A brincar se harmoniza vinho e comida
É um livro divertido (e útil), este em que Maria João de Almeida põe alguns dos melhores chefs portugueses a pensar em pratos para vinhos de 13 regiões do país. (...)

A brincar se harmoniza vinho e comida
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: É um livro divertido (e útil), este em que Maria João de Almeida põe alguns dos melhores chefs portugueses a pensar em pratos para vinhos de 13 regiões do país.
TEXTO: O novo livro de Maria João de Almeida não é dois-em-um, é cinco-em-um – ou, se continuarmos na matemática, é muito mais do que isso. Vejamos: são treze chefs, treze regiões de Portugal e um total de 265 vinhos apresentados neste Vinho à Mesa. Quando dizíamos cinco-em-um era na perspectiva do que oferece ao leitor. Aqui ficamos a conhecer melhor os tais treze chefs — João Rodrigues, Alexandre Silva, Henrique Sá Pessoa, Rui Paula, José Avillez, Miguel Castro e Silva, Diogo Rocha, Ricardo Costa, Justa Nobre, Leonel Pereira, Pedro Lemos, Vítor Sobral e Miguel Laffan —, temos acesso a quatro receitas de cada um, aprendemos mais sobre cada uma das regiões vinícolas do país, descobrimos a história dos tais 265 vinhos e, por fim, aprendemos muito sobre harmonizações entre vinhos e comida. A autora conta na introdução que, quando a editora Saída de Emergência a desafiou a escrever mais um livro (depois de O Vinho na Ponta da Língua), desta vez cruzando vinho e comida, ela quis evitar a fórmula habitual receita/vinho recomendado. Pôs-se a pensar e chegou a este modelo, mais trabalhoso de pôr em prática, mas muito mais variado. Maria João de Almeida Saída de Emergência 25, 50€A isto soma-se ainda um lado bem humorado: para cada chef há uma fotonovela que mostra o dia em que Maria João esteve no respectivo restaurante e os animados bastidores da sessão fotográfica e das provas de harmonização. Há ainda dois prefácios, um de Frederico Falcão, presidente do Instituto da Vinha e do Vinho, e outro de Duarte Calvão, coordenador do projecto Gastronomia da Associação de Turismo de Lisboa, que foram também os protagonistas do sorteio realizado previamente para atribuir as regiões aos chefs. O trabalho não foi fácil, conta Maria João no texto inicial. “Se a selecção de chefs foi terrível (há muitos chefs talentosos que não consegui incluir neste livro pelas mais diversas razões), a de vinhos não foi menos, tal é grande a nossa diversidade e qualidade. Mas lá consegui, contorcendo-me pelo meio. ”O sorteio obrigou assim muitos dos cozinheiros a saírem das suas zonas de conforto (o mesmo é dizer, das suas regiões vinícolas preferidas) e a pensar em pratos que melhor se adequassem a vinhos de regiões que, em alguns casos, eles não conheciam tão bem. Outro ponto importante para a autora é a opção, quase sempre, por vinhos feitos com castas nacionais — a excepção acontece apenas em regiões onde alguns dos melhores vinhos incluem castas estrangeiras, explica. De resto, os vinhos são, também na sua maioria, topo de gama ou de gama média alta. Mas também as receitas são de alta cozinha (e por isso não muito fáceis de reproduzir em casa, embora venham explicadas passo a passo). As propostas são muitas e variadas. Começam com o choco no prato, uma ideia de João Rodrigues (Feitoria, Lisboa) para usar apenas um ingrediente (o choco, cozinhado de várias formas) em harmonização com um vinho feito também com uma única casta, o Covela Avesso. E terminam nos Açores com Pedro Lemos (do restaurante com o mesmo nome, no Porto) e uma sobremesa de banana, alfazema e pérolas de Chico Maria para harmonizar precisamente com o Chico Maria Meio Doce. Aqui, só para deixar um exemplo dos textos que acompanham cada harmonização, Maria João explica como “o caramelo da banana assada e maturada liga muito bem com os melados do vinho e as pérolas de sagu, confeccionadas com parte do vinho; o toque final do gelado de banana com citrinos equilibra-se com a acidez do vinho e, por fim, o perfume da alfazema confere um lado floral ao prato que tão bem liga com o lado aromático do vinho”. E assim, com mais de 50 receitas ao longo do livro, se vai percebendo o que é, na prática, uma verdadeira harmonização entre gastronomia e vinho. Quem conhece o crítico gastronómico norte-americano de origem portuguesa David Leite através do seu site Leite’s Culinária, que reúne inúmeros textos e receitas (foi premiado com o James Beard Award), vai ficar a conhecer a sua história neste Querido Banana – Memórias sobre a gastronomia e o amor. Nascido numa família de emigrantes açorianos em Fall River, Massachusetts, David transporta-nos logo no início para essa casa animada, com os pais, a avó, os padrinhos, o primo e todo o universo cultural (e gastronómico, claro) dos portugueses nos EUA. O livro acompanha depois várias fases da sua vida, a descoberta da homossexualidade, e, aos trinta anos, do transtorno bipolar que veio, finalmente, justificar as suas bruscas mudanças de humor. E, a atravessar toda esta história de vida, a comida, da cumplicidade com a mãe na infância (era ela quem lhe chamava Banana), à influência dos programas televisivos de Julia Child, passando sempre pelos sabores marcantes da cozinha portuguesa. Querido BananaDavid LeiteCasa das Letras21, 90 €Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Este é um livro sem medos. Coração de vaca grelhado com manteiga de ervas? Faça-se. Mioleira de porco panada com maionese de cebolinho? Vamos a isso. Túbaros de borrego grelhados com azeite de coentros? Porque não? Estas (e muitas outras) receitas de petiscos portugueses são, dizem Isabel Zibaia Rafael e Virgílio Nogueiro Gomes (autores já de vários outros livros de receitas e gastronomia), “um desafio para se divertirem na cozinha com refeições, ou petiscos, a baixos preços”. E são também uma homenagem a tradições culinárias portuguesas e um incentivo ao aproveitamento daquelas que são consideradas as partes menos nobres dos animais. Depois de uma introdução sobre a carne, o livro divide-se em quatro capítulos, com textos de enquadramento e receitas: aves, bovinos, caprinos e ovinos e, por fim, suínos. Pelo meio, encontramos ainda provérbios e expressões populares e informações sobre todas as carnes DOP e IGP do país. E porque não começar por uma sopa de cabeça de borrego assada no forno?Petiscos e Miudezas à PortuguesaIsabel Zibaia Rafael e Virgílio Nogueiro GomesEd. Marcador14, 90 €
REFERÊNCIAS:
Os mundos da ansiedade
As “políticas do medo” não se reduzem a geografias concretas. Não são propriedade de sociedades ou “culturas” específicas. São resultado de múltiplos factores históricos, entre os quais o crescente encontro da diferença. (...)

Os mundos da ansiedade
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: As “políticas do medo” não se reduzem a geografias concretas. Não são propriedade de sociedades ou “culturas” específicas. São resultado de múltiplos factores históricos, entre os quais o crescente encontro da diferença.
TEXTO: Os “Perigos Amarelos”Em 24 de Outubro de 1871, em Los Angeles, cerca de 500 homens irromperam pela Chinatown local e atacaram violentamente os residentes chineses. Entre 17 a 20 emigrantes chineses foram enforcados, alguns já depois de mortos. A um faltava-lhe um dedo, por ter um anel de diamantes que alguém cobiçara. A cultura do justicialismo popular e do linchamento, bem disseminada nas “sociedades de fronteira” da época e hoje ainda familiares, não escolhia origens étnicas. Dos dez homens julgados pelo acto, oito foram condenados por homicídio, destinados à famosa prisão de San Quentin. Graças a expedientes “técnicos”, as condenações foram inconsequentes. A causa directa invocada para justificar este acontecimento dizia respeito a um ataque de um emigrante chinês a um polícia e a um rancheiro. O polícia, Jesus Bilderrain, interviera numa altercação de rua. O rancheiro Robert Thompson perseguira um dos envolvidos e foi morto. Não tardou que um boato circulasse velozmente indicando que a comunidade chinesa da Calle de los Negros, uma viela pobre e destituída, estaria a assassinar “brancos” em massa. Seguiu-se um dos mais brutais linchamentos da história americana. O boato, então como hoje, produzira as consequências esperadas. Outras causas pesaram também neste desfecho. O aumento regular da população chinesa na Califórnia suscitara desde cedo inúmeros ressentimentos, pouco justificados. As populações brancas e mestiças sentiam-se ameaçadas com a presença de estrangeiros, apesar destes providenciarem uma força de trabalho fiável e de baixíssimo custo. O decréscimo na oferta de emprego e a desvalorização de salários no mercado laboral, por certo acicatada e aproveitada por proprietários e empresas, assim o determinava. O fluxo de trabalhadores chineses era consequência da fuga à pobreza extrema, à fome, epidemias e violência resultantes da Rebelião Taiping (1851-1964), na qual se estima que tenham morrido entre 20 a 30 milhões de soldados e civis. Em 1863, a legislação local já subtraíra um importante direito a esta comunidade: o de poder testemunhar contra alguém da comunidade branca. Em 1868, um tratado entre o Império Chinês e os EUA regulava os fluxos migratórios, de natureza pouco restritiva. A migração era essencialmente pendular, maioritariamente composta por homens. As mulheres migrantes eram sobretudo prostitutas e escravas sexuais. Um ano antes do massacre, o Naturalization Act estendeu direitos de cidadania a afro-americanos, mas não a asiáticos, vistos como sendo impossíveis de “assimilar”. Em vários lugares não podiam comprar terra, votar, participar no processo judicial ou ter negócios de qualquer espécie. Em 1875, o Page Act proibiu a entrada de imigrantes “indesejáveis” nos EUA. A entrada de trabalhadores asiáticos não remunerados e mulheres passíveis de se envolverem em prostituição estava vedada. O efeito depressivo nos salários e a imoralidade da mulher chinesa foram invocados como justificação, sobretudo por políticos conservadores, mas também por organizações laborais, com envolvimento presidencial. O “mal” da importação da mulher chinesa tinha de ser atendido, não necessariamente devido à desumanidade imposta, mas sobretudo pelo seu suposto impacto nocivo na “moral pública” e nos “valores familiares cristãos”. A Associação Médica Americana defendia que os imigrantes chineses eram portadores de germes que acabariam por liquidar as comunidades brancas. As prostitutas chinesas seriam um agente eficaz neste processo. Dos cerca de 40 mil chineses que, então, entraram no país, apenas 136 eram mulheres. A lei contra a prostituição gerou mais prostituição. E aumentou a tensão entre quem a controlava. Em 1882, o Chinese Exclusion Act veio responder ao crescente sentimento sinófobo nos EUA. Foi um dos mais significativos exemplos de restrição à liberdade de circulação de pessoas com base num critério exclusivamente étnico e durou até 1943. Proibia trabalhadores de qualquer qualificação de entrar no país durante dez anos, contando com o apoio entusiasta da Federação de Trabalho Americana. Os já residentes eram tornados estrangeiros, privados de cidadania. Uma série de adendas posteriores acentuou as restrições, sempre acompanhada de justificações baseadas em estereótipos raciais e étnicos. Como um dos poucos críticos, um senador republicano declarou, à época, era a “legalização da discriminação racial”. Visava o controlo da circulação de pessoas e a gestão do mercado laboral bem como a manutenção de privilégios de classe e raciais. De permeio, estimulou dinâmicas de tráfico ilegal de pessoas. Gerou ainda inúmeros momentos de violência e perseguição de comunidades chinesas. Os massacres de Rock Springs, no Wyoming (1885), e de Snake River, no Oregon (1887), são apenas dois exemplos. O primeiro envolveu uma série de mineiros brancos que culpavam os chineses pelo seu desemprego. O facto de estes aceitarem salários muito mais baixos e de terem substituído os trabalhadores brancos numa greve em 1875 alimentou o ressentimento. Os trabalhadores chineses pagaram o preço das políticas salariais da empresa e da instrumentalização de preconceitos raciais existentes. Os agressores estavam ligados aos Knights of Labor, a mais importante associação americana de trabalhadores na altura. O resultado foi a violência descontrolada, que conduziu pelo menos à morte de 28 pessoas. Queimadas na sua própria casa, mortas por animais, à fome ou a tiro. Alguns dos agressores foram presos, mas logo libertados, sendo ovacionados pela população. O segundo massacre resultou na morte de 34 garimpeiros, envolvendo actos de tortura. Ninguém foi punido pelo crime, apesar de alguns dos implicados terem sido julgados. Estes episódios pontuaram a longa história de sentimento antichinês nos EUA, não esgotando, contudo, as suas manifestações. O argumentário do “perigo amarelo” assumiu inúmeras formas e justificações. O amarelo teve várias tonalidades e serviu para várias composições. A futurologia da desgraça impendente foi alimentada pela literatura, muita dela publicada em fascículos em jornais de referência. Emergiu um género literário que prosperou nos últimos anos do século XIX. A sinofobia foi promovida por políticos e pelos moralistas de serviço. Os “guerreiros-como-imigrantes” invadiam para depois conquistar. Induziriam os americanos ao vício do ópio ou do jogo, ou propagariam doenças. Corromperiam a moral e sorveriam os recursos americanos. O medo do “amarelo” não se esgotou nos chineses, envolvendo mais tarde os japoneses, os sul-coreanos e os vietnamitas. A metáfora sobre o acordar do “gigante adormecido” ganhou contornos claros e duradouros durante o reinado do imperador alemão Guilherme II. A invocação do cortejo de depredações de Genghis Khan ganhou uma nova expressão. A conhecida alegoria de Hermann Knackfuss, Povos da Europa, guardem os vossos preciosos bens, encomendada pelo imperador em 1895, supostamente após um sonho, sintetizou de modo claro a relação entre imaginação (geo)política, racialização do outro e politização do medo. A litografia foi enviada para outros monarcas europeus. A mensagem era clara: uma aliança ocidental, assente numa civilização cristã e liderada pelo império alemão, devia fazer face ao “perigo amarelo”. De outro modo, o declínio do ocidente seria inevitável. O Inverno da civilização faustiana, como diria Oswald Spengler, em 1918, estaria próximo. O “perigo amarelo” escondia ambições imperiais óbvias, a weltpolitik alemã. Tal já sucedera com o envolvimento alemão na Tripla Intervenção associada à Guerra Sino-Japonesa de 1894-1895. Em 1900, por ocasião da partida das tropas alemãs para combater a Rebelião dos Boxers na China, Guilherme II revelou as suas ideias chauvinistas. Instigou as tropas à liquidação absoluta do inimigo, sem tréguas, sem prisioneiros, invocando Átila e os hunos. À xenofobia da Sociedade dos Punhos Harmoniosos e Justiceiros (os Boxers) deviam-se contrapor sentimentos racistas antichineses, em voga um pouco por todo o mundo. Os alemães deviam dar um exemplo de “masculinidade” e “disciplina” a todos. Anos depois, sob a sua autoridade, os Herero e os Nama eram massacrados no Sudoeste Africano Alemão. Uma década depois começava a Primeira Guerra Mundial, com as conhecidas consequências. Aquando da sua abdicação, Guilherme II revelou ainda todo o seu anti-semitismo, reclamando uma vingança futura. Com a Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905, a invocação do “perigo amarelo” deslocou-se para os japoneses, também eles reduzidos a “povos de raça amarela” ou “mongóis”. A sua ascensão no Pacífico justificou todo o tipo de estereótipos, sendo o da impossibilidade da sua assimilação recorrente. O fim da guerra de 1905 trouxe inúmeras crises nas relações com os americanos. A segregação das crianças japonesas nas escolas públicas de São Francisco ou os boatos, outra vez os boatos, de que os imigrantes japoneses no México e no Canadá eram agentes disfarçados que se preparavam para invadir os EUA são apenas dois exemplos. Como quase sempre, o momento foi acompanhado pela emergência do especialista em “vulnerabilidades” nacionais e indefinições “estratégicas”. O livro sensacionalista de Homer Lea, The Valor of Ignorance (1909), sintetizou esse processo. Lea foi uma figura fascinante, tendo sido conselheiro de Sun Yat-sen durante a revolução republicana chinesa de 1911. No seu livro profetizou um confronto entre os EUA e o Japão, aventando uma invasão da Califórnia e das Filipinas. As suas ideias “geoestratégicas” foram acolhidas por “analistas” e corpos de interesse directamente envolvidos no processo. A sua insistência na “virilidade” e “estabilidade” das “nações”, dependentes da “homogeneidade da raça”, foi abraçada por muitos. O seu prognóstico de que a Alemanha e o Japão dividiriam o mundo entre si se continuassem a resistir “à influência deteriorante do industrialismo, do feminismo e da charlatanice política” encantou, atemorizando, vários círculos. A “homogeneidade anglo-saxónica” tinha de ser assegurada face ao largo contingente de cidadãos negros e ao aumento da imigração. O influxo de japoneses, os verdadeiros representantes do “perigo amarelo”, constituíam a grande ameaça. A “segurança nacional” estava, supostamente, em perigo. A sugestão da ideia da existência de uma quinta-coluna japonesa nos EUA ecoaria anos mais tarde. Durante os anos 1930, o FBI desenvolveu programas de counter-intelligence clandestinos nos Little Tokyos de Washington, Oregon e da Califórnia. Durante a guerra, a ideia serviu de justificação para o realojamento e internamento forçado de cerca de 110. 000 americanos de ascendência japonesa. Cerca de 62% destes tinham cidadania americana. Os antigos medos de uma invasão e os interesses específicos associados à agricultura e à pesca na Califórnia, que temiam a concorrência, atingiam um corolário dramático. "The Russians are coming" tornou-se uma expressão popularizada enquanto forma de paródia sobre o medo que tomou conta da sociedade norte-americana durante a Guerra Fria, em grande medida devido à comédia com o mesmo nome, de 1966. Ela remete, no entanto, para as notícias de que, nos finais dos anos 1940, o primeiro secretário da Defesa dos EUA, James Forrestal, tinha sido encontrado na rua anunciando uma invasão soviética, notícias que são hoje tidas por apócrifas. Esta não é, no entanto, a única polémica que envolve Forrestal. Suicidou-se em 1949, saltando da varanda do hospital psiquiátrico onde estava internado. Teorias da conspiração multiplicaram-se aos longos dos anos, nomeadamente sobre a possibilidade de um assassinato. Todavia, não restam dúvidas sobre a pressão a que se encontrava sujeito. Anunciara-se que não apoiaria a recandidatura de Truman, que o havia, entretanto, demitido. O seu casamento havia terminado de forma turbulenta. Mais, Forrestal tinha sido, desde início, um dos principais defensores de uma política externa implacável face à União Soviética. Este episódio não deve ser lido como um exercício de análise psíquica da política internacional. Ele mostra como as “políticas do medo” não têm de ser, necessariamente, uma maquinação instrumental de elites políticas engenhosas. Num certo sentido, a trajectória de Forrestal não é excepcional. Primeiro, o medo anti-comunista não nasceu com o início da Guerra Fria. Ele já tinha um importante precedente no primeiro Red Scare. O House Un-American Activities Committe, que tornaria famoso o senador Joseph McCarthy, tinha sido criada em 1938. Com ritmos diferentes, o medo soviético foi-se alastrando progressivamente pelos diferentes sectores da administração. Os debates historiográficos sobre o início da Guerra Fria têm frequentemente sido marcados por oposições antagónicas. No entanto, é relativamente unânime que, à época, a União Soviética não tinha o poder para desafiar militarmente os Estados Unidos. Os efeitos devastadores da guerra na URSS ou o monopólio atómico tornavam inconcebível um ataque em solo americano e improvável uma intervenção armada na Europa Ocidental, como afirmava um relatório da CIA de 1947. O perigo fundamental era a subversão económica e política. A influência dos partidos comunistas francês e italiano, a Guerra Civil na China ou a independência da Índia contribuíam para uma visão caótica e ameaçadora do mundo. A essas circunstâncias juntou-se a dramatização e simplificação do perfil do “inimigo”. Da URSS não se podia esperar conciliação ou razoabilidade. O seu objectivo era um “Soviet-Dominated World Communism”, como indicava um relatório do então criado National Security Council. A relutância em retirar militarmente do Irão, entre outras reacções, adensou estas apreensões. O recurso a estereótipos para caracterizar o inimigo reforçava os temores de decisores políticos e instilava um sentimento de perigo iminente. Tratava-se de nada menos do que um embate entre civilizações irreconciliáveis. A luta era apocalíptica, o inimigo radicalmente novo. Não possuía fronteiras identificáveis. Era dissimulado. Por vezes era russo, noutras asiático. Poderia até ser americano ou “ocidental”. As dinâmicas do medo popularizavam-se também internamente. O perigo de uma “quinta coluna” foi exacerbado. Para além da limitação de liberdades individuais, bem conhecida, iniciativas como a National Conference on Citizenship alertavam que a ilusão da paz estava a fazer esmorecer o sentimento patriótico. Como alertava o comandante nacional da American Legion, as “filosofias anti-americanas floresciam”. Em 1948, uma “semana da democracia derrotando o comunismo” foi organizada. Em 1950, na West Virginia, uma “semana do americanismo” incluía o “dia de combate ao comunismo-socialismo”, o “dia de responsabilidades cívicas” e o “dia da liberdade de oportunidades”. Estas manifestações pretendiam responder àquilo que era visto como um sintoma mais profundo. A sociedade norte-americana tornara-se refém do consumo e os valores patrióticos esmoreciam. Em suma, esta era uma sociedade despojada de virilidade. Essa visão era perfilhada por autores liberais como Arthur Schlesinger Jr. . No seu Vital Center (1949) – símbolo do liberalismo e conservadorismo unidos por valores comuns face à ameaça totalitária de esquerda e de direita – alertava para uma “era da ansiedade” que tornava as massas propensas a aderirem a visões radicais da sociedade. Essa “feminilidade” era identificável nas forças de esquerda que se deixavam seduzir pelo comunismo. Uma nova geração de liberais menos idealistas e mais empreendedores era a solução. Ironicamente, o remédio para a ansiedade só gerava mais ansiedade. O recurso a metáforas de virilidade foi bem mais acentuado no seio da direita conservadora. Para homens como McCarthy, o liberal da costa leste ou de Washington D. C. , merecia desprezo. Era, como se diz hoje, um “bem-pensante”, distante do povo real. O establishment liberal, que venerava os “comunistas e maricas do Departamento de Estado”, tinha vendido a “China a uma escravatura ateísta”. Os medos sobre a homossexualidade exacerbavam-se e foram associados à Guerra Fria. Na sequência do despedimento de 91 funcionários do Departamento de Estado por serem homossexuais, um senador republicano defendeu que se realizasse um estudo sobre os homossexuais que trabalhavam para o Estado. O motivo: Estaline tinha obtido de Hitler uma “lista mundial” de homossexuais que podiam ser usados como elementos de subversão. Um relatório produzido na sequência destes eventos sublinharia que aqueles que se envolviam abertamente em “actos de perversão” não dispunham da “estabilidade emocional” de uma “pessoa normal”. Os temores de uma sociedade emasculada conjugavam-se com uma retórica de decadência civilizacional que pretendia galvanizar a opinião pública e, aspecto fundamental, limitar a dissensão. O conjunto de dinâmicas do medo aqui enunciadas revelou-se de forma particularmente aguda aquando do episódio dos prisioneiros de guerra norte-americanos no conflito na península norte-coreana. O facto do número de prisioneiros chineses e norte-coreanos que não queria voltar aos países comunistas ser muito superior ao do número de norte-americanos que não queria voltar aos EUA e que estes fossem apenas 21 de um universo de cerca de três mil não impediu que a opinião pública norte-americana reagisse alarmada. Dada a convicção generalizada da superioridade política, moral e económica da sociedade norte-americana, a recusa destes prisioneiros em voltar só se poderia dever a técnicas misteriosas empregadas pelos comunistas. A ideia de lavagem cerebral, com antecedentes, tornou-se então central no debate público americano. Disseminaram-se as teorias sobre as técnicas pavlovianas e hipnóticas dos comunistas, reveladores do seu carácter radicalmente novo e ameaçador. O medo de que a subversão alastrasse levou a que este grupo social se tornasse um dos mais estudados na história dos EUA. As forças militares ficaram aterrorizadas com a perspectiva dos “métodos de aniquilação mental dos comunistas”. A cena cultural reproduziria estes medos, facto particularmente visível no filme The Manchurian Candidate (1962). Se nos EUA o comunismo se apresentava como ameaça fundamental ao “modo de vida” americano e à civilização ocidental, em várias capitais europeias esse vento não soprava apenas do Leste, vinha também do Sul. Após a progressiva descolonização asiática, o temor da ascensão do nacionalismo africano conjugou-se com o que era visto como o perigo do declínio do Ocidente, temperado pela persistência de visões racializadas das populações nativas. Estes temores tornaram-se particularmente salientes em momentos em que o domínio colonial foi posto em causa através de meios violentos. Foi esse o caso da revolta Mau Mau no Quénia. A revolta, iniciada em 1952 e atribuída aos Kikuyu, foi no essencial o resultado de problemas agrários. Todavia, foi desde cedo retratada pelas autoridades britânicas como um exemplo de “selvajaria” decorrente de uma mentalidade “primitiva”. Houve quem não hesitasse em associar a rebelião a uma infiltração comunista em África, por via da intromissão das Nações Unidas e dos elementos progressistas ocidentais, ambos instrumentalizados pelos comunistas. Este argumento faria escola entre as várias potências coloniais. No entanto, foram as próprias autoridades britânicas que negaram qualquer interferência comunista. A dissociação dos eventos no Quénia de uma trama comunista pretendia reforçar a ideia de que este era um movimento desprovido de qualquer “racionalidade” moderna. Os múltiplos relatos na imprensa britânica de uma violência inaudita visavam demonstrá-lo. A imagem dos juramentos iniciáticos que eram atribuídos aos Mau Mau e que invadiam a mente tanto dos colonos como das audiências britânicas era apenas uma das ilustrações disponíveis. Mas estes eram fortemente exagerados pela imaginação dos cronistas e das autoridades civis e militares. Num documento privado, que não chegou ao conhecimento público por ser demasiado explícito, referia-se que os juramentos incluíam actos como a masturbação em público, beber sangue menstrual e actos “não-naturais” com animais. Apesar disso, os colonos acreditavam que 80% dos Kikuyu tinha participado nestes actos. O que não era verdade. Mas este tipo de exercício legitimava medidas de repressão e punição colectivas. Os relatos, com ampla circulação, sublinhavam a violência contra brancos e as práticas de violência cruéis. Instilou-se um temor na sociedade colona acerca dos seus trabalhadores e empregados domésticos Kikuyu. A realidade, essa, era substancialmente diferente. A revolta traduziu-se na morte de quase 13 mil Kikuyu e apenas 58 brancos. As práticas de desmembramento foram esporádicas, ao contrário do que era amplamente sugerido. Mas o boato e a propaganda tornavam mais fácil legitimar o estado de emergência instaurado pelas autoridades britânicas, marcado por múltiplas violações de direitos humanos e liberdades individuais. A essencialização e a desumanização do “inimigo” e a projecção de uma luta de vida e de morte entre a “civilização” e a “barbárie” também se fizeram sentir no caso da libertação da Argélia. Aqui, as desigualdades sociais e económicas organizadas em torno da diferença étnica e cultural eram manifestas, reforçadas que eram por um sistema político discriminatório. Em 1947, existiam dois colégios eleitorais distintos, cada um elegendo seis representantes. Para o primeiro votavam cerca de 460 mil europeus e 58 mil muçulmanos “assimilados”. No segundo, um milhão e quatrocentos mil “nativos”. Ademais, as eleições eram frequentemente viciadas pelas autoridades francesas. Quando a violência organizada foi despoletada em 1954 pela Front de Libération National (FLN), as autoridades francesas estavam cientes destas realidades. A população argelina crescia a um ritmo muito superior ao da sociedade metropolitana e ao da população colona, o que colocava problemas de monta à ideia de uma Argélia francesa. A livre circulação de argelinos para a metrópole, que se contavam então nos 300 mil, e que regressavam à origem transportando “perigosas ideias políticas e sociais”, exacerbava os temores administrativos franceses relativos à integração plena do território. Em sentido contrário, essa imigração traduzia-se numa “invasão real e berberização de bairros inteiros em Marselha e Paris”. Os perigos abundavam. Mas a vontade francesa de manter a Argélia como parte integrante da França persistiu. Para alguns, depois de contida a ofensiva do pan-eslavismo, o Ocidente confrontava-se agora com a do pan-islamismo. A ideia de choque civilizacional era promovida. Um primeiro-ministro de De Gaulle declarava que a Argélia era a “fronteira entre dois mundos hostis”. As intenções francesas visavam transformar os termos do debate, num momento em que a autodeterminação e os direitos humanos se tornavam princípios orientadores da ordem global. Os seus oponentes eram retratados como “assassinos sem piedade” ou “instrumentos de um imperialismo teocrático, fanático e racista”. A sua desumanização era evidente. O governo francês invertia as acusações de racismo e xenofobia, atribuindo-as à FLN. A centralidade da questão feminina nos debates suportava esse esforço. Por exemplo, num filme produzido para audiências norte-americanas disseminava-se a ideia de que apenas a França poderia acabar com a tradição muçulmana da subjugação da mulher. A descrição do adversário como essencialmente fanático, imbuído de um espírito de Jihad, além de simplificar e reduzir as causas do ressentimento a uma “essência” muçulmana, autorizava respostas violentas. Quando as forças nacionalistas argelinas massacraram 123 pessoas em Constantinois, em 1955, a resposta francesa em Philippeville saldou-se na morte de 1237 muçulmanos. A ordem era para atirar em qualquer árabe que as tropas francesas encontrassem. Os episódios de tortura sistemática ou de suspensão de direitos fundamentais são amplamente conhecidos. A defesa da “civilização ocidental” autorizava a desproporção, alimentada que era pela desconfiança generalizada relativamente a qualquer muçulmano, resumido à sua condição religiosa e étnica pelo temor da diferença. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O livro de Corey Robin, Fear: the History of a Political Idea (2004), escrito num momento em que a Guerra ao Terror colocava desafios de monta às promessas de liberdade, providencia um guia fundamental sobre como o “medo”, enquanto dispositivo político, orientou alguns dos mais importantes pensadores que reflectiram sobre as sociedades ocidentais. Hobbes, Montesquieu, Tocqueville ou Arendt prestaram o devido tributo filosófico ao poderoso incentivo do medo, nas suas múltiplas formas e, crucialmente, de modos diversos. A incursão histórica que dá forma a este texto procurou, deliberadamente, sinalizar historicamente formas de politização do medo em contextos democráticos. Todos eles incluíram zonas interditas, definidas em função da nacionalidade, da aceitabilidade política ou da raça ou etnia. Mas estes casos não autorizam um libelo contra estas sociedades. Restam poucas dúvidas que as políticas do medo assumiram proporções muito mais vincadas em sociedades autoritárias ou totalitárias, corporizadas no judeu ultraminoritário enquanto potencial ameaça ao corpo nacional ou no kulak desapossado que poderia reverter a marcha da história. O objectivo é o de sinalizar como as políticas do medo podem ser, hoje, facilmente reavivadas. O exagero desproporcionado da ameaça, o estereótipo e unificação do “inimigo” enquanto forma absoluta do mal, as imagens de civilizações decadentes ou emasculadas permanentemente acossadas, a ligeireza no recurso a sentenças apocalípticas são algumas das suas manifestações mais comuns. E elas abundam, um pouco por todo o lado. Todos os episódios aqui elencados podem ser vistos como manifestações de problemas globais. Não se reduzem a geografias concretas. Não são propriedade de sociedades ou “culturas” específicas. São resultado de múltiplos factores históricos, muitos deles associados às múltiplas globalizações que desde há muito originaram o encontro da diferença e as ansiedades e receios deste resultantes. Nascem do estereótipo e do rumor. Decorrem de simplificações de vária ordem, da redução de problemas a explicações mono causais ou da sua claríssima manipulação interesseira. Promovem “soluções” que frequentemente ampliam o problema que declaram resolver. É obrigatório descodificar os seus usos mais grosseiros e perniciosos.
REFERÊNCIAS:
Religiões Islamismo
O que é o Estado Islâmico?
O autoproclamado Estado Islâmico não é um simples grupo de psicopatas. É um grupo religioso com crenças cuidadosamente pensadas, entre elas a de que será ele o agente do apocalipse que se aproxima. Aqui explicamos o que isso significa para a sua estratégia — e como acabar com ela. (...)

O que é o Estado Islâmico?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O autoproclamado Estado Islâmico não é um simples grupo de psicopatas. É um grupo religioso com crenças cuidadosamente pensadas, entre elas a de que será ele o agente do apocalipse que se aproxima. Aqui explicamos o que isso significa para a sua estratégia — e como acabar com ela.
TEXTO: De onde veio e quais são as suas intenções? A simplicidade destas perguntas pode ser enganadora e poucos líderes ocidentais parecem saber as respostas. Em Dezembro, o New York Times publicou declarações confidenciais do major Michael K. Nagata, o comandante de Operações Especiais dos Estados Unidos no Médio Oriente, em que este admitia que não conseguia perceber o autoproclamado Estado Islâmico (EI). “Não conseguimos derrotar a ideia [por trás do movimento]”, disse. “Nem sequer conseguimos perceber a ideia. ” No último ano, o Presidente Barack Obama tem-se referido ao Estado Islâmico ora como “não islâmico”, ora como “a equipa de novatos” da Al-Qaeda, comentários que revelam a confusão sobre o grupo e que podem ter contribuído para erros de estratégia grosseiros. O EI conquistou Mossul, no Iraque, em Junho passado, e já exerce poder sobre uma área maior do que o Reino Unido. Desde Maio de 2010 que Abu Bakr al-Baghdadi é o seu líder, mas até ao Verão passado, a última vez que tinha sido filmado fora sob cativeiro americano em Camp Bucca durante a ocupação do Iraque, onde aparecia numas imagens granuladas. Então, a 5 de Julho do ano passado, durante o Ramadão, subiu ao púlpito da Grande Mesquita de al-Nuri, em Mossul, para um sermão em que se autodeclarava o primeiro califa ao fim de várias gerações — fazendo um up grade na resolução da sua imagem, que passou de granulada a alta definição, e da sua posição de guerrilheiro fugido das autoridades a comandante de todos os muçulmanos. O afluxo de jihadistas que se seguiu, vindo de todo o mundo, foi inédito em ritmo e quantidade, e ainda não parou. De certa forma, a nossa ignorância sobre o Estado Islâmico é compreensível: é um reino obscuro e poucos foram até lá e regressaram. Baghdadi só falou para as câmaras uma vez, mas o seu discurso e os incontáveis vídeos de propaganda e encíclicas do EI estão acessíveis na Internet, e os apoiantes do califado têm feito tudo o que está ao seu alcance para dar a conhecer o seu projecto. Podemos concluir que o EI rejeita que a paz seja uma questão de princípio; que deseja um genocídio; que as suas posições o tornam constitucionalmente incapaz de certas mudanças, mesmo que estas garantam a sua sobrevivência; e que se considera o agente — e actor principal — do fim do mundo, que está iminente. O Estado Islâmico, também conhecido como Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS), segue uma variante específica do islão, cuja crença no Dia do Juízo Final tem importância na sua estratégia e poderá ajudar o Ocidente a conhecer melhor o inimigo e prever o seu comportamento. A sua subida ao poder é menos parecida com o triunfo da Irmandade Muçulmana no Egipto (um grupo que os líderes do EI consideram apóstata) do que com a realidade alternativa distópica que [os líderes de seitas americanas] David Koresh ou Jim Jones quiseram criar para governar não apenas umas centenas de pessoas, mas oito milhões. Não temos sabido compreender a natureza do Estado Islâmico. Primeiro, tendemos a ver o jihadismo como monolítico e a aplicar a lógica da Al-Qaeda a uma organização que, sem dúvida, a ofuscou. Os apoiantes do Estado Islâmico com quem falei ainda se referem a Osama bin Laden como “xeque Osama”, um título honorífico. Mas o jihadismo evoluiu desde a época áurea da Al-Qaeda, entre 1998 e 2003, e muitos jihadistas desprezam as prioridades do grupo e a sua actual liderança. Bin Laden "odiava mais os inimigos do que amava os filhos"Bin Laden encarava o seu terrorismo como o prólogo de um califado que não contava ver realizado durante o seu tempo de vida. A sua organização era flexível e operava como uma rede geograficamente dispersa de células autónomas. Pelo contrário, o Estado Islâmico precisa de território para se legitimar e de uma estrutura hierarquizada que o governe. (A sua burocracia divide-se nos ramos civil e militar, e o seu território em províncias. )A segunda razão pela qual não o compreendemos tem que ver com uma campanha bem intencionada mas desonesta que nega ao EI a sua natureza religiosa medieval. Peter Bergen, que em 1997 fez a primeira entrevista a Bin Laden, intitulou o seu primeiro livro de Holy War, Inc. , em parte por reconhecer Bin Laden como uma figura do mundo secular moderno. Bin Laden corporatizava o terror e fez dele um franchising. Exigia concessões políticas específicas, tal como a retirada das forças americanas da Arábia Saudita. Os seus soldados rasos moviam-se com confiança no mundo moderno. Na véspera de morrer, Mohamed Atta [um dos atacantes do 11 de Setembro] fez compras no Walmart e jantou na Pizza Hut. É uma tentação fazer encaixar no Estado Islâmico a observação de que os jihadistas são pessoas seculares modernas, com preocupações políticas modernas, vestidas com disfarces religiosos medievais. Na realidade, muito daquilo que o grupo faz parece ilógico, a não ser que seja analisado à luz do seu empenho sincero e cuidadosamente arquitectado em transportar a civilização para um ambiente do século VII e da crença de que será o portador do apocalipse. Os porta-vozes mais articulados dessa intenção são os próprios responsáveis e apoiantes do Estado Islâmico. Falam com gozo dos “modernos”. Em conversas, insistem que não irão — nem podem — afastar-se dos conceitos de governação integrados no islão pelo profeta Maomé e os seus primeiros seguidores. Falam frequentemente em código e com alusões que parecem estranhas ou antiquadas a não-muçulmanos e que se referem a tradições e textos específicos do islão dos primórdios. Para dar um exemplo: em Setembro, o xeque Abu Muhammad al-Adnani, o principal porta-voz do Estado Islâmico, apelou aos muçulmanos dos países ocidentais, como a França e o Canadá, a encontrarem um infiel e “esmagarem a sua cabeça com uma pedra”, envenenarem-no, atropelarem-no com um carro ou “destruírem as suas colheitas”. Aos ouvidos ocidentais, os castigos de pendor bíblico — o apedrejamento e a destruição de colheitas — justapõem-se estranhamente ao seu incitamento mais modernizado de homicídio com um veículo. (E como se pretendesse mostrar que pode aterrorizar usando apenas o imaginário, Adnani chamou o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, “ancião não circuncidado”. )Mas Adnani não estava a dizer apenas inutilidades. O seu discurso estava entrelaçado de fundamentos jurídicos e teológicos, e o seu apelo à destruição de colheitas ecoa ordens de Maomé para que se deixasse os poços de água e as colheitas dos inimigos em paz — a não ser que os exércitos do islão se encontrassem numa posição defensiva, e nesse caso os muçulmanos nas terras dos kuffar, ou infiéis, deveriam ser impiedosos e envenenar à vontade. A realidade é que o Estado Islâmico é islâmico. Muito islâmico. Sim, tem atraído psicopatas e pessoas à procura de aventura, saídos sobretudo das populações marginalizadas do Médio Oriente e da Europa. Mas a religião pregada pelos seus mais fervorosos seguidores vem de uma interpretação coerente do islão. Praticamente todas as grandes decisões e leis promulgadas pelo Estado Islâmico aderem ao que chama — na sua imprensa e nas suas declarações, nos seus painéis informativos, matrículas, material de escritório e moedas — “metodologia profética”, o que significa seguir rigorosamente a profecia e o exemplo de Maomé. Os muçulmanos podem rejeitar o Estado Islâmico; quase todos fazem-no. Mas fingir que não é verdadeiramente um grupo religioso e milenar, com uma teologia que tem de ser compreendida para ser combatida, já levou os Estados Unidos a subestimá-lo e a apoiar esquemas tontos para o debelar. Temos de entender a genealogia intelectual do Estado Islâmico se queremos uma resposta que não o fortaleça ainda mais mas que o ajude a auto-imular-se pelo seu próprio excesso de zelo. I. DevoçãoEm Novembro, o Estado Islâmico publicou um vídeo tipo info-comercial a ligar as suas origens a Bin Laden. Reconheceu Abu Mussab al-Zarqawi, o líder brutal da Al-Qaeda no Iraque entre 2003 até à sua morte, em 2006, como um progenitor mais directo, seguido sequencialmente por outros líderes guerrilheiros antes de chegar a Baghdadi, o califa. Uma omissão assinalável: o sucessor de Bin Laden, Ayman al-Zawahiri, o cirurgião oftalmológico egípcio que actualmente lidera a Al-Qaeda. Zawahiri não jurou obediência a Baghdadi e é cada vez mais odiado pelos seus colegas jihadistas. Para o seu isolamento, não ajuda a sua falta de carisma; nos vídeos parece sempre estar aborrecido. Mas a separação entre a Al-Qaeda e o Estado Islâmico há muito que vem sendo fabricada e ajuda, pelo menos em parte, a explicar os excessos sanguinários do EI. O companheiro de isolamento de Zawahiri é um religioso jordano chamado Abu Muhammad al-Maqdisi, de 55 anos, que será o arquitecto intelectual da Al-Qaeda e que é o mais importante jihadista desconhecido do público americano. Maqdisi e o EI estão de acordo na maior parte das questões doutrinárias. Ambos se identificam com a ala jihadista de um ramo do sunismo chamado salafismo, do árabe al salaf al salih, os “fundadores devotos”. Ou seja, o próprio Maomé e os seus primeiros seguidores, que os salafistas honram e seguem como modelo de todo e qualquer comportamento, incluindo a guerra, as vestes, a vida familiar, até os cuidados com os dentes. Maqdisi ensinou Zarqawi, que partiu para a guerra no Iraque com os seus conselhos em mente. Mas, com o tempo, Zarqawi excedeu o fanatismo do seu mestre e foi criticado por ele. Isto devido ao seu gosto por espectáculos sanguinários — e, do ponto de vista doutrinário, o seu ódio aos outros muçulmanos, a ponto de os excomungar e matar. No islão, a prática do takfir, ou excomunhão, é teologicamente perigosa. “Se um homem diz ao seu irmão ‘és um infiel’, então um deles está certo”, diz o profeta. Se o acusador estiver errado, ele próprio cometeu apostasia ao fazer uma falsa acusação. O castigo da apostasia é a morte. Zarqawi alargou sem temor o tipo de comportamentos que tornam os muçulmanos infiéis. Maqdisi escreveu ao seu antigo discípulo dizendo-lhe que precisava de ser mais cauteloso e “não fazer proclamações cegas de takfir”, ou “proclamar as pessoas como apóstatas devido aos seus pecados”. A diferença entre um apóstata e um pecador pode parecer subtil, mas é um ponto fundamental da divergência entre a Al-Qaeda e o Estado Islâmico. Negar a santidade do Corão ou as profecias de Maomé é claramente uma apostasia. Mas Zarqawi e os seus companheiros consideram que muitas outras acções podem afastar um muçulmano do islão. Estas incluem, em alguns casos, vender álcool ou drogas, usar roupas ocidentais ou rapar a barba, votar em eleições — mesmo se for num candidato muçulmano — ou ser-se laxista na acusação de apostasia. Ser xiita, como são a maioria dos árabes iraquianos, também encaixa nos critérios, porque o Estado Islâmico encara o xiismo como uma inovação e inovar no Corão é negar a sua perfeição inicial. (O Estado Islâmico defende que algumas práticas comuns dos xiitas, como a adoração em alguns túmulos de imãs e a autoflagelação pública, não têm base no Corão nem no exemplo do profeta. ) Isto significa que cerca de 200 milhões de xiitas estão marcados para morrer. Tal como os chefes de Estado de todos os países muçulmanos, que elevaram as leis feitas pelos homens acima da sharia, concorrendo ao cargo ou aprovando leis que não foram feitas por Deus. Seguindo a doutrina takfiri, o Estado Islâmico compromete-se a purificar o mundo matando um número elevado de pessoas. A falta de objectividade das notícias vindas do seu território torna desconhecida a verdadeira extensão da chacina, mas os comentários feitos nas redes sociais na região sugerem que as execuções individuais acontecem mais ou menos continuamente, e as execuções em massa são separadas por poucas semanas. Os “apóstatas” muçulmanos são as vítimas mais comuns. Isentos das execuções sumárias estão os cristãos que não resistirem ao novo governo. Baghdadi permite-lhes viver, desde que paguem uma taxa especial, conhecida como jizya, e reconheçam a sua subjugação. A autoridade corânica para esta prática não é questionada. As guerras religiosas na Europa já acabaram há séculos e desde então que os homens deixaram de morrer em larga escala devido a obscuras disputas teológicas. Daí talvez a incredulidade e a negação com que os ocidentais receberam as notícias das práticas e da teologia do Estado Islâmico. Muitos recusam-se a acreditar que este grupo é tão religioso como diz ser, ou tão antiquado e apocalíptico como as suas acções sugerem. O cepticismo é compreensível. No passado, os ocidentais que acusavam os muçulmanos de seguir cegamente as escrituras antigas eram criticados por académicos — nomeadamente o falecido Edward Said — que afirmavam que chamar antiquados aos muçulmanos era geralmente apenas mais uma maneira de os denegrir. Em vez disso, defendiam estes académicos, olhe-se para as condições em que estas ideologias se formam — má governação, mudanças de costumes, a humilhação de viver em terras que apenas são valorizadas pelo seu petróleo. Sem o reconhecimento destes factores, nenhuma explicação para o crescimento do Estado Islâmico ficará completa. Mas se nos focarmos apenas neles e excluirmos a ideologia estamos a incorrer noutro tipo de desvio ocidental: o de que se a ideologia religiosa não quer dizer muito em Washington ou Berlim, seguramente será igualmente irrelevante em Raqqa ou Mossul. Quando um carrasco com uma máscara diz Allahu Akbar enquanto decapita um apóstata, às vezes fá-lo por razões religiosas. Muitas organizações religiosas muçulmanas não radicais foram ao ponto de dizer que o Estado Islâmico é, na verdade, não islâmico. Claro que é reconfortante saber que a vasta maioria dos muçulmanos não tem qualquer interesse em substituir os filmes de Hollywood por execuções públicas como entretenimento nocturno. Mas, como diz o académico de Princeton Bernard Haykel, o grande especialista na teologia do grupo, os muçulmanos que dizem que o Estado Islâmico não é islâmico estão “envergonhados e a ser politicamente correctos, com uma perspectiva cor-de-rosa da sua própria religião”, que negligencia “o que histórica e juridicamente a sua religião exigiu”. Muitas das negações da natureza religiosa do Estado Islâmico, afirma ele, estão enraizadas numa “tradição cristã de um disparatado diálogo inter-religioso”. Todos os académicos a quem fiz perguntas sobre o EI me mandaram falar com Haykel. Na voz que sai da sua barbicha mefistofélica há um ligeiro sotaque estrangeiro de uma localização indefinida. Segundo Haykel, as fileiras do Estado Islâmico estão profundamente impregnadas de fervor religioso. Há citações do Corão por toda a parte. “Mesmo os soldados rasos veiculam estas coisas constantemente”, diz Haykel. “Olham para as câmaras e repetem as suas doutrinas básicas como uma fórmula, e fazem-no a toda a hora. ” Encara a afirmação de que o Estado Islâmico distorceu os textos do islão como uma coisa ridícula, apenas justificada por uma enorme ignorância. “As pessoas querem absolver o islão”, comenta. “É aquele mantra ‘o islão é uma religião de paz’. Como se houvesse uma coisa como ‘o islão’! É aquilo que os muçulmanos fazem e a forma como interpretam os seus textos. ” Esses textos são partilhados por todos os muçulmanos sunitas, não apenas pelo Estado Islâmico. “E estes tipos têm tanta legitimidade como quaisquer outros. ”Todos os muçulmanos reconhecem que as primeiras conquistas de Maomé não foram limpas e que as leis da guerra transmitidas no Corão e nas narrativas sobre a governação do profeta foram calibradas para encaixar numa época turbulenta e violenta. Pelas estimativas de Haykel, os combatentes do EI retrocederam ao islão inicial e estão a reproduzir fielmente as suas regras de guerra. Este comportamento inclui uma série de práticas que os muçulmanos modernos tendencialmente se recusam a admitir que são parte integrante dos textos sagrados. “A escravatura, a crucificação e as decapitações não são uma coisa que uns amalucados [jihadistas] escolheram selectivamente no meio de uma tradição medieval”, comenta. Os combatentes do EI “mergulharam numa tradição medieval e estão a querer trazê-la inteira para a actualidade”. O Corão refere especificamente que a crucificação é um dos poucos castigos permitidos aos inimigos do islão. A taxa aos cristãos encontra um apoio claro no Surah al-Tawbah, o nono capítulo do Corão, que encoraja os muçulmanos a combater os cristãos e judeus “até que estes paguem a jizya com uma submissão voluntária, e se sintam eles próprios subjugados”. O profeta, que todos os muçulmanos consideram exemplar, impôs estas regras e possuía escravos. Os líderes do Estado Islâmico consideram ser seu estrito dever copiar Maomé e reavivaram tradições que há centenas de anos estavam adormecidas. “O que é espantoso neles não é só o seu literalismo, mas também a seriedade com que lêem estes textos”, diz Haykel. “Há uma seriedade obsessiva e constante que os muçulmanos normalmente não têm. ”Até ao aparecimento do Estado Islâmico, nenhum grupo nos últimos séculos tentara uma fidelidade tão radical ao modelo profético para além dos wahhabitas da Arábia do século XVIII. Conquistaram a maior parte do que é agora a Arábia Saudita, e as suas práticas estritas sobreviveram ali numa versão diluída da sharia. Mas Haykel aponta para uma distinção importante entre os grupos: “Os wahhabitas não eram exuberantes na sua violência. ” Estavam rodeados de muçulmanos e conquistaram terras que já eram islâmicas. “O ISIS, pelo contrário, está realmente a querer reavivar o período inicial. ” Os primeiros muçulmanos estavam rodeados de não muçulmanos, e o Estado Islâmico, devido às suas tendências takfiri, considera-se na mesma situação. Se a Al-Qaeda quis recuperar a escravatura, nunca o disse. E porque haveria de querer? O silêncio sobre a escravatura reflecte provavelmente um pensamento estratégico, com a necessidade de atrair a simpatia popular: quando o EI começou a escravizar pessoas, até alguns dos seus apoiantes se retraíram. Ainda assim, o califado continuou a abraçar a escravatura e a crucificação sem se desculpabilizar. “Vamos conquistar a vossa Roma, quebrar os vossos crucifixos e escravizar as vossas mulheres”, prometeu Adnani, o porta-voz, numa das suas ameaças periódicas ao Ocidente. “Se não o fizermos a tempo, então os nossos filhos e netos o farão e venderão os vossos filhos como escravos no mercado de escravos. ”Em Outubro, a Dabiq, a revista do EI, publicou A Ressuscitação da Escravatura Antes da Hora, um artigo que questionava se os yazidis (membros de uma seita antiga curdófona que foi buscar alguns elementos ao islão e que foi atacada por forças do EI no Norte do Iraque) são muçulmanos seculares, e portanto marcados para a morte, ou meros pagãos e por isso prontos para serem escravizados. Um grupo de estudo de académicos do EI reuniu-se, sob ordens do governo, para resolver a questão. Se são pagãos, escreveu o autor anónimo do artigo, “as mulheres e crianças yazidi, [devem ser] divididas de acordo com a sharia entre os que combatem pelo Estado Islâmico que participaram nas operações de Sinjar [no Norte do Iraque]. . . Escravizar as famílias dos kuffar [infiéis] e tomar as suas mulheres como concubinas é um dos aspectos determinados pela sharia e, se alguém o negar ou gracejar, estará a negar ou gracejar dos versículos do Corão e das palavras do profeta. . . e por isso a ser apóstata do islão”. II. TerritórioCalcula-se que dezenas de milhares de muçulmanos estrangeiros terão emigrado para o Estado Islâmico. Houve recrutamentos a partir de França, Reino Unido, Bélgica, Alemanha, Holanda, Austrália, Indonésia, Estados Unidos e outros locais importantes. Muitos foram para lutar e muitos tencionam morrer. Peter R. Neumann, professor no King’s College em Londres, disse-me que as comunicações online têm sido essenciais para espalhar a propaganda e garantir que os recém-chegados sabem em que acreditar. O recrutamento feito pela Internet também tem alargado a demografia da comunidade de jihadistas, permitindo que muçulmanas conservadoras — fisicamente isoladas nas suas casas — cheguem a recrutas, se radicalizem e arranjem transporte para a Síria. Apelando a ambos os géneros, o EI espera construir uma sociedade completa. Em Novembro, fui à Austrália para me encontrar com Musa Cerantonio, um homem de 30 anos que Neumann e outros investigadores identificaram como uma das mais importantes “autoridades espirituais emergentes” na condução de estrangeiros ao Estado Islâmico. Durante três anos era tele-envagelista na Iqraa TV do Cairo, mas saiu depois de a estação ter objectado aos seus apelos frequentes à criação de um califado. Agora prega no Facebook e no Twitter. Cerantonio — um homem grande e amigável com uma atitude livresca — diz que empalidece perante os vídeos das decapitações. Odeia ver a violência, ainda que os apoiantes do Estado Islâmico sejam obrigados a apoiá-la. (E, o que é controverso entre jihadistas, repudia os bombardeamentos suicidas, na medida em que Deus proíbe o suicídio; difere do EI também em mais alguns pontos. ) Tem o tipo de barba que usam alguns fãs mais crescidos do Senhor dos Anéis e a sua obsessão com o apocaliptismo islâmico soa familiar. Parece estar a viver um drama que visto de fora, sob a perspectiva de um estrangeiro, se assemelha a um romance de fantasia medieval, só que com sangue a sério. Em Junho passado, Cerantonio e a mulher tentaram emigrar — não disse para onde (“é ilegal ir para a Síria”, afirmou cautelosamente) — mas foram apanhados no caminho, nas Filipinas, e deportados para a Austrália, que criminalizou as tentativas de aderir ou viajar para o Estado Islâmico e por isso lhe confiscou o passaporte. Está preso em Melbourne, onde é conhecido das autoridades locais. Se for apanhado a facilitar a movimentação de indivíduos para o EI, será preso. Mas para já continua em liberdade — um ideólogo que tecnicamente não está filiado mas que ainda assim, para os outros jihadistas, fala com autoridade sobre a doutrina do Estado Islâmico. Encontrámo-nos para almoçar em Footscray, um subúrbio densamente povoado e multicultural de Melbourne, onde está a sede do Lonely Planet, a editora de guias de viagens. Cerantonio cresceu ali numa família meio irlandesa, meio italiana, da Calábria. Numa rua normal encontramos restaurantes africanos, lojas vietnamitas e jovens árabes a andar de uniforme salafista: barba comprida, camisa longa e calças pelo meio da canela. Cerantonio explica a alegria que sentiu quando Bahgdadi foi declarado califa, a 29 de Junho — e a súbita atracção magnética que a Mesopotâmia começou a exercer sobre ele e os seus amigos. “Estava num hotel [nas Filipinas] e vi a declaração pela televisão”, conta. “E fiquei simplesmente pasmado, do tipo: ‘O que é que estou a fazer fechado neste maldito quarto?’”O último califado foi o Império Otomano, que conheceu o seu apogeu no século XVI e que depois entrou num longo declínio, até o fundador da República da Turquia, Mustafa Kemal Atatürk, acabar com ele de vez, em 1924. Mas Cerantonio, como muitos apoiantes do Estado Islâmico, não reconhece legitimidade a esse califado, porque não instaurou totalmente e lei islâmica, que exige apedrejamentos e escravatura e amputações, e porque os califas não descendiam directamente da tribo do profeta, a Quraysh. Baghdadi falou detalhadamente da importância do califado no seu sermão em Mossul. Disse que para reavivar a instituição do califado — que há mil anos que não existia, excepto de nome — era uma obrigação. Ele e os seus fiéis foram “céleres a declarar o califado e a colocar um imã” na sua chefia, diz. “Isto é um dever dos muçulmanos — um dever que durante séculos se perdeu. . . Os muçulmanos pecam ao perdê-lo e devem sempre procurar restabelecê-lo. ” Como Bin Laden antes dele, Baghdadi fala com floreados, com referências frequentes às escrituras e com controlo sobre a retórica clássica. Ao contrário de Bin Laden, e desses falsos califas do Império Otomano, ele é Quraysh. O califado, diz-me Cerantonio, não é apenas uma entidade política, mas também um veículo de salvação. A propaganda do EI noticia regularmente as declarações de baya’a (fidelidade) vindas de grupos jihadistas de todo o mundo muçulmano. Cerantonio cita um ditado do profeta: morrer sem prestar fidelidade é morrer jahil (ignorante) e por isso morrer “da morte da descrença”. Os muçulmanos (e também, neste caso, os cristãos) imaginam negociações entre Deus e as almas dos que morrem sem conhecer a verdadeira religião — não são obviamente salvas nem definitivamente condenadas. Da mesma forma, diz Cerantonio, um muçulmano que reconhece um Deus omnipotente e que reza, mas que morre sem jurar fidelidade a um califa legítimo e descurando as obrigações desse juramento, não tem uma vida totalmente islâmica. Refiro que isto significa que a grande maioria dos muçulmanos ao longo da história, e todos os que morreram entre 1924 e 2014, tiveram uma morte de descrença. Cerantonio assentiu com firmeza. “Vou ao ponto de dizer que o islão foi restabelecido” pelo califado. Pergunto-lhe sobre o seu próprio baya’a e ele rapidamente me corrige: “Eu não disse que iria jurar fidelidade. ” Segundo a lei australiana, recorda-me ele, é ilegal prestar baya’a ao Estado Islâmico. “Mas concordo que Baghdadi preenche os critérios”, continua. “Eu vou pestanejar para si, e você depreende o que quiser. ”Ser califa implica cumprir uma série de condições impostas pela lei islâmica — ser adulto de ascendência quraysh; ter legitimidade moral e integridade física e mental; e ter amr, ou autoridade. Este último critério, diz Cerantonio, é o mais difícil de cumprir e requer que o califa tenha território no qual possa exercer a lei islâmica. O EI de Baghdadi conseguiu isso muito antes de 29 de Junho, diz Cerantonio, e assim que o fez, um convertido ocidental que faz parte da hierarquia — descreve-o como “uma espécie de líder” — começou a murmurar sobre a obrigação religiosa de declarar um califado. Ele e outros falaram discretamente para os que estavam no poder, dizendo-lhes que adiar isso por mais tempo seria pecaminoso. Cerantonio diz que apareceu uma facção preparada para combater o grupo de Baghdadi caso este adiasse ainda mais. Prepararam uma carta para vários membros poderosos do ISIS dando conta do seu desagrado pelo falhanço de nomear um califa, mas foram apaziguados por Adnani, o porta-voz, que partilhou com eles um segredo: que o califado já tinha sido declarado, muito antes do anúncio público. Eles tinham o seu califa legítimo e nessa altura só havia uma opção: “Se ele é legítimo, é preciso dar-lhe o baya’a”, afirma Cerantonio. Depois do sermão de Julho de Baghdadi, uma série de jihadistas começaram a chegar diariamente à Síria com uma motivação renovada. Jürgen Todenhöfer, um autor alemão e antigo político que visitou o Estado Islâmico em Dezembro, deu conta da chegada de cem combatentes num centro de recrutamento na fronteira turca em apenas dois dias. O seu relato, entre outros, sugere uma afluência constante de estrangeiros, prontos para desistir de tudo na sua terra por um vislumbre do paraíso no pior sítio do mundo. Em Londres, uma semana antes do meu almoço com Cerantonio, encontrei-me com três antigos membros de um grupo islamista chamado Al Muhajiroun (Os Emigrantes): Anjem Choudary, Abu Baraa e Abdul Muhid. Todos manifestaram o seu desejo de emigrar para o Estado Islâmico, tal como já tinham feito muitos dos seus colegas, mas as autoridades confiscaram os seus passaportes. Como Cerantonio, encaram o califado como o único governo legítimo da Terra, embora nenhum tenha confessado ter já jurado obediência. A principal razão pela qual quiseram encontrar-se comigo foi para me explicar aquilo que o EI defende e como as suas políticas reflectem a lei de Deus. Choudary, de 48 anos, é o antigo líder do grupo. Aparece frequentemente nas notícias por cabo, porque é uma das poucas pessoas que os produtores podem agendar para uma entrevista e que defenderá o EI a vociferar até que o microfone seja cortado. No Reino Unido, tem fama de ser um opinativo desagradável, mas ele e os seus discípulos acreditam sinceramente no Estado Islâmico e, em assuntos de doutrina, falam com a mesma voz. Choudary e os outros destacam-se nos feeds dos residentes do EI no Twitter, e Abu Baraa mantém um canal no YouTube para responder a perguntas sobre a sharia. Desde Setembro que as autoridades têm investigado os três homens suspeitos de apoiar o terrorismo. Por causa desta investigação, tiveram de se encontrar comigo em separado: a comunicação entre eles violaria os termos da sua liberdade condicional. Mas falar com eles foi como falar com uma única pessoa, com máscaras diferentes. Choudary foi ter a uma loja de doces no subúrbio de Ilford, no Leste de Londres. Estava bem vestido, com uma túnica azul que lhe chegava praticamente aos tornozelos, e bebericava um Red Bull enquanto falava. Antes do califado, “talvez 85% da sharia estava ausente das nossas vidas”, diz-me. “Estas leis estavam suspensas até termos o khilafa” — um califado — “e agora temos um. ” Sem um califado, por exemplo, vigilantes individuais não são obrigados a amputar as mãos dos ladrões que apanham em flagrante. Mas criando-o, esta lei, tal como um gigantesco corpo de outra jurisprudência, despertará subitamente. Em teoria, todos os muçulmanos são obrigados a emigrar para o país onde o califa está a aplicar estas leis. Um dos estudantes premiados de Choudary, um convertido do hinduísmo chamado Abu Rumaysah, fugiu da polícia e levou a sua família, de cinco pessoas, de Londres para a Síria, em Novembro. No dia em que me encontrei com Choudary, Abu Rumaysah tinha posto no Twitter uma fotografia de si próprio com uma kalashnikov num braço e o seu filho recém-nascido no outro. Hashtag: #GenerationKhilafah. O califa é obrigado a implementar a sharia. Qualquer desvio levará aqueles que lhe juraram fidelidade a informá-lo em privado do seu erro e, em casos extremos, caso ele persista, a excomungá-lo e substituí-lo. (“Fui contagiado com esta grande questão, contagiado com esta responsabilidade e é uma responsabilidade pesada”, disse Baghdadi no seu sermão. ) Em troca, o califa exige obediência — e aqueles que insistem em apoiar governos não muçulmanos, depois de serem avisados e educados sobre o seu pecado, são considerados apóstatas. Choudary afirma que a sharia tem sido mal compreendida por ser aplicada apenas parcialmente por regimes como a Arábia Saudita, apesar de decapitar assassinos e cortar as mãos a ladrões. “O problema”, explica, “é que quando lugares como a Arábia Saudita apenas aplicam o código penal, e não providenciam a justiça económica e social da sharia — o pacote completo —, estão apenas a gerar ódio contra a sharia. ” O pacote completo, diz, incluiria habitação gratuita, alimentação e roupas para todos, sendo que qualquer pessoa que quiser enriquecer através do trabalho pode, evidentemente, fazê-lo. Abdul Muhdi, de 32 anos, segue a mesma linha. Chega ao restaurante local onde marcámos encontro vestido como um mujahedin (combatente) puro: barba desalinhada, boné afegão, uma carteira pendurada na roupa presa ao que parece ser um coldre. Quando nos sentamos, mostra-se desejoso de falar sobre o apoio social. O Estado Islâmico pode ter castigos de estilo medieval para crimes morais (chicotadas por embriaguez ou fornicação, apedrejamento para adultério), mas o seu programa de assistência social é, no mínimo em alguns aspectos, progressista. A assistência social é gratuita, declara. (“Não é também gratuita no Reino Unido?”, pergunto-lhe. “Na realidade não”, responde. “Alguns aspectos não estão cobertos, como a visão. ”) Esta assistência social não é uma política escolhida pelo EI, adianta. É uma política obrigatória inerente à lei de Deus. III. O ApocalipseTodos os muçulmanos reconhecem que Deus é o único que sabe o futuro. Mas também concordam que nos ofereceu um vislumbre, no Corão e nas palavras do profeta. O Estado Islâmico difere de praticamente todas as outras correntes actuais do movimento jihadista ao acreditar que o futuro está traçado nas escrituras divinas e é a sua personagem central. É aqui que o EI se distingue claramente dos seus antecessores, e é mais claro quanto à natureza religiosa da sua missão. Em traços gerais, a Al-Qaeda comporta-se como um movimento político clandestino, tendo sempre em vista objectivos globais — a expulsão dos não muçulmanos da península Arábica, a abolição do Estado de Israel, o fim ao apoio às ditaduras nas terras muçulmanas. O EI tem a sua quota-parte de preocupações mundanas (incluindo, nas terras onde governa, recolher o lixo e manter a água a correr), mas o Fim dos Tempos é o leitmotiv da sua propaganda. Bin Laden raramente mencionou o apocalipse e quando o fez deu a entender que quando chegasse esse momento de castigo divino ele estaria morto há muito tempo. “Bin Laden e Zawahiri são de famílias sunitas da elite que olhavam com sobranceria para este tipo de especulação e achavam que era uma coisa do povo”, diz Will McCants do Brookings Institution e que está a escrever um livro sobre o pensamento apocalíptico do EI. Durante os últimos anos da ocupação americana do Iraque, os fundadores do EI viam, pelo contrário, sinais do fim dos tempos por toda a parte. Anteciparam que, no prazo de um ano, chegaria o Mahdi, uma figura messiânica que levaria os muçulmanos à vitória antes do fim do mundo. McCants diz que uma responsável islamista importante foi ter com Bin Laden em 2008 para o avisar de que o grupo estava a ser liderado por homens que “falavam a toda a hora do Mahdi e que tomavam decisões estratégicas” baseadas na data em que eles pensavam que o Mahdi iria chegar. “A Al-Qaeda teve de escrever-lhes a dizer: ‘Parem com isso’. ”Para alguns verdadeiros crentes — o tipo de crentes que anseia por batalhas épicas do bem contra o mal —, as visões de banhos de sangue do apocalipse preenchem necessidades psicológicas profundas. De todos os apoiantes do EI que conheci, Cerantonio, o australiano, era aquele que mostrava mais interesse no apocalipse e de como seriam os dias que restavam ao EI — e ao mundo. Uma parte dessa previsão é nova para ele e ainda não tem o estatuto de doutrina. Mas outra parte baseia-se em fontes sunitas mainstream e aparecem em toda a propaganda do EI. Esta inclui a crença de que haverá apenas 12 califas legítimos e que Baghdadi é o oitavo; que os exércitos de Roma se juntarão para combater contra os exércitos do islão no Norte da Síria; e que o último confronto do islão com um anti-Messias será em Jerusalém depois de uma nova conquista islâmica. O EI atribuiu uma grande importância à cidade síria de Dabiq, perto de Alepo. Deu o seu nome à sua revista de propaganda e celebrou intensamente quando (a grande custo) conquistou os planaltos sem valor estratégico de Dabiq. O profeta terá dito que será aqui que os exércitos de Roma irão acampar. Os exércitos do islão encontrar-se-ão com eles, e Dabiq será a Waterloo de Roma, ou a sua Antietam [a batalha mais sangrenta da guerra civil americana]. “Dabiq é basicamente uma zona de cultivo agrícola”, twittou recentemente um apoiante do EI. “Conseguimos imaginar grandes batalhas ali. ” A propaganda do EI fala com ansiedade deste acontecimento e dá a entender que ele chegará em breve. A revista cita Zarqawi: “A fagulha foi acesa aqui no Iraque e a sua chama continuará a intensificar-se. . . até incendiar os exércitos dos cruzados em Dabiq. ” Um vídeo recente mostra imagens de filmes de guerra de Hollywood passados na época medieval — talvez porque muitas das profecias referem que os exércitos estarão montados a cavalo e a carregar armas antigas. Agora que tomou Dabiq, o EI espera a chegada do exército inimigo ali, cuja derrota vai iniciar a contagem decrescente para o apocalipse. Os media ocidentais deixam escapar frequentemente as referências a Dabiq feitas nos vídeos do EI e focam-se em vez disso nas cenas vívidas das decapitações. “Aqui estamos nós a enterrar o primeiro cruzado americano em Dabiq, esperando ansiosamente que chegue o resto dos vossos exércitos”, dizia um carrasco de máscara num vídeo publicado em Novembro, onde se mostrava a cabeça decapitada de Peter (Abdul Rahman) Kassig, o assistente humanitário que estava sequestrado há mais de um ano. Durante os confrontos no Iraque em Dezembro, depois de mujahedin terem dito (talvez incorrectamente) que viram soldados americanos em combate, as contas de Twitter do EI irromperam em regozijo, como anfitriões que esperam com excesso de entusiasmo os convidados para uma festa. A narrativa profética que prevê a batalha de Dabiq refere-se ao inimigo como Roma. Quem é “Roma”, agora que o Papa não tem exército, é um assunto em debate. Cerantonio sustenta que Roma significa o Império Romano do Oriente, que tinha a sua capital naquela que agora é Istambul. Devemos pensar em Roma como a República da Turquia — a mesma república que acabou com o último califado, há 90 anos. Outras fontes do EI sugerem que Roma pode significar qualquer exército de infiéis e que os americanos encaixam perfeitamente nessa designação. Depois desta batalha de Dabiq, diz Cerantonio, o califado irá expandir-se e tomar Istambul. Há quem acredite que depois cobrirá a Terra inteira, mas Cerantonio sugere que esta vaga possa nunca passar para além do Bósforo. Um anti-Messias, conhecido na literatura pós-apocalíptica como Dajjal, virá da região de Khorasan, no Leste do Irão, e matará muitos combatentes do califado, até ficarem apenas cinco mil, encurralados em Jerusalém. E no momento em que Dajjal estiver prestes a acabar com eles, Jesus — o segundo profeta mais venerado no islão — voltará à Terra, expulsará Dajjal e conduzirá os muçulmanos à vitória. “Só Deus sabe” se os exércitos do EI serão avisados, diz Cerantonio. Mas ele tem esperança que sim. “O profeta disse que um dos sinais da chegada iminente do Final dos Tempos é que as pessoas deixam de falar do Final dos Tempos durante um tempo”, diz. “Se for agora às mesquitas, verá que os pregadores estão calados sobre este assunto. ” Sob este prisma, os reveses do EI não têm qualquer significado, uma vez que de qualquer forma Deus tinha contemplado a sua quase destruição. O Estado islâmico tem os seus melhores e piores dias pela frente. IV. O combateO purismo ideológico do Estado Islâmico tem uma virtude: permite-nos prever algumas das suas acções. Osama bin Laden raramente foi previsível. Terminou a sua primeira entrevista televisiva de forma encriptada. Peter Arnett, da CNN, perguntou-lhe: “Quais são os seus planos para o futuro?” e Bin Laden respondeu: “Irá vê-los e ouvir falar deles nos media, se Deus quiser. ” Pelo contrário, o EI fala abertamente dos seus planos — não de todos, mas o suficiente para que, se ouvirmos com atenção, se possa deduzir como projecta governar e expandir-se. Em Londres, Choudary e os seus discípulos fizeram descrições detalhadas de como o EI deve conduzir a sua política externa, agora que é um califado. Já assumiu aquilo a que a lei islâmica chama “jihad ofensiva”, a expansão forçada para países governados por não muçulmanos. “Estamos só a defender-nos”, afirma Choudary; sem um califado, a jihad ofensiva é apenas um conceito inaplicável. Mas fazer a guerra para expandir o califado é um dever fundamental do califa. Choudary refere que as leis da guerra segundo as quais o EI se rege são de misericórdia e não de brutalidade. Diz que o Estado tem a obrigação de aterrorizar os seus inimigos — uma ordem sagrada para lhes pregar sustos de morte com decapitações e crucificações e escravatura de mulheres e crianças — porque fazê-lo acelera a vitória e evita o conflito prolongado. O seu colega Abu Baraa explica que a lei islâmica apenas permite tratados de paz temporários, não mais duradouros do que uma década. Da mesma forma, aceitar uma fronteira é um anátema, tal como disse o profeta e é ecoado pelos vídeos de propaganda. Se o califa consente um tratado de paz prolongado ou uma fronteira permanente, estará a errar. Os tratados de paz temporários são renováveis, mas poderão não ser aplicados a todos os inimigos de uma só vez: o califa tem de lançar a jihad pelo menos uma vez por ano. Não pode descansar, ou estará a pecar. Uma das comparações com o Estado Islâmico são os khmer vermelhos, que mataram cerca de um terço da população do Cambodja. Mas o Khmer Vermelho ocupou o assento do Cambodja na ONU. “Isso não é permitido”, comenta Abu Baraa. “Enviar um embaixador para a ONU é reconhecer uma outra autoridade que não Deus. ” Este tipo de diplomacia é shirk, ou politeísmo, argumenta, e seria justificação para declarar o califa herege e substituí-lo. Mesmo o apoio ao califado por via democrática, através de eleições, por exemplo, seria shirk. É difícil dizer quão prejudicado o EI será pelo seu radicalismo. O sistema internacional moderno, nascido em 1648 do tratado de paz de Vestefália, assenta na vontade de cada Estado em reconhecer fronteiras, por muito que estejam relutantes. Para o EI, esse reconhecimento é ideologicamente suicida. Outros grupos islâmicos, como a Irmandade Muçulmana e o Hamas, sucumbiram aos princípios da democracia e à possibilidade de um convite para a comunidade das nações, completado com um assento na ONU. A negociação e a cedência também funcionaram, algumas vezes, com os taliban. (Sob o regime taliban, o Afeganistão trocou embaixadores com a Arábia Saudita, Paquistão e os Emirados Árabes Unidos, um gesto que invalidou a autoridade dos taliban aos olhos do Estado Islâmico. ) Para o ISIS, estas não são opções, mas actos de apostasia. Os Estados Unidos e os seus aliados reagiram ao Estado Islâmico com atraso e aparente estupefacção. As ambições e a estratégia eram evidentes nos primeiros discursos e nas pistas deixadas nas redes sociais já desde 2011, quando era apenas um dos muitos grupos terroristas na Síria e no Iraque e ainda não tinha cometido atrocidades em massa. Adnani, o porta-voz, disse então aos seguidores do grupo que a ambição era “restaurar o califado islâmico” e evocou o apocalipse, afirmando: “Só restam alguns dias. ” Baghdadi já se tinha apresentado como “comandante dos fiéis”, um título normalmente reservado aos califas, em 2011. Em Abril de 2013, Adnani declarou que o movimento estava “pronto para redesenhar o mundo segundo a metodologia profética do califado”. Em Agosto de 2013, afirmou: “O nosso objectivo é criar um estado islâmico que não reconheça fronteiras, segundo a metodologia profética. ” Nessa altura, o grupo tinha já tomado Raqqa, uma capital provincial da Síria de cerca de 500 mil pessoas, e estava a atrair números significativos de combatentes estrangeiros que tinham ouvido a sua mensagem. Se tivéssemos identificado mais cedo as intenções do EI e percebido que o vazio no Iraque e na Síria lhe daria amplo espaço para as concretizar, teríamos no mínimo forçado o Iraque a fortalecer a sua fronteira com a Síria e feito acordos preventivamente com os seus líderes sunitas. Isso teria no mínimo evitado o efeito da propaganda electrizante criado pela declaração de um califado logo a seguir à conquista da segunda cidade iraquiana. Mas, há pouco mais de um ano, Obama declarou à revista New Yorker que considerava o ISIS o parceiro mais fraco da Al-Qaeda. “Não basta uma equipa juvenil vestir o equipamento dos Lakers para se tornar um Kobe Bryant”, disse o Presidente. A nossa incapacidade de perceber a diferença entre o EI e a Al-Qaeda, e as diferenças essenciais entre os dois, levou a decisões perigosas. No Outono passado, para dar só um exemplo, o Governo americano aprovou um plano desesperado para salvar a vida a Peter Kassig. O plano facilitava — e até exigia — a interacção entre algumas das figuras fundadoras do EI e da Al-Qaeda, e dificilmente poderia ter sido mais debilmente improvisado. Nele sugeria-se a aproximação de Abu Muhammad al-Maqdisi, mentor de Zarqawi e um nobre da Al-Qaeda, a Turki al-Binali, o principal ideólogo do EI e antigo aluno de Maqdisi, apesar de estarem afastados devido às críticas de Maqdisi ao Estado Islâmico. Maqdisi já tinha apelado ao EI por clemência para Alan Henning, o britânico que entrou na Síria para prestar ajuda a crianças. Em Dezembro, o The Guardian noticiou que o Governo americano, através de um intermediário, pedira a Maqdisi que intercedesse por Kassig junto do EI. Maqdisi vivia então livremente na Jordânia, mas tinha ficado proibido de comunicar com terroristas no estrangeiro e estava a ser vigiado de perto. Depois de a Jordânia ter dado autorização aos EUA para apresentar Maqdisi a Binali, Maqdisi comprou um telefone com dinheiro americano e foi autorizado a comunicar com o seu antigo aluno durante alguns dias, até o Governo jordano acabar com as conversas e as usar como pretexto para o prender. Uns dias depois, a cabeça decapitada de Kassig aparecia num vídeo da Dabiq. Maqdisi é frequentemente gozado no Twitter pelos fãs do EI, e a Al-Qaeda é também mal vista por se recusar a reconhecer o califado. Cole Bunzel, um académico que estuda a ideologia do Estado Islâmico, leu a opinião de Maqdisi sobre a situação de Henning e achou que ela iria acelerar a sua morte, tal como a de outros reféns. “Se eu estivesse preso pelo Estado Islâmico e Maqdisi dissesse que eu não deveria ser morto, diria adeus à vida”, diz-me Bunzel. A morte de Kassig foi trágica, mas o êxito do plano teria sido uma tragédia ainda maior. Uma reconciliação entre Maqdisi e Binali teria começado a sarar a principal discórdia entre as duas maiores organizações jihadistas do mundo. É possível que o governo apenas quisesse atrair Binali para obter informação secreta ou para ser assassinado. (Várias tentativas para que o FBI comentasse falharam. ) Ainda assim, a decisão de juntar os dois maiores antagonistas dos Estados Unidos revela uma surpreendente falta de senso. Envergonhados pela nossa indiferença inicial, estamos agora a conhecer o Estado Islâmico através dos combates no Curdistão e no Iraque, com ataques aéreos regulares. Essa estratégia não desalojou o Estado Islâmico de nenhum dos seus territórios principais, apesar de ter evitado ataques directos a Bagdad e Erbil massacrando xiitas e curdos. Alguns observadores pediram uma resposta mais forte, incluindo algumas das vozes previsíveis da direita intervencionista (Max Boot, Frederick Kagan), que apelaram ao envio de dezenas de milhares de soldados americanos. Não se deve afastar demasiado depressa este cenário: uma organização genocida está à porta de casa das suas vítimas e diariamente comete atrocidades no território que já controla. Uma das formas de quebrar o feitiço do EI nos seus seguidores seria superá-lo militarmente e ocupar as partes da Síria e do Iraque que estão agora sob domínio do califado. A Al-Qaeda não pode ser erradicada porque consegue sobreviver, como uma barata, ficando na clandestinidade. O Estado Islâmico não. Se perder o poder nos seus territórios na Síria e no Iraque, deixará de ser um califado. Os califados não podem existir como movimentos clandestinos, porque necessitam da autoridade territorial: acabe-se com o território que comandam e todos os votos de obediência deixam de estar em vigor. Claro que alguns freelancers poderão continuar a apelar ao combate contra o Ocidente e a decapitar inimigos. Mas o valor propagandístico do califado desapareceria e com ele o alegado dever religioso de imigrar para o servir. Se os EUA invadissem, a obsessão do EI pela batalha de Dabiq faz depreender que seria necessário enviar vastos recursos para lá, como se fosse uma batalha convencional. Se o Estado investisse fortemente em Dabiq e depois a perdesse, poderia nunca mais recuperar. Mas os riscos de uma escalada são enormes. O maior defensor de uma invasão americana é o próprio Estado Islâmico. Os vídeos provocatórios, nos quais um carrasco de máscara negra se dirige ao Presidente Obama pelo nome, destinam-se claramente a arrastar os Estados Unidos para a guerra. Uma invasão seria uma enorme vitória da propaganda para os jihadistas em todo o mundo: independentemente de terem dado a baya’a ao califa, todos acreditam que os EUA querem lançar uma cruzada moderna e matar os muçulmanos. Mais uma invasão e ocupação confirmariam essas suspeitas e aumentariam o recrutamento. Se acrescentarmos a incompetência dos esforços anteriores enquanto ocupantes, temos razões para estar relutantes. O crescimento do ISIS, afinal, só se verificou porque a ocupação anterior abriu espaço para Zarqawi e os seus fiéis. Quem sabe quais seriam as consequências de outro trabalho mal feito?Tendo em conta tudo o que sabemos sobre o Estado Islâmico, a melhor das opções militares será continuar a sangria lenta e a guerra por procuração. Nem os curdos nem os xiitas jamais se subjugarão nem controlarão o centro sunita da Síria e do Iraque — são odiados ali e também não têm qualquer desejo de uma aventura dessas. Mas podem impedir o Estado Islâmico de cumprir o seu desígnio de expansão. E por cada mês que falha em expandir-se fica menos parecido com o estado conquistador do profeta Maomé. Será mais um estado do Médio Oriente que não consegue trazer prosperidade ao seu povo. O custo humanitário da existência do EI é elevado. Mas a sua ameaça para os EUA é menor do que pode sugerir o seu permanente confronto com a Al-Qaeda. O ponto central da Al-Qaeda é raro entre os grupos jihadistas por se focar no “inimigo distante” (o Ocidente); a maior parte das preocupações da maioria dos jihadistas está mais perto de casa. Isso é especialmente verdade no caso do Estado Islâmico, precisamente por causa da sua ideologia. Vê inimigos a toda a volta e, apesar de a sua liderança não querer bem aos EUA, a aplicação da sharia no califado e a expansão para os territórios contíguos são prioritários. Baghdadi afirmou-o directamente: em Novembro, declarou aos seus agentes sauditas que “lidassem com os rafidah [xiitas] primeiro. . . com os al-sulh depois [apoiantes sunitas da monarquia saudita]. . . antes dos cruzados e das suas bases”. Os combatentes estrangeiros (e as suas mulheres e crianças) têm viajado para o califado com bilhetes só de ida: querem viver sob o domínio da sharia e muitos desejam o martírio. Recorde-se que a doutrina exige que os crentes vivam no califado se lhes for possível. Um dos vídeos menos sangrentos do ISIS mostra um grupo de jihadistas a queimar os seus passaportes franceses, britânicos e australianos. Isto seria um gesto excêntrico para alguém que pretendesse regressar para se fazer explodir no Louvre ou tornar refém mais uma loja de chocolates em Sydney. Alguns “lobos solitários” que apoiam o EI atacaram alvos ocidentais e mais ataques surgirão. Mas a maioria são amadores frustrados, incapazes de emigrar para o califado por terem os passaportes confiscados ou outros problemas. Ainda que o EI felicite estes ataques, e fá-lo na sua propaganda, ainda não planeou nem financiou nenhum. (O ataque ao Charlie Hebdo em Paris, em Janeiro, foi sobretudo uma operação da Al-Qaeda. ) Durante a sua visita a Mossul, em Dezembro, Jürgen Todenhöfer entrevistou um jihadista alemão e perguntou-lhe se algum dos seus camaradas tinha regressado à Europa para lançar ataques. O jihadista falou dos retornados não como soldados mas como desistentes. “O facto é que os que regressam do Estado Islâmico devem arrepender-se do seu regresso”, afirmou. “Espero que reavaliem a sua religião. ”Se for adequadamente contido, o EI fará a sua própria implosão. Nenhum país é seu aliado e a sua ideologia garante que assim continuará. A terra que controla, apesar de poder expandir-se, é praticamente desabitada e pobre. À medida que estagnar ou que for encolhendo, o argumento de que pratica a vontade de Deus e é o agente do apocalipse perderá força e poucos crentes chegarão. E quanto mais notícias de pobreza saírem para fora, mais os movimentos islamistas radicais nos outros sítios ficarão desacreditados. Ninguém tentou tanto aplicar a sharia de forma tão estrita através da violência, e é isto que acontece. Mesmo assim, é pouco provável que a morte do Estado Islâmico seja rápida e as coisas podem ainda correr muito mal: se o EI obtiver a obediência da Al-Qaeda — aumentando de uma assentada a sua base —, poderá tornar-se a pior força a que já assistimos. O fosso entre o EI e a Al-Qaeda tem crescido nos últimos meses; a edição de Dezembro da Dabiq trazia um relato extenso de um desertor da Al-Qaeda que descrevia o seu grupo como corrupto e ineficaz e Zawahiri como um líder distante e desadequado. Mas devemos estar atentos a qualquer aproximação. Sem uma catástrofe como esta, ou a ameaça de o EI tomar Erbil, uma grande invasão terrestre certamente pioraria a situação. V. DissuasãoSeria fácil, quase uma desculpa, dizer que o problema do Estado Islâmico é “um problema com o islão”. A religião permite muitas interpretações e os apoiantes do EI estão moralmente agarrados à que escolheram. E, contudo, denunciar pura e simplesmente o EI como anti-islâmico pode ser contraproducente, sobretudo se quem ouve a mensagem conhece os textos sagrados e vê neles justificadas muitas das práticas do califado. Os muçulmanos podem dizer que, agora, a escravatura não é legítima e que a crucificação é reprovável na actual conjuntura histórica. Isto é, de facto, o que muitos dizem. Mas não podem condenar liminarmente a escravatura ou a crucificação sem contradizer o Corão e o exemplo do profeta. “O único terreno seguro para os que se opõem [ao EI] é clamarem que alguns textos e ensinamentos do islão perderam a validade”, diz Bernard Haykel. E isso seria abjuração. A ideologia proposta pelo Estado Islâmico exerce uma forte influência junto de uma certa camada da população. Perante ela, as hipocrisias e inconsistências da vida pura e simplesmente desaparecem. Musa Cerantonio e os salafistas que conheci em Londres são assertivos: nenhuma das questões que lhes coloquei os deixou a gaguejar. Foram muito eloquentes no seu sermão e, se aceitarmos as suas premissas, convincentes até. Dizer que são anti-islâmicos parece-me que é estar a desafiá-los para uma discussão em que saem a ganhar. Se eles fossem somente uns maníacos fala-barato, podia vaticinar que o seu movimento implodia à medida que os seus psicopatas se fazem detonar e, um a um, caem redondos no chão. Mas estes homens falavam com uma precisão académica que só me fazia lembrar que estava perante licenciados de peso. Até gostei de estar na companhia deles, e isso deixou-me com tanto medo como tudo o resto. Os não muçulmanos não podem dar lições aos muçulmanos sobre como devem praticar a religião. Mas, entre os muçulmanos, este não é um debate de agora. “Temos de ter padrões”, disse-me Anjem Choudary. “Qualquer um pode dizer-se muçulmano mas se acredita na homossexualidade ou em beber álcool, então não é muçulmano. Também não existem vegetarianos não praticantes. ”Há, contudo, uma outra variante do islão que oferece uma alternativa de linha dura ao EI — igualmente intransigente, mas com resultados opostos. É uma alternativa que já provou ter o seu encanto para os muitos muçulmanos amaldiçoados, ou abençoados, na ânsia psicológica de assistirem a qualquer mudança de vírgula na implementação dos textos sagrados tal como o eram nos primeiros tempos do islamismo. Os que apoiam o EI sabem bem como deve reagir aos muçulmanos que ignoram partes do Corão: com o takfir [excomunhão] e ridicularizando-os. Mas sabem também que outros muçulmanos lêem tão assiduamente o Corão como eles próprios e representam uma séria ameaça à sua ideologia. Baghdadi é salafista. O termo salafi foi deturpado e isso deve-se, em parte, aos patifes que têm entrado na guerra com a bandeira salafista hasteada. Mas a maioria dos salafistas não é jihadista e adere a seitas que rejeitam o Estado Islâmico. Como refere Haykel, estão comprometidos em expandir o Dar al-islam, a terra do islão, ainda que, eventualmente, tenham de pôr em prática coisas monstruosas como a escravatura e a amputação — mas no futuro. As suas prioridades são a purificação pessoal e o cumprimento dos ditames religiosos. E acreditam que qualquer coisa que os desvie desse caminho — que dê origem a guerras e a distúrbios que desfaçam vidas ou impeçam a prossecução dos estudos — é proibido. Eles vivem no meio de nós. No último Outono, fui a Filadélfia visitar a mesquista de Breton Pocuis, um imã que dá pelo nome de Abdullah, de 28 anos. A sua mesquita fica na fronteira entre um bairro onde reina o crime, o Northern Liberties, e uma área gentrificada a que poderíamos chamar Dar al-Hipster, na qual até a sua barba passa despercebida. Pocius, um polaco de Chicago educado no catolicismo, converteu-se há 15 anos. Tal como Cerantonio, também ele fala como uma alma veterana, mostrando a sua familiaridade profunda com os textos antigos e o seu compromisso com os ensinamentos, na crença de que é neles que reside a salvação ao fogo dos infernos. Quando nos encontramos num café das redondezas, ele traz consigo um trabalho académico em árabe sobre o Corão e um livro de auto-ajuda para aprender japonês. Estava a preparar o seu sermão sobre as responsabilidades e obrigações da paternidade para os cerca de 150 fiéis da sua assembleia das sextas-feiras. Diz Pocius que o seu principal objectivo é encorajar os fiéis da mesquita a que conduzam as suas vidas de uma forma halal [aquilo que é permitido ou legal à luz da lei islâmica]. Mas o crescimento do EI têm-no forçado a equacionar determinadas questões políticas que à partida estariam longe da cabeça de qualquer salafista. “A maior parte das coisas que eles dizem sobre como devemos orar ou nos vestir é tal e qual o que transmito à minha masjid [mesquita]. Mas quando abordam questões sobre convulsões sociais, parecem o Che Guevara. ”Quando Baghdadi apareceu, Pocius adoptou o slogan “Não é o meu khalifa”. “Nos tempos do profeta, muito sangue foi derramado”, diz-me, “e ele sabia que o caos seria o pior que poderia acontecer a todos, sobretudo dentro da umma [comunidade]. ” Por isso, diz Pocius, a atitude correcta de um salafista não é semear a discórdia aderindo a facções e declarando os outros muçulmanos apóstatas. Pelo contrário, Pocius e a maioria dos salafistas acham que os muçulmanos se deveriam afastar da política. Estes salafistas reservados, como são conhecidos, concordam com o que diz o Estado Islâmico de que a única lei é a de Deus e rejeitam o voto e a criação de partidos políticos. Mas interpretam o ódio que o Corão tem ao caos e à discórdia como um pedido para que sigam o líder, seja ele qual for, incluindo os que são verdadeiros pecadores. “Diz o profeta que, enquanto o líder não ceder claramente ao kufr [descrença], lhe devemos toda a obediência”, explica-me Pocius, dizendo que os clássicos “livros de credo” alertam todos para o perigo da revolta social. Os salafistas reservados estão completamente proibidos de separar um muçulmano de outro, nomeadamente pela excomunhão em massa. Viver sem baya’a, diz Pocius, faz de uma pessoa um ignorante, ou incivilizado. Mas a baya’a não significa lealdade imediata e cega a um califado, e muito menos a Abu Bakr al-Baghdadi. De uma forma mais alargada, pode querer dizer, isso sim, lealdade a um contrato social religioso e compromisso com a comunidade muçulmana, seja ela liderada por um califa ou não. Estes salafistas preconizam que os muçulmanos devem conduzir as suas energias para o aperfeiçoamento da vida privada, incluindo a oração, os rituais e a higiene. E, assim como os judeus ultraortodoxos debatem se no Sabath e à boa maneira kosher faz sentido rasgar papel higiénico em pedaços [uma das regras na preparação do descanso semanal do judaísmo] — e será que a moda da “roupa rasgada” também conta? —, eles passam uma enorme quantidade de tempo a avaliar se têm as calças demasiado compridas ou se as suas barbas estão bem aparadas num lado mas desgrenhadas no outro. Com toda esta exigente devoção, Deus, assim o crêem, irá retribuir-lhes em força e em número, e talvez um califado possa emergir. Só então, os muçulmanos terão a sua vingança, e sim, chegarão a uma vitória gloriosa em Dabiq. Mas Pocius cita alguns teólogos modernos salafistas que asseguram que um califado não vem se não da vontade indómita de Deus. E isso é algo com que o Estado Islâmico irá com toda a certeza concordar, acrescentando que Deus já nomeou Baghdadi. A réplica de Pocius pretende apelar à humildade. E cita Abdullah Ibn Abbas, um dos companheiros do profeta, que se sentou com dissidentes e lhes perguntou como poderiam ter o descaramento, sendo eles uma minoria, de afirmar que a maioria estava errada. A dissidência propriamente dita, assim como o derramamento de sangue e a divisão da umma, é proibida. De certa maneira, até a constituição do califado de Baghdadi contradiz todas as expectativas, diz. “É a Alá que cabe estabelecer o khilafa e envolveria consenso dos eruditos de Meca e Medina. Não foi isso que aconteceu. O EI apareceu vindo do nada. ”Mas esta é uma conversa que o EI não aceita, e os seus seguidores são sarcásticos nos tweetts sobre os salafistas reservados. Gozam chamando-lhes “salafistas da menstruação” por causa dos seus obscuros julgamentos sobre quando as mulheres estão limpas ou não, bem como sobre outros aspectos menos prioritários da vida. “Do que precisamos agora é de uma fatwa [decreto] que nos indique como é haram [proibido] andar de bicicleta em Júpiter”, twittou um deles de forma muito seca. “É nisto que os eruditos se deviam focar. Pressionar mais do que andarem a frisar a Umma. ” Já Anjem Chouldary diz que não há maior pecado do que a usurpação da lei de Deus e que as posições extremistas em prol do monoteísmo não devem ser vistas como fraqueza. Os Estados Unidos não apoiam de modo nenhum Pocius, ainda que este se apresente como alternativa de peso ao jihadismo. Tendem inclusive a desacreditá-lo. E ele é amargo e diz que a América o trata “menos do que a um cidadão”. (Alega que o governo infiltrou espiões na sua mesquita e assediou a mãe no trabalho colocando-lhes questões sobre ele ser um potencial terrorista. )Contudo, o seu salafismo apresenta-se como antídoto ao jihadismo ao estilo de Baghdadi. Nem todos os que chegam à fé ansiosos por lutar podem escapar do jihadismo, mas para aqueles cuja principal motivação é encontrar uma versão ultraconservadora e inflexível do islão, esses têm aqui a alternativa. Não é o islão moderado, alguns vê-lo-ão mesmo como extremado. É, contudo, a versão do islão que até para as mentes mais literais não é hipócrita nem foi expurgada de forma blasfémica dos seus inconvenientes. A hipocrisia não é pecado que as mentes mais jovens da teologia tolerem. O melhor seria que as autoridades ocidentais parassem de lançar mais achas para a fogueira do debate teológico islâmico. O próprio Barack Obama, ao afirmar que o EI não é “islâmico”, entrou nas profundas correntezas do takfiri e derrapou — logo ele, que ironicamente é um não muçulmano filho de um muçulmano que até poderia ser considerado apóstata e agora pratica o takfir contra os muçulmanos. Os não muçulmanos que agem conforme os requisitos do takfir gracejam com os jihadistas (“Como porcos cobertos de porcaria que dão lições de higiene a outros”, twittou um deles). Imagino que a maioria dos muçulmanos aprecie os sentimentos de Obama: o Presidente mostrou estar do lado deles e contra Baghdadi e os chauvinistas não muçulmanos que os tentam implicar nos crimes. Mas a maioria dos muçulmanos não é sujeita a juntar-se à jihad. E os que aderem vêem confirmadas as suas suspeitas de que os Estados Unidos mentem sobre a religião para alcançar os seus objectivos. E o EI lá vai cantando e rindo, trauteando energicamente — até com criatividade — dentro dos limites apertados da sua teologia. Mas fora desses limites não poderia ser mais árido ou silencioso: uma visão da vida enquanto obediência, ordem e destino. Muse Cerantonio e Anjem Choudary tanto podem estar a discutir mortes em massa e tortura diária como as virtudes do café do Vietname e de bolos demasiado açucarados. E fazem-no com aparente deleite. Parece-me, contudo, que abraçar os seus pontos de vista seria ver todos os sabores que existem neste mundo tornarem-se insípidos por comparação às atrocidades grotescas do que pode aí vir no futuro. Até posso apreciar a companhia de um e de outro, enquanto exercício intelectual que me faz sentir tão culpado quanto me dá prazer. . . mas até um certo ponto. Na recensão que George Orwell fez ao Mein Kampf, em Março de 1940, o escritor confessou: “Nunca consegui sentir antipatia por Hitler”; apesar dos seus objectivos abomináveis e cobardes, havia qualquer coisa de pobre coitado naquele homem. “Se matava um rato que fosse, fazia-o como se de um dragão se tratasse. ” Os apoiantes do EI têm uma allure muito semelhante. Acreditam estar pessoalmente envolvidos numa luta que transcende as suas vidas e que o simples facto de serem arrastados para o drama, estando no lado do bem, é um privilégio e um prazer — sobretudo se for igualmente um fardo. O fascismo, continuava Orwell, é “psicologicamente muito mais sólido do que qualquer ideia hedonista da vida. . . Enquanto o socialismo, e até mesmo o capitalismo de uma forma mais relutante, tem dito às pessoas ‘dou-te a oportunidade de passares um bom bocado’, Hitler disse às pessoas “dou-vos luta, perigo e morte, e em resultado teve uma nação prostrada a seus pés. . . Não devemos subestimar o encanto que possa ter ao nível das emoções. Nem, no caso do EI, o seu encanto religioso ou intelectual”. Que o EI sustente como dogma o cumprimento iminente da profecia, isso ao menos transmite-nos o valor do nosso opositor. Está disposto a louvar a sua quase autodestruição mas mantém-se confiante, mesmo quando cercado, de que irá receber a graça divina se se mantiver fiel ao modelo profético. As ferramentas ideológicas podem convencer alguns dos possíveis convertidos de que a sua mensagem de grupo é falsa, e as ferramentas militares podem impor limites aos seus horrores. Mas para uma organização tão impenetrável à persuasão como é o EI, poucas medidas importarão, e a guerra pode bem vir a ser longa, ainda que não termine com o fim dos tempos. Exclusivo PÚBLICO/The AtlanticLeia tambémSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
Conto: Ž
No Inverno de 2014-15, uma mulher aterra na ex-Jugoslávia em busca da história de Ž, um fotógrafo de guerra desaparecido. Tinham-se conhecido vinte anos antes, durante o cerco a Sarajevo. Um conto inédito de Alexandra Lucas Coelho. (...)

Conto: Ž
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: No Inverno de 2014-15, uma mulher aterra na ex-Jugoslávia em busca da história de Ž, um fotógrafo de guerra desaparecido. Tinham-se conhecido vinte anos antes, durante o cerco a Sarajevo. Um conto inédito de Alexandra Lucas Coelho.
TEXTO: No Inverno de 2014-15, uma mulher aterra na ex-Jugoslávia em busca da história de Ž, um fotógrafo de guerra desaparecido. Tinham-se conhecido vinte anos antes, durante o cerco a Sarajevo. Um conto inédito de Alexandra Lucas Coelho. Ð ligou para Lisboa, no seu português fluente, pedindo-me que reconstituísse a história de Ž. Eu encontrara Ž duas vezes e estava interessada no assunto, como Ð sabia através de um amigo comum. De resto, Ð e eu não nos conhecíamos, mas ele saltou, alegre, por cima disso:— Quando podes vir a Belgrado?Foi assim que na noite de 2014 para 2015 me achei na colina do Kalemegdan, a fortaleza da capital sérvia que já foi celta, romana, bizantina, otomana. O cigarro de Ð apontou a confluência do Sava com o Danúbio, em breve o frio daria para andar sobre as águas. Quem nos ofereceu um gole de rakija disse que estavam doze negativos, mas já bebera meia garrafa. Acho que deviam estar pelo menos vinte negativos quando Ð e eu caímos na neve, ele de costas, eu de bruços. Um snipper não faria melhor, ao primeiro beijo. Notas iniciais sobre Ž: tinha quinze anos a 4 de Maio de 1980, o dia em que a Jugoslávia começou o seu luto (e não era artificial, nem o luto, nem a Jugoslávia). Um antigo vizinho lembra-se de estar com Ž no Centro Cultural de Estudantes quando chegou a notícia: Tito morrera. Apanharam o autocarro de volta a casa e foram para a garagem da filha do futuro presidente ensaiar uma nova canção dos Jungle Anarchists, a banda que haviam fundado com outro vizinho. Porque eram punks de Dedinje, o bairro-bosque dos aparatchiks, hierarquia acima até à mansão de Tito. Os punks do centro chamavam-lhes mesmo punks de Dedinje como se lhes chamassem ricos. Só que os pais deles eram pequenos aparatchiks em pequenos apartamentos no fim da hierarquia, prédios feios até hoje. Aos quinze, Ž partilhava o quarto com dois irmãos, e tinha de negociar com eles o tráfego de namoradas. Portanto, punks de Dedinje mas não menos punks por isso, fuck off. Em 1981, a filha do então já ex-presidente fundou a sua própria banda, e dois anos depois explodia na rádio com o álbum Perfektan Dan Za Banana Ribe. O título era uma homenagem à primeira das Nove Histórias de J. D. Salinger, Um dia perfeito para o peixe banana, que Ž terá oferecido à futura musa quando tinham dezoito anos: sabia-o de cor. Muito sofisticado para dezoito anos, mas aos dezoito Ž já se achava um fracasso desde os treze, que foi quando começou a partir guitarras e a cheirar cola. Aos treze, cola; aos dezoito, heroína. A filha do ex-presidente morreu nem dez anos depois, a irmã dela também, e eram só os ícones de uma longa lista. Belgrado parecia mais perto de Londres que da Cortina de Ferro. Os anos 1980 foram a década em que o New Musical Express vinha cobrir a cena cool jugoslava, e os adolescentes morriam a solo, deixando o tal belo cadáver. Vista dessa Jugoslávia, a ideia de guerra não passava de uma farsa entre Moscovo e Washington. A Jugoslávia era a praia e a montanha dos não-alinhados, um sudeste ao mesmo tempo mediterrânico, eslavo, otomano e centro-europeu. Os jugoslavos viajavam, os jugoslavos viviam bem, os jugoslavos recebiam os Rolling Stones (Zagreb 1976, Ž fechou-se no quarto porque não o deixaram ir). Até os meus tios-avós passaram férias na Jugoslávia: nem se dava pela repressão, Tito era um esteta. Então, claro, quem na geração de Ž acreditava mesmo que nos anos 1990 a Europa teria de novo campos de concentração, genocídios, valas comuns, deportações, violações em série, e que tudo isso aconteceria justamente ali, na costura do socialismo de rosto humano? As únicas bombas que os punks de Dedinje conheciam eram as dos Clash (The hillsides ring with ‘Free the people’ / Or can I hear the echo from the days of ‘39? / With trenches full of poets (. . . ) I’m hearing music from another time). Se a letra anuncia a guerra, é porque a ouço no futuro, e de fora. Sou de fora, eis o que levou Ð a procurar-me: essa seria a minha vantagem e o meu limite. O trabalho dele é convencer-me de que a vantagem é maior do que o limite, o meu trabalho é saber que à partida já perdi. Pois que poderia eu dizer sobre Ž a quem cresceu nas mesmas trincheiras de Ž, e conhece cada nuance entre a neve e a lama, como a neve é uma ilusão que queima, tudo o que a neve cobre, tudo o que a neve adia, porque o frio retém a revelação, e é o sol que traz os mortos. Assim aterro em Belgrado no começo do Inverno para uma espécie de garimpo, de fora para dentro. Se ninguém detém a narrativa de outro, esta história de Ž será só a minha, como o meu anfitrião sabe há muito. Quando Tito morreu, já Ð estava a milhas, bolseiro de estudos pós-coloniais, aluno de Edward Said. E nem a América fez dele um ex-fumador. A 25 de Dezembro, uma quinta-feira banal para os ortodoxos, apanho um táxi até à antiga mansão de Tito em Dedinje. O primeiro nevão deve acontecer no fim de semana, por enquanto copas negras, céu dourado, nem uma folha. O táxi pára junto ao muro, mais alto do que eu mas muito mais baixo do que as árvores lá dentro. Extenso parque, sim senhor, se é para receber Elizabeth Taylor há que fazer as coisas bem, embora para esses casos também houvesse a Casa de Verão, na ilha. A Taylor, a Lollobrigida, a Loren, o Burton, assim do que me lembro. Tito era pop. Já Miloševic foi o anti-pop mundial. Deu cabo da telegenia sérvia ao ser o mais poderoso protagonista de uma violência inédita na Europa desde a Segunda Guerra, dezenas de milhares de cadáveres para todos os lados, até aos bombardeamentos da NATO sobre a Sérvia. Ainda hoje, em Belgrado, Miloševic parece o-homem-do-saco na infância de milhares de sérvios, só que real até à morte. Um caso de ascensão máxima da paranóia. E quem era a multidão que o seguia?, perguntei ontem a um dos velhos amigos de Ž. Ele suspirou, creio que até o cão a seus pés suspirou (um rafeiro que aprendeu a encantar estranhos para sobreviver, de preferência raparigas, até hoje encanta e já é senhor da casa, questão de feitio). Ah, o lumpen-proletariado, respondeu enfim o velho amigo de Ž. Ao pé da letra, homens-trapo, sem consciência política, à mercê de quem os manipule. Não é com eles que se fará a revolução, e a revolução não se fará também por causa deles, mas isto já não é Marx que diz, nem o velho amigo de Ž. Tão sérvio de pai e mãe como Ž, o velho amigo rematou: horror, horror dessa Sérvia. (De qualquer massa inflamada, além do lumpen-proletariado, não? A velha questão da banalidade do mal. O paranóico comanda e o mal banaliza-se pela massa. A massa é o sistema digestivo do paranóico. Processa tudo. )Não, não me perdi, estou bem em frente à mansão de Tito, mas Miloševic instalou-se aqui nos anos 90, então é impossível não me lembrar dele também. Os imperialistas têm um fetichismo pelo metro quadrado de quem os antecedeu, tal como os europeus de 1500 tiveram pelos templos indígenas, um eterno retorno igual à guerra. Miloševic morar na mansão de Tito era a Grande Sérvia a ocupar a casa da Jugoslávia. A História ia recomeçar nele. (Esta noite, saindo de uma kafana para outra num eterno retorno à rakija de marmelo, Ð há-de contar-me que existem internados em hospícios convencidos de que ainda estão na Jugoslávia. Imaginar um destes internados a ter alta dava um romance, se calhar já deu). Caminho ao longo do muro da mansão. O táxi espera do outro lado da estrada. Ninguém nos passeios, nenhum cartaz, nenhuma tabuleta, a jugo-nostalgia contemporânea não parece chegar aqui, talvez porque não se possa entrar, talvez porque Miloševic morou lá dentro, e se Tito deu vida à Jugoslávia, Miloševic enterrou-a, ou talvez por a casa ter sido bombardeada pela NATO em 1999. Os destroços continuam à vista, através do rendilhado de um portão. (Há uns curto-circuitos assim no meio de Belgrado, subitamente numa avenida dois edifícios bombardeados, lado-a-lado. Não sei se é uma decisão ou a ausência dela, e até hoje não perguntei. )Esta rua — Užicka — entrou para a história do século XX à bomba (já na Segunda Guerra, os Aliados bombardearam os alemães que a tinham ocupado), mas o que me interessa hoje é como ela coincide com o mapa de Ž. Eles, os proto-punks de Dedinje, vinham dos prédios com bicicletas, com trenós, com guitarras, com namoradas, consoante a estação e a idade. Em Dezembro caíam os primeiros nevões, ficava tudo fofo, depois duro, e depois pedregulhos podiam cair se a temperatura subisse de repente, desprendendo o gelo dos telhados, morre-se disso em Belgrado, como nos trópicos de um coco. Árvores em ponto de fuga, silêncio de bosque mais que de bairro: não é Tito nem Miloševic que suponho a atravessar a estrada (também não atravessariam a estrada, imagino), mas sim Ž, as longas pernas de Ž com aquelas calças de pinças, aqueles ténis, aqueles blasers, aqueles pins no blaser, aquelas franjas dos anos 1980 tapando olhos de ressaca, de quem não dá trela a ninguém. Vai fazer vinte anos amanhã, e mais um amigo acaba de morrer. Quem ainda cá está em 2014 confirma: nesse grupo, nesse tempo, a morte era mais real do que a guerra. Aos vinte, Ž via-se como um velho sobrevivente, entre overdoses e hiv. A lista das partidas aumentava dessas e de outras formas, Londres, Roma, Viena. Não suficientemente longe para ele, segundo um contemporâneo que não chegou a tomar drogas, e hoje mora num casarão. Os anos 1990 fizeram a fortuna de quem teve jeito, Ž teria morrido de tédio, se não tivesse chutado tudo antes. No Verão de 1985 desembarcou na praia catalã de Blanes porque uma amiga de Belgrado que emigrara para Barcelona acabava de conhecer um beatnik sul-americano lá. Eis como, depois de uma semana a beber com o beatnik — um tal de Roberto Bolaño, que vendia pulseiras mas tinha cem livros na cabeça —, Ž decidiu ir para o México. Estudar fotografia, disse aos pais. A vida mexicana de Ž terá de esperar pelo meu próprio regresso ao México. O que posso registar agora é que foram duas temporadas, a primeira, entre os vinte e os vinte e um (1985-86), de facto a morar no formidável campus da Universidade Nacional Autónoma, enquanto estudava fotografia, entre biscates vários. E a segunda, aos trinta e quatro (1999), a fotografar a violência das fábricas de Ciudad Juárez para a revista do New York Times. A sua nota biográfica desse ano resumia: “Cobriu conflitos no Irão, Iraque, Roménia, Líbano, Ruanda, Irlanda do Norte, Sudão, Afeganistão, Rússia, Serra Leoa, Argélia, Israel-Palestina e nas repúblicas da ex-Jugoslávia. ” Ou seja, em apenas treze anos, Ž catapultou-se para a linha da frente do fotojornalismo, de trincheira em trincheira. A primeira vez que o vi foi em Sarajevo. Portanto, vou voar para Sarajevo este sábado, 27 de Dezembro, ao começo da tarde. Hora perfeita, se não estamos interessados em mudar um ritmo nocturno que já vem de há dias. Ainda ontem, porque era quinta, e é algo que só acontece às quintas, Ð levou-me a uma catacumba onde cavalheiros de cerca de oitenta e quatro anos trazem rakija de casa em garrafas de plástico que oferecem a toda a gente, começando pelas senhoras. As senhoras têm grandes toucados. As paredes estão cobertas de fotografias. Pareceu-me ver Amália Rodrigues numa esquina e quando olhei melhor era Amália Rodrigues. Um cavalheiro de cerca de oitenta e quatro anos recitou-me Octavio Paz, outro disse-me que tocara bateria com Charlie Haden quando ele cá esteve em 1971. Isto, na véspera de Haden ter ido tocar no primeiro Cascais Jazz, onde dedicou as cordas do seu contrabaixo às lutas africanas de libertação, o que lhe valeu ser levado pela polícia política da ditadura. Este octogenário até se lembra de como Haden depois festejou Abril com a sua própria versão da Grândola Vila Morena. E para que eu não duvide, canta. Como não amar Belgrado. Nem de propósito, um amigo de Lisboa manda-me, de boas festas, essa Grândola porque o pai tinha estado no Cascais Jazz e aparece numa fotografia a olhar para Charlie Haden (também me manda a fotografia). A sintonia cósmica é tal que quando entram os sopros julgo ouvir uma nota balcânica. Sábado, com a alegria e o cigarro de sempre, Ð vem pôr-me no táxi para o aeroporto, não vá o motorista achar que sou uma turista sem amigos. Isto, claro, apesar de os taxistas sérvios serem meninos comparados com os de Lisboa. Asseguro a Ð que no fim de semana vai nevar, ele ri da minha autoridade no assunto, fecha a porta do táxi e fica a ver-me arrancar. Eu fico a vê-lo cada vez mais pequeno. (Até cair nos braços de Ð não me passa pela cabeça cair nos braços de Ð, mas pela primeira vez ainda estou a pensar nele quando ele já saiu de vista). Belgrado-Sarajevo são 45 minutos de viagem a tão baixa altitude que podemos observar a passagem da planície sérvia para as montanhas bósnias como se de súbito o mundo se levantasse num movimento interminável. Uma imagem de contornos esfumados, com a cor e a consistência de um desenho a carvão. O carvão são as árvores, o papel é a neve. Depois, o avião desce, curva para a esquerda e começa a percorrer o vale de Sarajevo na última hora de sol. Tudo me espanta, a paz alpina de casinhas, o rio incandescente, os prédios de espelho, talvez porque a última vez que aqui vim foi num avião militar, a cidade estava cercada, entrei no Holliday Inn à luz de velas, e entre o aeroporto e o hotel só havia uma coisa a fazer: acelerar. Até o Oslobodenje tem uma fachada de espelho, vejo do lado direito. O jornal que nunca deixou de sair em três anos e meio de cerco, nem um só dia, agora é propriedade de um homem de negócios e vizinho de um outdoor da Coca-Cola. Sarajevo estende-se como uma grande recta ao longo do rio Miljacka, montanhas de um lado e do outro e ao fundo. Lá mais para o fundo começa o pedaço austro-húngaro, palacetes e pracetas, igrejas e pontes, incluindo a graciosa Ponte Latina junto à qual foi assassinado o arquiduque Franz Ferdinand, que assim, tão involuntariamente, teve para sempre o seu nome associado ao início da Primeira Guerra, em 1914. Na esquina em frente há um mini-museu onde podemos ver, por exemplo, como as armas do assassino — Gavrilo Princip — eram mínimas. Um revólver menor do que a palma da minha mão. Ele próprio parece um homem pequeno, de olhar melancólico. Um sérvio da Bósnia, tão anti-austríaco como anti-otomano, que acreditou febrilmente numa futura Jugoslávia. Paralela ao rio, mais para dentro, está a avenida a que toda a gente ainda chama Titova. No monumento da Chama Eterna, sigo pela rua pedonal. De um lado, a megastore da Benetton em saldos; do outro, uma feirinha com carrocel, baloiços, quiosques de doces; por cima, pontudos domos ortodoxos contra o lusco-fusco; e finalmente a montanha nevada, cheia de janelas acesas, que há dezanove anos era o antro dos snippers. Há dezanove anos, cá em baixo, também era Dezembro mas não havia meias vermelhas, bonecos de gengibre, luzinhas a piscar. A vida era urgente, furtiva, subterrânea, uma aposta contra o atirador. Agora olho os bonecos animados deste postal de 2014 que são os bósnios atafulhados de casacos, de golas, de barretes, de luvas, com grandes botas a patinhar na neve, porque na neve andamos todos como bonecos (ou pinguins, diz aquele velho amigo de Ž, o do cão encantador), e penso que cada um deles sabe tudo sobre a guerra, e que isso jaz em cada conversa, como a morte sob a neve. Eles estavam cá, e cá estão. MARX, leio em letras garrafais. Depois por baixo: CLOTHES FOR THE PEOPLE. Como a Benetton, só que Marx. A catedral católica, pouco adiante, tem um João Paulo II de alumínio no pátio. Foi inaugurado em Abril, para celebrar a sua passagem a santo. E no prédio ao lado, em letras garrafais, leio SREBRENICA. Não me lembro ao certo como conheci David Rohde em 1995, talvez tenhamos partilhado um transporte entre Sarajevo e Mostar, mas estou a ver a cara de escuteiro dele, correcto, discreto. Aos vinte e tal anos, nesse Outono-Inverno, já era o repórter que meses antes revelara o massacre de Srebrenica nas páginas do Christian Science Monitor. É sobretudo disso que me lembro, a densa sobriedade com que me contou como chegara a Srebrenica em Agosto, um mês depois das tropas do sérvio bósnio Ratko Mladic, e encontrara ossos de bósnios muçulmanos. As primeiras testemunhas apontavam para uma morte em massa, e quando a investigação acabou a Europa estava perante o seu maior massacre desde o Holocausto: mais de oito mil bósnios muçulmanos, separados das mulheres e dos filhos e executados, sob o comando de Ratko, e perante a total incapacidade dos capacetes azuis da ONU, um pelotão de holandeses que estavam lá para proteger os civis e hoje hão-de vaguear em qualquer inferno quando fecham os olhos. Penso em David Rohde por causa deste cartaz agora, na praça da catedral, anunciando um trio de imagens de guerra (Srebrenica, 1995; Sarajevo, 1992-1996; Síria, em curso). E porque, numa daquelas noites de cerco a Sarajevo, num bar onde alguém tocava trompete, foi Rohde quem me apresentou a Ž. Eu já o vira por aqui, era difícil não reparar nele, tão alto, tão mudo, tão zangado, franja sobre os olhos, nuca rapada. Duas horas depois já não me parecia tão alto, tão mudo nem tão zangado. Separámo-nos logo na manhã seguinte mas em Janeiro, de volta a casa, eu estava grávida. A exposição sobre Srebrenica, Sarajevo, Síria começa no elevador da galeria, frases que se prolongam na parede do terceiro andar, quando a porta abre: milhares de nomes, branco sobre preto. Depois caras, centenas de caras. Depois, ossos, o puzzle do DNA para dar sepultura aos mortos, ciência aplicada à tragédia grega. Antropólogos forenses penaram a combinar crânios, tíbias, ilíacos e falangetas das valas comuns de Srebrenica. Um filme mostra uma das mulheres no momento em que lhe dizem que há noventa e nove e algo de hipóteses de aquele ser o marido dela (restam os ossos e o casaco). Filmagens de 1995 mostram os incapazes de capacete que a ONU não julgou necessário reforçar. Ratko aparece a rosnar para a câmara, vamos lá vingar a Sérvia. Isto aconteceu na Europa, e toda a gente deixou. Todos mataram, todos morreram, todos tiveram os seus loucos, os seus déspotas, sérvios, croatas, bósnios, mas em nenhum lugar da ex-Jugoslávia se morreu como na Bósnia nos anos 1990, onde sobretudo sérvios mataram sobretudo bósnios de origem muçulmana. E até hoje, em Sarajevo, muita gente faz questão de distinguir entre sérvios da Sérvia e sérvios da Bósnia, porque estes últimos é que eram vistos como nacionalistas radicais, associados a paramilitares, milícias e snippers. A propósito de snippers, e porque estou prestes a encontrar o autor, eis o poema completo:Podia ser a Pequena História do Cerco de Sarajevo, mas no caso de Faruk Šehic é a Pequena História do Cerco de Bihac (extremo noroeste da Bósnia e Herzegovina), em qualquer dos casos não menos de três anos de cerco. Quero pensar em Faruk antes da guerra, este rapaz ainda vagamente louro que agora entra num bar do bairro otomano de Sarajevo por gentileza para comigo, porque estou na cidade, porque temos um amigo comum, e tudo isto apesar de ele estar com uma gripe daquelas. Sim, este rapaz mais ou menos da minha idade mas há vinte e tal anos, quando, imagino, se poderia dizer, sem dúvida, que era um rapaz louro, um rapaz com uma profissão, um rapaz que estudara Veterinária em Zagreb, bósnio mas formado na Croácia porque, claro, as pessoas iam e vinham, uma moeda, uma língua, um país, e além disso, para quem é de Bihac, Zagreb era um pulinho. Ele ia tratar cães, gatos ou cavalos, quem sabe, os anos 1990 apenas começavam. E então começaram. Primeiro, em 1991, independência da Eslovénia; guerra e independência da Croácia. Depois, em Abril de 1992, a Bósnia. Até hoje, neste bar pesado de fumo, Faruk sabe o dia exacto em que voltou a casa, 15 de Abril de 1992. Fácil de saber, porque a 21 de Abril os sérvios atacaram Bihac e ele já estava no exército bósnio como voluntário. Em Maio, a cidade ficou cercada pelos sérvios. E durante 45 meses — quase quatro anos — este rapaz manteve-se em Bihac, ao comando de 130 homens. Quando foi ferido por um morteiro no pé passou meio ano de muletas, nada, um arranhão, comparando com a morte à volta, os amigos que perdeu. Então, depois da guerra, cut the bullshit, toda a tralha non sense, as metáforas de quando ia ser um poeta louro. E além dos poemas começou a escrever contos, uma prosa decomposta, fragmentária. Foi publicado, traduzido, premiado. Teve uma namorada meio-sérvia em Belgrado. Sim, mais fácil estar com um sérvio de Belgrado do que com um sérvio daqui. Mas só acredito na responsabilidade individual, diz ele, não há culpa colectiva. Bairro otomano, turco, muçulmano, como chamar à Bašcaršija, este pedacinho de Sarajevo no fim da recta, quase colado às montanhas: casinhas de madeira com lâmpadas orientais, serviços de café, briquebraque para os turistas que se alojam em hostels chamados Franz Ferdinand, e fazem o tour dos túneis, do cerco, dos snippers, suvenires de guerra. Mas à noite há bares cheios de gente que estava a nascer quando a guerra acabou, raparigas muçulmanas com lenço/sem lenço, com rapazes/sem rapazes, a fumarem/sem fumarem, entre uma bandeira da Palestina e um ecrã de futebol. Podia ser Ramallah, Beirute ou o Cairo. Neva toda a noite. Domingo de manhã, os carros são contornos brancos nos passeios, difícil distinguir o passeio da estrada. Um repórter veterano, antigo parceiro de Ž, leva-me pelas montanhas. Vejo então Sarajevo de onde a viam os atiradores, com os seus restos de castelos otomanos, o seu casario, as suas florestas, como se um cozinheiro celeste tivesse derramado açúcar-glacé por cima de todos nós, e dos séculos. Foram os dias mais felizes da minha vida, diz-me a melhor amiga de Ž em Sarajevo, sobre os últimos meses do cerco. Ela passara os primeiros meses sem dormir, a inventar tudo o que era possível, teatro, concertos, leituras. Em Abril de 1993 veio Susan Sontag, ficaram amigas, Sontag voltou em Julho, fizeram aquele Godot no pátio do Teatro Nacional de Sarajevo, junto ao qual estou a dormir, vejo-o da janela do quarto. Veio 1994, o cerco continuava, era preciso continuar. Até que em 1995 ela se viu com trinta e oito anos e um amante. Queria ter um filho? Talvez, antes precisava de respirar. Foi ter com Sontag à América, visitou amigos, era para ser uma viagem de meses mas em Maio ela já sabia, sim ia ter um filho, ia voltar. Tal como Faruk, sabe o dia exacto em que voltou a casa, 22 de Maio. Na manhã seguinte o amante veio e ela acredita que engravidou nesse dia mesmo. A filha nasceu em Março de 1996, primeiro mês depois do cerco, o que quer dizer que a gravidez coincidiu com os últimos nove meses de cerco. Por isso foram os dias mais felizes da sua vida, o bebé ia protegê-la de tudo. Segunda-feira, 29 de Dezembro, continua a nevar. Passeio ao longo do rio com o filho de um soldado que Ž fotografou em 1993, e a que depois voltou várias vezes. Atravessamos a Ponte Latina, e voltamos à direita para o parque do coreto (que aqui se chama pavilhão musical). Teria mais de cem anos, não fosse ter sido bombardeado e reconstruído, mas a neve fica-lhe bem. O meu parceiro de caminhada tem 27 anos. Todas as suas primeiras memórias são de guerra. Aos cinco já se escondia de snippers e sabia distinguir granadas. Volta e meia tinham de ir para uma cave a noite inteira, todo o bairro ia. Muitos prédios tinham abrigos, vinha do tempo da Jugoslávia. Ele ia com a mãe e a irmã bebé, porque o pai estava a combater, operava um lança-chamas, ficava fora durante meses, voltava por um mês, às vezes trazia latas de comida. Às vezes também conseguiam comida da ajuda humanitária, e a mãe tinha uma horta. As pessoas escavavam para encontrar água e toda a gente ia com recipientes, por trás das casas, encostada aos prédios. As crianças sabiam que não podiam brincar no meio dos pátios. A escola também era numa cave, mas ele ia às aulas quase todos os dias. Como quase sempre não havia luz, acendiam velas, candeeiros a gás e pedalavam uma bicicleta até fazer o rádio funcionar, só cinco minutos para ouvir as notícias, ora ele, ora a mãe. Em suma, o que ele sabia era que os sérvios atacavam e eles se defendiam: faz a tua coisa a cada dia e espera que a cidade não caia. À custa de tanto, Sarajevo não caiu. E aqui está ele hoje, três palmos mais alto do que eu, senhor dos céus. Não é metáfora, acaba de se diplomar controlador aéreo. Um ano a viver em Belgrado, começou nervoso, depois passou. Os responsáveis não eram aqueles, havia que pôr a guerra para trás das costas e ter a certeza de que não voltava a acontecer. Ter uma namorada sérvia ajudou, decerto a ambos. A guerra que ela vivera directamente era a das semanas em que a NATO bombardeou alvos sérvios em 1999. Quando ele lhe contou da infância em Sarajevo foi uma surpresa porque os livros na escola dela diziam coisas diferentes dos livros aqui. De resto, ele nunca teve um problema em Belgrado com o nome, claramente muçulmano. Tudo correu bem, voltou com um trabalho bem pago, raridade na Bósnia, onde o desemprego é o principal problema, num sistema tão corrupto que ele nem vota. E fará parte da primeira geração de bósnios a controlar o espaço aéreo da nação, até agora nas mãos de sérvios e croatas, fifty-fifty. Há um mês, Sarajevo tomou conta da metade inicial, 10. 000 metros, em Fevereiro recebe a segunda metade. Ele chegou no momento certo e descobriu que tudo o preparara para isso, a pressão de um trabalho onde não pode haver erro, dos mais difíceis do mundo. Tudo desde o cerco, numa rua de Sarajevo onde metade dos amigos de infância se tornaram junkies, numa casa onde o pós-guerra devolveu um pai alcoólico. O filho resume isto de forma implacável, diz que teve de assumir o controle das coisas muito cedo, e desde então nunca deixou de o fazer. Um dia avisou o pai de que o mataria se voltasse outra vez a casa embriagado, o pai desapareceu uma semana mas nunca mais bebeu. Agora está tudo ok, tanto quanto depende dele. Arranjou o seu próprio apartamento. Não vai à mesquita, é ateu. Continua a namorar a rapariga de Belgrado, ela vem para a passagem de ano, ele ficará a morar aqui, é certo. Adora a adrenalina do que faz, todos os dias aviões diferentes, a diferentes altitudes, a diferentes velocidades, que não podem chocar, ou entrar numa daquelas nuvens com trovoada. O trabalho dele é pensar depressa. Terça, 30 de Dezembro: também nevou aqui. Branco ao aterrar, branco até à entrada de casa. Tenho de me agarrar ao braço de Ð para não cair nos passeios. Ou não tenho, mas é muito melhor. Gosto daquele velho amigo de Ž (o do cão encantador). Diz coisas tão inesperadas para um sérvio como ter sido a favor das bombas da NATO sobre os alvos de Miloševic (apesar dos erros, apesar dos erros, incluindo um hospital). A capacidade auto-crítica destes sérvios só se compara ao humor negro dos bósnios, que fazem da morte a mais escandalosa anedota. Mas nada é mais escandaloso, mesmo. (E viciante? Toda uma bibliografia sobre como a guerra pode ser aditiva, toda uma medicina, endorfinas, dopamina. A urgência, a intensidade, a alucinação. A segunda oportunidade que é a compaixão? A certeza de, enfim, ter um coração? Ð sabia que o assunto me interessava, era esse o assunto que levava a Ž: a guerra como única forma de estar vivo. )Toda a gente fuma três maços por dia em Belgrado, em virtualmente todos os lugares fechados, incluindo o elevador do meu prédio. O tabaco é barato, as rendas são baratas, a cidade tem dois rios e os homens são grandes. Do que entendi até agora parece que o único impedimento de Belgrado é que se eu beijar uma mulher na rua dá insulto, e homem com homem dá hooligans. Ó gente viril, é mesmo isso, não basta Putin? Se os hooligans não têm objectivo, qual é o objectivo dos não-hooligans? Cura, limpeza, salvação? Hitler era um homossexual reprimido. Matou seis milhões mas manteve-se virgem. Isso dá-lhe créditos no inferno?Já agora, em que inferno penará Arkan, que chegou a comandar uma claque do Estrela Vermelha quando já tinha uma sólida carreira de bandido internacional, e depois fez dos seus hooligans a mais temida milícia dos Balcãs, raptos, torturas, execuções, extorsões? Fascinante imaginar as conversas dele com deus quando se refugiava num mosteiro ortodoxo com os seus tigres armados, todos bem acolhidos, quem sabe até o seu tigre bebé. Mais um rapaz de Dedinje, Arkan, mas uma geração antes de Ž. A única vez que se cruzaram foi quando Ž o fotografou no instante da morte, coincidência raríssima na história da fotografia. Porque, por acaso, às cinco da tarde de 15 de Janeiro de 2000, Ž estava no foyer do Hotel InterContinental de Belgrado à espera de alguém. Como não vinha para fotografar tinha só uma pequena câmara na mochila, com um filme já a meio, e pegou nela discretamente ao avistar o gangue de Arkan: os homens que o guardavam, a interacção com tudo em volta. Minutos depois os assassinos entraram no seu campo de visão. Em 38 tiros, três foram fatais, boca, têmpora, olho. A última imagem de Ž capta o momento em que a senhora Arkan — Ceca, inflada diva do turbo-folk — vem a correr da loja onde fazia compras. Depois, o filme acaba. Ž publicou as fotografias, com uma curta declaração sobre o acaso que o levara ao hotel, mas recusou-se uma vez mais a dar entrevistas. Anos de especulação mundial. Uns viram nisso uma ligação de Ž ao assassinado, outros uma ligação de Ž aos assassinos. Os acasos têm péssima fama. A segunda vez que vi Ž, em 2002, ele contou-me como o caso Arkan gerou nele uma repulsa que o afastou da ex-Jugoslávia para sempre. Estávamos bem longe daqui, numa Ramallah invadida por tanques israelitas, sob recolher obrigatório. Não lhe contei o que acontecera da primeira vez, não valia a pena. Eu decidira sozinha, e neste fim de 2014, em Belgrado, brindo a isso de nenhuma portuguesa ainda ter de abortar clandestinamente. de alperce: amanhã, antes de o ano acabar e subirmos ao Kalemegdan, vou dizer a Ð que não consigo reconstituir a história de Ž. Cada vez tenho menos certezas sobre ele, o que provavelmente significa que ele será cada vez mais ele próprio. Portanto a história continua, Ž só decidiu desaparecer no mundo, como o seu herói J. D. Salinger. Mas eu também não gostaria de escrever a história de Salinger contra o seu próprio silêncio. Uma banda de outro planeta ataca numa antiga igreja transformada em teatro, clube, bar. Eu achava que ia só ouvir jazz, mas em Belgrado nunca é tão simples. Eles têm um DJ, eles misturam Marvin Gaye com música iraniana, eles querem que a gente dance. E quando vou lá perguntar se já gravaram um disco dizem que não estão interessados, que é só pelo gozo de estarmos todos vivos, ao mesmo tempo, aqui. Coitado do Kusturica. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Quem?
REFERÊNCIAS:
Michael Ondaatje: a memória, essa paisagem inventada
Chamam-lhe um esteta. A contenção ajuda-o a fazer uma literatura onde o não dito sublinha uma comovente densidade humana. Em 2018, Michael Ondaatje, 75 anos, canadiano de muitas geografias, saiu da sua reclusão para receber o título de melhor Booker de sempre com O Paciente Inglês e lançar um novo romance, A Luz da Guerra. (...)

Michael Ondaatje: a memória, essa paisagem inventada
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Chamam-lhe um esteta. A contenção ajuda-o a fazer uma literatura onde o não dito sublinha uma comovente densidade humana. Em 2018, Michael Ondaatje, 75 anos, canadiano de muitas geografias, saiu da sua reclusão para receber o título de melhor Booker de sempre com O Paciente Inglês e lançar um novo romance, A Luz da Guerra.
TEXTO: Quando Alice Munro ganhou o Nobel em 2013, um jornalista canadiano escrevia um artigo em que falava dos outros nobilizáveis canadianos — Margaret Atwood e Michael Ondaatje — e dizia que um era o alfa e o outro o ómega das letras do Canadá. À imagem pública de Atwood contrapunha-se a privacidade de Ondaatje, o “guru reclusivo”. Cinco anos depois, é esse homem quem está sentado na última mesa de um restaurante de Toronto. É um lugar onde se ouve jazz, as paredes com réplicas de obras de arte, cartazes de filmes, o som de copos e talheres, um frenesim invulgar ao meio-dia num qualquer restaurante do Sul da Europa. Estamos em Toronto e ali o almoço é cedo. Esse homem toma notas num caderno. Cabeça baixa, os cabelos brancos no desalinho de sempre, e o olhar azul quando se levanta para saudar quem o tirou do seu sossego no final de um ano “agitado”. A palavra é dele. Usa-a para falar de 2018. E ri-se. O homem recatado não é anti-social. Michael Ondaatje está perto da sua casa em Toronto, num bistrô situado num dos poucos edifícios que resistiram à euforia de construção de torres de vidro e aço na zona oeste. Fala-se circunstancialmente de política, de uma fotografia em criança do primeiro-ministro do Canadá, Justine Trudeau, ao colo de Fidel Castro; contam-se as boas livrarias da cidade, fala-se da ideia de fingir a realidade que atravessa os livros deste canadiano nascido no Sri Lanka em 1943, autor de poesia, prosa, ensaio, estudioso de Leonard Cohen, curioso do jazz e de todas as artes. É este o homem saído da reclusão, agora para promover novo romance, A Luz da Guerra, mas sobretudo para receber o prémio de melhor Booker de sempre com O Paciente Inglês. Publicado em 1992, o romance que conta a história de quatro pessoas fechadas numa vila italiana na II Guerra ganhara então o prémio empatado com Sacrated Hunger, de Barry Unsworth. Anthony Minghella adaptou-o ao cinema em 1996 e ganhou nove Óscares. Parecia que o filme se sobrepusera ao livro, até que o Booker Prize celebrou 50 anos e considerou O Paciente Inglês o melhor Booker de sempre. Ondaatje está feliz. Acha que foi o livro da sua libertação, mas mais preocupado está com A Luz da Guerra, outro romance com acção no final da II Guerra. Desta vez em Londres e outra vez sem que a guerra seja o centro. É mais o abandono e a sobreposição de memórias transformadas em grande voz narrativa. Nele, Nathaniel olha para a sua infância. Em 1945, tinha 14 anos quando os pais saíram misteriosamente da sua vida e o deixaram, e à irmã, aos cuidados de um homem bizarro, o Traça, amigo de outra figura pouco ortodoxa, o Flecheiro, mulherengo, entre outras características, que um dia conhece Olive. Ela aparece de forma fugaz, mas muda a percepção do mundo dos dois irmãos. Em A Luz da Guerra há uma personagem, Olive, uma russa etnógrafa, que apresenta como alguém com muitas paisagens dentro. Isso parece válido para si. Nasceu no Sri Lanka, viveu em Londres, depois em Toronto, tornou-se canadiano e as suas origens parecem conter muitas nacionalidades: holandesa, senegalesa, tamil, diz-se até que portuguesa. Além disso, esse sentido de lugar está presente em todos os escritos. E lugares diferentes. Sim, é verdade. Os lugares são a minha âncora. De outra forma a história não acharia um caminho. Para isso, faz pesquisa, mas inclui a sua experiência pessoal. Faço pesquisa, sim. Quanto à experiência pessoal que aparece nos livros, é difícil perceber de onde vem e para onde vai. Em Running in the Family [1982], baseado na minha família no Sri Lanka, falo de tias e de tios, irmãos e irmãs; há coisas da minha vida que depois são ficcionadas. Por exemplo, o retrato da minha avó ocupa 25 páginas, mas está mais empolgante do que foi de facto, para que ficasse mais vívido e fantástico. Escrevemos um livro que queremos que as pessoas leiam e exageram-se certos aspectos. A experiência torna-se ficcional, de certo modo. Outro exemplo, em Cat’s Table [2011] conto a viagem de barco de um rapaz desde Colombo [Sri Lanka] até Londres. Fiz essa viagem e lembro-me de estar no navio, de passar por todos aqueles portos, pelo Canal do Suez, mas não me lembro de muito mais a não ser de dois amigos, mas também não me lembro muito bem deles, por isso tive de inventar as suas vidas e inventar o resto das pessoas. Está a descrever um processo de escrita. Como chegou a ele?Isso não é planeado. Falando ainda de Cat’s Table, achei que tudo iria estar centrado no narrador. Há um rapaz num barco, o que já de si é dramático; depois ele conhece duas pessoas que são os seus novos amigos e isso resulta em aventura. Um pouco como o novo romance. É um livro que parece ser sobre abandono, mas torna-se uma aventura, porque há duas crianças deixadas sozinhas pelos pais. O que pode parecer assustador é também libertador. Desde que escrevo prosa, ou seja, desde The Collected Works of Billy the Kid: Left-Handed Poems [1970] percebi o que era a invenção. Nunca tinha estado no México e tive de inventar uma paisagem, e a melhor crítica veio de um tipo no Texas que se interrogava porque é que um canadiano estava a contar a verdadeira aventura de Billy the Kid. E era tudo ficção. Vi muitos filmes em criança e isso terá tido efeito, claro. Mas tudo começa com alguma informação factual e nomes verdadeiros e depois torna-se um drama. Voltemos a Olive e às paisagens que ela traz consigo. . . Olive apareceu-me assim. Muitas vezes conhecemos uma pessoa que percebemos que traz consigo uma paisagem, mas ela representa muitas. No seu caso, que relação tem com a sua paisagem inicial, o Sri Lanka?Absolutamente essencial. E é uma influência ainda maior porque quando vivia lá ainda não era escritor. Foram os primeiros 11 anos da minha vida e estava apenas a receber tudo sem pensar. Foi como ter um passado fiel à vida sem outros vectores a interferir. Quando voltei lá, aos 30 anos, andava pelas ruas e elas estavam cheias dessas histórias. E escrever sobre um tio, numa ou noutra perspectiva, foi ouvir coisas fantásticas. Enquanto escritor é inevitável experimentar as paisagens de forma diferente?Talvez. Nunca pensei nisso, mas é verdade que por não ser escritor até aos 11 anos tudo era muito real e vivia tudo de forma muito real. A minha Londres, a Londres que depois conheci, existiu dez anos depois da que pus no último romance e tive de olhar para trás e olhar para velhos mapas, falar com pessoas que trabalhavam no rio para perceber como seriam; que canal levaria a uma certa abadia. O interesse não acabava. Descobri que no século XVIII havia mais de 200 profissões no rio. E não pensamos muito nisso; pensamos no frio, na neblina e noutras coisas, mas 200 profissões. . . Isso traz muita informação acerca do que era a cidade. Tendo essa relação com os lugares, o que faz quando chega a um sítio novo? Vai descobri-lo no seu potencial de escrita?Enquanto estou num lugar, não estou à procura de encontrar informação para um livro, a não ser que esteja a fazer qualquer coisa específica. Enquanto estava no Sri Lanka, a fazer pesquisa para Anil’s Ghost [2000] voltei a passar tempo com familiares e eles tinham cada um a sua história, piadas, fábulas. Adoro ouvir aquilo, mas dessa vez tentei não passar muito tempo com eles. Eu queria escrever sobre o Sri Lanka e não sobre histórias de família. Passei muito tempo com médicos no Norte do país, em diferentes hospitais. Estava a ver e a ouvir e ainda não tinha uma história; sabia que iria envolver médicos e queria vê-los, saber como se relacionam, como descansavam, o que ouviam na rádio, o que escutavam enquanto faziam uma cirurgia. Eu ali era apenas uma testemunha sem planear, mas sabendo que podia usar aquilo no livro. Isso dá um envolvimento, uma orla à personagem. A personagem é o modo como se comporta, o curso das suas acções, o ambiente, a que horas se levanta, se tem ou não paranóias, quais. . . Fala-se muito de um sentido de verdade nos seus livros. É conferido por esses detalhes?Não sei. Sei apenas que a paisagem é importante para eu construir um livro; não tanto por uma questão de forma, mas, por exemplo, para saber como alguém se comporta durante uma refeição. O tom da conversa, não o que dizem, mas uma irritação ou qualquer coisa assim. É por isso que faço pesquisa. Por exemplo, escolhi esta mesa por achar que seria calma e desde que estou aqui percebi que este casal ao pé de nós se está a divorciar. Devemos mudar-nos? Tudo isto me atrai. É muito agradável descobrir coisas enquanto se escreve. Como define a sua identidade? Isso é importante para si?As pessoas no Canadá preocupam-se muito com identidade [ri-se], com aquilo que representamos. Não me sinto representante de nada, talvez por ser uma grande mistura. Quando escrevi sobre o Sri Lanka em Anil’s Ghost, não quis ser um representante da situação política de lá, porque há muitos escritores que vivem lá e escrevem sobre isso. Mas sempre que se fala de si é tentador falar de um expatriado com alguma coisa a dizer sobre imigração, ou seja, a sua identidade é politizada. Como lida com isso?A vida é mais complicada, mais variada e densa do que ser-se da Nigéria ou da Holanda ou do Sri Lanka. Dito isso, queria referir uma escritora daqui, Dionne Brand [poeta canadiana, natural de Trinidad e Tobago]. Ela tem um livro novo, The Blue Clerk [2018], é um longo poema, arte poética e também uma memória que capta o que é uma imigrante das Índias Ocidentais no Canadá, a viver no Norte de Toronto. É um grande livro. Fico contente por ela ser uma representante, para mim, e através dela entendo o desejo de termos representantes, mas enquanto escritor não quero ser. Pensemos em alguém, como [Philip] Roth, que é um representante de um certo tipo de escritor judeu de Nova Iorque. É curioso referir isso, porque li um crítico a comparar o narrador do seu romance com o narrador de Nemesis, de Roth. Concorda?Sério?! Não vi isso, mas acho que Roth é mais oratório [gargalhada]. O meu é um pouco mais secreto. Cresci com a literatura americana. Acho que nunca teria escrito um romance, se não tivesse lido Faulkner. Porquê?A linguagem é determinante. Há uma abordagem jornalística, como se nada fosse difícil na sua forma de escrever. Também já o ouvi dizer que nunca teria sido escritor, se não tivesse vindo para o Canadá. Porquê?Talvez tivesse, mas seria um escritor muito diferente. Quando estudava em Inglaterra, dos 11 aos 18, o sentimento era o de que o que decidisse ser aos 18 anos era o que seria para o resto da vida. Ou se estava dentro de um sistema que levaria à escrita, ou não havia como quebrar isso. Isso para mim era um problema. Eu lia muito e quando vim para o Canadá comecei a pensar que queria escrever; e queria escrever poesia. Isso nunca me ocorreu em Inglaterra, porque os poetas estavam envoltos em mármore. Sentiu-se mais livre aqui. Muito mais livre. E a universidade em Inglaterra era muito diferente. Neruda dizia que na Europa já tudo tinha sido escrito, todas as ruas estavam nomeadas, todas as árvores tinham um nome e que na América do Sul não havia ainda nomes. Isso também é verdade para o Canadá, não havia o sentido de um mito já escrito, mapeado. O mito continua a ser escrito?Ou tem sido construído desde os anos 50. Houve bons escritores antes, mas era difícil imaginar o que era viver longe, na vastidão. Escritores como Sinclair Ross [1908-1996], por exemplo. Escreveu As For Me and My House [sobre a vida numa grande pradaria do Midwest do Canadá durante a Depressão], mas era só isso. A vida de uma família numa pequena cidade e a paisagem. Nos anos 50, que foi quando cheguei aqui, já havia Hugh MacLennan ou Leonard Cohen, que escreveu um romance sobre Montréal [The Favorite Game]. Antes, todos os livros eram sobre outros países. Margaret Atwood tem escrito sobre a identidade literária canadiana. Há uma literatura que se pode definir enquanto literatura canadiana?Não sei [risos]. Fiz uma antologia de contos canadianos, From Ink Lake, mas não consigo definir o que possa ser essa literatura. A Atwood tem um ensaio em que refere o papel da paisagem, das paisagens perigosas, mas acho que isso é sobre outro tempo. Quando fiz aquela antologia, pus, de maneira perversa, quase toda a gente que tivesse contacto com o estrangeiro, ou imigrantes. Há aqui gente de todo o lado. Mas até aos anos 50 eram quase todos romances intelectuais, uma tradição escocesa, inglesa presente em todo o lado. Lembro-me de The Woman Warrior e de China Men de Maxine Hong Kingston. Foram importantes naquele tempo; e ainda um livro de Henry Roth, Call it Sleep. Eram dos EUA, mas muito importantes aqui. Falemos de 2018, ano especial para si. Um ano agitado. A Luz da Guerra teve óptimas críticas, foi finalista do Booker, entretanto O Paciente Inglês foi considerado o melhor Booker de sempre. Fico angustiado quando sai um livro novo. Há sempre ataques. Os ingleses não gostaram muito deste. [Os ingleses] são muito territorialistas, não gostam que alguém de outro país escreva sobre um assunto inglês. Não se pode dizer que este romance tenha sido escrito por alguém que não pertence a esse território. É quase inglês. Eu sei. Quando era estudante, sentia-me um pouco, mas era estranho. Mas este ano, nas comemorações dos 50 anos do Booker, estive num evento com Ishiguro [Kazuo Ishiguro]. Um dos tópicos era os desafios do processo criativo e o papel das outras artes. A música, a pintura. . . Ishiguro queria ser músico. Escreve canções, toca guitarra. Outro dos tópicos eram as influências da infância. Ele foi para Inglaterra aos quatro anos e eu tinha 11. E crescemos com romances ingleses que hoje seriam considerados racistas. Uma das questões que levantámos foi a de como pudemos aceitar isso como boas histórias de aventuras. E ele disse que gostava de Sherlock Holmes, porque era tão educado, tão delicado. Duas pessoas, num palco, a falar de como criam e de como a Inglaterra e as artes as moldaram. Pois, falar de música ou de pintura é estimulante. Também gosto de falar sobre literatura, mas acho que talvez seja mais influenciado por outras artes do que por literatura. Não me sinto influenciado por Ishiguro ou DeLillo. Leio-os. Ishiguro disse uma coisa interessante sobre música: que o que inveja na música é a voz, porque na música a voz não é conteúdo e na literatura é. Uma canção que termina em crescendo. . . isso não pode ser feito em literatura. Partilha essa ideia?Sim, o crescendo tem de lá estar, mas de outra maneira. Imaginemos uma canção de Van Morrison ou de Frank Sinatra, é quase o som da voz que se acrescenta à emoção. As palavras têm de fazer isso de outra maneira, penso. Talvez através do tom. E na literatura como chega a essa voz? Disse uma vez que não acredita que se tenha uma voz, mas que temos muitas vozes. Sim. Isso tem que ver com aquela ideia de [John] Berger de que não há um ponto de vista, mas muitos pontos de vista num livro. Em O Paciente Inglês tenho quatro ou cinco pessoas; é uma conversa de grupo e não um monólogo. O monólogo é limitativo para mim. A razão pela qual me interessa ser influenciado por outras formas de arte é porque através delas podemos expandir a nossa. Muitas vezes, quando estou a ter dificuldade com a estrutura, vou a uma ópera. Como é que isso o ajuda?Põem-nos perante um novo tipo de regras. Podemos apenas cantar. Ou olhar para um quadro. Consigo resolver coisas a ver essas obras que não sou capaz de criar. E leio muitos livros antigos, de outras épocas, livros bem feitos. Como decide um início? Com a primeira frase?Começo e nunca sei como será a segunda página. Depende de como entro. Não tenho a certeza de onde veio a primeira frase deste livro, mas a dada altura ela ali estava. “Em 1945, os nosso pais foram-se embora e deixaram-nos ao cuidado de dois homens que podiam muito bem ser criminosos” [diz de cor]. No início tinha apenas um homem e depois veio a filha e a história começou. Para mim é sempre mais entusiasmante escrever sem saber para onde raio é que a história irá a seguir. Em A Luz da Guerra estamos em 1945, no mesmo período de O Paciente Inglês. É inevitável a comparação, porque o romance de 1992 voltou a ser lido, falado. São dois livros em períodos de guerra, mas sem que a guerra seja o tema. É mais o modo como a guerra interfere no mundo doméstico, quotidiano. Sim, também não acho que sejam dois romances de guerra. Neste [A Luz da Guerra], a guerra é mais doméstica. Em O Paciente Inglês também é no sentido em que ela se passa fora da vila onde estão as personagens. Mas acho que a guerra na minha escrita é mais forte em Anil’s Ghost [romance de 2000, centrado na guerra civil que devastou aquele país nos anos 80]. Eu estava frustrado com o que se estava a passar no Sri Lanka. Sabia o que se ia passando numa perspectiva jornalística, outra bomba a rebentar e eu sem saber o motivo ou o contexto. Quis escrever sobre como seria estar no Sri Lanka durante esse período. Mas não estava lá e isso foi um problema e acabou por ser mais um romance histórico. Consultei muitos arquivos, falei com médicos, etc. E também por ter sido uma guerra tão brutal não quis tornar o livro um acto de violência: teria sido fácil fazer ali uma pornografia da violência. Foi falar da guerra sem descrever as mortes. Em Julho, confessou que não voltara a ler O Paciente Inglês. Já releu?Tive de o reler, entretanto. Achei que devia. Como foi a experiência? Estava muito preocupado. Foi interessante. Há cinco anos tinha lido Anil’s Ghost, porque ia estar numa universidade para falar dele e era melhor lê-lo. O interessante então foi redescobrir toda a pesquisa que fiz sobre arqueologia e ciência forense, e que, entretanto, esquecera. Fiquei impressionado com o meu conhecimento sobre ossos [risos]. Com O Paciente Inglês tive de o ler, porque alguma coisa acontecera com o livro. Só me lembrava das más críticas e estava preocupado: aquilo era bom ou não? E soou-me bem. Acho que podia ter cortado algumas coisas, porque sou um escritor mais estrito agora do que era. Mas achei-o bem, e variado. Incomoda-o que seja uma obra mais conhecida pelo filme do que pelo livro?Não. O filme tem a mesma estrutura e tornou-se a versão de outra pessoa da mesma história. Acho que me lembrava mais do filme do que do livro até o reler agora. Disse que foi um livro que o libertou. Para ser escritor?Eu era professor a tempo inteiro e enquanto escrevia livro lamentava não ter mais tempo para ele. As coisas resultaram e isso deu-me liberdade para escrever a tempo inteiro. Nesse sentido, libertou-me. E tornou-o um escritor conhecido em todo o mundo. Como lida com a ambiguidade, sendo um homem recatado e ao mesmo tempo um escritor público? Estar no Canadá ajuda. Dou-lhe um exemplo, eu e a minha mulher temos uma casa de campo, junto a um rio; os vizinhos mais próximos estão a uns cem metros e de cada vez que vou nadar passo por lá e eles acenam, mais nada. Quando souberam que ganhei o Booker agora com O Paciente Inglês, acenaram com um pouco mais de entusiasmo. Não incomodam. Qual foi a génese de A Luz da Guerra?Foi o primeiro parágrafo. Eu queria escrever sobre a Inglaterra, mas não sabia que livro seria. Comecei a escrever e imediatamente tive duas crianças e os pais delas. E depois os pais vão-se embora. Eu estava na Alemanha e alguém disse que estava a ensinar cinema a jovens estudantes, de dez, 12 anos e deram-lhes uma câmara com o desafio de fazerem um filme num dia. Perguntaram qual seria a primeira regra e ele respondeu: tirem-lhes os pais. É uma sentença, dá de imediato perigo e liberdade. Mas não sabia para onde ir, mais do que em qualquer outro livro. Mesmo em O Paciente Inglês eu estava com Hana [a enfermeira], depois chega o doente, depois Caravaggio [o italo-canadiano que trabalha para os serviços secretos britânicos], e depois Kip [o indiano sikh]. Neste livro tudo foi muito mais gradual, uma descoberta muito mais gradual da história. Foi sempre uma descoberta. Começa com a voz de Nathaniel, que de imediato põe o leitor diante de uma situação de abandono e da possibilidade do mal. Eu não estava a tentar escrever sobre o mal. Estava a tentar descobrir o que estariam aquelas pessoas a fazer; como a minha intenção em O Paciente Inglês era a de tentar descobrir o que estavam a fazer as pessoas naquela vila. É uma história de envolvimento. É quase sempre assim. Se eu soubesse qual era o enredo, iria sentir-me limitado no sentido em que já não estaria curioso. O que me mantém curioso é a invenção da história. O primeiro esboço é uma espécie de reconhecimento de território e depois, quando regresso a esse esboço, reescrevo e reescrevo, deito muita coisa fora, mas não tenho um plano. Não tenho a noção do conjunto, não sei qual será a última frase. Nem sequer sei qual será a segunda. O processo é o de uma permanente curiosidade. Tem uma grande preocupação com a estrutura, como se tudo se passasse à volta desse pilar. O que faço com o primeiro esboço é tentar descobrir para onde vai a história, quantas pessoas vão entrar. É um esboço muito cru. Mas a linguagem em que será escrito está activamente ligada à estrutura. Há uma cena determinante neste livro que não sei de onde veio, mas graças a Deus que apareceu. Fá-lo acreditar que Deus existe?[risos] Parece não é? Mas resulta de muita reescrita. Escreve à mão. Sim. Faço dois ou três esboços à mão. E é verdade que os ilustra?Sim, mas é apenas para me divertir. Se encontro um poema, junto. Parece bonito. Sim, são muito bonitos. Envio-lhe um. Mas a caligrafia é muito má. Consigo perceber, mas. . . Sobre este livro o crítico do Guardian diz que é como se W. G. Sebald escrevesse um romance de Bond. [Gargalhada] Li todos os livros de Bond quando era adolescente. E os dos Sebald?Mais tarde. Acho que não cheguei a ler Austerlitz, mas li os anteriores, que adorei. São como passos de dança. Essa comparação é tão estranha, imagine uma criatura nascida de Fleming e de Sebald!Conhecemos Nathaniel com 28 anos, quando ele diz: “Tenho agora uma idade que me permite falar disso, de como crescemos protegidos pelos braços de estranhos. ” Estamos nas sombras e nas luzes que incidem na memória, de como ela se constrói e transmuta. Ele acha que já pode lidar com a sua infância. Interessa-me ter um narrador duplo num livro. Temos a história do ponto de vista do Nathaniel criança e quase em simultâneo o de 28 anos a falar da mesma coisa — uma dança em simultâneo. Não é tanto transpor níveis de memória, mas como se Nathaniel estivesse a tentar farejar o que se passa quase como um cão. Devo confiar nesta pessoa? Gosto desta pessoa? Ela deu-me um biscoito. O que significa isso? E ao mesmo tempo ele chega como um escritor capaz de interpretar aquela cena que viu antes de uma maneira inocente. E vê-a quando já perdeu inocência. Gosto dessa dupla narrativa. Como se houvesse duas pessoas, duas cabeças, a falar. Não tive essa consciência quando estava a escrever, mas é o que se passa com este livro, a dupla percepção. Jogar com a memória é algo mais ficcional. Gosto da ideia de ter a memória como voz. Dei essa voz a Nathaniel; Nathaniel tem a memória como voz e acho que aconteceu o mesmo com Hana, em O Paciente Inglês. Interessa-me enquanto forma, a forma de uma falsa memória. Na primeira parte do livro estamos na educação sentimental e estética de Nathaniel. Ouvimos falar de Mahler e de uma palavra em particular, “schwer”: “Mahler punha a palavra ‘schwer’ junto a certas passagens das suas partituras musicais. Querendo significar ‘difícil’, ‘pesado’ (. . . ). Disse que precisávamos de estar preparados para esses momentos, a fim de lidarmos com eles de forma eficaz, se de repente tivermos de apelar ao bom senso. ” Isto que parece valer para a vida também parece válido para a literatura. Sim, eu ouvia Mahler e estava curioso sobre essa frase. Para mim, a forma, o tom e o estilo estão sempre a mudar. É assim que escrevo. O que é verdade para uma sinfonia também é para um romance e para a vida?Sim. Acho que muitos romances ingleses são atonais. Eu tenho curiosidade pela variação e pelas possibilidades de exploração musicais. O sentido musical está presente, enquanto escreve. Nunca ouço música, enquanto escrevo. Tenho a certeza que influencia, como a dança ou a pintura ou qualquer obra de arte. Para mim, o que acontece em qualquer livro é sempre a descoberta de uma voz e do modo como uma voz pensa. Há, como em O Paciente Inglês, um mistério nunca resolvido. Normalmente não o quero ver resolvido. Não quero fazer sumários no fim. Odeio as obras que nos dizem: “E cinco anos depois, eles. . . ”De que modo a poesia contamina a sua prosa?Quando comecei a escrever prosa, quis escrevê-la não como poesia, porque sabia que não era, mas pela ideia de dizer menos como num poema, de ser sugestivo ou ausente ou deixar o resto com os leitores, o leitor ser o responsável pela colagem das cenas. A sugestão é importante. Enquanto escrevia este livro, fiz paragens para escrever poesia e nunca acabei o poema, mas era a necessidade de ir por uns tempos para outra forma e depois voltar. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Há muitos escritores, sobretudo poetas, que acham que a poesia não é bem literatura. Acho que é, mas acho que nem sempre é boa. Faulkner era um poeta terrível. Quando escrevo prosa, preciso de mais espaço. Quando comecei Billy the Kid, estava a escrever um livro de poemas e trabalhei nisso durante um ano e meio e de repente quis parar e comecei a escrever prosa pela primeira vez. E comecei a escrever cenas. Sobre tiroteios, uma travessia do deserto e isso deu-me mais espaço e aventura. Um poema é um poema, não é uma coisa épica. E não estava apenas a escrever, mas escrevia prosa, punha uma fotografia e aquilo começou a ser uma colagem, coisa que me interessa. E uma justaposição, mas é mais do que isso, é a tentativa de captar um tom. A ideia de estruturar é muito importante para mim na prosa que escrevi mais tarde. Vamos a nomes: Hana, Caravaggio, em O Paciente Inglês, Nathaniel Traça, Agnes, de A Luz da Guerra, Anil. . . Que relação tem com as suas personagens?Adoro-as. Tenho saudades delas. O fim dos livros é duro, sobretudo do primeiro, como Billy the Kid ou Rat Jelly [1973] e depois Running the Family, sobre os meus pais. Mas em The Skin of a Lion [1987, título retirado ao épico de Gilgamesh], o primeiro romance em que inventei toda a gente, no fim desse livro senti-me muito só, porque estava a perder aquelas personagens totalmente acabadas, como Hana, Caravaggio. E é esse o tom das últimas páginas, uma despedida. Mas depois Hana e Caravaggio voltaram no seguinte [O Paciente Inglês] e eu naquela altura não esperava isso. Talvez por isso sinta uma espécie de perda. Soube-me muito bem poder continuar com eles. Sinto-me muito próximo das personagens. Sinto-me muito próximo de Buddy Bolden [o cornetista de New Orleans a quem é atribuída a invenção do jazz, protagonista de Coming through Slawghter, 1976] mais do que de qualquer outra. Vivemos com eles em casa durante três ou quatro anos. É uma relação muito íntima, envolvo-me com eles. Está a escrever agora?Não, e é muito bom. Os últimos dias ao escrever um livro são muito tensos. Fico exausto.
REFERÊNCIAS:
Nós, as elites, não percebemos nada de nada
O eleitorado está-se a borrifar para aquilo que as elites lhe mandam fazer. Daí Trump. Daí Bolsonaro. Daí tantas lágrimas à minha volta. (...)

Nós, as elites, não percebemos nada de nada
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-29 | Jornal Público
SUMÁRIO: O eleitorado está-se a borrifar para aquilo que as elites lhe mandam fazer. Daí Trump. Daí Bolsonaro. Daí tantas lágrimas à minha volta.
TEXTO: Eu sei que muitos dos defensores portugueses do voto em Haddad estavam a ser bem-intencionados e sinceros. Sei que mesmo que Bolsonaro se venha a revelar um Presidente menos imprestável e fascista do que prometeu, a mera existência da sua linguagem racista, homofóbica e violenta é uma afronta à boa convivência democrática. Sei também que cada vitória de um líder autocrático no mundo representa mais um retrocesso no campo das democracias liberais. Mas também sei isto: as elites artísticas, intelectuais e jornalísticas têm de meter na cabeça de uma vez por todas que a sua influência sobre o povo, na hora do voto, é nula. Que os seus poderes de mediação e de persuasão, na era das redes, evaporaram-se de vez. Que ter escritores, comentadores, historiadores, músicos ou jornais a criar vídeos, e manifestos, e hashtags, e editoriais, e o diabo a quatro, onde do alto da sua imensa sabedoria tentam explicar ao povo brasileiro (como já haviam tentado explicar ao povo americano) em quem ele deve votar, é uma ridícula figura, por uma razão muito simples – aquele voto, o voto de dezenas de milhões de brasileiros e de norte-americanos, também é contra nós. Quando eu digo “contra nós” refiro-me a uma elite privilegiada, da qual eu próprio faço parte, e que ao longo dos séculos se convenceu de que a sua missão no mundo era desempenhar o papel social de porta-voz das minorias, dos descontentes, dos pobres, dos oprimidos, e que através desse movimento foi valorizando o seu próprio papel no mundo, assumindo-se como proprietária da boa consciência da humanidade, e acreditando que existia uma linha inquebrantável com o povo sofredor, que ela compreendia como ninguém. Só que já lá vai o tempo em que George Orwell vivia com os vagabundos para escrever Na Penúria em Paris e em Londres. A ascensão social de quem domina os lugares da fala afastou as elites intelectuais do povo, e o povo já não precisa das elites intelectuais para falar. Tem o Facebook. As pessoas gostam das canções do Chico e do Caetano, mas estão-se nas tintas em quem eles votam. As pessoas gostam do humor de Gregório Duvivier, mas são pouco sensíveis à sua pregação política. As pessoas gostam dos livros de Raduan Nassar, mas ele tem mais influência sobre as suas galinhas do que sobre o voto dos brasileiros. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. E ainda bem. Nós, as elites, olhamos para americanos ou brasileiros como sendo pobres de espírito dominados por Donald Trump e Jair Bolsonaro, mas a verdade é que há cada vez mais indícios do contrário: são os americanos e os brasileiros que usam Trump e Bolsonaro para chegar onde querem, seja o combate à imigração, o combate à corrupção ou a “defesa da vida”. Quando nós vemos os blocos evangélicos a votarem maciçamente nessas figuras, será pelo seu exemplo cristão? Donald Trump levou uma vida de absoluta devassidão (para utilizar linguagem bíblica), que nenhum pastor se atreveria a recomendar à mais negra das suas ovelhas. Jair Bolsonaro vai na terceira mulher, sendo que a actual já tinha uma filha de uma relação anterior (o que também não encaixa no perfil do macho latino cavernícola). Trump e Bolsonaro não são exemplos para ninguém, nem sequer para quem vota neles. Mas servem um propósito – abanar o sistema de alto a baixo. A esquerda gosta tanto de falar de empoderamento, pois aqui está ele: o eleitorado está-se a borrifar para aquilo que as elites lhe mandam fazer. Daí Trump. Daí Bolsonaro. Daí tantas lágrimas à minha volta.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave filha imigração campo mulher social racista negra
"Pode entrar-se para a maçonaria mandando um email"
Em entrevista, Fernando Lima, grão-mestre do Grande Oriente Lusitano, demarca-se da maçonaria brasileira que apoiou Bolsonaro. (...)

"Pode entrar-se para a maçonaria mandando um email"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em entrevista, Fernando Lima, grão-mestre do Grande Oriente Lusitano, demarca-se da maçonaria brasileira que apoiou Bolsonaro.
TEXTO: Há um ano e meio, Fernando Lima foi reeleito para um terceiro mandato na liderança do Grande Oriente Lusitano. O seu lema, durante a campanha, foi "Renovar a prosseguir" e uma das prioridades era aumentar o rigor e a exigência nos recrutamentos para a maçonaria. Defende que todos os maçons deviam dizer que são maçons. Consegue convencer os seus irmãos de que isso seria bom para a maçonaria? Acho que hoje já há uma tendência genérica de assumirem. Não estou a dizer que todos estejam convencidos ou que não pensem que haja constrangimentos na sociedade relativamente à assunção. Esta frase não é minha, inspirei-me sempre no António Arnaut e no António Reis: não há razão nenhuma para que os maçons hoje não se assumam. Houve uma proposta no Parlamento que defendia que os deputados deviam dizer se pertenciam à maçonaria, de que clubes de futebol eram sócios… Como viu isso? Mal. Um princípio fundamental das sociedades abertas é a liberdade de consciência, que é o respeito pelas convicções e crenças de cada um. Não temos de estar a criar anátemas sobre as pessoas para que revelem as suas convicções íntimas…É um mau princípio e falta de respeito pela consciência das pessoas. Mas não haveria assim mais transparência? Até vai ao encontro do que diz que os maçons deveriam assumir-se… Tão transparente como eu pedir a alguém que revele a sua orientação sexual. Eu tenho direito a violar a privacidade de alguém?Mas os maçons são acusados de trocarem favores entre si… Não existe… Eu não gosto de falar em maçonaria, há várias maçonarias. Estou a falar da maçonaria tal como eu a entendo aqui no Grande Oriente Lusitano. É uma instituição humana como outra qualquer. Naturalmente, aqui temos do melhor, temos pessoas que são menos boas e também temos algumas coisas que nem sempre nos abonam muito, como em qualquer outra instituição, seja na imprensa, seja nos tribunais… Eu não posso dizer que não haja dois ou três que façam coisas que face aos nossos princípios são reprováveis. Mas dizer que quem entra para a maçonaria é porque vai conspirar, vai trocar favores… Normalmente, essas pessoas resistem cá pouco tempo. Sabemos que algumas pessoas entram na maçonaria porque acham que aqui conseguem fazer uma carreira, conhecem pessoas… Aqui no Grande Oriente Lusitano dou-lhe quase a garantia de que quem pensa assim não está cá muito tempo. Foi reeleito há ano e meio com um programa que prometia mudanças. Tem conseguido fazer algumas mudanças, nomeadamente abrir mais a maçonaria ao exterior? Têm acontecido muitos debates, tivemos cá a Raquel Varela, o Pacheco Pereira…O Pacheco Pereira sempre defendeu que os deputados deviam ser obrigados a dizer se são maçons… Sim, mas ele quando cá vem lembra-se do avô dele que era maçon…Temos tido debates pelo país, discutimos aqui o Orçamento do Estado com membros da comissão parlamentar. Olhe, ainda há dias fiz um comunicado contra os valores e princípios que levaram à eleição de Jair Bolsonaro no Brasil. Mas Bolsonaro foi apoiado pela maçonaria brasileira. Já lhe disse que há maçonarias e maçonarias. Eu não me identifico com a maçonaria brasileira. Mas pode perguntar porque é que fizemos o comunicado a propósito do Bolsonaro e não fizemos a respeito de outras coisas. Mas temos feito muitos comunicados, às vezes em conjunto com a maçonaria europeia – as pessoas é que não notam – contra o facto de o parlamento da Sicília ter feito uma lei proibindo os maçons de ocuparem cargos públicos, o facto da Liga Norte do Salvini querer fazer uma lei a proibir as sociedades secretas, uma lei exactamente igual à nossa de 1935 (que ilegalizou a maçonaria) que, aliás, foi inspirada numa lei de Mussolini. Não sei se muita gente sabe isso. Em 1925, houve um debate entre o Gramsci e o Mussolini no parlamento italiano, porque o Mussolini propôs uma lei que nós viemos a copiar em 1935. Mas a aliança maçónica europeia tem protestado contra a situação na Hungria, onde a vida dos maçons não é fácil. Os maçons estão a ser perseguidos na Hungria? Não é perseguidos no sentido de serem presos, mas o ambiente é de tal modo claustrofóbico que têm alguma dificuldade em estar à vontade. Mas na Hungria também há perseguições anti-semitas. Na própria Polónia, a maçonaria tem tido algum retrocesso. Mas porque é que o Grande Oriente Lusitano fez um comunicado sobre o Brasil? Porque temos um património comum, que é a língua, temos uma ligação mais forte. E foi um maçon [D. Pedro] que fundou o Brasil… Foi um maçon que fundou o Brasil. E eu estar a ouvir coisas como uma mulher bonita é para ser violada… ou dizer “torturaram uns tantos, o melhor era ter morto aquela malta toda”. Isto para nós… e o voto não chega! O Hitler também foi eleito por voto. As democracias também são legitimadas pela forma como respeitam os direitos humanos. Estamos a assistir a um retrocesso? Olhamos para Donald Trump nos Estados Unidos, outro país fundado por maçons… É evidente que desde a Idade Média até agora o mundo tem progredido muito. Não é isso que está em causa. Há 70 anos o mundo era horrível… Há muitas coisas que têm evoluído. Mas a sensação que tenho é que nos últimos 20 anos – e estou a citar Pacheco Pereira, veja onde eu já cheguei – tivemos retrocessos civilizacionais graves relativamente àquilo que se conquistou nos últimos 200. Por exemplo? Esta coisa das democraturas [democracia ditadura], como eu gosto de chamar. . . estas ditaduras meio disfarçadas que existem por aí, dos Trump, dos Bolsonaro, a Hungria, já para não falar do Sudeste Asiático. Os direitos humanos são uma temática que aqui no Grande Oriente Lusitano nós discutimos muito que é o problema do pós-humanismo e o transumanismo. A inteligência artificial, as nanotecnologias, as biotecnologias. O que vai ser o mundo daqui a 50 anos? Somos robôs? Será que passaremos a poder programar os nossos filhos? Haverá um momento em que teremos de dizer aos cientistas: a partir daí, parou. Eu quero continuar a amar, a morrer, a gostar dos meus filhos, a ter afectividade, a ter lágrimas nos olhos. Isto é que é ser humano. Eu não quero viver até aos 200 anos. E as novas tecnologias acentuam ainda mais aquele que é o maior problema do mundo, a desigualdade social. Nós, maçons, somos humanistas. Queremos um progresso que não acabe com a Humanidade. Diga-me uma coisa, como é que se entra para a maçonaria. Imagine que eu queria entrar – eu não quero – como é que fazia? Temos uma maçonaria feminina muito interessante, atenção…Mas como é que se faz? Ia falar com um amigo maçon? Normalmente é por indicação de um amigo ou conhecido. Mas também pode mandar um e-mail. Pode-se escrever um e-mail? Pode escrever um e-mail a dizer que gostava muito de entrar para o Grande Oriente Lusitano. No seu caso, como isto é uma obediência masculina, era mais complicado (risos). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Pronto, se fosse homem. Nomeávamos aqui dois ou três maçons – a gente chama-lhe aqui sindicância –?, não é no sentido da investigação, é falar com a pessoa, o que faz na vida, repescar um bocadinho a antiga frase que os maçons diziam, que para a maçonaria só entram “homens bons e de bons costumes”. (Risos) É uma frase onde cabe tudo (risos). Eu tenho aqui alguns maçons que entraram assim. Mandaram um e-mail? Sim, sim. Ou por carta ou por e-mail. Mas não se faz uma investigação como aquelas para entrar no SIS? Não, é uma conversa. Como é que se chama, o que faz na vida, quais são os seus princípios morais, os seus valores. Não passa disto.
REFERÊNCIAS:
Étnia Asiático
The Gifted, a série de super-heróis que não fecha os olhos aos problemas sociais da América
É mais uma adaptação das histórias eternizadas nas bandas desenhadas de super-heróis da Marvel para os ecrãs de televisão: The Gifted regressa para a segunda temporada e tenta reflectir no seu enredo a perseguição a minorias nos EUA – mas desta vez são os mutantes que estão em fuga. (...)

The Gifted, a série de super-heróis que não fecha os olhos aos problemas sociais da América
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.011
DATA: 2018-10-06 | Jornal Público
SUMÁRIO: É mais uma adaptação das histórias eternizadas nas bandas desenhadas de super-heróis da Marvel para os ecrãs de televisão: The Gifted regressa para a segunda temporada e tenta reflectir no seu enredo a perseguição a minorias nos EUA – mas desta vez são os mutantes que estão em fuga.
TEXTO: Entre dezenas de séries em que os superpoderes são protagonistas, The Gifted faz da diversidade e da luta pelas minorias a sua bandeira. A série da Fox e da Marvel, criada por Matt Nix, surge num universo ficcional em que os X-Men desapareceram e em que os mutantes (humanos com superpoderes, concedidos pelo gene X) se vêem obrigados a lutar contra leis cada vez mais restritas que lhes vão retirando o acesso à saúde e à cidadania, atirando-os para a clandestinidade. A segunda temporada de The Gifted estreia-se esta segunda-feira, dia 8, na Fox, e os 13 episódios serão exibidos todas as segundas, às 23h05. “Uma das coisas que fazemos bem é reflectir a sociedade”, garante o actor britânico Stephen Moyer numa entrevista colectiva num hotel londrino, quando questionado sobre a influência de acontecimentos políticos em The Gifted. “Não há outra forma de se fazer isto numa série sem que seja uma espécie de reflexo do que se passa hoje em dia. Mas também não há maneira de reflectir aquilo que está a acontecer actualmente nos Estados Unidos, porque a realidade muda a cada dois minutos”, brinca o protagonista, sem receio de criticar a Administração norte-americana. Nesta série, Moyer interpreta Reed Strucker, um procurador que prende mutantes, mas passa a defendê-los depois de descobrir que os seus dois filhos têm poderes. “Acho que é essa a essência dos X-Men quando foram criados há anos; é uma representação daquilo que estava a acontecer no movimento dos direitos civis. Portanto, sejam questões de religião, de raça ou de orientação sexual, os X-Men são um reflexo daquilo que a sociedade é”, assevera Moyer. A diversidade do elenco de The Gifted tem sido, aliás, reconhecida pela crítica e pelos próprios actores: na série há personagens negras, latinas, asiáticas, nativo-americanas e personagens que sofrem bullying ou que lidam com doenças mentais. Nesta segunda temporada, as questões políticas ganharam força e o compromisso dos produtores é olhar para os dois extremos do espectro narrativo: os mutantes que lutam contra a humanidade e os que acreditam ser possível fazer-se uma aliança com os humanos. A juntar a isso há uma nação norte-americana cada vez mais polarizada, com o aumento de manifestantes de extrema-direita que criam grupos antimutantes e a favor dos direitos humanos (e aqui “humanos” exclui quem tem superpoderes). De um lado há organizações de apoio a mutantes e, do outro, comícios em que os políticos se mostram abertamente contra os mutantes — e dizem ser urgente prendê-los e despojá-los dos seus direitos. O próprio criador da série, Matt Nix, admite à revista Hollywood Reporter que “não é preciso um olho de lince” para se perceber as semelhanças entre os Serviços Sentinela (os que perseguem os mutantes) e os raides do ICE (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras norte-americano, que têm separado crianças das suas famílias que imigram ilegalmente na fronteira dos EUA com o México). Na série, tenta-se mostrar essas semelhanças sem ditar o que está certo ou errado. “Expõe-se o assunto, mas não dizemos o que se deve pensar. Mostramos as personagens que existem neste universo, mas não fazemos comentários”, sintetiza Stephen Moyer. “Explicamos porque é que as personagens são como são, em vez de simplesmente dizermos aos espectadores: ‘Isto é errado. ’ Deixamos que os espectadores decidam. ”A actriz norte-americana Natalie Alyn Lind (a filha mutante da personagem Reed Strucker ), que também fez parte do elenco da série Gotham, da DC Comics, acredita que houve uma transposição para a série daquilo que ela vê acontecer hoje nos EUA: “Há uma categorização das pessoas, uma atribuição de rótulos, sem que lhes seja verdadeiramente dada uma chance de se defenderem. ”Antes de protagonizar o “pai de família” em The Gifted, Stephen Moyer encarnou o vampiro Bill Compton, na série True Blood (HBO). Na entrevista que deu em Londres, o actor britânico refere que The Gifted é facilmente comparável a True Blood, uma série em que os vampiros ficam à margem da sociedade humana, lutando pelos seus direitos. A série produzida por Matt Nix surge numa onda de adaptações das histórias eternizadas nas vinhetas de banda desenhada da Marvel para os ecrãs de televisão: Inhumans, Jessica Jones, Luke Cage, Iron Fist, Legion, O Demolidor, O Justiceiro, Os Defensores, os Agentes S. H. I. E. L. D. — passando grande parte destas séries no Netflix. A produção destas narrativas sobre mutantes parte também da DC Comics, que produz séries como Arrow, Gotham (também da Fox), The Flash, Black Lightning, Krypton, e espera-se ainda a chegada de Titans (renovada para uma segunda temporada ainda antes de se estrear). Para os dois actores entrevistados, The Gifted difere de todas as outras séries que têm surgido no universo de super-heróis precisamente por se focar nas desigualdades sociais e na ambiguidade das personagens – que não são necessariamente boas ou más, o que é perceptível na origem das suas motivações –, integrando arqui-inimigos e superpoderes na narrativa, mas não se centrando apenas neles. Isso, de resto, não é incomum no universo Marvel — tome-se o exemplo da narrativa em torno de Magneto (que na série se pressupõe ser o pai de Lorna Dane). Entre tantas produções do género, pode tornar-se difícil para uma série com muitas personagens e com um enredo que já vai longe da premissa inicial manter a atenção dos espectadores. No arranque da segunda temporada nos Estados Unidos, The Gifted teve menos espectadores do que na estreia da primeira temporada: foram 4, 8 milhões de espectadores na primeira temporada (em 2017) e 2, 6 milhões na segunda, o que corresponde a uma perda de 45% de audiência entre as duas premières. A série é de super-heróis (ou de superpoderes, já que a fronteira entre quem é herói e quem é vilão é ténue), mas tem a sua dose de drama familiar. Na primeira temporada, a família é precisamente a força que faz avançar o enredo —o casal Reed e Kate (Amy Acker) descobre que os seus dois filhos têm superpoderes (uma espécie de telecinética e manipulação molecular) e vêem-se obrigados a fugir do Governo e a procurar auxílio numa rede de mutantes clandestina (chamada Mutant Underground). No final da temporada, essa rede de mutantes divide-se e as duas facções resultantes passam a estar em guerra entre si. Não temendo a sua herança genética, o filho Andy (Percy Hynes White) separa-se então da família e decide juntar-se ao Inner Circle, o exército de mutantes que quer destruir os humanos e que pertence à antiga organização terrorista Hellfire Club. Tal como na primeira temporada da série, no enredo continuam a existir referências ao ataque de 7/15 (15 de Julho) — em paralelo com o 9/11 (11 de Setembro) — no Texas, em que uma marcha de apoio a mutantes se transformou numa manifestação violenta em que morreram milhares de civis, agravando a repulsa e apreensão pela comunidade mutante. Ainda que nunca tenha sido tornado claro na série, Matt Nix já mencionou em entrevistas que este evento está associado ao desaparecimento dos X-Men do universo ficcional em que decorre The Gifted. As telepatas irmãs trigémeas Frost – nas bandas desenhadas da Marvel as irmãs são mais do que três clones – funcionam como elemento catalisador no final da primeira temporada e continuam a ser importantes nesta segunda temporada, cuja acção se muda de Atlanta para Washington D. C. As clones são comandadas por uma nova presença feminina, a poderosa Reeva Payge, interpretada por Grace Byers. A entrada de Reeva, uma mulher negra, dá um novo contexto a todas as discriminações retratadas na série: antes de ser odiada por ser mutante, Reeva diz num dos episódios que já era odiada pela cor da sua pele. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Afastando-se da narrativa base das bandas desenhadas da Marvel e dando um lado mais humano à herança dos superpoderes, continua a ser nestes pormenores que a série tenta transportar para os ecrãs televisivos o espírito de activismo político e de igualdade social que preenche as páginas de quadradinhos dos X-Men. O PÚBLICO viajou a convite da Fox
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Queridos, toca a acordar – um conselho de Edward Albee
Ricardo Neves-Neves estreia no Teatro São Luiz um texto mal-amado de Edward Albee, Encontrar o Sol. Numa praia em que nada se parece passar, o sol expõe medos, mentiras e arrependimentos. (...)

Queridos, toca a acordar – um conselho de Edward Albee
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-02-15 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ricardo Neves-Neves estreia no Teatro São Luiz um texto mal-amado de Edward Albee, Encontrar o Sol. Numa praia em que nada se parece passar, o sol expõe medos, mentiras e arrependimentos.
TEXTO: Pouco antes do final do primeiro ensaio corrido de Encontrar o Sol, o encenador Ricardo Neves-Neves sentiu-se a ficar sem um pingo de sangue na cara. “Como quando se recebe uma má notícia”, compara o próprio. A má notícia, no caso, era que, chegado à cena 18 das 21 que compõem a peça escrita pelo dramaturgo norte-americano Edward Albee em 1983, concluiu, agora que via o texto tomar vida diante de si, que ainda não tinha acontecido nada até àquele momento quando restava mais um par de cenas para a peça se finar. Essa momentânea falta de sangue a irrigar-lhe o rosto correspondia à súbita emergência do pânico de que talvez se tivesse precipitado ao sugerir a Aida Tavares, directora do São Luiz, levar à cena o texto de Albee. Produção: Teatro do Eléctrico Encenação: Ricardo Neves-Neves Actor(es): Cucha Carvalheiro, Custódia Gallego, Luís Gaspar, Marques d'Arede, Romeu Costa, Rita Cruz, Tadeu Faustino, Tânia Alves Cenografia: Tiago Pinhal Costa Tradução: João Paulo Esteves da Silva Direcção musical: João Paulo Esteves da Silva Figurinos: José António Tenente Texto: Edward Albee Teatro Municipal São Luiz, Lisboa, Quarta a Sábado, de 17 de Fevereiro de 2017 a 25 de Fevereiro de 2017 às 21h Teatro Municipal São Luiz, Lisboa, Domingo, de 17 de Fevereiro de 2017 a 25 de Fevereiro de 2017 às 17h30Nessa que terá sido uma das reuniões mais fáceis da sua vida, à pergunta sobre o que gostaria de apresentar na sala lisboeta, Neves-Neves atirou duas hipóteses: Encontrar o Sol e um texto da sua autoria. “E a Aida, em vez de me fazer uma contra-proposta do género ‘Muito bem, mas vê lá se não queres fazer aqui um Gil Vicente para escolas’, respondeu que faria um em 2017 e o outro em 2018. ” A ideia de Albee não era nova, daí que, mesmo se apresentada de forma impulsiva, estivesse na ponta da língua – pelo menos desde 2012. Esse seria, na verdade, o annus mirabilis de Ricardo Neves-Neves, quando num curto período definiu cinco anos de programação do Teatro do Eléctrico. Foi quando se pôs a caminho de Barcelona para realizar um workshop com o inglês Simon Stephens, de onde saiu a primeira versão da peça que o afirmou como autor, Mary Poppins, a Mulher que Salvou o Mundo; foi quando Simon lhe deu a ler os textos de Martin Crimp que montou no espectáculo Menos Emergências; foi quando partiu para Avignon com obras de Copi e de Karl Valentin sugeridas por Jorge Silva Melo na bagagem – o primeiro Copi, A Noite da Dona Luciana, estreou-se em 2016, e seguir-se-á um texto de Valentin no Teatro da Trindade; foi quando leu e se entusiasmou com Encontrar o Sol, peça mal-amada de Edward Albee. Ao apontar para esta peça de um lote de 12 a 15 que gostaria de fazer no imediato, Neves-Neves assume que foi um risco. “Nem estava bem a perceber onde me estava a meter”, desabafa. “Podia ter feito uma proposta que fosse muito mais confortável, fazia uma farsa muito divertida, com muita cor e à partida talvez pudesse ter melhores resultados. . ” Ao agir por impulso, não teve sequer tempo para premeditar qualquer ruptura com os textos que tem vindo a fazer. Mas é fácil de perceber que o tom que o encenador empresta a Albee não adere com a mesma efervescência ao teatro desenfreado de que o Ípsilon dava conta por alturas da estreia de A Noite de Dona Luciana, à sua forma estonteante de pôr as peças em andamento, empurrando-as e voltando a empurrá-las até perderem o equilíbrio e quase se estamparem. Só que não se estampavam, antes se abandonavam a essa vertigem e embalavam o público numa euforia que apenas no final parecia ceder ao cansaço e descer ao tom menor que o encenador assume como uma atracção involuntária. Depois de o sangue lhe fugir da cara, Neves-Neves demorou-se a pensar sobre “esta questão de não se estar a passar nada” em grande parte da peça. E lembrou-se do caso de uma amiga que, “num dia aborrecido igual a todos os outros, teve um acidente que a deixou com muitos problemas de locomoção” e um desejo persistente de voltar aos seus dias aborrecidos. “Esta peça é também sobre esta coisa de nada acontecer, de se falar sobre o passado e projectar o futuro, em que o presente parece ser nada, e depois tudo acontece num estalar de dedos. ” Encontrar o Sol, acredita, vive da iminência e da surpresa das más notícias. A felicidade, a ser alguma coisa, talvez seja esse momento imediatamente anterior, num esplendor de vulgaridade. Edward Albee morreu em Setembro de 2016, aos 88 anos, na sua casa em Montauk. Tendo estreado a primeira peça, The Zoo Story, em 1958, Albee tornar-se-ia, como apontava o obituário do New York Times, o depositário da “tocha da dramaturgia americana” que lhe havia sido legada por Eugene O’Neill, Arthur Miller e Tennessee Williams. Pouco depois, era já um seríssimo caso de sucesso com o primeiro espectáculo para a Broadway, Who’s Afraid of Virginia Woolf? O jornal citaria ainda Albee: “Todas as minhas peças são sobre pessoas que perdem oportunidades, desistem demasiado novas, chegando ao final das suas vidas com arrependimentos daquilo que não fizeram, por oposição às coisas que fizeram. A maioria das pessoas passa demasiado tempo a viver como se nunca fosse morrer. ”É exactamente isso que transborda do monólogo de Henden diante de um grupo de peixinhos – o CoLeGaS, coro da ILGA, que reforça a costela musical que Neves-Neves imprime ao texto e impede que os actores, nos seus momentos de desolada solidão, se dirijam ao público. Henden é o elemento mais velho dos quatro casais em palco, passou a marca dos 70 anos, e fala da morte não como um destino próximo mas como uma presença íntima que se infiltra nos seus dias há três ou quatro décadas. Daí que o encenador oiça o monólogo como um recado deixado a quem vive os seus 30 ou 40 anos. “Para o Henden aquilo já não é uma novidade”, diz. “Oiço mais o Albee a dizer-nos ‘Oh queridos, vá, toca a acordar’. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Esta peça é também sobre esta coisa de nada acontecer, de se falar sobre o passado e projectar o futuro, em que o presente parece ser nada, e depois tudo acontece num estalar de dedosEm Maio passado, quatro meses antes da sua morte, Albee aprovou o projecto de cenário, figurinos e elenco do espectáculo, num processo especialmente moroso – um ano e três meses – para que Encontrar o Sol possa estrear-se dia 17 no Teatro São Luiz, em Lisboa, onde ficará até dia 25, seguindo depois para o Theatro Circo, em Braga, a 3 de Março. Não tendo havido qualquer contacto directo com o autor, também não estaria nas cogitações de Neves-Neves inquiri-lo sobre o texto. Aquilo que o encenador faz em Encontrar o Sol é, na verdade, sublinhar as dúvidas sugeridas por Albee, deixá-las a marinar numa aparente superfície que, em pequenos rasgos, deixa desprender uma imprevista profundidade. Neves-Neves gosta do potencial violento da praia, da sua obediência a ciclos marcados pela natureza, de ser “um sítio de mentira”, das relações indefinidas e do jogo social que dita sempre as regras pouco claras do que vai germinando à beira-mar. E diz-se seduzido por uma estrutura de texto que “está 25 anos à frente, igual à de quase todas as peças escritas no século XXI, num acto e feita de micro-cenas”. Gosta disso e que o texto lhe segrede precisar de uma certa preguiça e um algum tédio que são próprios da praia. O contrário daquilo que Ricardo sabe ser – “um bocado histérico e nervoso”.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte mulher social género circo pânico
La Rebelión leva a revolução ao centro do Porto
Cruza o tempo e o espaço e dedica-se a homenagear movimentos e personalidades revolucionárias. Desde livros a acessórios, quadros e vestuário, La Rebelión leva o mundo inteiro para o centro do Porto. (...)

La Rebelión leva a revolução ao centro do Porto
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento -0.1
DATA: 2018-07-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Cruza o tempo e o espaço e dedica-se a homenagear movimentos e personalidades revolucionárias. Desde livros a acessórios, quadros e vestuário, La Rebelión leva o mundo inteiro para o centro do Porto.
TEXTO: Che, Marx, Frida, Joplin, Fidel, Assange, Lennon e Marley. Da política à arte, estes nomes evocam figuras emblemáticas que habitam agora na Rua de Cedofeita, bem no centro do Porto. La Rebelión é a "primeira loja portuguesa" a dedicar-se exclusivamente à comercialização de produtos inspirados em movimentos activistas e personalidades revolucionárias. Mais do que livros, vestuário, acessórios e objectos utilitários ou de decoração, este espaço que cruza o tempo e o espaço oferece a quem o visita a possibilidade de conhecer grupos e organizações reaccionárias, como a Animal Liberation Front e o Exército Zapatista de Libertação Nacional. No fundo, La Rebelión é um local de homenagem a quem ficou na história pelo esforço em mudar consciências e o status quo. “Na pintura e na arte temos Frida Khalo, na música John Lennon, Janis Joplin, Raul Seixas e Bob Marley — que no fundo não são só compositores, mas pensadores também”, enumera a proprietária, Tita Alvarez. Che Guevara, Fidel Castro, Karl Marx ou o Subcomandante Marcos constituem algumas das figuras do panorama político, a par de Julian Assange e dos grupos Anonymous e Zeitgeist. Começaram por vender simplesmente artigos de comércio justo relacionados com grupos ou personalidades, mas agora vão mais longe. “Por exemplo, a Frida Khalo é mexicana e as pessoas querem saber mais sobre o México, então estamos a pegar em peças do folclore mexicano, como a Santa Muerte, La Catrina do Dia dos Mortos e peças Maias e Aztecas. ”La Rebelión apoia ainda a causa LGBTI e tem uma secção dedicada à geração “beat” e ao “flower power”, assim como um conjunto de livros do “grande visionário e inventor” Júlio Verne, peças de “steampunk” e vestuário militar associado às guerrilhas revolucionárias. Quis o acaso que abrisse portas nem mais nem menos no Dia da Liberdade (25 de Abril) e, de segunda a sábado, quem toma conta da pequena loja é Marco. Há uns anos acolheu Tita no Chile e recentemente mudou-se para Portugal. Sendo mapuche – comunidade indígena original do Chile e da Argentina —, acaba por se tornar “uma personagem exótica” e a cara da La Rebelión. O sentimento que deu origem à La Rebelión foi “o amor pela humanidade” e “a esperança num mundo melhor” e Tita mostra-se surpreendida com o sucesso deste espaço, que se quer “do povo e para o povo”. Na loja, já fez amizades e ouviu histórias inesperadas, por exemplo de um ex-combatente sandinista e de um jovem com uma fotografia tirada ao lado do líder do movimento zapatista. “Houve uma guia turística de Barcelona que entrou com um grupo de australianos e ficou parada, de boca aberta e a olhar para os quadros, até que começou a chorar”, recorda a proprietária. “Contou que tinha raízes de reivindicação e activismo e que nunca tinha visto algo assim”, acrescenta. Ainda Maria Celeste (Tita, desde sempre) mal falava e já acompanhava o avô, foragido da Guerra Civil espanhola, em comícios e manifestações. “O meu pai chamava-me rebelde porque era muito contestatária”, afirma, com um largo sorriso no gosto. “É uma coisa que faz parte de mim, se me tirassem isso não era a Tita. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A maior parte dos produtos são importados de pequenas cooperativas locais de comércio justo que compram directamente ao produtor e, por isso, conseguem praticar preços acessíveis: há livros a custar menos de três, crachás a 1, 5 euros e t-shirts a 14, 95 euros. “Já aconteceu uma ou duas pessoas entrarem aqui na loja e dizerem ‘Então vocês são anticapitalistas e abrem uma loja?’, e eu pergunto se eles acham que se quiséssemos ficar ricos abríamos uma loja como esta”, conta, com Tommy, o cão, ao colo. Para já, as receitas de La Rebelión são “para pagar as contas” (e “tê-las debaixo de olho”), mas Tita garante que no futuro pretende doar anualmente uma percentagem do lucro a organizações com cujos valores se identifica. No futuro, o objectivo é continuar a "apostar nos movimentos e nas pessoas que fazem o mundo andar" e promover actividades culturais, artistas e associações de solidariedade — sempre com o espírito de rebeldia presente.
REFERÊNCIAS: