figueiredo, Bataglia e Sobrinho usa a empresa de Medalhas como biombo para disfarçar outro esquema de transferências de verbas para o exterior. E, assim, no intervalo de alguns meses, a Akoya continua os seus movimentos, mas vigiados. Foi justamente quando decorria a privatização da EDP que o Ministério Público apura que Salgado comprara 2 milhões de acções da EDP por 3, 4 milhões de euros e que o dinheiro tinha chegado via Akoya. Meses depois, em Julho de 2012, a Caixa BI, o BESI e a Parpública (entidade pública de gestão de participações em empresas em processo de privatização) serão alvo de buscas policiais. A Procuradoria-Geral da República, que anda atrás dos fundos desviados pela Akoya, informa que a sua acção derivara da Operação Monte Branco. Começa a abrir-se a caixa de pandora. Enquanto tudo isto se passa em Portugal, a mais de seis mil quilómetros de distância, em Luanda, o BESA montara um mega-carrossel. Ao contrário do resto do sector, cuja principal fonte de financiamento são os depósitos dos clientes, o BESA tinha acesso a uma linha directa do BES, e sem prazo. O que permite grande latitude na acção, nomeadamente ao sector da construção: o BESA empresta verbas ao construtor do imóvel a prazos longos que depois repassa para o comprador do andar, que, por sua vez, o arrenda a preços que possibilitam pagar o serviço da dívida. A questão é que o banco aceita automaticamente a transferência para terceiros sem referências sobre a capacidade de honrar a dívida e sem conhecer o nome do novo devedor. Havia outro método: o BESA financia o construtor, que põe de pé o projecto e antes de o começar a comercializar vende-o, como uma mais-valia, à ESAF, a gestora de fundos de investimento do BES. Sem risco. 16 de Novembro. O poder de Álvaro Sobrinho no BESA é imenso e o banqueiro apenas reporta a Salgado, de quem copiara a “tecnologia”. Só que o pagamento (500 milhões) acordado na venda da Escom à Newbrook não chega ao GES, o que complica as contas de Salgado. E, desconhecendo ainda que Sobrinho é sócio da Akoya (e, portanto, com acesso a informação sensível), pediu ao seu CFO (Morais Pires), com o pelouro internacional, que juntasse peças para se queixarem do presidente do BESA ao BdP. O que teve duas consequências: Sobrinho dá-lhes “um chega para lá” e autonomiza-se das “amarras” de Lisboa, deixando de prestar contas ao BES. Em 2011, o BESA tem lucros de 260 milhões de euros, que salvam o BES de divulgar prejuízos. Ao ler no Expresso, em Novembro de 2011, que o Tribunal Central de Instrução Criminal o chamara para prestar declarações e que saíra com uma caução de meio milhão de euros por suspeita de branqueamento de capitais no valor de 3, 3 milhões de euros, o banqueiro angolano conclui que foi a trupe de Salgado a passar a informação. Hoje, circulam teorias. Quem priva com Sobrinho conta “que ele desenvolveu uma aversão a Salgado, a quem culpa de estar na origem dos problemas com a justiça e, como controlava tudo e todos queria ‘grelhá-lo’ em lume brando”. A zanga vai ser fratricida. Entre os executivos do BES, não havia apenas adeptos do Sporting. Morais Pires era um aficionado do Benfica. Os jantares na sede do banco entre Morais Pires e o presidente do clube da Luz, Luís Filipe Vieira, eram normais. O CFO tinha uma torneira aberta para o universo empresarial do dirigente benfiquista com créditos no BES, em 2012, de largas centenas de milhões de euros (fala-se em 600 milhões). Morais Pires reestruturou a dívida e colocou-a em fundos do BES Vida e da ESAF, o que permitiu a Luís Filipe Vieira deixar de constar na lista dos grandes devedores ao BES. Em 2013, do financiamento global (215 milhões) concedido pelo BES aos três grandes clubes (Porto, Sporting, Benfica), cerca de 114 milhões destinaram-se à SAD benfiquista (com dívidas à banca de 283, 3 milhões). 2012As consequências da crise financeira longa e complexa no GES, que desenvolvia a actividade sustentada em dívida e investimentos especulativos e de risco, tornam-se visíveis a partir deste ano. O programa de ajustamento rigoroso da troika e as novas regras europeias de supervisão mais estritas ajudam a acentuar os problemas. São, portanto, tempos difíceis. E no 15. º andar da Avenida da Liberdade já se vive a correr contra o tempo e o dinheiro sempre a pingar para o BESA. Os aumentos de capital nas holdings accionistas fazem-se a custos cada vez maiores. A convivência entre a família Espírito Santo e os accionistas do GES, recrutados fora do seu círculo, tem o seu ponto alto a meio do ano, quando chegam a Lausanne, sede das holdings do grupo. Nessa altura, há um jantar em que Salgado atrai os mais recentes accionistas para a mesa-redonda a que, habitualmente, preside. Na manhã seguinte, todos vão assistir a uma conferência no Centro de Convenções. O encontro é inaugurado por António Ricciardi, o presidente não executivo, mas Salgado fala pela área financeira e Manuel Fernando Espírito Santo pela não financeira. Ninguém faz perguntas. Em 2012, o ambiente era ainda de aparente normalidade. Uma paz prestes a eclipsar-se. Neste ano, Salgado é considerado pelo Jornal de Negócios o terceiro mais poderoso da economia portuguesa. E tem um gesto de que se vai arrepender. O poder no GES estava, até aí, concentrado nos representantes dos cinco ramos da família com assento na cúpula, onde há interesses divergentes. Mas há uma decisão de abrir o conselho superior do GES à geração seguinte — José Maria Ricciardi, Manuel Fernando Espírito Santo, Pedro Mosqueira do Amaral e Ricardo Espírito Santo Abecassis —, que passa a participar nas reuniões sem direito a voto. Salgado, que não nomeou segunda linha, não sabe até que ponto tem o apoio dos mais novos. A decisão vai revelar-se uma bomba ao retardador. Maio. Michel Canals e Nicolas Figueiredo são duas peças vitais da engrenagem arquitectada para ajudar a transferir verbas para fora do país. E ao serem detidos no Porto, durante um torneio de golfe, ao seu lado tinham os computadores pessoais e documentação. Apesar dos sinais de evidência de que através da Akoya saía dinheiro para o exterior, o que se traduz em menos impostos para o Tesouro, falta o mais importante: a lista global dos movimentos dos clientes. Ao analisar os ficheiros, os investigadores deparam com múltiplas transferências, nomeadamente associadas a Ricardo Salgado, Morais Pires, Bataglia, irmãos Horta e Costa, Pedro Neto e Sobrinho. Havia outros clientes de peso, como Duarte Lima. 17 de Maio. O procurador Rosário Teixeira tem poucos meios, mas investiga quem pode. Ao esbarrar com 12 transferências de 27, 3 milhões — que circularam pela Akoya, passando pelo Credit Suisse e por duas offshores do Panamá, a Savoices (detida por Salgado) e a Allanite (detida por Morais Pires) —, fica com as antenas no ar. Na sequência, chama Morais Pires, ainda CFO do BES, a quem solicita esclarecimentos. Para amenizar os efeitos de uma potencial suspeita de fuga ao fisco, e aproveitando a “amnistia” concedida pelo Estado português a quem estava em situação de incumprimento, Morais Pires vai regularizar a sua situação fiscal. E, entre Agosto e Outubro de 2012, o CFO paga 1, 1 milhões de euros de imposto a mais do que o declarado em Maio, referente ao IRS de 2011. 18 de Dezembro. Este é o dia em que Salgado começa a frequentar outras instâncias menos glamorosas do que a alta finança. Durante a tarde, vai ao DCIAP prestar depoimentos no âmbito da Operação Monte Branco. Para se antecipar, o BES faz sair um comunicado: “Após uma vaga de notícias baseadas em rumores especulativos, informa-se que [Ricardo Salgado] se prontificou voluntariamente a prestar os esclarecimentos. ” Antes de ser chamado pelo procurador Rosário Teixeira, o banqueiro, que tinha também a sua situação fiscal em incumprimento, faz três rectificações à declaração de IRS, o que resulta na liquidação de imposto em mais 4, 3 milhões de euros face à colecta inicial de Maio (apenas 183 mil euros). É a partir daqui que começa a circular a tese de que o presidente do BES cobrou uma comissão de 8, 5 milhões ao cliente José Guilherme por “aconselhamentos na ida do construtor para Angola”. E estava aqui a razão da correcção da declaração de rendimento. O que produz uma nova dúvida a quem investiga: o banqueiro assinou um contrato fictício com José Guilherme para sustentar a tese da comissão?2013O Sol e o i, entretanto adquiridos por Álvaro Sobrinho, vão ajudar a divulgar o que se passa: “Morais Pires está indiciado no caso Monte Branco por ter comprado acções da EDP e da REN durante a privatização”; “Salgado recebera uma comissão de 8, 5 milhões do construtor José Guilherme que o levou a corrigir por três vezes a declaração fiscal. ” Após as notícias, o presidente do BES veio garantir: “Nunca fugi aos impostos. ” Momentos depois, aparece a PGR a esclarecer que Salgado não era suspeito, nem havia indícios à data para lhe imputar prática de ilícito fiscal. Proença de Carvalho, advogado de Salgado, tenta evitar surpresas. E, para se precaver das perguntas do supervisor sobre a comissão paga por um cliente do BES, enviou para o BdP uma interpretação: afinal, os fundos que deram origem à correcção fiscal não derivam de uma comissão, mas de uma liberalidade, ou seja, de um presente oferecido pelo construtor. Tese que o advogado passou a repetir. 4 de Fevereiro. No BdP, o tema esvaziava-se. Dado que Salgado liquida as dívidas ao fisco, deixa de haver potencial crime de evasão fiscal. Um banqueiro a receber comissões de clientes? O PÚBLICO vai revelar neste dia que o supervisor pediu explicações a Salgado e que a questão incomoda quadros da instituição para quem as três correcções fiscais constituíam “uma possível confissão de que sistematicamente omitiu de forma deliberada os juros e as mais-valias apuradas no exterior à espera das amnistias fiscais que acabaram por ser decretadas”. O BdP toma, então, uma iniciativa surpreendente. Para evitar danos na imagem ao banqueiro, o supervisor emite um comunicado, contrariando a prática de sigilo, onde esclarece que, após ter “aberto procedimentos, recolhendo e recebendo informações”, considera não existir fundamento “para a abertura de processos de reavaliação de idoneidade” de Salgado. A nota chega à comunicação social duas horas antes de Salgado divulgar as contas de 2012 e evita ter de responder a perguntas hostis. A decisão de manter ou não Salgado à frente do BES estava nas mãos do governador do Banco de Portugal Carlos Costa, que, já este mês, Outubro de 2014, foi ao Parlamento justificar: “A administração, liderada por Ricardo Salgado, não foi afastada porque a lei não o permitia. O legislador estabeleceu que a suspensão da administração não pode ser tomada livremente pelo BdP. ” O governador tem razão, pois formalmente, o texto jurídico não lhe impõe esse dever. Mas poderia ter dito que um presidente de um banco não pode receber comissões ou presentes de milhões de euros de clientes. Por aquilo que agora se sabe, a partir dali, o BdP vai desdobrar-se a pedir informações a Salgado sobre o tema. E assim que terminou o mandato do conselho de administração do BESI, de que era o presidente não executivo, Carlos Costa não o renovou automaticamente e manteve-o suspenso sem conceder a idoneidade a nenhum dos gestores. Nessa altura, a PT está “capturada” pelos interesses do seu maior accionista: o BES (com 10%). Zeinal Bava (premiado como o melhor CEO europeu do sector das comunicações de 2012) confia agora 79, 9% das disponibilidades da PT ao GES. “Tenho fortes indícios que me levam a pensar que Salgado está a tentar abocanhar o meu grupo e levar a Maude (irmã) para o lado dele, mas vou defender-me”, revela Pedro Queiroz Pereira, presidente da Semapa, a Ricciardi. A Semapa já se tornara a maior exportadora nacional em valor acrescentado, com negócios de dois mil milhões de euros. Queiroz Pereira avisa os primos Espírito Santo seus amigos: “Agora vou analisar ao detalhe a vossa vida financeira, e ela não é famosa. ” Não o levam a sério. Apenas Ricciardi vai ditar para a acta do Conselho Superior do GES que considera inoportuna a luta e defende a saída do GES (que tinha uma posição conhecida) da Semapa. Só que controlar a Semapa, que gera meios de liquidez, é uma questão de vida ou de morte para Salgado, que em 2013 continua a figurar na lista do Jornal de Negócios como o 3. º mais poderoso do país. Em resposta, o industrial toma uma iniciativa que se revelará o gatilho acidental que vai ajudar o desmoronar do castelo de cartas. Monta uma equipa de advogados e de economistas que descobrem parte da situação descontrolada do GES e vai queixar-se ao BdP. Depois, passa com a artilharia pesada por cima das holdings familiares da família Espírito Santo. Quando às questões familiares se somam as empresariais, com falta de dinheiro pelo meio, o momento da sucessão, que é sempre importante por exigir escolhas claras, nem sempre corre bem. Pela primeira vez, Ricciardi vai jogar os trunfos todos. Um dia, foi ao 15. º andar do BES falar com o chefe: “Tu já não tens condições para continuar. ” Recorda que Salgado ficou a olhar para ele e perguntou: porquê? Explica-lhe: “Vou dar-te um exemplo: e se agora um gerente de uma agência meter uns euros ao bolso o que é que tu como presidente vais fazer?” O banqueiro terá rebatido que uma coisa não tinha que ver com outra e que tinha direito a fazer negócios. O mais novo refuta: “Não tens, não. Porque só te dão os negócios por seres o presidente de um banco. Não venhas com a conversa de que o negócio é teu. ”No Verão de 2013, Salgado estava cercado. Tinha cinco dossiers complicados em cima da secretária: várias investigações do Ministério Público; a deterioração das contas das holdings; a ligação descontrolada a Angola; a guerra com PQP; a divisão no topo da família. 29 de Agosto. O DCIAP deixa um aviso à navegação. Como os titulares das cinco contas na Suíça para onde a Escom transferira, em 2004, cinco milhões de euros resultantes do negócio dos submarinos continuam sem aparecer, constituiu arguidos os três administradores da empresa — Bataglia, Horta e Costa e Neto — por indícios de corrupção activa, tráfico de influências e branqueamento de capitais. Para se ilibarem, assinam um comunicado público a revelar que se tratou de uma distribuição no contexto da política de bónus da Escom. O conselho superior (António Ricciardi, Salgado, Pedro Mosqueira do Amaral, Manuel Fernando Espírito Santo, José Manuel Espírito Santo) do GES sente o golpe e assume a titularidade das cinco contas. “ Deu uma guerra porque eles tentaram até ao último momento evitar que o comunicado da Escom saísse, pois ia revelar que o ganho do contrato não foi distribuído pela família e ficou neles”, evocou uma fonte que assistiu a este episódio. 18 de Setembro. Controlar um grupo com a dimensão do GES exige grandes volumes de capital que, no caso, eram financiados com dívida contraída pelas holdings. E aceder aos mercados torna-se cada vez mais difícil. Salgado pede a Morais Pires que encontre solução. E assim acontece. O PÚBLICO noticia, naquele dia, que o BES usava milhares de clientes para ajudar as empresas do GES (que já não conseguiam ir buscar fundos aos mercados) a manterem-se em actividade. Ou seja: através dos balcões, sugeria que investissem (cerca de 3000 milhões de euros) as poupanças em unidades de participação de fundos de tesouraria que tinham nas carteiras títulos de empresas da esfera do GES. Para fazer cumprir a lei, a CMVM dá instruções para que os fundos de tesouraria geridos pelo BES reduzam a sua exposição ao grupo de 85%, para 15% (o limite permitido). Pela primeira vez, torna-se claro que a situação no GES está descontrolada, pois as carteiras dos fundos geridos pelo BES são públicas. Este é o momento-chave que, para muitos analistas, poderia ter levado as autoridades a intervir. Só que os supervisores não atribuíram a gravidade merecida ao tema: a CMVM mandou corrigir o desvio e aplicou uma multa; o BdP ignorou que o BES vendia aos clientes produtos em situação ilegal (fundos com uma exposição ao GES que excedia largamente o autorizado), que envolviam grandes quantidades de recursos de cllientes. Numa segunda fase, para contornar a situação, Morais Pires usou as redes comerciais dos vários bancos do grupo (em Portugal e no exterior), para colocar junto dos clientes dívida de curto prazo emitida por sociedades com os balanços adulterados desde 2008. 30 de Setembro. O BdP decide aprofundar as avaliações financeiras ao GES e inicia uma devassa às contas das holdings financeiras e não financeiras (ESI, ESFG, Rioforte) e acaba por detectar um conjunto de insuficiências e irregularidades. Outubro. Entretanto, em Luanda, decorre uma assembleia geral do BESA, bastante tensa, onde chega a informação de que há 5700 milhões de créditos de cobrança duvidosa e não se sabe a que porta ir bater. O dinheiro escorrera, portanto. Salgado tira o tapete a Sobrinho, que se afasta do BESA, mas não evita que a bomba estoure no BES, que terá de reportar imparidades astronómicas que lhe rebentam o balanço. 23 de Outubro. Salgado viaja pela segunda vez no mesmo mês para Luanda, acompanhado de Morais Pires e de Proença de Carvalho, para pedir apoio ao Presidente José Eduardo dos Santos. O Estado angolano aceita conceder, com data de 31 de Dezembro, um aval pessoal no valor de 4200 milhões de euros ao BESA, equivalente a mais de 70% da sua carteira de crédito de 2013 — se o BESA entrar em incumprimento perante o BES, o Estado angolano paga a dívida. Sem este “auxílio”, o BES entra em colapso imediato. Mas o BdP desconfia. E antes do final do ano avisa “que existem fundadas dúvidas quanto ao preenchimento dos requisitos necessários para considerar a garantia estatal angolana elegível para efeitos de protecção” do BES. O que complica o plano de resolução do dossier BESA. 25 de Outubro. A preocupação dominante de Salgado, que em Luanda também abordou o tema da venda da Escom, é agora evitar a derrocada do GES que contamina o BES. “As informações foram todas positivas. Estamos optimistas [a venda da Escom]. ” O negócio faz-se antes do final do ano? “Estou confiante. ”29 de Outubro. Para prevenir uma grave perturbação no sistema financeiro com consequências na economia, as autoridades portuguesas dão orientações para Salgado chegar a um acordo com P. Q. P. sobre a Semapa. 1 de Novembro. O banqueiro vai enfrentar o pior dos dois mundos: vende a P. Q. P. a posição do GES na Semapa; e vê expostas as fragilidades do grupo, onde os ânimos andam acirrados. Questionado, na época, pelo PÚBLICO sobre o que estava o BdP a fazer para estabilizar o segundo maior banco privado, um alto responsável do supervisor elucidou: “O BdP não está parado. Têm sido enviados sinais, não só pelo BdP, mas também pelo sr. primeiro-ministro para que haja mudanças [no BES]. Mas é preciso ter calma. O BdP não pode nem deve intrometer-se em matérias reservadas a accionistas. Terão de ser eles a decidir o momento em que o presidente deve sair. ” O tema preocupa Carlos Costa, Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque. Mas o gabinete do primeiro-ministro já veio negar “categoricamente que o chefe do Governo tenha dado qualquer tipo de indicação ou orientação, de forma directa, através do Banco de Portugal ou por outra via, sobre a composição da equipa dirigente do Grupo Espírito Santo”. Este é o momento que podia ter dado outro rumo aos acontecimentos. Com excepção de Ricciardi, os primos estão em negação e não percebem que já não têm condições para manter um grupo com aquela dimensão. 3 de Novembro, um domingo. O presidente do BESI pediu a sete dos nove membros do conselho superior do GES para se juntarem informalmente no dia seguinte a meio da tarde. Salgado e José Manuel Espírito Santo, ambos gestores do BES, não são convocados. 15h30. Um colaborador do BES vê Ricciardi sair de São Bento, o que gera burburinho na instituição. De seguida, foi ter com os primos a casa de Mário Mosqueira do Amaral, levando uma carta escrita por si para ser aprovada. Eis o relato do que se terá passado: “Alguém explicou que fontes do Governo tinham feito chegar à família que era altura de Salgado renunciar, por sua iniciativa, à liderança, pois temiam a instabilidade que se estava a gerar à volta do BES, pois os assuntos eram graves. O Ricardo ia fazer 70 anos e devia reformar-se. ” O documento apresentado por Ricciardi além de pedir esclarecimentos sobre as polémicas judiciais à volta do presidente, os movimentos de capitais e as transacções com a Escom, concluía: “Não bastasse isso, os próprios auditores andam a manifestar objecções ao que se passa no BES, nomeadamente à política creditícia, que pode criar problemas. ” Perante isto, exige-se “uma mudança da governação no BES”. O dinheiro não está a rolar como seria pretendido e seis dos sete membros do conselho superior, presentes no encontro dessa segunda-feira, mostram disposição para questionar o chefe. Vêem no documento uma aberta e assinam-no. Manuel Fernando Moniz Galvão Espírito Santo, o presidente da Rioforte, oferece-se, então, para ser o seu guardião. Ora, acertar o timing para o entregar a Salgado é o mais complicado. Só Ricciardi declara: “O mais depressa possível. ”No dia seguinte, ao entrar no avião que o levará a Londres para uma reunião de trabalho, o presidente do BESI está confiante de que será encontrada nova gestão para o BES até ao fim de semana. Infelizmente para ele, entre a casa de Mosqueira do Amaral e a de Manuel Fernando Espírito Santo, o documento extravia-se (aparecerá novamente em Julho de 2014 e foi entregue ao BdP). Não havia cópia assinada. Assim que toma conhecimento das movimentações, Salgado antecipa-se e convoca o conselho superior para daí a dois dias, sabendo que Ricciardi está ainda em Londres. O presidente do BESI tenta que a reunião se faça por videoconferência, mas o chefe alega que tem de ser presencial. 7 de Novembro. Quinta-feira. 12h00. Enquanto Ricciardi voa de regresso a Lisboa, as autoridades policiais entram no departamento financeiro do BES, na Avenida da Liberdade, no quadro das averiguações ao BES Vida. Mas as televisões filmam a sede do BESI, onde não há buscas. A equipa de Ricciardi vê ali o dedo do gabinete de comunicação de Salgado. 19h00. Os cinco ramos da família reúnem-se à porta fechada. Ricardo Salgado vai tirar a Ricciardi o seu momento. O documento a pedir a substituição do chefe não é posto em cima da mesa. Salgado pede um voto de confiança, alegando ser “a única pessoa capaz de salvar o GES”. E dá-se a “pirueta” que Ricciardi não esquecerá: todos os que tinham pedido mudanças na gestão do BES estão agora a dar o apoio incondicional ao banqueiro. Ricciardi declara que não o dará. São 20h00 quando bate com a porta. Antes de irem todos jantar a Cascais a casa de Salgado, ainda ficam a debater outro tema quente: a comissão paga pela Escom aos cinco membros mais velhos do conselho superior, que os mais novos ignoravam ter existido. De acordo com a acta da reunião, revelada no início deste mês pelo i, a conversa foi indecorosa, mas serviu para mostrar que pode ter existido um sexto beneficiário. Fala-se agora nos bastidores numa pessoa de fora da família, ligado ao dossier e da esfera partidária. 8 de Novembro. Sexta-feira. O Jornal de Negócios publica um trabalho com os títulos: “Ricciardi falha destituição de Salgado” e “O golpe de Estado”, uma menção ao documento de Ricciardi. Esta é uma notícia que muitos jornalistas gostariam de ter escrito, pois revela o funcionamento do conselho superior do GES, até então uma caixa negra, e que pela primeira vez (e única) emite um comunicado que vai sustentar a notícia do jornal. Mas Ricciardi vai interpretar o texto como sendo um “ataque público de Salgado” contra si: “Para me esmagar, porque às 20h00, quando eu saí do GES, já os jornais estão fechados. ” Deu-se aqui o ponto de viragem na estratégia do presidente do BESI em relação a Salgado. A partir de agora é a guerrilha. A família não está habituada a digladiar-se em público. Mas é o que vai acontecer daqui em diante, quando Salgado e Ricciardi protagonizarem sonoros enfrentamentos. O que se expressa num corrupio de comunicados, onde o presidente do BESI esclarece que, na reunião de quinta-feira, não deu voto de confiança a Salgado e questiona a sua idoneidade para liderar o BES, “mas abstém-se de revelar as razões”. Durante o fim-de-semana, a família Ricciardi obriga o patriarca, António Ricciardi, a dar o dito por não dito e a vir explicar que só apoiou Salgado por razões institucionais. Nos corredores do poder, não se fala de outra coisa. É a humilhação do banqueiro aristocrata que marca o fim de um ciclo de intocabilidade. 11 de Novembro. Segunda-feira. São cerca de 9h30 quando Ricciardi chega ao BESI e é informado de que deve estar às 12h00 no BES, para participar num conselho de administração. Então, António Ricciardi (pai) dá um passo ao lado e convoca para as 10h30, na Rua de São Bernardo, o conselho superior do GES. Quem passou por lá resume um ambiente ao rubro. Há quem peça a Salgado que não demita Ricciardi. O CEO afirma o óbvio: “Não posso ter um vogal que diz publicamente que não me dá a confiança. ” O primo interrompe-o: “Fi-lo porque tu organizaste o conselho superior e já tinhas preparado o teu ataque público a mim. E eu não levo desaforos para casa. ” O chefe do clã replica: “Admite publicamente que te enganaste quando disseste que não me davas a confiança. ” Ricciardi protesta à patada: “Achas que eu vou fazer uma figura dessas? Está fora de questão. Deves estar a confundir-me com esses… que lidam contigo no dia-a-dia. ” À volta fica tudo branco. Os primos estavam sentados numa mesa rectangular, um levanta-se e pede: “Tem lá calma. É melhor adiarem o conselho de administração do BES, pois é preciso um entendimento. ” António Ricciardi reclama o mesmo. Como Salgado se mantinha firme, Ricciardi participa-lhe: “Então está bem, eu vou contigo e tu vais pôr-me na rua. Mas fica a saber que quando disse que me abstinha de dizer as razões para não te dar o voto de confiança, agora vou ditar para a acta tudo o que sei. E hoje em dia não é pouco. ” Levanta-se um clamor: “Mas tu não podes fazer isso. ” “Não posso? Então vão imolar-me e eu fico calado?” Salgado sugere, então, uma conversa a sós noutra sala. E o que lá se passa só os dois saberão. Mas conta-se que Ricciardi observou: “Se queres um entendimento, dizes que isto não foi um golpe de Estado e que eu tenho todas as condições para te suceder e então revejo a minha posição. ” E ditam os dois um comunicado, onde fazem tréguas. A acção é interpretada como a abertura de um período negocial para substituir o presidente executivo do BES. Aparentemente o diferendo ia deixar a esfera mediática. Só que guardar o machado de guerra não significa que as tropas se tornem “amigas”. 26 de Novembro. Acendem-se as campainhas vermelhas no BdP. A avaliação ao GES, a 30 de Setembro, demonstra uma situação patrimonial que surpreende. O passivo é agora de 5600 milhões de euros, quando cinco meses antes (30 de Junho) era de 3800 milhões de euros e de 3400 milhões em Dezembro de 2012. Três dias depois, o BdP informa, por carta, Ricardo Salgado da discrepância e pede “uma explicação detalhada sobre a evolução ocorrida nas contas da holding (ESI) entre 30/6/2013 e 30/9/2013”. E exige ao banqueiro um plano de saneamento de curto prazo. 3 de Dezembro. O BdP volta a dar instruções, agora à ESFG (que controla directamente o BES), para “promover as necessárias diligências para assegurar o equilíbrio financeiro”. As autoridades, supervisor e Governo, dispõem, nesta altura, de toda a informação (venda de títulos de empresas insolventes aos clientes do banco; relação descontrolada com o BESA) para concluírem que o quadro é grave e forçar Salgado a pedir ajuda ao Estado. O que, segundo os analistas, poderia ter evitado o fim do grupo. Mas pela primeira vez em 22 anos Ricardo Salgado estava a perder o controlo do GES e persiste em evitar recorrer à linha de 12 mil milhões da troika, e o Governo, segundo vários analistas, terá procurado distanciar-se à espera do fim da intervenção externa e das eleições europeias. A ser assim, haveria consonância de interesses. A partir dali, o governador do Banco de Portugal Carlos Costa vai insistir junto de Salgado, pessoalmente e por carta, para que apresente um plano de redução do endividamento e da exposição ao GES. E começa a dar indicações de que terá de preparar a sua saída do BES. Mas Salgado não o ouvia, ou por não querer ou por já não poder, pois o caos financeiro instalara-se no grupo. Quando chega a altura de Salgado informar o conselho superior de que o passivo da ESI, com sede no Luxemburgo, era de quase 6000 milhões de euros, muito acima do valor oficial, Ricciardi, na qualidade de administrador da holding, volta a debitar para a acta: “As únicas contas que conheço são as oficiais (3000 milhões de passivo) e como não executivo estou chocado com o que ouvi e quero uma auditoria rigorosa e um apuramento de responsabilidades. ” Esforça-se, ainda, mas em vão, por convencer os primos a segui-lo: “Não é só culpado quem comete o crime, mas quem o esconde e não actua, porque passa a ser cúmplice. ” Salgado considera que “o dr. Zé Maria [Ricciardi] não estava a ser solidário” e defendeu-se dizendo que “também não sabia, pois as contas estavam dispersas, e houve grande negligência do contabilista”, Machado da Cruz. Uma família pode ser um “local” difícil para se viver. Ricciardi fica isolado. Os primos comentam sobre ele: “É inconcebível, anda sem controlo. ” Queriam-no calado. 31 de Dezembro. O BdP continua a trocar cartas com Ricardo Salgado, a quem avisa que a ESFG está em situação de incumprimento e assume que não é válida a garantia emitida pelo Estado angolano, que protegia o BES de ser contaminado pela dívida da filial, o BESA. Dá instruções a Salgado para apresentar um plano de reestruturação face à reduzida capacidade para absorver choques adversos. A passagem de ano marca o começo do fim do GES. Com accionistas que não perceberam que algo tinha de mudar na governação e resistiram a pedir ajuda ao Estado para salvar o BES. E, como acontece muitas vezes nas vésperas de uma grande crise, perante casos graves, as autoridades hesitam em atacar de frente os problemas. A conjugação de todos estes factores, em 2014, revelar-se-á fatal. 215769A empresa do GES em Angola era um pequeno estado dentro de um Estado, com interesses em vários domínios: petróleo, diamantes, construçãoSalgado raciocinou sempre numa óptica patrimonial, em que se pode endividar, pois em certo momento vai fazer mais-valias significativas e paga as dívidasO BES não é um simples banco. É uma espécie de “caixa de socorro”. Na sua órbita gravitam pequenos grupos familiares que formam uma rede de interajuda. Foi quando decorria a privatização da EDP que o Ministério Público apura que Salgado comprara 2 milhões de acções da EDP por 3, 4 milhões de euros e que o dinheiro tinha chegado via AkoyaSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. As únicas contas que conheço são as oficiais e como não executivo estou chocado com o que ouvi e quero uma auditoria rigorosa e um apuramento de responsa-bilidades
REFERÊNCIAS:
A arte de conversar perdeu-se
Ao desmantelar a dicotomia capitalismo e comunismo clássico, Zizek poderia ter antagonizado Peterson. Em vez disso estabeleceu um campo comum de discussão. Resultado? Os dois foram unânimes em várias críticas ao capitalismo actual, discutindo de forma escorreita. Claro que discordaram, mas de forma cordata. (...)

A arte de conversar perdeu-se
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ao desmantelar a dicotomia capitalismo e comunismo clássico, Zizek poderia ter antagonizado Peterson. Em vez disso estabeleceu um campo comum de discussão. Resultado? Os dois foram unânimes em várias críticas ao capitalismo actual, discutindo de forma escorreita. Claro que discordaram, mas de forma cordata.
TEXTO: É das coisas mais saborosas. Uma conversa ou debate enriquecedores. Abrirmo-nos, estabelecer confiança, falando sobre questões biográficas ou sociais, deixando ir o tempo, comunicando de forma viva mas serena, sabendo ouvir, coincidindo ou divergindo, tentando compreender, num diálogo transformador. Parecem existir cada vez menos momentos desses. A maioria das interacções humanas é dominada pela conversa de elevador, de consultório, de táxi, de festa, de lugares sociais. Os diálogos intensos a dois são oásis cercados pelo oceano anódino, fugaz ou retórico. Conversar é arte. Saber escutar, sabedoria. Infelizmente impera o ruído normalizador. Toda a gente grita por atenção. Ou então, o que vai dar ao mesmo, só se escuta o que já estamos predispostos para ouvir. Não se dialoga verdadeiramente. No espaço público, então, seja nas TVs, redes sociais ou rua, a sensação é que se combate, não se debate, potenciando-se as emoções mais básicas, as actuações estridentes e não as reflexivas. Há semanas houve um exemplo da forma como esse ambiente impera. Em Portugal deu-se pouco por isso, mas em Toronto, no Canadá, com transmissão via internet, encontraram-se dois dos pensadores mais mediáticos do nosso tempo: o psicólogo canadiano Jordan Peterson, que se tornou numa celebridade por proposições contra o “politicamente correcto” — seja lá o que isso for — e o filósofo esloveno Slavoj Zizek, com vasta produção teórica, aplicada na desconstrução do mundo ideológico. O encontro tinha tudo para ser desastroso, anunciado com estrondo como o “debate do século”, à volta de um tema insondável (Felicidade: capitalismo contra marxismo), e com um ambiente de circo a rodeá-lo, com entusiastas a puxarem pelos antagonistas, que representariam dicotomias impermeáveis. Felizmente, às vezes, as surpresas acontecem. Não só o ambiente bélico foi superado, como existiu um diálogo produtivo. Peterson ainda foi esquemático inicialmente, recuando ao passado para colocar capitalismo, democracia e prosperidade de um lado, e do outro marxismo, autoritarismo e estagnação económica. Mas Zizek foi desarmante, colocando-se no presente, mostrando com o exemplo chinês que tudo o que fora dito está hoje baralhado. Há uma nova ordem, onde autoritarismo pode coincidir com capitalismo e quanto menos democrático um estado for mais produtivo pode ser. O modo de produção capitalista não é dissociável de um estado autoritário, pondo em causa ambiente, direitos, garantias e liberdades, e esse é o problema. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ao desmantelar a dicotomia capitalismo e comunismo clássico, Zizek poderia ter antagonizado Peterson. Em vez disso estabeleceu um campo comum de discussão. Resultado? Os dois foram unânimes em várias críticas ao capitalismo actual, discutindo de forma escorreita. Claro que discordaram, mas de forma cordata. Não houve sangue e isso confundiu a imprensa, como se percebeu quando abordaram as causas identitárias (racismo, sexo, género) que dominam os debates públicos. Os dois são críticos, mas de forma diferente. Para Peterson o problema do “politicamente correcto” é que supostamente perverte as hierarquias de competência que ordenam o mundo, enquanto para Zizek é uma questão de foco — existem hierarquias socioeconómicas mais abrangentes que requerem atenção. Peterson ataca pela direita, Zizek pela esquerda. No final sentiu-se desilusão entre a imprensa. Não tinha havido um vencedor claro. Claro que não. Zizek mostrou que existem hoje formas de pensar a realidade que não se enquadram nas posições a preto-e-branco que nos são apresentadas. No final concordaram que é preciso ouvir e falarmos mais uns com os outros. Não nos refugiarmos nas trincheiras das nossas certezas. Estarmos disponíveis para conversar realmente.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos campo racismo sexo género chinês circo
O “homem sem qualidades” que conduziu o mundo até ao fim da Guerra Fria sem disparar um tiro
Era um moderado, privilegiava a “diplomacia pessoal”, não acreditava em ideologias e defendia a necessidade de ouvir os outros. Morreu aos 94 anos. (...)

O “homem sem qualidades” que conduziu o mundo até ao fim da Guerra Fria sem disparar um tiro
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento -0.6
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Era um moderado, privilegiava a “diplomacia pessoal”, não acreditava em ideologias e defendia a necessidade de ouvir os outros. Morreu aos 94 anos.
TEXTO: George H. W. Bush presidiu aos destinos da América durante quatro anos que mudaram o mundo para além de todas as previsões. Coube-lhe criar as condições que permitiram o fim da Guerra Fria e o impensável desaparecimento da União Soviética. Sem ter de disparar um tiro. Era um moderado, privilegiava a “diplomacia pessoal”, não acreditava em ideologias e defendia a necessidade de ouvir os outros. Anunciou uma “nova ordem mundial” na qual as leis internacionais eram para cumprir. “Foi uma ponte entre uma das maiores linhas de fractura da História”. Os americanos agradeceram-lhe mas recusaram-lhe o segundo mandato. Morreu na sexta-feira aos 94 anos. Subsistiu sempre uma espécie de mistério na carreira política do 41. º Presidente dos Estados Unidos da América. Como foi possível que o homem que levou a bom porto, pacificamente, o fim do comunismo, da Guerra Fria e a implosão do império soviético em apenas um mandato, falhasse a eleição do segundo? Hoje, à luz das memórias e dos ensaios que já foram escritos sobre esses quatro anos verdadeiramente prodigiosos (1989-1993), em que muita coisa poderia ter corrido mal, o mistério encontra várias explicações. Algumas delas são as características pessoais (mais do que políticas) de um homem mediano que passou quase toda a vida activa vendo-se a si próprio como um servidor público, pragmático mais por ausência de ideologia do que por escolha política, instintivamente moderado, capaz de ouvir os outros mesmo que fossem adversários ou inimigos, rodeado de um escol de conselheiros de primeira água. Não tinha carisma, era mau orador, não parecia capaz de um assomo de paixão. Foram, porventura, estas características pessoais que lhe permitiram ser “vice”, durante oito anos, de um dos Presidentes mais ideológicos, carismáticos e desafiadores da história recente da América. Enfrentou Ronald Reagan nas primárias republicanas de 1981, criticando a sua receita económica (chamou-lhe “economia vodu”), a sua visão radical do mundo, a sua maneira de desafiar os inimigos. Serviu-o zelosamente nos seus dois mandatos. Era esse o seu dever de lealdade, facilitado pelo seu desprezo pelas ideologias, a que uma vez chamou de “vision thing” (essa coisa da visão) e porque Reagan acabou por perceber depressa a sua utilidade. Reagan levou a cabo uma revolução conservadora, em parceria com a sua “amiga” Margaret Thatcher, que mudou radicalmente a economia americana e europeia. Foi o chamado crescimento pela via da oferta (a que hoje chamamos de neoliberalismo), facilitando a vida dos detentores do capital e das empresas com uma baixa drástica dos impostos e a destruição da regulação dos mercados, ao mesmo tempo que tentava reduzir os benefícios sociais, argumentando que cada um tinha a obrigação de fazer pela vida. Bush não pensava nada disto. Olhava horrorizado para o aumento exponencial do défice público que, aliás, herdaria com consequências políticas pesadas. Reagan não se importava. Era, porventura, o homem mais bem preparado da equipa presidencial em matéria de política externa. Conheceu, nas suas funções de “vice”, a maioria dos líderes mundiais, a começar por Mikhail Gorbatchov, desenvolvendo com ele uma relação de confiança mútua que se revelou crucial para o seu primeiro e único mandato. Ele próprio relata com humor as circunstâncias dessa relação, no livro de memórias que escreveu com Brent Scowcroft, o seu conselheiro nacional de segurança. Entre 1982 e 1985, teve de ir a Moscovo três vezes para representar Reagan em três funerais de três secretários-gerais do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) que haviam de marcar a história mundial: Leonid Brejnev (Novembro de 1982), Yuri Andropov (Fevereiro de 1984), Konstantin Chernenko (Março de 1985). No último, Gorbatchov já tinha sido escolhido para liderar o PCUS. Diz Bush na nota que enviou a Reagan depois do encontro: “ Gorbatchov, mais do que qualquer dos seus antecessores, fará o necessário para orientar a União Soviética para o modo de consumo ocidental. (…) Tem um sorriso desarmante, um olhar caloroso. ”Encontrou-o depois muitas vezes, quando Reagan o desafiou para negociarem a redução do armamento nuclear estratégico. Já era um amigo que tratava pelo próprio nome quando chegou à Casa Branca para presidir aos destinos da América. Com uma convicção profunda, talvez a única que tinha: o que é mais importante na política externa é a “diplomacia pessoal”, à qual acrescentava a capacidade de “ouvir os outros”. Talvez tenham sido estes dois condimentos que permitiram a este “guerreiro” da Guerra Fria gerir a inesperada revolução que Gorbatchov desencadeou na União Soviética e que abalou o mundo até aos alicerces, abrindo as portas a uma nova era. Ninguém admitia nessa altura – é bom recordar – que o comunismo e a União Soviética pudessem ser derrotados por dentro, sem causar um conflito de dimensões épicas. Não era isso que a História ensinava. Bush não agiu sozinho. O mérito tem de ser distribuído por Helmut Kohl e pelo próprio Gorbatchov, cuja coragem foi a chave dos extraordinários acontecimentos vividos entre 1989 e 1991. O chanceler alemão foi determinante na unificação da Alemanha, o maior problema que se colocava ao mundo livre quando o Muro caiu. Mas Kohl nunca teria conseguido responder à velocidade dos acontecimentos, se Bush não estivesse ao seu lado para tranquilizar Moscovo, mas também Paris e Londres. Foi o primeiro a apoiar os planos de Kohl para a unificação, e Kohl ficou-lhe grato para sempre. A máxima na Casa Branca era “seguir Kohl, apoiá-lo e não fazer declarações que possam envenenar a situação”, escreve Scowcroft. Quando o Muro de Berlim caiu, havia em Washington pontos de vista diferentes sobre a questão alemã. Na Casa Branca, predominava a ideia de que a unificação era imprescindível para pôr fim à Guerra Fria, mesmo que levasse algum tempo. O Departamento de Estado tinha uma posição mais prudente, que levava em conta as preocupações de Paris e Londres. As duas potências europeias temiam o ressurgimento de uma Grande Alemanha no centro do continente. Conta Bush que, num encontro com Margaret, como ele dizia, ela tinha subitamente retirado da sua eterna mala de mão um mapa com as fronteiras da Alemanha em 1937. Era difícil prever o futuro. Mas o fim da ordem de Ialta não dispensava a liderança americana. Foi esse o papel que Bush soube desempenhar com bastante mestria: garantir a segurança dos aliados europeus e, ao mesmo tempo, fazer as coisas de tal forma que ajudassem o líder soviético a enfrentar internamente a velha guarda do Partido Comunista e os militares. A sua moderação foi criticada por muitos, que preferiam o estilo de Reagan em Berlim: “Senhor Gorbatchov deite este muro abaixo”. Era exactamente o que Gorbatchov tencionava fazer. Quando Bush chegou ao poder, em Janeiro de 1989, o fim do domínio soviético sobre a Europa Central e de Leste já estava em marcha. O espírito do Presidente era ainda o de alguém que participara directamente na Guerra Fria nos mais diversos postos. Nixon nomeou-o embaixador na ONU; Ford enviou-o para Pequim e nomeou-o, mais tarde, director da CIA. Como nota Stephen Knott, do Miller Center, Bush ganhou as eleições de 1988 ainda com a fórmula status quo plus. Não teve de esperar muito para ver os polacos, checoslovacos, húngaros, romenos e alemães de Leste encherem as praças de Varsóvia, Praga, Budapeste, Bucareste e Berlim a reivindicar liberdade. A explicação estava na nova “doutrina Sinatra” do líder soviético: cada um é livre de seguir o seu caminho sem medo de ver os tanques russos entrarem pela porta dentro. Bush chegou a duvidar, no que não foi excepção. Temia um banho de sangue a qualquer altura, a que dificilmente os EUA conseguiriam responder. Tinha gravadas na mente as vezes em que Moscovo esmagou as revoltas contra os seus lacaios europeus. Na Alemanha, em 1953, na Hungria, em 1956, na Checoslováquia, em 1968 e na Polónia, em 1981. Não acreditava em milagres. Mas conhecia Gorbatchov e confiava nele. Em casa, democratas e republicanos criticavam-no porque não anunciava ao mundo com a devida fanfarra a vitória da liberdade sobre o totalitarismo, da América sobre a URSS, a libertação dos países de Leste. Não era bem assim. Em 1990, visitou Lech Walesa em Gdansk, nos estaleiros navais onde tudo começou. Era preciso perceber as circunstâncias. Diz o próprio Bush sobre essas críticas: “Os democratas queriam que eu fosse a Berlim e dançasse em frente ao Muro – puro disparate”. E não havia apenas a libertação da Europa de Leste. Bem mais perigosa parecia ser a vontade de independência que alastrava em quase todas as repúblicas soviéticas que foram integradas pela Rússia depois das duas guerras. Visitou Kiev, advertindo os líderes independentistas para os riscos do “nacionalismo suicidário”. Os críticos qualificaram o seu discurso de “Chicken Kiev”, qualquer coisa como “galinha à moda de Kiev”, acusando-o de falta de coragem política. “O único caminho para a independência dos Bálticos era o consentimento do Kremlin”, escreve Scowcroft sobre as decisões cruciais que Bush teve de tomar. “A nossa tarefa era levar Gorbatchov até aí. ” Nas suas memórias, Bush faz uma pergunta com sentido: “Se Moscovo resolvesse esmagar as independências, como é que nós responderíamos?”As tropas das quatro potências vencedoras da II Guerra ainda estavam presentes em Berlim. A fórmula negocial encontrada para a reunificação foi a de “dois mais quatro” – as duas Alemanhas e as quatro potências ocupantes. Começaram em Fevereiro de 1990 e ficaram concluídas em Setembro desse mesmo ano. Entre uma data e outra, Bush percebeu que a unificação era inadiável. Kohl tinha-lhe explicado porquê: milhares de alemães de Leste iam diariamente para a RFA e os que ficavam, se alguém os tentasse travar, podiam facilmente recorrer à violência. O ponto mais difícil foi, naturalmente, a permanência da Alemanha unificada na NATO. Nesse capítulo, Bush foi intransigente. Temia que Kohl se deixasse tentar pela neutralidade, se fosse essa a condição para reunir de novo os alemães. Gorbatchov defendia também a velha ideia da neutralidade. Mais uma vez, o impossível aconteceu. Conta Scowcroft que, quando finalmente Gorbatchov aceitou a permanência da Alemanha na NATO, viu dois dos seus conselheiros militares discordarem dele em voz alta e à frente da delegação americana. “Eu não podia acreditar no que estava a ver, quanto mais pensar o que havia de fazer. ”Nas suas reflexões, Bush escreve que o pior que poderia acontecer era “humilhar” ou “enfraquecer” o líder soviético, que iniciara um jogo de altíssimo risco do qual tudo afinal dependia. Devia também ouvir François Mitterrand e Margaret Thatcher. O Presidente francês queria garantias de que a Alemanha permaneceria na NATO, mas também na Comunidade Europeia. Mitterrand e Thatcher queriam ter a certeza de que os EUA continuavam na Europa, para afastar todos os seus receios sobre o renascimento de uma Grande Alemanha no centro do continente. Tinha outro problema, que ele próprio reconhece: um défice federal de tal modo gigantesco que afectava seriamente a sua capacidade de apoio financeiro às forças democráticas dos países que se iam libertando, justamente quando mais precisavam dela. A superpotência era vencedora mas estava sem dinheiro. Kohl encarregar-se-ia dessa parte, gastando triliões de marcos para ajudar Gorbatchov, incluindo na retirada das forças militares que estavam na Alemanha de Leste (380 mil homens) e em outros países do Pacto de Varsóvia, que teriam de regressar à base sem convulsões. Em dois anos, o mundo mudou. Podia ter sido de um maneira trágica. A qualquer momento, um acontecimento banal poderia ter deitado tudo a perder. Os EUA foram fundamentais para que isso não acontecesse. No dia 19 Agosto de 1991, alguns saudosistas do passado e unidades de elite do KGB sequestraram Gorbatchov, de férias na Crimeia, e tentaram um derradeiro golpe em Mosco. Durante três dias, os líderes ocidentais viveram de respiração suspensa. Era um golpe contra a História e, portanto, fracassou. No dia 25 de Dezembro de 1991, Bush viu a bandeira da URSS ser hasteada pela última vez no Kremlin. Estava com a família em Camp David para celebrar o Natal. Gorbatchov preparava-se para anunciar, nessa noite, o fim oficial da URSS. A última pessoa a quem telefonou, duas horas antes, foi a George Bush. “George, querido amigo, é bom ouvir a tua voz. ” “Aprecio o facto de me teres telefonado”, retorquiu o Presidente americano. Gorbatchov: “Queria reafirmar directamente que valorizo grandemente o que nós conseguimos fazer juntos, primeiro como vice-presidente e, depois, como Presidente dos EUA. ” Bush: “Escrevi-te hoje uma carta onde expresso a convicção de que aquilo que fizemos juntos vai ficar na História e será devidamente apreciado. ”George Bush sempre teve uma visão realista da política externa americana, mesmo antes da sua “hora decisiva”. Nunca deu demasiada importância à defesa dos direitos humanos, seguindo esta escola de pensamento, cujo maior cultor foi Henry Kissinger. Teve como principal conselheiro um dos alunos dilectos do mestre, Brent Scowcroft. Talvez isso explique um dos episódios mais lamentáveis que marcaram a sua gestão do fim da Guerra Fria. A 4 de Junho de 1989, o governo de Pequim esmagou pela força militar os manifestantes que tinham ocupado a Praça Tiananmen para exigirem mais liberdade, provocando um banho de sangue intolerável. A maior preocupação de Bush foi manter um bom relacionamento com Pequim. Conhecia bem Deng Xiaoping, o líder chinês que anunciou, em 1979, que era “glorioso enriquecer”. As sanções que decidiu aplicar à China não estavam à altura da tragédia. Quem era este homem prudente e sem rasgo, que desapareceu ontem aos 94 anos. Que acontecimentos marcaram a sua personalidade?George Herbert Walker Bush nasceu a 12 de Junho de 1924, no Massachusetts, numa família rica da Costa Leste. O seu pai, Prescott Bush, tinha um banco de investimento e era senador. A mãe vinha das velhas famílias tradicionais. Bush fazia parte de uma elite cujo destino era fácil. Os melhores colégios, a Ivy League (Yale), uma educação de responsabilidade e de humildade em relação aos outros, que a mãe lhe transmitira desde criança. Era o segundo de seis irmãos e também o mais prometedor. Aluno mediano, mas com alguma actividade nos selectos clubes de discussão que se organizavam em Yale ou em Harvard. Cumpridor do que se esperava dele, houve um momento que lhe ficou, porventura, para a vida. Tinha 17 anos quando a aviação japonesa destruiu a esquadra americana do Pacífico, estacionada em Pearl Harbour. No dia em que completou 18 anos, alistou-se na Marinha, da qual foi o mais jovem piloto de combate. Formou-se na Phillips Academy, em 1943. No ano seguinte, o seu esquadrão foi integrado no porta-aviões San Jacinto. Foi promovido a tenente em Agosto de 1944, quando o navio de guerra iniciou as operações contra as bases japonesas no Pacífico. Numa das muitas missões, o seu avião foi atingido por artilharia antiaérea antes de atingir o alvo, o motor incendiou, ele cumpriu a missão antes de se ejectar do aparelho. Os outros dois membros da tripulação desapareceram. Ele teve sorte. Foi recolhido por um submarino americano. Pertencia à última geração dos que combateram na II Guerra. Nunca conseguiu compreender como foi possível que um obscuro governador do Arkansas, que tinha “fugido” à tropa durante a Guerra do Vietname, o tivesse vencido em 1992. Depois de Yale, rumou ao Texas para fazer fortuna com o petróleo. Mudou para lá com a família em 1948. Aos 40 anos, tornou-se milionário. Tentou o Senado em 1964 e perdeu. Escreveu a um amigo: “Quando a palavra moderação passa a ter uma conotação negativa, temos alguma introspecção a fazer. ”Em 1966 é finalmente eleito para a Câmara dos Representantes, cumprindo dois mandatos (1967-71). Votou a favor do Civil Rights Act de 1968 (Lyndon Johnson), sabendo que os seus eleitores do Texas não eram propriamente entusiastas. Casou-se com a sua companheira de sempre, Barbara Pierce, em 1945. Tiveram seis filhos. Criaram uma dinastia. Foi um dos dois únicos presidentes americanos que viu um filho entrar na Casa Branca. Viveu até ao fim da vida nos arredores de Houston. Apesar do orgulho próprio de um pai, discordou profundamente de muitas das decisões de George W. , incluindo a segunda guerra do Golfo para derrubar Saddam. Deu vários sinais de desagrado, mas deixou para os antigos membros da sua administração a missão de “desancar” o “wilsonismo com botas” (a doutrina, sem botas, de Woodrow Wilson depois da Grande Guerra, assente numa visão idealista de autodeterminação e de cooperação entre os povos), defendido pelos principais conselheiros do filho. Na biografia de Jon Meacham, Destiny and Power (2015), acusou Dick Cheney, que foi seu secretário da Defesa, de ser “outra pessoa”, arrogante e radical, mas reservou a pior parte para Donald Rumsfeld, o chefe do Pentágono do filho. “Nunca fomos próximos. Serviu mal o Presidente. ”Não resistiu a deixar correr a ideia de que votaria em Hillary Clinton e nunca em Donald Trump. Percebe-se. Quando, em 1988, o seu director de campanha, Lee Atwater, andava à procura de nomes para o cargo de vice-presidente, apresentou-lhe o de um rico empresário da construção de Nova Iorque, que dera alguns sinais de disponibilidade. Chamava-se Donald Trump. Bush, que registou o episódio no seu eterno bloco de notas (às vezes era um gravador), classificou a sugestão de disparate. Nunca se interessou particularmente por grandes discussões ideológicas. Alguns dos que conviveram com ele dizem que não era “uma pessoa profunda” em matéria de ideias. Por vezes surgiam dúvidas sobre o que realmente pensava. Quando, em 1988, um míssil de cruzeiro disparado do USS Vincennes atingiu acidentalmente um avião civil iraniano, matando 290 passageiros, reagiu de forma, no mínimo, muito estranha: “Nunca pedirei desculpa em nome dos Estados Unidos da América. Nunca. Não quero saber quais são os factos. ” Quando se estreou, em Janeiro de 1989, ainda tinha a noção de que os EUA podiam agir livremente na América Latina, o seu “quintal”. O Panamá de Noriega tinha-se transformado num narco-Estado, com o ditador a comandar o tráfico de droga para o mercado americano. Noriega perdeu as eleições mas não aceitou os resultados. Bush enviou dois mil marines para resolver o problema. É aqui que entrar o homem que, provavelmente, marcou todas e cada uma das decisões de George Bush perante os gigantescos desafios internacionais que teve de enfrentar. Já o referimos. Chama-se Brent Scowcroft. Já sabemos que foi discípulo de Henry Kissinger, expoente máximo da realpolitik. Mas “realista” não queria dizer “fraco” – uma imagem que sempre ficou colada ao Presidente. A sua posição sobre o segundo grande momento do mandato de Bush foi decisiva. No primeiro dia de Agosto de 1990, Saddam Hussein resolveu invadir o Koweit. Terá cometido o erro de pensar que o mundo bipolar ainda não tinha acabado. A primeira reacção de Bush, que chegou a transmitir aos jornalistas, foi que não considerava o recurso à força. Colin Powell, então o chefe das Forças Armadas, também não era um entusiasta. “Ainda se se tratasse da Arábia Saudita…”. Scowcroft pensava o contrário. Olhava para Bagdad como a primeira tentativa de pôr em causa a nova ordem que os EUA anunciavam ao mundo. Também ele estava preocupado com a Arábia Saudita, mas tirava a conclusão contrária. “Esta agressão pura e dura não podia ser permitida como parte desta nova ordem. ” Seria um perigoso precedente. Thatcher, que tinha uma boa relação com Bush desde Reagan, disse-lhe: “Don’t go all wobbly on us, George” (qualquer coisa como: “Não te ponhas agora com hesitações, George!”). O Presidente acabou por aceitar a visão do seu principal conselheiro. Quis que a sua decisão seguisse as vias normais do sistema multilateral, centrado nas Nações Unidas, libertas do colete-de-forças do mundo bipolar. James Baker contactou, um a um, todos os países que tinham assento no Conselho de Segurança, os permanentes e os outros. Bush fez tudo para sossegar Moscovo, que apenas queria uma negociação diplomática. Conseguiu reunir à sua volta uma coligação de 32 países, entre os quais os aliados europeus e muitos Estados árabes. Convenceu Israel a ficar de fora da guerra, condição necessária para manter a coligação. Seguiu a “doutrina Powell”: se é para intervir, então é com a máxima força. Os EUA iniciaram em Setembro o transporte de uma força militar verdadeiramente avassaladora para a região: cerca de 400 mil homens, aos quais se juntaram mais 100 mil dos países da coligação. O Conselho de Segurança adoptou uma resolução que dava a Bagdad uma data limite para retirar do Koweit: 15 de Janeiro. A partir daí, haveria luz verde para utilizar “todos os meios necessários”. No dia 16, Bush anunciou o início da guerra. Os primeiros bombardeamentos a alvos militares iraquianos começaram nessa mesma noite. Foi uma guerra rápida, que nem chegou a durar três meses. Cumprindo o que prometera, Bush recusou-se a avançar sobre Bagdad para derrubar o regime. A operação era para libertar o Koweit e mostrar ao mundo que as leis internacionais tinham de ser respeitadas. Foi bastante criticado nos EUA. O seu filho viria a “corrigir” a sua decisão da pior forma. Quando os primeiros soldados regressaram a casa, foram recebidos em Washington por uma imensa multidão. Ao contrário do Vietname, que dividira profundamente a sociedade americana, a guerra do Golfo era a guerra justa, que todos podiam aplaudir. Tinha quebrado o complexo da derrota de Saigão. A popularidade de Bush atingia valores inacreditáveis de 80 por cento. Nunca elaborou uma nova doutrina para uma nova ordem internacional, porque o seu cérebro fora formatado pela Guerra Fria e era-lhe difícil pensar noutros moldes. Deixou a desintegração violenta da Jugoslávia para os europeus. Mas quando os “senhores da guerra” tomaram conta da Somália, deixando milhões de pessoas literalmente a morrer de fome, enviou uma força militar cujo objectivo era apenas humanitário. Marines com sacos de arroz às costas. Num país a ferro e fogo. A operação acabou mal, quando 18 soldados americanos foram capturados no centro de Mogadishu, amarrados e arrastados pelas ruas da cidade para o mundo ver. Uma imagem insuportável aos olhos dos americanos. A primeira coisa que Bill Clinton fez foi retirar a missão. No seu discurso inaugural, em Janeiro de 1989, falou das “pragas dos sem-abrigo, do crime e das drogas”. Defendeu o voluntariado e o envolvimento das comunidades, que seriam, lembra Stephen Knott, “os mil pontos de luz das organizações comunitárias espalhadas, como estrelas, por toda a nação fazendo o bem”. Prometeu controlar o défice. Foi por causa dele que defendeu uma “agenda limitada”. Do seu mandato ficaram duas leis importantes que também ajudam a explicar o antagonismo do seu próprio partido. “Americans with disabilities Act”, 1990, garantindo mais apoio e mais direitos. Os Republicanos acusaram-no de aumentar as despesas sociais do Estado em vez de diminui-las. Ele respondeu que, se as pessoas com deficiência pudessem trabalhar, isso compensaria largamente o dinheiro gasto. A outra foi o “Clean Air Act”, também de 1990, para reduzir a poluição urbana, as chuvas ácidas e eliminar as emissões de químicos tóxicos pelas empresas. Voltamos ao princípio. Bush convenceu-se que ninguém o poderia derrotar nas eleições de Novembro de 1992 para o segundo mandato. Ganhou as primárias a um rival da direita mais conservadora, Pat Buchanan, que deu voz às críticas da ala radical dos Republicanos, acusando-o de ser demasiado condescendente com os apoios sociais, ao mesmo tempo que aumentava os impostos aos ricos. “Read my lips: no new taxes”, dissera o Presidente na campanha para as eleições de 1988. A dimensão do défice e a negociação com os Democratas (maioritários) para aprovar o Orçamento obrigaram-no a quebrar a promessa. A campanha foi um fracasso total. Não conseguiu encontrar uma mensagem que se tornasse dominante. Bush manteve-se distante. Merecia ganhar e, portanto, ganharia. Ross Perot, um milionário populista (mais moderado que Trump, mas na mesma linha), resolveu candidatar-se, desistiu e voltou a regressar, minando a base eleitoral republicana. As qualidades de Clinton fizeram o resto. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Era um comunicador nato, que chegava a toda a gente com a maior das naturalidades. Mas, mais do que tudo isso, percebeu qual devia ser a mensagem com uma frase que ainda hoje é citada: “It’s the economy, stupid!”. Era mesmo. Depois da vitória na Guerra Fria e na Guerra do Golfo, os americanos olhavam agora para si próprios, queixando-se de uma prolongada recessão que fazia aumentar o desemprego e baixar os salários reais. Clinton ofereceu-lhes a mensagem que ia ao encontro das suas aspirações. Era da geração dos baby boomers, que tinham contestado a guerra do Vietname e olhavam para o mundo de forma mais optimista. Bush não tinha um particular interesse pela política interna e a política externa, naquilo que lhe dizia respeito, estava resolvida. Não gostava de visões e de estratégias. Precisava delas para oferecer aos americanos aquilo que esperavam, depois do anúncio da Paz Americana. Perdeu. Saiu amargurado da Casa Branca, atribuindo a sua derrota aos media, que só queriam falar de Clinton. Em 2015, regressou à ribalta, merecendo o reconhecimento tardio daquilo que conseguiu fazer. Obama agraciou-o com a medalha presidencial da Liberdade, que ainda ninguém lhe tinha atribuído. O anterior Presidente apreciava a moderação com que geriu o fim da Guerra Fria, a sua capacidade para estender a mão aos outros, a sua ideia de que as alianças e o multilateralismo eram úteis ao poder americano. Obama foi um idealista realista. Faltou a Bush uma dose, mesmo que pequena, de idealismo. Mesmo assim fica na História. “Foi uma ponte entre uma das maiores linhas de fractura da História”, resume David Rothkopf, na Foreign Policy.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
A restituição
Os pedidos de restituição de obras de arte sucedem-se e este ano a questão ganhou uma aceleração considerável. (...)

A restituição
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DATA: 2019-03-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os pedidos de restituição de obras de arte sucedem-se e este ano a questão ganhou uma aceleração considerável.
TEXTO: Em Portugal, o debate sobre um museu das descobertas continua com os historiadores e jornalistas nacionalistas recorrendo a uma argumentação incipiente. Mas os portugueses, como todos os europeus, irão ser confrontados com um problema global e complexo para o qual ainda só existem metodologias em estádio experimental e cujas consequências são impossíveis de prever à escala global. Trata-se da restituição das obras de arte e de culto, de arquivos, de colecções de botânica e de zoologia que durante o período colonial foram sendo trazidas para a Europa, pelas potências colonizadoras. O processo não é novo, estas reclamações têm já uma história, mas adensou-se nas últimas décadas, nomeadamente a partir da convenção da UNESCO de 1970 que obriga à restituição dos objectos que foram trazidos ilegalmente das ex-colónias. Um dos primeiros exemplos foi a devolução pela Itália à Etiópia, em 2005, do Obelisco de Axoum que tinha sido levado por Mussolini em 1937. Vendo o início concreto deste problema, em 2002, os museus de Berlim e 18 dos museus da Europa e dos Estados Unidos assinaram a “Declaration on the Importance and Value of Universal Museums”, que afirmava os seus direitos de propriedade. Em 2010, no Cairo, realizou-se uma outra reunião em que compareceram países do sul da Europa, da América Latina, da Ásia e de África em que se colocava a questão da restituição e da própria convenção da UNESCO que permitia uma leitura de efeitos não retroactivos a 1970. No último ano, quer do lado das ex-colónias, quer do lado de alguns governos europeus, os sinais são claros: os pedidos de restituição sucedem-se e este ano a questão ganhou uma aceleração considerável. Em França, Macron reconhece o uso de tortura pelas tropas francesas na Guerra da Argélia no âmbito do caso Audin, permitindo a abertura dos arquivos, e aborda com frontalidade a questão da restituição de obras de arte aos países de origem, nomeadamente a devolução de três estátuas trazidas de Daomé em 1892 e que são reclamadas pelas autoridades do Benim que estimam existirem entre 4500 e 6000 obras suas em França. Na Alemanha, o padrão de Diogo Cão que assinala a passagem do navegador pela costa da actual Namíbia, e por esta reclamado, está a ser objecto de uma discussão; na Holanda, as reuniões com parceiros indonésios chegam a conclusões interessantes. Trata-se de indícios de uma Europa a descolonizar-se das suas ex-colónias, a libertar-se das imagens do ex-colonizador e do ex-colonizado a olhar para os fantasmas dos seus objectos museológicos. São sinais de uma Europa que, ao rever as suas narrativas nacionais, equaciona outro futuro, no qual considera que estarão implicados o lado das histórias e das memórias dos ex-colonizados. Da parte destes últimos, a reclamação pela restituição de obras começou há várias décadas. É uma demanda imparável no que diz respeito ao património cultural e humano destes países e que se encontra na Europa e nos Estados Unidos em museus, arquivos e universidades. Trata-se de um problema legal, cultural e político. Estão em causa obras que foram trazidas de forma ilegal ou com recurso à violência (as mais difíceis de identificar e localizar) e obras que – a maioria delas pertencentes aos museus de etnologia, de ciência, de antropologia e a coleccionadores de arte – são consideradas pelos seus ex-proprietários como de importância simbólica, identitária e cultural inalienáveis. A este património deve acrescentar-se os crânios e os esqueletos de pessoas que, por razões diversas, estão sem sepultura sendo parte de acervos científicos, o que inclui os restos mortais, como os de Saartjie Baartman, devolvidos pelo Museu do Homem de Paris à África do Sul e que constitui uma das primeiras iniciativas diplomáticas de Nelson Mandela em Paris. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No que diz respeito ao processo de restituição desenham-se três posições: uma negacionista, escudada na legislação e no direito de muitos países sobre os bens do Estado que são inalienáveis; outra protagonizada pelas autoridades que reclamam a propriedade das obras apontando a falta de equipamentos onde este património possa ser acolhido; finalmente, a posição mais pragmática e resultante de negociações produtivas e que provém do governo holandês e dos responsáveis dos seus museus: listadas e identificadas as obras trazidas da Indonésia, o governo acedeu a restituir a) objectos trazidos indevidamente, b) objectos de importância cultural simbólica. A lista holandesa identificava 15. 000 objectos, dos quais a Indonésia requereu 10%. A oposição a este processo de restituição vem maioritariamente de grupos nacionalistas, que fantasiam ver as salas dos museus europeus vazias, exercício este que seria proveitoso para avaliarem o luto que foi ver clãs, nações, comunidades religiosas despojadas dos seus bens durante séculos. A este processo deve ainda acrescentar-se outro dilema que é o de saber a quem pertencerão os documentos originais dos arquivos que começam a ser digitalizados. A quem caberá ficar com o original, quem ficará com a cópia?A questão da restituição das obras é indissociável de outra questão mais vasta e já sinalizada que é a questão da reparação muitas das vezes associada à ideia de uma compensação monetária aos Estados colonizados. A resposta de muitos opositores à reparação é que esta tem sido feita através da ajuda ao desenvolvimento, facto que levou à autocrítica do Banco Mundial. Neste momento, Angela Merkel, que assumiu que a Alemanha praticou um genocídio na Namíbia nos anos de 1904 e 1905 contra os Herero e os Nama, confronta-se com um debate aguerrido sobre o rumo a dar ao Palácio de Berlim, que nasceu como projecto para albergar os artefactos coloniais e que agora se confronta com a ausência de um programa não assente apenas em narrativas de contornos etnográficos nem de “artefactos do mundo”. Em França, na Bélgica, Holanda, Alemanha, no Vaticano, o debate instalou-se. É neste clima político e cultural complexo que se vai inaugurar em Dezembro, e depois de vários anos de discussão e de trabalhos de renovação, o African Museum em Tervuren, o antigo Royal Museum of Central Africa, um projecto de Leopoldo II que contém a maior colecção de artefactos da África Central. A mudança de nome reflecte um programa museológico, cultural e político de mudança, de identidade e de missão. O espírito do tempo obriga-o a que deixe de ser um museu de etnografia, onde a narrativa era a de expor a produção dos subalternos e, ao fazê-lo, questiona a própria disciplina. O desafio é que passe a ser tanto um museu que conta a sua história de museu colonial europeu, como um museu que recolhe a produção da diáspora belga, que contextualiza os objectos a partir dos contributos teóricos e práticos do pós-colonialismo, que recolhe as expressões artísticas dos africanos do continente e de africanos europeus e que, em última defesa, se assume como um instrumento de educação e de conhecimento crítico. O que acontecer a este museu e a forma como se posicionar no contexto da museografia europeia, como instrumento de políticas culturais, como lugar de luto mas também de futuro, poderá vir a determiná-lo como paradigma de organização dos acervos nos museus europeus e, como aos africanos, indonésios, chineses, etc. e, por reflexo, aos americanos dependentes da circulação internacional das obras e dos curadores. Para já promoveu o debate sobre os conteúdos dos programas escolares, e noutros planos impõe decididamente o desenvolvimento da História Global nas universidades, responsabiliza a UNESCO e a OUA e contribui para a assunção plena dos patrimónios dos povos e das nações anteriormente colonizadas.
REFERÊNCIAS:
Vistos Gold: Transparência Internacional denuncia riscos de corrupção e segurança
Organizações não governamentais de combate à corrupção apelam à intervenção de Bruxelas, através da abertura de procedimentos de infracção ou aplicação de sanções aos países que não escrutinem devidamente estes programas. (...)

Vistos Gold: Transparência Internacional denuncia riscos de corrupção e segurança
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: Organizações não governamentais de combate à corrupção apelam à intervenção de Bruxelas, através da abertura de procedimentos de infracção ou aplicação de sanções aos países que não escrutinem devidamente estes programas.
TEXTO: Os riscos de corrupção e de segurança, tanto ao nível nacional como para a União Europeia, causados pelos actuais esquemas de residência ou cidadania em troca de investimento não justificam a manutenção de nenhum dos actuais programas de vistos gold existentes em 15 dos 28 Estados membros. “Estes esquemas deviam simplesmente ser banidos. A União Europeia não devia autorizar a venda de passaportes”, defendeu a eurodeputada socialista, Ana Gomes, na apresentação de um relatório sobre “O mundo pantanoso dos vistos gold” promovido pela Transparência Internacional e a Global Witness, esta quarta-feira em Bruxelas. De acordo com os dados apurados por aquelas organizações não governamentais de combate à corrupção, Portugal está no “top 5” dos países que obtém mais receitas e concede mais autorizações de residência ao abrigo do esquema. Desde 2012, o programa de Autorização de Residência para a Actividade de Investimento (ARI) terá canalizado para o país mais de quatro mil milhões de euros de investimento — cerca de 670 milhões de euros anuais —, sem qualquer verificação ou investigação das autoridades nacionais à proveniência ou origem desses fundos ou à legitimidade da riqueza dos candidatos, critica o relatório. A maior parte do dinheiro foi investida na aquisição de bens imóveis (3, 6 mil milhões de euros), com uma parcela mais modesta de 370 mil euros proveniente da transferência de capital. Essa discrepância leva Ana Gomes a constatar que, apesar de criados para aumentar a receita e promover o investimento privado, “não é verdade que estes programas tragam prosperidade, a não ser à indústria que foi montada em torno da promoção dos vistos gold”. O efeito do programa em Portugal, lamentou, foi a “distorção do mercado imobiliário” e o afastamento das populações residentes nos centros das maiores cidades. No mesmo período de seis anos, cerca de 17 mil pessoas terão beneficiado desta facilidade para obter um visto de residência, seja directamente na qualidade de investidor (6498 indivíduos, segundo os números do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), seja indirectamente pela via da reunificação familiar — um procedimento que levanta dúvidas a estes activistas, que apontam para a possibilidade de haver inúmeros “cavalos de tróia” entre os potenciais investidores estrangeiros que submetem pedidos. Apesar de o Governo português não publicitar o número de candidaturas nem fornecer a identidade dos requerentes, sabe-se que é da China que chegam mais pedidos (3936), seguido do Brasil (581). Sabe-se também que entre os beneficiários de vistos gold portugueses estão cidadãos chineses procurados pelas autoridades; indivíduos de nacionalidade brasileira envolvidos na mega-investigação de corrupção Lava-Jato ou ainda angolanos ligados à exploração de recursos naturais. Noutros países, caso da Hungria ou Chipre, foram concedidos vistos gold a nacionais da Rússia que levaram a cabo operações ilícitas de espionagem, oligarcas ucranianos com bens congelados ou ainda familiares de Bashar al-Assad e membros do seu regime debaixo de sanções internacionais à Síria. Simultaneamente, há países, como por exemplo Malta, cujos programas de vistos gold são geridos por entidades privadas que também representam (e cobram comissão) aos “clientes” do esquema, o que segundo a Transparência Internacional configura uma situação clara de conflito de interesses. Segundo o relatório divulgado, a sociedade Henley & Partners, concessionária do programa até Junho de 2017, obteve mais de 19 milhões de euros de lucros, enquanto a nova responsável pela administração dos vistos gold, a Identity Malta, já recebeu mais de 23 milhões de euros. Sobre as duas empresas recaem ainda suspeitas de participação em operações internacionais de lavagem de dinheiro. “Os problemas não são apenas nacionais, são europeus”, insistiram os oradores da conferência, notando que quem compra um passaporte no Chipre ou obtém residência em Portugal está ao mesmo tempo a assegurar a livre circulação noutros 27 Estados membros da União Europeia. Por isso, o acesso de indivíduos com perfil de alto risco ou a movimentação de fundos de origem criminosa devem ser considerados problemáticos pelos países que não dispõem deste tipo de programas. “É a segurança de toda a UE que está a ser comprometida, e por causa disso consideramos que Bruxelas não só tem competências para intervir, como tem a responsabilidade de o fazer”, afirmou a directora europeia da Global Witness, Rachel Owens, notando que poderiam ser abertos procedimentos de infracção ou aplicadas sanções aos Estados membros que desrespeitem o princípio de cooperação sincera. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Este é um esquema imoral, ao abrigo do qual os Estados membros que não permitem a entrada de migrantes pobres aceitam a importação do crime organizado e da lavagem de dinheiro”, denunciou Ana Gomes, lamentando que as capitais assistam impassíveis à perversão do sistema de Schengen. Mas a eurodeputada também apontou outras questões sensíveis, relacionadas por exemplo com a concorrência desleal (uma “corrida para o fundo” entre os países que promovem esquemas de vistos gold) ou com a salvaguarda da integridade dos processos democráticos, que na sua opinião tornam estes programas insustentáveis. O eurodeputado húngaro da bancada dos Verdes, Benedek Jávor, também não encontra nenhum argumento a favor da manutenção destes programas, nomeadamente do valor do investimento canalizado para território europeu. “Defender estes programas porque eles representam um negócio de 25 mil milhões de euros é um disparate. As drogas são um negócio muito superior e ninguém vem dizer que não se deve agir para combater os traficantes. Não há razão nenhuma para um Estado membro colaborar com indivíduos corruptos”, sustentou. Como Ana Gomes, e os representantes da Transparência Internacional e Global Witness, também Jávor insistiu que a realidade demonstrou que estes programas constituem uma ameaça, não só em termos de corrupção e outras actividades criminosas, como até se tornaram um “risco directo à segurança nacional”, com impacto geopolítico global.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Perguntas e respostas II: o que é preciso saber sobre a bactéria E. coli
Segunda série de perguntas e respostas. Ver a primeira série aqui. (...)

Perguntas e respostas II: o que é preciso saber sobre a bactéria E. coli
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-06-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: Segunda série de perguntas e respostas. Ver a primeira série aqui.
TEXTO: O que se sabe actualmente sobre a bactéria responsável pelo surto?Nos últimos dias, os genes da estirpe da bactéria Escherichia coli responsável pela doença foram descodificados por cientistas alemães e chineses. Os primeiros resultados mostram que a bactéria é inédita e resultou do cruzamento de duas estirpes de E. coli já conhecidas. Não se trata, portanto, de uma mutação espontânea numa estirpe, como se chegou a pensar, mas de uma troca de genes entre duas estirpes afastadas. Uma das estirpes “progenitoras” é a E. coli enterohemorrágica (EHEC) O104:H4 de que já se fala há uns dias. Mas 93 por cento do genoma deste novo híbrido é idêntico ao de uma outra categoria de E. coli, dita entero-agregante (EAEC). Esta segunda “progenitora” já fora detectada na República Centro-Africana e é conhecida por provocar diarreias graves. Ao contrário das EHEC, que infectam animais e humanos, as EAEC só foram detectadas em pessoas. Segundo um especialista citado pela revista New Scientist, as EAEC são mais resistentes do que as outras E. coli, o que poderá explicar a virulência do novo microrganismo. Para que serve conhecer o genoma da bactéria?Primeiro, para desenvolver um teste que permita identificar rapidamente os casos de doença, o que já está em curso. Mais geralmente, para estudar em pormenor a virulência da bactéria — e, eventualmente, descobrir os seus pontos fracos e conseguir prevenir ou tratar a infecção. Já se conhece o “culpado” pelo surto actual?Não. Sabe-se que a infecção surgiu na Alemanha, uma vez que nos 13 países onde já se registaram casos todos os doentes tinham estado na Alemanha nas semanas anteriores. Mas o alimento em causa ainda não foi identificado e há quem diga que talvez nunca o venha a ser. Os especialistas ainda consideram como fonte mais provável do surto os pepinos, tomates e alfaces — legumes cujo consumo crus as autoridades sanitárias alemãs têm desaconselhado naquele país. Quais são as potenciais fontes alternativas de infecção que estão a ser consideradas?As frutas e legumes em geral — e a sua eventual contaminação no campo, pelas águas de rega, esgotos, durante o transporte, o condicionamento, a preparação. Outros alimentos também estão sob suspeita, como a carne e o leite. E segundo o El Mundo, na Alemanha e em Espanha aponta-se o dedo, sem dar pormenores, à água engarrafada. Por que é que os pepinos espanhóis foram ilibados?Os pepinos espanhóis não continham a estirpe de E. coli em causa. Mesmo assim, continham bactérias E. coli, um mau sinal em termos de higiene alimentar seja qual for a estirpe presente, patogénica ou não, uma vez que indicia uma contaminação do alimento com fezes animais ou humanas. Isto poderá, aliás, obrigar a rever as normas de higiene da agricultura biológica, onde o estrume dos animais é utilizado como fertilizante. A bactéria pode ser transmitida entre pessoas?Pode. A incubação da doença demora vários dias. Por isso, uma pessoa pode ter sido infectada, mas não apresentar ainda sintomas graves e não suspeitar que está doente. E se ela preparar alimentos e não tiver o cuidado de lavar muito bem as mãos antes de os manusear, a bactéria pode infectar outras pessoas. Há quem receie que a particular virulência desta estirpe torne mais fácil a transmissão da doença entre pessoas em contacto chegado, mas, por enquanto, não há indícios de que isso esteja a acontecer. A infecção ameaça tornar-se global?Não parece provável. Por um lado, o surto continua circunscrito à região onde surgiu. Por outro, mesmo que a bactéria seja transmissível em certas condições, trata-se de uma intoxicação alimentar e não de uma doença infecciosa como a gripe, por exemplo.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave humanos campo carne consumo doença alimentos
A honra perdida de John Flory
Retrato verrinoso dos últimos anos do colonialismo britânico no Oriente, a partir da experiência biográfica do autor, não deixa de ser um romance. Romanesco e tudo. (...)

A honra perdida de John Flory
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-02-22 | Jornal Público
SUMÁRIO: Retrato verrinoso dos últimos anos do colonialismo britânico no Oriente, a partir da experiência biográfica do autor, não deixa de ser um romance. Romanesco e tudo.
TEXTO: Num ensaio famoso intitulado Porque Escrevo (1946), e a propósito das suas motivações literárias juvenis, George Orwell recordava: “Queria escrever enormes romances naturalistas com fins tristes, cheios de descrições pormenorizadas e de imagens cativantes, e também cheios de passagens nas quais as palavras seriam em parte usadas pelo modo como soavam. E, de facto, o primeiro romance que terminei, Burmese Days, escrito aos trinta anos mas projetado muito antes, é em grande parte esse tipo de livro. ” Justíssima autocrítica, ressalvado o facto de que, em Dias Birmaneses, não é só o fim que é triste, mas igualmente o meio e o princípio. Não faltam neste livro “imagens cativantes”. Por exemplo, a comparação de uma barulhenta e desordenada multidão a “uma cascata de missangas coloridas derramadas de um frasco”; ou a surpresa de um símile marinho convocado em plena selva: “Para onde quer que se olhasse, a vista era obstruída por inúmeras fileiras de árvores, com lianas e arbustos emaranhados em torno da base, debatendo-se como o mar em torno dos pilares de um cais. ” (p. 159) Não faltam, sobretudo, “descrições pormenorizadas”, como aquela da mercadoria com aspecto “estrangeiro, estranho e pobre” num bazar birmanês: “Havia grandes toranjas penduradas em cordéis como luas verdes, bananas vermelhas, cestos de gambas da cor do heliotrópio e do tamanho de lagostas, peixe seco e quebradiço atado em maços, malaguetas escarlates, patos abertos ao meio e curados como presunto, cocos verdes, larvas de escaravelho do rinoceronte, porções de cana-de-açúcar […]”. A enumeração, estonteante, prossegue por mais umas boas linhas e só um instantâneo a detém numa extremidade do bazar: “[…] o sol brilhava, vermelho sangue, através do guarda-sol de um sacerdote, como que pulsando através da orelha de um gigante” (p. 123). Não há, porém, exuberância descritiva que suavize o pessimismo “naturalista” que dirige a acção deste romance. Quando ainda se chamava apenas Eric Arthur Blair (1903-1950), Orwell passou quase seis anos, entre o final de 1922 e o início de 1928, na Birmânia (actual Myanmar), como agente da Polícia Imperial Indiana. Depois de um ano a aprender o ofício em Mandalay, a antiga capital, o futuro escritor observou de perto o “trabalho sujo do império” em diversas localidades, nomeadamente em Katha, que aparece transfigurada em Dias Birmaneses como Kyauktada, uma “cidade relativamente típica da Alta Birmânia”, praticamente imutável desde os tempos de Marco Polo e que assim provavelmente permaneceria, não fora a chegada do “progresso” levado pelo Império Britânico, “que se traduziu na construção de um quarteirão de tribunais, com o seu exército de litigantes gordos mas famintos, além de um hospital, uma escola e um daqueles estabelecimentos prisionais enormes e eternos que os ingleses erigiram por toda a parte, entre Gibraltar e Hong Kong” (p. 23). A ligação do autor à Índia Britânica (na qual se integrava então a Birmânia) é, porém, anterior. Recorde-se que o escritor nasceu em Motihari, na Índia, onde o pai era funcionário colonial, e a mãe havia crescido em Moulmein, cidade da Baixa Birmânia onde Orwell esteve também colocado como polícia e que recordará mais tarde com um mal-estar e uma má-consciência muito semelhantes aos padecidos pelo protagonista de Dias Birmaneses, John Flory. Os primeiros esboços do romance datam desses anos de 1920 e na edição das obras completas feita por Peter Davison, entre vários fragmentos posteriormente rejeitados, surge um paródico epitáfio do infeliz Flory: “Here lies the bones of poor John Flory; / His story was the old, old story. / Money, women, cards & gin /Were the four things that did him in. / […] / O stranger, as you voyage here / And read this welcome, shed no tear; / But take the single gift I give, / And learn from me how not to live. ” Bom resumo de um perdedor nato. Autoria:George Orwell (Trad. de Alda Rodrigues) Relógio D’Água Ler excertoSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Regressado à Europa, Orwell publica o primeiro livro em 1933, Na Penúria em Paris e em Londres (edição portuguesa na Antígona), relato das suas vagabundagens nos três anos anteriores. Dias Birmaneses sairá no ano seguinte e, tal como o primeiro, teve de vencer algumas reticências. O editor inglês terá hesitado diante do retrato virulento dos “trabalhos do Império” dado no romance e Orwell acabou por ver o livro publicado primeiro nos Estados Unidos. Não sem antes ter aceitado mudar, por exemplo, a profissão de algumas das personagens, que deixaram os quadros da administração colonial e se tornaram comerciantes madeireiros… Curiosamente, a personagem que no romance exerce o cargo mais elevado da administração britânica em Kyauktada (o comissário-adjunto Macgregor), é retratada como “bondosa” e bonacheirona, surgindo quase a uma luz positiva se comparada com a intolerância e o preconceito racista das restantes (menos Flory). A acção de Dias Birmaneses — centrada num desses “clubezinhos assombrados por Kipling”, um desses clubes reservados a europeus e que, como “em qualquer cidade da Índia”, são “o baluarte espiritual, a verdadeira sede do poder britânico” — decorre em meados dos anos 20 do século passado. A cidade fictícia, numa das margens do rio Irauádi, tinha “cerca de quatro mil habitantes, incluindo duas centenas de indianos, uma quantas dezenas de chineses e sete europeus”. O quotidiano é sufocante — literal e metaforicamente –, mesquinho, venenoso, e não há, praticamente, nenhuma personagem desenhada para nos inspirar empatia, nem do lado dos colonizadores nem do lado dos colonizados. Aliás, uma das personagens memoráveis do romance (a outra sendo Flory) chama-se U Po Kyin, um magistrado local que é o epítome de um vilão maquiavélico e corrupto. A sua amoral e perversa ambição é tão exacerbada que chega a parecer caricatural, mas é decisiva para propulsar a acção e o seu desenlace. Nascido para perder, Flory, o protagonista, é ambivalente, podendo até suscitar a nossa compaixão. O “bem-apessoado” e autocondescendente Flory detesta a medíocre companhia dos outros ingleses: “Vemos ignorantes recém-saídos da escola darem pontapés a criados de cabelo grisalho. A dada altura sentimos um ódio ardente pelos nossos próprios compatriotas e ansiamos por uma revolta nativa que afogue o Império em sangue. ” Tem como único amigo um médico indiano, coisa que os restantes europeus toleram mal. As conversas entre ambos são peculiarmente cómicas, pois o médico é remetido ao papel de elogiar e defender convictamente as virtudes imperiais contra os sarcasmos de Flory. Este acaba de descobrir que dissipou quinze anos de vida solitária na Birmânia em álcool (o “cimento do Império”), prostitutas e discussões medíocres no clube. E descobre também que já não conseguiria voltar a viver em Inglaterra. Duplamente desenraizado, põe todas as esperanças na chegada de uma jovem inglesa ida de Paris. Mas o clube britânico de Kyauktada é finalmente obrigado (conveniências que o Império tece) a admitir um “nativo”. E tudo se precipita. Retrato verrinoso, e eventualmente tendencioso, dos últimos anos do colonialismo britânico no Oriente, escrito a partir da experiência biográfica do autor, Dias Birmaneses não deixa de ser um romance. Romanesco e tudo. E até copioso.
REFERÊNCIAS:
Filha de Franco Nogueira doa espólio nunca visto por historiadores
É o maior espólio alguma vez oferecido ao arquivo do Instituto Diplomático. São milhares de documentos, talvez mais de um milhão. O PÚBLICO leu algumas centenas. (...)

Filha de Franco Nogueira doa espólio nunca visto por historiadores
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: É o maior espólio alguma vez oferecido ao arquivo do Instituto Diplomático. São milhares de documentos, talvez mais de um milhão. O PÚBLICO leu algumas centenas.
TEXTO: Rodeada por dragões chineses e cartas secretas do Estado Novo, Aida Franco Nogueira abre caminho pela sala-de-estar do apartamento onde o seu pai foi preso no Verão Quente de 1975. É preciso andar com cuidado. Os caixotes, arquivadores, sacos, pastas, malas e torres de papel cobrem tudo em todas as direcções. E as marquises estão cheias. Vinte e cinco anos depois da morte de Alberto Franco Nogueira, leal ministro e amigo de António de Oliveira Salazar, a filha decidiu doar o seu espólio ao Arquivo Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE). O gesto será formalizado na cerimónia de evocação dos 100 anos do nascimento do diplomata, hoje às 18h, na Biblioteca da Rainha, no Palácio das Necessidades. O auto de doação não é minucioso — seriam necessários anos de trabalho. Na casa do Restelo, em Lisboa, para onde a família Franco Nogueira se mudou em 1968, há centenas de milhares de documentos, talvez mais de um milhão. Todos, menos a correspondência privada (como as cartas trocadas entre Alberto e Vera Wang Franco Nogueira, a sua mulher), são património do Estado a partir de hoje e, dentro de alguns meses, estarão disponíveis para consulta pública. À excepção das pessoas a quem o próprio Franco Nogueira possa ter mostrado os seus papéis, o espólio nunca foi lido por nenhum historiador ou especialista. Há investigadores que procuram há anos documentos concretos do último chefe da diplomacia de Salazar — e rosto oficial da defesa do colonialismo na década de 1960, quando a ideia já era tida como inaceitável e anacrónica pela maioria dos Estados-membros das Nações Unidas. Aida Franco Nogueira, que trabalhou na PLMJ durante 20 anos e hoje é advogada independente e tradutora, começou há dois meses a organizar os papéis do pai. O espólio atravessa meio século e vai, pelo menos, de 1946 a 1990. “Infelizmente, o meu pai não era muito organizado. Sabia onde estava cada papelinho e notava sempre que alguém mexia em algum, nem que fosse para o endireitar. Mas cá em casa o escritório foi sempre conhecido como ‘o caos’: ‘Está no caos’, ‘aqui é o caos’. . . ”A primeira tarefa foi agrupar a documentação em grandes temas: a pilha dos papéis “secretos”, “secretíssimos” e “confidencialíssimos”, a pilha dos originais de livros publicados, a pilha dos manuscritos de livros com títulos desconhecidos, a pilha da correspondência com a família, a pilha da correspondência política, a pilha das cartas do exílio em Londres, a pilha da crise de Goa, a pilha dos recortes de imprensa, a pilha dos discursos, a pilha das Nações Unidas, a pilha das fotografias… “Não tenho um sistema. Vou vendo o que são os papéis e vou abrindo pilhas novas. Quero dar os papéis ao Arquivo Diplomático minimamente organizados. ”A tarefa é difícil por três razões. A primeira é o estilo de Franco Nogueira, que parece ter-se preocupado pouco — ou nada — com o futuro dos seus papéis. “O meu pai tinha zero de arquivista”, diz a filha. Após ler centenas de cartas e telegramas — uma ínfima parcela do espólio —, fica-se com a ideia de que os papéis são a acumulação de anos de despacho quotidiano e que não foram guardados com uma intenção ou para memória futura. Não parece, também, terem sido seleccionados para a escrita dos muitos livros que o diplomata publicou — o último em 1992, pouco antes de morrer. Mas isso só será possível confirmar com a leitura do conjunto. Franco Nogueira fala pouco neste espólio — lê sobretudo o que os outros lhe dizem. Mas há um diário inédito que começou a escrever mal chegou a Tóquio, em Janeiro de 1946, que impressionou a filha. “Tem um sentido de humor espectacular, é subtil e não tem adjectivos. Sou suspeita, sou filha e muito admiradora, mas acho magistral”, diz Aida Franco Nogueira, com o original de Diário do Japão na mão. Este Verão, quando o deu a ler à mãe, ouviu uma resposta diferente: “‘Não tem nada de político, é muito pessoal, não tem interesse nenhum’, disse a minha mãe. ” O embaixador José Freitas Ferraz, director do Instituto Diplomático, já o leu e discorda. “Tem uma prosa muito cinematográfica, muito bonita. Logo nas primeiras linhas, quando ele conta a chegada a Tóquio: salta de uma carrinha militar com duas malas na mão e é deixado sozinho numa rua. É um depoimento escrito por um diplomata que chega ao Japão a seguir ao fim da II Guerra Mundial para o seu primeiro posto no estrangeiro. O armistício tinha sido assinado há quatro meses. Tóquio está completamente destruída e, pouco a pouco, ele dá conta da reconstrução da cidade. ”O espólio inclui uma pasta de pele com o monograma dourado gravado na frente. Terá sido nela que Franco Nogueira foi levando para casa muitos dos papéis que agora vão ser doados, e que ali ficaram, talvez para ler ou responder à noite, amontoados em enormes pilhas no “escritório-caos”, e que acabariam em gavetas e, mais tarde, caixas de cartão. Não parece haver um fio condutor, nem temas ou pessoas de eleição. Há centenas de cartas de embaixadores, em diferentes postos e continentes, há cartas de ministros e pelo menos um manuscrito de Salazar (de 25 de Março de 1965), correspondência de várias personalidades da elite da época, mas também de anónimos, pessoas que escrevem a elogiar um discurso ou uma entrevista. Há cartas escritas à mão e classificadas no topo como “secretíssimo”, mas também telegramas do MNE “ostensivos” (os que podem ser vistos por qualquer diplomata). Uns são dirigidos ao “ministro”, outros ao “embaixador”, outros tratam Franco Nogueira por “tu”. Aqui e ali, há um “dear Alberto” ou “Dear Mr. President”, do período em que foi administrador da Companhia dos Caminhos de Ferro de Benguela. O segundo desafio da organização do espólio tem a ver com as mudanças de lugar. Algumas caixas vieram da casa da Avenida Infante Santo para o Restelo e todas passaram as últimas décadas na garagem de uma casa de Cascais. Foi por causa das obras nessa casa, iniciadas em Agosto, que a filha transportou tudo de volta para Lisboa, obrigando a família a decidir sobre o destino definitivo dos papéis. O terceiro tem a ver com a história profissional: “Franco Nogueira não foi só diplomata e ministro. Foi professor, foi crítico literário, foi escritor, foi biógrafo, foi pensador, foi administrador de empresas”, diz Margarida Lages, directora do Arquivo e da Biblioteca do MNE. “Vieram caixas daqui e dali, dos vários lugares onde o meu pai trabalhou e que ele ia trazendo para casa à medida que mudava de vida”, diz a filha. Por ser um acervo de várias proveniências, é aquilo a que os técnicos chamam um “arquivo plural”. Foi na Primavera, numa ida à biblioteca do MNE, que Aida Franco Nogueira decidiu doar tudo ao Estado. Estava na sala de leitura quando ouviu, mais do que uma vez, jovens diplomatas pedirem livros do pai. “‘Queria aquele livro do Franco Nogueira’, ‘Franco Nogueira aqui’, ‘Franco Nogueira ali’. . . Fiquei espantada. Percebi que era ali que os papéis do meu pai tinham de estar. Falei com a minha mãe e ela disse: ‘Se achas que sim, está bem, mas primeiro quero vê-los todos, um a um’. ” Era isso que as duas tinham começado a fazer quando, no fim de Agosto, Aida Franco Nogueira recebeu um telefonema do lar a comunicar a morte da mãe, aos 90 anos. “Morreu com os papéis no colo — literalmente. ”Nos anos 1990, no fim do seu mandato como ministro dos Negócios Estrangeiros, José Manuel Durão Barroso comprou à família os livros de Franco Nogueira, que hoje fazem parte do catálogo da biblioteca do Instituto Diplomático, instalado na parte sul do Palácio das Necessidades. A seguir, já no mandato de Jaime Gama, foram feitos armários para os arrumar e abrir à leitura pública. Há pelo menos quatro anos que o MNE demonstrou interesse em receber o que faltava — os papéis. “Franco Nogueira chegou aqui com 23 anos e saiu de cá já depois dos 50. Esta era a casa dele”, diz Freitas Ferraz. Quando poderá ser consultado? “Na Primavera já deverá haver documentos disponíveis, mas a organização final, dada a dimensão, demorará anos”, prevê Margarida Lages. “Este é — de longe — o maior arquivo pessoal que alguma vez recebemos. ”Diz-se muitas vezes que Franco Nogueira era um homem “complexo”. Foi considerado um possível sucessor de Salazar, mas sempre gerou desconfiança dentro do regime. Nacionalista conservador, defendeu a “política africana” da ditadura — o colonialismo — de forma “enérgica e obstinada” com “ardor e convicção” (Bernardo Futscher Pereira, Crepúsculo do Colonialismo – A Diplomacia do Estado Novo, Dom Quixote, 2017) e intervenções “catastrofistas” (Filipe Ribeiro de Meneses, Salazar – Uma Biografia Política, Dom Quixote, 2010). Hoje, muitos diplomatas da democracia, tanto da direita como da esquerda, o reconhecem como um grande diplomata. “Na defesa dessa política intransigente, votada ao fracasso mais tarde ou mais cedo, Franco Nogueira evidenciou dotes excepcionais”, escreve Bernardo Futscher Pereira, que é embaixador e neste momento assessor diplomático do primeiro-ministro, António Costa. “Imprimiu à acção diplomática um novo estilo, mais agressivo, mais público, mais emotivo, ao mesmo tempo que tudo fazia para semear a divisão entre os seus adversários. ” Resume o diplomata-historiador: “Colocou um brilhante tacticismo ao serviço de uma estratégia condenada. ” Mas antes faz uma confissão: “Custa a crer que, no seu íntimo, Franco Nogueira não considerasse a defesa do Ultramar uma causa perdida. A própria PIDE reportou a Salazar que o novo ministro estava ‘pessimista’. ”Ao mesmo tempo, Franco Nogueira publicara nos jornais críticas de livros de autores proibidos pela censura, tinha amigos anti-salazaristas e mantinha contactos próximos com jornalistas pouco alinhados com o regime. Além disso, foi ele que propôs — e em 1963 quase convenceu Salazar — que se fizesse um referendo à “política ultramarina” do governo, uma ideia que algumas alas do regime nunca lhe terão perdoado. Escreve Jaime Nogueira Pinto, seu amigo e, como ele, admirador de Salazar: “Para uns, [era] um tecnocrata dos Negócios Estrangeiros, um bom profissional que se limitava a executar, com brio, uma política externa em que talvez nem acreditasse muito; para outros, um convertido por Salazar aos seus pontos de vista; para alguns, um republicano patriota, com aquela costela de tradição laica e ultramarinista da I República” (O Fim do Estado Novo e o 25 de Abril, Difel, 1995). E acrescenta: “É curioso, em face do depois sucedido [oito meses de prisão durante o PREC], que Franco Nogueira era figura suspeita aos olhos da chamada ‘extrema-direita’. ”No artigo Franco Nogueira: Argumentação e Obstinação, publicado no livro Diplomacia e Política Externa, Conferências (2012-2013), Jaime Gama, que foi MNE duas vezes em governos socialistas, descreve-o assim: “Não é dedutível do pensamento de Franco Nogueira a apologia de uma ditadura como sistema político […]. Franco Nogueira não é um ideólogo de extrema-direita, não é um paladino do totalitarismo com ideal salvífico, é um nacionalista pragmático e um céptico com convicções. ”Na casa do Restelo há uma carta “pessoal e urgente” de Norberto Lopes, director do Diário de Lisboa, que, incrédulo, envia ao ministro a cópia do “comentário mutilado” pela censura. De uma coluna de jornal com 70 linhas, só 20 tinham sobrevivido ao lápis azul. “Confesso-lhe que tive de abrir mais os olhos e limpar as lentes dos óculos para acreditar. Não lhe parece que há nesta atitude da censura um exagero e uma incompreensão inexplicáveis?”Na sala-de-estar dos pais — cheia de fotografias da família, mas só uma de Salazar —, Aida Franco Nogueira procura um metro quadrado livre no chão. Sentadas no meio das caixas, é aqui que lemos centenas de papéis durante alguns dias, horas seguidas, de manhã à noite. Às de José Azeredo Perdigão, primeiro presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, segue-se uma carta de Luís Pinto Coelho, que parte nesse dia para o Brasil “tentar fazer vida nova”. Depois surge um “relato secreto” de uma conversa com o embaixador dos EUA em Portugal, Burke Elbrick; uma nota simpática de Lord Colyton; ofícios da PIDE; relatórios (de 20 e 30 páginas) de Jorge Jardim — o homem-de-mão e agente especial de Salazar para África que respondia directamente ao ditador — contando a visita ao Malawi “da Sra. Rebello de Sousa”, mulher do governador de Moçambique, Baltazar Rebello de Sousa, pais do actual Presidente da República. A carta seguinte começa com um “my dear Alberto” — é o embaixador britânico a despedir-se. Muitas são pedidos para promoção, mudança de posto ou aumentos no salário, ou pedidos de trabalho para o marido ou um filho. Lemos uma autorização para a família Franco Nogueira usar a piscina do forte de São Julião da Barra e logo a seguir o pedido de um embaixador que precisa de adido militar “autêntico”. Há relatos de “conversas confidenciais” com estudantes do MPLA em Washington e um telegrama secreto cor-de-rosa (original, portanto) da delegação portuguesa junto da NATO. Há segredos que expiraram há anos e protagonistas com títulos que já não existem, como o rei de Barotseland. Mas também há documentos recentes, como as cartas de 1992 para angariar fundos para a compra de documentos e objectos “pertencentes ao Doutor Oliveira Salazar” e sobre os quais Franco Nogueira escreve a Pedro Queiroz Pereira (que lhe dá um milhão de escudos) e a José Blanco, administrador da Gulbenkian (que delicadamente lhe diz não). Há uma acta da reunião do Grupo de Reflexão Estratégica do Ministério da Defesa do qual Franco Nogueira tomou parte em 1990 e, no extremo oposto, quatro longos telegramas confidenciais de Tóquio de 1947, 1948 e 1949 (estes, sim, políticos). Há cartas sobre a Base das Lajes e sobre o mau estar com o Vaticano a seguir à visita do Papa a Bombaim após a queda de Goa (“não sei ainda ao certo qual é a verdadeira opinião do governo sobre eventual visita do Papa” a Portugal, queixa-se o embaixador de Portugal junto da Santa Sé) — a carta é de Março de 1966 e chega a Franco Nogueira com um cartão manuscrito de Salazar de Junho de 1966 dizendo que se esqueceu de a reenviar… Há o relato de uma conversa sobre Moçambique “com o homem que costuma falar com o R. de Sousa”; uma carta “confidencial” de Franco Nogueira para Salazar; um rascunho manuscrito em inglês sobre o convite ao Presidente da Indonésia, Sukarno, e as “friendly ties” que uniam os dois países; um telegrama sobre o padre incómodo que criticava as acções militares dos portugueses contra os civis em Moçambique e a quem era “preciso chamar a atenção”; uma carta a dar “contidos pêsames” pela morte da mãe; outra sobre a partida dos “elementos da ‘Operação Gralha’ para Moçambique” e a forma de lhes “entregar o restante da gratificação”. Por esta altura, o espanhol Miguel Loria conta ao ministro que está há 55 dias em África “como combinado” e vai tentar fazer em Angola e Moçambique “as reportagens que interessam” — o dinheiro e o tempo que ambos calcularam parecem correctos. Sobre algumas cartas, é conhecido o fim da história. Noutros casos não. Há cartas enigmáticas sobre o “programa de envio material especial”, um aerograma “muito secreto” sobre uma reunião com um dirigente do Ordine Nuovo, da extrema-direita fascista italiana, dois relatórios de reuniões do grupo Bilderberg, em 1968 e 1972, nas quais Franco Nogueira foi orador. Em 1965, José Maria d’Eça de Queiroz escreve-lhe da Praia da Granja e envia contas do SNI e 30 anos depois escreve-lhe a amiga “Pequenina” (Luiza Manoel de Vilhena, condessa da Azarujinha), a elogiar “o meu querido Salazar”. Há cartas de amigos mais novos, como André Gonçalves Pereira e Jaime Nogueira Pinto, de quem se manteve próximo até ao fim. E uma carta de 1967, “secretíssima”, de 23 páginas, na qual Leonardo Mathias relata um encontro tido em Madrid com um líder africano e “François (Ernesto)”, um antigo paraquedista “formado em todas as técnicas da guerra subversiva”. No fim, faz um P. S. misterioso para o ministro: “O seu telegrama n. º 9 foi destruído. Desta carta, escrita pelo meu punho, faço fotocópia para arquivar no cofre da Embaixada. ”Num sofá há uma caixa com dezenas de manuscritos de possíveis livros que Franco Nogueira quereria publicar ou que, pelo menos, têm títulos que não correspondem a livros lançados no mercado. Quase todos têm uma capa desenhada pelo próprio, que experimentava sempre soluções de “paginação”. Alguns têm títulos parecidos com livros que o ex-ministro de Salazar publicou, outros são diferentes de tudo o que se conhece. É nesta pilha que está o manuscrito de Debate Antigo, de 1966. “Não sei se é um estudo prévio de Debate Singular, que o meu pai publicou em 1970. Tenho de cruzar os dois textos. ” O mesmo se passa com Salazar, estudo biográfico. Pode ser um estudo biográfico inédito ou um esboço de um dos seis volumes da biografia do antigo Presidente do Conselho que Franco Nogueira publicou nos anos 1980, durante o exílio em Londres, e que ainda são uma fonte dos investigadores. Do outro lado da sala, está um grande caixote de cartão com milhares de fotocópias de documentos de Salazar que, segundo a filha, o pai usou para escrever a biografia do ditador. “Os originais estiveram aqui muitos anos, mas foram todos devolvidos à Torre do Tombo. ”De regresso à zona da lareira, Aida Franco Nogueira explica: “Nesta caixa, pus os manuscritos de livros que são esboços de livros publicados ou outra coisa. São mais de 50. ” É aqui que está No Caminho de Bizâncio, com notas para o prefácio e um desenho de uma capa com dois títulos: Estrada de Bizâncio e No Caminho de Bizâncio. “Com o desenho das estrelinhas, que ele sempre fez. Não conheço nenhum livro com este título, apenas um capítulo no Juízo Final. Ainda não sei o que é. ” Alguns capítulos remetem para livros conhecidos (como Os 250 anos do MNE), mas outros nem por isso (As armas nucleares). Ao fundo, numa das marquises, estão os originais manuscritos dos seis volumes da biografia de Salazar. No lado oposto da sala, na outra marquise, estão três grandes caixotes e vários sacos cheios de papéis que a filha ainda nem abriu. “O meu pai dizia sempre: para a menina só há preto ou branco, mas olhe que o cinzento também é cor”, diz Aida Franco Nogueira, tentando descrever o pai. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Hoje, na cerimónia de evocação, essa tarefa caberá a Luísa Black, professora e antiga assistente de Franco Nogueira na universidade, a Carlos Gaspar, investigador do IPRI e antigo assessor político no Palácio de Belém, e a Marcelo Mathias, embaixador reformado, cujo pai, do círculo próximo de Salazar, propôs o nome de Franco Nogueira para lhe suceder como ministro. Augusto Santos Silva, actual chefe da diplomacia portuguesa, não estará na cerimónia. Nota: corrigida referência à reunião com um dirigente do Ordine Nuovo, partido da extrema-direita fascista italiana.
REFERÊNCIAS:
Avistada anémona gigante na noite de Sines
Final da 15. ª edição do Festival Músicas do Mundo, em Sines, com um ovni japonês chamado Shibusa Shirazu Orchestra e um explosivo concerto de encerramento de Femi Kuti. Uma prateada anémona gigante, a tomar os céus de Sines, conduzida do palco do castelo até ao centro do recinto como se de um papagaio de papel se tratasse, seria um momento recordista de bizarria para o Festival Músicas do Mundo em qualquer outro concerto. Mas não no caso do colectivo japonês Shibusa Shirazu Orchestra. Na verdade, custa até juntar as sílabas con-cer-to para designar o que os 26 japoneses levaram para palco: um surreal espectáculo... (etc.)

Avistada anémona gigante na noite de Sines
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-07-30 | Jornal Público
TEXTO: Final da 15. ª edição do Festival Músicas do Mundo, em Sines, com um ovni japonês chamado Shibusa Shirazu Orchestra e um explosivo concerto de encerramento de Femi Kuti. Uma prateada anémona gigante, a tomar os céus de Sines, conduzida do palco do castelo até ao centro do recinto como se de um papagaio de papel se tratasse, seria um momento recordista de bizarria para o Festival Músicas do Mundo em qualquer outro concerto. Mas não no caso do colectivo japonês Shibusa Shirazu Orchestra. Na verdade, custa até juntar as sílabas con-cer-to para designar o que os 26 japoneses levaram para palco: um surreal espectáculo em que uma muito big band se fazia acompanhar por gente que parecia saída de livros de banda desenhada de toda a espécie - desde um terrorífico homem reptilário a duas pueris meninas de cores veraneantes que mais não fizeram do que gesticular com duas bananas nas mãos. Todo o excesso teatral produzido pela Shibusa Shirazu Orchestra, durante as quase duas horas registadas no cronómetro de sexta-feira, era acompanhado por um jazz desabrido, uma trip jazz-rock acontecida na cabeça de Frank Zappa, uma opereta feita à imagem da televisão japonesa com lugar para fogosos e intermináveis solos de guitarra ou saxofone que repentinamente eram calados por um trecho atmosférico e de voz ameninada. Tudo com aparato circense e a ânsia de, num único sopro, querer ser tudo. O excesso era a única medida e a trupe japonesa não se coibiu de abusar dos seus meios para promover entre o público um delírio minimamente aproximado do seu. Odiado por alguns, objecto de deslumbramento visual-musical por muitos outros, só teria uma pálida comparação de estranheza na actuação dos chineses Dawanggang, já no dia seguinte. Junto à praia de Sines, ao cair da tarde de sábado, o concerto dos Dawanggang foi um conflito constante entre céu e inferno. À voz demoníaca de Song Yuzhe e às suas guitarras e banjo atacados sempre do avesso, procurando dissonâncias e não harmonias, e mesmo ao troar com voz de Tuva do intenso violinista Zeng Xiaogang, opunha-se o canto celestial e virginal da cantora Cao Yuhan. A aproximação tentada de Yuzhe a sonoridades ocidentais resultaria quase sempre num flirt envenenado, começando pela sua evocação ortodoxa para logo as corroer. Sempre que traficaram estas referências e polarizaram as vozes de Yuzhe e Yuhan, os Dawanggang andaram próximos de um combate sublime e primordial. Femi, filho de FelaNoite de sábado, encerramento dos concertos no Castelo de Sines, e prova mais inequívoca do que um exame de ADN sobre a paternidade de Femi Kuti. Femi, filho de Fela, tem o mesmo afrobeat fervente no sangue, passeia os dedos por saxofone e teclados como se tocá-los nunca lhe tenha sequer exigido uma aprendizagem. E nas palavras, incendiárias e frontalmente políticas, seguiu igualmente o rasto de Fela, advogando o não pagamento da dívida externa portuguesa - "Nunca vão pagar esta dívida, nem os vossos filhos, nem os filhos deles; o FMI tem de perdoar" -, ao mesmo tempo que defendia o não-perdão da dívida aos países africanos como forma de responsabilização e combate à corrupção. Na sua declinação punk do afrobeat, de notável crueza e frenesim, persiste este apelo à "revolução global". Esta música de libertação é um jorro de inventividade e energia que proclama isso a cada momento: o direito do indivíduo a viver sem grilhetas de qualquer espécie. Ainda que sem o vigor da anterior passagem pelo FMM (em 2004), Femi Kuti justificaria por inteiro o protagonismo de concerto final, com direito ao habitual fogo-de-artifício - os Tamikrest não convenceram totalmente no papel de representantes da música tuaregue, soando a versão menor dos Tinariwen; a rap-per Akua Naru encostou-se demasiado à participação popular para fazer vingar um concerto sem ideias musicais. Rachid Taha, por seu lado, teve uma prestação em tudo semelhante a 2007. Com um excelente álbum, Zoom, a servir de pretexto para a actuação, mergulhou no seu raï"n"roll com a mesma convicção com que deverá ter mergulhado a cabeça noutros líquidos, emergindo de uma decadência mais ou menos contínua para resgatar notáveis interpretações de Barra Barra, Rock el Casbah e Écoute Moi Camarade, sempre no arame e cujo brilho dependia realmente de caírem para o lado certo. Outro dos regressos previstos, do indiano Trilok Gurtu, acabaria por não acontecer devido a atrasos com os voos do percussionista. Com verdadeiro espanto, o duo reduzido à actuação solo do pianista arménio Tigran Hamasyan conquistaria o público com recurso a um virtuosismo de fundo clássico e barroco, ao qual Tigran juntaria, aos poucos, um experimentalismo inusitado, conseguindo efeitos fantasmagóricos com o assobio, alimentando loops de piano eléctrico, cantando colado a uma tradição vocal arménia, substituindo-se a Trilok enquanto human beatbox cuspidora de ritmos hip-hop e de simulação fiel de tablas. Do imprevisto surgiu um dos mais belos e inesperados concertos do FMM. Se Femi Kuti reforçou a condenação do FMI que Baloji verbalizara dias antes, também os Gaiteiros de Lisboa se juntaram aos protestos contra o excesso de zelo das forças de segurança. "Antes do 25 de Abril, não havia polícia à porta dos festivais a vasculhar as malas e a intimidade das pessoas. É uma coisa nojenta", atirou Carlos Guerreiro, no final de uma actuação que esteve ao nível do melhor que este colosso de recontextualização da tradição musical portuguesa alguma vez conseguiu. A revista em busca de "objectos cortantes" à entrada do castelo, na noite de sábado, levaria a filas de uma hora que impediram muitos de assistir ao concerto de Tamikrest. E também os Gaiteiros, como muitas outras formações, desejaram longa vida a um festival que se tornou arma de campanha para as próximas eleições autárquicas. Daqui por um ano, veremos se o FMM conserva a identidade que o tornou o lugar de peregrinação óptimo para quem quer descobrir músicas nunca antes ouvidas.
REFERÊNCIAS:
Entidades FMI