Discurso perante a Real Academia Sueca: "De como a Personagem Foi Mestre e o Autor Seu Aprendiz"
O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. (...)

Discurso perante a Real Academia Sueca: "De como a Personagem Foi Mestre e o Autor Seu Aprendiz"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento -0.25
DATA: 2010-06-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher.
TEXTO: Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo. Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom carácter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável. Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que accionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: "José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira". Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para toda as pessoas da casa, a figueira. Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos depois viria a conhecer e a saber o que significava. . . No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia. Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele calculadamente metia no relato: "E depois?". Talvez repetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer, quer fosse para as enriquecer com peripécias novas. Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me tranquilizava: "Não faças caso, em sonhos não há firmeza". Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprias filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver. Muitos anos depois, escrevendo pela primeira vez sobre este meu avô Jerónimo e esta minha avó Josefa (faltou-me dizer que ela tinha sido, não dizer de quantos a conheceram quando rapariga, de uma formosura invulgar), tive consciência de que estava a transformar as pessoas comuns que eles haviam sido em personagens literárias e que essa era, provavelmente, a maneira de não os esquecer, desenhando e tornando a desenhar os seus rostos com o lápis sempre cambiante da recordação, colorindo e iluminando a monotonia de um quotidiano baço e sem horizontes, como quem vai recriando, por cima do instável mapa da memória, a irrealidade sobrenatural do país em que decidiu passar a viver. A mesma atitude de espírito que, depois de haver evocado a fascinante e enigmática figura de um certo bisavô berbere, me levaria a descrever mais ou menos nestes termos um velho retrato (hoje já com quase oitenta anos) onde os meus pais aparecem: "Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo, mostrando no rosto uma expressão de solene gravidade que é talvez temor diante da câmara, no instante em que a objectiva vai fixar, de um e de outro, a imagem que nunca mais tornarão a ter, porque o dia seguinte será implacavelmente outro dia. . . Minha mãe apoia o cotovelo direito numa alta coluna e segura na mão esquerda, caída ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha mãe e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como uma asa. Ambos pisam acanhados um tapete de ramagens. A tela que serve de fundo postiço ao retrato mostra umas difusas e incongruentes arquitecturas neoclássicas". E terminava: "Um dia tinha de chegar em que contaria estas coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô berbere, vindo do Norte de África, um outro avô pastor de porcos, uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor num retrato - que outra genealogia pode importar-me? a que melhor árvore me encontraria?"Escrevi estas palavras há quase trinta anos, sem outra intenção que não fosse reconstituir e registar instantes da vida das pessoas que me geraram e que mais perto de mim estiveram, pensando que nada mais precisaria de explicar para que se soubesse de onde venho e de que materiais se fez a pessoa que comecei por ser e esta em que pouco a pouco me vim tornando. Afinal, estava enganado, a biologia não determina tudo, e, quanto à genética, muito misteriosos deverão ter sido os seus caminhos para terem dado uma volta tão larga. . . À minha árvore genealógica (perdôe-se-me a presunção de a designar assim, sendo tão minguada a substância da sua seiva) não faltavam apenas alguns daqueles ramos que o tempo e os sucessivos encontros da vida vão fazendo romper do tronco central, também lhe faltava quem ajudasse as suas raízes a penetrar até às camadas subterrâneas mais fundas, quem apurasse a consistência e o sabor dos seus frutos, quem ampliasse e robustecesse a sua copa para fazer dela abrigo de aves migrantes e amparo de ninhos. Ao pintar os meus pais e os meus avós com tintas de literatura, transformando-os, de simples pessoas de carne e osso que haviam sido, em personagens novamente e de outro modo construtoras da minha vida, estava, sem o perceber, a traçar o caminho por onde as personagens que viesse a inventar, as outras, as efectivamente literárias, iriam fabricar e trazer-me os materiais e as ferramentas que, finalmente, no bom e no menos bom, no bastante e no insuficiente, no ganho e no perdido, naquilo que é defeito mas também naquilo que é excesso, acabariam por fazer de mim a pessoa em que hoje me reconheço: criador dessas personagens, mas, ao mesmo tempo, criatura delas. Em certo sentido poder-se-á mesmo dizer que, letra a letra, palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei. Creio que, sem elas, não seria a pessoa que hoje sou, sem elas talvez a minha vida não tivesse logrado ser mais do que um esboço impreciso, uma promessa como tantas outras que de promessa não conseguiram passar, a existência de alguém que talvez pudesse ter sido e afinal não tinha chegado a ser. Agora sou capaz de ver com clareza quem foram os meus mestres de vida, os que mais intensamente me ensinaram o duro ofício de viver, essas dezenas de personagens de romance e de teatro que neste momento vejo desfilar diante dos meus olhos, esses homens e essas mulheres feitos de papel e tinta, essa gente que eu acreditava ir guiando de acordo com as minhas conveniências de narrador e obedecendo à minha vontade de autor, como títeres articulados cujas acções não pudessem ter mais efeito em mim que o peso suportado e a tensão dos fios com que os movia. Desses mestres, o primeiro foi, sem dúvida, um medíocre pintor de retratos que designei simplesmente pela letra H. , protagonista de uma história a que creio razoável chamar de dupla iniciação (a dele, mas também, de algum modo, do autor do livro), intitulada Manual de Pintura e Caligrafia, que me ensinou a honradez elementar de reconhecer e acatar, sem ressentimento nem frustração, os meus próprios limites: não podendo nem ambicionando aventurar-me para além do meu pequeno terreno de cultivo, restava-me a possibilidade de escavar para o fundo, para baixo, na direcção das raízes. As minhas, mas também as do mundo, se podia permitir-me uma ambição tão desmedida. Não me compete a mim, claro está, avaliar o mérito do resultado dos esforços feitos, mas creio ser hoje patente que todo o meu trabalho, de aí para diante, obedeceu a esse propósito e a esse princípio. Vieram depois os homens e as mulheres do Alentejo, aquela mesma irmandade de condenados da terra a que pertenceram o meu avô Jerónimo e a minha avó Josefa, camponeses rudes obrigados a alugar a força dos braços a troco de um salário e de condições de trabalho que só mereceriam o nome de infames, cobrando por menos que nada a vida a que os seres cultos e civilizados que nos prezamos de ser apreciamos chamar, segundo as ocasiões, preciosa, sagrada ou sublime. Gente popular que conheci, enganada por uma Igreja tão cúmplice como beneficiária do poder do Estado e dos terratenentes latifundistas, gente permanentemente vigiada pela policia, gente, quantas e quantas vezes, vítima inocente das arbitrariedades de uma justiça falsa. Três gerações de uma família de camponeses, os Mau-Tempo, desde o começo do século até a Revolução de Abril de 1974 que derrubou a ditadura, passam nesse romance a que dei o título de Levantado do Chão, e foi com tais homens e mulheres do chão levantados, pessoas reais primeiro, figuras de ficção depois, que aprendi a ser paciente, a confiar e a entregar-me ao tempo, a esse tempo que simultaneamente nos vai construindo e destruindo para de novo nos construir e outra vez nos destruir. Só não tenho a certeza de haver assimilado de maneira satisfatória aquilo que a dureza das experiências tornou virtude nessas mulheres e nesses homens: uma atitude naturalmente estóica perante a vida. Tendo em conta, porém, que a lição recebida, passados mais de vinte anos, ainda permanece intacta na minha memória, que todos os dias a sinto presente no meu espírito como uma insistente convocatória, não perdi, até agora, a esperança de me vir a tornar um pouco mais merecedor da grandeza dos exemplos de dignidade que me foram propostos na imensidão das planícies do Alentejo. O tempo o dirá. Que outras lições poderia eu receber de um português que viveu no século XVI que compôs as "Rimas" e as glórias, os naufrágios e os desencantos pátrios de "Os Lusíadas", que foi um génio poético absoluto, o maior da nossa literatura, por muito que isso pese a Fernando Pessoa, que a si mesmo se proclamou como o Super-Camões dela? Nenhuma lição que estivesse à minha medida, nenhuma lição que eu fosse capaz de aprender, salvo a mais simples que me poderia ser oferecida pelo homem Luís Vaz de Camões na sua estreme humanidade, por exemplo, a humildade orgulhosa de um autor que vai chamando a todas as portas à procura de quem esteja disposto a publicar-lhe o livro que escreveu, sofrendo por isso o desprezo dos ignorantes de sangue e de casta, a indiferença desdenhosa de um rei e da sua companhia de poderosos, o escárnio com que desde sempre o mundo tem recebido a visita dos poetas, dos visionários e dos loucos. Ao menos uma vez na vida todos os autores tiveram ou terão de ser Luís de Camões, mesmo se não escreverem as redondilhas de "Sôbolos rios". . . Entre fidalgos da corte e censores do Santo Ofício, entre os amores de antanho e as desilusões da velhice prematura, entre a dor de escrever e a alegria de ter escrito, foi a este homem doente que regressa pobre da Índia, aonde muitos só iam para enriquecer, foi a este soldado cego de um olho e golpeado na alma, foi a este sedutor sem fortuna que não voltará nunca mais a perturbar os sentidos das damas do paço, que eu pus a viver no palco da peça teatro chamada Que farei com este livro?, em cujo final ecoa uma outra pergunta, aquela que importa verdadeiramente, aquela que nunca saberemos se alguma vez chegará a ter resposta suficiente: "Que fareis com este livro?". Humildade orgulhosa, foi essa de levar debaixo do braço uma obra-prima e ver-se injustamente enjeitado pelo mundo. Humildade orgulhosa também, e obstinada, esta de querer saber para que irão servir amanhã os livros que andamos a escrever hoje, e logo duvidar que consigam perdurar longamente (até quando?) as razões tranquilizadoras que acaso nos estejam a ser dadas ou que estejamos a dar a nós próprios. Ninguém melhor se engana que quando consente que o enganem os outros. . . Aproximam-se agora um homem que deixou a mão esquerda na guerra e uma mulher que veio ao mundo com o misterioso poder de ver o que há por trás da pele das pessoas. Ele chama-se Baltasar Mateus e tem a alcunha de Sete-Sóis, a ela conhecem-na pelo nome de Blimunda, e também pelo apodo de Sete-Luas que lhe foi acrescentado depois, porque está escrito que onde haja um sol terá de haver uma lua, e que só a presença conjunta e harmoniosa de um e do outro tornará habitável, pelo amor, a terra. Aproxima-se também um padre jesuíta chamado Bartolomeu que inventou uma máquina capaz de subir ao céu e voar sem outro combustível que não seja a vontade humana, essa que, segundo se vem dizendo, tudo pode, mas que não pôde, ou não soube, ou não quis, até hoje, ser o sol e a lua da simples bondade ou do ainda mais simples respeito. São três loucos portugueses do século XVIII, num tempo e num país onde floresceram as superstições e as fogueiras da Inquisição, onde a vaidade e a megalomania de um rei fizeram erguer um convento, um palácio e uma basílica que haveriam de assombrar o mundo exterior, no caso pouco provável de esse mundo ter olhos bastantes para ver Portugal, tal como sabemos que os tinha Blimunda para ver o que escondido estava. . . E também se aproxima uma multidão de milhares e milhares de homens com as mãos sujas e calosas, com o corpo exausto de haver levantado, durante anos a fio, pedra a pedra, os muros implacáveis do convento, as salas enormes do palácio, as colunas e as pilastras, as aéreas torres sineiras, a cúpula da basílica suspensa sobre o vazio. Os sons que estamos a ouvir são do cravo de Domenico Scarlatti, que não sabe se deve rir ou chorar. . . Esta é a história de Memorial do Convento, um livro em que o aprendiz de autor, graças ao que lhe vinha sendo ensinado desde o antigo tempo dos seus avós Jerónimo e Josefa, já conseguiu escrever palavras como estas, donde não está ausente alguma poesia: "Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu". Que assim seja. De lições de poesia sabia já alguma coisa o adolescente, aprendidas nos seus livros de texto quando, numa escola de ensino profissional de Lisboa, andava a preparar-se para o ofício que exerceu no começo da sua vida de trabalho: o de serralheiro mecânico. Teve também bons mestres de arte poética nas longas horas nocturnas que passou em bibliotecas públicas, lendo ao acaso de encontros e de catálogos, sem orientação, sem alguém que o aconselhasse com o mesmo assombro criador do navegante que vai inventando cada lugar que descobre. Mas foi na biblioteca da escola industrial que O Ano da Morte de Ricardo Reis começou a ser escrito. . . Ali encontrou um dia o jovem aprendiz de serralheiro (teria então 17 anos) uma revista - "Atena" era o título - em que havia poemas assinados com aquele nome e, naturalmente, sendo tão mau conhecedor da cartografia literária do seu país pensou que existia em Portugal um poeta que se chamava assim: Ricardo Reis. Não tardou muito tempo, porém, a saber que o poeta propriamente dito tinha sido um tal Fernando Nogueira Pessoa que assinava poemas com nomes de poetas inexistentes nascidos na sua cabeça e a que chamava heterónimos, palavra que não constava dos dicionários da época, por isso custou tanto trabalho ao aprendiz de letras saber o que ela significava. Aprendeu de cor muitos poemas de Ricardo Reis ("Para ser grande sê inteiro/Põe quanto és no mínimo que fazes"), mas não podia resignar-se, apesar de tão novo e ignorante, que um espírito superior tivesse podido conceber, sem remorso este verso cruel: "Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo". Muito, muito tempo depois, o aprendiz, já de cabelos brancos e um pouco mais sábio das suas próprias sabedorias, atreveu-se a escrever um romance para mostrar ao poeta das "Odes" alguma coisa do que era o espectáculo do mundo nesse ano de 1936 em que o tinha posto a viver os seus últimos dias: a ocupação da Renânia pelo exército nazista, a guerra de Franco contra a República espanhola, a criação por Salazar das milícias fascistas portuguesas. Foi como se estivesse a dizer-lhe: "Eis o espectáculo do mundo, meu poeta das amarguras serenas e do cepticismo elegante. Disfruta, goza, contempla, já que estar sentado é a tua sabedoria. . . "O Ano da Morte de Ricardo Reis terminava com umas palavras melancólicas: "Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera". Portanto, não haveria mais descobrimentos para Portugal, apenas como destino uma espera infinita de futuros nem aos menos inimagináveis: só o fado do costume, a saudade de sempre, e pouco mais. . . Foi então que o aprendiz imaginou que talvez houvesse ainda uma maneira de tornar a lançar os barcos à água, por exemplo, mover a própria terra e pô-la a navegar pelo mar fora. Fruto imediato do ressentimento colectivo português pelos desdéns históricos de Europa (mais exacto seria dizer fruto de um meu ressentimento pessoal. . . ), o romance que então escrevi - Jangada de Pedra- separou do continente europeu toda a Península Ibérica para a transformar numa grande ilha flutuante, movendo-se sem remos, nem velas, nem hélices em direcção ao Sul do mundo, "massa de pedra e terra, coberta de cidades, aldeias, rios, bosques, fábricas, matos bravios, campos cultivados, com a sua gente e os seus animais", a caminho de uma utopia nova: o encontro cultural dos povos peninsulares com os povos do outro lado do Atlântico, desafiando assim, a tanto a minha estratégia se atreveu, o domínio sufocante que os Estados Unidos da América do Norte vêm exercendo naquelas paragens. . . Uma visão duas vezes utópica entenderia esta ficção política como uma metáfora muito mais géneros e humana: que a Europa, toda ela, deverá deslocar-se para o Sul, a fim de, em desconto dos seus abusos colonialistas antigos e modernos, ajudar a equilibrar o mundo. Isto é, Europa finalmente como ética. As personagens da Jangada de Pedra- duas mulheres , três homens e um cão - viajam incansavelmente através da península enquanto ela vai sulcando o oceano. O mundo está a mudar e eles sabem que devem procurar em si mesmos as pessoas novas em que irão tornar-se (sem esquecer o cão, que não é um cão como os outros. . . ). Isso lhes basta. Lembrou-se então o aprendiz de que em tempos da sua vida havia feito algumas revisões de provas de livros e que se na Jangada de Pedratinha, por assim dizer, revisado o futuro, não estaria mal que revisasse agora o passado, inventando um romance que se chamaria História do Cerco de Lisboa, no qual um revisor, revendo um livro do mesmo título, mas de História, e cansado de ver como a dita História cada vez é menos capaz de surpreender, decide pôr no lugar de um "sim" um "não", subvertendo a autoridade das "verdades históricas". Raimundo Silva, assim se chama o revisor, é um homem simples, vulgar, que só se distingue da maioria por acreditar que todas as coisas têm o seu lado visível e o seu lado invisível e que não saberemos nada delas enquanto não lhes tivermos dado a volta completa. De isso precisamente se trata numa conversa que ele tem com o historiador. Assim: "Recordo-lhe que os revisores já viram muito de literatura e vida, O meu livro, recordo-lhe eu, é de história, Não sendo propósito meu apontar outras contradições, senhor doutor, em minha opinião tudo quanto não for vida é literatura, A história também. A história sobretudo, sem querer ofender, E a pintura, e a música, A música anda a resistir desde que nasceu, ora vai, ora vem, quer livrar-se da palavra, suponho que por inveja, mas regressa sempre à obediência, E a pintura, Ora, a pintura não é mais do que literatura feita com pincéis, Espero que não esteja esquecido de que a humanidade começou a pintar muito antes de saber escrever, Conhece o rifão, se não tens cão caça com o gato, ou, por outras palavras, quem não pode escrever, pinta, ou desenha, é o que fazem as crianças, O que você quer dizer, por outras palavras, é que a literatura já existia antes de ter nascido, Sim senhor, como o homem, por outras palavras, antes de o ser já o era, Quer-me parecer que você errou a vocação, devia era ser historiador, Falta-me o preparo, senhor doutor, que pode um simples homem fazer sem o preparo, muita sorte já foi ter vindo ao mundo com a genética arrumada, mas, por assim dizer, em estado bruto, e depois não mais polimento que primeiras letras que ficaram únicas, Podia apresentar-se como autodidacta, produto do seu próprio e digno esforço, não é vergonha nenhuma, antigamente a sociedade tinha orgulho nos seus autodidactas, Isso acabou, veio o desenvolvimento e acabou, os autodidactas são vistos com maus olhos, só os que escrevem versos e histórias para distrair é que estão autorizados a ser autodidactas, mas eu para a criação literária nunca tive jeito, Então, meta-se a filósofo, O senhor doutor é um humorista, cultiva a ironia, chego a perguntar-me como se dedicou à história, sendo ela tão grave e profunda ciência, Sou irónico apenas na vida real, Bem me queria a mim parecer que a história não é a vida real, literatura, sim, e nada mais, Mas a história foi vida real no tempo em que ainda não se lhe poderia chamar história, Então o senhor doutor acha que a história e a vida real, Acho, sim, Que a história foi vida real, quero dizer, Não tenho a menor dúvida, Que seria de nós se o deleatur que tudo apaga não existisse, suspirou o revisor". Escusado será acrescentar que o aprendiz aprendeu com Raimundo Silva a lição da dúvida. Já não era sem tempo. Ora, foi provavelmente esta aprendizagem da dúvida que o levou, dois anos mais tarde, a escrever O Evangelho segundo Jesus Cristo. É certo, e ele tem-no dito, que as palavras do título lhe surgiram por efeito de uma ilusão de óptica, mas é legítimo interrogar-nos se não teria sido o sereno exemplo do revisor o que, nesse meio tempo, lhe andou a preparar o terreno de onde haveria de brotar o novo romance. Desta vez não se tratava de olhar por trás das páginas do "Novo Testamento" à procura de contrários, mas sim de iluminar com uma luz rasante a superfície delas, como se faz a uma pintura, de modo a fazer-lhe ressaltar os relevos, os sinais de passagem, a obscuridade das depressões. Foi assim que o aprendiz, agora rodeado de personagens evangélicas, leu, como se fosse a primeira vez, a descrição da matança dos Inocentes, e, tendo lido, não compreendeu. Não compreendeu que já pudesse haver mártires numa religião que ainda teria de esperar trinta anos para que o seu fundador pronunciasse a primeira palavra dela, não compreendeu que não tivesse salvado a vida das crianças de Belém precisamente a única pessoa que o poderia ter feito, não compreendeu a ausência, em José, de um sentimento mínimo de responsabilidade, de remorso, de culpa, ou sequer de curiosidade, depois de voltar do Egipto com a família. Nem se poderá argumentar, em defesa da causa, que foi necessário que as crianças de Belém morressem para que pudesse salvar-se a vida de Jesus: o simples senso comum, que a todas as coisas, tanto às humanas como às divinas, deveria presidir, aí está para nos recordar que Deus não enviaria o seu Filho à terra, de mais a mais com o encargo de redimir os pecados da humanidade, para que ele viesse a morrer aos dois anos de idade degolado por um soldado de Herodes. . . Nesse "Evangelho", escrito pelo aprendiz com o respeito que merecem os grandes dramas, José será consciente da sua culpa, aceitará o remorso em castigo da falta que cometeu e deixar-se-á levar à morte quase sem resistência, como se isso lhe faltasse ainda para liquidar as suas contas com o mundo. O "Evangelho" do aprendiz não é, portanto, mais uma lenda edificante de bem-aventurados e de deuses, mas a história de uns quantos seres humanos sujeitos a um poder contra o qual lutam, mas que não podem vencer. Jesus, que herdará as sandálias com que o pai tinha pisado o pó dos caminhos da terra, também herdará dele o sentimento trágico da responsabilidade e da culpa que nunca mais o abandonará, nem mesmo quando levantar a voz do alto da cruz: "Homens, perdoai-lhe porque ele não sabe o que fez", por certo referindo-se ao Deus que o levara até ali, mas quem sabe se recordando ainda, nessa agonia derradeira, o seu pai autêntico, aquele que, na carne e no sangue, humanamente o gerara. Como se vê, o aprendiz já tinha feito uma larga viagem quando no seu herético "Evangelho" escreveu as últimas palavras do diálogo no templo entre Jesus e o escriba: "A culpa é um lobo que come o filho depois de ter devorado o pai, disse o escriba, Esse lobo de que falas já comeu o meu pai, disse Jesus, Então só falta que te devore a ti, E tu, na tua vida, foste comido, ou devorado, Não apenas comido e devorado, mas vomitado, respondeu o escriba". Se o imperador Carlos Magno não tivesse estabelecido no Norte da Alemanha um mosteiro, se esse mosteiro não tivesse dado origem à cidade de Münster, se Münster não tivesse querido assinalar os mil e duzentos anos da sua fundação com uma ópera sobre a pavorosa guerra que enfrentou no século XVI protestantes anabaptistas e católicos, o aprendiz não teria escrito a peça de teatro a que chamou In Nomine Dei. Uma vez mais, sem outro auxílio que a pequena luz da sua razão, o aprendiz teve de penetrar no obscuro labirinto das crenças religiosas, essas que com tanta facilidade levam os seres humanos a matar e a deixar-se matar. E o que viu foi novamente a máscara horrenda da intolerância, uma intolerância que em Münster atingiu o paroxismo demencial, uma intolerância que insultava a própria causa que ambas as partes proclamavam defender. Porque não se tratava de uma guerra em nome de dois deuses inimigos, mas de uma guerra em nome de um mesmo deus. Cegos pelas suas próprias crenças, os anabaptistas e os católicos de Münster não foram capazes de compreender a mais clara de todas as evidências: no dia do Juízo Final, quando uns e outros se apresentarem a receber o prémio ou o castigo que mereceram as suas acções na terra, Deus, se em suas decisões se rege por algo parecido à lógica humana, terá de receber no paraíso tanto a uns como aos outros, pela simples razão de que uns e outros nele crêem. A terrível carnificina de Münster ensinou ao aprendiz que, ao contrário do que prometeram, as religiões nunca serviram para aproximar os homens, e que a mais absurda de todas as guerras é uma guerra religiosa, tendo em consideração que Deus não pode, ainda que o quisesse, declarar guerra a si próprio. . . Cegos. O aprendiz pensou: "Estamos cegos", e sentou-se a escrever o Ensaio sobre a Cegueira para recordar a quem o viesse a ler que usamos perversamente a razão quando humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que a mentira universal tomou o lugar das verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que devia ao seu semelhante. Depois, o aprendiz, como se tentasse exorcizar os monstros engendrados pela cegueira da razão, pôs-se a escrever a mais simples de todas as histórias: uma pessoa que vai à procura de outra pessoa apenas porque compreendeu que a vida não tem nada mais importante que pedir a um ser humano. O livro chama-se "Todos os Nomes". Não escritos, todos os nossos nomes estão lá. Os nomes dos vivos e os nomes dos mortos. Termino. A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo. Por José SaramagoEstocolmo, 7 de Dezembro de 1998
REFERÊNCIAS:
Moura acusa Cavaco de não querer debater com os outros candidatos
Defensor Moura vê o mandato presidencial como a oportunidade de exercer uma “magistratura de influência cívica e moral”. O candidato à Presidência da República aproveitou a sua presença hoje, no chat online do PÚBLICO, para dizer que “Cavaco Silva está em campanha há 30 anos” e que é evidente que o actual Presidente da República “não quer debater com os adversários”, porque não gosta do “contraditório”. (...)

Moura acusa Cavaco de não querer debater com os outros candidatos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento -0.12
DATA: 2010-12-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: Defensor Moura vê o mandato presidencial como a oportunidade de exercer uma “magistratura de influência cívica e moral”. O candidato à Presidência da República aproveitou a sua presença hoje, no chat online do PÚBLICO, para dizer que “Cavaco Silva está em campanha há 30 anos” e que é evidente que o actual Presidente da República “não quer debater com os adversários”, porque não gosta do “contraditório”.
TEXTO: Em resposta a diversos leitores, Defensor Moura disse ainda que gostava de ver Cavaco Silva “sentado num bar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, a responder sozinho a este inquérito”, tal como fez o candidato. Questionado sobre o casamento e a adopção por casais homossexuais, o candidato afirmou que votou a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo e que é igualmente a favor da adopção. Afirmou-se contra o aborto, mas “ainda mais contra a criminalização das mulheres que, tantas vezes com sofrimento físico e moral, são impelidas a executá-lo”. A regionalização também esteve presente nas perguntas dos leitores do PÚBLICO. Esta é uma das suas principais bandeiras de campanha e, perante a crise económica que o país atravessa, o deputado socialista considerou que o tema é “urgente”, justamente porque Portugal se defronta com dificuldades e o centralismo já provou a sua “ineficácia”. E lembrou que “os países desenvolvidos estão regionalizados”. Em resposta a um dos leitores sobre a candidatura do também socialista Manuel Alegre, Defensor Moura disse que se tratam de opções bem diferentes para o país, “embora ambas compatíveis com o modelo PS”. Sobre a necessidade de uma revisão constitucional, o candidato propôs que o Presidente da República cumpra um único mandato e insistiu na importância da Declaração Universal dos Direitos dos Animais e na preservação das espécies, como direitos que devem estar constitucionalmente consagrados. Como médico, considerou ainda o SNS – “uma das principais conquistas do regime democrático” –, como “o melhor serviço público do país” e gostaria de ver essa qualidade na justiça, na educação e na agricultura. Apontou o “centralismo, a corrupção e o clientelismo” como sendo os “três cancros da democracia portuguesa”. Crítico relativamente às medidas do Orçamento do Estado para 2011, Moura considerou que as medidas afectam "grupos mais desfavorecidos" e disse que é "incompreensível " não tributar a antecipação de dividendos e "admitir a anómala compensação nos Açores". Segue-se o candidato Fernando Nobre, esta quarta-feira, entre as 10h e as 11h, no PÚBLICO online, para responder em directo às questões dos leitores.
REFERÊNCIAS:
Partidos PS
Marcel Proust e as paixões do narrador
Neste último texto a propósito dos 100 anos de Em Busca do Tempo Perdido, António Mega Ferreira lembra que este é também um romance de amor e de esquecimento. E que a escrita de Proust é uma escrita do desejoAlém de muitas outras coisas, Em Busca do Tempo Perdido é também um romance de amor; ou rigorosamente, um romance sobre o Amor. Marcel, o Narrador inventado por Proust, é um ser amável e amante. Na desencantada visão do autor, que o leitor é levado a partilhar, é tanto menos amável quanto mais amante; e torna-se mais amável quando menos amante. As três grandes paixões do Narrador, que não dispensam inúmeras "... (etc.)

Marcel Proust e as paixões do narrador
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
TEXTO: Neste último texto a propósito dos 100 anos de Em Busca do Tempo Perdido, António Mega Ferreira lembra que este é também um romance de amor e de esquecimento. E que a escrita de Proust é uma escrita do desejoAlém de muitas outras coisas, Em Busca do Tempo Perdido é também um romance de amor; ou rigorosamente, um romance sobre o Amor. Marcel, o Narrador inventado por Proust, é um ser amável e amante. Na desencantada visão do autor, que o leitor é levado a partilhar, é tanto menos amável quanto mais amante; e torna-se mais amável quando menos amante. As três grandes paixões do Narrador, que não dispensam inúmeras "fraquezas" mais ou menos erotizadas (uma camponesa apercebida no caminho nos arredores de Balbec, uma empregada de restaurante em Doncières a quem o Narrador paga para consentir as suas carícias, ou a famosa prostituta "Rachel quand du Seigneur"), são, a partir da infância, Gilberte, a filha de Swann e Odette; a duquesa de Guermantes, Oriana; e, por fim, a Albertine de que ouvira falar em Combray, que conhecera em Balbec e que acaba aprisionada no seu apartamento de Paris. A primeira deixa de lhe interessar quando visivelmente o rejeita por afastamento: servira--lhe como iniciadora nos jogos infantis onde se pressentem as primeiras pulsões eróticas, tanto quanto como mediadora para o acesso à casa dos Swann, que era, antes mesmo de mitificar os Guermantes, o horizonte de aspirações sociais do jovem Marcel. A segunda, divinizada pela fantasia barroca do Narrador adolescente, torna-se uma fada destronada quando Marcel passa a frequentar o salão dos Guermantes: o choque da realidade mundana que a envolve desfaz a fantasia, o mito esboroa--se no confronto com a sua representação. Há hoje poucas dúvidas de que Alfred Agostinelli, o motorista que lhe serviu brevemente de secretário, constituiu o ingrediente afectivo que permitiu a Proust compor, em toda a diversidade de efeitos de que a sua escrita era capaz, o romance de amor do Narrador por Albertine, exaustivamente narrado no quinto volume da obra, A Prisioneira. Porém, nem no nome, nem na ambiguidade sexual sugerida por alguns críticos, Alfred pode ser assimilado a Albertine. Menos ainda, tanto quanto sabemos, na tocante docilidade de Albertine, que aceita a sua condição de prisioneira do Narrador, ou, inversamente, na sua reiterada prática da mentira e do disfarce, o que não parece ter acontecido com Agostinelli. Mas as circunstâncias denotam um paralelismo de situações que só pode querer significar que Proust, como em tantas outras ocasiões, se apropriou de um episódio da sua vida para o fazer figurar, por transposição e expansão, no romance que estava a escrever. Em primeiro lugar, porque Proust faz brotar a paixão do Narrador por Albertine de uma reminiscência do passado, tal como o reaparecimento na sua vida de Agostinelli vai irromper como a revelação de uma paixão a que, talvez com exagero, se referirá mais tarde como a maior da sua vida. Intensa, mas presumivelmente não correspondida como tal, a paixão de Proust estava condenada a não durar muito: manteve Agostinelli aperreado durante seis meses no apartamento do Bulevar Haussmann - exactamente o mesmo tempo que Albertine aguenta, no romance, a prisão dourada em que o Narrador a encerra; desdobrou-se em tentativas para o fazer voltar, tal como faz o Narrador, em A Fugitiva; escreveu uma carta em que lhe anunciava a compra de um aeroplano e de um Rolls-Royce - e retoma essa carta (o aeroplano transforma-se em iate), quase ipsis verbis, no romance; enfim, Agostinelli morreu num desastre de avião, em maio de 1914 - e Albertine sai da vida do Narrador porque cai dum cavalo em Combray. As coincidências são demasiadas para o serem simplesmente. Tal como Proust está no Narrador sem o ser verdadeiramente, assim também Agostinelli está em Albertine - mas não é Albertine a não ser como motivo inspirador, e provavelmente apenas depois da sua trágica morte. O "crescimento" de Albertine como personagem maior do romance de Proust vai influenciar retrospectivamente a reescrita e expansão de À Sombra das Raparigas em Flor, que ganha autonomia e acabará por se tornar o segundo volume da obra. Ao mesmo tempo, a eclosão do episódio amoroso vai permitir ao escritor, qual organista tocando simultaneamente diversos teclados, iniciar o trabalho de composição de A Prisioneira e de A Fugitiva, ao mesmo tempo que trabalha em O Lado de Guermantes e refunde substancialmente o seu plano inicial para Sodoma e Gomorra - tudo isto enquanto dura a guerra. Mas o seu método de trabalho (que nunca é linear, relembremos) permite-lhe dominar todos estes teclados com a mesma intensidade de escrita, tornando a estrutura do romance cada vez mais flexível e distendida e a sua harmonização, embora não despida de anacronismos e contradições, verosímil e consistente com a sua ideia fundamental. Não anunciara ele, no primeiro volume, que Gilberte, filha de Swann e de Odette, viria a casar-se com Robert de Saint-Loup? Pois bem, ao iniciarmos a leitura do último volume, O Tempo Reencontrado, aí está Gilberte, já casada, mas nem por isso muito amada, com Robert de Saint-Loup, que fora amigo do Narrador e de quem este entretanto se desgostara por lhe ter descoberto inclinações homossexuais semelhantes às do seu tio, o barão de Charlus. Numa longa nota escrita em novembro de 1915, Proust dá conta dos diversos passos da relação do Narrador com Albertine (incluindo a cena final, em que Françoise anuncia a Marcel que a prisioneira decidiu partir), o que quer dizer que a estrutura de A Prisioneira (e certamente grande parte do texto) já estava definida então. E, na mesma nota, certas citações extraídas de Sodoma e Gomorra mostram que a escrita deste volume já ia bastante adiantada. O Narrador vai construir uma relação ambivalente com Albertine, ora desejando-a, ora aborrecendo-a, em obediência ao "ritmo binário que o amor adopta em todos aqueles que por demais duvidam de si mesmos para acreditar que uma mulher possa alguma vez amá-los, e que também eles possam amá--la verdadeiramente. " O clímax é atingido quando o Narrador arranca a Albertine a admissão de que conhece desde há muito a filha do compositor Vinteuil. Decide então romper com ela; mas, num volte-face próprio de um ser inseguro de si mesmo, possuído pelo ciúme, para impedir que Albertine vá parar aos braços de Mlle. Vinteuil, resolve casar-se com ela. Paris tornar-se-á então a prisão de Albertine. Em A Prisioneira, assistimos à transformação de Albertine, que começara por ser uma rapariguinha estouvada e "atlética" (o adjectivo é de Proust), e se vai tornando, em cativeiro, "uma mulher elegante", mas não frívola: "Lia muito quando estava sozinha e lia para mim quando estava comigo. Tornara-se extremamente inteligente. " E, em consequência, à cristalização do amor de Marcel, que tem formas excêntricas e munificentes de se manifestar, como quando cobre a sua amada com os vestidos inspirados em quadros de Carpaccio e desenhados por Mariano Fortuny, um costureiro de origem veneziana. Em páginas inesquecíveis, observa o sono de Albertine, com uma tão poética e magoada sensibilidade que não deixa de lembrar um quadro pré-rafaelita: ". . . o sono dela realizava em certa medida a possibilidade do amor; a sós, podia pensar nela, mas ela faltava-me, não a possuía. Presente, falava com ela, mas estava demasiado ausente de mim próprio para poder pensar. Quando ela estava a dormir, já não tinha que falar, sabia que já não estava a ser olhado por ela, que já não precisava de viver à superfície de mim mesmo. Ao fechar os olhos, ao perder a consciência, Albertine despira, um após outro, os seus diversos caracteres de humanidade que me haviam decepcionado desde o dia em que a conhecera. Apenas a animava a vida inconsciente dos vegetais, das árvores, uma vida mais diferente da minha, mais alheia, e que, contudo, me pertencia mais. "Porque, acordada, diga o que disser, faça (ou não faça) o que fizer, Albertine é um motivo bastante para incendiar o ciúme do Narrador. O ciúme de Marcel tem o nome de Gomorra, que agora, parece-lhe, alastra a todo o mundo, ao mesmo ritmo e com a mesma enigmática eficácia com que a peste se disseminava, em tempos antigos. A ressonância bíblica do tema de Sodoma e Gomorra encontra aqui motivos concretos (ou como tal imaginados por Marcel) que lhe permitem traçar um cenário de pré-apocalipse e o forçam a guardar Albertine: "Porque o meu prazer de ter Albertine a morar em minha casa era muito menos um prazer positivo que o de ter retirado do mundo, em que todos por sua vez poderiam fruir dela, a rapariga em flor que, se não me dava grande alegria, ao menos dela privava os outro. " Por isto, ou porque acabou por se aperceber de que o Narrador não a amava verdadeiramente, Albertine põe-se em fuga. O Narrador tenta fazê-la regressar. Mas Albertine morre em Combray, mas margens do rio Vivonne, e inicia-se o trabalho de luto, pelo qual Marcel se desliga, com rapidez que a ele próprio surpreende ("o monstro cuja aparição fizera estremecer o meu amor, o esquecimento, acabara efectivamente por devorá-lo, tal como eu pensara"), e não sem algum sentimento de culpa, da memória da sua amada, por cuja morte se sente responsável, como muito antes pela morte da avó: é o tema central de A Fugitiva. A Prisioneira e A Fugitiva constituem, em tempos e com ritmos diferentes, um romance de amor e de esquecimento, de ciúme e de indiferença sucessivos. E, pela sua intenção, vibração psicológica (nunca teremos conhecido melhor o Narrador do que nestas secções do romance), acabam por constituir um eixo fundamental de toda a narrativa. São, também, a preparação do Narrador para a grande etapa final, a que se inicia com a viagem tanto tempo adiada a Veneza, a descida aos infernos proporcionada pela guerra e pela cena no bordel de Jupien em que Marcel observa os jogos masoquistas de Charlus, e, no caminho para a recepção da princesa de Guermantes, a revelação da sua mais íntima vocação: só agora o romance pode começar a ser escrito. Essa epifania tem lugar quase no fim do último volume, O Tempo Reencontrado. Marcel anuncia-nos enfim que vai começar o que Proust está prestes a concluir: a escrita de Em Busca do Tempo Perdido. O que o leitor acaba de ler é como "um Nilo da linguagem, que transborda nas planícies da verdade, para fertilizá-las" (Benjamin); e esse processo de fertilização, a um tempo orgânico e visionário, socorre-se de tudo, das cores, das plantas, do céu e do mar, dos tiques e das taras, dos objectos e dos gestos, dos tecidos e dos trajes, dos aromas e dos sabores, para nos dar uma verdade ainda mais verdadeira, um "hiper-realismo" dos sentidos que nos faz ver mais, ouvir mais, querer mais. A escrita de Proust é uma escrita do desejo. Daí, a sua atracção encantatória, a sua música peculiar.
REFERÊNCIAS:
Hermès e o novo homem
Do coração da maison francesa temos vista para o que há de mais especial na moda masculina actual: produtos por medida, exclusividade, mas também para um novo mundo. O da emancipação fashion do homem. (...)

Hermès e o novo homem
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.136
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Do coração da maison francesa temos vista para o que há de mais especial na moda masculina actual: produtos por medida, exclusividade, mas também para um novo mundo. O da emancipação fashion do homem.
TEXTO: Há uma caneta de ponta fina a aproximar-se de um dos preciosos lenços carré da Hermès. Cai sobre a seda tingida à mão e, sem hesitações, risca-a. Está feito. Um peso de metal mantém a vítima hirta para o próximo passo. Ludovic desenha uma linha, cingido à régua, e define o ponto de corte. As mãos experientes do costureiro da Hermès procuram agora a tesoura. Corta, a olho, entre as panteras desenhadas no carré. É um aparente sacrilégio, este ataque a uma das mais emblemáticas peças da maison francesa. Mas na verdade este risco, e este corte, simbolizam a Hermès. E em parte a viragem actual na moda masculina. Tudo isto acontece numa sala dos Ateliers Hermès, num de vários edifícios da casa de luxo que ocupam quase um quarteirão da comuna de Pantin. Ficam tão perto do Parc de la Villette que não parece que estamos para lá da fronteira oficial de Paris. Mas, como se prova na sala onde funciona o atelier de camisas à medida, ultrapassar limites não é coisa rara na Hermès. Num desses prédios, branco e indistinto, estão Ludovic, Liliane, Pierre, Sabine, Sophie ou Nadia — alguns dos 11 nomes de bastidores que criam obras únicas para clientes únicos num atelier que partiu de uma ideia de Véronique Nichanian, uma das únicas mulheres a dirigir linhas masculinas ao mais alto nível da moda parisiense. Homens de todo o mundo — e, por vezes, também mulheres, mas lá iremos — escolhem colarinhos, punhos, tecidos ou lenços, botões e suas casas para terem uma camisa perfeita e só sua. Transformam-se peças clássicas em camisas sérias ou em peças extravagantes para homens que têm o estilo como prioridade — e eles são cada vez mais, sobretudo nas grandes cidades do Ocidente e do Oriente. É um serviço procurado em todo o mundo mas que só está disponível a partir de 11 das lojas Hermès no globo. A mais próxima de um cliente português é mesmo a do centro de Paris, onde iremos a seguir nesta curta viagem pelo longo caminho que a moda masculina fez nos últimos anos. Vivemos um momento em que se fala de “menaissance”, a junção dos termos ingleses para “homens” e “renascimento”. A moda de homem está a crescer, ou mesmo a renascer, pulsante, e o interesse sobre ela também. Eles compram mais, os designers desenham mais para homem, as grandes marcas abrem lojas só para eles, a imprensa dedica-se-lhes, os blogues multiplicam-se e as maisons clássicas posicionam-se com a segurança de jogar em casa num mercado que há muito conhecem. A Hermès, fundada em 1837 e que se mantém maioritariamente familiar, é conhecida pelas raras malas Birkin, pelos lenços carré, pelos perfumes, relógios e pela moda desenhada no passado recente por nomes como o exuberante Jean Paul Gaultier ou o discretíssimo Martin Margiela. Mas também por estes serviços customizados, à medida, só para eles. “Há muitos anos tinha muitos actores, gente do cinema, cantores que me pediam para desenhar coisas únicas e especiais. Algo que fiz”, conta à Revista 2 Véronique Nichanian, que tem um cargo com um título de peso estratosférico — é a directora artística do universo masculino da Hermès e está há mais de 25 anos nesta maison que começou como uma casa de arreios para carruagens. “E um dia disse a mim mesma que seria muito interessante fazê-lo também para um senhor não conhecido mas que tinha anseios, sonhos — e meios”, reconhece. “Criei os ateliers de camisas, de malhas, de pele, para realizar encomendas especiais e excepcionais. São as encomendas particulares — o luxo está aí. Não é só poder pagar, é poder fazer coisas únicas. ”O seu quarto de século na moda masculina da Hermès — “reivindico-o”, ri-se —, nada comum em cargos que tendem a ser tão efémeros quanto as chamadas “tendências”, dá-lhe um posto de observação especial sobre a masculinidade. “O meu trabalho é como um estudo sociológico, é a evolução dos homens, dos seus desejos”, explica na sala no topo do edifício de esquina da Rue do Faubourg de Saint Honoré. “Em 20 anos, vi os homens mudar, refinar-se, sofisticar-se no bom sentido do termo — sem preciosismo. A dar mais atenção a coisas essenciais na escolha do vestuário que constituam a sua maneira de ser, que signifiquem algo e não uma vida social, uma posição social. E não só no mundo profissional, mas em geral. Estão talvez mais atentos ao seu corpo, ao seu físico. Usam cor ou peças diferentes, vejo um misturar de coisas que são do sportswear e acho isso muito estimulante porque me interesso muito pela inovação, pelas novas tecnologias e novas fibras. ”Formada em Paris e com um percurso que começou no masculino italiano da Cerruti, chegou à Hermès como directora artística do pronto-a-vestir masculino em 1988. A pesquisa de materiais é um dos seus traços distintivos. Acredita que, da borracha ao neoprene passando pelo papel, “é um terreno de experimentação sem fim e que tem ainda muitas, muitas coisas a dizer aos homens”. No seu escritório, com as paredes brancas e luz natural, há grandes boiões de vidro, como os das antigas farmácias, cheios de mechas de tecidos coloridos. Uma parede junto à secretária assume “Je Suis Charlie” num papel afixado entre amostras de tecido, papéis ou coisas “ternas e inspiradoras”. Uma jarra transborda de frésias brancas frescas. Fala do homem desafiante que é o cliente Hermès, impossível de definir numa só descrição, e da aliança entre os valores “ancestrais da marca com a modernidade, inovação, novos fios têxteis, novas tecnologias e novos tecidos” numa “mistura que se parece com a mescla da sociedade de hoje, de cores de pele, etnias, culturas diferentes”. A paisagem social mudou, o homem mudou e depois tudo passa à costura e aos ateliers. O serviço sur-mesure das camisas e fatos Hermès remonta a 1991 mas, em sintonia com a sofisticação e emancipação do gosto masculino aliado ao aumento da procura, foi muito mais recentemente, em 2011, que passou a estar disponível para todo o vestuário masculino da marca, explica à Revista 2 a coordenadora do Atelier des Chemises, Wedad Arfa. Em 1998, a moda masculina representava 38% do mercado total de vestuário; em 2013, o número subiu para os 42%, segundo a consultora internacional Euromonitor. “Historicamente, a moda tem sido o domínio da roupa feminina”, atesta Dylan Jones, editor da GQ britânica, ao site de referência Business of Fashion. O ritmo das colecções e tendências no mercado masculino era mais lento, as “mudanças muito conservadoras” e tudo parecia uma espécie de segunda liga, prossegue Jones, que também é o presidente da semana de moda London Collections: Men, fundada apenas em 2012 apesar da ligação histórica de Londres à alfaiataria. O english gentleman veste-se há séculos em Saville Row, mas o mercado só agora se agitou o suficiente para lhe criar uma montra oficial. Ainda mais fresca é a New York Fashion Week: Men’s, nascida em Abril para acompanhar as cidades-epicentro do sector — Milão e Paris. Nos últimos dois anos, o crescimento continuou. As vendas mundiais de roupa de homem aumentaram 4, 1%, valendo 91 mil milhões de euros. É um número que tem de ser lido a par dos do gigante feminino — a roupa para mulher vende sempre mais, segundo a consultora Euromonitor, mas cresce menos. No mesmo período, cresceu 2, 8% para um valor de 134 mil milhões de euros. Olhando mais para a frente, a força do mercado de moda de homem não deve parar: espera-se que nos próximos dois anos aumente 8, 3% e que o seu valor atinja os 98 mil milhões de euros em vendas. “O crescimento futuro deve ser conduzido pela Ásia-Pacífico”, diz Magdalena Kondej, da Euromonitor. No atelier de camisas da Hermès, essa segmentação é visível na duplicação do número de pessoas da equipa nos últimos anos e nos armários que pontuam a sala branca de janelas altas e vidros foscos. No meio da austeridade laboratorial das mesas de trabalho há um armário para os clientes japoneses e franceses, outro para americanos, chineses e para Hong Kong, ainda um outro para o Dubai. Tanaka. Fan. Guillaume. Yamamoto. São os arquivos por apelido onde se guardam os dossiers de todos os clientes, explica-nos Wedad Arfa, mensurados a partir de uma primeira marcação. Naquelas pastas está tudo sobre a sua vida Hermès e, em parte, sobre a sua morfologia. Todas as medidas e também todas as encomendas, para facilitar não só a recuperação de uma velha compra mas também a coordenação de uma nova — se monsieur já tem há anos a camisa xis, o futuro fato poderá ser da cor ípsilon. Nessas “consultas” são registadas 13 medidas diferentes do cliente, tantas quantos os diferentes punhos disponíveis (só colarinhos há 14). Botões exclusivos que desenham em linha um H de Hermès, com ou sem monograma bordado à mão, 1500 tecidos franceses ou italianos à escolha. Pedaços desses tecidos são guardados na pastinha do cliente durante dez anos para que se possam reparar os colarinhos ou os punhos, mais expostos à passagem do tempo. Como os homens são consumidores de maratona, as peças querem-se duráveis, com potencial de herança, que possam “atravessar o tempo”, como poetiza Véronique Nichanian. “Um bom pullover que se guarda durante anos, um blusão de pele que se conserva. Um amigo disse-me um dia: ‘Tu és uma abrandadora do tempo. ’ É um dos mais belos elogios que me fizeram e procuro inscrever de facto um outro tempo” na moda — um tempo contemplativo e resistente. O processo demora meses — uma a duas semanas para criar a tela-molde, depois quatro a seis semanas para terminar a camisa de algodão ou seis a oito semanas para finalizar uma de seda, mais uma a três semanas para a entrega ao cliente em qualquer parte do mundo. Pelo meio há provas, lavagens para que a camisa nunca, nunca se altere, ou medições minuciosas. Nadia mede uma camisa que parece estar pronta e aponta numa ficha as distâncias em milímetros entre costuras e punhos, por exemplo. Noutra mesa cosem-se as margens das casas dos botões, abertas à mão por um cinzel que golpeia de uma vez só um virginal tecido branco. Noutro posto de controlo, um fio azul está a mais na trama alva de algodão. Uma pinça ou alfinete retira-o de cena. Tudo isto parece anacrónico na era da moda rápida e da reprodução instantânea. “Na Hermès temos um tempo diferente”, frisa Véronique Nichanian. “O luxo está aí. O tempo de fazer bem as coisas para construir um saco, uma mala de viagem, um lenço de primeira qualidade, uma peça de vestuário — a partir do momento da escolha do fio têxtil, da tecedura, do desenho do tecido para realizar essa peça levo tempo para fazer exactamente o que sonho para a Hermès. ”Pierre costura à máquina um colarinho, ponto a ponto e tão lentamente que a habitual canção mecânica martelada das máquinas de costura não se ouve. É um dos raríssimos momentos em que há algo automático envolvido na confecção orgulhosamente artesanal. Nem são usados computadores. O resultado final e a vontade e possibilidade de obter estes produtos alinham-se com os seus preços. Ludovic continua de volta dos carré que serão uma camisa felina, estuda alinhamentos — as costas do animal vão ficar nas mangas. Há sete anos na marca, amanhã poderá fazer outra coisa qualquer no atelier. Pede-se-lhes “muita versatilidade”, explica Wedad Arfa. São dez ou 12 horas para fazer uma camisa de algodão, ou 17 horas se for uma camisa de seda. Uma camisa simples custará cerca de 590 euros, uma de seda pode custar entre 800 e mil euros, a que acresce o preço dos cinco carré usados para a fazer (cada um com preços a partir dos cerca de 250 euros). “Excepcionalmente, para os bons clientes”, diz Arfa, “há mulheres que têm camisas sur-mesure Hermès”. “As que vêem as camisas dos maridos”, exemplifica, notando o caso recente de “um casal que escolheu os mesmos carré” para camisas a condizer. A própria Véronique Nichanian recebe-nos no centro de Paris com as suas sandálias e calças cigarrette pretas e uma camisa de seda com tons verdes e brancos. Tudo “à moi”. Como quem diz: peças que desenhou para as colecções de homem. “Visto-me quase essencialmente em versões mini das minhas criações. Eles sabem o meu tamanho”, sorri. Os peritos e quem trabalha no sector — e mesmo o consumidor mais distraído que nota apenas que o espaço para homem nas lojas de moda rápida aumentou — identificam uma espécie de “oscilação cultural” que fez com que mais homens invistam na sua aparência. Fala-se do advento do metrossexual há quase duas décadas, da influência de séries de TV elegantes como Mad Men, do contágio das redes sociais, de blogues como o Sartorialist, das políticas de género cada vez mais variadas, abertas e miscigenadas. E de millennials, os nascidos entre finais de 1980 e inícios de 2000, uma geração flexível que se destaca em trabalhos criativos ou nas empresas tecnológicas e que não vive vidas binárias lazer/trabalho. As consultoras dizem que eles, os “yummy” — o acrónimo brincalhão de “young urban male” — gastam muito mais com roupa, e em roupa com estilo. É tudo “muito mais interessante do que quando existia o ditado de fatos clássicos durante a semana, jeans para o fim-de-semana. Esta forma de fazer zapping no vestuário para ter uma identidade própria, e uma mensagem, é apaixonante”, entusiasma-se Véronique Nichanian. Que, para o stylist português João Pombeiro, se vê na silhueta e nas peças, que também já não são assim tão binárias, e que alimentaram em parte esta emancipação fashion do homem. Skinny jeans, casacos de pele de motoqueiro, camisas compridas. São peças unissexo, tal como certas silhuetas mais soltas, como as praticadas pelos portugueses Marques’Almeida, que se prestam para o menino e para a menina. “Tivemos homens a comprar os nossos vestidos-T-shirt para usar como uma T-shirt. E os nossos calções para mulher eram bastante boyish”, disse à Revista 2 em Junho Paulo Almeida. Pombeiro, ex-bailarino clássico, é responsável pela construção dos looks de várias actrizes portuguesas, faz styling para produções de moda em revistas como a Edit ou a Bless ou para campanhas de criadores como Luís Carvalho e Nuno Baltazar. Há qualquer coisa de rock’n’roll nas suas inspirações, mas quando é preciso citar influências ou ícones de moda de homem no momento fala do omnipresente rapper Kanye West — conhecido também por desenhar moda ou por usar peças da feminina e respeitadíssima Céline —, ou no blogger espanhol Pelayo — muito ligado à moda. “Os homens são apaixonantes porque, ao contrário das mulheres, demos-lhe menos frequentemente a palavra [na moda]”, sublinha Véronique Nichanian. “E desde há quatro ou cinco anos as revistas masculinas — na verdade todas as revistas — falam dos homens, dão-lhes a palavra e eles descobriram que é esperado deles que tenham necessidade de uma vestimenta, que anseiem por roupa, que se vistam por desejo. Intelectualmente libertou-se um novo estado de celebração, uma nova atitude masculina. Mais feliz. ”Wonder Magazine, V Man, Modern Men, Fashion For Man, Another Man. Dapper Dan, Grind, 10 Men, A Man About Town ou Port Magazine, enumeramos com o blogger português João Jacinto, que acredita que há um elemento de “revolução social e sexual” nesta agitação da moda masculina. “Há muitos homens a viver sozinhos, há uma certa independência do homem em relação às escolhas da mulher, da gravata que ela compra para ele”, exemplifica. “Gay ou hetero, as marcas diversificam os seus targets, identificando esse consumidor”, diz João Jacinto, embora Pombeiro acredite que o público gay tem mais poder de compra e, por vezes, um olhar mais arrojado para peças especiais. As revistas masculinas de estilo que nos últimos anos enchem as bancas tanto são sintoma de um mercado inflamado quanto o influenciam. Este mês regressou a edição portuguesa da GQ, numa parceria entre a casa-mãe, a Condé Nast, e a editora Light House. O New York Times inaugurou em Abril a secção de Men’s Style, o cada vez mais importante site Business of Fashion criou um espaço só para o menswear e a semestral Fantastic Man continua numa espécie de pedestal mundo fora. Esta publicação holandesa é, para um dos mais influentes e frescos designers de menswear actuais, o irlandês Jonathan Anderson, “causadora de uma viragem no mercado editorial e no menswear”. “É possível ver a influência deles a coincidir com a [maior e nova] importância do menswear na indústria da moda”, disse o designer, que fez a capa mais recente, ao New York Times sobre a revista, que se destaca pelas entrevistas, fotografia e grafismo. O que lá aparece ou a forma como é apresentado tende a surgir em novos sites de venda de moda de alta gama. A Hermès, por seu turno, lançou a 8 deste mês o MANifeste, um novo site para todo o universo masculino com listas e “castelos na areia”, nas palavras de Nichanian, para chegar “com humor” e muito jogo “aos homens que talvez não tenham o tempo ou sintam timidez de vir às lojas Hermès”, mas também a “pessoas que estão longe das lojas” — é o luxo de homem a chegar-se às compras online. A tecnologia também se cinge ao pulso: em Outubro chega um novo Apple Watch Hermés. A moda feminina parece o emprego expectável para um designer que termina a sua formação. Há mais marcas, mais emprego, mais variedade. Mas talvez também mais saturação. Fazem-se mais colecções por ano (as estações intermédias de resort e pre-Fall ainda não se aplicam ao menswear), sente-se uma “autofagia” criativa, como identifica o blogger português João Jacinto, que em Janeiro de 2013 criou o Gentleman’s Journal, em contraste com “o refresh na moda masculina” nas ideias. Um sector que, para o crítico de moda Alexander Fury, “está a gerar talentos que verdadeiramente questionam o statu quo”, como escreveu na revista T do New York Times há um ano, citando novamente Jonathan Anderson, Rick Owens ou Craig Green. E alguns dos maiores nomes da moda autoral actual vêm do menswear — de Raf Simons (Dior) a Hedi Slimane (Saint Laurent). Véronique Nichanian deu por si a trabalhar em moda masculina “por acaso. E sinto-me muito afortunada”. A moda feminina “é outra coisa. Nunca fiz, talvez a faça, talvez nunca a faça”. Quando foi convidada por Jean-Louis Dumas, que presidiu à Hermès entre 1978 e 2006 (morreu em 2010), Dumas disse a Nichanian: “Tens carta branca. ” “Um sonho”, ri-se, de que ainda não despertou. “A moda masculina ainda me diverte mais. ”O mundo em que trabalha é vasto. A caminho do jardim no terraço do edifício, para onde raramente consegue fugir, espreitamos o atelier onde se fazem as muito cobiçadas selas de cavalos da Hermès, por exemplo. A francesa franzina de olhos esverdeados descreve-se como “exigente”. Quer e precisa — e são os verbos que usa — “que tudo seja perfeito” até num email que troque internamente com a sua equipa. Coordena e desenha com o estúdio que desenvolve as colecções de pronto-a-vestir, está em diálogo constante com a divisão de sapatos encabeçada por Pierre Hardy, sabe o que se passa nas sedas, nas peles. É para lá que vamos a seguir, de regresso a Pantin e aos arredores de Paris, para o atelier dedicado às peles num novo edifício Hermès recheado com pátios verdes e ensolarados. Se há matéria-prima imediatamente associada à Hermès, é a pele, a das it bags tão difíceis de comprar que geram listas de espera de anos ou filas serpenteantes nas lojas e as usadas no universo equestre que continua a simbolizar a marca parisiense. O coordenador do atelier de menswear e leatherwear é contagiantemente entusiástico — um embaixador do cool na casa do clássico. Cyril Brandenburg desdobra rolos de peles, costuradas e coloridas, encantado mesmo com o que já conhece. Mostra três cores distintas de pele de cobra — branco, cinzento e vermelho — unidas numa peça que viria a ser um casaco e com um tratamento que lhes dá a suavidade de papel de seda. Amassa-a, arrepanha-a, e ela volta sempre à forma inicial. Foi para a passerelle em Junho. Ali, ouve-se o ruído de metal a roçar no metal, para afiar as peças usadas para cortar um blusão — trabalho que demora 1h30 ou duas horas. Parece tudo mais rápido do que na camisas, mas não é. Aqui faz-se a investigação e desenvolvimento das colecções de pronto-a-vestir, entre 20 e 30 peças por estação, mas também se fazem peças à medida. E “80% do tempo é passado a estudar as peles”. Depois é “ajustar o gesto”, explica o jovem especialista em modelagem, e passar mais de uma hora só a cortar. Gira pela sala carregada — de peles, de cores mais escuras, de maquinaria mais pesada. Entre elas, uma peça tosca com cabo de madeira e metal aguçado na ponta. Tem um ar improvisado. “Estamos em 2015 e ainda trabalhamos com ferramentas assim, que parecem saídas da Guerra dos Tronos”, ri-se sobre as peças velhinhas que se herdam nos ateliers da Hermès e que não têm rival na sua eficácia. Eric faz os moldes, “é o arquitecto da peça, quem lhe dá verdadeiramente vida”. Francis trabalha na cor das peles. Augustin é um dos costureiros. Os martelos açoitam a pele para alisar uma costura. Um camisolão cinzento de pele com bordados de lã relaxa num cabide, como que a ponderar se vai para um vídeo de hip hop ou para uma estância alpina. “Gosto que arrisquemos, que arrojemos na cor, nos padrões. Não é uma casa velha. Tem idade e é uma casa antiga, mas atreve-se”, solta Brandenburg. De dentro de um saco protector macio sai um blusão cinzento-rato com o interior gravado. Na etiqueta lê-se a sua identidade — “Hermès, commande particulière”. O seu futuro dono vai ser o único no mundo com uma peça assim. “O peso, o conforto” das peças “são grandes preocupações” — e destrinça, sobre algo que para ele não é efémero, nem descartável — “porque fazemos menswear, não é bem ‘moda’”. O PÚBLICO viajou a convite da HermèsSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
As vidas trocadas de quatro gémeos
O que acontece quando dois pares de gémeos idênticos descobrem que foram trocados na maternidade — e imaginam o que as suas vidas poderiam ter sido. (...)

As vidas trocadas de quatro gémeos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O que acontece quando dois pares de gémeos idênticos descobrem que foram trocados na maternidade — e imaginam o que as suas vidas poderiam ter sido.
TEXTO: Era uma tarde de sábado no Verão de 2013. Janeth Páez e Laura Vega Garzón queriam comprar costeletas de porco para um churrasco. Janeth sugeriu que passassem por um supermercado no Norte de Bogotá, não muito longe do sítio onde a amiga vivia. William, primo do seu namorado e um rapaz muito simpático com um forte sotaque rural, trabalhava lá e era perito a cortar os bifes e pés de porco que os fregueses gostavam de cozer com feijão. Janeth tinha a certeza de que conseguiriam um bom desconto nas costeletas. Quando Laura chegou à secção de carnes, enquanto punha a conversa em dia com Janeth, ficou surpreendida por ver uma pessoa conhecida. Atrás do balcão estava um colega da empresa de engenharia onde trabalhava, a Strycon. Acenou efusivamente, mas ele mal deu por ela. “É o Jorge!”, disse Laura. “Trabalha lá no escritório. ” Jorge era um rapaz de 24 anos, muito popular na empresa, que desenhava tubos de transporte de petróleo e que trabalhava alguns pisos acima do escritório dela. Ficou surpreendida por o ver ali, a atender os fregueses. “Não é, não. É o William”, disse Janeth. William trabalhava arduamente e raras vezes deixava o balcão; só saía dali para ir dormir e seguramente não era empregado da Strycon. “É o Jorge, eu conheço-o”, insistiu Laura. Mas ele não lhe sorria de volta, o que era estranho. Passados alguns instantes, saiu de trás do balcão para um cumprimento rápido, abraçando Janeth, que o apresentou a Laura como William. Laura estava perplexa. Porque é que Jorge fingia ser outra pessoa? Talvez, pensou, tivesse vergonha de ter sido apanhado a fazer um biscate, com o avental ensanguentado e o boné branco de talhante. Janeth insistia que a amiga estava enganada, mas Laura não estava convencida. Era mais fácil acreditar que o rapaz estava a fazer-se passar por outro do que imaginar que pudessem existir duas pessoas tão parecidas. Não era só a cor de pele ou as maçãs do rosto salientes. Era a estatura física, a textura dos cabelos, o trejeito da boca e dezenas de detalhes que ela não conseguia identificar de imediato, mas que tudo somado resultava numa semelhança raríssima. Na segunda-feira seguinte, já na Strycon, Laura contou a Jorge aquele estranho encontro com o seu sósia no talho. Jorge riu e disse que, efectivamente, tinha um irmão gémeo, chamado Carlos, mas que não eram nada parecidos. Naquele instante, Jorge tinha diante de si provas suficientes que indicavam que a sua vida não era aquilo que ele pensava, que a sua família não era aquela que ele pensava. Mas há um ditado que Carlos, homem de muitos provérbios, às vezes aplicava a ele: “O pior cego é aquele que não quer ver. ”A fotografia, a verdadeUm mês depois, Laura disse à amiga que abrira uma vaga no departamento de desenho da Strycon, e Janeth conseguiu o emprego. Pouco depois, foi apresentada a Jorge e compreendeu imediatamente a confusão de Laura no talho. Os dois rapazes tinham os mesmos olhos castanhos e suaves, a mesma forma de andar saltitante, com os pés para fora, o mesmo sorriso alegre e contagiante. Janeth sentiu que não o conhecia suficientemente bem para abordar o assunto, mas mostrou a William uma foto de Jorge. O rapaz riu e mostrou a foto aos colegas do supermercado, divertido com a coincidência. Seis meses depois, Janeth mudou de emprego. Ainda assim, sempre que ela e o namorado encontravam William, questionava-se se não deveria ter falado dele a Jorge. A dúvida perseguiu-a até ao dia 9 de Setembro de 2014, quando decidiu enviar a Laura, por telemóvel, uma foto de William, para que ela a mostrasse a Jorge. Laura subiu ao andar dele, ansiosa por ver a sua reacção. Sorrindo, olhou para o telemóvel. “Mas este sou eu!”, disse, fixando ecrã. William vestia a camisola amarela da selecção colombiana, praticamente a farda nacional em dias de jogos importantes. Jorge usava com frequência uma camisola igual, o que tornava a semelhança ainda mais evidente. Um amigo passou pela sua secretária e Jorge quis ouvir a sua opinião. “Diz-me o que achas desta fotografia”, disse, passando-lhe o telemóvel. “Ficaste bem”, respondeu o amigo. “Só que não sou eu”, disse Jorge, sem conseguir tirar os olhos do telefone. Nesse dia, já não conseguiu trabalhar. Sentou-se com Laura na cozinha do escritório. Talvez o pai dele, que pouco mais era do que um visitante ocasional lá em casa, tivesse tido outro filho, que nunca revelara. Jorge começou a olhar para mais fotografias que William publicara no Facebook, agora no seu próprio telemóvel. Desconcertado, reparou numa foto de William com avental — parecia-se muito com ele próprio, nos raros dias em que tinha de vestir avental no laboratório. Viu também uma foto de William de copo na mão com um amigo. Depois, foi para o computador, para ver melhor as imagens. Voltou a clicar na fotografia de William com o amigo, com o copo de licor. Agora com a imagem ampliada conseguia ver aquilo que incrivelmente lhe escapara quando viu a foto no telefone. Aproximou-se mais, com o nariz quase a tocar no ecrã. Os cabelos do homem estavam penteados para trás como uma crista de galo e a camisa não estava com nada. Mas ali se via o lábio inferior carnudo e os espessos cabelos castanhos que Jorge conhecia bem. Os botões da camisa sofriam uma ligeira pressão de uma barriguinha que lhe era bem familiar. Jorge ficou confuso e sentiu um frio no estômago. O amigo sentado ao lado de seu sósia tinha um rosto que ele conhecia melhor do que o seu próprio: era o rosto de Carlos, o seu irmão gémeo. Jorge e CarlosDepois do trabalho, Jorge caminhou como sempre fazia até à universidade onde estudava à noite. Não conseguiu tirar os olhos das imagens do telefone. Depois das aulas, apanhou um autocarro para casa, para contar a Carlos o que acontecera. Na infância, Carlos era o gémeo que se esmerava com os trabalhos da escola e Jorge o que os copiava. Ambos se safaram. Carlos trabalhava numa empresa de contabilidade durante o dia e à noite estava também na faculdade. O confortável apartamento de dois quartos que partilhavam num bairro de classe média era já um degrau acima em relação ao lar da infância. A mãe, empregada doméstica, criou os dois filhos e a filha mais velha, Diana, numa pequena divisão de uma casa em Bogotá que pertencia à avó deles. Nunca sentiram que lhes faltasse alguma coisa. Enfiaram ali uma televisão e um frigorífico, e as escolas públicas do bairro eram boas. Mas agora viviam melhor – Jorge podia viajar para assistir a jogos de futebol e Carlos gostava de sair à noite. Os três irmãos só lamentavam que a mãe, que morrera de cancro no estômago quatro anos antes, não tivesse vivido o suficiente para que eles lhe pudessem proporcionar uma vida melhor. No autocarro, Jorge tentou pensar naquilo que iria dizer a Carlos. Já tinha falado das fotos a Diana. “Mas não fiques a provocar o Carlos com essa história”, dissera-lhe ela. Ao chegar a casa, encontrou o irmão ao telefone com uma mulher, como era seu hábito. Jorge disse-lhe para desligar. “Não me chateies”, respondeu Carlos. Esta era a dinâmica dos irmãos: Jorge importunava-o, fazia piadas, andava à volta dele, sem o largar. E quanto mais o irmão se irritava, mais Jorge se divertia. Por fim, Carlos terminou o telefonema. Jorge decidiu que tentaria manter o ambiente leve. Arrancou com uma pergunta: “O que é que dirias se eu te dissesse que tens um gémeo idêntico?” Carlos não parecia divertido. Jorge tentou de novo: “Acreditas em telenovelas?”Carlos começava a perder a paciência. Se ele tinha alguma coisa para lhe dizer, que dissesse de uma vez. Jorge conduziu o irmão ao quarto e sentaram-se diante do portátil, começando a clicar nas fotos, mostrando-lhe William com a camisola da selecção e outras, no talho. Carlos riu, atordoado com a estranha semelhança. Então, Jorge clicou na foto de William ao lado do sósia de Carlos, a foto em que aparecem com um copinho de shot na mão. O que é que dirias se eu te dissesse que tens um gémeo idêntico?” Carlos não parecia divertido. Jorge tentou de novo: “Acreditas em telenovelas?Ao contrário de Jorge, cuja primeira reacção fora examinar a foto mais de perto, Carlos deu um salto para trás, como se tivesse sido fortemente atingido no peito. “Quem são?”, perguntou. Estava furioso. O irmão contou a Carlos tudo que Janeth e Laura lhe tinham revelado naquele dia. Os dois jovens da fotografia tinham sido criados numa quinta remota em Santander, uma região predominantemente rural a norte, cujos habitantes tinham fama de ter um temperamento forte e um grande apreço pelas suas armas. De acordo com o Facebook, nasceram, tal como Jorge e Carlos, no final de Dezembro de 1988. Talvez, sugeriu Jorge, tenha havido uma troca no hospital — uma enfermeira pode ter trocado por engano um gémeo idêntico por um bebé do outro par de gémeos. Não disse o que aquilo significava: que um dos dois, ou ele ou Carlos, tinha nascido de outra mãe. Que provavelmente não eram irmãos gémeos nem sequer tinham um parentesco biológico. E nenhum dos dois admitiu o que ambos já sabiam: que se acidentalmente alguém entrou na família, era quase certo que esse alguém era Carlos. Que Carlos nunca se pareceu nem com Jorge nem com Diana era óbvio. Os seus irmãos tinham a constituição física delicada da mãe, as suas maçãs do rosto salientes, os seus olhos. Carlos era mais alto, de constituição robusta, tinha um nariz mais largo e a testa mais ampla. E a diferença não era apenas física: Carlos sempre se sentira um estranho na família, embora preferisse pensar em si como mais independente. Em criança, não se interessava pelas brincadeiras de faz-de-conta da mãe e dos irmãos, as vozes engraçadas que faziam durante horas, a fingir que eram outra pessoa. Desde que a mãe morreu, contactava Diana muito menos assiduamente que Jorge. Era o único da família que se importava com moda e Deus sabe que era também o único que sabia dançar. Os gémeos sempre acharam que Carlos saía ao pai, mas não o conheciam suficientemente bem para ter a certeza. Mas o seu sentimento de distância não diminuiu em nada a sua ligação à mãe. Sempre a adorou: era uma mulher forte, sem ser propriamente dura — quando ele e Jorge andavam à luta, ela batia-lhes com uma pantufa felpuda, o que sempre os fazia rir e era, provavelmente, o que ela queria. Por menos dinheiro que tivesse, ela garantiu que os filhos frequentassem uma boa escola e convenceu-os de que o futuro seria o que eles quisessem que fosse. Carlos sentia que lhe devia tudo o que conseguira até aqui. Sentado ao lado de Jorge, desligou o portátil, em silêncio. Depois, foi para o seu quarto e fechou a porta. Jorge foi atrás dele, dizendo coisas que, Carlos sabia, pretendiam consolá-lo — não importa se um de nós foi trocado, ainda somos irmãos —, mas que só o faziam sentir-se ainda mais isolado. “Olha”, disse ele a Jorge, “vamos esquecer essa história. ” Disse ao irmão para nunca mais voltar a falar-lhe nesse assunto. Naquela noite, Carlos mal dormiu. Nada daquilo fazia sentido. Como é que era possível que a sua mãe não o tivesse gerado? Ele já tinha chorado por ela. Agora voltava a chorá-la, como se a tivesse perdido pela segunda vez. Sentia-se sem chão, impotente, sozinho. Ao fundo do corredor, Jorge dormia como um bebé. William e WilberNo dia seguinte, assim que William abriu o talho, seu primo Brian — o namorado de Janeth — chegou para o seu turno de 12 horas. William, que fora rapidamente promovido a chefe de secção, estava feliz por ter contratado o primo, estudante em part-time. Em muitos aspectos, sentia-se mais próximo dele do que do seu irmão gémeo, Wilber. Brian cresceu em Bogotá, e quando William chegou à capital, em 2009, os dois passavam dias inteiros a fazer e vender bolos de milho na rua, à chuva, debaixo do sol, passando o tempo a rir e a fazer rir os clientes. Já William e Wilber eram incapazes de passar tanto tempo juntos sem se pegarem. Quando mais tarde Wilber trabalhou para William no talho, William ficava irritado por ele estar constantemente com limpezas em vez de atender os fregueses e por não lhe reconhecer autoridade. Wilber tinha humores, pensava William, e era incapaz de suportar uma brincadeira. Enquanto Brian e William organizavam a loja, Brian contou que na véspera Janeth lhe tinha mostrado fotografias de dois jovens que eram iguaizinhos a William e Wilber. William achou piada e ficou intrigado. Lembrou-se de que alguns meses antes Janeth também lhe mostrara a foto do seu sósia. Mas aquela coincidência parecia ainda mais estranha. Enviou uma mensagem a Janeth, pedindo-lhe para ver as fotos. Assim que a primeira delas chegou, William soltou um grito — “Aiiiii!” — e começou a rir. Janeth sugeria, na mensagem escrita, que talvez ele ou o irmão tivesse ficado doente em Santander e tenha sido enviado para um hospital em Bogotá. William entrou em contacto com uma tia, que lhe confirmou que sim, ele tinha sido enviado para um hospital em Bogotá logo depois do parto. Os gémeos nasceram de sete meses, e William teve problemas digestivos. A tia adiantou que foi tratado no Materno-Infantil na cidade. William contou isto a Janeth, que afirmou que iria perguntar a Jorge onde é que ele tinha nascido. Se fosse no Materno-Infantil, então tudo ficava claro: só podia ter havido uma troca. Até aquele momento, William, tal como Janeth, estava enredado no divertimento e no suspense de juntar as peças todas. Mas agora começava a ser invadido por uma onda de ansiedade. Ele sempre tivera um aspecto diferente do resto da família e desejara também coisas diferentes — uma vida para além da quinta. Mas nunca pôs a hipótese de ser de facto diferente — que pudesse não ser um deles. Olhou em volta e mal conseguia distinguir os fregueses, os pedaços de carne ensanguentada, o primo preocupado. Saiu e subiu as escadas para o seu apartamento, no 3. º andar do mesmo prédio. Pôs-se a mandar compulsivamente mensagens para Janeth, para ver se ela já tinha alguma informação sobre o hospital onde Jorge nasceu. William sempre tivera um aspecto diferente do resto da família e desejara também coisas diferentes — uma vida para além da quinta. Mas nunca pôs a hipótese de ser de facto diferente — que pudesse não ser um delesMinutos mais tarde, voltou apressado à loja e mostrou a Brian a mensagem dela: Jorge e Carlos tinham realmente nascido no Materno-Infantil. “Confirmado”, disse. Depois, sentou-se num banco nas traseiras do talho e desatou a chorar. Cada pensamento desencadeava outro igualmente doloroso. Ele tinha sido arrancado de seu lugar de direito. Era um desaparecido de quem ninguém sentia falta. Como iria contar à sua mãe? Ela tinha seis filhos, mas ele é que lhe mandava dinheiro. Era ele que se preocupava quando ela ficava doente e que a animava quando estava triste, enchendo-a de abraços e beijinhos e mordidelas na orelha para a fazer rir. Sabia que a notícia lhe partiria o coração; já estava a partir o dele. Só uma vez na vida, há alguns anos, William falou duramente com a mãe. Tinha terminado o serviço militar e até se saíra bem, ganhando, entre os 92 soldados de seu pelotão, uma bolsa de estudos para se formar como suboficial, um caminho que lhe propiciaria uma educação e um salto significativo em termos de estatuto. Mas afinal os militares não podiam atribuir-lhe a bolsa, porque os pais o tinham tirado da escola aos 12 anos e ele não tinha diploma equivalente ao secundário. “Devias ter-me deixado ir à escola”, gritou com a mãe em casa, em Santander. A escola mais próxima ficava a cinco horas a pé e a família teria precisado de lhe arranjar alojamento, comprar-lhe a farda e pagar as taxas de matrícula — para não falar dos custos de não contar com o seu trabalho na quinta. Ainda assim, William achava que a mãe deveria ter encontrado uma solução, que deveria ter sido mais hábil e lutado com todas as suas forças. Ele próprio teria lutado por isso, mas, aos 12 anos, o que poderia ele fazer?Enquanto chorava sentado no banco, William era levado por sentimentos que apenas com o tempo seria capaz de articular: a preocupação e o sentimento de culpa da mãe; a oportunidade perdida de crescer em Bogotá, onde poderia ter ido à escola, em vez de trabalhar no campo, ajudando na colheita; o pesar por sempre se ter sentido diferente do resto da família, uma família que o amava, mas que ainda assim o provocava por ele não se encaixar nela. Perplexo, Brian, a seu lado, não sabia o que dizer. Não havia frases feitas para uma situação como esta. Para seu alívio, passados dez minutos, William parou de chorar e levantou-se. Sabia trabalhar e era isso mesmo que iria fazer. Voltaram para dentro e começaram a limpar o balcão e a organizar os utensílios, à espera do freguês seguinte. William acabou por enviar uma mensagem a Wilber, que naquele dia estava a trabalhar noutro talho, dizendo-lhe que tinha de ir ter com ele imediatamente. À tarde, quando o irmão chegou, William disse que precisava de lhe mostrar uma coisa — e, no telemóvel, clicou numa foto de Jorge e Carlos. Wilber percebeu imediatamente, com total clareza, o que todos os outros levaram horas a compreender. “Então nós fomos trocados?”, disse, encolhendo os ombros e incomodado com a seriedade com que William encarava a fotografia. “Não me importa quem eles são. Tu és meu irmão e vais continuar a ser até eu morrer. ”Cara a caraDe vez em quando, às vezes horas a seguir à concepção ou, em geral, vários dias depois, as forças que unem células recém-divididas, configurando-as numa única massa coesa, de algum modo cedem. Em vez de se manterem juntas num conjunto que, meses mais tarde, vai formar um ser humano e, por fim, um indivíduo, essas células dividem-se em duas entidades independentes, cada uma com as suas próprias células em frenética divisão. Elas são separadas, mas são também uma coisa só: cada núcleo de cada célula carrega o mesmo DNA. Gémeos idênticos começam as suas vidas como acidentes fortuitos, resultado extraordinário de uma falha sistémica. A formação de gémeos falsos é mais prosaica. Dois espermatozóides distintos encontram dois óvulos diferentes e dão origem a dois bebés. Os gémeos falsos não são mais geneticamente parecidos que dois irmãos quaisquer. O que é singular neles é apenas a simultaneidade: são concebidos e nascem quase ao mesmo tempo. Cada um dos quatro jovens de Bogotá foi criado como gémeo falso, com uma identidade própria. Agora, davam-se conta, cada um tinha um gémeo idêntico, fazia parte de um par perfeito. Antes ainda de os quatro se conhecerem, já estavam a alinhar-se, sem o saber, com o gémeo com quem tinham partilhado o útero. Carlos e Wilber foram cautelosos, convencidos de que ninguém deveria levar por diante aquela história — quem sabe os problemas que aquelas pessoas poderiam trazer? Pelo contrário, William e Jorge revelaram-se abertos à possibilidade de um encontro — poucas horas depois da revelação, Janeth já estava a fazer diligências para que eles se encontrassem numa praça pública, às nove da noite, assim que William fechasse a loja. Wilber, que no início resistiu à ideia de conhecer os outros irmãos, foi ficando cada vez mais curioso à medida que olhava para as fotografias e acabou por querer ir também. Por volta das três da tarde, William falou com Jorge pela primeira vez e perguntou se, além de Brian e Janeth, Wilber podia ir também. Ficou aliviado quando Jorge disse que sim. Ambos notaram que as suas vozes não eram parecidas. A de William era mais rouca e, claro, tinha sotaque de Santander. Também chamou “senhor” a Jorge, uma formalidade típica das pessoas do interior. Jorge gostou da voz dele; parecia não apenas simpático, mas boa pessoa. À medida que o momento se aproximava, William ia ficando mais nervoso e calado. Saiu do trabalho e foi cortar o cabelo. Vestiu a sua melhor camisola, preta com riscas cinzentas. Levou a arma, hábito que adquirira durante o serviço militar. Andava às voltas. Na outra ponta da cidade, Jorge também estava inquieto. Pedira ao irmão que fosse com ele, mas Carlos tinha um compromisso com uma rapariga e não quis cancelá-lo. Quando encontrou um amigo da faculdade, Jorge pediu-lhe que fosse com ele, para dar apoio moral. Na hora marcada, Jorge já estava na praça, olhando em volta. Tinha as palmas das mãos suadas e mal conseguia respirar por causa da pressão que sentia na barriga. Em poucos minutos, um grupo apareceu a caminhar na sua direcção. Lá estava William — tinha a cara de Jorge, o mesmo andar, o mesmo ritmo, com os pés para fora. Brian filmou o encontro com o telemóvel. Com o som desligado, sem se ouvir as palavras nervosas, o vídeo mostra Jorge e William numa espécie de pantomima coreografada e ritualizada. William olha fixamente para Jorge, enquanto Jorge desvia o olhar; a seguir, é William quem volta a cabeça para o outro lado, como se, intuitivamente, desse a Jorge a oportunidade de olhar fixamente para o seu rosto, o que ele, de facto, faz, analisando-o de cima a baixo. Os dois olham-se directamente nos olhos — há um momento de contacto visual que é de uma intimidade incrível e uma troca de sorrisos — e depois cada um deles olha rapidamente para o lado. Nesta troca de olhadelas um para o outro, parecem um par de apaixonados no momento em que está prestes a confessar a sua mútua paixão. Jorge recompõe-se e dirige, enfim, um olhar de avaliação a William; como mastiga pastilha elástica, o queixo não pára de trabalhar. Depois, leva a mão à bochecha, pressionando a própria carne. Sim, este sou eu. Aquela pessoa ali é ele. William está calado, apoiando-se ora numa perna, ora na outra, o que dá a impressão de estar a balançar. (“Foi como olhar num espelho e ver, do outro lado, um universo paralelo”, Jorge diria mais tarde. )Para Jorge, era claramente mais fácil encarar Wilber, o sósia de Carlos — olha-o e abana a cabeça. Wilber tinha visto as fotos de Carlos, que usava óculos. “Só me faltam os óculos!”, disse, com um risinho agudo que fez Jorge sentir outra vez aquela pressão no peito: era o riso de Carlos. Depois de ter visto como William era parecido com Jorge, Wilber ansiava agora conhecer Carlos. Jorge telefonou para o irmão, avisando que estavam a ir para lá, e o grupo apanhou dois táxis rumo ao apartamento de Jorge e Carlos. Por volta das dez da noite, Carlos ouviu o toque da campainha. Caminhou até a porta e ali ficou, paralisado: mal conseguia abri-la. Sabia que era Jorge com aqueles rapazes das fotos. Aquelas pessoas não eram apenas estranhas, eram mais estranhas que estranhos: eram personagens de uma história sobre a sua vida que ele não controlava. “Abre a porta!”, Jorge ordenou. Carlos ouviu uma risadinha. Era a sua própria, mas não vinha dele — ou talvez viesse. “Não quero”, Carlos respondeu. “Tenho medo. ” Passaram-se segundos, Carlos ria nervosamente de um lado, Wilber do outro. “Carlos, abre!”, repetiu Jorge. Não se pode tapar o sol com a peneira, costumava dizer a mãe deles. Carlos abriu a porta e o grupo entrou, como uma procissão num sonho. Ali estavam Jorge e seu sósia — um Jorge com uma camisola estranha; era Jorge, mas mais calado, sem a sua confiança. Ali estava uma mulher e um outro tipo. E ali estava ele: Carlos olhava para si próprio, uma visão modificada de si mesmo, uma fotocópia engraçada, uma piada, um pesadelo. Olhou para Wilber, o reflexo da sua imagem. Os dois se entreolharam de relance — ambos soltaram um “ai!” e viraram as costas, tapando os olhos e corando. Wilber começou a falar, mas Carlos tinha dificuldade em entender o que ele dizia. Wilber trocava o “r” enrolado por um “d” pronunciado. O defeito da fala! Carlos também o teve em criança, mas superou-o com terapia. Os quatro começaram a comparar-se, interrogando-se para descobrir as características partilhadas pelos gémeos idênticos. Quem eram os birrentos da família? Carlos e Wilber! E os mais dóceis? Jorge e William! Quem eram os mais organizados? Carlos e Wilber! E os que corriam atrás das miúdas? Carlos e Wilber! E os mais fortes? Jorge e William!Ainda assim, enquanto Jorge só via semelhanças a cada olhar que lançava a William, Carlos procurava as diferenças entre ele e seu duplo de Santander. “Olha para as nossas mãos”, disse. “Não são iguais. ” As de Wilber eram maiores, mais grossas, cheias de cicatrizes da lida com as facas do talho e com as catanas que, quando era mais jovem, usava no campo. Carlos, por outro lado, ia frequentemente à manicure — as suas unhas, como é vulgar entre os colombianos, estavam cobertas de verniz incolor. William perguntou a Jorge sobre a sua mãe biológica. Como era ela? Onde estava? Observando cuidadosamente o rosto de William, Jorge contou-lhe que a mãe deles morrera de cancro quatro anos antes. Mostrou-lhe uma foto dela ainda jovem: cabelos compridos presos na nuca, belos olhos num rosto de expressão doce e séria. Ao olhar para a fotografia, William sentiu uma nova onda de pesar e ficou em silêncio durante vários minutos. Durante a maior parte da noite, o ambiente foi positivo e de arrebatamento. Os rapazes divertiam-se revelando as hilariantes semelhanças, mais fáceis de identificar do que as diferenças. Mas para cada um deles, do outro lado da porta, pairava um profundo sentimento de perda: o tempo perdido com pais e irmãos biológicos, as oportunidades perdidas, os anos perdidos, os perdidos mitos da criação. Jorge parecia determinado a manter afastados aqueles sentimentos, pelo menos por agora. “Tudo que aconteceu”, disse ao grupo, “é que nossas famílias ficaram maiores. ” Alguém perguntou: “Equipa de futebol favorita?” E os quatro gritaram em uníssono o nome de uma equipa popular na Colômbia: “Atlético Nacional!”Por volta da meia-noite, as visitas foram embora, com a promessa de que em breve se reencontrariam. Jorge e Carlos entreolharam-se na sala vazia. Tudo continuava igual, tudo tinha mudado. “E agora, o que é que fazemos?”, perguntou Carlos. Jorge percebeu que ele tinha começado a chorar. Carlos, então, caminhou até Jorge e deu-lhe um abraço apertado. “Eu quero ser seu irmão”, disse. II ParteQuando dois é igual a umGémeos idênticos não fazem muito sentido, do ponto de vista evolutivo. Já os gémeos falsos têm o benefício da diversidade genética, o que aumenta as probabilidades de pelo menos um sobreviver a um eventual infortúnio. Mas apesar desse seu carácter inexplicável, os gémeos idênticos ajudam-nos a elucidar o entendimento mais básico de como e porquê nos tornamos naquilo que somos. Mediante o estudo da sobreposição de características em gémeos falsos (que, em média, partilham 50% dos seus genes) e em gémeos idênticos (que partilham 100% dos seus genes), os cientistas têm tentado, há mais de um século, descobrir quanto da variação que encontramos no interior de uma população pode ser atribuído à hereditariedade e quanto ao ambiente. “Os gémeos merecem uma grande atenção”, escreveu sir Francis Galton, cientista britânico que, no final do século XIX, foi o primeiro a comparar gémeos muito parecidos com gémeos não tão parecidos (embora a ciência da época ainda não diferenciasse os gémeos idênticos dos falsos). “Isto porque a sua história permite-nos distinguir os efeitos das tendências herdadas dos efeitos impostos pelas circunstâncias da vida. ”Galton, que era primo de Darwin, é conhecido tanto por ter cunhado o termo “eugenia” como pela sua análise inovadora dos gémeos (tendo concluído, em parte decorrente da sua pesquisa, que pessoas saudáveis e inteligentes deveriam receber incentivos para procriar mais). O seu sucessor científico, o dermatologista alemão Hermann Werner Siemens, realizou no início da década de 1920 os primeiros estudos com gémeos, não muito díspares daqueles que têm sido efectuados. Mas Siemens também chegou a conclusões que, durante várias décadas, contaminaram a área de investigação que ele liderou, apoiando os argumentos de Hitler a favor da “higiene racial”. Ao procurar as origens genéticas de vários traços considerados desejáveis ou indesejáveis, investigadores como ele pareciam aproximar-se perigosamente da busca por uma raça superior. Mas, apesar de períodos de muita controvérsia, o estudo dos gémeos proliferou. Ao longo dos últimos 50 anos, cerca de 17 mil traços foram analisados, de acordo com uma meta-análise conduzida pela cientista holandesa Tinca Polderman e pelo australiano Beben Benyamin, e publicada este ano na Nature Genetics. Cientistas afirmam ter identificado influência genética em características tão variadas como a posse de armas, a preferência eleitoral, a homossexualidade, a satisfação no trabalho, o consumo de café, a obediência às regras e a insónia. Para onde quer que olhassem, os investigadores concluíram que os resultados dos testes aplicados em gémeos idênticos são mais semelhantes do que aqueles aplicados em gémeos fraternos. As pesquisas apontam para a influência dos genes em quase todos os aspectos de nosso ser (uma conclusão tão abrangente que alguns cientistas concluíram que certamente haveria algum erro fatal na metodologia empregada). “Tudo pode ser herdado”, afirma Eric Turkheimer, geneticista comportamental da Universidade de Virgínia. “Quanto mais geneticamente aparentadas forem duas pessoas, mais semelhanças elas terão em qualquer aspecto que se queira examinar” – quer seja a personalidade, quer seja a preferência por programas de televisão ou a tendência política. “Mas isso pode ser verdade mesmo sem que haja algum mecanismo específico, alguma versão de um gene como o da doença de Huntington. É algo que resulta dos complexos efeitos combinados de um número incontável de genes. ”O ramo mais surpreendente da pesquisa acerca dos gémeos talvez seja aquele que envolve uma classe pequena e invulgar de sujeitos: a dos gémeos idênticos criados separadamente. Thomas Bouchard Jr. , um psicólogo da Universidade de Minnesota, começou a estudá-los em 1979, quando ficou a saber do caso de Jim e Jim, gémeos de Ohio que tinham sido reunidos naquela época, aos 39 anos de idade. Não só eram incrivelmente parecidos, como também passavam férias na mesma praia, em Miami, casaram-se com mulheres com o mesmo nome, divorciaram-se, tornaram a casar-se com mulheres com o mesmo nome, fumavam a mesma marca de cigarros e tinham por hobby construir móveis em miniatura. Parecidos tanto em personalidade como no tom de voz, era como se tivessem sido formados por inteiro na concepção, impermeáveis aos efeitos exercidos por pais, irmãos ou geografia. Bouchard pesquisou mais de 80 pares de gémeos idênticos criados separadamente, comparando-os a gémeos idênticos criados juntos e também a gémeos fraternos criados juntos e em separado. Descobriu que, praticamente em todos os casos, os gémeos idênticos, criados juntos ou não, eram mais parecidos que os fraternos, tanto em personalidade como — resultado ainda mais controverso — em inteligência. Uma descoberta inesperada na sua investigação sugeria que o efeito do ambiente partilhado por um par de gémeos — por exemplo, os seus pais — tinha pouco peso na personalidade. Os genes e as experiências únicas — como um semestre no estrangeiro ou um amigo importante — exerciam mais influência. Do ponto de vista científico, o estudo dos gémeos que não foram criados juntos tem causado problemas aos pesquisadores. Esses gémeos apresentam-se voluntariamente para participar nas investigações ou tornam-se conhecidos através dos media, mais inclinados a cobrir histórias de gémeos idênticos incrivelmente parecidos, que se casaram com mulheres com o mesmo nome e depois se divorciaram, ou que escolheram como hobby uma mesma actividade incomum. É claro que gémeos idênticos que não sejam tão parecidos têm menos probabilidades de ser identificados e reunidos. E poucos estudos com gémeos, criados separadamente ou não, conseguiram incluir irmãos de procedências radicalmente diversas. “Todos os estudos terão os seus críticos”, afirma Nancy Segal, titular da Universidade do Estado da Califórnia em Fullerton, que trabalhou com Bouchard de 1982 a 1991. “Mas estudar gémeos criados separadamente distingue melhor os efeitos da genética e do ambiente sobre o comportamento. ”Segal tem estudado gémeos chineses desde 2003 (fraternos e idênticos, criados juntos ou não). Nos seus livros, a investigadora mistura ciência com histórias de interesse humano, comprovações estatísticas com detalhes anedóticos: as gémeas idênticas criadas longe uma da outra que usavam, cada uma delas, sete anéis; ou as irmãs criadas em separado que coçavam o nariz exactamente da mesma maneira e davam o mesmo nome àquele tique. Em Outubro do ano passado, Yesika Montoya, uma psicóloga colombiana que hoje trabalha como assistente social na Universidade Columbia, viu no Facebook um vídeo de um programa da televisão colombiana (Séptimo Día) que confirmava, mediante testes de DNA, que os quatro rapazes de Bogotá formavam dois pares de gémeos idênticos. Montoya entrou em contacto com Segal, que só conhecia de nome e reputação. Depois, abordou os rapazes, que concordaram em ser objecto de um estudo. Não importa o fascínio que exerçam, os dois pares de gémeos representam uma amostra de apenas dois. Para Segal, porém, as possibilidades eram fantásticas, únicas. Ela não sabia de nenhuma outra família com tantas possibilidades de combinar pares de gémeos para análise e comparação: Jorge e Carlos, Jorge e William, Jorge e Wilber, e assim por diante. “É uma experiência dentro de uma experiência”, disse, comparando-o a matrioskas russas: abre-se uma, há outra dentro, e outra, e outra. Os gémeos sabiam que o estudo exigiria que eles se submetessem, ao longo de toda uma semana de Março, a entrevistas diversas, individuais e em pares, assim como a horas enfiados numa sala, respondendo a questionários. Haveria perguntas sobre as suas casas, as suas vidas, a sua educação, bem como testes de personalidade e de inteligência. Segal contou-lhes que estava interessada em escrever um livro sobre eles (mais tarde, Montoya colaboraria nesse projeto), e os rapazes mostraram-se entusiasmados. William impôs uma única condição para participar: insistiu que as investigadoras visitassem a casa onde ele tinha crescido, em Santander. Sem isso, nunca conseguiriam compreender quem ele realmente era. Preocupava-o, no entanto, que, se dissesse a Segal e Montoya quanto tempo levariam para lá chegar, elas desistiriam. Assim, enrolava e desconversava sempre que surgia o assunto “tempo de viagem”. Quatro ou cinco horas, William dizia, acrescentando então, como quem não quer a coisa, que uma parte tinha de ser feita a pé. Quanto tempo? Um bocadinho, respondia — talvez houvesse alguma lama também. Quanta lama? Bom, podia ser que fosse mais fácil, a partir de certo ponto, seguir viagem a cavalo. E perguntava a Segal se, por acaso, ela preferia fazer aquele trecho a cavalo. Segal, uma mulher de 60 e poucos anos que crescera no Bronx, em Nova Iorque, recusou. O poder da vontadeNo dia 29 de Março, às nove e meia da manhã, três carros entraram em La Paz, uma cidadezinha empoeirada cujas poucas ruas tinham vistas espectaculares para os Andes. O grupo — formado por Segal, Montoya, os dois pares de gémeos, intérpretes, amigos diversos e alguns familiares — já tinha passado seis horas na estrada. Pararam num bar para um pequeno-almoço tradicional, com caldo de carne e chocolate quente. Jorge e William sentaram-se lado a lado à mesa; Carlos ficou à frente deles e Wilber com as investigadoras. Enquanto todos comiam, Carlos pegou no telemóvel para mostrar uma foto dele e de Jorge. “Eu amo o meu irmão, embora só demonstre isso quando estou bêbado”, disse. “Estão a ver?” Na foto, Carlos dava um grande beijo na bochecha de Jorge. Aborrecido, William observava Carlos e pensava como Wilber era parecido: tomava o afecto do irmão como garantido e só muito raramente manifestava o seu — quando, por exemplo, achava que um dos dois podia morrer. No Exército, ambos estiveram no mesmo batalhão, e antes de entrar numa zona especialmente perigosa, Wilber, pálido, dizia a William: “Que Deus te proteja, meu irmão. Amo-te. ”William sabia que Wilber o amava. Mas, tanto Jorge como William gostariam que os irmãos com quem cresceram — Carlos e Wilber — lhes tivessem dado mais apoio, que tivessem demonstrado mais sensibilidade, como acontecia agora entre William e Jorge, que com frequência se telefonavam antes de dormir, só para dar boa-noite. Nesta altura, os quatro rapazes já se conheciam bem. Ao longo dos seis meses anteriores, saíram juntos, partilharam refeições, conversaram sobre mulheres, família, dinheiro, valores. Mesmo semanas depois de se conhecerem, ainda olhavam nervosos e espantados nos olhos do irmão idêntico. Tinham-se medido, avaliado e inspeccionado. De costas um para o outro, compararam as alturas — os que foram criados na cidade eram mais altos que os do campo. Carlos vencera Wilber numa competição para ver quem comia mais. William ganhara a todos no braço-de-ferro. Nas bancadas de um jogo de futebol, Carlos, fascinado, vira William enfiar a mão nas calças de ganga para coçar o rabo: Jorge fazia o mesmo. Uma noite, à mesa do jantar, Jorge notou que Carlos e Wilber se debruçavam no mesmo ângulo estranho sobre os pratos. Jorge sentia-se à vontade para corrigir gentilmente a gramática do seu gémeo idêntico; Carlos levava a sério a responsabilidades de ensinar Wilber a abordar uma mulher atraente num bar de Bogotá ou como beber de um só trago uma dose de tequila. Os gémeos de Santander ficaram espantados com o facto de os irmãos da cidade nunca terem disparado uma arma de fogo, falha que rapidamente remediaram num passeio pelo campo. De facto, Carlos tinha de admitir que se sentiu imediatamente à vontade com o seu irmão gémeo recém-descoberto. Wilber, ao contrário de Jorge, não lhe dizia o que fazer quando ele lhe falava sobre a sua vida amorosa: apenas o ouvia e apoiava. Sim, entendiam-se um ao outro: o orgulho masculino quando estavam com mulheres, a reacção furiosa às provocações incessantes dos respectivos irmãos. Mas era também enervante para Carlos o que Wilber tinha dele. A própria existência do irmão gémeo refutava um conceito que lhe era caro: a percepção da sua singularidade. Tendo crescido com características tão diferentes do resto da família, Carlos sentia orgulho na sua individualidade. Agora, porém, como gémeo idêntico, integrava um raro subconjunto de seres humanos cuja replicabilidade estava embaraçosamente à mostra. Uma vez, Wilber fez um post no Facebook de uma antiga foto dele em Santander, de peito nu à beira de um rio, segurando triunfante duas galinhas que tinha acabado de matar. Com os cabelos molhados e penteados para trás como os de Carlos, o camponês da fotografia estava demasiado parecido com ele. “Tira isso daí”, disse a Wilber. “As pessoas vão achar que sou eu. ”Wilber, ao contrário de Jorge, não lhe dizia o que fazer quando ele lhe falava sobre a sua vida amorosa: apenas o ouvia e apoiavaLonge de acreditar que tinha encontrado a sua metade perfeita, Carlos sentia-se mais só que nunca. Por mais que Jorge negasse, a sua aproximação a William era evidente. Agora os dois usavam ténis iguais e aparavam as patilhas da mesma forma. Nos fins-de-semana, Jorge ia com frequência ao talho de William e punha-se atrás do balcão, à espera da clientela, só para passar mais tempo com o seu gémeo. De vez em quando, dormia no apartamento minúsculo de Wilber e William, deixando Carlos sozinho em casa. Às vezes Carlos consolava-se com um argumento estranho e perverso: ainda bem que a mãe já não estava ali para assistir a isto, porque ele não teria sido capaz de suportar os ciúmes que teria, caso ela acolhesse William como Jorge fizera. Carlos sabia que Jorge estava ciente daquela tristeza e que até procurava ajudar. Mas, sempre que tentavam conversar sobre o assunto, recaíam no velho hábito de se irritarem um ao outro. Para Carlos, era como se Jorge ignorasse as suas preocupações; Jorge, por sua vez, sentia-se frustrado, porque nada do que dizia era capaz de diminuir a sensação de isolamento do irmão. Mas Jorge tentava. Cerca de seis semanas após o primeiro encontro com William e Wilber, pediu uma foto a Carlos. Naquele sábado, foi a um tatuador. Já trazia no peito uma tatuagem da mãe, do lado do coração. Agora, sentava-se numa cadeira para depois de quatro horas dolorosas ter o rosto do irmão desenhado para sempre no seu corpo, a centímetros da imagem da mãe. Ao voltar para casa, levantou a camisa e mostrou a Carlos o seu retrato, sobre a pele ainda ensanguentada e inchada por causa da violência da agulha. Carlos diria mais tarde, com lágrimas nos olhos, que fora o maior presente que recebera na vida. Aquilo trouxe alguma paz. Mas no pequeno-almoço em La Paz, Carlos sentia que Jorge estava novamente a provocá-lo. Logo depois de mostrar a foto, Jorge começou a falar de um assunto delicado, que os dois já tinham discutido em muitas conversas nocturnas: o que seria de Carlos hoje, caso tivesse sido criado em Santander? “Olha à tua volta”, disse Jorge. “Achas mesmo que, se tivesses sido criado aqui, serias contabilista ou outro profissional?”Carlos recusava-se a admiti-lo. Quem poderia garantir que ele não teria arranjado uma forma de ir à escola, de se formar e conseguir um emprego na mesma empresa que, ainda recentemente, o promovera?William não disse nada, mas o seu semblante ficou rígido. Carlos não tinha a mais pequena ideia de até onde a força de vontade podia, ou não, levar uma pessoa. Ele, William, tinha essa força de vontade e procurara exercê-la de todas as maneiras na sua busca pela formação como suboficial. Primeiro, mudara-se para Bogotá, para acabar o liceu. Passou no exame, mas com uma nota baixa — oito meses de estudo árduo não chegaram para compensar todos os anos de part-times fora da escola. Embora só tenha conseguido ficar classificado para a lista de espera do curso de suboficiais, não desistiu. Fez as malas, deixou Bogotá e fez uma longa viagem de autocarro até ao quartel que oferecia o curso. Ao chegar, um comandante reconheceu-o. “Aqueles que têm perseverança, tudo conseguem”, disse-lhe. O comandante mexeu uns cordelinhos para o ajudar, mas, ao mexerem na papelada, descobriram que William já tinha dado baixa e recebera uma indemnização por uma doença contraída na altura em que fizera o serviço. A indemnização não permitia que ele se realistasse. Era o fim, não havia mais nada a fazer. Ele jamais poderia ser um suboficial. Tinha de voltar para casa. Mas o comandante não lhe dissera que quem perseverava conseguia? William ainda permaneceu cinco dias por ali, escondendo-se e misturando-se entre os soldados. Esperava que, de alguma maneira, as coisas pudessem resolver-se. Mais do que isso, não conseguia ir-se embora: partir significava desistir. No sexto dia, um oficial simpático, totalmente armado, acompanhou-o até à rodoviária e pô-lo pessoalmente no autocarro para Bogotá. William sabia que Carlos não conhecia aquela parte de sua história — e que provavelmente também não sabia que, aos seis anos de idade, William costumava caminhar cinco horas com a mãe até esta mesma cidade, La Paz, só para comprar mantimentos. Dormiam na casa de uma mulher simpática e voltavam à estrada, com os mantimentos às costas. Carlos não tinha como saber, nem jamais saberia realmente, quantas horas William, na adolescência, passara a cortar cana, a pele a arder do sol, os talos de cana-de-açúcar picando o corpo. E como carregava 25 quilos de cana de cada vez, um trabalho bruto, doloroso, árduo. Carlos vivera aqueles mesmos anos, e isso William sabia, namoriscando com as meninas numa excelente escola pública, jogando básquete e acumulando pontos de um jogo de vídeo qualquer, que ele não conhecia nem de nome. Longe de acreditar que tinha encontrado a sua metade perfeita, Carlos sentia-se mais só que nunca. Por mais que Jorge negasse, a sua aproximação a William era evidenteCarlos estava errado, William tinha a certeza disso. Às vezes, a força de vontade não chega. Se tivesse crescido em Santander, hoje não seria um contabilista em ascensão. E a insistência de Carlos em afirmar o contrário soava como um insulto a tudo o que William tivera de suportar — àquela vida que ele, na verdade, suportara em vez de Carlos. A cidade vai ao campoDepois do pequeno-almoço, os carros deixaram La Paz e entraram por estradas serpenteantes de terra e pedra, cobertas pela exuberante folhagem das palmeiras e fetos. Finalmente, por volta das onze e meia da manhã, a caravana parou perto de um grande pavilhão no meio de um relvado. Todos saíram. Era altura de caminhar. Nancy Segal empurrava uma mala de rodinhas roxa brilhante, com o material que ela esperava usar nas entrevistas e na pesquisa junto à família de William e Wilber. Ancelmo, o irmão deles, era quem agora vivia na casa, mas os pais e outros parentes também estariam lá para celebrar o aniversário de Ancelmo e rever os gémeos. Logo ficou evidente que aquele caminho não era adequado a uma mala de rodinhas. William, que no passado o percorrera carregando fardos bem mais pesados, pegou nela e levou-a aos ombros. O grupo seguia o seu caminho, subindo por uma colina. William movia-se com rapidez, apesar da mala. Disse que era forte, e que Jorge era tão forte como ele, embora dificilmente aquilo pudesse ser verdade. “Mas Carlos, não”, acrescentou. “Carlos não é tão forte. ” Em seguida, avançou mais alguns passos e, então, voltou-se para trás, como se tivesse tido uma ideia. “Carlos, porque é que não levas a mala?”, perguntou. Dirigiu-se a ele, entregou-lhe a mala e rapidamente tomou a dianteira. O caminho atravessava uma pradaria e, depois, desembocava numa descida íngreme e longa. Em minutos, era só lama — uma lama espessa e, em alguns trechos, com 60 centímetros de profundidade. Carlos, sempre impecavelmente vestido, pisava com cautela. Mas rapidamente os seus ténis Adidas ficaram submersos no lodo. Carlos sentia-se pouco à vontade, emocional e fisicamente. Desde que conhecera os gémeos, estivera duas vezes em Santander. Na primeira, para uma festa de aniversário em La Paz, comemorando o nascimento dos quatro irmãos; na segunda, numa visita aos seus pais biológicos, José del Carmen Cañas (conhecido como Carmelo) e Ana Delina Velasco, na casa onde agora moravam. Mas sentira-se desconfortável em ambas as visitas. Sabia que William achara o seu comportamento grosseiro, resistindo aos gestos simpáticos da família alargada. Mas era gente a mais — vizinhos, primos, cada um querendo tirar uma fotografia, dar um abraço ou estabelecer algum tipo de relação que ele próprio não sentia existir. Como poderia familiarizar-se com os seus pais biológicos se havia sempre uma multidão à volta? Já ao ser apresentado a Carmelo e Ana, no apartamento de William e Wilber, uma equipa de realizadores estava a filmar o encontro para um programa de televisão. Quando abraçou os pais, eles choravam copiosamente. Comovera-se ao sentir o abraço de Carmelo — nunca conheceu o seu próprio pai, que morreu não muito depois da mãe. Mas alguma coisa nas lágrimas de Ana fizeram-no sentir-se distante, calmo. Ele tinha tido uma mãe, e uma mãe muito boa. “Não chore”, disse a Ana, enxugando-lhe as lágrimas. “São os caminhos de Deus. ”O sol estava alto. Carlos avançava pela lama, que salpicava e se pegava às pernas. Foi então que ele — logo ele, Carlos, tão vaidoso com as suas roupas, meticuloso com o modo como lhe caíam, sempre a escovar com a mão as bainhas das calças para tirar algum fio imaginário — soltou um grito. O pé enterrara-se. Devagar, auxiliado por alguém da região que caminhava ao seu lado, começou a libertá-lo. Ouviu-se um ruído forte de sucção. O barro cobria-lhe a perna até bem acima do joelho. Mais de uma hora depois, suado, exausto, imundo, chegou, enfim, onde William e Wilber tinham passado a infância. A casa não tinha casa de banho, nem revestimento ou pintura, apenas paredes de madeira e um fogão a lenha com uma chaminé que saía pelo telhado. Sorrindo, Carlos aproximou-se de Carmelo e ambos se abraçaram calorosamente. Depois, ficaram em silêncio; nenhum deles sabia o que dizer. William, ao lado deles, observava Carlos e o pai. Tinha um aspecto imaculado, não fosse a lama nas botas. Vestia uma camisa roxa com riscas, especial para a ocasião. Carlos usava um boné preto de basebol com o símbolo do Batman, além de um pólo e óculos de sol. Mal tinha recuperado o fôlego, quando sentiu que lhe davam uma batidinha na cabeça: “Tira o boné e os óculos escuros”, disse William. “Tenta estar realmente aqui. ”Carlos observava Jorge, que se movimentava com à-vontade no meio daquela multidão, integrando-se na família de uma forma que ele, Carlos, não era capaz de fazer. Sentia-se incomodado com a conversa do pequeno-almoço. Jorge parecia querer arrancar-lhe uma declaração grandiosa e emocionada sobre a sorte que tivera na troca dos gémeos, sobre o destino bem mais duro que teria sido obrigado a enfrentar. Não que Carlos não tivesse reflectido muito, durante várias noites de insónias, sobre qual seria o seu futuro caso tivesse sido criado com a sua família biológica. Dois dos irmãos de William e Wilber tinham morrido novos: um deles num acidente com uma arma de fogo; o outro numa emboscada durante o serviço militar. Talvez ele nem tivesse sobrevivido, se tivesse crescido ali. Talvez fosse fácil ser um bom tipo em Bogotá. Vivendo em Santander, talvez se tivesse juntado à guerrilha, que uma década antes tinha sido muito popular, mas brutal. Na verdade, Carlos estava longe de acreditar na inevitabilidade do seu sucesso profissional — o que o preocupava era se, caso tivesse tido aquela outra vida, o seu carácter teria resistido às forças que o rodeavam. Mas não, não ia dizer tudo aquilo num pequeno-almoço, à frente de um monte de gente. Ele não era esse género de pessoa. III ParteO mito dos gémeos idênticosNo momento em que um espermatozóide penetra num óvulo, o zigoto unicelular resultante é conhecido como totipotente: é pura potencialidade. Ele traz em si a curva de uma sobrancelha, o músculo de um coração, o poder electroquímico de um neurónio; transporta o complexo manual de instruções que vai comandar a construção e a regulação de cada fibra do corpo. Mas essa célula única divide-se em duas e, instantaneamente, as luzes começam a apagar-se, a sua potencialidade diminui. Para que essa célula única se transforme num minúsculo fragmento de tecido do coração, e não num pêlo de sobrancelha, é necessário que um ou mais sinalizadores genéticos sejam desactivados. O resultado disso é a diferenciação, um processo constante de eliminação que possibilita a construção de universos biológicos complexos. Sempre que um grupo de células se divide, cada uma delas fica mais apta a tornar-se uma coisa e não outra. Quando o embrião atinge cinco ou seis dias de vida (momento em que ocorre a maioria das fatídicas divisões de gémeos), algumas dessas células vão fortuitamente para um ou outro gémeo. Isso significa que a expressão de alguns genes num dos futuros gémeos será, provavelmente e por caminhos subtis, diferente da expressão dos genes no outro gémeo. É a conjectura de Harvey Kliman, director de Investigação Reprodutiva e Placentária da Escola de Medicina de Yale. A partir do momento em que a maioria dos gémeos idênticos se separa, é bem possível que eles passem a ter uma epigenética diferente (o termo refere-se ao modo como os genes são lidos e expressos, dependendo do ambiente). Eles já são produtos distintos do seu ambiente, isto é, das condições uterinas que, de saída, fizeram deles seres diferentes. Um observador leigo ficará fascinado com a semelhança entre gémeos idênticos, mas alguns geneticistas estão mais interessados em identificar tudo aquilo que os distingue, por vezes de forma significativa. Porque é que um gémeo pode ser homossexual ou transgénero e o seu gémeo idêntico não? Porque é que gémeos idênticos, com o mesmo DNA, às vezes morrem de doenças diferentes, em momentos distintos? O ambiente em que vivem há-de diferir, mas que aspecto desse ambiente levou a sua biologia a tomar direcções distintas? Fumo, stress e obesidade são alguns dos factores que os investigadores já conseguiram associar a mudanças específicas na expressão de genes específicos. Com o tempo, esperam descobrir centenas de outros, talvez milhares. A meta-análise publicada este ano na Nature Genetics, resultado de 50 anos de estudos dos gémeos, chegou a uma conclusão sobre o impacto da hereditariedade e do ambiente nas vidas dos seres humanos. Os investigadores descobriram que, em média, cada traço ou doença particular de um indivíduo deriva 50% do ambiente e 50% dos genes, aproximadamente. Mas essa proporção simples não diz tudo sobre os nossos complicados sistemas de circuitos genéticos, o modo como os nossos genes interagem continuamente com o ambiente, sendo activados e desactivados de acordo com o estímulo e as consequências por vezes duradouras, que continuarão a existir no nosso genoma e serão transmitidas à próxima geração. O modo como os genes de um indivíduo respondem a esse ambiente — como se expressam — cria o que os cientistas chamam “perfil epigenético”. Antes de partir para Bogotá, Segal entrou em contacto com Jeffrey Craig, que estuda epigenética no Instituto Murdoch de Pesquisa Infantil, na Austrália, para perguntar se ele analisaria a epigenética de Carlos, Jorge, Wilber e William com base em amostras de saliva que ela colheria. Craig já analisou os perfis epigenéticos de 34 gémeos idênticos e falsos no momento do nascimento, recolhendo amostras do interior das bochechas. Chamou-lhe a atenção que, em alguns casos — não muitos, mas em alguns —, o perfil epigenético de um gémeo recém-nascido pode ser mais parecido com o de outro bebé qualquer do que com o do gémeo idêntico com o qual partilhou o útero materno. Diferenças estruturais no útero seriam uma explicação, afirma Craig — um cordão umbilical mais grosso para um (há, de facto, dois cordões) ou um estranho ponto de ligação do cordão à placenta. Mas Craig reconhece que poderia haver outros factores — quais é ainda especulação. Talvez uma maior distância de um dos gémeos do som constante e reconfortante do coração da mãe possa determinar uma trajectória de vida ligeiramente diferente. Segal e Craig ansiavam por conhecer os resultados dos perfis epigenéticos dos gémeos colombianos. Quais perfis, perguntavam-se, seriam mais parecidos? Os dos gémeos não biológicos que partilharam o mesmo ambiente — Segal chama-os de gémeos virtuais — ou aqueles que têm o mesmo DNA?Uma amostra composta de quatro indivíduos só pode levar a mais perguntas, não a respostas. Mas exames epigenéticos em amostras mais numerosas de gémeos criados separadamente podem, um dia, significar uma ajuda valiosa à ciência epigenética, afirma Kelly Klump, co-directora do Registo de Gémeos da Universidade Estadual de Michigan. “Não se pode observar a forma como o ambiente muda a função do genoma sem ter um genoma constante”, diz ela. “Os gémeos idênticos permitem-nos fazer isso. ”Como é muito difícil encontrar gémeos idênticos que tenham sido criados separadamente, os investigadores que trabalham com epigenética têm-se concentrado sobretudo nos gémeos idênticos que exibem diferenças. Tim Spector, por exemplo, titular de epidemiologia genética do King’s College de Londres, está a criar um gigantesco cadastro mundial de gémeos idênticos, com casos em que, por exemplo, apenas um dos gémeos manifesta diabetes ou autismo. Bouchard teve um papel fundamental para convencer investigadores, e o público em geral, de que parte significativa daquilo que somos se deve ao DNA, facto que estava longe de adquirido quando ele iniciou o seu trabalho. Spector e Craig, por outro lado, têm tentado identificar de que maneira nós nos modificamos em resposta ao ambiente. A sua questão fundamental é outra: como pode a ciência identificar genes que foram activados ou desactivados com resultados potencialmente danosos, para que possam ser revertidos? Se os estudos tradicionais com gémeos eram vistos como investigações interessadas no imutável, já os estudos epigenéticos procuram elucidar o que, em nós, está sujeito a mudança — e, mais especificamente, que mecanismos fazem essa mudança acontecer. Cair no buracoUm político local acompanhava o grupo na sua excursão a Santander. No percurso, tentou convencê-los a visitar uma atracção turística local: o segundo maior hoyo (buraco) da Colômbia, uma fossa cavernosa de 150 metros de largura e 180 metros de profundidade. Os habitantes da zona gostam de se deitar de barriga para baixo, ir arrastando até a borda, para, dali, se debruçarem sobre o abismo. Aquele buraco transformou-se numa piada recorrente entre os irmãos, e, para Yesika Montoya, a psicóloga colombiana, tornou-se também uma espécie de metáfora da experiência pela qual os gémeos estavam a passar. Ela tentava que eles identificassem os seus sentimentos em relação a tudo aquilo que tinham vivido, e parte desse esforço consistia em recordar as sensações físicas que registaram em diferentes momentos. “Senti vertigem”, disse-lhe Jorge sobre o momento em que estava à espera de William no dia em que se conheceram. “Uma pressão. Como aquela que sentimos numa montanha-russa, quando descemos. ”Montoya imaginou esse sentimento como semelhante à sensação de “cair por um buraco e não ser capaz de sentir o chão”. E acrescentou: “Nunca acaba. Mesmo quando se consegue apoiar um pé aqui ou ali, continuamos a cair. ”O tempo passado com Segal e Montoya, partilhando as histórias das suas vidas, teria necessariamente de mudar a forma como encaravam o que lhes estava a acontecer. Carlos pareceu surpreendido quando, em dada altura, Segal lhe pediu para descrever em que aspectos ele e Wilber eram diferentes. “Bem, a questão é que nós sempre olhámos para as semelhanças”, disse ele. “Nunca conversámos sobre as diferenças. ” Parecia feliz por ter, finalmente, a oportunidade de o fazer. Carlos apontou que ele gostava de mulheres mais velhas, enquanto Wilber preferia as mais jovens. Mas a resposta, é claro, era bem mais complicada. Carlos era, em traços gerais, muito parecido com Wilber; mas diferia dele numa série de detalhes infinitamente pequenos: as expressões que passavam pela sua cara, e só na sua; os pensamentos e as preocupações que lhe ocupavam a mente. Para o bem e para o mal, Carlos era mais cínico que Wilber e mais suave. Wilber, por sua vez, era mais alegre quando estava com crianças pequenas, tinha mais facilidade em soltar uma gargalhada. Jorge e William também têm diferenças óbvias. Jorge é um sonhador, um viajante incansável, um optimista que acredita que, “se damos o nosso melhor ao mundo, o mundo vai dar-nos o que tem de melhor”. O rosto de William, mais fino e mais magro, reflecte uma postura bem mais fechada. “Nada é fácil nesta vida”, comentou uma vez, um sentimento que dificilmente imaginaríamos Jorge a manifestar. Essas diferenças tinham sido aprendidas? Reflectiam, algumas delas, diferentes epigenéticas? Talvez Wilber e Jorge dispusessem de uma protecção biológica adicional pelo facto de, ao contrário de Carlos e William, terem sido criados pelas suas mães biológicas. Carlos sabia que tinha sido amado pela mãe que o criara. Mas também sabia que uma prima se tinha mudado para casa deles quando eram bebés, para que cada um dos gémeos pudesse desfrutar do tipo de contacto que, naquela altura, o hospital encorajava. A mãe carregava Jorge num canguru junto ao corpo; a prima levava Carlos. Em Maio, Carlos disse a Wilber que queria visitar a sua família biológica, mas sem a multidão de parentes, psicólogos ou equipas de televisão. Wilber passou o recado a William. Para William, era mais fácil aceitar que as inibições de Carlos naquelas viagens se devessem não tanto a uma reacção à nova família, mas ao carácter público das excursões. Num fim-de-semana de Junho em que, infelizmente, Wilber precisava de trabalhar, William, Jorge e Carlos apanharam um autocarro e foram fazer uma visita mais relaxada e privada a Carmelo e Ana. No autocarro, sentado ao lado de William, Carlos ouvia-o falar dos seus planos de concorrer a um cargo de vereador em La Paz — ele era agora uma espécie de celebridade em Santander. Carlos não nutria grande consideração pelos políticos colombianos, mas a ambição de William impressionou-o e também gostou de ele estar a ter aulas de Word. Pelas perguntas que Segal e Montoya tinham feito, descobrira que Wilber, o seu gémeo idêntico, não pretendia retomar os estudos e isso decepcionava-o, porque esperava falar com ele de outro assunto que não fosse mulheres. Esperava mais para Wilber — esperava mais de Wilber. Mas começava a achar que não o teria. Carlos sabia que Wilber queria passar mais tempo com ele. Mas também sabia que Wilber, a um certo nível, percebia que ele era uma alma solitária. Wilber tinha uma vida própria e uma nova namorada, mãe de duas crianças cujas fotos ele exibia a quem quisesse ver. Aquela experiência toda era para ele menos complicada do que para os outros três irmãos — e isso simplesmente porque, como o próprio Wilber dizia, ele não era uma pessoa muito complicada. Para Carlos, esta quarta visita a Santander foi como um recomeço. Os irmãos chegaram de manhã cedo a casa de Ana e Carmelo, depois de viajar durante a noite. Mas Carlos, gozando a beleza da paisagem, não quis descansar. Foi tomar banho num tanque de água. Ouvia o canto dos pássaros e foi um ouvinte atento do papagaio da família, “Roberto”, que tinha talento para cantar rancheras. Depois, enquanto os irmãos dormiam, foi até a cozinha. Lá estava Ana, uma mulherzinha minúscula — Carlos tinha aquele mesmo risinho dela, disseram-lhe, embora ele próprio jamais o tenha admitido — a limpar uma cabeça de cordeiro para o jantar. Ficou junto ao balcão da cozinha a fazer-lhe companhia enquanto ela trabalhava. Apercebeu-se de que era a primeira vez que estavam sozinhos. Conversaram sobre a saúde dela, as articulações doloridas, a dor nas costas. “Trabalhou tanto a vida toda”, disse-lhe, “está na altura de descansar. Os seus filhos já estão grandes. Porque é que trabalha tanto por eles?” A relação com Ana estava agora mais relaxada, mas não necessariamente mais próxima. Carlos disse a si mesmo que viria com o tempo. Jorge estava sempre a insinuar que havia alguma coisa errada com ele, por não sentir de imediato aquele vínculo poderoso, primordial, aquela força emocional da biologia e do destino que William, o gémeo idêntico de Jorge, parecia sentir em relação à mãe que nunca conhecera. Carlos questionava-se se não se teria aproximado mais de Ana caso a sua própria mãe estivesse viva, para lhe dar algum tipo de permissão. Mas talvez a coisa toda fosse bem mais simples. Talvez ele e William fossem simplesmente diferentes. Andar para a frenteAntes de dar início à sua investigação, Segal não teria ficado surpreendida se cada um dos rapazes apresentasse resultados semelhantes aos do seu gémeo idêntico, independentemente do ambiente. Mas os seus resultados preliminares mostram que, em várias características, os gémeos idênticos são menos parecidos entre si do que ela tinha imaginado. “Fiquei com um grande respeito pelo efeito exercido por ambientes extremamente diferentes”, diz ela. Talvez os resultados indiquem apenas que pessoas criadas em ambientes rurais, com pouca educação formal, encaram testes de uma maneira bem diferente do que aqueles que frequentaram a universidade. William, que administrava com competência um pequeno negócio, às vezes parecia assoberbado pelos testes. Mas Segal considerou que o caso dos jovens seria capaz de instigar novas investigações e inspirar outros investigadores a procurar mais exemplos de gémeos criados separadamente e de formas bastante diferentes. Durante a semana que os rapazes passaram a responder aos questionários de Segal, revisitaram o passado que os ajudou a fazer deles aquilo que eram. Quantos livros tinham em casa na infância? Alguma vez fumaram? Cresceram em famílias onde não se falava sobre sentimentos? Por uma semana, viveram fora do tempo, a olhar para o passado. Mas, assim que Segal fosse embora, cada um retomaria o seu caminho, avançando em direcção a um futuro desconhecido, à mercê do acaso. Às vezes falavam em morar todos juntos; William gostava de pensar que, juntos, os quatro eram mais fortes. Como membros de qualquer outra família, talvez se afastassem e voltassem a reunir-se, ou talvez dessem por eles a voltar para o conforto dos vínculos antigos. Já é invulgar crescer como um gémeo, parte de um par primordial; mas agora cada um deles dispunha de um segundo par raro, uma nova oportunidade de desfrutar de um tipo incomum de proximidade. O que poderá significar esse entrelaçamento — esse duplo emparelhamento — naquilo que cada um deles se vai tornar ou conseguirá na vida?Para comemorar o fim da pesquisa, Segal e Montoya resolveram levar os rapazes a uma famosa churrascaria de Bogotá, com uma espaçosa pista de dança. Jorge e William dançaram com Segal à vez; sorriam animadamente, girando e contorcendo-se sem prestar grande atenção ao ritmo. Carlos, sentindo-se no seu ambiente, ensinou alguns passos a Wilber. Dançavam lado a lado, não propriamente em sincronia — Carlos, com segurança, Wilber, atento aos pés e concentrado. Por vezes, erguia os olhos, como se sentisse a dança no corpo — sabia que logo aprenderia. “O Wilber tem jeito”, disse Montoya, que o observava da mesa, “só precisa de praticar mais. ” Quando os irmãos pararam de dançar e foram sentar-se para mais um trago de aguardente, começaram a flirtar com uma jovem que se tinha juntado à festa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No restaurante, Carlos sentia-se seguro, confiante, sereno. À medida que a noite avançou e bebeu mais, os seus passos foram ficando mais complexos e ousados, até que começou a exibir uma coreografia que ele e um amigo tinham inventado: numa contorção da cintura, as costas inclinam-se praticamente até ao chão, os joelhos ficam dobrados, quase a ceder. Carlos chamava àquele passo “Matrix”, em homenagem a uma manobra parecida que Keanu Reeves executa no filme para se esquivar das balas, num universo paralelo. Carlos estava de tal forma contorcido que parecia prestes a perder o equilíbrio. Wilber, William e Jorge rapidamente o rodearam, ainda a dançar, com uma expressão no rosto que resultava de uma mistura de emoções: divertimento, irritação, preocupação. Mas Carlos não estava a cair. Parecia. E rapidamente se endireitou sozinho. A dança continuou como antes. Os quatro juntavam-se e separavam-se, em diferentes pares e combinações — saíam em busca de mulheres, voltavam para trocar impressões e tomar novamente a pista de dança. Eram uma pessoa só, eram duas, eram quatro, fundindo-se, separando-se e tornando a fundir-se ao som da música pela noite fora. Exclusivo PÚBLICO/The New York Times
REFERÊNCIAS:
No rasto do vampiro
Dalton Trevisan, Prémio Camões 2012, é o mais invisível escritor brasileiro. A repórter do Ípsilon estava no seu rasto, cara na grade da sua casa irredutível, quando ele apareceu. Uma cidade-Lego, uma cidade sem país: Curitiba. Que estoure um samba a lembrar que isto é Brasil. Linhas rectas na horizontal e na vertical, torres separadas por canteiros, nove cores para lixo junto à Livraria do Chain. Foi a esta livraria, em tempos eleita a melhor do Brasil, que a editora Record mandou um fax quando o seu autor Dalton Trevisan ganhou o Prémio Camões 2012. Aramis Chain, o livreiro, serviu de correio. É das poucas pess... (etc.)

No rasto do vampiro
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
TEXTO: Dalton Trevisan, Prémio Camões 2012, é o mais invisível escritor brasileiro. A repórter do Ípsilon estava no seu rasto, cara na grade da sua casa irredutível, quando ele apareceu. Uma cidade-Lego, uma cidade sem país: Curitiba. Que estoure um samba a lembrar que isto é Brasil. Linhas rectas na horizontal e na vertical, torres separadas por canteiros, nove cores para lixo junto à Livraria do Chain. Foi a esta livraria, em tempos eleita a melhor do Brasil, que a editora Record mandou um fax quando o seu autor Dalton Trevisan ganhou o Prémio Camões 2012. Aramis Chain, o livreiro, serviu de correio. É das poucas pessoas que convivem com Dalton, o mais invisível escritor brasileiro. Enquanto Rubem Fonseca, célebre pela reclusão, posa para fotografias, vai à Póvoa de Varzim ser premiado e diz às pessoas que as ama, Dalton Trevisan só é fotografado por paparazzi, enviou a editora para receber o Camões e juntou um bilhete que dizia: "O melhor conto você escreve com a tua mão torta, teu olho vesgo, teu coração danado. "O seu melhor conto não será O Vampiro de Curitiba, mas convém-lhe como biografia. Quem já viu um vampiro? Eu não vim à caça, nem me ocorre vê-lo, só andar no seu rasto por Curitiba. "Quando chegar na livraria, procure a Paula, ela vai lhe mostrar a casa do Dalton", dissera Chain, ao telefone. Estava de saída, voltaria às 18h30, logo nos encontraríamos. São 17h30, sol na cara, na esquina da livraria. Lá dentro há uma prateleira para Dalton Trevisan. Quando pergunto por Paula, ela sai para o passeio. "Ainda ontem estive com ele aqui. Imprimo os emails [que lhe enviam] e deixo num envelope. "Dobramos à direita, subimos à esquina seguinte. "É aquela casa", aponta Paula. Fácil assim, um quarteirão? Ela despede-se, eu olho o nome das ruas, Amintas de Barros com Ubaldino do Amaral, a casa do outro lado: fachada cinza, cortinas pardas, janelas a descascar. Um arranha-céus reflecte no vidro, semáforos de um lado e do outro, jipes, motoboys, mulheres de óculos escuros. A cidade cresceu à volta daquela casa irredutível. Verde para os carros da Amintas, bruá de motores, fumo. Verde para os peões da Ubaldino, atravesso até à entrada da casa. É um portão com grades em cima. Então vejo um prado e quase um bosque, duas filas de árvores. Atrás de mim o trânsito, ao fundo uma torre, e no meio esta miragem verde. Estou assim, cara na grade, quando uma figura entra no meu campo de visão. É um homem de boné, um pouco curvado, mãos atrás das costas, passo firme. Caminha ao longo das árvores como se matutasse, quase falasse com ele mesmo. Vai até ao fim e volta, na mesma cadência. Cai o vermelho, cai o verde, Curitiba roda à volta do seu vampiro. Não me ocorre tirar fotografias nem esconder-me. Ocorre-me que talvez Dalton saiba que eu ia ver a casa. Chain, fiel, não lhe diria? Se disse, terá Dalton saído ao jardim para me deixar com estas perguntas?E nisto o boné desaparece em direcção à casa. Não há campainha nem batente, ainda que eu quisesse bater. Contorno a casa. Cacos de vidro e velho arame farpado no muro, uma porta de garagem. Num documentário sobre Dalton, um amigo conta que ele tem um fusca guardado, outro diz que ele detesta carros e adora andar a pé. É o vampiro flâneur, a caminho dos 88. Não vi um velho, vi um obstinado. Vegetariano"Era ele mesmo", confirma Chain, quando volta à livraria. Tem a certeza? Dalton vive sozinho? E usa aquele boné? Sim, sim e sim. Aramis Chain, 70 anos, 45 de livreiro, camisa engomada, suspensórios, mistura de alemão luterano com ucraniano ortodoxo e libanês xiita. Curitiba não tem tanto cruzamento de português com negro, é outra gente. Para complicar, Chain casou com uma chinesa, e a sua filha, que também trabalha aqui, é o lindo resultado de tudo isto. Voltemos a Dalton: como se conheceram?"Meu irmão trabalhava na TV, em contacto com as artes, e Dalton nesse tempo era advogado e escrevia em revistas, com gravuras desse artista aqui. . . " Mostra a agenda da livraria para 2013, com capa de Poty Lazzarotto. Poty foi parceiro de Dalton na mítica revista Joaquim ("em homenagem a todos os joaquins do Brasil", dizia o subtítulo), que entre 1946 e 1948 teve colaborações de Carlos Drummond, Mário de Andrade, Antônio Cândido ou Vinicius de Moraes. "Lá no centro, no fim da rua XV, tem uma quadra que é a Boca Maldita, onde se reúnem os comerciantes, advogados, pintores. O meu irmão conversava muito com ele lá. O Dalton ainda vai lá. Ele anda bastante, vai a pé umas duas vezes por dia. Está muito conservado de corpo, rosto sem rugas. É vegetariano. "Mas então convive?"Diz bom dia, boa tarde, não fala com as pessoas. " E as pessoas conhecem-no? "Você conhece um vampiro?" O que aconteceria se eu lhe falasse? "Ele ia dizer boa tarde e não ia falar mais. Ele não dá entrevistas. Vem aqui na livraria, às vezes de manhã, às vezes bem de tarde. Quando está a chover, ele espera aqui. " Com quem fala? "Comigo, e tem uma secretária, Fabiana. " A relva estava bem aparada, é ele mesmo? "Acho que deve ter um antigo jardineiro. " E se eu batesse à porta? "Não iria te atender. E é de uma educação refinada. Mas se você falar com o vampiro, o vampiro já não existe mais. "Um concerto de Bach flutua pela livraria. "Dalton aceitou o Prémio Camões com muita honra. " E vieram os prémios Machado de Assis e Portugal Telecom, tudo em 2012. De resto, ele "adora Eça de Queirós", "lê literatura em geral e muitos jornais também", de São Paulo e do Rio. "Às vezes converso alguma coisa de política e ele está a par que é uma coisa impressionante. "Depois, quando Chain repara na pilha de Daltons que comprei, faz a oferta mais inesperada: que o autor os autografe. Incrédula, explico que voo na manhã seguinte para o Rio de Janeiro. Chain insiste, liga à secretária de Dalton a dizer que tem lá uns livros para ele autografar, passa-me o telefone. Fabiana confirma que Dalton terá muito prazer em autografar os livros. Entretanto Chain já tem um plano: que a caminho do aeroporto eu pare na livraria, onde às nove da manhã uma das livreiras já terá ido a casa de Dalton recolher os livros. E vai à porta indicar-me o passeio que Dalton faz. Anoitece, boa hora para a Boca Maldita. Apocalipse jáRua XV, em direcção ao poente, como num filme. Calçada portuguesa igual a Copacabana; calçada vulgar entre paredes de espelho, graffiti, murais; de novo calçada portuguesa, com árvores tropicais, o Teatro Guaíra, a Universidade do Paraná, neo-clássica, branca, fosforescente - e em volta sempre as torres da cidade que quis ser modelo. Ordem em vez de caos e de mistura. Vieram as pichagens, os assaltos, o crack. Dalton Trevisan continuou de ouvido na porta, olho na fechadura. A sua Curitiba vai do vampiro Nelsinho a babar por carne de moça nos anos 50 à drogada que rouba por uma pedra agora, ao par de adolescentes que faz um aborto. É a cidade-rapina em que um homem morre à vista de todos, enquanto tudo lhe é roubado (Uma Vela para Dario). A cidade à beira-rio onde os bêbados lembram elefantes, lentos, disformes (Cemitério de Elefantes). Uma cidade "província, cárcere, lar" contra "a cidade irreal da propaganda", à margem de qualquer beija-mão. Ex-advogado, ex-trabalhador na fábrica de vidros da família, nem cargos no estado nem estátuas, Dalton, o desintegrado, vê Curitiba caminhar para o seu apocalipse: "O pânico virá num baile de travestis no Operário, no meio do riso; o riso não será riso, diz o Senhor, as bicharocas desfilarão diante do espelho, e não darão com sua imagem. Diz o Senhor: Eis que eu entrego esta cidade nas mãos de Baal e dos filhos com rabo de Baal, e tomá-la-ão. "Entre a Igreja Central dos Irmãos Cenobitas e a Sauna Gay Opinião, ambas suas vizinhas de rua, desfaz ambas, ácido, corrosivo, lembrando que Curitiba é a cidade onde o cônsul português Miguel José Fawor foi assassinado em 2000 por garotos de programa, ou seja, prostitutos. Voltou a acontecer dez anos depois com o escritor local Wilson Bueno. E, ao mesmo tempo, Dalton é tão capaz do mais subtil fellatio de rua entre dois homens (Boa-noite, Senhor) como de amar mais as mulheres do que o próprio Vinicius, garantindo que nenhuma é feia, nem aquela sem dentes entre os caninos, boca-banguela na via sacra de Nelsinho (Noite da Paixão, o melhor conto do vampiro). Os libertinos de Dalton conhecem os inferninhos e o próprio inferno, ele leu a Bíblia por eles. De resto, nada do que é humano lhe é estranho: cornos-mansos, ninfomaníacas, violadores em série, mulherzinhas reclamando da baba na almofada, tanto tédio, revelhas queixas. Os seus heróis não vêm da favela nem vão a Paris, são empregados, desempregados, largados na vida, na beira da estrada, gente que vendeu todas as férias que teve. Mas nada do que é humano tornou o amor estranho. O libertino conhece o rouxinol, também chamado de corruíra: "O amor é uma corruíra no jardim - de repente ela canta e muda toda a paisagem. " Ou: "Com ela sonhava e o poder mais forte dos quinze anos me levantava sobre os telhados da cidade. " Ou ainda: "Eras na vida a pomba predilecta, ó doce putinha. " Um Luiz Pacheco. Um João César Monteiro. Um Salomão dos trópicos, diante de um peito de rapariga: "Ó broinha de fubá mimoso. " Língua de arco teso, como quem tira a espinha do peixe. Escrita por extracção, rarefacção, elipse. Crepúsculo em Curitiba. Um mulato empilha num carrinho todo o papelão que juntou. Logo adiante, a Boca Maldita é uma praça cheia de cafés, o que sobrou de arte-nova, torres por cima. Continuo, rua fora, apesar de a rua já não se chamar XV. Em cada esquina um Raskolnikov? O vampiro saberá melhor. Certo é que nesta esquina vejo um retrato de Dostoiévski pousado no chão, à venda. Não sei se Dalton alguma vez escreveu "Raskolnikov sou eu", mas sei que escreveu "Capitu sou eu", e os amigos contam que ele não tem dúvidas sobre o maior enigma da literatura brasileira: Capitu (heroína de Dom Casmurro) traiu Bentinho? Machado de Assis é o herói de Dalton Trevisan (juntem-lhe Flaubert, Tchékhov e cinefilia). Na manhã seguinte paro na livraria a caminho do aeroporto. Lá estão os livros que comprei, todos assinados. E mais dois com dedicatória: oferta do vampiro.
REFERÊNCIAS:
É primeira-ministra e não tem filhos. E isso ainda é notícia
Não é a idade nem o sexo que fazem de Jacinda Ardern uma primeira-ministra diferente. É a solução política que encontrou para formar governo e a resposta que deu para repudiar o sexismo. (...)

É primeira-ministra e não tem filhos. E isso ainda é notícia
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 7 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Não é a idade nem o sexo que fazem de Jacinda Ardern uma primeira-ministra diferente. É a solução política que encontrou para formar governo e a resposta que deu para repudiar o sexismo.
TEXTO: Numa primeira leitura, tudo aos nossos olhos parece estranho na Nova Zelândia, olhos que estão — literalmente — no outro lado do mundo: os motoristas do Estado são multados por excesso de velocidade com a líder do Governo no carro, o namorado da primeira-ministra é apresentador de um programa de televisão sobre pesca chamado Fish of the Day e a residência oficial do chefe do executivo foi uma clínica dentária durante anos. O pretexto para esta breve imersão é Jacinda Ardern, que acaba de tomar posse como primeira-ministra da Nova Zelândia. Tem 37 anos, é uma progressista de esquerda e junta um estilo, carisma, idade e ideias que fazem lembrar o canadiano Justin Trudeau. Não é por ser mulher que a nova primeira-ministra foi notícia. A Nova Zelândia é um dos poucos países do mundo com três mulheres a chefiar o executivo e, mais raro ainda, duas delas consecutivas. A primeira foi a conservadora Jenny Shipley (1997-99), e a segunda a trabalhista Helen Clark (1999-2008), um dos 13 candidatos a secretário-geral da ONU que o português António Guterres derrotou no ano passado. Também não é pela idade que Ardern faz história — apesar de impressionar e de ser ainda mais nova do que o Presidente francês, Emmanuel Macron. Em 1856, Edward Stafford tornou-se primeiro-ministro da Nova Zelândia aos 37 anos e 40 dias. Quando tomou posse na semana passada, Ardern tinha 37 anos e 92 dias. A BBC foi exacta no título: “Líder mais nova em 150 anos. ” Em rigor, Ardern é a mulher mais jovem de sempre à frente da Nova Zelândia. E, já agora, do mundo. Dentro de toda a peculiaridade neozelandesa, o que é interessante nesta história é outra coisa. Na verdade, são duas. A primeira é a solução política que Ardern encontrou para resolver o impasse saído das legislativas de Setembro. A segunda foi o modo como respondeu ao sexismo que a sua ascensão despertou. Primeiro a política. Os dois partidos que fazem a rotação do poder desde 1935, o Labour (trabalhista) e o National (conservador), ficaram quase empatados. O Partido Nacional ficou com 56 lugares no Parlamento e o bloco Trabalhistas+Verdes ficou com 54. Durante os 26 dias das negociações, especulou-se muito sobre que papel assumiria desta vez Winston Peters, o líder do partido Nova Zelândia Primeiro, que no passado desbloqueou o impasse a favor dos conservadores. Não é só a palavra “Primeiro” (First, no original) que faz pensar em Donald Trump e no lema “America First”. As ideias do partido também. Populista numa versão neozelandesa — é filho de um maori da tribo Ngati Wai e de uma descendente de imigrantes escoceses do clã McInnes, e foi operário na metalurgia e na construção de túneis antes de estudar política e direito —, Winston Peters, 72 anos, defende de corpo e alma três ideias: reduzir a imigração (diz que é “importar actividade criminal”), aumentar as penas criminais e acabar com a “indústria da indignação” em torno do Tratado de Waitangi, de 1840, entre a coroa britânica e os chefes maori, que, essencialmente, deu a soberania do país a Londres. Não é por acaso que dizem que Winston Peters é o “Trump neozelandês”. As coligações são a regra na Nova Zelândia desde 1990. Além disso, os eleitores já viram os mesmos partidos aliarem-se tanto à esquerda como à direita. É o caso do United Future (conservadores), dos Verdes e do Nova Zelândia Primeiro. O próprio Winston Peters foi vice-primeiro-ministro (1996-1998) num governo do Partido Nacional; a seguir, Jim Anderton (do Partido Progressista, de esquerda) teve o mesmo cargo numa coligação com o Labour (1999-2008), e a direita, que agora ganhou mas foi para a oposição na sequência do acordo Ardern/Peters, governou entre 2008 e 2017 em coligação com a Association of Consumers and Taxpayers, o United Future, o Partido Maori e os Verdes (que saíram em 2011). Com 7, 2% dos votos e nove lugares, voltou agora a caber a Winston Peters o papel de escolher o primeiro-ministro. Para surpresa de muitos, fez acordo com a esquerda. Escolheu o Labour ou escolheu Jacinda Ardern? Na Nova Zelândia, fala-se em “Jacindamania”, e o acordo revela, no mínimo, o carisma da nova primeira-ministra, uma mulher de esquerda sem qualquer ambiguidade. Quando anunciou a sua decisão, Peters disse que tinha de escolher entre “o statu quo modificado” e a mudança e que escolheu a segunda. O seu partido ficou com quatro pastas. Peters é de novo vice-primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros. Jacinda Ardern acumula três pastas: Segurança Nacional e Serviços Secretos; Arte, Cultura e Património, e Crianças Vulneráveis, as mesmas que tinha como líder da oposição. Mal tomou posse, Ardern começou a pôr em prática o lema de campanha: “Let’s do this. ”. Ao lado do seu vice-populista de direita, prometeu mudanças profundas nos primeiros cem dias e um “miniorçamento” até ao Natal. O Governo vai começar pela Educação, aumentando de forma substancial o investimento do Estado: o primeiro ano universitário será gratuito para todos e as bolsas vão aumentar 50 dólares por semana. Como medida de compromisso, e respondendo a uma vontade do seu parceiro de coligação, anunciou também a intenção de suspender a venda de casas a estrangeiros. O segundo tema é o sexismo — ou a pergunta da maternidade. Vai Jacinda Ardern ter filhos? A pergunta foi feita duas vezes de seguida, a primeira sete horas depois de ter sido eleita líder do Partido Trabalhista. Qualquer coisa como “muitas mulheres chegam ao fim dos 30 anos e têm de escolher entre terem filhos ou continuarem a sua carreira. Essa é uma escolha que sente que tem de fazer ou que já fez?”. A resposta:— Não tenho problema em que me faça essa pergunta, porque tenho sido muito aberta em relação a esse dilema e sinto que muitas mulheres o enfrentam. A minha posição não é diferente da das mulheres que têm de ter três empregos ou que têm muitas responsabilidades. Mas no dia seguinte, o tema regressou, noutra entrevista, e foi colocado de uma forma que a irritou. “Acho que é uma pergunta legítima, porque pode ser primeira-ministra, e um empregador numa empresa precisa de saber este tipo de coisas sobre as mulheres que vai contratar, porque as mulheres tiram licença de maternidade. E portanto a pergunta é: é aceitável que um primeiro-ministro tire licença de maternidade quando está em funções?” Outro jornalista que estava no painel interrompeu com um “oh oh oh. . . ”, como quem diz, “calma”, e perguntou a Ardern: “Acha esta questão de ter ou não bebés uma pergunta legítima?”— Para mim — respondeu Ardern — sim, porque me abri em relação a isso. Mas para as outras mulheres, é totalmente inaceitável, em 2017, dizer que as mulheres têm de responder a essa pergunta no local de trabalho. É uma decisão das mulheres quando querem ter filhos. Não deve predeterminar se são ou não contratadas. Na política, como no resto, os clichés sexistas parecem inexoráveis. No livro Head and Shoulders: Successful New Zealand Women Talk to Virginia Myers, de 1986, Helen Clark conta que a campanha para as legislativas de 1981 foi muito difícil: “Por ser solteira, fui massacrada. Fui acusada de ser lésbica, de viver numa comunidade, de ter amigos trotskistas e homossexuais. . . ” Pressionada pelo seu próprio partido, acabou por se casar com o sociólogo Peter Davis, com quem vivia há cinco anos, pouco antes de ser eleita para o Parlamento. Não têm filhos. Agnóstica (tal como Jacinda Ardern), Clark tinha reservas profundas sobre a ideia de se casar e, segundo escreveu Brian Edwards na biografia Helen — Portrait of a Prime Minister, de 2002, chorou durante toda a cerimónia. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Na Austrália, mesmo ao lado, o tema é familiar. Quando Julia Gillard se tornou primeira-ministra (em 2010), o editorial do Sydney Morning Herald dizia: “A sua imagem mediática não encaixa nas expectativas de alguns eleitores: uma mulher solteira, sem filhos, cuja vida é dedicada à sua carreira. ” Claro que, depois do insulto de Bill Heffernan uns anos antes, nada a terá surpreendido. Heffernan, um senador conservador amigo do então primeiro-ministro, John Howard, ainda hoje defende com orgulho a ideia de que Julia Gillard “nunca compreenderá os eleitores porque não tem filhos nem família”. “Se se é um líder, tem de se compreender a comunidade”, disse em 2007. “Uma das coisas importantes a compreender numa comunidade é a família e a relação que existe entre a mãe, o pai e uma caixa de fraldas. ” O mais extraordinário veio a seguir: por ser “deliberadamente estéril”, Gillard não tinha capacidade para liderar. Jacinda Ardern cresceu em Morrinsville (sete mil habitantes) e em Murupara (1700 pessoas), rodeada pela floresta de Kaingaroa. Murupara significa “limpar a lama”. O pai era polícia e a mãe empregada na cantina de uma escola. Em 2017, e depois de duas mulheres a chefiar o Governo, não ter filhos ainda é notícia. Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU
Harry Potter e The Band’s Visit vencem na noite em que DeNiro disse “Fuck Trump”
Anjos na América foi outro dos grandes vencedores dos prémios que distinguem o melhor teatro musical em cena nos EUA. DeNiro, convidado para apresentar Bruce Springsteen, fez o resto. (...)

Harry Potter e The Band’s Visit vencem na noite em que DeNiro disse “Fuck Trump”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.2
DATA: 2018-06-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Anjos na América foi outro dos grandes vencedores dos prémios que distinguem o melhor teatro musical em cena nos EUA. DeNiro, convidado para apresentar Bruce Springsteen, fez o resto.
TEXTO: O grande vencedor da noite dos prémios Tony, que distinguem o melhor do teatro musical em cena nos EUA, foi The Band’s Visit, sobre uma orquestra egípcia retida em Israel, e os nomes conhecidos premiados foram Andrew Garfield, Harry Potter e a Criança Amaldiçoada e Anjos na América. Mas um dos destaques da noite foi mesmo o palavrão endereçado por Robert DeNiro ao Presidente Donald Trump – “Fuck Trump”, bisou. Os alunos da escola de Parkland, atacada num tiroteio que marcou o debate sobre o controlo do acesso às armas nos EUA este ano, actuaram. The Band’s Visit recebeu dez Tony, entre os quais o de melhor musical na Broadway e também os prémios de interpretação para os actores Tony Shaloub, Katrina Lenk e Ari'el Stachel. Só perdeu um dos 11 galardões para os quais estava nomeado. Angels in America, ou Anjos na América em português (a peça esteve parcialmente em Portugal em 1994 e foi adaptada para televisão pela HBO e exibida em Portugal no início dos anos 2000), voltou aos palcos depois da sua estreia em 1993 e o texto de Tony Kushner venceu na altura um prémio Pulitzer e agora o de melhor reposição, tendo também dado galardões de actuação a Andrew Garfield e a Nathan Lane. Os actores dedicaram os seus Tony à comunidade LGBT e a Kushner, cujo texto sobre a epidemia da sida nos anos 1980 e seus efeitos sociais deu origem à peça com mais nomeações da história da Broadway, como assinala o Guardian. Mas foi o blockbuster Harry Potter e a Criança Amaldiçoada, uma peça que continua a explorar o universo criado por J. K. Rowling em torno de um jovem feiticeiro em Inglaterra, que recebeu o Tony de melhor peça e outros seis galardões. A peça, elogiada pela crítica, bateu recordes de bilheteira nas suas primeiras semanas de exibição nos EUA depois de ter arrecadado milhões de libras no Reino Unido desde Julho de 2016 e de ter recebido nove prémios Laurence Olivier. Glenda Jackson e Laurie Metcalf foram premiadas pelos seus papéis em Three Tall Women e a revisitação de My Fair Lady foi uma das grandes perdedoras da noite, marcada por um Tony especial a Bruce Springsteen pelo seu espectáculo Springsteen on Broadway, que estará em exibição até Dezembro deste ano. Foi precisamente ao apresentar o “boss” que Robert DeNiro deixou a sua marca na cerimónia que a imprensa descreve como tendo sido entre “muito política” e marcada pela “esperança e contenção”. Afinal, os discursos sobre a comunidade LGBT, sobre o feminismo (a comediante Amy Schumer enquadrou My Fair Lady como uma peça feminista, por exemplo) ou imigração e a actuação dos alunos da escola Marjory Stoneman Douglas, em Parkland, que interpretaram uma música da peça Rent, tinham pontuado a noite. E Tony Kushner tinha apelado, ao aceitar o seu prémio, ao voto nas iminentes eleições intercalares dos EUA para “salvar a nossa democracia e sarar o nosso país”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas o “touro enraivecido” obrigou os censores do canal CBS a exercer os seus poderes e a deixar em silêncio na transmissão televisiva o momento em que DeNiro gerava uma ovação no Radio City Music Hall. De punhos erguidos, disse “Fuck Trump”. Foi recebido com risos e aplausos. “Já não é ‘abaixo Trump’, é ‘que se foda Trump’”. E com Springsteen prestes a interpretar My hometown apelou: “Bruce, tu abalas a sala como ninguém. E mais importante ainda nestes tempos perigosos, abalas o voto. Sempre a lutar, usando as tuas próprias palavras, pela verdade, transparência, integridade na governação. E bem precisamos disso agora”. Robert DeNiro é uma conhecida voz anti-Trump e já tinha justificado no passado recente que considera que “a América está a ser gerida por um louco que não reconheceria a verdade nem que ela viesse dentro de um balde do seu amado frango frito”. Em casa, os espectadores não puderam ouvir os palavrões de DeNiro – mas a audiência encarregou-se de espalhar a palavra via Twitter e a imprensa presente também relataria o sucedido.
REFERÊNCIAS:
Criados para aquilo que não podem ou não querem ser
Qualquer classificação geracional uniformiza o diverso, mas ajuda a perceber o que é comum. Os que nasceram entre 1965 e 1981 viveram “uma promessa de estabilidade” e agora lidam com a incerteza, sob forte pressão para terem filhos e serem perfeitos nesse papel. Este é o segundo de cinco textos publicados ao domingo sobre as diferentes gerações. (...)

Criados para aquilo que não podem ou não querem ser
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2014-08-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Qualquer classificação geracional uniformiza o diverso, mas ajuda a perceber o que é comum. Os que nasceram entre 1965 e 1981 viveram “uma promessa de estabilidade” e agora lidam com a incerteza, sob forte pressão para terem filhos e serem perfeitos nesse papel. Este é o segundo de cinco textos publicados ao domingo sobre as diferentes gerações.
TEXTO: Silvana Mota Ribeiro conta 40 anos e namora há dez. Se usar um vestido largo, uma suspeita propaga-se no seu local de trabalho — a Universidade do Minho. Da última vez, perguntou-lhe uma sorridente funcionária: “A senhora professora está de esperanças?” Ela arregalou muito os olhos, como lhe acontece sempre que fica horrorizada com qualquer coisa: “Tenho esperança de não estar!”Portugal atingiu a mais baixa taxa de natalidade da União Europeia. É forte a pressão para ter filhos, mas aquela a que os americanos chamaram Geração X — a dos que nasceram de 1965 a 1981, ou mesmo a 82, 83, 84, conforme os estudiosos — nunca se rendeu por completo à parentalidade. Desde que os primeiros atingiram a maioridade, Portugal deixou de fazer renovação geracional. O país da infância de Silvana era outro. As crianças ficavam entregues a si próprias sem que aí se visse negligência paterna. Brincavam na rua com cordas, bolas, bicicletas e carrinhos de rolamentos. No fim do dia e no fim da semana, assistiam aos mesmos desenhos animados — a Heidi, o Marco, o Conan, o Tom Sawyer, o Calimero, o D’Artacão e os Três Moscãoteiros. Só havia RTP. Experimentaram o videoclipe. Imitaram estrelas Pop. Não era fácil chegar às alternativas. Quem podia encomendava discos e gravava cassetes aos amigos. A espera era muita. A dificuldade de acesso só ajudava a intensificar a relação com a música. Havia tempo para a idolatração. À boleia do alargamento da escolarização e das classes médias, desenvolviam-se diversas culturas juvenis. Portugal não é de inventar rótulos geracionais, prefere reproduzir os internacionais, mas tem as suas originalidades. E, há 20 anos, sem querer, o jornalista Vicente Jorge Silva cunhou esta geração. Depois de ver fotografias de estudantes do secundário a mostrar o rabo e o pénis num protesto, era Manuela Ferreira Leite ministra da Educação, assinou no PÚBLICO o editorial “geração rasca”. Naquelas imagens via um sintoma de “vazio de valores”, de “apetência alarve pela vulgaridade”. A cena que indignou Vicente Jorge Silva era um remake. Um ano antes, no Centro Cultural de Belém, quatro rapazes tinham mostrado o rabo, com a frase “não pago” pintada, ao inventor das propinas, o ministro Couto dos Santos. Havia um ambiente geral de insatisfação, recorda um desses rapazes, Luís Branco, agora com 40 anos, a editar o Esquerda. Net, site do Bloco de Esquerda. “Era o desgaste do Cavaquismo. ”Os estudantes tinham tomado a rua. Primeiro, contra a Prova Geral de Acesso ao ensino superior, um exame de língua portuguesa e de cultura geral, encarada como uma forma de favorecer as classes altas. A seguir contra as propinas, em defesa do ensino “tendencialmente gratuito”. Depois, contra as provas globais. E não faltava eco. Entre 1989 e 1993, apareceram a TSF, o PÚBLICO, a SIC e a TVI. Apregoava-se que não seria pela indústria, pela agricultura ou pela pesca que Portugal se tornaria competitivo. Havia uma crença inabalável na educação como factor de ascensão social. Entre 1984 e 1994 o número de inscritos nas universidades e politécnicos passara de 95 mil para quase 270 mil. A menos que se tivesse dinheiro, a entrada no ensino superior exigia esforço. As vagas não davam para todos. Luís Branco perdera o pai aos sete anos. Filho de uma funcionária dos correios, estudava Comunicação Social na Nova de Lisboa. As suas lutas pouco interessavam a Abel Humberto, filho de um técnico de farmácia e de uma doméstica, que aos 17 anos começara a despejar cinzeiros, a apanhar toalhas e a lavar cabeças e na altura dos protestos estudantis já ganhava “bom dinheiro” a cortar e a pentear cabelos. Eram colossais os fundos comunitários destinados a modernizar a economia. Entre 1986 e 2001, o PIB cresceu a uma taxa média anual de 3, 9% e essa abundância relativa enchia restaurantes e cabeleireiros. “Havia o hábito de ir arranjar o cabelo para o fim-de-semana”, recorda Abel, agora com 43 anos. Emigrava-se menos. E a vaga de imigração ajudava a insuflar a auto-estima nacional. “Somos a geração da esperança na bandeira azul com estrelinhas amarelas”, resume Silvana Mota Ribeiro. A televisão passava muitos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria. “E se URSS e EUA se passam? Estamos aqui no meio!” Havia muros reais e muralhas imaginárias a separar países desavindos. A CEE não era só um símbolo de consumo, também de paz, de solidariedade, de igualdade. Muitos lembrar-se-ão da queda do muro de Berlim em 1989 e da abertura de fronteiras em 1995. Quem podia, metia-se num comboio e ia ver. O InterRail, embora caro, era a opção “baixo custo”. E voltava bem a tempo de arranjar emprego. “Geração interrompida”O sociólogo João Teixeira Lopes, a celebrar 45 anos dentro de dias, usa a expressão “geração interrompida”: “Viveu uma promessa de estabilidade. Conseguiu ter pequenas margens de conforto. Foi apanhada pela crise numa idade em que, num instante, se pode tornar obsoleta, descartável. ”O tempo é de sobrecarga fiscal, cortes salariais, elevada taxa de desemprego, recuo na protecção social. “As dificuldades económicas trouxeram ao de cima dificuldades relacionais”, prossegue Teixeira Lopes. E, mesmo assim, pela primeira vez desde o 25 de Abril de 1974, o número de divórcios baixou. Muitos têm filhos e “ficam em pânico quando chega o envelope do gás ou da electricidade”. Não cresceram mentalizados para o sacrifício como os pais, amiúde focados na sobrevivência. Nem estão preparados para enfrentar a precariedade, como a geração seguinte, que nada mais conhece. “É uma luta do caraças”, suspira a técnica psicossocial Inácia Cruz, de 37 anos. “Primeiro, já temos alguma idade. Depois, mistura-se o que imaginamos com o que conseguimos. ”Trabalhou com crianças e jovens de bairros periféricos, mães adolescentes, doentes mentais, sem-abrigo e, um dia, percebeu-se desempregada, extenuada, descomprometida com a sua vida pessoal. Recompôs-se. Faz oficinas criativas, dinamiza jogos teatrais, é contadora de histórias, mas ainda não consegue viver só do seu trabalho, acha que ainda não encontrou forma de o promover, como fazem os amigos mais novos. E dá por si a viver num quarto arrendado e a socorrer-se da mãe. Inácia acredita que “é possível viver dos sonhos”, mas todos os dias sente o quanto isso custa. Gostava de perceber para onde tudo isto a leva. Por vezes, pergunta-se: “Onde estarei daqui a cinco anos? Gostava de ter um espaço para trabalhar na educação pela arte, um companheiro tranquilo no compromisso, filhos. É muito difícil…” Sem estabilidade, tudo se adia, tudo, até o amor. Tem “não relações” ou “relações não convencionais”. A forma de encarar o amor diversificou-se. Discursos tradicionais e progressistas misturam-se, sobrepõem-se, até dentro da mesma pessoa. Enquanto socióloga dos estilos de vida, Silvana Mota Ribeiro procura tendências e uma parece-lhe evidente: “Esta geração tem muito mais escolha do que a anterior”. “Quantas pessoas agora têm uma relação estável com alguém que mora noutro país?”, exemplifica. “As pessoas encontram-se voando. A relação à distância já não é um absurdo, uma coisa da emigração, do tempo em que os homens iam e as mulheres ficavam. ”Os pais de Silvana ainda a imaginaram a chegar virgem ao casamento — era isso que se esperava das raparigas —, mas ela, como muitas mulheres da idade dela, não pensa em casamento e nunca se sentiu “uma atrevida” por meter conversa com um rapaz que lhe despertasse interesse numa festa. “A minha geração desenvolveu o que era ainda um discurso em potência em meados dos anos 80. Tomou em mão o dar o primeiro passo, o primeiro beijo. ”“Não és uma mulher completa!”Vulgarizou-se o divórcio, a união de facto, a família recomposta, legalizou-se o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. E, apesar disso tudo, o “modelo ideal” resiste: um homem e uma mulher entendidos como diferentes e complementares. E, mal se casam, começa a pergunta: “Então, quando têm um filho?”A pressão não é igual para homens e para mulheres e isso, defende Silvana Mota Ribeiro, não tem só a ver com relógio biológico. Se o homem disser que um bebé é uma maçada, que prejudica a carreira, tolera-se. Se for a mulher, nem pensar. A mulher continua a ser vista como cuidadora. “Não és uma mulher completa!”, dir-lhe-ão. “E depois? Quem vai cuidar de ti quando fores velha?”Uma mulher tem de apresentar uma razão externa — é infértil, não tem companheiro, o emprego fica em risco. Não chega dizer: “Não quero. ” Silvana diz. E ao fim de tantos anos a mãe dela ainda lhe pergunta: “Mas isso é para sempre? Não pensas em ter um dia?” E ela responde-lhe: “Se calhar não. Estou bem assim. Por que hei-de mudar, se estou bem assim?” E a mãe começa a falar nas alegrias da maternidade. “Ai, o que estás a perder! Sabes lá que é ser mãe. É uma coisa superior a tudo. Vais arrepender-te. Olha que o tempo passa. Já tens 40 anos!”Fala na sua opção com cuidado, sobretudo com amigas que sabe pressionadas para serem “mães perfeitas”. Sabe que o seu discurso tende a ser mal percebido. E não quer que a vejam como carreirista, egoísta, sem amor para dar. “Quando tens um filho, nunca mais és independente”, diz. “Isto é uma coisa muito grande para perder. Tens uma criança e és responsável por ela para sempre. Nunca mais tens a tua vida só para ti. Não podes partir. Não te podes fazer ao mundo. ”A Geração X não desistiu de ter filhos. Tem cada vez menos e cada vez mais tarde. Segundo o último Inquérito à Fecundidade, a maior parte gostaria de ter duas crianças, mas acaba por ter uma. Foi-se alargando a escolarização, atrasando a entrada no mercado laboral, precarizando a relação com o trabalho e às costas da mulher continuou o grosso do trabalho doméstico. Já não é como na geração anterior, mas na maior parte das vezes ainda são elas que cozinham, limpam, tratam da roupa. Poucos homens gozam a licença de parentalidade para lá do obrigatório. O lugar dos fraldários é nas casas de banho das mulheres. Isso nunca foi um problema com que Abel se deparasse. Deixava isso aos cuidados da mãe do filho, agora com cinco anos, que só vê de 15 em 15 dias. Luís Branco, de certo modo um dos ícones da “geração rasca”, tem uma filha de nove meses e uma enteada de nove anos e não tem conta às fraldas que mudou. Compete-lhe dar banho à menina e adormecê-la todas as noites. Ele trata do jantar e da louça e a companheira trata da roupa. A mulher-a-dias trata do resto. Nem só por vontade masculina a paridade assume contornos de história de excepção. Como mostram os estudos da socióloga Margarida Mesquita, com maior frequência os homens trabalham por turnos, trabalham mais horas, têm dois trabalhos. O “novo pai” também sente culpa por ter pouco tempo para os filhos e, por vezes, só não participa mais porque a mulher não deixa. “Se um [filho] ficar doente, só confio em mim”, ri-se a dramaturga, encenadora e actriz Marta Freitas. Tem duas crianças de 11 e 9 anos. “Acho que os pais estão num desequilíbrio muito grande em relação a forma como são pais. Têm de trabalhar muito e querem muito estar presentes e acabam por interferir demais. ” Faz parte da associação de pais. Vê como alguns afrontam professores porque querem mais trabalhos de casa, menos trabalhos de casa, zero trabalhos de casa. “Acho que minha geração levou uma chicotada”, resume aquela profissional do teatro, que antes estudou psicologia clínica. “Vive uma mudança muito grande. As perturbações de ansiedade — os ansiolíticos, os antidepressivos — têm muito a ver com isso. Estávamos habituados a perceber a vida de uma forma muito linear. Não havia esta azáfama. Parece que está tudo em causa. As pessoas têm medo. Parece que virou tudo ao contrário. O que aprendeste como filha já não podes transmitir aos teus filhos porque esse mundo já não existe. ”Sem a retaguarda familiar que existia noutros tempos, pressionada para trabalhar cada vez mais horas por cada vez menos dinheiro, muitos arrastam os filhos de actividade em actividade. Nesta ânsia de querer preparar os filhos para tudo, e já com os pais a precisar de apoio, parte da Geração X vai-se esquecendo de si própria. Notícia corrigida às 15h12: quatro rapazes mostraram o rabo ao ministro Couto dos Santos, não na Universidade Nova, como inicialmente estava escrito, mas no Centro Cultural de Belém. 1. º texto desta sérieGERAÇÃO 45-64: Vinte anos para gozar a vida de reformado
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Isto é uma guerra, dizem os bóeres de Terre"Blanche
Terre"Blanche era o rosto da extrema-direita sul-africana. Sobre a sua campa, o sucessor jura pela independência bóer. Acha que os negros vão atacar os brancos e portanto os bóeres estão a treinar-se para a guerra. Viagem ao mundo rural, onde 85 por cento da terra continua na mão dos brancos. (...)

Isto é uma guerra, dizem os bóeres de Terre"Blanche
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 5 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-05-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Terre"Blanche era o rosto da extrema-direita sul-africana. Sobre a sua campa, o sucessor jura pela independência bóer. Acha que os negros vão atacar os brancos e portanto os bóeres estão a treinar-se para a guerra. Viagem ao mundo rural, onde 85 por cento da terra continua na mão dos brancos.
TEXTO: Às 10h da manhã, arranha-céus com roupa estendida no centro de Joanesburgo, e a meia-hora de distância as grutas onde viveram os nossos avós australopitecos. Bem-vindos à África do Sul. Estamos a 1500 metros, mas não se dá por isso. Saindo da cidade, é um infindável planalto. E, à medida que continuamos para noroeste, estufas, milharais, girassóis abertos, fardos de palha, vacas e ovelhas, fazendeiros brancos, trabalhadores negros. Dezasseis anos após as primeiras eleições democráticas, 85 por cento da terra agrícola continua na mão de brancos, e esta não é excepção. No tempo do apartheid, era a província do Transvaal, uma das regiões dominadas por afrikaners. Os afrikaners vêm de holandeses, franceses e alemães que se instalaram na África do Sul - os holandeses colonizaram o Cabo no século XVII; franceses protestantes chegaram em fuga às perseguições católicas; juntaram-se-lhes alemães (e ainda escandinavos, irlandeses, escoceses). Descendentes deste caldo, os afrikaners falam afrikaans (uma deriva do holandês), e constituem 60 por cento da população branca. Os outros brancos têm o inglês como língua materna e provêm dos colonos ingleses. Foi para escapar ao poder inglês que muitos afrikaners subiram do Cabo até estas províncias do Norte, no século XIX. Domaram a terra, e por isso são chamados bóeres, ou seja, agricultores. Mas agricultores-guerreiros, como se provou em duas guerras com ingleses e várias batalhas com povos nativos, como os zulus. Uma delas, a de Bloedrivier, em 1838, tornou-se um mito afrikaner: Deus mostrou-lhes que eram o povo escolhido de África. É esse mito levado à letra que alimenta a extrema-direita afrikaner, personificada por Eugène Terre"Blanche. Na versão supremacista dele, os bóeres não são apenas europeus que se tornaram africanos. São os verdadeiros africanos. E a África do Sul é a Terra Prometida. O mundo já não se lembrava deste punhado de eleitos divinos desde o fim do apartheid, mas a 3 de Abril Terre"Blanche foi encontrado na cama sem calças e a cara desfeita. Espancado com um tubo de ferro e esquartejado com uma panga (faca grande), morreu assim, aos 69 anos. Dois negros entregaram-se à polícia como autores do homicídio, alegando autodefesa. O mundo receou uma explosão em vésperas do primeiro Mundial em África. Centenas de polícias foram destacados para o funeral. Milhares de afrikaners acorreram. Tudo isto aconteceu em Ventersdorp, a terreola para onde estamos a avançar. Avó, mãe, filhaA primeira coisa que se avista é a torre de uma igreja. Igreja, lojas-armazém, bomba de gasolina, vacas na erva. Podia ser uma terreola do Kansas, com duas diferenças: os letreiros estão em afrikaans e só se vêem negros e mestiços na rua. Depois entramos num supermercado agrícola, e há uma branca obesa semiadormecida ao balcão, e atrás dela um branco a limpar as mãos a um pano. Cheira a fritos. Perguntamos pela sede do partido de Terre"Blanche, Movimento de Resistência Afrikaner (AWB, na sigla em afrikaans), onde o sucessor nos espera. - Viram à esquerda na igreja e seguem em frente - explica o homem. Parece fácil, mas perdemo-nos até dar com a rua, uma daquelas ruas de brancos com casas de tijolo, relvado e pick ups. A pick up dos bóeres é uma extensão da casa, serve para a fazenda e para os churrascos. E no pátio de uma das casas, cá está uma pick up, duas mulheres dentro e uma fora, a despedir-se. São avó, mãe e filha, Lina, 65 anos, Alta, 42, e Joanne, 18, todas com os mesmos olhos verde-clarão, que se enchem de lágrimas quando se fala em Terre"Blanche. Cada fazendeiro tem os seus lutos. - O meu marido e o meu irmão foram mortos há seis anos - diz Lina. - Estavam a apanhar trabalhadores ao pé de Pretória e deram-lhes um tiro. Quem?Lina hesita. - Não se sabe. Até hoje não o apanharam. Joanne, a mais nova, inclina-se para a janela. - A situação é muito má. Há um mês, no Free State [província vizinha, a sul], um negro veio com uma faca para o meu irmão. Ele tirou-lhe a faca e prenderam o meu irmão 24 horas. Os polícias também eram negros. Muita gente agora teme pela sua vida. Já ninguém quer viver nas quintas. Mas sem quintas não haverá comida. - O meu marido tem abelhas na quinta de Terre"Blanche - acrescenta a mãe. - E gostava muito dele. - Ele era muito gentil para toda a gente - reforça a filha. A avó começa a chorar. Às armasA sede do AWB é aquela casa mais à frente com portão de grades e uma velha carruagem à entrada. Pastores-alemães saltam na relva, à volta do novo líder. - São os cães do senhor Terre"Blanche, não fazem mal - assegura ele. Apresenta-se com férreo aperto de mão. André Visagie, 56 anos, cabelo cor-de-palha, sorriso fino e aquela pele dos ruivos que a todo o momento pode ficar vermelha. Além dos cães, rodeiam-no três rapazes de pistola no bolso e cara fechada, a ganharem barriga. Entramos. Átrio com ursos de peluche, sala de recepção com duas senhoras de província, e depois a sala do líder. Uma secretária imponente rodeada de retratos ancestrais e na parede principal a enorme pintura de uma águia a segurar nas garras o símbolo do AWB: uma espécie de suástica negra. André identifica a galeria de ilustres. - Eram generais da guerra anglo-bóer. E este é o senhor Terre"Blanche a cavalo. No seu inglês muito claro, diz sempre "Mr. Terre"Blanche". E, a propósito, nos nomes do AWB parece haver uma estranha predisposição racial. Terre"Blanche significa terra branca. - E o meu nome, André Visagie, significa cara branca, ou cara limpa - assegura ele, sorridente. Puxa duas cadeiras e sentamo-nos em frente à secretária, como se fosse um altar. O cadeirão do líder morto mantém-se vazio. - A situação é tensa, a nossa gente está furiosa. E agora o povo bóer afrikaner reclama a independência porque não recebe protecção do governo neste genocídio. Desde 1994, mais de 3000 fazendeiros foram mortos por negros. E mais de 50 mil brancos das cidades foram mortos por negros. Segundo as estatísticas, desde o fim do apartheid foram mortas cerca de 650 mil pessoas. Se 53 mil eram brancas, as outras 600 mil eram negras. Ou seja, na África do Sul morrem 12 vezes mais negros que brancos. Mas os fazendeiros brancos têm sido, de facto, um grupo particularmente atingido. Os sindicatos apontam problemas sociais por trás disso: os negros continuam a ser maltratados, com salários muito baixos, e os fazendeiros usam trabalho imigrante ilegal ainda mais barato, deixando muita gente sem subsistência. Os dois rapazes negros que mataram Terre"Blanche trabalhavam para ele. Um tem 28 anos e veio do Zimbabwe. O outro tem 15 e é da township vizinha, onde vivem os que trabalham para os brancos. Segundo o seu advogado, pastoreava o gado de Terre"Blanche das cinco da manhã às sete da tarde, por 50 euros por mês, uma taça de comida e alojamento num estábulo. Porque é que Terre"Blanche estava sem calças? A polícia disse que encontrou sémen nas partes íntimas. Levantou-se a hipótese de ele ter tentado violar os rapazes, ou de lhes ter pago por sexo. Também se levantou a hipótese de terem sido os rapazes a puxar-lhe as calças para o castrar. Crê-se que o fazendeiro lhes devia dinheiro. O processo vai continuar nos próximos meses. André Visagie não tem dúvidas. - Foi assassinado por razões políticas. É absurdo pensar num crime sexual. A imprensa fez do senhor Terre"Blanche um racista. Então, tem de decidir se ele é racista ou homossexual com negros. Não bate certo. Porque haveriam os rapazes de ter razões políticas para o matar?- Porque ele tinha a capacidade de unir os bóeres. Mas o AWB é um partido minoritário entre os bóeres. André sorri o seu sorriso fino, águia por trás das costas. - Só posso responder-lhe com o número que foi ao funeral, 20 mil. Gente de todo o país. As reportagens mencionaram "alguns milhares". A BBC falou em três mil. E a maior parte eram fazendeiros que não pertencem ao AWB. - Mais de mil foram ao funeral em uniformes do AWB. Caqui, e aquela suástica. Com quanta gente conta, então, o AWB?- Entre 100 e 150 mil pessoas. Como sabe isso?- De terça a quinta estamos a fazer reuniões pelo país, e chegamos a ter sete mil pessoas. Tenho falado do futuro da nação bóer. Recebemos mensagens a dizer que o Zimbabwe vai mandar os seus veteranos de guerra treinar os negros da África do Sul para tomarem as quintas dos brancos, como no Zimbabwe. "Mata o bóer"No Zimbabwe, Robert Mugabe levou 4000 fazendeiros brancos a deixar o país. O Presidente Jacob Zuma garantiu que aqui não acontecerão tomadas de terra. Mas o Zimbabwe é o fantasma dos fazendeiros sul-africanos. E para isso tem contribuído Julius Malema, o líder da Juventude do ANC, onde se destacaram homens como Nelson Mandela, Walter Sisulu e Oliver Tambo. Longe dessa tradição conciliadora, Malema é um incendiário que insiste em cantar uma velha canção anti-apartheid com as palavras "mata o bóer". Os fazendeiros acusam-no de incitar assim mortes como a de Terre"Blanche, e o ANC baniu a canção. - A invasão das fazendas vai acontecer aqui - garante André. - E a nossa primeira linha de defesa é dizer às pessoas que vão para as quintas e resistam. Armem-se para quando forem atacados por esta gente negra. Um milhão de pessoas da nação bóer já fugiu para escapar a este genocídio. O fim do apartheid gerou medos. Dos 4, 4 milhões de brancos da África do Sul, cerca de 800 mil partiram. Mas ao contrário do que muitos temiam, não foram só alguns negros a enriquecer. O poder de compra dos negros subiu 37, 5 por cento, mas o dos brancos subiu 83, 5 por cento. Apesar dos programas de discriminação positiva para negros, os brancos ganham hoje sete vezes mais do que os negros. São ainda os efeitos do apartheid. Não só os negros quase não tiveram acesso a boa formação como, desde o chamado Natives Land Act de 1913, os brancos ficaram com 87 por cento da terra. O governo quer que até 2014 um terço da terra agrícola passe para negros, mas até agora apenas passaram dois por cento. Isto é combustível para o populismo de Malema. O mundo admirou a contenção dos negros sul-africanos que depois de décadas de opressão não tocaram na propriedade branca. Quando o AWB de Terre"Blanche tentava impedir a democracia com atentados terroristas, Nelson Mandela manteve o país calmo. Foi um militante do AWB que assassinou o popularíssimo Chris Hani do ANC antes das eleições livres, e Mandela evitou a vingança com um apelo histórico. Desde que surgiu, nos anos, 70, a história do AWB é de confronto e violência. E por trás dessa história esteve sempre Terre"Blanche, a acicatar multidões, apesar do álcool e de nem sempre se aguentar no cavalo. A jovem bóer Joanne pode recordá-lo como gentil, mas não será essa a memória do empregado da bomba de gasolina que Terre"Blanche espancou e do segurança que tentou assassinar, ambos negros. O segurança ficou paralisado e com danos no cérebro. Eugène Terre"Blanche foi condenado a seis anos e cumpriu três, de 2001 a 2004. Quando saiu, anunciou-se cristão renascido. Independência ou morte- Isto é uma guerra - resume o seu sucessor. - É uma guerra que a polícia já não controla e temos de nos proteger. Cada pessoa está armada. Eu tenho as minhas armas de fogo, a minha mulher tem as dela. E entretanto, as crianças aprendem. - Ensino os meus filhos a disparar. A minha mais nova tem 13 anos e dispara melhor que eu. Tínhamos nove repúblicas bóeres e queremos a independência. Não estamos disponíveis para ser absorvidos nesta nova África do Sul. Temos a nossa religião, a nossa cultura, a nossa língua. E porque não ter tudo isso entre os negros?- Pela mesma razão que os portugueses não vivem com os espanhóis. Não é por serem pretos e brancos misturados, é por serem pessoas de nações diferentes. Porque é que não podemos ter uma nação nossa? É por sermos brancos? O apartheid não era apartheid, era separar nações diferentes. Com 75 por cento da população apertada em 13 por cento do território. - As fronteiras fazem paz. Primeiro, vamos abordar o governo e reclamar a nossa terra. Depois vamos para o Tribunal de Haia, para as Nações Unidas e para a Carta das Liberdades. Nós, quem? O AWB?- A Frente Afrikaner, formada nos últimos dois anos, que tem todas as organizações afrikaners. Teremos eleições no próximo ano. E até lá?- Não temos outra hipótese senão dar treino militar aos nossos homens. Quantos?- Os suficientes. Sorriso fino. - Não direi quantos. Estão a ser treinados em todo o país. Não põe a hipótese de partir?- Não. Podem matar-me e exportar o meu corpo, se quiserem. É o meu país. Os meus antepassados pagaram-no com sangue e eu tenho o direito de ficar. A campa de Terre"Blanche fica a 15 quilómetros, fora da cidade. André mete-se no carro com os seus três guarda-costas e arrancam. Vão levar-nos até lá. Passamos a cidade, estrada de asfalto, depois um caminho de terra à direita, sem qualquer sinal. Milho de um lado, capim do outro. Os dois carros saltam entre as pedras. Quando acaba o caminho, é mato mesmo, até umas árvores. Aí, a céu aberto, estão as sepulturas da família Terre"Blanche, várias, desde o século XIX. A campa nova destaca-se por estar coberta de flores embrulhadas em plástico. Como as flores apodreceram, ao longe parece lixo. Depois, ao perto, vê-se uma cruz de madeira no chão com palavras em afrikaans. - "O nosso herói descansa em paz" - traduz André. Metade da campa está guardada para a mulher de Terre"Blanche, que se mantém na casa de Ventersdorp e não fala com jornalistas. - Esta casa está vazia - diz André, apontando a quinta ao fundo. - E vendeu-se o gado dele. Contempla a cabeceira da campa, onde está o símbolo do AWB, com aquela suástica de três pernas. - Sabe o que isto significa? São três "7" que representam as três figuras de Deus: Pai, Filho e Espírito Santo. É o número perfeito, 777, em contraste com o de Satã, 666. É o símbolo de Deus que adoramos. E não receiam a comparação com a suástica nazi?- Não, porque a suástica nazi é assim. . . . - agarra num pauzinho e tenta desenhá-la na terra, mas engana-se. Depois acerta. - E o círculo vermelho à volta é o sangue de Cristo que nos lava. A nossa organização está enraizada na religião. Exemplo de um líder no mundo que admire?André mira o céu. - Eugène Terre"Blanche. Um líder do século XX?- Não consigo pensar em ninguém melhor que Eugène Terre"Blanche. O que pensa de Nelson Mandela?- Hum. Um prisioneiro libertado, a servir uma sentença por bombardear gente inocente. Talvez para o seu povo fosse bom, mas para nós não. E apontando as cores na campa. - Não reconhecemos a nova bandeira e o novo hino. Não nos importamos de os ter como vizinhos, se querem ter uma taxa de crime única no mundo, não nos importamos. Mas queremos a nossa nação, a nossa língua. Ninguém tocou no afrikaans. - Mas agora temos 11 línguas oficiais! É um circo!Depois cala-se, a olhar a campa. - Ainda não acredito que o meu líder tenha morrido. E de uma forma tão trágica. Um dos guarda-costas vem por trás e apaga o desenho da suástica com o pé. O novo líder levanta a cabeça. Agora não há sorriso, e a cara está vermelha. - Diga às pessoas que se protejam quando vierem para o Mundial. Os criminosos vão apontar aos visitantes. A toda a volta é capim. O sol desce rápido, como só em África. O medo continuaNo centro de Ventersdorp continuam a só andar negros, mas é difícil encontrar quem fale. Em nenhuma township encontrámos esta relutância. Júlia, 43 anos, três filhos, está sentada na sua pequena drogaria, onde não parece haver mais de dez coisas para comprar. Grande parte das lojas é de brancos. Isto para ela é uma novidade. - Trabalhei nas quintas a apanhar milho. A maior parte das pessoas aqui trabalha para os brancos. Alguns são bons, tratam bem as pessoas, outros não. Mais adiante, Mamase, 28 anos, é empregada de uma loja de móveis. A dona branca está lá ao fundo, ao telefone. - Eu vivo na township. Venho todos os dias com os meus pés. - Ri-se e aponta os pés. Conhecia Terre"Blanche?Ela ri. Não diz nada. Depois diz:- Conheço-o desde miúda. Lembro-me de estar na escola e a professora nos mandar sair porque pensavam que havia uma bomba do Terre"Blanche. Cá fora, de boné, está o carteiro Nadazana, 46 anos. Primeiro não quer falar, depois faz muitas perguntas. - Houve medo por causa da morte do senhor Terre"Blanche - explica, enfim. - Eu cresci aqui. Conheci o senhor Terre"Blanche há muitos anos. Fizeram uma coisa má em matá-lo, mas ele era cruel. Porquê?- Era racista. Tivemos medo que houvesse uma vingança dos brancos. As pessoas têm medo de falar, porque podem ver-nos no jornal. Quem?- Os gajos do AWB. Estas lojas são todas de gente do AWB. Nem de propósito, um carro com várias mulheres brancas encosta junto ao passeio e chama Nadazana. Ele debruça-se para responder. Depois o carro arranca. Nadazana viveu 30 anos sob o apartheid. É um homem experiente. - Perguntaram o que é que eu estava a falar convosco - explica. - E eu disse-lhes que vocês eram estrangeiros que queriam investir na África do Sul. Esta é a primeira de várias reportagens até ao início do Mundial.
REFERÊNCIAS: