Todos somos turistas
Lisboa e o mundo encontram-se na encruzilhada do turismo de massas. As cidades atractivas do séc. XXI existem entre paradoxos, na fronteira entre serem metrópoles de sucesso e vítimas dele. O holandês Marc Glaudemans dedica-se a pensar como é que se podem criar ambientes urbanos sustentáveis. (...)

Todos somos turistas
MINORIA(S): Asiáticos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Lisboa e o mundo encontram-se na encruzilhada do turismo de massas. As cidades atractivas do séc. XXI existem entre paradoxos, na fronteira entre serem metrópoles de sucesso e vítimas dele. O holandês Marc Glaudemans dedica-se a pensar como é que se podem criar ambientes urbanos sustentáveis.
TEXTO: Todos somos turistas. Mesmo os que não se sentem forçosamente identificados com aquilo a que chamamos turismo. “E é bom termos essa noção, para que não olhemos para os turistas como se fossem extraterrestres”, diz-nos por entre risos o holandês Marc Glaudemans. É o fundador e director do Stadslab European Urban Design Laboratory, um think tank internacional sem fins lucrativos e também laboratório de design urbano, que tem actuado ao nível do impacto do turismo massificado no espaço público, no desenvolvimento urbano e no dia-a-dia dos cidadãos das cidades europeias. “O turismo não pode ser eliminado, é qualquer coisa à qual nos temos de adaptar”, acrescenta, “mas pode ser gerido, regulado ou sustentado. ”É a sua segunda vez em Lisboa. Foi a associação Academia Cidadã, fundada por activistas que pertencem a diversos movimentos cívicos portugueses, em conformidade com a Câmara Municipal de Lisboa, que o desafiou a desenvolver um programa de Master Class — que decorrerá em Abril de 2016 — que contará com participantes internacionais e portugueses, abordando a gentrificação e o turismo de massas em Lisboa, no sentido de serem desenhadas estratégias partindo de um caso concreto, o bairro da Mouraria. A capital portuguesa, onde hoje circulam os tuc-tuc que se viam na Tailândia, constituiu, diz, um estudo de caso com interesse, ou não fosse uma das cidades europeias com maior crescimento turístico nos últimos anos — em 2014, cresceu cerca de 15, 4% face a 2013, segundo a Associação de Turismo de Lisboa. Segundo ele, nada de estrutural ainda foi colocado em causa, podendo aprender-se com os equívocos cometidos noutros territórios como Barcelona, ao mesmo tempo que Lisboa pode servir de embrião para outras cidades, num tempo histórico em que o turismo é uma das questões globais mais desafiantes. Encontramo-nos no Chiado, coração de Lisboa, e percebemos logo que está por dentro do contexto do que se passa na cidade. “Os sintomas repetem-se de cidade para cidade. Por norma começa com o regozijo de ver chegar turistas, depois advêm preocupação e mais tarde a reacção a esse estado de coisas. ”É isso, sim. Inicialmente existiu satisfação pelos proveitos económicos e orgulho pelo reconhecimento. Depois adveio a apreensão de quem vive na zona histórica, e também nas adjacentes, pelas perturbações que foram surgindo. No presente já se percebeu que alguma coisa terá de ser feita. Não há alarmismo. Mas existe o confronto com uma realidade nova, com tudo o que isso acarreta de conflito. Nos cafés, nas esplanadas, na rua, enfim, no espaço público, as marcas de hostilidade entre autóctones e forasteiros ainda são subtis, mas não é preciso ser vidente para antecipar que irão aumentar. Isso já se vislumbra nas expressões de enfado. Nas incompreensões. Nunca se falou tanto de turismo em Portugal como nos últimos anos. Durante muito tempo parecia ser um tema sazonal, ajustando-se aos meses de Verão no Algarve. Foi uma longa época em que o país se pensava a si próprio como destino de Verão. Com o fluxo dos últimos anos a atingir algumas cidades portuguesas — com relevo para Lisboa e Porto —, já não é assim. “A ideia sazonal morreu. Hoje temos de pensar o turismo como fenómeno de todo o ano”, diz Marc. “Existe uma amplificação temporal do uso turístico do espaço. O turismo já não é ocasional, é constante. Se se tornou global, o tempo turístico é agora total. ”A própria ideia de turismo mudou. Dizemos que estamos na era do turismo de massas, mas só se o pensarmos como algo possuído por uniformidade ao nível do tempo, dos lugares e das preferências, porque as ofertas são infindas, com uma variedade de lugares, paisagens e experiências à nossa espera. Assistimos a uma intensificação dos tipos de turismo conhecidos, a que não é estranha a revolução dos voos de baixo custo que amplificaram os utentes das companhias low cost. A multiplicação de tipos de turismo não tem fim: enológico, de sobrevivência, gastronómico, sexual, religioso, cultural, LGBT, de praia. O resultado é uma segmentação do mercado. Encontramos tantos destinos como potenciais segmentos de consumidores. O turismo actual não é de massas, embora seja mais massificado do que nunca, cumprindo-se a partir do consumo emocional de um certo lugar. “Enquanto turistas, sugamos a paisagem em função de ela nos devolver uma experiência, expor uma história ou garantir uma emoção. Por isso as cidades turísticas se vêm obrigadas a parecer-se com esse imaginário que o viajante espera encontrar. ”Às tantas, na nossa deambulação pelo Chiado, paramos ao fundo da Rua Garrett junto a uma dessas lojas de marca global que estão em qualquer parte do mundo. Quando se quer falar de homogeneização, recorre-se quase sempre a estes exemplos. Diz-se que as metrópoles perdem a sua identidade quando são tomadas por este tipo de lojas. “Em parte é verdade porque tendem a crescer de forma semelhante em todo o lado”, afirma Marc, “mas o segredo, como sempre, é conseguir equilíbrio entre este tipo de comércio global e o local. Neste caso, mantiveram a fachada do edifício, não é muito intrusivo, embora o que encontramos no interior seja o mesmo aqui ou em Roma. ”É verdade. Mas ao contrário do que se possa pensar, não são apenas os locais que apreciam este tipo de comércio. Os turistas, mesmo os que dizem estimar a diferença dos lugares que visitam, também não as perdem de vista. Apesar de tudo, tem de existir alguma familiaridade no ambiente que se visita. “Este tipo de pavimento, a calçada, os edifícios, as pessoas ou a comida, fazem parte do contexto português e são enaltecidos. Os turistas esperam de alguma forma encontrar essa identidade, mas ao mesmo tempo desejam o que têm em casa. O mesmo tipo de conforto, os seus cafés, a sua comida, as suas lojas. O turista gosta de sentir-se longe de casa, mas não muito longe. ”O turismo, já se percebeu, vive entre tensões não resolvidas. Não é uma questão portuguesa. Em todo o mundo se discute como criar ambientes urbanos coerentes e sustentáveis. Como preservar a herança urbana. Ou como fazer com que uma maioria de cidadãos possa beneficiar dessa indústria em vez de apenas alguns grupos privilegiados. “Isso é o que todas as cidades procuram: como preservar uma identidade genuína enquanto absorve um número elevado de turistas. É difícil por causa da própria natureza transformadora do turismo que, mesmo quando é predominantemente individual, pode ter um impacto maciço. Em princípio, o turismo 2. 0 ou 3. 0 — como o Airbnb ou plataformas online semelhantes — têm um impacto reduzido. Baseiam-se no que existe e em propriedades individuais. Mas as áreas onde predomina podem perder o seu carácter distintivo e tornarem-se ‘turistificadas’, ficando menos atractivas, não só para os turistas como para os locais. ”Como garantir, então, a sustentabilidade ambiental, social e cultural das cidades? O diagnóstico é conhecido: sobreocupação do espaço público. Homogeneização do comércio. Banalização da paisagem urbana. Habitantes a abandonar o centro. Aumento dos preços de arrendamento motivado pela procura do alojamento temporário. Proliferação de hostels e outras formas de alojamento que põem em risco a função residencial da população autóctone. Não é apenas a qualidade de vida dos residentes que é posta em causa, mas a sua capacidade de viver na área. Quando o interesse dos residentes é suplantado pelos benefícios negociais, muitas vezes o efeito é paradoxal, acabando na degeneração daquilo que era atraente para os visitantes: a atmosfera única da cultura local. Até agora, na maior parte das cidades, tem-se apostado, como reacção, em políticas de contenção, de restrição ou de deslocalização. Limitação do número de cruzeiros, construção de réplicas das atracções turísticas para deslocalizar a pressão dos visitantes, diversificação da oferta cultural de maneira a que não sejam apenas as zonas históricas a ser percorridas, limitação do número de noites permitidas de aluguer de casas privadas, controlo do número de visitantes ou regulação da utilização máxima do Airbnb, eis algumas das medidas tomadas nos últimos anos nos mais variados locais do globo. Numa das cidades onde o turismo tem tradição, Paris, os turistas são vistos como “cidadãos temporários” com direitos, mas também obrigações. Ainda assim, essas medidas não bastam. É preciso antecipar as mudanças, percebê-las na sua curva ascendente, para melhor as gerir. Essas políticas de antecipação “devem incluir planos de zoneamento e áreas de desenvolvimento integrado para que o equilíbrio do desenvolvimento urbano seja salvaguardado a longo prazo”, afirma Marc, apontando para a participação de todos nessa dinâmica. “O desenvolvimento destes instrumentos de planeamento são um processo de co-criação, no qual os actores públicos e privados e os cidadãos têm de trabalhar unidos para formular uma visão estratégia dos seus bairros. ”Num processo colaborativo deste género, o desenvolvimento equilibrado pode ser definido por todas as partes interessadas, a partir de uma base de valores e interesses compartilhados. “As acções individuais que conduzem à gentrificação ou à sobrecarga do turismo são racionais, mas o seu efeito de conjunto pode ser potencialmente negativo para toda a comunidade”, aponta Marc. “É por isso que um plano de desenvolvimento para uma determinada área deve ser apoiado no longo prazo, para que todos os actores possam ver cumpridas as suas aspirações. Pelo menos até um certo ponto. ”Durante muitos anos, a indústria do turismo não foi levada muito a sério. Era consensual, junto de governos, organismos internacionais e meios de comunicação que a energia, o petróleo, as finanças, a ciência, a agricultura e, vá lá, a cultura, eram vitais para o desenvolvimento económico. O turismo não entrava nas agendas dos poderosos. Hoje, segundo Marc, já não é assim. “É uma das indústrias mais relevantes em termos económicos. E não é como a indústria do petróleo, onde existem talvez dez grandes players. No turismo é tudo muito mais disperso, individual e democrático. ” Será verdade. Mas a competição entre destinos é também renhida. Hoje todas as cidades querem ser distintivas, únicas e aprazíveis. Segundo o secretário-geral da Organização Mundial do Turismo (OMT), o jordano Taleb Rifai, citado pelo El País, o mundo de hoje vive duas revoluções: “A tecnológica, que conecta o mundo virtualmente, e a das viagens, que nos conecta fisicamente. ” Em 2014, segundo essa organização dependente das Nações Unidas, 1138 milhões de turistas passaram pelo menos uma fronteira — o que significa que mais de um em cada sete habitantes do mundo realizou uma viagem internacional. Outro dado significativo: um em cada onze empregos no mundo foram criados graças ao turismo, embora também existam muitas vozes críticas a sugerir que esse tipo de ocupação é maioritariamente precário, de baixos salários e apoiado em contratos temporários. É inegável: o turismo gera receitas e por vezes reabilita zonas urbanas. Mas também pode contribuir para a diminuição da qualidade de vida local. Esta é a encruzilhada das cidades atractivas. Por vezes fica-se com a ideia de que a indústria do turismo tira vantagem do que a cidade e a comunidade têm para oferecer (hospitalidade, ruas, monumentos, equipamentos) mas os resultados económicos nunca revertem para o colectivo, apenas para privados. Para Marc, esta é uma verdade parcial. “Os turistas e as empresas da indústria pagam impostos específicos que podem acabar por beneficiar toda a comunidade se as autoridades municipais o souberem gastar sabiamente. Mas é verdade que esses instrumentos fiscais podem ser melhorados e adaptados para lidar com novos tipos de turismo, que nem sempre são abrangidos por sistemas fiscais desactualizados. A cidade de Amesterdão, por exemplo, fez um acordo com a Airbnb, em que um imposto de 5% é adicionado a todas as reservas feitas através desta plataforma. Esta é uma forma de criar condições de concorrência equitativas, não favorecendo um determinado tipo de turismo. Mas existem propostas mais radicais como as taxas de ingresso em Veneza ou as de alojamento. ” Recorde-se que, esta semana, ficou a saber-se que Câmara de Lisboa não vai, ao contrário do que estava previsto, começar a cobrar em Janeiro a Taxa Municipal Turística a quem chegar à cidade por via aérea ou marítima. Mas quem dormir num hotel da capital vai ter de pagar um euro por noite a partir do primeiro dia do próximo ano. Para Marc Glaudemans, o importante é “certificarmo-nos de que os benefícios do turismo são investidos de forma igualitária por toda a cidade e criadas as soluções para manter uma certa simetria”, mesmo as zonas que ficam fora dos circuitos turísticos. “Essas áreas não colhem benefícios, mas podem sentir os efeitos negativos, ao nível do congestionamento do tráfego ou porque os preços de serviços e bens aumentaram, por exemplo. ”Nesse sentido, o governo municipal deve criar condições para uma distribuição justa para evitar o aumento de desigualdades devido aos benefícios económicos do turismo. “Preferia encarar isso como uma oportunidade para as cidades que atraem um grande número de turistas e não como um problema. ”Na actualidade, já não é possível pensar nas questões do turismo a partir de um prisma local. Para o comprovar, Marc vai apontando para os imóveis que na Baixa ou Martim Moniz estão em obras, com anúncios de venda da parte de imobiliárias que operam no mercado internacional. “Este fenómeno é global”, reflecte. “Provavelmente, alguém em Londres acabará por comprar este edifício e daqui construirá um hotel. Este é um indicador de como o fluxo de capitais é global e de como a regeneração urbana não é um processo apenas local porque as partes interessadas são de diferentes origens e, na verdade, com interesses diversos. É necessário pensar nessas forças globais, e Lisboa, hoje, faz parte dessa comunidade mundial. ”Curiosamente, quando pensa em casos actuais de sucesso, ao nível das cidades que conseguem ter uma relação harmónica com o turismo, não lhe vêm à cabeça capitais. “As cidades secundárias talvez consigam um padrão de vida mais elevado para os seus cidadãos, na sua relação com o turismo, do que as capitais ou as zonas de atracção turística”, diz. “Haverá sempre excepções, mas quando penso em San Sebastian, no País Basco espanhol, vislumbro uma cidade costeira atractiva, que é acima de tudo um local para viver e trabalhar, integrando especificidades turísticas, como a gastronomia, o festival de cinema ou o surf na sua identidade. Lyon, em França, é outro exemplo de uma cidade que mantém a sua matriz, combinada com a realização de eventos de expressão internacional. As cidades que são conhecidas por acontecimentos sazonais específicos, em vez de serem destinos de todo o ano, talvez estejam mais preparadas para evitar a espiral negativa dos excessos turísticos. Mas não existem fórmulas perfeitas e as situações mudam rapidamente. ”É a pensar na forma como se podem administrar as contradições que são hoje uma constante do turismo global que Marc está em Lisboa. Nas ruas do bairro da Mouraria diz sentir que ali ainda se distinguem as relações de proximidade e há um estilo de vida humanizado. Mas não foi isso que o levou a escolher o bairro para centro da sua intervenção. “Escolhemos esta área porque há aqui muitos paquistaneses, indianos e chineses, ou seja, tem uma segunda camada para além de ser um bairro tradicional, o que lhe acrescenta complexidade. Em Barcelona, por exemplo, os bairros com estas características estão num acelerado processo de transformação e alguns perderam as suas características basilares. ”Um bairro é um ecossistema complexo. Não surpreende a tensão que se manifesta entre residentes e frequentadores ocasionais, entre comércio tradicional e novas actividades ou entre utilizadores diurnos e nocturnos. A harmonia é quase sempre instável. Mas é dessa conjugação de actuações, e da forma como os diferentes actores se relacionam entre si, que depende o equilíbrio. A coexistência nem sempre é fácil. Mas é possível. Exige-se actuação pública. Mas com pinças. Às vezes mais vale ser orientadora ou apenas reguladora, do que pró-activa. O Stadslab é parte da Universidade Fontys, na Holanda, e tem ajudado a introduzir modelos inovadores de governança urbana. Na Mouraria a ideia é semelhante. “A nossa acção vai no sentido de ajudar municípios e agentes privados a salvaguardarem um desenvolvimento urbano equilibrado. Portugal não está familiarizado com o desenvolvimento em área e acreditamos que este modelo de co-criação colaborativa pode ser benéfico aqui. ”A Master Class de Abril será supervisionada por especialistas internacionais mas os participantes serão uma mistura de profissionais locais e internacionais, entre trabalhadores municipais, arquitectos, urbanistas e organizações comunitárias. O objectivo é trabalhar durante dez dias com um grupo de 15 profissionais e manter uma relação interactiva com os cidadãos e as organizações locais. A apresentação final das ideias e recomendações ocorrerá num evento público. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Apesar das lojinhas de recordações, dos novos cafés e mercearias que prometem invariavelmente “produtos tipicamente portugueses” e de alguns sintomas de gentrificação na zona histórica, Marc é da opinião que o seu carácter se mantém. “Sente-se que a regeneração urbana ainda é orgânica, não é artificial, o que é bom. Vimos poucas transformações de grande escala irremediáveis. Está a acontecer uma transformação, mas é lenta e orgânica, o que é bom para a cidade, ao mesmo tempo que o seu caracter histórico pôde ser recriado porque alguns edifícios estavam muito degradados. ”Mas esse equilíbrio é instável. Tem que ser reavaliado a todo o momento. A indústria do turismo vive processos disruptivos muito rápidos. Por exemplo, em Nova Iorque, estima-se que 50% da oferta de Airbnb já não se encontra nas mãos dos habitantes, mas sim de empresas que se servem do serviço para escaparem às normas hoteleiras. São assim as cidades do século XXI, a viverem entre paradoxos: sendo sedutoras, mas sem quererem ser esmagadas pelo seu desejo, assumindo que o turismo pode ser voraz, mas não prescindindo dele, compreendendo que a fronteira entre ter sucesso e ser-se vítima dele é ténue.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos cultura comunidade social consumo género estudo sexual lgbt
Um ataque para punir Assad, forçar o regime a negociar e avisar Teerão
Uma operação cirúrgica para mostrar a sírios e iranianos que os EUA falam a sério quando impõem "linhas vermelhas" pode não mudar o curso da guerra. Um guião para o que se desenha. (...)

Um ataque para punir Assad, forçar o regime a negociar e avisar Teerão
MINORIA(S): Asiáticos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-08-28 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20130828160314/http://www.publico.pt/j1743946
SUMÁRIO: Uma operação cirúrgica para mostrar a sírios e iranianos que os EUA falam a sério quando impõem "linhas vermelhas" pode não mudar o curso da guerra. Um guião para o que se desenha.
TEXTO: Os cenários estão preparados e já há alguns porta-aviões no lugar. Barack Obama já terá decidido que vai dar a ordem, mas não necessariamente qual das opções escolherá. Os riscos de agir não desapareceram - o Presidente recordou sexta-feira que os Estados Unidos "não podem resolver o que é um complexo problema sectário na Síria". Mas, de repente, os riscos de não intervir parecem maiores. O uso de armas químicas em grande escala vem somar-se ao envolvimento do Irão (e do Hezbollah) na guerra. "Pela primeira vez, em mais de dois anos, a urgência não se sente só na Síria, chegou a Washington, Londres e Paris", escreve na Foreign Policy Gayle Tzemach Lemmon. A opção mais provável, avança o jornal Washington Post citando "altos responsáveis da Administração", passa por "um ataque militar limitado no âmbito e na duração", pensado para funcionar "como punição pelo uso de armas químicas pela Síria e como dissuasor, evitando que os Estados Unidos se envolvam mais profundamente na guerra civil do país". O que Obama está a considerar, resume o New York Times, é "uma lista de acções para "travar e minar" a capacidade de Assad lançar armas químicas". Limitar riscos e custos, baixar as expectativas em relação aos objectivos, parece ser a mensagem. Já se sabia que o envio de soldados para o terreno não se colocava; Washington e Londres garantem que provocar uma mudança de regime também não está em discussão. Para os EUA - e ao contrário do que aconteceu na Líbia, desta vez os primeiros disparos serão norte-americanos - três factores vão determinar o calendário desse ataque: as provas da culpabilidade de Assad na morte de centenas de sírios têm de ser reunidas; as consultas com os aliados e com o Congresso terão de ser concluídas, e é preciso determinar uma justificação à luz da lei internacional. As provasNinguém nega que foram usadas armas químicas contra várias localidades nos arredores de Damasco. Organizações internacionais confirmaram que gases tóxicos afectaram 3600 pessoas (Médicos Sem Fronteiras), matando centenas. Norte-americanos, britânicos, franceses, turcos e a Liga Árabe, todos já disseram que é o regime de Bashar al-Assad que está por trás dos ataques. O seu arsenal químico é real e significativo - nem o regime o esconde - e grandes quantidades destes agentes estão numa forma militarizada, prontos a serem usados em bombas lançadas de aviões ou ogivas colocadas em mísseis. Como é que se sabe que foi Assad a usá-los? A resposta pode ser mais simples do que parece: todos os serviços secretos activos na região vigiam de perto essas armas, que permanecem sob controlo do Governo. O regime, ao contrário dos rebeldes, tem os meios para as lançar. Saber é diferente de provar, o escrutínio será grande e reunir provas suficientes talvez demore uns dias. Os inspectores da ONU continuam hoje as suas visitas aos locais atingidos, mas como sublinhou o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, a investigação vai permitir saber o que foi usado - não quem usou. A legalidadeBritânicos e turcos já disseram que terá de ser encontrada uma solução à margem do Conselho de Segurança, onde se sabe que a Rússia (e provavelmente a China) usará o seu direito de veto. Na Líbia, russos e chineses abstiveram-se, abrindo caminho à autorização da ONU para uma intervenção que, no papel, visava proteger Bengasi e, na prática, serviu para derrubar Muammar Khadafi. A Administração Obama está à procura de precedentes no Kosovo de 1999, quando Bill Clinton usou o apoio da NATO e a necessidade de proteger um grande número de civis para lançar ataques contra a Sérvia. Entretanto, a ONU aprovou a "responsabilidade para proteger" (François Hollande admite que pode ser usada na Síria). Foi esta norma que serviu como justificação para a operação na Líbia. Cada vez mais peritos em conflitos e lei internacional estão convencidos que será invocada a violação da Convenção das Armas Químicas por parte de Assad. A Síria não é signatária, mas isso não será um obstáculo. "Quando um princípio é geralmente aceite, torna-se parte do que chamamos lei consuetudinária internacional, que vincula tanto os estados como um tratado", diz ao Guardian Mark Reiff, perito em ética dos conflitos. Se em causa, como parece, estiver um cenário de "retaliação", David Bosco, da Universidade Americana de Washington, defende que a "doutrina permite que uma parte viole a lei internacional em resposta à clara violação da lei internacional cometida pela outra parte". Operação cirúrgicaUm "ataque punitivo", escreve Bosco no blogue Multilateralist da revista Foreign Policy, "não implica um compromisso para derrotar o regime [de Assad], não sugere um desejo de apoiar os opositores, não compromete os governos ocidentais com o fim de todos os abusos no conflito sírio nem com a reconstrução do Estado pós-conflito". O tal ataque muito limitado descrito pelo Washington Post, que reduz os riscos e os custos para os envolvidos, pode ser também mais fácil de justificar do ponto de vista da lei, sustenta Bosco. "A mensagem para o regime é simples, directa e limitada, se usas estas armas terríveis pagas um preço". "Esta norma internacional não pode ser violada sem consequências", disse Kerry na segunda-feira. "Penso que deve ser cirúrgico. Deve ser uma resposta ao que aconteceu com os químicos", defendeu à NBC Bob Corker, o mais importante republicano no Comité de Relações Externas do Senado. Os alvosTanto o Post como o New York Times escrevem que os alvos mais prováveis deste ataque cirúrgico não são os locais onde estão armazenadas as armas químicas, muitos e dispersos (Damasco, Palmira, Goms, Alepo, Latakia, Masyat. . . ). Em vez disso, explicaram ao Times responsáveis do Pentágono, os alvos serão as unidades militares que estarão por trás dos ataques químicos, os mísseis e a artilharia que serviu para os lançar e os quartéis que supervisionaram a operação. Os alvos iniciais estão a ser escolhidos a partir de uma lista de menos de 50. Em Istambul, o líder da Coligação Nacional Síria, Ahmad Jarba, entregou ontem aos enviados dos "Amigos da Síria", uma lista de dez propostas de alvo, incluindo o Aeroporto Militar de Mezze, nos subúrbios ocidentais de Damasco, a base de Qutaifa (usada para lançamento de mísseis), no norte da capital, e o complexo que abriga a 4ª Divisão Mecanizada, a unidade de elite lidera por Maher al-Assad, irmão de Bashar, e formada quase só por alauitas (o ramo do xiismo da família no poder). A oposição responsabiliza a 155ª brigada desta divisão pelo ataque em Ghutta. Mais ataques limitadosUma primeira vaga de ataques deverá ser seguida por uma pausa para avaliar os danos infligidos e a resposta do regime. A Síria tem defesas anti-aéreas respeitáveis, pelo que os alvos dos ataques terão de ser inspeccionados por satélites ou por aparelhos de vigilância aérea. Enfraquecer o regime sem o derrubar é o objectivo dos que, dentro da Administração, defendem várias vagas de ataques e não apenas um "ataque punitivo" que não duraria mais de dois dias. Neste caso, os ataques visariam mais capacidades militares (Força Aérea) e unidades das Shabiha, a temida milícia do regime, acusada de abusos dos direitos humanos, e até palácios presidenciais. Os meiosEm qualquer das opções em cima da mesa, os ataques seriam lançados a partir de navios de guerra norte-americanos ou de aviões que não entrariam no espaço aéreo sírio. Neste momento, os EUA têm quatro contratorpedeiros (USS Mahan, USS Barry, USS Gravely, USS Ramage) que transportam mísseis de cruzeiro no Mediterrâneo - entre eles, levam mísseis 430 Tomahawks com um alcance de até 2400 quilómetros. O porta-aviões USS Harry S Truman deixou o Mediterrâneo no dia 18 e está no Mar Vermelho. A Força Aérea dos EUA também pode recorrer aos bombardeiros B-2 estacionados no Missouri, que podem atacar alvos no Médio Oriente com apenas uma paragem para reabastecer, e ainda a vários a F-16 espalhados em bases da região (na Jordânia, por exemplo). Os britânicos mantêm um submarino de ataque no Mediterrâneo, enquanto o porta-aviões francês Charles de Gaulle está de novo operacional, e a três dias de distância da Síria. Os franceses também têm aviões Rafale e Mirage nos Emirados Árabes Unidos. As bases dos EUA na Turquia (Incirlik e Esmirna) e a base da Força Aérea britânica em Chipre (Akrotiri) são os pontos de lançamento mais prováveis para uma ofensiva. Os objectivosNum cenário mais restrito, o objectivo será impedir Assad de voltar a usar armas químicas contra os sírios. Alguns na Casa Branca defendem que é inútil lançar uma intervenção se esta não visar dobrar o regime ao ponto de o convencer a negociar (deixando cair Assad). Ao mesmo tempo, uma acção serviria para assinalar aos iranianos (e às suas ambições nucleares) que as "linhas vermelhas" traçadas em Washington são para levar a sério. "Se alegados ataques [com armas de destruição maciça] são permitidos até em grande escala, a credibilidade de Washington vai sofrer", escreve Gayle Tzemach Lemmon, do think tank Council on Foreign Relations. Ontem, a oposição fez saber que recebeu um aviso em duas partes: o ataque vai acontecer daqui a dias; preparem-se para negociar a paz e entrar num governo de transição logo depois. "Se a Rússia acreditar que pode ser evitado um vazio de poder, vai mostrar mais interesse em conversar sobre a paz", diz a analista do Council. "Como a Casa Branca repetiu na segunda-feira, o conflito só vai acabar com uma solução política. "
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU EUA NATO
“No Brasil, a polícia acredita que o povo preto é o povo suspeito. E que ele deve ser executado”
Cineasta, activista e educadora, Rosa Miranda integra uma nova geração de realizadoras negras brasileiras que fazem do cinema independente uma arma de intervenção política e de afirmação identitária. O presente (e futuro) do Brasil está a passar por aqui. O P2 conversou com a cineasta na recta final da sua primeira tour em Portugal. (...)

“No Brasil, a polícia acredita que o povo preto é o povo suspeito. E que ele deve ser executado”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento -0.16
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Cineasta, activista e educadora, Rosa Miranda integra uma nova geração de realizadoras negras brasileiras que fazem do cinema independente uma arma de intervenção política e de afirmação identitária. O presente (e futuro) do Brasil está a passar por aqui. O P2 conversou com a cineasta na recta final da sua primeira tour em Portugal.
TEXTO: Rosa Miranda filma o Brasil que as elites do país tendem a querer apagar. O Brasil LGBTQI, o Brasil da juventude negra activista, o Brasil das tensões raciais e das opressões de género. Um Brasil que existe e resiste apesar das forças reaccionárias, que nos últimos anos têm sido em parte personificadas pelo governo do Presidente Michel Temer (“presidente golpista”, sublinha Rosa); nos últimos meses por Jair Bolsonaro, candidato de extrema-direita à presidência nas eleições de 7 Outubro. Fundadora e directora do Kbça D’Nêga Produções, colectivo militante e produtora audiovisual independente nascida em 2014 no Rio de Janeiro, Rosa Miranda é a primeira mulher negra formada na licenciatura em Cinema & Audiovisual da Universidade Federal Fluminense (UFF). A cineasta, educadora e curadora do Cineclube Atlântico Negro passou por Portugal entre Julho e Agosto numa tour de 19 dias, com paragens no Avanca Film Festival, Porto e Lisboa, para apresentar o seu último documentário, Privilégios (2018), participar em debates, orientar uma masterclass e dar a conhecer os filmes das realizadoras negras brasileiras Leila Xavier, Marise Urbano, Milena Manfredini e Ethel Oliveira. Encontrámo-nos com ela dois dias depois da sessão esgotada na Casa do Brasil, em Lisboa. Conta-nos como conheceu a vereadora Marielle Franco, meses antes de ter sido assassinada no Rio de Janeiro. As palavras de Rosa têm muita força, muita urgência. Muita vida e muita visão. Faz questão de sublinhar a importância do sistema de quotas raciais introduzido pelo governo de Lula da Silva, medida que permitiu aumentar o acesso às universidades de estudantes negros, pardos e indígenas de classes baixas. Num país onde há “um genocídio do povo preto”, diz Rosa, a educação é sinónimo de “ascensão social” e empoderamento. Também por isso está a fazer um mestrado em cinema. Quer ser a primeira professora negra do Instituto de Arte e Comunicação Social da UFF. Em breve começa a preparar o seu novo filme, uma curta-metragem de ficção inspirada na mãe e na avó e com uma equipa só de mulheres. Porque a representatividade e a mudança passam por quem está “por trás da câmara, não apenas à frente dela”. Tudo conta. “É preciso ter mulheres negras na direcção dos filmes, mas também é preciso ter um olhar sobre a nossa oralidade e sobre a fotografia do negro – a luz do cinema está pensada para o corpo branco, as próprias câmaras são calibradas pelo corpo branco”, nota Rosa Miranda. “No Privilégios inverti essa lógica: usei uma luz feita especialmente para os corpos negros serem valorizados. ”Como começou a estudar cinema?Fiz um curso numa favela, no Morro da Babilônia, chamado Viajando na Telinha, de 2005 a 2006. Aí comecei a entender como era o cinema, mas ainda o cinema hegemónico, norte-americano e europeu, mais voltado para o mainstream. O curso era de graça, todos os dias das 18h às 22h. Eu saía do trabalho às 18h, chegava lá entre as 19h e as 20h. Comecei a ficar muito cansada e afastei-me do cinema até 2008, quando faço o vestibular [prova de acesso ao ensino superior] para o Estácio, uma universidade privada no Rio de Janeiro. Consegui uma bolsa para o primeiro ano. No segundo ficou complicado, tinha de pagar. Mas continuei a estudar e a trabalhar. Entretanto descobri a licenciatura em Cinema & Audiovisual na Universidade Federal Fluminense [UFF], que é pública. Na época ainda não havia quotas raciais e consegui entrar. Sou a primeira mulher negra formada nessa licenciatura. A licenciatura era muito focada na epistemologia branca? Livros, filmes, professores…Sim, tudo. Mesmo hoje, o instituto de que esse curso faz parte [Instituto de Arte e Comunicação Social da UFF] não tem professores negros. E no que toca aos alunos, mesmo com as quotas raciais ainda é um campus muito branco. Existe uma enorme quantidade de fraude nas quotas. Pessoas que dizem ser negras mas não são. Como é que pessoas brancas passam por negras?É através de uma autodeclaração, por escrito. A pessoa faz uma marcação. Depois, dentro das secretarias, não se confere, não se pergunta ‘você é preto, mesmo?’. Agora, na UFF, foi constituída uma comissão para averiguar estes casos de pedido de quota racial. Fizeram-se entrevistas presenciais e gravadas com as pessoas que se declararam negras e essas pessoas faziam coisas absurdas para passarem por negras. Por exemplo?Bronzeamento artificial antes da entrevista. As entrevistas eram previamente marcadas. As pessoas iam bronzeadas, faziam blackface, entrançavam o cabelo, faziam rastas. Na hora em que tinham de afirmar ‘eu sou negro’ para a câmara, não saía. Essas fraudes acontecem também noutras universidades, em todo o Brasil?Em todo o Brasil. Fico enraivecida. Isto é um crime e tem de ser encarado como um crime. As pessoas têm de entender que [o sistema de quotas raciais] é uma reparação histórica em relação a um povo a quem sempre foi negado o direito de chegar às universidades, incluindo com políticas públicas. Chegou a ser proibido o negro entrar na universidade e ainda hoje entrar lá é um tabu. Isso vem de um discurso racista enraizado e legitimado politicamente de que as pessoas negras e indígenas têm um lugar secundário na sociedade?Tem tudo a ver com a construção de nação do Brasil a partir da negação do negro. A total exclusão de uma população que é maioritária no país. Quando essa maioria não consegue ter acesso a dinheiro, a única possibilidade de ter ascensão social é através da educação. Quais são hoje as expectativas de um jovem negro favelado no Rio Janeiro? Ou vai para jogador de futebol ou vai para o tráfico. E as meninas? Vão para o tráfico também, ou tentam uma carreira como modelo, ou vão para a prostituição. Precisam de dinheiro, a fome não espera. Estas pessoas têm a pior educação, as piores escolas; não têm acesso a teatros, a museus. As quotas são uma das formas de essas pessoas ascenderem socialmente. Não se pode, portanto, falar em meritocracia. Pegando nas palavras da escritora brasileira Conceição Evaristo numa entrevista à BBC Brasil: “O discurso da meritocracia e os exemplos de pessoas negras que se acabam constituindo uma excepção são perigosos. Porque cria-se esse imaginário de que se a pessoa estudar, trabalhar, se esforçar, ela consegue. Isso é mentira. ”É mentira porque a corrida é desigual logo à partida. E nem todo o preto tem um amigo com dinheiro para investir na ideia dele. Nem todo o preto tem uma pessoa que vai dizer “tu vais conseguir”. Pelo contrário, as pessoas passam o tempo todo a dizer que não vais conseguir. É preciso uma força sobre-humana para acreditarmos em nós mesmos. Como é que conseguiu?Com muito post-it. Tenho vários post-its a dizer “você é capaz”, “você é linda”, “você é maravilhosa”. Na minha casa, no espelho, na cozinha. E assim sigo o meu dia. Cada “não” que ouço vai ser um “sim”. Eu sei da minha capacidade e quero que as pessoas negras saibam da capacidade delas. Trouxe várias mulheres negras a Portugal através dos seus filmes porque elas são capazes, e muitas outras também o são. Foi também por isso que criou o Kbça D’Nêga?O Kbça é um colectivo que surgiu a partir de um site que eu ia fazer com portefólio meu. Chamei alguns amigos para fazer uma sessão de fotos numa tarde de domingo. Aí surgiu a ideia de fazer um filme. Avançámos. Mais tarde, em 2016, descobri através da comunicação social que um amigo meu, Diego Vieira Machado, tinha sido assassinado dentro do campus da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro]. Fiz então o filme Da Minha Pele [2016], em homenagem ao Diego. O filme estourou, foi para vários festivais de cinema no Brasil. E foi também nesse momento que o Kbça estourou. Nesse processo, um amigo meu, que também integra o Kbça, descobre que tem sida. 21 anos, negro, tinha acabado de conseguir entrar na universidade. Eu queria registá-lo, eternizá-lo. Então fizemos o Bixa Preta [2016]. Seguiram-se outros filmes, sempre numa produção colectiva feita no amor. Não recebemos dinheiro. Tendo em conta a falta de recursos financeiros e as barreiras raciais, de género e de classe, quais são as estratégias desta nova geração de realizadoras negras brasileiras para fazer o seu cinema e para o divulgar?As estratégias são as produções colectivas. E associações como a APAN [Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro], que mobiliza e divulga eventos sobre cinema negro, bem como os cineclubes. Mas ainda há resistência por parte das curadorias em apostar em filmes negros. No Kbça a distribuição é feita através de inscrições em festivais, mas é complicado. É um trabalho de formiguinha. Fazer estes filmes é uma questão de sobrevivência?Sim. É necessário. Não é mais permitido que estes assuntos não sejam debatidos. E quando chegamos a um determinado patamar, outras pessoas negras pensam: “Se ela conseguiu, eu também sou capaz”. A representatividade. É extremamente importante. Se não temos uma referência fica ainda mais difícil conseguir. Hoje sei que temos, pelo menos, mais de 30 realizadoras negras no Brasil, mas quando eu comecei não tinha referências. Elas existem, mas não lhes é dada visibilidade. E quando nós reivindicamos um lugar, é vitimização, ou é porque somos combativas – outro estereótipo da mulher negra. A mulher negra tem de ser guerreira, tem de aguentar qualquer coisa. Se aguenta qualquer coisa, aguenta até partos sem anestesia. Esse tipo de violência reprodutiva contra mulheres negras ainda é recorrente no Brasil?É. As mulheres negras têm prescrição para receber menos anestesia porque supostamente são mais fortes. É este tipo de mitos eugenistas que sustentam o genocídio do povo negro no Brasil. A maioria das mulheres que morrem durante o aborto são mulheres pretas – as mulheres ricas e brancas vão fazer numa clínica particular, em segurança. As mulheres vítimas de maus-tratos durante o parto são sobretudo mulheres negras. Só na minha família conto, pelo menos, cinco casos de mulheres que morreram durante o parto. Sei de alguns casos que estão a acontecer agora, em São Paulo, de mulheres que chegam ao hospital para ter o filho e depois laqueiam-lhes as trompas. Quem são essas mulheres? São mulheres analfabetas, de populações muito pobres. Mandam assinar um documento sem elas saberem ler, no meio da dor do parto. Esse genocídio de que fala estende-se também ao sector da política, como vimos com o caso do assassinato da vereadora Marielle Franco, em Março. A Marielle… [suspiro profundo]. Lutamos tanto para ter alguém a representar-nos politicamente e essa pessoa é arrasada. Eu conheci a Marielle em Novembro, quando estava a fazer assistência de câmara do filme As Filhas de Lavadeiras. Depois, em Março, vejo que ela levou quatro tiros na cabeça. E até hoje os culpados ainda não foram presos. Toda a gente sabe que foi um crime político. O Brasil é o país onde mais se mata pessoas LGBT. É o país onde mais se mata pretos – a cada uma hora são assassinados três jovens negros. Quando soube do assassinato da Marielle fiquei uma semana sem sair de casa, com medo. Não consegui ir às manifestações. Às vezes parece que não adianta ter um post-it a dizer que você é maravilhosa quando a pessoa que representava tudo isso é assassinada. E quando no dia seguinte à morte dela é executada uma criança de um ano. E quando dois dias depois é assassinada mais uma jovem negra, de 20 e poucos anos, numa favela onde há helicópteros a atirar balas lá de cima. Ainda em Junho, Marcos Vinícius, um menino de 14 anos, foi baleado na Maré [favela no Rio de Janeiro] quando ia para a escola, durante uma operação da polícia com o apoio do Exército. O que é que essa criança fez de mal? Não é bala perdida, é bala certa. No Brasil, a polícia ainda acredita que o povo preto é o povo suspeito. E que ele deve ser executado. A maioria da população brasileira encarcerada é negra. O feminicídio de mulheres negras aumentou, enquanto o das mulheres brancas diminuiu. Como é que a gente consegue respirar? É um desespero. Sente que ser activista negra no Brasil é estar sempre à beira da morte?Mas também com esperança de que algo vai mudar. Eu não quero ser mártir. Ninguém quer. Só queremos que essa mudança aconteça o mais rápido possível. Eu tento fazer as pessoas reflectirem através da minha arte. Não sei se vou conseguir, mas estou a tentar. E quando vejo uma Casa do Brasil [em Lisboa] lotada, sei que estou no caminho certo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Nota algum progresso na consciencialização da população branca brasileira em relação à violência sobre as populações negras e indígenas?Podem ter consciência, mas poucas pessoas brancas falam sobre isso. Têm dado algumas aberturas, mas, quando mexe com o privilégio delas, é difícil. É a questão da branquitude crítica, que critica esse sistema mas não revê o seu. E ainda há empresas que vendem esse país como um país branco, quando não é. Relativamente às eleições que se aproximam: como explica, num país maioritariamente negro, que um político de extrema-direita e com um discurso racista como Jair Bolsonaro lidere as intenções de voto na primeira volta?No Brasil existe uma junção entre a religião evangélica e a política. A bancada evangélica está a dominar, e muitos deles são grandes empresários também, o que prejudica ainda mais o acesso a informação independente nos media. Vemos um crescimento absurdo dessas igrejas. Muita da população que frequenta esses espaços é negra e não percebe o quão racista é essa religião. E há também a questão da milícia, que ameaça subliminarmente ou coage os moradores de favelas para votar em determinados candidatos. “Vou dar-te 50 reais para votares em mim”. Ou “se votares em mim dou emprego ao teu filho”. As pessoas são tão pobres que aceitam, por uma questão de sobrevivência. Henrique Vieira é um pastor evangélico de esquerda, militante do PSOL, que se assume como feminista, anti-racista, activista pelos direitos LGBT e pela legalização do aborto. Segundo ele, se a esquerda não cultivar o diálogo com os evangélicos, não conseguirá ter um projecto popular. Concorda?Estive numa conferência com Henrique Vieira e acho-o muito coerente. A sua figura é importante neste momento em que há tantos extremos. Porém, acredito que religião e política não se devem misturar, já que o Estado brasileiro é laico. [Como] o Henrique pode haver outros, mas não se posicionam [politicamente]. Como dizia Martin Luther King: “O que me preocupa não é o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem carácter, dos sem ética. . . O que me preocupa é o silêncio dos bons. ”
REFERÊNCIAS:
Catarina Martins: Metro e meio de contestação, teatro e garra
Há quatro anos, António Costa e Catarina Martins não eram líderes partidários. Passos Coelho prometia não cortar salários. Paulo Portas foi a votos sozinho. Jerónimo de Sousa foi a Havana falar com Raúl Castro. Este é o primeiro artigo da série "Quatro anos que mudaram a vida deles (e a nossa)." (...)

Catarina Martins: Metro e meio de contestação, teatro e garra
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento -0.16
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há quatro anos, António Costa e Catarina Martins não eram líderes partidários. Passos Coelho prometia não cortar salários. Paulo Portas foi a votos sozinho. Jerónimo de Sousa foi a Havana falar com Raúl Castro. Este é o primeiro artigo da série "Quatro anos que mudaram a vida deles (e a nossa)."
TEXTO: "O habitante do número 667 daquela rua era um homem absolutamente normal: pai de família, bom profissional, empreendedor. Apenas uma coisa perturbava o doce correr dos seus dias: a estranheza que emanava da casa ao lado, o aspecto bizarro e as movimentações suspeitas do seu vizinho. Este vizinho do lado transforma-se lentamente na personificação de todo o mal. ” A sinopse da peça, de que Catarina Martins é co-autora, foi à cena no Rivoli, em 2003, mas diz muito sobre o que se passa hoje. A porta-voz do Bloco de Esquerda, que também a interpretou e encenou na companhia Visões Úteis, escolhe-a para personificar os últimos quatro anos políticos em Portugal e na Europa. “O pai passa a vida a olhar para a janela e a fazer especulações; e com medo do que há-de vir lá de fora deixa deteriorar completamente a vida dentro de casa e desfazer-se a família. O medo contamina todas as decisões, normalmente as piores decisões. Isso lembra a forma como a Europa se está a comportar”, descreve Catarina. Deixou o teatro em 2009, quando foi eleita pela primeira vez deputada do Bloco, mas é actriz que ainda se sente. A passagem entre os dois mundos não foi assim tão estranha, afinal, “teatro é política”. “Há alguma coisa mais política do que as pessoas estarem juntas numa sala a ver uma parte ou uma leitura do que é a vida colectiva, a reflectir sobre o momento de uma forma colectiva? Não há nada mais político do que isso!” E a Visões Úteis, que ajudou a fundar em 1994, no Porto, é uma companhia com uma “visão política e de esquerda e ‘dos de baixo’, tanto pelo tipo de reflexão e de autores, como pelo tipo de trabalho” — em teatros mas também no espaço público, incluindo aldeias do interior transmontano, do Alentejo ou das Beiras, prisões, bairros sociais, mas também na Galiza, descreve Catarina. No palco como na política, por muita companhia e generosidade que se tenha em volta, “há um momento em que se está sozinha frente à responsabilidade”. Foi o teatro que a levou para a política formal. E demorou quatro vezes mais tempo a tornar-se militante do que a chegar à liderança do partido. O espírito de contestação de Catarina Martins já vinha desde a malograda PGA, a prova geral de acesso obrigatória para o 12. º ano no arranque da década de 90. Continuou na luta contra as propinas, em Coimbra; acompanhou-a até ao Porto, onde fundou uma associação teatral com forte pendor social. Andou perto do PSR, mas nada de orgânico, e aproximou-se do Bloco de Esquerda nos primórdios do partido. Lembra-se de enviar por email, em 2002, uma ficha de inscrição de militante no Bloco, que terá acabado perdida no buraco sem fundo em que a Internet parece às vezes transformar-se. E nunca mais se preocupou com isso. Nem mesmo quando em 2009 redigiu boa parte do capítulo sobre cultura do programa eleitoral bloquista. “Só não era militante por acidente”, desvaloriza, encolhendo os ombros. Em 2010, já com o cartão de deputada do BE à Assembleia da República no bolso, decide que não faz sentido continuar como independente, sem fazer parte da discussão política em estruturas como a comissão política ou a mesa nacional, quando a sua intervenção era já tamanha. E alistou-se. Apenas dois anos depois era indicada por Francisco Louçã, o carismático líder bloquista, para lhe suceder numa coordenação paritária com João Semedo. Agora, integra a comissão permanente (de seis dirigentes) e é a porta-voz do partido. Contas feitas, está à frente do partido há três anos — talvez os mais complicados da vida do Bloco. Mas já lá vamos. Lá por casa, em Aveiro, os corredores sempre respiraram política. À esquerda, bem à esquerda. O pai e o irmão até estiveram na fundação do Bloco, mas Catarina garante que não foi isso que a influenciou — aliás, nem se chegaram a cruzar no partido porque quando ela entrou o pai já não estava no activo. A jovem estudante que aos 18 anos seguiu para Direito em Coimbra e no 3. º ano se perdeu de amores pelo teatro diz ter feito sozinha as suas opções políticas. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas — o ideal para seguir dramaturgia —, fez mestrado em Linguística e tem um doutoramento suspenso (falta a tese) sobre Linguagem e Envelhecimento. Quem a levou para o partido foi o sociólogo e então deputado João Teixeira Lopes. Já a conhecia das andanças culturais no Porto quando a convidou para número dois da sua lista à autarquia portuense, em 2005. Não foi eleito, mas a ligação não mais se quebrou. “Espero que o marido e as filhas um dia me perdoem por a ter roubado para a política”, ri-se o antigo deputado. Conhecia Catarina da Visões Úteis mas também da Plateia — Associação de Profissionais das Artes Cénicas, onde ela tinha funções directivas. Foi essa polivalência que o impressionou. “Fez-se um click quando li algumas peças que escreveu. Porque ela era dramaturga, actriz, encenadora, produtora cultural e gestora. É muito difícil encontrar alguém que faça a ponte entre a parte programática da gestão e a criatividade e tenha a capacidade de liderança que ela mostrava. Quem está nos activismos sabe que estes são perfis especializados e que nem sempre comunicam entre si. ”Desafiou-a para a lista do BE pelo Porto em 2009, atrás de João Semedo e José Soeiro, dizendo que podia partilhar a vida entre Lisboa e Porto. Catarina diz rindo que “sabia que estava a ser enganada” e demorou apenas um dia a acertar a resposta com a família. Foi eleita e teve de mudar parte da sua vida para Lisboa — ela, o marido e as duas filhas (Pedro Carreira continua a ter trabalho no Porto e a família anda constantemente em viagem, “temos sempre o Alfa Pendular”). Deixou a gerência e passou para a sogra a quota maioritária de uma sociedade de turismo rural em Gaia (ficou com apenas 4%) e encerrou a actividade como actriz. No Parlamento, acompanhava sobretudo as áreas sociais, culturais e educação. O que se seguiu foi um percurso “rápido mas natural”, considera Teixeira Lopes. “Nunca teve nenhum tipo de apoio aparelhístico nem apadrinhamento. Impôs-se pelo seu talento e trabalho. ”Os últimos quatro anos foram os mais atribulados na curta vida de década e meia do Bloco de Esquerda. Depois do máximo histórico de 16 deputados em 2009, as legislativas antecipadas de Junho de 2011 foram um desastre, elegendo apenas oito. Não conseguiram chegar ao Parlamento nomes fortes como José Manuel Pureza, José Gusmão, Helena Pinto (que entraria para substituir Louçã) ou José Soeiro (o terceiro pelo Porto, que substituiu depois João Semedo). O partido teve “os votos que o povo entendeu que merecia”, assumiu Francisco Louçã. A sua demissão não estava em cima da mesa, assegurou. Acabaria por sair um ano e três meses depois, já com a sucessão pensada: uma coordenação paritária de Semedo e Martins — uma solução, diz Louçã à Revista 2, não de sua autoria, mas de Miguel Portas, que importou um modelo que funciona na Alemanha e na Suécia para aligeirar a carga pesada que tem a figuração única na liderança de um partido e acentuar a participação igual de homens e mulheres. Ela era dramaturga, actriz, encenadora, produtora cultural e gestora. É muito difícil encontrar alguém que faça a ponte entre a parte programática da gestão e a criatividade e tenha a capacidade de liderança que ela mostravaA expressão vai integrar a lista de termos endógenos do Dicionário do Bloco de Esquerda que será lançado dentro de duas semanas — depois, seguir-se-ão os dicionários dos outros partidos. “Tem uma entrada para ‘coordenação paritária’, com o historial do processo no Bloco, explicando que surgiu com o intuito de estabelecer alguma novidade no panorama político nacional, mas também admite que não fomos bem-sucedidos, embora na teoria tenha sido um bom modelo”, conta João Teixeira Lopes, que coordena a obra com José Soeiro. Foi uma “tentativa de modernizar a política” que não resultou, admite Louçã e espeta a agulha: às críticas internas e externas, os bloquistas respondem com as “vistas curtas” que Portugal ainda tem nestes assuntos. Houve um problema comunicacional, reconhece a eurodeputada Marisa Matias; a envolvente política não ajudou, acrescenta Fernando Rosas. A que se somou a doença de João Semedo, que o obrigaria a retirar-se do Parlamento. A ideia de serem precisas duas pessoas para substituir Louçã dava uma imagem de incompetência. Em Novembro de 2012, Catarina e João não receberam uma herança fácil. Louçã tinha uma liderança “afirmada e carismática”, reconhece Rosas. E os tempos eram de “derrota para as esquerdas na Europa, com a imposição de programas de austeridade em vários países, e um refluxo social e político das posições antiausteridade que se reflectiram mais no Bloco do que no PCP”. Houve uma “relativa incapacidade de reagir”, admite o historiador e fundador do BE. Mas era uma mudança de liderança necessária — “Os partidos de esquerda não podem passar a vida a dizer que é preciso mudar e depois não o fazerem. Mas ninguém abandona as causas nem o partido”, assegura Rosas. O processo da sucessão levantou celeuma entre as várias facções que compõem o Bloco (PSR, Política XXI e UDP). Ainda antes, em Junho de 2011, Rui Tavares e Louçã desentenderam-se nas redes sociais por causa dos nomes dos fundadores do Bloco — o eurodeputado deixou a delegação do partido no Parlamento Europeu e mudou-se para os Verdes. E em Abril de 2012 o partido ficou órfão de um dos fundadores, com a morte de Miguel Portas. O “caminho das pedras” ficou ainda mais difícil quando o Bloco perdeu também força nas autárquicas e mais ainda nas europeias de 2014, elegendo apenas Marisa Matias. Além de Tavares, foram saindo do partido nomes como Joana Amaral Dias, Ana Drago, Daniel Oliveira ou Gil Garcia. João Semedo resume: “Desde o desaire eleitoral de 2011, o Bloco esteve debaixo de fogo dos adversários, que não perderam a oportunidade de tentar apagar-nos do mapa político, promover a divisão e estimular a formação de outras forças para enfraquecer o campo da esquerda. Tudo serviu para atacar o Bloco. ” Tavares e os quatro últimos envolveram-se na criação de movimentos e partidos à esquerda, parte deles defendia um rumo de aproximação do Bloco ao PS, que Catarina sempre recusou — “Não fazemos parte do pântano, do rotativismo. Nascemos para romper o bipartidarismo. ”Este é o reduto do Bloco, aponta precisamente o marketeer Pedro Bidarra. “Ninguém espera que o BE vá governar; é um partido de contestação. Catarina Martins é uma óptima actriz que veste a personagem dos movimentos e com ela o Bloco ainda triunfou mais nessa linha do teatro da contestação. Ela encarna muito bem essa esquerda que só luta: tem a energia, o espírito e o histerismo contestatário. Só lhe falta a boina basca. ” Bidarra realça que os movimentos se fazem “à volta de um líder e um grupo de fanáticos iniciais que traçam uma linha na areia para dizer ‘nós somos isto e nunca vamos passar para o lado de lá’”. Por isso, quando apareceram no Bloco militantes a defender uma aproximação ao PS, foram apontados como os traidores à matriz original do Bloco. E a solução foi a saída, acrescenta o especialista em marketing. Sobre as saídas de alguns militantes, Catarina Martins não se alonga. Diz não ter privado com Rui Tavares, mas era próxima de Ana Drago. Profissionalmente, entenda-se, porque o seu círculo de amizades “não se confunde com o Bloco” nem estimula as relações pessoais no partido. Não se zangaram, mas afastaram-se. De quem se aproximou foi de Marisa Matias, que antes fora crítica da coordenação dupla. Não fazem vida social nem trocam prendas, mas partilham ideias sobre livros. Olhando para os últimos quatro anos, Louçã encontra explicação para as dificuldades do Bloco não só interna como externamente. “Foram tempos terríveis para Portugal, ficámos numa situação de grande vulnerabilidade social e com um sistema político incapaz para dar respostas aos problemas”, que acentuou a desmoralização e aumentou a divisão à esquerda, numa pulverização de movimentos que não ultrapassarão o 1% nas eleições. Apesar de tudo, Semedo continua a acreditar que a coordenação a dois foi uma decisão acertada, tal como também o foi, em Novembro de 2014, na última convenção, mudar o modelo de representação. Perante o impasse com uma votação empatada entre a sua lista e a de Pedro Filipe Soares, o médico propôs o modelo que está em vigor: uma nova direcção com seis nomes, representando todas as sensibilidades, Catarina como porta-voz e Pedro Filipe Soares na presidência da bancada. Paz, finalmente?“Decisões acertadas não quer dizer que não tenham tido ou trazido problemas. Mas tudo isso é passado, o saldo é francamente positivo: o Bloco tem uma direcção eficaz, unida e muito activa. E a Catarina Martins, vencendo o marialvismo que há na política portuguesa, tem afirmado muito bem o projecto e a proposta do Bloco, seja sobre o país, seja sobre a política da União Europeia”, realça João Semedo. Rosas, Louçã, Marisa Matias e Teixeira Lopes são unânimes nos elogios rasgados a Catarina Martins e no que representa para a recuperação do Bloco. Dela dizem que tem aprendido e afinado bem o discurso, é clara, prepara-se bem e tem nervos de aço. Prova disso foi o desgaste e a pressão de que Catarina e Semedo foram alvo durante a liderança paritária. E na passagem para o novo modelo, como porta-voz, ela foi capaz de “sarar algumas feridas”, “estabelecer pontes e comunicação entre as várias sensibilidades do Bloco”, unir os dirigentes, apresentando-se como alguém que dialoga com todos, mas que tem firmeza e que “tem uma visão do campo de esquerda”. Isso já se nota nas sondagens, com o partido numa tendência sistemática de subida, destacam os bloquistas. Louçã realça a contribuição de Catarina para a emergência de novos dirigentes e a ajuda da “rock star” Mariana Mortágua. “Foi tudo bom, foi tudo perfeito? Claro que não, mas julgo que o Bloco esteve muito bem naquilo que conta: defender as pessoas da austeridade e da pobreza, combater os credores, os mercados, a troika e o Governo”, resume Semedo. A Catarina Martins, vencendo o marialvismo que há na política portuguesa, tem afirmado muito bem o projecto e a proposta do BlocoCom um Bloco em 2015 tão diferente do de 2011, não foram só os nomes que foram mudando. O pensamento do partido também. Se Catarina Martins não defende a saída do euro e prefere centrar a questão na renegociação da dívida, Louçã defende que Portugal “não tem alternativa que não seja preparar-se sistemática e competentemente” para a saída da moeda única. Porque “o tempo corre contra nós” e se a Grécia tivesse tomado essa iniciativa há meio ano teria mais possibilidades de enfrentar Angela Merkel. O Bloco sempre olhou com enlevo para o percurso do Syriza, é o seu “partido irmão”, tomou-lhe a alegria das vitórias e as dores das derrotas. Enchia os discursos dentro e fora do Parlamento com a coragem helénica quando Atenas se rebelou contra o plano de austeridade no dia a seguir à vitória de Alexis Tsipras. Afinal, havia outro caminho, gritaram insistentemente Catarina, Marisa e outros bloquistas que foram repetentes em manifestações de apoio ao Syriza na Grécia. Louçã concorda que “não procurar uma aliança [do Bloco ao Syriza] era uma forma de cobardia política que não tem sentido na Europa, porque são precisas ideias novas à esquerda, soluções europeias”, e subscreve a aposta do Bloco em como a Grécia poderia ajudar Portugal a enfrentar a questão da dívida, servindo de candeia. Ainda assim, Louçã e Semedo, contidos, defendem que a posição bloquista devia ter sido “menos efusiva”, sobretudo no referendo. O fundador do Bloco e a porta-voz admitem a desilusão quando Tsipras, mesmo depois do redondo “não”, aceitou o novo resgate em troca de mais austeridade. Entre os bloquistas, recusa-se a ideia de “capitulação”; Marisa diz que a opção era entre a peste e a fome e que o Syriza subestimou a vontade real da Europa de não negociar. Agora que boa parte da chama se apagou em Atenas e até Tsipras se demitiu, o megafone no Bloco foi-se calando. Catarina diz que não gostou que o chefe do Governo grego aceitasse o resgate e muito menos que se demitisse. “O Syriza foi confiante demais. Devemos ter prudência”, disse à Revista 2 poucas horas depois de se saber da demissão. Sem as bandeiras do casamento entre pessoas do mesmo sexo ou o aborto e com a co-adopção metida na gaveta pela direita, o Bloco conseguiu ainda assim algumas vitórias. Catarina, Marisa e Semedo lembram os pedidos de inconstitucionalidade de normas dos orçamentos que o tribunal foi aprovando, que o Bloco começou sozinho arregimentando alguns deputados socialistas. Mas também houve, por sua iniciativa, avanços na criminalização da violência doméstica, trabalho reconhecido em comissões de inquérito como as dos submarinos, PPP [parcerias público-privadas], estaleiros de Viana e sobretudo do GES/BES. Apresentou uma moção de censura e votou a favor das outras cinco. E o que foi o pior? “Não conseguir travar a austeridade. ” Marisa Matias recusa a perda de bandeiras e de espaço de influência do partido. “O Bloco foi o partido que se empenhou fortemente em todos os espaços de luta contra a austeridade, a troika e o Governo PSD-CDS, sem qualquer sectarismo ou controleirismo. Estivemos na Auditoria Cidadã à Dívida, no Congresso das Alternativas, nas gigantescas manifestações do Que se Lixe a Troika, nas Aulas Magnas, nas greves gerais e outras lutas sindicais, nos movimentos sociais e populares contra as privatizações, os ataques à escola pública e ao SNS [Sistema Nacional de Saúde], contra os cortes nos salários, nas reformas e nos apoios sociais. O Bloco esteve na rua e no Parlamento, tanto na luta como na proposta alternativa, no protesto mas também no projecto de esquerda”, descreve João Semedo. O trabalho parlamentar é planeado na reunião semanal dos coordenadores e deputados; as intervenções de Catarina Martins no plenário são trabalhadas com os assessores Catarina Oliveira e Pedro Sales. Trocam-se ideias, informações sobre os temas quentes e os que o Bloco suscita. E tenta pensar-se fora da caixa, com acções diferentes, como quando a bloquista criticou o executivo por governar constantemente contra a Constituição e, em pleno debate quinzenal, ofereceu a Passos Coelho uma edição em miniatura da Lei Fundamental que o Parlamento estava a oferecer aos alunos que o visitavam. Para ver se o primeiro-ministro finalmente a lia e compreendia, justifica Catarina. Ou quando os deputados bloquistas, há semanas, empunharam cartazes de apoio à Grécia. Mas a linguagem forte, crítica e directa é preparada apenas pela porta-voz. Admite que escolhe um tipo de discurso e cadência da linguagem consoante a situação — e os debates quinzenais, transmitidos em directo na rádio e TV, alvo de análise pelos comentadores e com repetição certa nos ecrãs, valem pelas frases bombásticas, pelos dedos em riste, pelos trocadilhos que agradam ao povo. Já chamou mentiroso a Passos Coelho sob diversas formas. Uma delas provocou celeuma. Disse-lhe que a sua palavra não valia nada e colocou-lhe uma questão. Na volta, o primeiro-ministro disse-lhe que se o que dizia não valia nada então não lhe respondia. Os deputados bloquistas protestaram, abandonaram a sala e pediram uma conferência de líderes especial sobre a condução dos debates. A presidente do Parlamento rejeitou. Sorriso largo, ar de miúda num corpo que faz 42 anos de amanhã a uma semana. Com uns olhos verdes brilhantes que a escassa maquilhagem diária não realça, é apenas nas idas à televisão que Catarina Martins tem ido variando o estilo. Ora um cabelo mais armado que lhe dá um ar mais conservador, ora um penteado escorrido que lhe dá uma aparência moderna. No gabinete da caracterização dos canais de televisão, lá vai mudando o estilo, mas depois de sair do ar Catarina Martins mete os dedos nos cabelos, vira a cabeça para baixo, e lá os vai puxando, amachucando, soltando a laca para tentar voltar ao seu estilo descontraído. Das mãos da maquilhadora, porém, sai sempre com os olhos verdes realçados a lápis e rímel. Apesar da sua aparente despreocupação com a aparência, uma vista de olhos pelas fotografias revela, por exemplo, que passou a pintar os cabelos brancos que já pontuavam sobretudo a franja, e deixou de aparecer em público com um pequeno rabo-de-cavalo apanhado de forma descuidada. Mas manteve a regra de acompanhar a blusa com um colar de artesanato. Vestidos ou saias são peças raras, aparece de botas de cano alto no Inverno, e no Verão permite-se sandálias de salto largo. Pensar que pode ser questionada sobre a sua vida pessoal deixa-a de pé atrás. Tem uma actividade profícua nas redes sociais, sobretudo no Twitter, Facebook e Instagram. Por ali coloca fotos da sua vida extra-Bloco, sempre sem identificar as duas filhas, de 13 e 9 anos, outras pessoas com quem esteja ou até os locais. Também aparece Carlier, uma das personagens de A Frente do Progresso, de Joseph Conrad, que Catarina traduziu e adaptou para a Visões Úteis — e de que o marido, Pedro Carreira, foi um dos intérpretes. O pequeno boneco recortado em papel ora se encosta a um ferro de engomar antigo ou a um avião de Lego, ora acompanha a caveira do esqueleto Jeremias, a quem já falta um dente. Nas férias, publicava imagens de uma lagoa, um pinhal, uma praia, um castelo, e a resposta a quem perguntava onde era acabava por ser evasiva. Há também imagens das duas gatas — a Gema adora colares como a dona — e até uma de Catarina a pintar um portão de ferro trabalhado, junto a um muro de granito, no último dia de férias deste ano, antes da maratona de comícios nocturnos no Algarve nestas duas semanas. Terá sido no Sabugal, a terra do marido. E fotografou um livro que levou para férias: La Coca, de Rentes de Carvalho — dono de uma escrita que é em simultâneo simples e muito densa, justifica. As filhas já têm noção do trabalho da mãe. Não falam muito do assunto, mas isso não significa que estejam distraídas. Há tempos, a mais velha ralhou com a mãe porque num debate com Passos Coelho falou em tudo menos nos exames que estavam a decorrer e que puseram de pantanas as rotinas dos alunos. Catarina Martins tenta compensar de manhã as chegadas tardias a casa: é ela quem as levanta, tomam o pequeno-almoço juntas e leva-as à escola. E se os fins-de-semana com o partido se acumulam, o calendário na parede da sede do Bloco, na Rua da Palma, ao Martim Moniz, passa a ter uns dias a vermelho à frente do seu nome — e são intocáveis. Há pouco tempo criaram uma rotina: pais e filhas escolhem à vez um filme. Os primeiros escolhem obras antigas como O Feiticeiro de Oz original ou Roger Rabbit; elas iniciaram-nos nos Mínimos e nos musicais infantis como Annie (a nova versão). Na televisão vê informação e séries, como se percebeu em Fevereiro num debate quinzenal em que se referiu à série dinamarquesa Borgen — que retrata um governo de coligação de três partidos e um quarto que os apoia no Parlamento, um exemplo extremo de cordialidade governativa, portanto. Catarina pretendia aconselhar Passos a escolher melhor os aliados de Portugal na Europa. O calendário à frente do Bloco secou o tempo para as artes e as viagens. É quando se lhe pede que recorde uma última “saída” que percebe que foi ao teatro pela última vez em Abril para ver O Fim das Especialidades, encenado por Fernando Mora Ramos. Também recorda com agrado O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão, pelo Teatro Meridional, no ano passado. Quase todas as manhãs coloca nas redes sociais um “bom dia” acompanhado por uma música, uma fotografia ou a imagem de um quadro. Guarda as críticas políticas para quando “linka” alguma notícia da TV ou imprensa ou sobre as actividades do Bloco. Nas páginas do Facebook ou no Twitter estão também fotos suas em comícios, arruadas, congressos, conferências, visitas a hospitais, mercados, pescadores, e também há ligações para vídeos de entrevistas nos vários canais de televisão, ou reportagens como as realizadas em Atenas. Analisando o perfil comunicacional de Catarina Martins, o marketeer Carlos Coelho faz uma analogia com a gestão de uma marca. Transforma as iniciais da deputada em “Cara de Mãe”. “É uma actriz política a desempenhar o papel de mãe de um partido que ficou sem pai. É um C de colectivo, tem um papel difícil de cara agregadora, desbloqueadora dos conflitos, e com um estilo executive freak: ora maternal, ora acutilante, mas de uma forma doce. ” Coelho considera que ela “tem muito o sentido da performance, ao contrário do radicalismo de Louçã. Sabe que importa tanto o que diz como a forma como o diz. Ela é uma esquerda serena, intelectualmente honesta, uma marca mais madura que Louçã (que era muito radical na forma), mas mais contemporânea que João Semedo (que é mais ‘jurássico’)”. Em comparação com 2011, “está um pouco menos freak, mais madura, mais organizada no seu pensamento e na forma como se veste. Sabe que não pode aparecer a dizer que quer ser primeira-ministra com muitos colares de madeira”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Catarina Martins diz que na rua ouve cada vez mais incentivos e palavras amigas, embora ainda apareçam os pouco agradáveis “vai p’ra casa” ou “são todos iguais, querem é tacho”, gritados aqui ou além. Mantendo a tradição de ter mulheres bonitas na bancada bloquista, há quem faça confusão com os nomes das mulheres do partido, conta Catarina rindo, referindo-se às vezes em que tem aparecido ao lado de Marisa Matias — e para a qual perde atenções: “Pudera, apareço eu de metro e meio e ela altíssima ao meu lado…” Tenta passar a ideia de não ser dada a ciúmes, como quando se pergunta se Mariana Mortágua não lhe tirou protagonismo pela forma como brilhou na comissão de inquérito ao BES. Responde ao lado — que é bom o partido ter várias caras, pessoas variadas capacitadas nos assuntos, que possam brilhar nos diversos palcos, e, vinca, a Mariana fez um excelente trabalho na comissão. É uma actriz política a desempenhar o papel de mãe de um partido que ficou sem pai
REFERÊNCIAS:
As muitas facetas da arte de amar
Chegada de Marselha, a exposição Quel Amour!? abriu no Museu Colecção Berardo, em Lisboa. Amor, paixão, enamoramento, mas também inveja e ciúme, a exposição dá-nos a ver estas e outras formas de tratar este tema universal. (...)

As muitas facetas da arte de amar
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.55
DATA: 2018-10-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Chegada de Marselha, a exposição Quel Amour!? abriu no Museu Colecção Berardo, em Lisboa. Amor, paixão, enamoramento, mas também inveja e ciúme, a exposição dá-nos a ver estas e outras formas de tratar este tema universal.
TEXTO: Eric Corne, o curador da exposição, conta que ela estava a ser montada no dia em que Helena Almeida (1934-2018) morreu. Por coincidência, algumas das obras desta artista tinham sido escolhidas para uma das entradas na exposição. Além disso, Helena Almeida integrara também já a montagem do Musée d’Art Moderne de Marseille, a primeira instituição onde Quel Amour!? foi mostrada, entre Maio e Setembro deste ano. Uma das suas peças foi mesmo escolhida para tema da imagem da exposição: a fotografia de um estranho bailado onde a artista e o marido andam juntos, com dificuldade e as pernas unidas por um cabo grosso de plástico. Em Lisboa, nas duas grandes salas paralelas do piso zero do Museu Colecção Berardo, bem como noutras duas no andar de baixo, encontramos dezenas de obras de outros tantos artistas sobre este tema vastíssimo que é sem dúvida o mais importante na vida de cada um de nós. Eric Corne, segundo nos conta, não quis realizar uma abordagem diacrónica e historicista, nem, por outro lado, anedótica: quando lhe perguntamos porque é que a exposição não mostra, por exemplo, uma peça que seja de Picasso, ele que representou sempre o amor como desejo predatório, quase animal , apenas nos responde que “não quis muito ir por aí”; e que preferiu levantar questões, suscitar aproximações surpreendentes, mostrar, enfim, o que só raramente se vê do que desenvolver uma tese ou criar núcleos bem delimitados de obras definidas por critérios cronológicos ou estilísticos. O tom está dado. Não vamos aqui ter, de todo, telenovelas com final feliz ou o sentimentalismo delico-doce com que a sociedade de consumo em que vivemos nos quer vender este tema. Museu Colecção Berardo, Piso -1 e Piso 0 LISBOA. Centro Cultural de Belém. Praça do Império. De 3ª a domingo, das 10h às 18h. Até 17 de Fevereiro. Eric Corne, ao invés, vai buscar O Banquete de Platão, entre outras referências maiores sobre o tema — citemos, numa primeira leitura dos textos do catálogo, Kerouac, Benjamin, Marsilio Ficino, Ronsard e Jodelle, Roland Barthes e Lacan —, e retoma o ensinamento da sábia Diotima sobre o amor: “Já que o amor ensina todas as artes, sigamo-lo como a um mestre. ” Diotima referia-se a Ágape tanto como a Eros, ao amor espiritual como ao amor erótico. Em ambos, destacava o estabelecimento de uma ligação, de uma conexão entre dois seres. É por aqui que chegamos de novo a Helena Almeida e aos critérios do curador para a exposição. De facto, logo na primeira sala, o núcleo de peças assinadas por esta artista é provavelmente o maior de toda a exposição, se exceptuarmos as montagens de desenhos e fotografias de pequeno formato de outros artistas, como Gonçalo Pena ou Mattia Denisse. Na artista portuguesa, Corne quis destacar sobretudo o trabalho em conjunto com o marido, tanto na imagem que já referimos, de 2011, como na generalidade da sua obra, já que foi este, Artur Rosa, quem sempre a fotografou. Um excelente contraponto a estas imagens são as provas de contacto de Ernesto de Sousa, mostradas um pouco mais adiante na montagem, onde o corpo da mulher amada é exaustivamente fotografado, uma obra que recebeu o nome de Revolution my body. Ou ainda, num registo mais mediático, Marina Abramovic e Ulay, percorrendo aqui, em vídeo, a muralha da China a partir de extremidades opostas no espaço. Mas Helena Almeida não é a única entrada para a exposição. Na realidade, há duas possibilidades de a percorrer, consoante se escolhe um dos dois corredores paralelos do piso zero do edifício. Num vestíbulo que os precede passa-se um filme de William Kentridge onde um personagem principal olha melancolicamente a lua, ao passo que uma figura feminina nua, que evoca a imagem de todas as Vénus jamais representadas, o abraça. Nesse mesmo espaço, sobre uma mesa, há uma colecção de cartas de amor de escritores famosos, e um pouco mais longe um dos lençóis bordados de Lourdes Castro com a silhueta de um casal deitado. É uma excelente forma de introduzir a exposição, já com uma abertura de sentidos que confirma aquilo que o curador desejava que o espectador experimentasse. A partir daqui, encontramos inúmeras surpresas, obras e autores que, nos achados da montagem, permitem leituras complexas que vão dos fantasmas à dor: Pierre Klossowski, por exemplo, ou Francis Bacon e David Hockney, esses mestres na representação da solidão e da ausência dos corpos em dissolução, mas também Anette Messager, que tem uma obra de parede construída com materiais têxteis e intitulada Jalousie/Love (ciúme/amor); ou Albuquerque Mendes que se representa como crucificado, ou mesmo Paula Rego. Outras tratam da complexidade da relação com o próprio corpo, do amor de si – Kiki Smith, Ana Mendietta ou Francesca Woodman, entre outros artistas; ou mesmo, como hoje é já obrigatório, na inclusão de discursos que entretecem o afecto com as questões de género ou orientação sexual. Nan Goldin é decerto um dos exemplos mais fortes sob este ponto de vista, cuja obra continua a dar-se a ver obrigando-nos a nós, espectadores, a assumirmos a nossa condição de voyeur. Mas também a iraniana Shrin Neshat, de quem se pode ver o duplo vídeo Turbulent, de 1998. Há três vestidos de noiva nesta exposição. O primeiro, tradicional numa fotografia clássica de um casamento nas escadarias de uma igreja, integra uma daquelas narrativas de Sophie Calle em que a ausência é o grande tema: tratar-se-á, ao que a artista dizia, de uma encenação sem noivo, apenas feita por vontade de usar esse símbolo da condição da mulher que o vestido de noiva representa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O segundo, construído com materiais heteróclitos – entre os quais muitos bonecos minúsculos, quais “filhos” da noiva que aqui está – é a escultura de Nikki de Saint-Phalle, muito próxima da arte pop, que integra a Colecção Berardo. E finalmente o terceiro, que não é propriamente um vestido de noiva mas tão só duas túnicas brancas, é usado pela dupla de artistas João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, numa fotografia em que surgem caracterizados como palhaços e usando grinalda de flores. Ou seja, dito de outra forma, nenhuma destas três peças materializa aqui a celebração do amor romântico que o dia do casamento supostamente significa na sociedade ocidental moderna. Essa tarefa deixa-a Eric Corne para um casal gay que se faz pintar sentado num sofá, de rosto tapado por um lençol, como se de fantasmas se tratasse. No andar inferior, para além da escultura de Saint-Phalle e de dois grandes desenhos de Paula Rego, celebra-se a fugacidade, com a convocação de imagens realistas do erotismo (Fromanger e John de Andrea) que se conjugam com as magníficas esculturas de rostos fragmentados (incompletos?) do holandês Mark Manders, naquela que será provavelmente a primeira apresentação da obra deste artista em Portugal. Finalmente, aquele amor que não era referido até aqui, também surge na exposição: trata-se do amor pela arte, pela pintura, na espessura matérica de Monticelli, um artista do século XIX que era o preferido de Van Gogh. Foi por causa dele, da sua obra quase informal, que este pintor se instalou em Arles e que aí criou uma parte importantíssima da sua obra.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave mulher consumo género sexual corpo casamento gay feminina animal
Punk is not dead
Michael Clark revolucionou a dança britânica da cabeça aos pés, cruzando o ballet clássico com o rock, o pós-punk, a moda e as artes visuais. Sábado e domingo, em Serralves, vamos ver o que lhe andou a passar pela cabeça nestas últimas semanas – em versão minimalista. (...)

Punk is not dead
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0
DATA: 2016-03-18 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20160318193416/http://www.publico.pt/n1726165
SUMÁRIO: Michael Clark revolucionou a dança britânica da cabeça aos pés, cruzando o ballet clássico com o rock, o pós-punk, a moda e as artes visuais. Sábado e domingo, em Serralves, vamos ver o que lhe andou a passar pela cabeça nestas últimas semanas – em versão minimalista.
TEXTO: 20 de Setembro de 1988, Londres. Está a acontecer algo no palco do Sadler's Wells que nunca tinha acontecido antesThe Fall a tocar ao vivo num espectáculo de dança, com a guitarrista Brix Smith em cima de um hambúrguer gigante; Leigh Bowery, figura vulcânica, excessiva e irrepetível da moda e da performance britânicas, a escudar-se por trás de uma lata de Heinz Baked Beans; um smiley virado do avesso, subvertendo o símbolo do acid house e das raves, como parte da cenografia; bailarinos vestidos de jogadores de futebol, entre várias mudanças de figurinos. E, sobretudo, uma linguagem coreográfica singular que, sem sabotar a formalidade e as geometrias do ballet clássico, dinamitava com os seus limites, transportando-o para o circuito underground da música, da moda e dos clubes londrinos. O que se estava a passar no respeitadíssimo teatro de Londres era I am Curious, Orange, peça icónica de Michael Clark, coreógrafo e bailarino escocês – que se encontra, aqui e agora, numa residência em Serralves com a sua companhia. No início da década de 80, de crista punk, pulseira de picos, beleza apolínea e uns tenros 20 anos, começou a revolucionar a dança britânica da cabeça aos pés. O espectáculo, para o qual The Fall criaram o álbum I Am Kurious Oranj, assinalava o tricentenário da subida ao trono inglês do protestante William of Orange, o que se tornou numa desculpa para coreografar um jogo de futebol em palco entre os Rangers e o Celtic e, assim, abordar o sectarismo político e religioso na Escócia. Fazer citações históricas e estéticas de forma atrevida e astuta, jogar com as regras do espectáculo com ironia, desfaçatez e liberdade, trabalhar com uma rede de colaboradores da música, moda e artes visuais, cruzar a pop e a alta cultura – não para as usar como muletas estilísticas mas para edificar um discurso e uma identidade próprios –, são características transversais à obra de Clark, o grande iconoclasta da dança britânica. E que na antecâmara de I am Curious, Orange já tinha feito acontecer uma série de coisas que nunca tinham acontecido antes. Entre elas: foi considerado um dos maiores prodígios da Royal Ballet School, qual Nijinsky do punk, mas recusou um lugar na companhia como bailarino principal, aos 17 anos. Fundou a sua própria companhia aos 22, em 1984, já com um currículo de 16 criações originais. Apresentou as suas peças em clubes gay e discotecas, como a mítica Haçienda, em Manchester, sem nunca ficar de fora das programações de teatros, óperas e outros espaços institucionais (a porosidade entre a cultura de elite e as manifestações artísticas mais subterrâneas eram a sua maneira de empregar a ideia de democratização do movimento da Judson Dance Theater). Dançou no videoclip de Wood Beez, dos Scritti Politti. Injectou na dança o rock, o punk e, sobretudo, o pós-punk, órgãos executivos das suas coreografias, que muitas vezes surgiam conjugados com música erudita. Nas suas peças ouviam-se os Public Image Ltd e os T-Rex, The Wire e The Fall, estes últimos os seus colaboradores mais próximos durante os 80s, a par do cineasta Charles Atlas (com quem continua a trabalhar) e de Leigh Bowery e Trojan, duas aves raras da moda britânica que Clark conheceu (e depois perdeu, o primeiro por causa da sida, o segundo por causa de uma overdose) nos clubes de Londres, que tanto serviam de laboratórios de experimentação artística como de passerelles, com sexo e drogas à descrição. Uma contracultura narrada em directo nas páginas da The Face, onde Michael Clark apareceu uma série de vezes, com dildos, plataformas prateadas nos pés e lábios azuis. Não era deboche instantâneo nem gongorismo. Clark criou um continuum entre a sua vida e o palco, entre o individual e o colectivo. E inscreveu nas suas coreografias, permeáveis à energia do seu tempo, momentos transformativos da sociedade e da arte britânicas e da cultura pop. Presente vs. anos 80Março de 2016, Porto. Michael Clark, 53 anos, hoje mais coreógrafo do que bailarino, figura esfíngica com alfinete na orelha, há muito que não é o rapaz de tutu branco, crista, pulseira de picos e T-shirt de Vivienne Westwood. Mas a postura punk continua lá. É jocoso, espontâneo e corrosivo. Não gosta que lhe controlem os horários. Desvia-nos várias vezes do guião da entrevista, e a certa altura já se fala sobre feminismo, a falta de representação das mulheres nas artes performativas e visuais (“pensava que o mundo das artes estava mais evoluído”, atira) e as eleições americanas. Pede sugestões de bandas recentes. “Tenho uma aversão a quase tudo o que ouço agora, tudo parece ter um som genérico e produzido. ”Michael Clark está em Serralves numa residência artística com o actual núcleo duro de bailarinos da sua companhia, que ficaram também responsáveis por orientar um programa de masterclasses com alunos do Balleteatro e do Ginasiano. Arrancou a 29 de Fevereiro e culmina nas apresentações públicas que vão decorrer ao longo deste sábado e domingo na Casa de Serralves. “O que estou a planear apresentar são duas coisas: os primeiros passos de uma nova peça que irá estrear em Outubro no Barbican [a sede da Michael Clark Company desde 2005] e algo ligado à música de [Erik] Satie, que tem a ver com trabalhos anteriores e que combina muito bem com a arquitectura da Casa”, adianta. “Uma situação destas, em que posso responder genuinamente ao espaço, é muito rara. ”E é também raro ter um convidado assim. Afinal, Clark operou uma mudança paradigmática e libertária na dança contemporânea. No entanto, a sua ausência dos palcos durante parte de década de 90, para resolver o vício em heroína e metadona (por causa da primeira chegou a adormecer em palco, confessa), contribuiu para o afastar da histórica mais canónica da dança e “fez com que o seu impacto saltasse uma geração, começando a sentir-se mais recentemente na dança e nas artes visuais”, explica Suzanne Cotter, directora do Museu de Serralves e autora da monografia Michael Clark (2011, Violette Editions), o único livro sobre o escocês. O convidado é especial, mas para não defraudar expectativas convém reforçar que estas (curtas) performances vão funcionar como um momento de laboratório aberto ao público, e não como um espectáculo normal (no caso de Clark, isso implicaria uma grande produção). Uma forma engenhosa de lidar com as restrições orçamentais e o posicionamento que um museu de arte contemporânea deve ter perante as artes performativas e a sua história, abrindo espaços de descoberta, reflexão e (re)interpretação, em sintonia com a dinâmica programática envolvente. Num momento em que a programação cultural da Câmara Municipal e respectivos equipamentos monopolizam atenções, é bom lembrar que o programa de dança e performance de Serralves tem sido particularmente pertinente e coerente nesse sentido. E é de facto possível estabelecer ligações entre Michael Clark, as exposições correntes do Museu – a de Wolfgang Tillmans e a colecção Sonnabend – e o próximo performer a apresentar-se em Serralves, Adam Linder, que foi bailarino de Clark. “Se tivéssemos dinheiro para programar o reportório do Michael, programávamos. Mas o nosso trabalho também é perceber de que maneira podemos contribuir com algo diferente para o circuito de artes performativas da cidade e do país”, justifica Suzanne Cotter. “Este museu é um lugar de experiência, de procura, de investigação. Não temos só de produzir e apresentar”, reforça Cristina Grande, programadora de artes performativas da instituição. Uma outra lógica de produção e consumo que desafia a forma mercantilizada e acelerada de lidar com a arte e com o processo de criação. E que está alinhada com o modus operandi de Clark. “Ele quer continuar a trabalhar como trabalhava, sem se comprometer e a fazer as coisas à sua maneira, ao seu ritmo. Não é uma incapacidade em se comprometer, é uma recusa”, aponta Cotter. Há uma questão que se levanta na actual conjuntura, em que as políticas culturais e as programações são fortemente controladas e regulamentadas: seria possível Clark e os seus amigos e colaboradores fazerem hoje tudo o que fizeram nos anos 80? “Nessa altura havia um desinteresse generalizado e não se questionava tanto a programação como hoje, por isso havia algo tão livre como o Riverside Studios” [onde Clark teve a sua primeira residência como coreógrafo, em 82], considera Suzanne Cotter. “Mas acho que a questão principal é que ninguém prestava atenção e por isso eles podiam fazer o que quisessem. Tal como os YBAs [o grupo Young British Artists, de Damien Hirst, Sarah Lucas e companhia]. ”Mesmo as bandas mais radicais do pós-punk, como os Public Image Ltd e The Fall, passavam nas rádios inglesas e apareciam no programa de televisão Top of The Pops – coisa que não acontecia nos EUA, nota Simon Reynolds na sua bíblia do pós-punk Rip It Up and Start Again. De certa forma, Michael Clark, Leigh Bowery e Mark E. Smith, entre outros, testemunharam o fim de uma era. Clark, contudo, nunca quis ligar o seu trabalho a um determinado período histórico. “Isso parecia-me muito limitado e eu não queria limites”, afirma. “Havia artistas a fazer coisas contra a Thatcher mas eu não precisei de uma desculpa para fazer o que fazia. ” Diz que continua a “fazer o que quer”, mas concorda que o circuito artístico está mais regulamentado do que antes – e que é um “desafio constante” arranjar dinheiro para fazer espectáculos. “Se calhar faz parte de crescer… Há um sentimento de regulamentação ligado a isso, o que não é propriamente agradável. ”Música, sempreO trabalho de Michael Clark foi alvo de várias interpretações redutoras e superficiais, focadas na exuberância dos figurinos, nos dildos, nos fatos com os rabos à mostra e nos detalhes sumarentos da sua vida pouco beata. O que muitos viam como provocador e carnavalesco era, na verdade, uma reacção inteligente a um ethos da dança (e a uma ideia de minimalismo e despojamento muito pós-modernista) que rejeitava o espectáculo, o humor, o sexo, o virtuosismo e a narrativa visual. Clark quis dizer que sim a tudo isto, e continua a fazê-lo. Hoje está menos disruptivo, mais discreto, mas longe de estar domesticado. Nas suas coreografias, a estrutura e a elegância do ballet clássico são – sempre foram – conjugadas com uma vitalidade, espontaneidade e jovialidade punk, criando-se uma espécie de dissonância cognitiva que faz nascer novas formas (sim, é possível dançar a distorção de uma guitarra). A pulsão sexual, a abordagem não-binária ao género através dos figurinos e as referências sem pudor à homossexualidade (como pôr um bailarino pelvicamente sinuoso a dançar “Boys, boys, it’s a sweet thing”, de David Bowie) são outros dos elementos que sobrevivem na sua obra. Para Clark, a dança contemporânea “continua a ser conservadora”, diz, depois de perguntarmos se não acha estranho que o rock seja tão pouco usado em coregrafias. “A dança contemporânea não vale nada (risos). Há excepções, mas no geral é tão divorciada da realidade… É meio embaraçoso estar envolvido nela. As pessoas estabeleceram uma ideia estranha do que deve ser a dança contemporânea, inclusive musicalmente. Acho que também tem muito a ver com o facto de se treinar os bailarinos dentro de uma lógica muito limitadora. ”Conciliar a dança com a música das bandas que ia ver depois das aulas na Royal Ballet School (onde os professores já escreviam nos relatórios que tinha uma musicalidade nos movimentos fora de série) foi, desde a adolescência, o seu objectivo maior. “Na altura não conseguia arranjar uma maneira de fazer coexistir as duas coisas, foi um processo um pouco moroso”, revela. Teve aulas com Merce Cunningham e com John Cage, mas foi com a coreógrafa americana Karole Armitage, a “bailarina punk”, que Clark conseguiu o que queria. Foi através desta abertura referencial, matéria vital da própria identidade do pós-punk (os The Fall acarinhavam os seus cartões da biblioteca tanto quanto o LSD e a música) que Michael Clark conseguiu introduzir à dança um novo público, mais plural e democrático. “Sobretudo durante os anos do Riverside Studios, havia todo o tipo de gente a ver as suas peças: punks, cabeleireiras, designers de moda, pessoas que trabalhavam em discotecas. Através do seu trabalho, ele tocou em imensas e diferentes pessoas. É completamente fascinante”, diz Suzanne Cotter. Nos últimos anos, continuou a privilegiar as colaborações com artistas de outras áreas, de Alexander McQueen a Jarvis Cocker, dos Pulp. Na música, vai trabalhar em breve com Kim Deal (Pixies e The Breeders). Michael Clark diz que não se arrepende de nada do que fez no passado. E isso é notório nas suas últimas criações, onde se auto-referencia. Em come, been and gone (2009) reavivou Heterospective (1989) no corpo da bailarina Kate Coyne, solo em que dançou Heroin dos Velvet Underground numa galeria de arte, com um fato adornado de seringas. “Quero continuar a tentar viver a minha fantasia de que tudo é livre. Fazer o que quero. Tem a ver com a forma como cresci”, diz no final da conversa. “Live till your rebirth and do what you will, Oh by jingo”, dançou ele em come, been and gone, ao som de After All de David Bowie. E parece que esta canção nunca fez tanto sentido.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
[email protected] leitorxs (e utentas)
Tudo isto, a juntar ao suntuoso Acordo Ortográfico, tornaria a nossa língua uma verdadeira geringonça! (...)

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MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 5 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-09 | Jornal Público
SUMÁRIO: Tudo isto, a juntar ao suntuoso Acordo Ortográfico, tornaria a nossa língua uma verdadeira geringonça!
TEXTO: Os guardiães da ideologia de género, considerando que a língua portuguesa está muito associada a um modelo machista de sociedade, têm procurado avançar com iniciativas para favorecer a agora chamada linguagem inclusiva, eliminando ou atenuando tal dimensão patriarcal. Bem sabemos que a linguagem oral e escrita é, por natureza, evolutiva e dinâmica. E que há expressões social e culturalmente resilientes, que revelam comportamentos misóginos. Acontece que a exageração vem tomando conta deste propósito de erradicar o que apelidam de um “estereótipo de género”. Um dos seus traços mais visíveis relaciona-se com os substantivos uniformes, sobretudo os comuns de dois géneros – p. ex. , estudante – e os sobrecomuns – p. ex. , pessoa – através de pretensos neologismos tão esdrúxulos, quanto ridículos. Se bem me recordo, uma das primeiras ou mais entusiásticas movimentações foi quando Dilma Rousseff virou presidenta, tendo subjacente a ideia de contrariar a prevalência das desinências masculinas sobre as femininas. Parece que esta moda não pegou tanto quanto as utentas pretendiam. Assim, não vingaram as concorrentas, as estudantas, as dirigentas e gerentas, as comandantas, as adolescentas ou as doentas. Mesmo nos partidos mais envolvidos, não se diz “militantes e militantas”, aqui até com o risco de alguém entender “militantes e mil e tantas”. CITAÇÃO I: Em ciência leia sempre os livros mais novos. Em literatura, os mais velhos (Millôr Fernandes, 1923-2012)CITAÇÃO II: “A linguagem é uma fonte de mal-entendidos” (Antoine de Saint Exupéry, 1900-44)OXÍMORO: Neologismo antigoPLEONASMO: Surpresa inesperadaARCAISMO: OutrossimPALÍNDROMO (capicua de letras): Ato idiotaPARANOMÁSIA: O torneiro chamou uma colega torneira para reparar a torneiraNoutra perspectiva e face à ausência de um género gramatical neutro em português, há quem use o símbolo @ (arroba, ela própria feminina) para se referir a grupos dos dois sexos. Assim temos, por exemplo, [email protected] [email protected], [email protected], [email protected], [email protected]. Entretanto, ainda que mais esparsamente, surgiu o "x", numa versão mais LGBT: carxs, meninxs, delegadxs, etc. e até o tímido asterisco * para el*s, professor*s, trabalhador*s, etc. MUSGOAproxima-se o Natal e o musgo associa-se ao presépio. Talvez porque tenha um envolvimento muito sinestésico. No seu cheiro inigualável em terra molhada, no seu aveludado tatuar, na quietude da sua extensão, na mistura do seu verde e da terra que lhe vem junta. Haverá mais de 700 géneros e 12. 000 espécies de musgos, ainda que para nós musgo é simplesmente o musgo, ponto final. Trata-se de uma planta criptogâmica (isto é, sem flor) briófita tendo caule e folhas, mas não raízes. Vive em colónias de indivíduos semelhantes, que formam tapetes de um verde profundo que implora por humidade e sombra do sol. Com uma lupa, pode ver-se melhor o notável pormenor das suas delicadas cápsulas (esporófitos) em cima de delgados pedicelos. Há quem lhes chame até o fruto dos musgos. Não que o seja, mas porque envolve uns minúsculos esporos que, na hora do parto possibilitado pela abertura da cápsula, caem sobre a terra humedecida e dão novas vidas à vida. Um milagre da natureza: estes minúsculos corpos nem provêm dos óvulos de um ovário, nem têm um embrião e, no entanto, germinam como uma semente. É Natal!Passou também a ser politicamente conveniente referir os dois géneros gramaticais, em frases como “portuguesas e portugueses”, “todos e todas”, “alunos e alunas” e tantas outras, numa prática aritmética de juntar um subconjunto ao conjunto que já o contém. Todavia, tal prática é selectiva e não se aplica a situações negativas ou indesejáveis (por exemplo, ninguém diz “desempregadas e desempregados”, “mortas e mortos”, “presas e presos”). Na mesma lógica, poder-se-ia perguntar se a Loja do Cidadão (ou o cartão de cidadão) não incluiria as cidadãs, se o Conselho de Ministros deveria ser também das Ministras, ou se uma câmara de deputados não teria deputadas? Ou ainda, se numa referência aos seres humanos, deveria acrescentar-se “e humanas”? Voltando ao nosso gentílico, vida facilitada teriam (com o nosso idioma) outros países. É o caso dos belgas (não imagino alguém a dizer “belgas e belgas”), tal e qual como com timorenses, são-tomenses, guineenses, croatas, vietnamitas. Mais recentemente, numa reunião magna do Bloco de Esquerda, Pedro Filipe Soares interveio começando com “camaradas e camarados” (suponho eu referindo-se aos aderentes e aderentas do partido). Em artigo posteriormente publicado neste jornal, o dirigente bloquista reconhece que foi um “erro prontamente corrigido na frase seguinte”, acrescentando, de seguida, que “há males que vêm por bem, dado que serviu, uma vez mais, para desmascarar o fanatismo da campanha contra a linguagem inclusiva”. Não percebo como de um erro se corporiza alguma vantagem no propósito enunciado. É certo que houve comentários precipitados, como precipitado me parece não se aceitar a ironia de quem também aproveitou o lapsus linguae (quem sabe se originado pelo subconsciente inclusivo do deputado) para, ao invés, criticar o também fanatismo da campanha da linguagem inclusiva. Brincando com o sucedido – se senhores e senhoras inclusivos e inclusivas me permitem –, quase me imaginei a ouvir “bloquistas e bloquistos”, “comunistas e comunistos”, “socialistas e socialistos”, bem como colegos, jornalistos, economistos, atletos ou estrelos de cinema. E, feminizando substantivos machos, por que não dizer o intérprete e a intérpreta? Ou chamar quadra a uma quadro de uma empresa?Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. E o que dizer de substantivos sobrecomuns mais femininos (pois que também os há e muitos) passarem a ter dois géneros? Afinal eu fui criança ou crianço? Sou uma pessoa ou um pessoo? Uma criatura ou um criaturo? Bem confuso seria testemunha passar a ser a testemunha só no género feminino e o testemunho no masculino…Começo a pensar que o extremoso PAN possa ter, nesta matéria, uma oportunidade para alargar a ideologia de género ao mundo animal, onde muitos são chamados por um nome epiceno, ou seja, de só um género gramatical para animais de ambos os sexos. Por exemplo: teríamos a foca, mas também o foco, o ouriço e a ouriça, a cigarra e o cigarro, a cobra e o cobro. E nos animais designados pelos dois géneros gramaticais, que bem e animalmente correcto seria dizer “gatos e gatas” e escrever [email protected], “ratos e ratas” ([email protected]), “burros e burras” (burr*s), “javalis e javalinas”?Tudo isto, a juntar ao suntuoso (não confundir com untuoso, e muito menos com sumptuoso) Acordo Ortográfico, tornaria a nossa língua uma verdadeira geringonça!
REFERÊNCIAS:
"Somos um país de medrosos"
É provavelmente o nome mais respeitado da psicanálise em Portugal. António Coimbra de Matos, 86 anos, dedicou grande parte da sua actividade ao estudo da depressão. Admite que estaremos provavelmente a viver um período de depressão colectiva. Deitámos o país no divã do psicanalista. (...)

"Somos um país de medrosos"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: É provavelmente o nome mais respeitado da psicanálise em Portugal. António Coimbra de Matos, 86 anos, dedicou grande parte da sua actividade ao estudo da depressão. Admite que estaremos provavelmente a viver um período de depressão colectiva. Deitámos o país no divã do psicanalista.
TEXTO: Entra-se no consultório e dá-se de caras com uma curva do Douro. A vista assombrosa de São Leonardo de Galafura transporta-nos para uma espécie de tempo mítico. Pendurada na parede em frente à porta, aquela fotografia é uma janela para as origens de Coimbra de Matos. Ao longo de duas horas de conversa, o psiquiatra e psicanalista, nascido em 1929, evoca por diversas vezes episódios da infância para ilustrar o que diz. Embora se tenha afastado da importância que a teoria psicanalítica clássica dá ao passado. António Coimbra de Matos é um ávido consumidor da ideia de futuro. A papelada que se amontoa na secretária a que nos sentamos, um de cada lado, revela o tipo de organização muito pessoal de quem privilegia a actividade à arrumação obsessiva. Fuma incessantemente e concede-se a si próprio o tempo necessário para responder a cada pergunta. Como se fosse a primeira vez que algumas das questões se lhe colocassem. Pode-se falar em estados de depressão colectiva?Pode. A depressão é uma coisa individual mas há situações em que aparecem mais casos depressivos. Em momentos de crise. Como agora. Diria que estamos a passar por uma depressão colectiva?Há uma maior incidência de depressões. Em certos momentos podemos falar de uma depressão colectiva. Isso foi muito evidente naquele caso muito falado da France Telecom. Em que houve uma série de suicídios de trabalhadores da empresa. Sim. Isso foi muito noticiado. Há pouco tempo foram divulgados números que revelam um aumento dos casos de suicídio em Portugal. Sim. Há um trabalho célebre, um trabalho seminal, em que o pai da Sociologia, o Durkheim, verificou que quando há guerras e revoluções a depressão e os suicídios diminuem porque as pessoas se revoltam. Quando as pessoas não se revoltam, é que se suicidam; quando se sujeitam, quando não têm condições para protestar com mais veemência. Na sua definição, segundo li, o que distingue a depressão normal da depressão patológica é justamente a capacidade de revolta. Sim. Em Portugal, não somos lá muito bons nisso, na capacidade de revolta colectiva, pois não?Não, somos um bocado passivos. Os espanhóis são muito mais agressivos, revoltam-se muito mais. Sim, nas imagens das manifestações em Espanha ou na Grécia vemos um grau de revolta que não identificamos em Portugal. Isso é verdade. Noto isso na área científica. Aqui em Portugal, vamos a um congresso e se dizemos: “Não estou nada de acordo com isso” dizem-nos logo: “Foste muito agressivo com aquele tipo”. Isso, num congresso internacional, é a coisa mais banal do mundo e ninguém leva a mal, nem diz que está a ser agredido. Somos mais susceptíveis?Sim. E mais delicados, mais medrosos. Somos um país de medrosos. É a velha ideia dos brandos costumes?Dos brandos costumes mas também da atitude do poder. O poder em Portugal sempre foi menos violento. Isso não facilita a revolta. O Salazar não matava, mandava prender. Franco matava mesmo e isso cria uma revolta maior. Somos um bocado passivos. Somos um país de medrosos. E considera isso mais negativo do que positivo?Sim, há uma sujeição maior. Umas vezes é mais negativo, outras vezes mais positivo. A nossa colonização foi muito melhor do que a colonização de outros países, nomeadamente de Espanha. Fizemos uma colonização mais respeitadora, mais suave. É capaz de haver gente nos estudos coloniais de cabelos em pé com essa ideia de que a colonização portuguesa terá sido branda; também houve grandes atrocidades. Mas não foi tão agressiva como a dos espanhóis, pelo menos na América Latina. Não tivemos um Cortés. Os espanhóis liquidavam aqueles indivíduos. Nós escravizávamo-los e tal. Vê uma continuidade de carácter ao longo dos séculos no povo português?Repare na nossa luta contra os árabes, no princípio da nacionalidade: conseguimos conquistar território mais facilmente porque o Afonso Henriques e os outros não matavam os árabes. A maior parte dos alcaides foram feitos governadores civis. Já os espanhóis chegavam lá e liquidavam os alcaides: substituíam-nos logo e às vezes até os matavam. Nós fomos mais diplomatas. Identifica nisso um traço de continuidade?Sim. Percebi-o muito cedo, ainda na instrução primária. Fiz a instrução primária numa aldeia do Douro e ouvia dizer que o Afonso Henriques era um mata-mouros. Eu inventei uma outra designação: não era um mata-mouros, era um fode-mouras [risos]. Eles conquistavam as mouras e não precisavam de liquidar os mouros. Na maior parte das vezes aproveitaram a estrutura montada pelos árabes. Os espanhóis não fizeram isso e tiveram muito mais dificuldade em conquistar. O facto de nos revoltarmos menos do que outros povos, significa que somos mais atreitos à depressão?Não sei dizer ao certo mas haverá vários factores para isso. Um dos factores é a nossa história, a expansão, as descobertas, os pais que saíam. Os homens iam para a guerra, iam para as colónias, para os descobrimentos, e os filhos ficavam com as mães. Nas famílias em que o pai está ausente, isso cria uma menor agressividade, fica-se mais passivo. Há um trabalho interessante da Professora Celeste Malpique, do Porto, precisamente sobre o pai ausente. Fez esse estudo nas zonas de Ovar e de Aveiro, onde os homens iam para a pesca do bacalhau. Isso lembra-me uma frase sua a explicar a diferença entre os papéis do pai e da mãe: quando a criança tem medo, a mãe dá-lhe a mão. . . . . . e o pai dá-lhe um pontapé no cu. O meu pai fez-me isso uma vez, tinha eu para aí uns dez, onze anos. Tinha montado um cavalo que lá havia e que era um bocado arisco. Estávamos no quintal da casa e o cavalo começa a empinar-se. Fiquei com medo e gritei pelo meu pai. Ele veio ter comigo e julguei que ia segurar-me o cavalo. Mas não. Pegou no chicote e dá duas porradas no animal. O cavalo largou-se, sai pelo portão da casa, pela estrada fora. Sei que perdi os estribos, agarrei-me ao selim, e ia a chamar ao meu pai filho da puta, cá por dentro [risos]. Mas nunca mais tive medo dos cavalos. Essa distinção de papéis entre o pai e a mãe ainda é assim tão clara?É. O homem, em relação à criança, tem uma atitude diferente da da mulher. O homem faz mais movimentos extensivos, para fora, periféricos, centrífugos. As mulheres fazem mais movimentos centrípetos. O homem pega no bebé e tem tendência para o pôr assim [demonstra, afastando os braços do corpo]. Há até pais que atiram a criança ao ar. Sim. As mulheres raramente fazem isso. Isto induz a um tipo de relação diferente. Os homens falam de uma forma mais grave, as mulheres de maneira mais melódica. Diria que essas características são inatas ou culturais?São inatas. Isto faz-se em todas as culturas. Em algumas será mais forçado. Como é que enquadra isso em realidades novas como a dos casais homossexuais com filhos?É difícil responder. Os casais homossexuais não são patogénicos. Não há perigo nenhum na adopção por casais homossexuais. Agora, é uma situação com um risco um bocadinho maior. A que nível?Mais facilmente pode haver dificuldades adaptativas. Por causa dos diferentes papéis que não estão preenchidos?Sim. E não só. Os casais heterossexuais são mais harmónicos. Nos casais homossexuais há mais frequência de conflitos, de separações. São menos estáveis, de uma maneira geral. Diz isso com base na sua experiência empírica ou em estudos publicados?Há estudos sobre isso. E depois é a experiência que temos de clínica. Tem detectado alterações a esse nível?Ocorrem mudanças na medida em que isso existe, é aceite, é cultural. As coisas melhoram. Os casais homossexuais tornam-se mais harmónicos por causa da aceitação. Numa cultura em que a homossexualidade não é aceite os casais envergonham-se, escondem-se, são criticados, há reparos. Portanto reagem a isso. Se são aceites sentem-se integrados. Voltando à ideia de depressão colectiva: sente-a no seu consultório?Não sinto muito. A clínica do consultório é de classe alta. Nos hospitais vê-se mais, há mais depressões. Parece-me que será assim, mas não tenho estatística nenhuma que o comprove. Com tanta coisa em transformação na sociedade, o que é que lhe parece mais comum a nível individual: o que permanece ou o que se altera?Mais do que a mudança nos quadros clínicos ou nas coisas que aparecem, é a mudança em mim próprio. São as coisas novas que vou descobrindo ou que vou investigando. Os homens iam para a guerra, para as colónias, para os descobrimentos, e os filhos ficavam com as mães. Nas famílias em que o pai está ausente, isso cria uma menor agressividade, fica-se mais passivo. De que tipo?A minha técnica hoje é muito diferente do que era há 20 ou 30 anos. O que é que mudou?Muita coisa. Até as concepções teóricas. A inovação, a investigação são a base de todo o movimento. Se a pessoa se fixa naquilo que descobriu ou que aprendeu, às tantas está fossilizada. É fácil ficar fossilizado nesta actividade?Em todas as actividades é fácil. Na nossa talvez mais porque é mais complexa, e as pessoas aprendem sempre muita coisa e depois repetem aquilo que já sabiam. As pessoas dizem-me isso: “Não percebo, você agora vem com umas ideias completamente diferentes”. Não sou nenhum maluco, fui vendo umas coisas, algumas ideias que tinha e que não estavam muito certas e entretanto fui trilhando outros percursos. Dê-me o exemplo de uma dessas alterações. Por exemplo, aprendi, e durante muito tempo procedi assim, que os sonhos nocturnos eram uma coisa muito importante, que nos davam grandes indicações. Hoje a minha teoria é que os sonhos nocturnos pouco nos dizem porque são um trabalho de memória. Portanto, a interpretação dos sonhos já não lhe interessa. Não. É muito mais importante aquilo a que chamo o sonho-projecto, os devaneios diurnos que temos. Esses é que estão virados para o futuro. Diz-se muitas vezes que o homem é um animal de hábitos, mas não é verdade. O macaco é um animal de hábitos, o homem é um animal criador, está sempre a criar coisas novas. E por isso criou uma civilização. O ser humano é de tal modo criador – e eu sou ateu! – que até criou um deus. Deus é uma criação do homem. Na psicanálise estou mais interessado no futuro do que no passado. A psicanálise clássica está sempre muito ligada ao passado: o que aconteceu com a mãezinha, com o paizinho. Eu ando mais ligado àquilo que a pessoa projecta no presente e para o futuro. No seu divã não lhe interessa aquilo que foram as vivências e as memórias recalcadas?Isso também é importante. Costumo dizer aos meus alunos, na brincadeira, que os analistas clássicos me fazem lembrar um condutor de automóveis que vai sempre a olhar para o retrovisor; depois espeta-se no primeiro eucalipto. Não é isso que me interessa. Dá-se uma vista de olhos de vez em quando mas olha-se em frente, fundamentalmente. Imagino que isso lhe valeu algumas antipatias ou mesmo inimizades dentro do meio da psicanálise. Sim, sim. E críticas. Porque é que há uma tão grande animosidade entre escolas terapêuticas?Como é uma ciência mais difusa, com menos certezas, é mais fácil formar essas escolas e crenças. Religiões, quase; seitas. Mas a propósito disso, há uns anos recebi um prémio nos Estados Unidos, e um dos analistas de lá, com quem depois me correspondi bastante, mandou-me um mail: “Mas isso que você disse é uma mudança total de paradigma, não é?” “Pois é”, disse-lhe eu. A que é que ele se referia?Precisamente a isto de que estávamos a falar, porque na psicanálise clássica o paciente repete muito as coisas que aprendeu na infância. A minha teoria é que ele, ao longo da vida, vai aprendendo coisas novas e vai mudando. E isso é que é o importante. Também reconstruímos e reinventamos o passado. Sim, mas vivemos do futuro, não do passado. Infelizmente nem sempre é assim, mas é assim que deve ser. Veja na política portuguesa: foi o problema do Sócrates, e antes do Sócrates do Guterres. . . Noutro dia dizia a um amigo meu: naturalmente, a culpa foi do Afonso Henriques, que conquistou isto aos mouros em vez de ir para a Galiza. Andamos a olhar demasiado para o espelho retrovisor?Andamos. De uma maneira geral, nos países europeus. Há um estudo que já tem uns 30 anos, de psicólogos e psicanalistas americanos, que se limitaram a investigar a década de 70. Foram buscar 400 artigos que vêm de duas revistas de psicanálise bastante conhecidas, seleccionaram 200 artigos escritos por psicanalistas europeus, e 200 artigos escritos por psicanalistas americanos. E só foram investigar uma coisa: o número de vezes que citavam Freud. A diferença era de dez vezes mais para os europeus. [risos] É o peso da história. E também a coisa cultural: os europeus são mais conservadores. É frequente ir-se a uma conferência sobre filosofia e ter de se ouvir falar no Aristóteles e no Platão. Sente-se mais americano, nisso?Muito mais. Aliás, tenho muito mais contacto com analistas americanos do que com analistas europeus. Esse prémio que me deram nos Estados Unidos, na Europa não mo davam. Deram-mo voluntariamente, foram eles que me seleccionaram, pelos meus escritos. Na Europa achavam que aquilo não tinha muito interesse. Revê-se mais no pragmatismo americano. No caso da análise, sim. Noutras coisas não. Noutros aspectos têm muitos defeitos. Mas os filósofos são muito mais pragmáticos. Os filósofos europeus estão presos às abstracções todas. Com a sua idade seria natural que o peso da experiência já tivesse uma prevalência maior do que o da tentativa de descobrir. As coisas evoluem investigando, não é acumulando conhecimentos. Como é que se dá, por exemplo, com a revolução tecnológica? Não vejo aqui nenhum computador. Não, porque os computadores já chegaram tarde demais e eu já não tinha muita paciência para aprender a lidar com aquilo. A minha secretária é que trata disso. Mas acho que é importante, aquilo é bom. Nunca usa computador?Não. Mesmo o telemóvel, uso-o mal. Sabe o que é o Instagram?Sei [risos]. Sabe o que é o Facebook?Também sei, mais ou menos. As redes sociais são apenas novas formas de comunicação ou parece-lhe que há o risco de mexerem com características fundamentais das pessoas?Penso que se não forem em excesso, não. Como tudo. A instantaneidade da comunicação terá alterado algumas das características relacionais que existiam na sua juventude?Não sei. Ouço os meus colegas, na faculdade de psicologia, dizerem: “Esta malta hoje não presta, no nosso tempo é que era bestial”. Pois, eu acho que os alunos agora são muito melhores do que eram no meu tempo. Muitíssimo melhores. Mais ávidos, mais interessados. A evolução é positiva. No meu tempo de estudante a maior parte dos colegas só pensava em futebol e em beber copos. Hoje vêem-se vários alunos e alunas interessados em filosofia, política, história. Não se reconhece, portanto, no discurso da crise de valores. Não, de maneira nenhuma. Os valores é que são outros. Em relação aos valores da religião, do pecado, são outros. Quais diria que são hoje os valores estruturantes?O primeiro de todos é a liberdade. E por outro lado o de haver menos proibições. A minha liberdade só acaba quando perturba a liberdade do outro. É a única proibição. Depois a moral: há um tipo de moral, a que chamo exógena, ou heterónoma, que vem ditada pelo outro. Pela religião, pelo partido político, pela cultura. E há uma moral endógena e autónoma, que depende simplesmente de o indivíduo ter empatia e compaixão pelo sofrimento do outro. Se me ponho no lugar do outro e fico preocupado se ele não está bem, construo a minha moral. Aquela que me é ensinada não tem interesse nenhum. Por exemplo, há uma coisa que é muito discutida e em que várias pessoas não estão de acordo comigo: continua-se a dizer que é preciso impor limites às crianças. Não é preciso impor limites nenhuns às crianças, é preciso simplesmente mostrar-lhes que a realidade tem limites; a realidade física e a realidade social. Se a criança bate com a cabeça na parede magoa mais a cabeça do que a parede [risos]. Se chama filho da puta ao pai, se calhar o pai fica chateado e deixa de brincar com ele, já não lhe apetece jogar à bola. É só isto. Continua-se a dizer que é preciso impor limites às crianças. Não é preciso impor limites nenhuns às crianças, é preciso simplesmente mostrar-lhes que a realidade tem limites. Há agora uns pediatras que dizem que as crianças ganharam um tal controlo, e uma tal atenção das famílias que se tornaram pequenos ditadores. Ah, isso é aquele idiota do Urra. Um cretino. O espanhol Javier Urra. Sim. Só diz idiotices [risos]. Mas tem cargos importantes: é professor catedrático na Universidade Complutense de Madrid e é, ou foi, o provedor dos menores em Espanha. Os livros dele têm várias edições mas é um homem execrável. Numa entrevista que li dele, acaba dizendo que castigava os filhos porque gostava muito deles. Bestial! [risos]Está mais próximo, nesse aspecto, do Dr. Spock. O Spock era muito melhor. Ou de Berry Brazelton. Esse é bom. Mas tem uma teoria com a qual não estou totalmente de acordo: diz que o bebé precisa de amor e disciplina. O bebé não precisa de disciplina, precisa de um ambiente ordenado, de um ambiente disciplinado. É diferente. Se um dia lhe derem a refeição às três horas, no dia seguinte às seis da tarde, noutro dia deitam-no às oito, e depois às onze. . . Isso é desestruturante. É. Se o ambiente for ordenado a criança integra-se nisso. Se eu, como professor, protesto por os alunos chegarem tarde à aula, não dá em nada. Agora, se eu chego a horas, ele habituam-se a chegar a horas. E o que é que faz quando há prevaricadores?No Centro de Saúde Mental e Infantil tínhamos dez ou onze equipas e fazia uma reunião por semana com cada uma delas, e uma vez por mês uma reunião geral com toda a gente. Essas reuniões eram às nove da manhã; das nove às onze. E as pessoas chegavam sempre atrasadas. Fiz várias coisas até que simplesmente escrevi num quadro, “quem chegar depois das nove e dez é favor não interromper”. Começaram a ir a horas. As pessoas protestam quando é imposto, mas se for dito com jeito acabam por colaborar. E há outra coisa: a ideia do nosso governo anterior era a de que as sociedades progridem por competição. Não, as sociedades progridem por colaboração. Não é nos períodos de guerra que se fazem as grandes descobertas, é nos períodos de paz. Há uma ideia muito difundida de que é o investimento militar que tem providenciado grandes avanços. . . Não. . . . até na área da psicologia. O Hitler é que dizia mais ou menos isso: que a guerra trazia desenvolvimento. Como é que encara a questão com que todos temos de nos confrontar: a ideia da morte?Fiz uma conferência aqui há tempos num congresso de filosofia em que me convidaram para falar sobre isso. Primeiro recusei, depois insistiram muito comigo. Pus uma condição: “Só se for falar ao mesmo tempo da sexualidade e da morte” [risos]. Todos temos uma angústia, que não é propriamente a angústia de morte, essa é comum nos animais; a angústia perante a morte imediata, o risco. Os homens e os macacos superiores - o orangotango, o gorila, o chimpanzé - já têm alguma consciência disso, têm aquilo a que chamo a angústia essencial. Uma angústia perante a finitude da vida. Têm consciência de que a vida tem um limite. Essa angústia não é totalmente resolvida, mas é resolvida em parte pelo que se chama a imortalidade simbólica. Sei que vou morrer daqui a uns anos, mas também sei que fiz algumas coisas que ficaram, que foram úteis. Ensinei algumas coisas porreiras a umas pessoas. Sei que vou morrer mas diverti-me mais ou menos. Fiz umas asneiras, mas também fiz algumas coisas bem feitas. Há uma certa satisfação, não vou vazio e insatisfeito. Essa consciência aumenta com o passar do tempo, ou nem tanto?Nem tanto. Temos é de ter sucesso em algumas coisas que fazemos. Se só se tem insucesso isso deprime, causa mau estar. Os americanos falam muito dos três “g”, a propósito do amor. Good, giving and game. Bom, generoso e divertido. O mundo deve ser bom, generoso e divertido. Isso é aplicado ao amor?Sim, ao amor e às relações em geral. Mas eles falam disto a propósito do amor. O bom amor é aquele que é good, giving and game (jogo, mas que eu traduzo para divertido). Também temos de aprender a viver com os momentos menos divertidos para não desistirmos à primeira contrariedade. Isso é outra teoria. A teoria da psicanálise clássica é a de que as dores são boas, que é preciso sofrer para ficar mais forte, para enrijecer o carácter. Não é nada a minha teoria. A dor é inevitável, não é boa. Há sempre insucessos, há sempre dores. Eu estava a referir-me à chamada gratificação imediata, cuja necessidade, segundo se diz frequentemente, tem vindo a crescer. Pois, a teoria clássica é a de que a gratificação imediata é má e que se deve educar para a frustração. Reduzir a frustração lenta e progressivamente, é o que ensinam os clássicos. Não é de facto a minha teoria. A frustração é sempre má e deve evitar-se. O que se deve fazer é outra coisa: é desenvolver a capacidade de espera, o que é diferente. Estou suado, vim a correr, apetece-me beber uma cerveja gelada. Mas percebo que se descansar um bocado a cerveja me vai saber muito melhor. Não é a mesma coisa que manter a frustração, ou que considerar a frustração útil. Há hoje patologias mentais novas?É difícil dizer mas há algumas. O DSM [o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais] agora é maior. O DSM é uma porcaria. Aquilo é um catálogo condicionado pela indústria farmacêutica para venderem mais medicamentos. Todos temos lá um lugarzinho. Sim, sim. E um medicamento apropriado. Quais são então as novas patologias?Há uma maior quantidade de traços de psicose, narcisismo, borderline. Porque há uma menor intimidade entre as pessoas. As relações são mais superficiais, menos íntimas, menos vinculadas, mais anónimas. De maneira que não há familiaridade. Deixou de haver a confiança, a colaboração mútua. Isso é um efeito da vida urbana por contraponto à vida rural?Claro, das grandes cidades. E do estilo de vida que as pessoas levam, também. Hoje as pessoas só são íntimas entre dois ou três amigos. No meu tempo era íntimo de todas as pessoas da minha aldeia. Mesmo nas cidades havia aquela coisa de bairro, as pessoas iam a casa uns dos outros. Hoje temos mais conhecidos do que amigos. Há uma diminuição da espessura afectiva dos laços. Não haverá, por outro lado, uma maior liberdade? Porque essa situação de antigamente era também de um grande controlo sobre os indivíduos. Sim. Nesse aspecto, sim. O que é que é preferível?Bom, os extremos serão sempre maus. Mas não sei se a situação de antigamente era assim de tanto controlo. As pessoas respeitavam mais os segredos, por exemplo. Hoje respeitam menos. Se pedir a um amigo seu para respeitar um segredo, ele di-lo logo na primeira esquina. Não tem grande confiança na natureza humana, pelos vistos. A vida actual é mais insegura. Existe isso da natureza humana?Existe, é um bocado diferente da natureza dos macacos, por exemplo [risos]. Mas reconhece a existência de padrões de comportamento, independentemente da cultura, da origem, do meio em que se cresceu?O problema dos valores é um problema posto do ponto de vista moral, quase religioso. Do ponto de vista ético, estético, também. Mas o importante é aquilo que tem valor para a vida, aquilo que é vital. O que acontece é que para o homem, por comparação com o macaco, é importante a beleza de uma rosa, o perfume de uma mulher. O que tem valor para a nossa vida não é só o cheiro a cio. Ou seja, não é só o aspecto pragmático. Também é pragmático: isto permite escolher melhor, saber quem é a pessoa. A selecção é muito mais complexa porque o número de dados que recolhemos é muito maior. Há muito mais variáveis em jogo. Muitíssimo mais. Para um macaco interessa que a fêmea esteja receptiva. Para o homem interessa que a mulher seja simpática, que goste dele; uma série de coisas. Agora, o que acho que tem pouco interesse são esses valores com sentido ético e moral. Como dizia um amigo meu que já faleceu: “O que interessa na mulher são as características morais, mas se for bonita ajuda”. Pode dizer-se que é um optimista?Sou. Acha que estamos a aperfeiçoar-nos?Sim, não tenho dúvidas. Apesar de todos os defeitos, cada vez se vive melhor. A curva da civilização é isto [desenha no papel uma curva], é ascendente. Mas a ascensão na subida não é contínua, há ciclos. E depois há a visibilidade social. Aqui há uns anos numa conferência com o Dr. Jorge Macedo – o historiador que foi director da Torre do Tombo –, houve uma coisa que não me agradou: ele falou muito da violência, referindo que a violência era muito grande nas cidades. E eu disse-lhe: “Parece impossível um professor de História estar a dizer-me isso; sabe melhor do que eu que no tempo do Marquês de Pombal a média de assassinatos era de um ou dois por dia em Lisboa, e Lisboa tinha cento e tal mil habitantes. Hoje tem 600 mil e se calhar são dois ou três por mês”. Há aqui um problema interessante: no tempo do Marquês de Pombal matava-se uma pessoa no Rossio e em Alfama ninguém sabia; hoje matam uma pessoa em Nova Iorque e logo à noite já sabemos. É uma ilusão, é um problema de visibilidade social. A visibilidade social tem a ver com um papel progressivamente maior dos media; os media são indutores de ansiedade?Não. Isso é outra história. Fiz parte de um grupo de trabalho organizado pela Maria Barroso, da Fundação Pro Dignitate. Fui um dos fundadores daquilo. E ela tinha essa ideia: porque se mostram as mortes, as revoluções? Isso não tem mal nenhum, a informação elucida as pessoas. Mas ainda há tempos ouvi o professor Daniel Sampaio, que é um tipo inteligente, dizer que não se podia falar do suicídio dos jovens porque isso contaminava, induzia outros. Pelo contrário; sabendo as pessoas os perigos que existem, não vejo perigo nenhum nisso. O perigo é não informar. Não vê sequer a possibilidade de isso contribuir para um acréscimo da ansiedade?Aí, o que acho é que o grande modelo é a própria natureza. O que não podemos é dar um acidente de automóvel e mostrar só o carro todo esborrachado, um tipo a deitar sangue. É mostrar a cena toda, mostrar a vida. Salientar só aquilo é que pode ser prejudicial e provocar grande ansiedade. Hoje temos a ameaça terrorista, a ameaça dos vírus, agora a ameaça do mosquito. Estamos a receber permanentemente estas doses de alarme…Já pensou que em vez de estarmos aflitos com o mosquito que transmite o Zika, devíamos pensar que isso pode ser um processo de resolver as dificuldades de proteínas, e começar a comer esses mosquitos num prato especial? [risos]. Com manteiga, um bocadinho de mel. . . Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Por qualquer razão não é nas proteínas do mosquito que as pessoas pensam em primeiro lugar. Mas podem começar a pensar nessa vantagem. Se por absurdo tivesse à disposição uma máquina do tempo, para onde escolheria viajar?Para o futuro. O passado passou, que é que ia fazer com o passado? Não gostava nada de voltar atrás, gostava de ter mais 100 anos à frente. O bife que me interessa é o que vou comer logo à noite, não é o que comi ontem [risos].
REFERÊNCIAS:
Vimos uma nova luz nos The xx e ouvimos todas as vozes para Zé Pedro
A banda britânica era a mais aguardada da noite e mostrou-se confiante e celebratória como nunca. Neles se concentraram todas as atenções no arranque do Super Bock Super Rock, marcado também pelo tributo em família ao guitarrista dos Xutos & Pontapés. (...)

Vimos uma nova luz nos The xx e ouvimos todas as vozes para Zé Pedro
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.268
DATA: 2018-07-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: A banda britânica era a mais aguardada da noite e mostrou-se confiante e celebratória como nunca. Neles se concentraram todas as atenções no arranque do Super Bock Super Rock, marcado também pelo tributo em família ao guitarrista dos Xutos & Pontapés.
TEXTO: “Gostei”, diz um amigo ao outro enquanto se sentam ambos num muro à saída da Altice Arena, em Lisboa, hora já avançando madrugada dentro. “Gostei porque sabia o que ia ver”, sentencia. Era uma forma de enquadrar aquilo a que acabarámos de assistir, ou seja, era uma forma de descrever o concerto dos The xx, o mais aguardado da primeira noite do Super Bock Super Rock 2018, no Parque das Nações, em Lisboa. Num pavilhão preenchidíssimo de público – foi o único momento do dia em que todos pareceram escolher o mesmo destino –, o trio britânico ofereceu realmente aquilo que o público esperava. Hold on, Crystalised, Shelter, Say something loving, VCR ou Angels. Todas elas passaram pelo palco maior do festival que esta quinta-feira recebeu também todos os muitos convidados da celebração conjunta, familiar, de Zé Pedro (tributo baptizado, de forma que o homenageado certamente aprovaria, “Who The F*ck is Zé Pedro”). Um festival que aplaudiu à noite, com toda a justiça, sob a pala do Pavilhão de Portugal, um grande soul man chamado Lee Fields, precisamente no mesmo local onde, às 17h, os Parkinsons, os primeiros a actuar, avisaram a certa altura, só para enganar, “a próxima é uma balada” (claro que não era, que os Parkinsons são banda punk'n'roll sem temperamento para coisas dessas). Um festival, continuemos, que, ultrapassadas as duas horas da madrugada, continuava a dançar no pavilhão o som tonitruante dos Justice – dois homens e sua maquinaria, uma barreira imponente de amplificadores e luzes a faiscar enquanto os franceses libertavam batidas saturadas, insufladas de prog e rock e funk e mais patifaria sónica da boa. Apesar da generosa quantidade de t-shirts com a famosa cruz que fomos vendo durante o dia, o equivalente, nos Justice, à icónica língua que se confunde com os Rolling Stones, a verdade é que no arranque do Super Bock Super Rock, tudo pareceu convergir para os The xx. “Gostei porque sabia o que ia ver”, disse-se então quanto tudo terminara. Num concerto iniciado às 23h30, uma hora e quinze minutos depois do inicialmente previsto (o início do tributo a Zé Pedro foi alterado das 20h para as 21h, adiando todas as actuações no palco principal), ouviram-se as vocalizações partilhadas entre Romy Madley Croft e Oliver Sim, ouviram-se os ecos da guitarra daquela flutuarem pelo ar, ouviu-se Jamie xx agindo como propulsor rítmico da banda. Isso era o esperado. Mas, e isto não sabíamos que iríamos ver, viu-se também um trio que, no último concerto da digressão europeia e depois de quase dois anos na estrada, como referiram durante a actuação, já não é aquele casulo de timidez que conhecemos nos primeiros encontros. A música continua a ser espaço para confissão de intimidades, mas também se liberta, efusiva, para transformar o pavilhão numa pista de dança gigante. A delicadeza de um sussurro continua a ser o tom assumido, mas eles encaram-nos agora de frente, Romy Croft dançando livre e confiante, Oliver agitando-se nos calções de napa enquanto Jamie xx põe a máquina em movimento. Ao longo do tempo, do homónimo álbum de estreia (2009) até chegarem, depois de Coexist (2012), ao mais recente I see you (2017), a banda londrina foi caminhando em direcção à luz, procurando fazer da insularidade inicial uma celebração conjunta, quase festiva. A forma como o demonstraram, tão seguros de si, aproximou-os ainda mais de um público que, de qualquer forma, parecia rendido à partida. Começaram intimistas e envolventes, num início em que se ouviu, por exemplo, Say something loving e, pouco a pouco, as texturas electrónicas feitas névoa fantasma foram ganhando corpo e intensidade. Serenámos para que Romy Croft, depois de juras de amor à cidade e ao país em que actuavam, dedilhasse Performance a solo mas, pouco depois, quando Oliver Sim dedicou Fiction à comunidade LGBT - “vejo-vos, são lindos, sou um de vocês” -, o tom alterou-se definitivamente. Chegaram raios laser, Jamie xx empolgou-se na função e até se ouviu uma das canções do seu percurso a solo, Loud places. O público das bancadas levantou-se definitivamente dos lugares para dançar (chegara On hold) e mesmo a sentida e delicada Angel, a da despedida, teve o seu quê de celebração. Sabíamos o que íamos ver, mas não estávamos à espera que os The xx nos encarassem desta forma, tão livres e confortáveis no palco. O arranque do festival, que contou com os Vaccines, curioso caso de culto em Portugal, com a elegância disco-house dos Mirror People de Rui Maia, com o inspirado riot-qurrr, chamemos-lhe assim, de Vaiapraia E as Rainhas do Baile e com as novas de Filipe Sambado & Os Acompanhantes de Luxo, foi também marcado pelo psicadelismo barroco dos ingleses Temples ou por uns curiosos Parcels, australianos radicados em Berlim que parecem o resultado de uma estadia dos Daft Punk e dos Chic nas mediterrâncas Ilhas Baleares. Por eles e, claro, por Lee Fields, homem de carreira tão vasta – começou nos anos 1960, conviveu com Solomon Burke, aprendeu com James Brown – quanto grande é o seu talento para dar vida à soul. De impecável fato branco debruado a brilhantes e acompanhado pelos Expressions, banda ágil e sábia, gingou pelo funk de We can make the world better, ergueu a voz numa dor de alma feita matéria apoteótica em Faithful man. Antes, falara de companheiros tombados cedo demais, dedicando a sua Wish you were here a Sharon Jones e a Charles Bradley, falecidos em anos recentes e, como ele, heróis tardios da soul. Poderia tê-la dedicado também à memória do homem que, à mesma hora, reunia dezenas de músicos na Altice Arena – e a razão pela qual nos foi impossível ver todo o concerto de Fields. Sucederam-se as imagens – Zé Pedro nas várias fases da vida, os seus heróis musicais, os seus companheiros de percurso -, sucederam-se os músicos, sucederam-se as canções. A primeira de todas, London calling, clássico punk dos Clash e uma das canções da vida do guitarrista dos Xutos & Pontapés, deu o mote. Tocou-a uma banda residente que era verdadeira banda família: Fred, director artístico do concerto e filho de Kalú, Marco Nunes, sobrinho do baterista dos Xutos, Sebastião e Vicente Santos, filhos de Tim, João Nascimento, filho de Gui, Joel Cabeleira, sobrinho de João Cabeleira. No baixo, Nuno Espírito Santo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Depois da memória dos Clash, um a um, foram surgindo cúmplices como Tó Trips, que recuperou Submissão, Rui Reininho, que lhe dedicou Morremos a rir, ou João Pedro Pais, que cantou uma És do mundo que, confessou, compôs com Zé Pedro no pensamento. Ao longo das duas horas, vimos Manuela Azevedo cantar Amor com paixão e, com a companhia de Tim, Conta-me histórias. Manel Cruz entregou-se ao clássico Circo de feras e, antes dele, Tomás Wallenstein atacou Morte lenta na companhia de António Reis Colaço, sobrinho de Zé Pedro, e partilhou Este mundo é teu e Esquadrão da Morte com Carlão. Ainda ouviríamos Paulo Gonzo, surgido em palco de muletas erguidas, cruzadas num xis de Xutos, e ainda se veria Jorge Palma e os reunidos Palma's Gang (chegou assim Esta cidade e Portugal Portugal), bem como os Ladrões do Tempo. Para o fim ficaram eles mesmos, os Xutos & Pontapés. Para o adeus, Tim, João Cabeleira, Gui e Kalú chamam todos os participantes a palco. Foi uma multidão a cantar “Remar remar”. Dando justa medida à dimensão do homenageado, Carlão dissera que, “se tivéssemos em palco toda a gente da tuga que gosta do Zé Pedro, tínhamos que fazer três dias de Super Bock Super Rock” – se pecou, não foi por excesso, mas por defeito. O Super Bock Super Rock continua esta sexta-feira com foco centrado no hip hop e tem Travis Scott, Anderson . Paak, Princess Nokia ou Slow J como protagonistas. Termina no sábado, dia em actuarão no Parque das Nações Benjamin Clementine, Julian Casablancas, The The ou Stormzy, entre outros.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Pouco menos do que uma lenda
É uma estrela rock à antiga, mas à dimensão da nossa era. Mergulhou na memória do seu passado, criança na década de 1980, e recriou-o distorcido pela passagem do tempo. No processo, inventou uma nova forma de canções. Pom Pom é o novo álbum de Ariel Pink. (...)

Pouco menos do que uma lenda
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento -0.17
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: É uma estrela rock à antiga, mas à dimensão da nossa era. Mergulhou na memória do seu passado, criança na década de 1980, e recriou-o distorcido pela passagem do tempo. No processo, inventou uma nova forma de canções. Pom Pom é o novo álbum de Ariel Pink.
TEXTO: E eis então Ariel Pink, que acaba de editar Pom Pom, um dos álbuns mais aguardados neste final de ano, a dizer o seguinte: "Com sorte, assistiremos à morte da música daqui a um ano. Esperemos que seja isso que aconteça. " A morte da música? Não toda, corrige. “A música gravada. Já não faz sentido, porque as pessoas não querem saber. " Mais tarde, enquanto abordamos a escandaleira on-line em se que tem visto envolvido nas últimas semanas (aparentes elogios à homofóbica Westboro Baptist Church; declarações sobre Madonna consideradas misóginas), Ariel Marcus Rosenberg, nascido em Los Angeles, ano 1978, dirá que o problema é um e um apenas: “As pessoas pensam que eu estou a gozar em 90 por cento do que digo, quando na verdade estou quase sempre a ser honesto. Não, não estou a gozar. Essa é a ironia em mim. "Pom Pom é o novo álbum do músico que pegou na história pop e transformou a memória que o bom gosto esqueceu (não só, mas numa escala considerável) em Santo Graal para respigadores de despojos do passado (e foi ver o soft-rock, as baterias sintéticas e os teclados foleiros dos anos 1980 ganharem credibilidade indie, o lo-fi a renascer enquanto género e afectação, e uma nova nomenclatura a brotar de estúdios caseiros: ainda nos lembramos da chillwave?). Estávamos em meados da década passada e Ariel Pink reeditara The Doldrums, obra caseira registada em 1999 e descrita como uma viagem imaginária pelo FM de Los Angeles no início dos anos 1980 – daí o ruído que parecia cobrir as canções de estática. Ariel Pink, que como contado pelo própio compôs a primeira canção aos dez anos, quando ainda não sabia tocar qualquer instrumento mas vivia já obcecado com o rock, o seu imaginário e a sua estética, e foi descoberto 15 anos depois disso pelos Animal Collective, que o contrataram para a recém-criada Paw Tracks (que reeditaria The Doldrums), era então incompreendido pela maioria do público que lhe via os concertos na tangente entre a performance e a cacofonia. “O público apupa-me em todo o lado… Nem esconde o seu desprezo”, contava então. Uma minoria, porém, estava atenta e viu nele algo de inspirador. Subterraneamente, Ariel Pink era instigador de novas vagas no universo da música popular urbana. Assim continuou até 2010. Foi nesse ano que editou Before Today. Gravado com uma banda que reuniu e que baptizou de Haunted Graffiti, trouxe-o do underground à cristalina superfície do mundo da pop. Esse álbum magnífico, de som ainda enublado de poeira sónica e feito de memórias sabotadas da década de 1980 (de Michael Jackson a funk robótico e a hard-rock), mas recheado de canções de corpo inteiro, transformou-o numa estrela à escala das pequenas comunidades melómanas do nosso tempo. “É muito pouco provável que alguém consiga ser hoje uma estrela rock, mas é óptimo que não tenhamos de passar 20 anos na escola”, comentará Ariel Pink. “Tens de ter mais que um interesse passageiro e, se o mantiveres, eventualmente algo acontecerá. "Amor-ódioMisto de poster boy glam e figura excêntrica da LA de glamour e decadência, Ariel Pink tornou-se um músico inescapável do presente pop. Deixou de ouvir apupos nos concertos (tudo era agora adoração). Em 2012 chegou Mature Themes, um álbum desequilibrado em que o talento para a síntese e a marca de água musical de Pink conviviam com uma indulgência desapontante. A aura, no entanto, manteve-se intocada. Dois anos depois, Pom Pom, disco em que enterrou os Haunted Graffiti e a que, ao contrário do habitual, devotou longos nove meses e todo o tempo do mundo, chegou quando a aura de herói independente e farol criativo do presente estava sob ameaça. Nos meses anteriores, contara num programa on-line, em tom de paródia confessional, uma história que envolvia uma saída à noite, ele e uma rapariga a borrifar-lhe os olhos com um spray Mace no final. Choveram acusações de misoginia pela Internet em artigos inflamados (os do dia). Depois, numa entrevista a um jornal australiano, Ariel revelou que fora contactado pelo management de Madonna para, de acordo com o citado, revitalizar a carreira da cantora. Pelo meio, disparou que, a partir do primeiro álbum, a criatividade da dita “Rainha da pop” fora desaparecendo progressivamente mas que ele, com as suas canções, poderia ajudá-la – o management de Madonna desmentiu, ele queixou-se de ter sido mal citado e, entre uma coisa e outra, mais acusações de misoginia a choverem on-line. Enquanto tudo isto se desenrolava ao longo do mês passado, chegou outra entrevista, na qual declarava gostar da Westboro Baptist Church, um ajuntamento de conservadores homofóbicos americanos que fazem questão de se envergonhar inadvertidamente a cada manifestação. Resultado? “Ariel Pink é o homem mais detestado do indie-rock”, lia-se por todo o lado (na tal da Internet). A tentativa de defesa não correu bem. “E se eu me suicidasse e twitasse 'Obrigado, pessoal. Tinham razão'?. . . Foi assim que o Ruanda aconteceu”, começou a justificar-se à New Yorker, antes de concluir: “Todos são vítimas, menos os pequenos e simpáticos tipos brancos que só querem deixar as suas mães orgulhosas e tocar numas maminhas. "Note-se, ainda assim, que Ariel Pink não manifestara particular apreço pela Westboro Baptist Church. Defendera que ouvir a agremiação gritar na rua a intolerância que grita era uma recordação importante de que vivia num país onde existe liberdade de expressão. “Gosto de colocar questões, mas acho que não há respostas”, diz agora ao Ípsilon. “Não acredito no certo e no errado. O mundo é muito mais complexo e eu sou uma pessoa… tradicional. " Tradicional? “Sou conservador e acho que devemos manter as coisas como eram em vez de pensar nas transformações maravilhosas que podemos fazer. A mudança acontece por si só, quer tentes fazê-la ou não. Assim sendo, é inútil tentar consegui-la. Mas faz parte do espírito inquieto do nosso tempo”, diz o conservador que canta Nude beach a go-go ou Sexual athletics. Um intruso no passadoÉ portanto neste contexto, o da parangona “o homem mais odiado do indie-rock”, que o encontramos. Mas o Ariel Pink que conversa com o Ípsilon não está preocupado com o contexto. “Não há nada de stressante em tudo isso”, diz descontraído. “Isso é só o Twitter a funcionar”, ri. E sim, levem-se mais ou menos seriamente as declarações, há muito de histeria internética na história do último ano de vida de Ariel Pink. Algo que não existe no álbum que agora editou, Pom Pom. Nele ouvimos, uma vez mais, um músico no seu casulo. As suas canções vêm, de facto, de um lugar peculiar. “Todo o meu projecto de carreira tem sido agir como um intruso na visão do passado, do meu passado. Quando ouço música, tento apreciá-la como quando tinha cinco anos. Estou constantemente a pegar naquele miúdo de cinco anos de forma a não o esquecer. Se eu o esquecer, ele desaparecerá completamente. Porque já não está cá. "Pom Pom conta, entre muitos outros, com a colaboração de Jason Pierce, dos Spiritualized, ou do mítico músico e produtor Kim Fowley (produto acabado da LA de toda a energia criativa e de todos os excessos, figura de culto desde a década de 1960). Fowley deu a Ariel Pink títulos de canções e excertos de melodias a partir da cama de hospital onde luta com um cancro. “Nasceu ao fundo da minha rua, mas ele tem 75 anos e eu tenho 36. E ele é uma lenda e eu sou um pouco menos do que uma lenda. "O álbum, longo de 17 canções, é uma colecção de experiências pop com assinatura sónica vincada, e habita um universo sonoro tão misterioso quanto descaradamente envolvente – brilho sintético, calor orgânico e aura de fantasma. Sendo desequilibrado, mantém-nos sempre longe do aborrecimento ou do desinteresse (esta música pode ser desconcertante, nunca aborrecida ou desinteressante). Nele, 68 minutos eclécticos o suficiente para acolher pop solar extraída dos anos 1960 (Plastic raincoats in the pig parade), indie muito twee (Put your number in my phone), hard rock de laca bem doseada (Not enough violence), experimentação vanguardista falhada (o final de Dinosaur Carebears), pop sátira à Frank Zappa & The Mothers Of Invention (Nude beach a go-go), histórias patetas de strippers e adolescentes que acabam mal (o funk sintético, 80s totalmente 80s, de Black ballerina). Pom Pom é o álbum de um provocador ocasional e de um excêntrico inadvertido que inventou uma linguagem pop perante a qual reagimos primeiro intrigados. Chegados a este disco, não deixámos de ficar intrigados, mas a música ganhou uma curiosa familiaridade. Vivemos o presente de um passado que nunca existiu. Só não deslindámos se é rosto mesmo a máscara de Ariel Pink. Nem quando se despede assim. “Não há um Ariel Pink e um Ariel Rosenberg. As pessoas pensam que estou a interpretar uma personagem, mas só mudei o nome para encaixar num projecto musical. Quando fala comigo, fala com Ariel Rosenberg. Não sou um actor. " Interessa sabermos?
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