"Mereço amplamente o Prémio Camões"
Por fim o desabafo quando faz 60 anos de carreira. Zangado com o estado do mundo, mas não com a vida, Urbano Tavares Rodrigues confessa a mágoa de não ter um prémio que acha que lhe é devido e diz que foi tudo o que queria ter sido. Sabe, escrevi uma novela em três ou quatro dias. . . " Urbano Tavares Rodrigues antecipa-se a qualquer pergunta para revelar uma ousadia para alguém a pouco tempo de fazer 89 anos. Ver o que dá escrever de um fôlego. Um desafio para um escritor que continua a cultivar o erotismo e a estar atento ao mundo, mesmo condicionado à casa, grande, forrada a quadros e a livros e cheia de fotog... (etc.)

"Mereço amplamente o Prémio Camões"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-08-09 | Jornal Público
TEXTO: Por fim o desabafo quando faz 60 anos de carreira. Zangado com o estado do mundo, mas não com a vida, Urbano Tavares Rodrigues confessa a mágoa de não ter um prémio que acha que lhe é devido e diz que foi tudo o que queria ter sido. Sabe, escrevi uma novela em três ou quatro dias. . . " Urbano Tavares Rodrigues antecipa-se a qualquer pergunta para revelar uma ousadia para alguém a pouco tempo de fazer 89 anos. Ver o que dá escrever de um fôlego. Um desafio para um escritor que continua a cultivar o erotismo e a estar atento ao mundo, mesmo condicionado à casa, grande, forrada a quadros e a livros e cheia de fotografias de António, o filho de seis anos que diz que ele é o maior escritor do mundo. Não conseguir vê-lo crescer é a sua grande angústia, uma falta que tenta preencher com palavras. Serão a sua grande herança. Uma carta para António abrir quando tiver dez anos. Falar de tolerância. Aqui fala-se dessa e de outras histórias de um escritor que é comunista e que foi tudo o que quis. Disse recentemente numa entrevista que cada vez mais escreve novelas e contos porque tem medo que o tempo não o deixe terminar um romance. Pois é. Este livro, Escutando o Rumor da Vida seguido de Solidões em Brasa, era para ser um romance, mas depois olhe, saiu assim. Sinto que não vou viver muito. Um dos meus médicos diz-me, meio a brincar, que é um milagre eu estar vivo. Mas sabe, escrevi agora uma novela em três ou quatro dias. . . Chama-se A Rosa das Profundezas. Um miúdo anda a brincar e vê uma rosa no fundo de um charco. Arregaça o bibe e tira-a. É uma rosa esquisita, azulada. A minha ideia foi fazer uma coisa explosiva. Conseguir uma escrita muito nova, arriscada, na fronteira do delírio, mesmo, a alucinação. Essa perspectiva delirante sobre o mundo já vem no seu último livro. Já. Mas esta é uma novela mais pequena. Rápida. Deve ter umas 40 páginas. Foi um desafio?Foi. Escrevi loucamente. A escrita está bonita. Aquilo é louco mesmo, e ainda não sei muito bem o que vale. Uma amiga minha está a digitalizar o texto. Ela gostou imenso, mas não me chega uma opinião, porque ela é muito minha amiga pode-se deixar influenciar. E porque que é uma coisa muito louca?Porque é. Tem partes delirantes, de fuga às regras da lógica. O rapaz cresce e acaba por ir trabalhar para uma agência de viagens. Tem um contrato e Paris e vai para lá. Podemos dizer que é uma coisa da paz, mas a paz acaba por ser guerra. Entra naquilo a que o Mário Soares chama de "capitalismo selvagem neofascista" que está instalado na Alemanha. Os seus temas sempre foram o amor, o tempo, a morte. Há alguma mudança?Nesse aspecto não. Não consigo escrever qualquer coisa que seja completamente nova, mas consigo escrever de uma maneira nova e cada vez mais olho o amor como uma necessidade absoluta do mundo. Uso a palavra "amor" no sentido mais lato, não só sexual. A grande lição para o mundo futuro é uma grande dose de amor, de compreensão dos outros. Não sei se nota isso nos meus livros. Quando, por exemplo, se abstém de fazer juízos morais sobre o comportamento das suas personagens?Sim, a minha função não é julgar. É trabalhar sobre os sentimentos, sobre a palavra. É difícil escrever sobre erotismo?Sim, mas há escritores que têm conseguido coisas boas nesse aspecto. É preciso tacto, trabalho de linguagem. As palavras existem. São para ser usadas. Todos nós tivemos dificuldade na transição do fascismo para a liberdade, com o 25 de Abril. Eu também tive, porque escrevia com alguns eufemismos. Mas habituei-me. O Lobo Antunes também escreve dessa maneira, com bastante liberdade. . . [Pausa] Tanto eu como o meu irmão Miguel somos muito longevos. Ainda tenho capacidade erótica para ter relações sexuais. Continuo a ter desejo e a transportar isso para os meus livros, corresponde a uma certa vivência. Considera-se um provocador?Não. Não é o meu objectivo. A provocação por si não me interessa. Pode haver falsa provocação, o que é outra coisa. Os seus livros continuam a reflectir uma atenção sobre o mundo à volta. Estar em casa não lhe retira a capacidade de observar?De modo nenhum. leio jornais, vejo televisão, converso com as pessoas. essa escrita não vem por por obrigação, mas porque de facto já tenho mesmo ódio ao que se passa. Até mesmo aqui em Portugal está instalado um capitalismo selvagem neo-fascista, com o Passos Coelho. Perante a força da insurreição popular não sei como é que isto vai acabar. É imprevisível. Qual é o papel da literatura em momentos como este?Sou comunista e sou escritor e nunca obedeci a pedidos para fazer dos meus livros instrumentos de combate do PC, mas como a minha ideologia é essa ela projecta-se e essa projecção é útil neste momento porque as massas necessitam do apoio dos intelectuais e eu estou a dá-lo embora dentro da minha linha, que é estética e intimista. Uma vez chateei-me com um tipo do partido que queria que eu pusesse mais sangue, mais vermelho naquilo que escrevia. Eu disse-lhe que punha o vermelho que entendesse. Foi um dos dirigentes do sector intelectual do PC. Como é que faz a sua militância, hoje?Continuo a ser. Pediram-me para não abandonar. De vez em quando escrevo textos que me pedem. Porque se diz um heterodoxo?Sempre fui profundamente anti-estalinista e tive alguns problemas com o partido por causa disso. Estive nitidamente a favor da insurreição de Praga e escrevi contra a invasão dos tanques soviéticos, das barbaridades que se fizeram. Eu era a favor da Primavera, do chamado socialismo de rosto humano. Já está a ver que a minha ideia do comunismo é a de uma economia de Estado, mas com uma certa abertura à iniciativa privada, que não seja totalitária, que não seja opressora, para poder haver espontaneidade, beleza, variedade. A favor da liberdade de culto. Sou perfeitamente agnóstico, mas acho que se deve respeitar todos os cultos. Vítor Córdova, personagem de Solidões em Brasa, o segundo conto do seu mais recente livro, diz-se um agnóstico e há uma aluna que o interpela, afirmando que isso é o que ele diz, mas que é um espiritual, um místico. É o seu caso?Se sou místico é só numa comunhão profunda com a natureza. Isso é mais ser panteísta do que místico. O que lhe interessa é o homem soviético, como à sua personagem Vítor Córdova que distingue entre ser comunista e ser pró-soviético?É mais um ponto em comum. O homem soviético era cordial fraterno, tinha qualidades interessantíssimas. Na primeira viagem que fiz à União Soviética, fui um bocado iludido, porque os guias davam-me uma imagem da realidade que não era verdadeira. Cheguei deslumbrado com uma fábrica onde os delegados da comissão directiva eram representantes dos trabalhadores, dos funcionários e dos engenheiros e aquilo funcionava muito democraticamente. Tinha uma gestão operária. Mas quando comecei a conhecer alguns escritores eles abriram-me os olhos, dizendo que aparentemente aquilo era verdade, mas que de facto era tudo combinado. Aquilo era uma mistificação. Fiquei lixado. Depois comecei a descobrir que havia muito mais sequelas do estalinismo do que eu pensava, a história do Gulag. O pior foi que o Estaline destruiu completamente tudo o que era verdadeiramente socialista, a discussão interna no comité central, o debate de ideias. Acabou com tudo isso. Já não tinha nada do socialismo marxista. Os estilhaços chegaram ao PC português. Era inevitável. Nunca fui estalinista, mas eu vivi em Paris num período em que os pp camaradas do Partido Comunista Francês com quem e convivia que me disseram que o Gulag era verdade. Abrira-me os olhos. Como o Aragon [Louis Aragon, poeta e escritor surrealista, 1897-1982], de quem me tornei muito amigo. Esse nunca deixou de ser comunista, mas não era estalinista. Também foi amigo de Albert Camus. Que memória tem dele?Profundo afecto. Uma vez apresentou-me uma namorada brasileira. . . Ele tinha muitos problemas. A mulher adorava-o e ele também gostava imenso dela, mas era um homem de muitas mulheres, uma coisa complicadíssima. Ele tinha dificuldade em romper e às as vezes acumulava duas e três até que aquilo era uma confusão dos diabos. Ele custa-lhe fazer sofrer. Era um tipo giríssimo. Nessa época tentou o que nunca ninguém conseguiu: ser existencialista sendo comunista. Como olha para essa fase?É verdade, uma enorme contradição. mas era muito jovem. Era um disparate, mas tentei. E achava que era possível ter ideias marxistas ligadas à filosofia da existência. Era uma utopia. Em A Porta dos Limites (estreia, em 1952, e na Vida Perigosa (1955) sente-se isso. Já com A Noite Roxa (1956) passou-se uma coisa interessante. Com as minhas artes consegui passar a fronteira e ir visitar a então RDA. Estive lá cinco ou seis dias e não gostei. Era um país comunista autoritário, sentia-se a presença da polícia política. Aquilo desagradou-me e voltei um bocado baralhado para o chamado lado ocidental da Europa. Eu estou contra este ocidente capitalista mas não posso estar com aquele socialismo policial. Numa recente entrevista dizia que Álvaro Cunhal lhe perdoava uma série de rebeldias ideológicas dizendo-lhe: "tens uma alma comunista". O que é isso de ter uma alma comunista?Eu tinha-lhe proposto uma coisa com a qual ele não concordava, uma aliança pontual com o Mário Soares. Sou muito amigo do Mário Soares, desde o tempo da faculdade. Discordamos ideologicamente, mas em alturas muito difíceis, e sem que eu lhe pedisse, ele ajudou-me, arranjou-me lugar no Colégio Moderno, até a Pide me impedir, dizendo que eu tinha ideias subversivas. Há pouco tempo ele mandou-me uma carta do Algarve, despedindo-se "com um grande abraço deste seu camarada antifascista". Foi o que ele encontrou de comum. [Risos]. Bom, o que é certo é que eu achava que havia uma série de coisas que se podiam fazer em comum, O PC com o Soares. Em que circunstâncias?Já não me lembro muito bem, mas ele odiava o Mário Soares. Quando se falava em Mário Soares arrepiava-se todo. Uma vez disse-me: "ai Urbano, às vezes parece que tens teias de aranha na cabeça, mas o teu coração é comunista". E o que é isso?Um comunismo de solidariedade com os pobres e os infelizes que é profundamente ligado ao socialismo. Eu tornei-me comunista um pouco por influência de um primo meu que casou com a irmã do Álvaro Cunhal, o Fernando Medina. Ele deu-me a ler textos comunistas quando eu tinha 13 ou 14 anos. Fiquei tocado com a solidariedade para com os pobres e humilhados. Eu antes de ser comunista estava ligado a uma espécie de socialismo cristão, embora repudiando a confissão e tudo isso. Descobri muito cedo que era uma farsa. Teve essa educação católica?Sim, tive catequese e tudo. Fiz a primeira comunhão. E como é que descobriu "a farsa"?Quando me pediam para prometer não repetir determinadas acções e que tinha de rezar uns tantos Padre-Nossos e eu sabia perfeitamente que ia repetir. Por exemplo?Umas histórias que eu já tinha com umas priminhas, em que havia sexo, embora sem chegar ao fim. Tinha uns 13, 14 anos. Achava de uma desonestidade profunda dizer que não repetia. E mandei isso à fava. E alguma vez sentiu culpa?Nunca a sexualidade me pareceu um pecado. Aí estava muito mais de acordo com os gregos. Noutras coisas senti. Por exemplo, no relacionamento que tive com as mulheres. Algumas vezes acho que as magoei. Posso ter sido egoísta. Disso arrependo-me. Em Escutando o Rumor da Vida começa com uma das personagens, Francisco Medeiros, a lidar com o remorso em relação ao modo como lidou com algumas mulheres. Esse remorso é seu?Sim. As suas personagens masculinas têm cada vez mais de si. Escolhe as personagens para se expor?Acho que não faço essa escolha, mas não há dúvida de que há muito de mim no Francisco Medeiros e a figura de Lídia, a mulher, inspira-se muito na minha primeira mulher, na Maria Judite de Carvalho (escritora, 1921-1998). Uma mulher muito doce, que me adorava e era indulgente para com os meus desvios eróticos. Gostei muito dela. Foi o meu grande amor e a Ana Maria, a minha actual mulher, a grande paixão. Outra personagem com quem tenho muito que ver é o Michel/Olimpia (traficante redimido de Solidões em Brasa) no aspecto da aventura. Eu era quase inconsciente, não tinha medo de nada. Na clandestinidade em Portugal fiz coisas do arco da velha. Não tinha a consciência do perigo. Quando fala de medo fala de quê?Não sou medroso, mas não tenho a mesma coragem nem o mesmo impulso. Mas apesar da minha falta de condições físicas, já neste estado, dei um soco a um tipo que foi malcriado com a minha mulher por causa de um problema no trânsito. É perigoso ser seu amigo? Podemo-nos ver de repente num livro, expostos?É, isso é. Eu não resisto. É irresistível. Já alguma vez teve problemas com isso?Não. Parece que está sempre a despedir-se da vida, mas depois sempre a regressar a ela. No livro anterior, Assim se esvai a Vida, há quase uma despedida. Neste, uma espécie de reconciliação. É verdade. Há alturas em que tenho vontade de morrer, mas depois luto. Contra a angústia. Acabo por me aguentar. A escrita ajuda?Ajuda muito. Pertence à comissão de leitura da Fundação Gulbenkian. Continua a ler autores recentes. . . Sim, muito atento e acho que temos grandes escritores actualmente. Por exemplo?Gosto muito da Dulce Maria Cardoso, da Hélia Correia, que já é de outra geração mas é uma escritora extraordinária. Gosto muito do João Tordo, O Bom Inverno é um livro excelente. O José Luís Peixoto, de quem sou profundamente amigo. O Gonçalo M. Tavares não me entusiasma muito. É uma mistura de Brecht e de Kafka, dos alemães que ele conhece muito bem. O único livro dele que em entusiasmou foi o Jerusalém. Como é que gere o tempo que tem?De manhã faço tratamentos, depois um bocadinho durante a tarde trabalho, escrevo. À noite não escrevo. Ainda estou a recuperar da loucura que foi escrever esta novela . . . Escrevia de manhã à tarde e à noite. É avô, pai de um rapaz de seis anos. Qual a diferença entre ser pai aos 82 anos e ser avô antes disso. Eu tive muitas dúvidas em ser pai tão tarde. Mas era importante para a minha mulher. Estive preocupado até o António nascer, angustiado com a hipótese de um defeito físico. Ele diz que o pai é o melhor escritor do mundo [risos]. Mas a relação nem sempre a relação é boa, ele consegue ser muito carinho, confidente, outras vezes é provocante. Tem dito que uma das coisas que mais o angustia é temer não poder acompanhar o crescimento do seu filho. É verdade que escreveu uma carta para o seu filho ler quando tiver dez anos?Sim. Ele já sabe umas coisas do que lhe quero dizer. Quero que ele compreenda o pai que teve. A importância da tolerância, da fraternidade, da generosidade. Ninguém é totalmente generoso. Tenho consciência disso. Mas sou dos menos egoístas que conheço. Tem uma filha bastante mais velha, a escritora Isabel Fraga. Sim. Dou-me muito bem com ela. Tivemos uma relação muito carinhosa. Levei-a a Paris no Maio de 68, ainda chegámos no fim. Ela tinha 14 anos. Eu a Maria Judite e ela. O Vítor Córdova procura o sentido da vida. Já encontrou o seu?Não. Encontrei aquilo que eu gostava que o meu filho compreendesse de mim, que é um misto de tolerância, de compreensão e respeito pelos outros. Sem ódio. Com algumas excepções. Posso sentir ódio contra aqueles que vivem de explorar os outros. . . [pausa] mas eu tenho sido mais vítima de ódio. Ainda não tive o prémio Camões porque soube recentemente que há membros do júri que dizem: "esse comunista não terá o Prémio Camões. Sente mágoa por não ter o prémio?Tenho revolta. Mereço amplamente o Prémio Camões. Não é pelas honrarias, que já tive muitas. Até em França já me deram a Legião de Honra, mas isto é asqueroso. Está a escrever alguma coisa?Agora escrevi esta novela e nã sei o que farei. Tenho para aqui uma série de contos para serem publicados num livro que está previsto. Há um conto que se chama Os Merdosos. E quem são os merdosos?São aqueles tipos que andam com os cães, que andam na droga, às vezes na prostituição. São os merdosos. Há uns tipos que resolvem fazer uma experiência, ir apanhá-los. Propõem-lhes uma grande festa e só há dois ou três que não querem ir. . . Alguns saem desse meio, outros regressam. Como é que se põe a par dessa realidade?Acompanho. Estou informado. Tenho amigos e família nessa geração. É um optimista?Sim, mas é mais uma vontade que de as coisas corram bem. O que é que gostava de ter sido e não foi?Eu fui o que gostava de ter sido. Escritor e professor. É vaidoso?Não. . . tinha uma certa vaidade. Era considerado um homem bonito na juventude, que foi até muito tarde. As mulheres estabeleciam comigo uma relação de ternura e essa ternura acabava por se transformar em sexo. Muitas vezes estive muito apaixonado, outras vezes eram amizades eróticas, com muita ternura e com desejo. Era um D. Juan?Não. O D. Juan era o conquistador. Eu era o conquistado. Havia uma aproximação terna que acabava por gerar uma relação erótica. Umas vezes estive profundamente apaixonado. Um mulherengo pode ser um tipo ternoFoi um mulherengo?[risos] Acho que não, mas tive muitas mulheres. Às vezes fico comovido quando encontro uma dessas pessoas de quem gostei.
REFERÊNCIAS:
Estará Heféstion, companheiro de Alexandre, o Grande, sepultado em Anfípolis?
Pensava-se que o grande templo funerário escavado em Anfípolis guardava os restos mortais de Olímpia ou Roxana, respectivamente mãe e mulher de Alexandre. Esta quarta-feira apontou-se noutra direcção: os arqueólogos crêem ter sido erguido em homenagem a Heféstion. (...)

Estará Heféstion, companheiro de Alexandre, o Grande, sepultado em Anfípolis?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.8
DATA: 2015-10-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Pensava-se que o grande templo funerário escavado em Anfípolis guardava os restos mortais de Olímpia ou Roxana, respectivamente mãe e mulher de Alexandre. Esta quarta-feira apontou-se noutra direcção: os arqueólogos crêem ter sido erguido em homenagem a Heféstion.
TEXTO: Foi escavado em 2012 e aberto no último Verão, 13 séculos depois de a cidade em que foi instalado ter sido abandonada. Anfípolis era uma cidade grega, a 100 quilómetros de Tessalónica, e foi nela que Alexandre, o Grande erigiu aquele que é o maior templo funerário descoberto em território grego. Especulava-se que teria sido construído em honra da sua mãe, Olímpia, ou da sua mulher, Roxana. Esta quinta-feira, porém, Katerina Peristeri, arqueóloga chefe das escavações, apontou noutra direcção. “Supomos que se trata de um templo funerário dedicado a Heféstion”, companheiro inseparável de Alexandre, declarou em conferência de imprensa. No interior foram encontrados os restos mortais de uma mulher idosa, as ossadas de dois homens, de um recém-nascido ou de um cavalo. Nenhum deles corresponde, naturalmente, a Heféstion, e Peristeri afirmou não estar certa que o mesmo esteja ali enterrado, mas a descoberta no interior de três inscrições com a palavra “parelavon” (recebido) e o monograma de Heféstion, conduziram à suposição de que o gigantesco complexo, com 500 metros de diâmetro e escavado numa colina de 30 metros, seria dedicado ao fiel companheiro do mítico rei macedónio. Apesar da contestação de alguns arqueólogos, que defendem que a tumba foi construída já durante o período romano, Katerina Peristeri afirma que aquela foi erigida algures entre 325 e 300 a. C. , num período em que Anfípolis era uma cidade de relevo no reino macedónio que Alexandre estendeu do Egipto à Índia. O túmulo em Anfípolis será, então, um dos muitos que Alexandre ordenou que o seu arquitecto, Dinócrates, projectasse por todo o império quando da morte de Heféstion em Ecbatana, no Irão, segundo descrito por Plutarco, o grande historiador da Antiguidade. No interior do complexo foram descobertas várias divisões ricamente decoradas com esculturas de esfinges e cariátides, bem como diversos mosaicos e moedas com o rosto de Alexandre. Heféstion foi o amigo mais próximo de Alexandre. Filho da aristocracia macedónia, cresceu próximo do futuro imperador e tornar-se-ia, não só um dos seus generais, guarda-costas e diplomatas mais distintos, mas também o seu confidente, numa relação que se prolongou até ao final da sua vida e que foi comparada à de Aquiles e de Pátroclo, personagens centrais da Ilíada de Homero. A natureza amorosa da relação entre Alexandre e Heféstion é parte integrante da mitologia envolvendo o grande Imperador. Em 2004, Oliver Stone tornou-a central no seu filme Alexandre, O Grande, apresentando os dois como amantes. Na altura, numa reportagem do Ípsilon dedicada ao filme, o historiador Nuno Simões Rodrigues, afirmou que “Heféstion é o grande amor [de Alexandre], Roxana uma aliança política, Bagoas [o eunuco do imperador persa Dario, que Alexandre resgatou para si após derrotar aquele] o objecto sexual”. Esclareceu ainda que “na Grécia a sexualidade não se definia como hetero-homo-bi, mas numa relação entre dominador – o amante ou ‘erastes’ – e um dominado – o amado ou ‘eromenos’ –, fosse ele do mesmo sexo ou não”. Nos próximos tempos, pode ser confirmado que é em Anfípolis que está sepultado Heféstion. Quanto aos restos mortais de Alexandre, continuarão, de forma intrigante, em parte incerta. Morreu na Babilónia em 323 a. C. , aos 32 anos e diz-se que o seu corpo terá sido levado por Ptolomeu até Alexandria, a cidade que fundara no Egipto e em que terá sido sepultado. Onde exactamente? O mistério permanece até hoje.
REFERÊNCIAS:
Homenagem a Ruy de Carvalho nos 90 anos de vida e 75 de carreira
Festa realiza-se esta quarta-feira no Casino Estoril. A 22 de Março, o actor vai receber um Prémio Sophia de carreira, atribuído pela Academia Portuguesa de Cinema. (...)

Homenagem a Ruy de Carvalho nos 90 anos de vida e 75 de carreira
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-03-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Festa realiza-se esta quarta-feira no Casino Estoril. A 22 de Março, o actor vai receber um Prémio Sophia de carreira, atribuído pela Academia Portuguesa de Cinema.
TEXTO: O actor Ruy de Carvalho vai ser homenageado esta quarta-feira no Casino Estoril, quando completa 90 anos e comemora 75 de carreira, com um espectáculo em que participam, entre outros, Rui Veloso e Dulce Pontes. A festa de homenagem realiza-se no Salão Preto e Prata, com intervenções previstas de Rui Veloso, Luís Represas, Dulce Pontes e Toy, além dos actores João e Henrique de Carvalho, respectivamente filho e neto de Ruy de Carvalho, entre outros artistas. A Academia Portuguesa de Cinema também vai distinguir o actor Ruy de Carvalho, com o Prémio Mérito e Excelência, na entrega dos Prémios Sophia do cinema português, no dia 22 de Março. Ruy de Carvalho nasceu em Lisboa a 1 de Março de 1927, estreou-se em 1942, numa peça encenada por Francisco Ribeiro (Ribeirinho), e anunciou a reforma em 1998, quando interpretava Rei Lear, de Shakespeare, para o Teatro Nacional D. Maria II, mas prosseguiu a carreira durante mais duas décadas, pelos palcos, pelo cinema, pela televisão. O actor tem o nome associado à primeira peça exibida na televisão portuguesa, Monólogo do Vaqueiro, de Gil Vicente, quando da criação da RTP, em 1957, e também à primeira telenovela, Vila Faia, em 1982, realizada por Nuno Teixeira. Formado pelo Conservatório Nacional, actuou pela primeira vez no Teatro D. Maria II em 1947, integrado no elenco da companhia Rey-Colaço/Robles Monteiro. Seguiram-se o Teatro Avenida, a companhia Rafael Oliveira e o Teatro Monumental, o Teatro do Povo e o Teatro Moderno de Lisboa, com sede no Cine-Teatro Império. Em 1963, assumiu a direcção artística do Teatro Experimental do Porto, onde realizou a sua única experiência como encenador, com Terra Firme, de Miguel Torga. Regressou ao Teatro D. Maria II, quando este reabriu, em 1978. Fez parte do elenco dos musicais Passa por Mim no Rossio (1992) e Maldita Cocaína (1994), de Filipe la Feria. Em Espanha, trabalhou no Teatro Monumental de Madrid, a convite do encenador Simon Suarez, e protagonizou Fígaro, de José Ramon Encinar, no Teatro Lírico La Zarzuela, também na capital espanhola. Estreou-se no cinema no filme Eram 200 Irmãos (1951), de Armando Vieira Pinto, seguindo-se Pássaros de Asas Cortadas (1963), de Artur Ramos, Domingo à Tarde (1965) e A Bicha de Sete Cabeças (1978), ambos de António Macedo, O Cerco (1969), de António da Cunha Telles, Cântico Final (1974), de Manuel Guimarães. Em 1990, entrou em O Processo do Rei, de João Mário Grilo, e Non ou a Vã Glória de Mandar, de Manoel de Oliveira, com quem trabalhou ainda em A Caixa (1994) e em O Quinto Império - Ontem Como Hoje (2004). Ainda no cinema, nos últimos anos entrou em A Morte de Carlos Gardel (2011), de Solveig Nordlund, Refrigerantes e Canções de Amor, de Luís Galvão Teles, e A Canção de Lisboa, de Pedro Varela, ambos de 2016. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ruy de Carvalho recebeu o Prémios de Imprensa para o Teatro e para o Cinema por sete ocasiões, e ainda os Prémios da Crítica, cinco vezes. Foi ainda distinguido com a Comenda e o Grande Colar da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada, respectivamente, em 1998 e em 2010, o grau de comendador da Ordem do Infante, em 1993, e a Medalha de Mérito Cultural, atribuída pela Secretaria de Estado da Cultura, em 1990. Em 2012, quando completou 70 anos de carreira, recebeu a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, que dedicou aos portugueses, por estarem a viver o "muito difícil" momento da crise económica.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte cultura filho bicha
O ritual e a peregrinação segundo Miguel Moreira
Possível peça final para o ciclo iniciado com The Old King, Pântano evoca os lugares sombrios ou misteriosos que cada um prefere habitualmente deixar trancados longe da luz do dia. Uma questão de romantismo noir, acredita Miguel Moreira. (...)

O ritual e a peregrinação segundo Miguel Moreira
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Possível peça final para o ciclo iniciado com The Old King, Pântano evoca os lugares sombrios ou misteriosos que cada um prefere habitualmente deixar trancados longe da luz do dia. Uma questão de romantismo noir, acredita Miguel Moreira.
TEXTO: Na obra de Miguel Moreira para o Útero, a beleza convive com a ruína desde há muito. Não são forças contrárias, não se anulam, cresceram juntas como irmãs enquanto a companhia habitava no Espaço Ginjal, com o rio a servir de fosso que a mantinha na periferia. Esse antigo armazém convertido em sala de espectáculos e partilhado com outras estruturas foi-se deteriorando com os anos e sendo cada vez mais ruína. “E quanto mais chovia lá dentro, mais parecia que ficava melhor”, comenta Miguel Moreira. “Melhor para nós e para o público. ” A humidade e a temperatura de gelar quaisquer 206 ossos, a dificuldade em suportar a aspereza do espaço, tudo isso foi contribuindo para que as obras surgissem, afinal, “de uma forma progressivamente mais urgente”. Até que o Espaço Ginjal fechou, em 2010, e pouco depois Moreira criava com o bailarino Romeu Runa The Old King, peça para um homem abandonado por Deus e em combate com os seus pensamentos numa tentativa de encontrar maneira de se relacionar com a sociedade. Com The Old King, Miguel Moreira e o Útero davam o salto para as grandes salas. “Mas acho que nunca deixámos de estar no Ginjal, naquele ambiente e naquele sítio de procura utópica de um sítio que sabemos que não vamos conseguir alcançar mas que achamos que é nosso”, defende. Porque se havia uma condição geográfica no Ginjal, de periferia e de marginalidade em relação ao centro, havia também uma inquietação e uma busca sôfrega por uma arte guiada, em primeiro lugar, pela parca identificação com aquilo que o centro propunha. “Aos 16 ou 17 anos fui então à procura dos artistas e da arte com que me pudesse identificar”, recorda. “Ao estar no subúrbio, sem dúvida que sempre senti essa ausência de alguma coisa, esse lado marginal nos grupos que existiam. E nunca me irei afastar disso porque sei que esse sítio de marginalidade e do culto é um sítio onde quero estar, um sítio onde me sinto bem. ” Pense-se novamente no Ginjal, nesse espaço desafiador, de condições duras, mas virado para uma paisagem belíssima. Ruína e beleza. “Espaços-limite, neutros, onde as normas e os preceitos se diluem na fronteira entre a vida civilizada e o mundo selvagem…”, cita Miguel Moreira do prefácio de Ernesto Sampaio para Cais Oeste, texto do dramaturgo francês Bernard-Marie Koltès. Cais Oeste vive precisamente dessa cisão entre dois mundos, um oásis longínquo de civilização e um pequeno universo selvagem e sujo, separados por um rio; vive do querer chegar ao outro lado mas estar irremediavelmente preso neste. Para Moreira, que enquanto actor fez Na Solidão dos Campos de Algodão dirigido por Rogério de Carvalho, “Koltès tem uma constante preocupação existencial com o submundo – quer viver nos sítios onde normalmente os outros dizem que não querem viver e escreve sobre isso”, uma ideia de submundo com a qual confessa ter “uma identificação imensa”. O empurrão de SadePântano, peça que Miguel Moreira estreia hoje na Culturgest, em Lisboa (e que segue depois para Porto, Castelo Branco, Coimbra e Paris), anuncia-se como possível capítulo final para um ciclo iniciado em 2011 com The Old King. Romeu Runa volta ao Útero e, ao lado de Francisco Camacho e Catarina Félix, contribui para mais uma imersão num cenário de desconforto. De início, quase uma imobilidade dos três, depois uma procura lasciva e sacrificial entre os corpos, aludindo a uma imagem de ritualização e de peregrinação que Moreira quis trabalhar. Há olhos cerrados, seres despojados pelo chão, vislumbres recolhidos nas artes plásticas, mas também movimentos animalescos ou uma sexualidade a latejar pedidos de empréstimo a Sade – “podia passar a vida toda a falar de Sade, Pasolini ou Beckett”, confessa Miguel Moreira. Mas foi “a exposição ao mesmo tempo provocatória, chocante e bela” sobre Sade no parisiense Musée d’Orsay que se assumiu como peça fundamental para pôr os bailarinos em palco a “vomitar lugares ou sensações que queremos esconder”. Não se trata de uma regurgitação literal, mas antes de “uma certa evocação de lugares sombrios ou misteriosos que existem dentro de nós”. Ecos de um romantismo noir, como o define Miguel Moreira, ele que se diz espantado por o público continuar a falar-lhe em dureza nas suas peças. Quer apenas destapar e aceder a esses sítios obscuros, e não cair na provocação. “Não sinto que os bailarinos estejam a sofrer”, responde. “Acho é que hoje não estamos muito habituados a viver rituais. Só os mais comuns, ir à igreja, a um casamento, um baptizado ou funeral, mas é uma sociedade muito mais ligada ao prazer imediato e isso é contrário a este lugar onde as coisas têm de ter um caminho para chegarem a algum lado. ” A evocação da peregrinação, refere, vem daí, desse trajecto solitário com vista a um destino final. E se o público acusa o desconforto desta tentativa de “dar respostas ao mundo, de uma forma livre e abstracta”, Miguel Moreira confessa que frequentemente fica tão surpreendido quanto qualquer espectador. “Acontece acabar um espectáculo e estar tão atingido emocionalmente e tão desconfortável como eles”, admite. Até por isso, suspeita que Pântano possa encerrar o ciclo iniciado em The Old King com a leitura de Ideia da Paisagem, obra de Ana Francisca Azevedo. “Primeiro há uma fase de espanto com o material que estamos a produzir em conjunto e depois, não sei porquê, começa a haver uma necessidade de mapear ou ter alguma organização emocional interna daquilo que estamos a fazer. Nesse aspecto, não o digo com certeza absoluta, mas sinto isto como chegar a um porto. ”Este ciclo é em grande parte estimulado pela exploração mais aprofundada de questões técnicas como a utilização da luz e da música (banda sonora de Carlos Zíngaro e projecto Shhh), ou a duração do espectáculo, numa lógica de partilha grupal que Miguel Moreira compara a ter uma banda de rock. O importante, na reivindicação de um espaço que sabe ser habitado por outros artistas, é saber que esta é uma linguagem construída em conjunto e para estarem juntos. Mesmo sabendo que a outra margem, que se vê lá adiante, será sempre inalcançável. Não há, na verdade, tentativa nem esforço de chegar até lá.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Café Monte Carlo, Lisboa: Cafés, cinemas e bifes
Havia cafés onde se vivia. Entrava-se de manhã e saía-se de madrugada, com o estômago aconchegado por um bom bife. No Monte Carlo era assim. Cinéfilos e outras tribos tinham ali a sua casa. (...)

Café Monte Carlo, Lisboa: Cafés, cinemas e bifes
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Havia cafés onde se vivia. Entrava-se de manhã e saía-se de madrugada, com o estômago aconchegado por um bom bife. No Monte Carlo era assim. Cinéfilos e outras tribos tinham ali a sua casa.
TEXTO: Que me desculpem os leitores se hoje não os levo a algum sítio lá fora, mas está um daqueles dias de temporal em que o vento assobia à volta da casa, as árvores perdem os ramos, que se lançam num voo descontrolado, e a chuva tenta entrar por todas as frinchas das janelas. É dia de fazer um café e enfiar a cabeça num livro. Por isso, troquei os planos para ir à exposição de orquídeas na Estufa Fria pelo livro, a que não me canso de voltar, Os Cinemas de Lisboa, de Margarida Acciaiouli, e, mais exactamente pelo capítulo sobre os antigos cafés da capital. Cafés havia muitos. Para além dos clássicos, na Baixa e no Chiado, a abertura de novas avenidas na cidade foi acompanhada pelo nascimento de novos cafés, alguns deles ligados, por cumplicidades várias, aos novos cinemas que iam também surgindo. Acciaiouli descreve como esses cafés “representam as referências a partir das quais se redefine a cidade e se estabelecem as fronteiras das incursões que se passam a fazer depois dos filmes”. Era o que acontecia com o Café Império, por exemplo, que surgiu em 1955 junto ao Cinema Império. E, na Avenida Fontes Pereira de Melo, com o Café Monumental e o Café Monte Carlo, “em polaridades que permaneceriam quase imutáveis pelos anos fora”. Ambos desapareceram e no local do Monte Carlo existe hoje uma loja da Zara. Conta-me quem os conheceu que, se o Monumental se distinguia pela luminosidade do espaço e pelo brilho das estrelas (sobretudo figuras do teatro) que o frequentavam, o Monte Carlo — que nasceu, também em 55, como café, no local onde antes existia a Pastelaria Fradique — era território de artistas alternativos, surrealistas e outros, que se identificavam mais com o seu ambiente austero, de madeiras escuras — e, consta, excelentes croissants que tinham o seu contraponto nos mais vistosos (e efeminados) bolos do café vizinho. Nesse tempo vivia-se nos cafés. Não se entrava apenas para comer um dos célebres bifes ou beber uma bica. Eram locais para passar grande parte do dia — e da noite, por entre uma ida ao cinema. Neles habitavam escritores, poetas, cineastas, críticos, jornalistas, estudantes, pensadores e aspirantes a qualquer uma destas coisas. Falava-se de política, criticava-se o regime, discutiam-se as notícias que chegavam do que se via, ouvia e lia “lá fora”. O café era de tal forma uma segunda (ou, em alguns casos, primeira) casa que era habitual os clientes receberem telefonemas lá. O telefone tocava, um empregado atendia e perguntava para a sala: “O sr. X está? Chamam-no ao telefone. ” O embaixador Francisco Seixas da Costa recorda num texto o dia em que no Monte Carlo alguém brincou e, ligando da cabine telefónica do próprio café, pediu para falar com o general Humberto Delgado. O empregado que atendeu era jovem e não sabia de quem se tratava, pelo que perguntou se o general estava na sala, recebendo de volta um coro de gargalhadas. Mas os telefonemas podiam também ser usados quando alguém queria tornar-se notado e pedia para lhe telefonarem para o café, garantindo que o seu nome seria gritado em alto e bom som. Um texto do crítico de cinema Eurico de Barros, citado por Margarida Acciaiuoli, descreve a vida no Monte Carlo: “Chegava-se de manhã, comprava-se a imprensa, tomava-se o pequeno-almoço, lia-se um livro, via-se quem estava ou passava. ” E, entre um almoço no restaurante, mais leituras à tarde, “cavaqueira com quem tivesse chegado entretanto”, jantar, cinema e “serão no café até às duas da matina, hora de fecho”, passava-se o dia. A tabacaria ficava logo à entrada, convenientemente localizada para quem quisesse abastecer-se de jornais a qualquer hora. No interior, bastante amplo, havia uma sala de jogos, com bilhar, xadrez e damas, e ao fundo existia ainda, mais discreta, uma barbearia. A parte de restaurante estava separada do resto por uma grade e era aí que se podia comer o afamado bife. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Este hábito de comer bifes vem, diz-se, de influência inglesa e, inevitavelmente, do aumento do poder de compra. Antigamente, a carne de vaca não era coisa comum, mas na Lisboa dos anos 60 e 70, estabelecimento que se prezasse tinha o seu “bife à café”, geralmente com um molho generoso que podia levar natas e café, um ovo estrelado e batatas fritas (e o que mais se lembrassem de lhe juntar). E assim, entre discussões políticas de café, intensas análises do último filme em estreia e bifes mergulhados em calóricos molhos sem culpas, os dias passavam numa Lisboa que era ainda uma cidade pequena, levemente entediada. Com a chuva a cair lá fora, este parece-me, hoje, um bom programa de domingo.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave carne vaca
Como esquecer sem matar e como lembrar sem morrer
É um caminhante que faz perguntas e procura respostas na literatura. No seu último livro, a primeira pergunta foi: como lembrar sem morrer de dor? Nele, faz o luto da morte do filho, vítima da guerra entre Israel e o Líbano, em 2006. (...)

Como esquecer sem matar e como lembrar sem morrer
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: É um caminhante que faz perguntas e procura respostas na literatura. No seu último livro, a primeira pergunta foi: como lembrar sem morrer de dor? Nele, faz o luto da morte do filho, vítima da guerra entre Israel e o Líbano, em 2006.
TEXTO: Uma conversa com o escritor David Grossman raramente começa pela literatura, talvez porque a sua escrita ande sempre muito colada à realidade. Israelita, natural de Jerusalém, onde nasceu em Janeiro de 1954, tem associado o seu nome à luta pelo fim do conflito que se eterniza entre o seu país e a Palestina. Nos seus romances, a tragédia de viver, pensar e amar num território em guerra assumem uma densidade invulgar que o tornam um dos mais respeitados autores em todo o mundo. Há nove anos, a guerra — desta vez com o Líbano — matou o seu filho Uri, de 21 anos, quando escrevia um livro sobre o medo de perder um filho para a guerra. Até ao Fim da Terra, publicado em Portugal em 2012, foi a “casa” onde se refugiou quando não sabia como viver. Terminou-o numa altura em que ainda lhe era difícil falar da morte. O luto seria feito com um livro “estranho”, chama-lhe “criatura”. Foi o seu modo de aprender a viver com a memória. Falling Out of Time saiu em 2014 e será editado em Portugal em 2016. Foi esse livro que permitiu esta conversa, em Cascais, onde o escritor esteve como convidado para o festival internacional de cultura no passado domingo. Começou com literatura e terminou com gargalhada. Sim, acho que é um bom modo de se estar nesta vida. A vida é ofensivamente pequena e muitos de nós esforçam-se demasiado em não ser eles mesmos, não ouvindo o que deveriam ser. Muita da nossa realidade é-nos imposta por expectativas de outras pessoas, pelos ditames de outras pessoas e vemos muita gente a viver em paralelo em relação às vidas que deveriam viver. Porque fizeram a escolha profissional errada, escolheram o casamento errado, muitas vezes com o género que negam. Escrever é uma maneira muito eficaz de não negar a nossa própria vida, não nos evadirmos da nossa vida, de confrontar tudo o que a nossa alma ou corpo nos sugere que confrontemos. Quando perdemos o Uri, eu estava a escrever Até ao Fim do Mundo, que era sobre o sentimento de perder um filho na guerra. Olhando em retrospectiva, parece estranho, mas é algo que muitos pais que vivem em Israel sentem, a ansiedade de perder os seus filhos. Depois dos sete dias de lamento — no judaísmo temos sete dias de luto, o shivá, que devo dizer que é uma das grandes invenções do judaísmo…Todas as pessoas que fazem e fizeram parte da nossa vida vêm até nós para estar connosco e com os nossos e fazem-nos esquecer a dureza do nosso sofrimento nos primeiros sete dias. Eles não nos deixam sós, não estamos sós, eles abraçam-nos, acodem-nos, mesmo fisicamente. E, nesse momento, toda a nossa vida passa à nossa frente. Os nossos amigos do jardim-de-infância vêm, os do liceu, da tropa, da universidade, de todos os trabalhos que tivemos, todos vêm e ao estar connosco expressam algo que é muito mais forte do que palavras. Mas, claro, todos sabemos que é apenas por uma semana e que depois somos outra vez confrontados com a nossa ferida. Quando no dia a seguir ao shivá, voltei ao pequeno espaço onde trabalho, comecei a reescrever a história que naqueles dias era a única coisa sólida na minha vida. Era o único lugar que se assemelhava a uma casa. Todas as outras casas estavam destruídas pela catástrofe. Nada estava assegurado, garantido. Nada [pausa]. Senti uma espécie de instinto, de responsabilidade pelas personagens, pela história em que estava a trabalhar havia tanto tempo. Sim. Trabalhei como um carpinteiro, acho. Ou como um sapateiro. Não muito com a minha cabeça, mas com um instinto da fisicalidade das coisas e apenas para continuar esta casa que era a história, intocada, sólida. Mas mais tarde comecei a notar que não era apenas o tempo que impedia as paredes de cair, mas que estava a incutir aspectos nas minhas personagens, características, dei-lhes notas muito específicas, dei-lhes calor e vitalidade e sexualidade e humor e sensibilidade. Comecei a sentir que essas coisas continuavam em mim. De certa forma, sim. Estava surpreendido por ainda ter estas coisas em mim. Quando aquilo aconteceu, Amos Oz e A. B. Yehoshua, amigos muito próximos, vieram imediatamente, no mesmo dia, e ambos sabiam o que eu estava a escrever, porque costumamos conversar entre nós sobre o que cada um escreve e mostramos versões uns aos outros. Eles sabiam isso e sabiam o que me estava a acontecer. Lembro-me de lhes dizer que não sabia se era capaz de salvar o livro. E Amos Oz respondeu-me: “É o livro que te vai salvar a ti. ”De uma certa maneira, sim. Chamo-lhe “criatura”. Tem a sua própria vida (risos). Depois da morte de Uri, levei mais um ano a terminar Até ao Fim da Terra. Quis permanecer leal, fiel a essa história, ao que ela era antes de a realidade me mudar. Eu queria que o livro permanecesse como era antes. O livro não era sobre a perda, mas sobre o medo da perda. Há uma grande diferença. Era sobre essa ilusão de que podemos combater o medo da perda, de que podemos prevenir a perda. É o que Ora faz. [Ora é a protagonista, uma mulher que deixa a sua casa em Jerusalém e caminha para a Galileia, tentando fugir de possíveis mensageiros que a queiram informar sobre a possível morte do filho, em Hebron. ] Com o seu pensamento mágico, ela luta contra a ameaça de morte que está sempre presente, que é uma constante, sobre o seu filho Ofer. Ela conta a sua história, os pequenos momentos de devoção, culpa e frustração, sentimento de falhanço, de amor e cuidado que depositamos num filho. Ela sente que ao fazê-lo ela combate a ameaça, a selvajaria, a dureza do mundo e que ele enfrenta e ela com ele. Mas o novo livro, Falling Out of Time, foi depois da perda. O que significa continuar a viver depois de ter experimentado uma coisa assim? E como lembrar? Como separar a memória da dor? Toda a memória era tão dolorosa que é preciso parar de lembrar, tinha de parar de lembrar. Era como tocar em electricidade com mãos molhadas. Acho que foi algo que descobri nesses anos, que quando se perde alguém não se perde só a pessoa e o futuro que ela poderia ter, mas perde-se também o seu passado e, com isso, o nosso próprio passado por causa do medo de lhe tocar. Há espaços da nossa vida onde não queremos mais entrar porque são intoleráveis. Foi então que senti que queria lembrar. Não queria que grande parte da minha vida fosse confiscada pelo luto. Eu teria de viver a dor para lá chegar. Como é que se faz isso? Como se separa a dor da memória e como esquecer sem morrer disso? [Pausa] É muito, muito complicado. Como esquecer sem matar e como lembrar sem morrer? Era de tudo isso que andava à procura com esse livro. Ajudou. Era inevitável. Não posso perceber como fui capaz de…Sim, evitar escrever sobre isso. Sim. Há fases na vida. Muitas vezes me perguntavam sobre isso e eu não era capaz de falar. Claro que falava com a minha família e amigos, mas levou-me tempo até ser capaz de dizer o que estou a dizer aqui. Acho que escrever esse livro tornou isto possível. Escrevi tantas nuances de luto e depois entendi este lugar que quis atingir, onde quis chegar, um ponto de encontro muito evasivo, sempre a tentar escapar, que é o que está entre a vida e a morte, um lugar onde podemos continuar a arranhar o exterior desta dimensão hermética e monolítica da morte. Eu sou um não crente, sou uma pessoa secular. Não posso retirar conforto da ideia de uma vida além da morte ou de paraíso ou de deus. Sim. Há muita solidão, mas prefiro a solidão a qualquer tipo de ilusão que vem do acto de acreditar numa história picaresca de deus e diabo e paraíso. Quem me dera conseguir acreditar, mas não consigo. Para mim, isso não é verdade. Se quem acredita retira disso algum conforto, alguma ajuda, fico feliz por eles, mas eu não conseguiria retirar algum conforto disso. Sinto que o único lugar onde posso sentir no mesmo segundo vida e morte é no espaço da arte, da criação, da literatura, da prosa, da poesia, no cinema, no teatro, na música. Para mim, é nesses sítios que a vida de facto acontece e é neles que estamos totalmente cientes da morte. Esse lugar da arte não é um lugar assustador, nem sequer um lugar triste, é um lugar profundo…Exactamente. Um lugar de um entendimento profundo. Eu comecei a pensar em todos os livros que li, todos os filmes que vi, as músicas que ouvi, e eles foram tão significantes, criaram-me, fizeram-me crescer e trouxeram-me a um maior entendimento do que sou, desde criança. Tudo aconteceu sempre neste ponto, todos estavam nesse ponto entre vida e morte. Acho que toda a peça de arte séria deve ter lugar aí, nesse intenso espaço. Sim, está sempre a lembrar-me da morte. Sim. Muitas vezes me zanguei, senti raiva daquele lugar, e frustrado, muitas vezes desesperado, mas é o único lugar que entendo. Vamos assumir que a partir de hoje vou viver aqui em Cascais. Acha que alguma vez eu seria capaz de entender o lugar, o comportamento das pessoas, as suas memórias, as histórias de embalar que os seus pais lhe leram, as cantigas de criança? Nunca iria conseguir. Só em Israel sou capaz. E como a vida é tão tremendamente curta, quero viver a minha vida num lugar relevante, num lugar onde tudo o que acontece é relevante para mim, mesmo quando me repugna ou me faz perder a cabeça. Sim. É verdade. Quando ele afirmou que iria interferir, eu imediatamente retirei a minha candidatura. Tinha lido nos jornais que era o principal nomeado. Achei que o que ele fez foi ultrajante. Mas ele fez isso e eu sei de onde vem essa atitude. Sei interpretar a sua maneira de pensar, porque é que enquanto primeiro-ministro interfere na escolha de um prémio literário num Estado democrático. Vê, tudo isto é relevante, é irritante. Israel é uma casa, no sentido em que entendo o país. Infelizmente não é a casa que eu desejaria, onde qualquer cidadão se possa sentir seguro, possa sentir a doçura da pertença. Esse lugar ainda não é assim, porque a mensagem que passa é que enquanto os palestinianos tiverem ali a sua casa nós não teremos a nossa. É uma tragédia, porque para mim a definição mais profunda de um judeu é a de alguém que nunca se sente em casa em nenhum lugar do mundo, mesmo nos sítios mais amistosos. Vivemos sempre no perigo de ser atacados ou perseguidos ou expulsos. Era suposto que Israel fosse a nossa casa porque este é o lugar de onde somos originalmente, enquanto povo e religião e cultura e língua, e tem potencial para ser uma casa, e desejamos que o seja. Como lhe disse, quero estar lá, quero que os meus filhos estejam lá, quero que seja um país atractivo para os mais jovens, mas enquanto não houver paz não será uma casa. Quando se perde alguém, não se perde só a pessoa e o futuro que ela poderia ter, mas perde-se também o seu passado e, com isso, o nosso próprio passado por causa do medo de lhe tocarNão consigo separar a arte do real. A arte é um meio de estar no mundo real e é outro modo de descodificar a vida além da religião, da psicologia. As religiões são modos diferentes de olhar a vida, de acomodar o crente. A psicologia faz o mesmo e a arte também. Todas nos sugerem um modo de entender mais neste pequeno período de tempo que é uma vida. A arte é isso, uma maneira mais precisa de estar na vida. Ela ajuda, em especial porque a vida está a ser formulada pelos meios de comunicação social, e eles são uma alternativa muito frágil para essa descrição. Pensamos muitas vezes nos mass media como um meio de chegar às massas, mas eles são um meio de fazer com que os seres humanos pensem em si enquanto parte de uma massa, transforma-os em massa… É um processo terrível. O ser humano está a tornar-se uma multidão. A sua vida interior e a de biliões de pessoas estão a ser formuladas pelo que a televisão e todos os meios de comunicação lhes dão, lhes mostra, convencendo-os de que devem pensar e sentir de uma certa maneira. É uma mistura de kitsch, de posição farisaicas, de agressão, de qualquer coisa violenta contra o modo como somos. Nesse mundo de anonimato, a literatura pode ajudar-nos a reconquistar a nossa face mais autêntica. Na literatura vemos as coisas através de matizes, somos capazes de sentir o que é ser outro ser humano. Claro que quando lemos os suplementos de jornais de sábado ou de domingo nos deixamos levar por uma história comovente e íntima, mas há nisso qualquer coisa de falso. Não sentimos que realmente somos capazes de entender a pessoa de que o jornal nos fala. Sentimos outra coisa que pode ser muito perversa. Se nos permitirmos levar, tornamo-nos parte de um imenso colectivo kitsch. Há algo de muito caloroso e doce nisso. Sabemos o como precisamos desses doces para a alma. Mas alguém nos está a manipular. Há um milhão de pessoas a ler o mesmo jornal numa sexta-feira à noite e aquele jornal fá-los pensar e parecer iguais; mas quando mil pessoas estão a ler o mesmo livro, se for um bom livro, é lido por cada uma delas de um modo diferente. Um bom livro permite o acesso a diferentes partículas da alma. Muitos leitores escrevem-me cartas e em cada um desses textos leio uma reacção diferente que não fui capaz de antecipar ou imaginar. Acho que li em cerca de 40 línguas a expressão: “A Ora sou eu. ”É exactamente o que sinto quando leio um bom livro de uma cultura diferente, de um tempo diferente. Sim, eu podia ter sido este Raskolnikov [personagem de O Crime e Castigo de Dostoievski] e que sorte tive por poder sentir isso e ler esse livro. É por isso que não posso confundir este sentimento com o outro, o que me quer confundir com a multidão, com o modo como os mass media funcionam e que é quase sempre preconceituoso, que julga e culpa, com o poder de arrancar uma gargalhada durante cinco minutos. A literatura permite-nos estar com uma pessoa, com o pobre Raskolnikov. Pense só, se uma pessoa escreve um longo artigo, de sete páginas, sobre Ralskolnikov num jornal, hoje, nunca estará perto do que Dostoievski escreveu. É essa a diferença. Em todos os meus livros há muito movimento físico porque quando escrevo, caminho. Vou contar: nos últimos nove anos todas as manhãs, a um quarto para as seis, a minha mulher, eu e um casal de amigos andamos cinco quilómetros. Vemos gazelas — tenho aqui [mostra o telemóvel] uma fotografia de uma gazela prenha que a minha mulher enviou da caminhada que fez hoje de manhã. É como começamos o nosso dia. É fantástico, muito bom. Mas mesmo antes disso, já caminhava. No meu primeiro livro, que não está traduzido, há uma pessoa que corre. Em todos os livros há esse movimento. Eu preciso de me movimentar. Quando escrevo, não consigo estar sentado. Sento-me à secretária e se tenho uma boa ideia tenho de fazer qualquer coisa com aquela energia. Não sei. E ando, há muitos dias em que ando 15 quilómetros numa sala. Ando durante seis horas. Não é uma piada [risos]. A minha mulher brinca, diz que eu deixo marcas nas carpetes, que sulco o chão como um prisioneiro. Aluguei a sala onde trabalho e do que gosto mais ali é do corredor entre as salas. Tem cerca de 30 metros. Percorro aqueles 30 metros durante cinco ou seis horas. Sei que pode parecer estranho. Quando se caminha, quando se está em movimento, não se está fossilizado, não se está congelado. Fico horrorizado com pessoas que congelam, não gosto da ideia de congelar. Vejo tantas pessoas à minha volta que a partir de uma certa idade, muito jovem, caem e são apenas eles mesmos, muitas vezes nem isso, sem qualquer movimento fértil ou qualquer flexibilidade. Caminhar é fazer perguntas. A cada momento estamos num lugar diferente. É por isso que gosto tanto de viajar. Viajo muito com os meus livros. Conheço pessoas, ouço histórias. As pessoas adoram contar histórias a um escritor. Não sei. Mas acho que sou um bom ouvinte. Conheço a minha própria história por isso não sinto qualquer necessidade de a impor, a não ser nos livros. Mas contam-me histórias muito interessantes. Não faço qualquer uso de muitas delas, porque são irrelevantes para o que eu escrevo, mas tiro tanto prazer da maneira como as pessoas contam as histórias. Há pouco [fora desta conversa] falávamos do que se diz sobre o fim do romance [enquanto género] e acho que fica claro o que penso sobre isso. Tem tudo a ver com o modo como ouvimos e contamos histórias. Isso define-nos. As histórias são a nossa base. Sim, por isso são tão populares. Tenho muitos livros para crianças entre os três e os quatro anos e eles perguntam-me se aquilo aconteceu mesmo. Pergunto-lhes se queriam que tivesse acontecido e quando me dizem que sim, digo-lhes que essa é a resposta. Acho que é o mesmo com os textos sagrados — muitas pessoas, grande parte da humanidade, quer que eles sejam verdade e essa é a origem do seu poder. Sim. Sim, é verdade. Se se conhecer os caminhos, é fácil. Há caminhos para a recrear e inventar e as pessoas imediatamente entendem. É difícil. Como posso dar um exemplo em hebraico… Há a palavra nightwalker ou moonwalker, alguém que caminha pela noite. Mas se eu quero descrever uma criança que caminha atrás de uma borboleta eu digo he moonwalked after… Em hebraico corresponde a uma palavra totalmente nova e imediatamente toda a gente entendeu. Intuitivamente fazemos essa arrumação. Na língua há sequências desde há três, quatro mil anos, e isso significa que se Abraão, o patriarca, estivesse sentado connosco à mesa, ele poderia entender pelo menos metade da nossa conversa. Acho isso notável. Há dois mil anos era uma língua do belo, ninguém falava hebraico. Era uma língua sagrada, apenas para rituais, para dias santos. [Risos] Claro. Agora lembrou-me uma velha história. Acho que há uns 40 anos a minha mulher e eu viajámos por Portugal. Eu estava a conduzir e fomos parar a uma pequena vila, não me lembro exactamente do nome. Pode ser Nazaré?Era à beira-mar. Chegámos a um sítio e era preciso ligar para casa, já não me lembro porquê, e não era possível fazer uma chamada directa por telefone, tinha de passar por uma operadora. Disse-lhe em inglês: “Pode por favor ligar-me a Jerusalém?” E ela começou a rir. Perguntei-lhe porque se estava a rir e ela respondeu: “Jerusalém é no céu. ” Isso foi verdade. Cresci com o hebraico. Sei que pode parecer algo mágico, não sei… Penso em imagens e quando quero entendê-las penso em hebraico e falo comigo em hebraico. Invento-a de imediato. É intuitivo. E é o meu trabalho. Sei o que fazer para encontrar uma palavra. É verdade. Quando a língua era sagrada, se limitava à beleza, não se faziam negócios em hebraico, um soldado não dava comandos em hebraico, os casais não faziam amor em hebraico e as crianças não brincavam em hebraico. Muita coisa mudou e muita coisa teve de ser inventada. Houve um homem incrivelmente inteligente, Eliezer Ben-Yehuda [1858-1922, um dos responsáveis pelo criadores do hebraico moderno], que começou a ler hebraico às crianças. Foi buscar muitas palavras à Bíblia, à Tora, mas no tempo da Bíblia não havia gelado, ou helicóptero ou tomate. Ele inventou ou reinventou baseado nessas regras antigas e as pessoas percebiam o que ele queria dizer. Agora toda a nossa vida se formula em hebraico. Sinto-me muito privilegiado por escritores como Amos Oz e A. B. Yehoshua, que me aceitaram apesar de eu ser mais novo, como o seu irmão mais novo. É uma boa família. Sim, terminei um romance há nove meses, que está a ser traduzido e está a ser publicado já em alguns países da Europa. Chama-se Walks a Horse Into a Bar. É um livro totalmente diferente do anterior e é uma sessão de stand-up comedy em Netanya, uma cidade de Israel. É uma mistura de horror e gargalhada. Há muitas anedotas lá e o título é o início de uma anedota muito famosa em Israel. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Há centenas de anedotas de um cavalo a entrar num bar. Vou contar uma: um cavalo entra num bar e pede um vodka ao empregado. Ele serve-lhe o vodka, pergunta quanto é. São 25 paus. Ele abre a carteira, paga e quando se dirige à saída, o empregado corre para ele: “Desculpe-me senhor Cavalo, espere um momento. Isto é fantástico, nunca vi um cavalo que fala. ” O cavalo olha para ele e diz-lhe: “Com os seus preços, não voltará a ver. ”Quero viver a minha vida num lugar onde tudo o que acontece é relevante para mim, mesmo quando me repugna ou me faz perder ?a cabeça
REFERÊNCIAS:
Resistir ao vazio
Um romance inteligente que confunde o real e o imaginário de maneira a interrogar ambos. (...)

Resistir ao vazio
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um romance inteligente que confunde o real e o imaginário de maneira a interrogar ambos.
TEXTO: A escritora e ensaísta Dubravka Ugresic (n. 1949), nascida numa vila da antiga Jugoslávia (numa região que actualmente pertence à Croácia), é uma das vozes mais originais e eruditas da literatura da Europa Central — nomeada em 2009 para o International Man Booker Prize e em 2016 recebeu o Neustadt de Literatura (para alguns uma espécie de ante-câmara do Nobel) — deixou a Croácia em 1993 (depois de anos a ensinar literatura russa e as suas vanguardas na Universidade de Zagreb), e isto porque foi acusada pelo poder, no Parlamento e na imprensa, de “bruxa, puta e traidora”; tudo isto devido às críticas assertivas e irónicas que fez, entre outros, ao regime autoritário e nacionalista de Tudjman e às causas da Guerra dos Balcãs. A mestria técnica de Ugresic é uma das suas características mais notadas, ao conseguir juntar, por exemplo, subtis intertextualidades (conhece bem as tradições literárias e filosóficas europeias) com diálogos assertivos que iluminam sátiras corrosivas; ou como consegue fazer uso do seu sentido de observação para os detalhes sócio-culturais. A complexidade do seu pensamento é expressa com uma simplicidade tocante. A estrutura dos romances é quase sempre episódica, resultando numa acumulação de partes narrativas e de polifonia de registos, num patchwork em construção. Raposa não difere deste modo narrativo. Autoria: Dubravka Ugresic (Trad. de Guilherme Pires) Cavalo de Ferro Ler excertoAntes da desagregação da antiga Jugoslávia, Dubravka Ugresic — que estudou e ensinou literatura russa e as suas vanguardas — escreveu, numa espécie de exercícios de ironia paródica, romances cómicos e arremedos pós-modernistas de histórias românticas com um final feliz. Mas veio a Guerra dos Balcãs e os tempos mudaram: foi obrigada a deixar o ensino em Zagreb, e depois de ter passado por várias “residências artísticas”, e se ter fixado em Amesterdão, tornou-se numa autora mais “séria”, passando a escrever (alternando entre a ficção e o ensaio) sobre o exílio, a vida de escritor, os nacionalismos, ou a imposição arbitrária de fronteiras e de identidades. Em português tinha até agora dois livros traduzidos: Museu da Rendição Incondicional (Cavalo de Ferro, 2011) — brilhante e ambicioso exercício reflexivo sobre a poética do exílio, tendo sempre a memória como metáfora da possibilidade de reconstrução da vida e do passado — e Baba Yaga Pôs Um Ovo (Teorema, 2010) — um romance originalíssimo baseado na figura mítica de uma bruxa do folclore eslavo, e que Ugresic transpôs para o nosso tempo, servindo-lhe de lente para um olhar sobre a feminilidade e o envelhecimento, a sexualidade, o amor e os seus segredos. Curiosamente, neste Raposa também recorre ao folclore e ao simbolismo dos seus arquétipos. É sabido que o campo simbólico da raposa (apesar das diferenças de substracto cultural) pressupõe a astúcia, a perfídia, a artimanha, a mentira, a hipocrisia, a duplicidade, o egoísmo, a luxúria, a reclusão. E Dubravka Ugresic interroga-se ao longo de toda as partes do romance: “A raposa é o totem do escritor?” Talvez por isto afirme: “A vida literária só é interessante quando estamos à nossa secretária, entre quatro paredes. Tudo o resto evoca um sentimento de derrota, tanto humana como profissional. ”Na primeira parte do romance — que é dividido em seis — titulada Uma História Sobre Como as Histórias Se Tornam Matéria Escrita, é aquela onde mais se define a afinidade entre o escritor e a “raposa aldrabona”: a autora parte de um conto do escritor russo Boris Pilniak (1894-1938) — e conta histórias adjacentes, aparentemente reais, à história narrada nesse conto (também se acredita que verídica). Algumas das histórias chegam misturadas com elementos autobiográficos — a autora estudou, nos anos 1980, em Moscovo, tentando escrever uma tese de mestrado sobre Pilniak — tornando a ficção em auto-ficção, recorrendo a alguns truques do pós-modernismo. Enquanto narra parte da história escrita por Pilniak em 1926 (baseada, em parte, numa suposta autobiografia da personagem), Ugresic fala da Moscovo dos anos 1980, um tempo em que “as pessoas não alimentavam expectativas nem tinham quaisquer esperanças”. E depois interroga-se: “Estarei a contar uma história sobre o conto de Pilniak ou uma história sobre mim mesma?”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Erudita e inteligente, Dubravka Ugresic confunde o real e o imaginário de maneira a interrogar ambos. Assim, nas partes seguintes, a viúva de um escritor recria o seu legado, criando na realidade as ilusões que o marido criara na sua obra. Chegando-se a uma possível existência de um último romance desse escritor, mas que na verdade parece existir apenas na memória de outros escritores que com ele privaram. Pelo meio surgem referências, por exemplo, a Bulgakov e a Nabokov e a episódios das suas biografias. Desta maneira a História da Literatura começa a fazer parte da própria literatura, a confundir-se com a ficção. Os temas habituais de Ugresic surgem mais uma vez: o exílio, os nacionalismos, a reabilitação da História, o modo de vida do escritor, e o mercado cultural da arte. Sobre este último: “Os festivais literários que hoje temos não são assim tão diferentes das feiras rurais medievais, nas quais os visitantes caminhavam de tenda em tenda, passando do espectáculo dos engolidores de fogo para o dos malabaristas. Actualmente, os escritores já não aborrecem o seu público com uma leitura; hoje em dia, actuam. ”Em Raposa, a autora croata parece querer reivindicar uma maior veracidade para a magia da literatura, a que nos ajuda a resistir ao vazio.
REFERÊNCIAS:
A Espanha folclórica e andrógina atravessa o corpo de François Chaignaud
O coreógrafo e bailarino François Chaignaud e o músico Nino Laisné andaram por várias regiões espanholas à procura de tradições seculares ligadas à música e ao movimento. Daí resultou Romances inciertos, un autre Orlando, uma ópera-ballet que desestabiliza o lugar do feminino e do masculino. Em estreia nacional no Palácio da Bolsa, no Porto, sexta e sábado. (...)

A Espanha folclórica e andrógina atravessa o corpo de François Chaignaud
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: O coreógrafo e bailarino François Chaignaud e o músico Nino Laisné andaram por várias regiões espanholas à procura de tradições seculares ligadas à música e ao movimento. Daí resultou Romances inciertos, un autre Orlando, uma ópera-ballet que desestabiliza o lugar do feminino e do masculino. Em estreia nacional no Palácio da Bolsa, no Porto, sexta e sábado.
TEXTO: Mesmo com quatros músicos em palco, mesmo com um deles a dar tudo, e bem, no bandoneón, é difícil não centrar o olhar em François Chaignaud. Entra em cena muito suavemente, mas também muito dramaticamente, com um figurino medieval feito à medida, uma face impecavelmente maquilhada, um corpo que tanto poderia ser de homem como de mulher. O bailarino e coreógrafo francês, adepto do transformismo e que tantas vezes põe em confronto, no seu próprio corpo, as suas pesquisas enquanto historiador, é mesmo assim: nunca se sabe como vai aparecer diante de nós, mas é sempre coisa para parar o trânsito. Em 2016, no Rivoli e com o solo Dumy Moyi, vimo-lo de rabo à mostra a equilibrar pássaros na cabeça, entre outras coisas, enquanto cantava árias ucranianas do século XIX e canções medievais sefarditas, inspirado pelas cerimónias theyyam do Sul da Índia. Esta sexta e sábado no Salão Árabe do Palácio da Bolsa, no âmbito da programação do Teatro Municipal do Porto, vamos vê-lo a encarnar três personagens da mitologia espanhola em Romances inciertos, un autre Orlando, uma ópera-ballet criada juntamente com o músico e artista transdisciplinar Nino Laisné. Este espectáculo resultou de um processo de investigação e criação de quatro anos, focado nas tradições orais, musicais e coreográficas espanholas desde o século XVI. Tudo começou com uma residência em Huesca, onde François Chaignaud e Daniel Zapico, um dos músicos que viria a integrar Romances inciertos, apresentaram um performance. A partir daí, Chaignaud e Laisné viajaram por aldeias de várias regiões de Espanha “à procura de melodias e tradições seculares”. “Também trabalhámos com muitos maestros de flamenco, fandango, jota [dança folclórica espanhola]. Todos estes materiais levaram-nos a fazer Romances inciertos”, contextualiza Nino Laisné. “Esta peça nasceu também da vontade em criar um corpo completo, em que as canções e as danças estão muito próximas. Um corpo que pudesse viajar no tempo e na geografia. ”A solo ou acompanhado – muitas vezes com a coreógrafa Cecilia Bengolea, com quem tem a companhia Vlovajob Pru –, François Chaignaud sempre procurou não só fazer convergir referências e repertórios históricos heterogéneos, dos tempos medievais às danças de rua, como ensaiar diálogos íntimos entre o movimento e o canto – e em Romances inciertos subiu definitivamente a parada. Podemos dizer que está mais cantor do que nunca, e também é seguro dizer que isso lhe sai da pele. “Há uma exigência neste espectáculo que nós não queremos esconder”, afirma o coreógrafo. “Na maior parte do tempo, canto num contexto ‘hostil’, em que o corpo está inquieto e desequilibrado. ”Chaignaud é uma figura saturnina, uma presença magnética e exuberante, mas ao mesmo tempo muito real, muito próxima de nós: há uma vulnerabilidade naquele corpo em autoconstrução, entre a disciplina e a libertação, entre o equilíbrio e o desequilíbrio. Ele gosta de complicar, de implicar os figurinos na própria coreografia, como se fossem um segundo corpo. “Este espectáculo é um belíssimo recreio para pesquisar sobre canto e dança, simultaneamente. Adoro as dificuldades que nele existem, as oportunidades formais e, claro, o poder ficcional. ”Romances inciertos, un autre Orlando desenrola-se em três actos, cada um correspondente a uma personagem. A primeira é Donzela Guerreira, uma jovem mulher que corta os cabelos, disfarça o peito e veste-se com roupas de homem para poder lutar na guerra. Depois é a vez do arcanjo São Miguel, “cujas representações pictóricas apresentam sempre uma certa ambiguidade”, descreve Nino Laisné – nos poemas de García Lorca, esta figura é imbuída de “erotismo e androginia”. Por fim, vemos Chaignaud enquanto Tarara, uma cigana andaluza de coração partido. “Ela aparece na música sefardita antes de se ter tornado numa figura-chave do flamenco. Alguns versos fazem referência à sua provável intersexualidade. ”Há uma androginia e uma desconstrução das normas de género em comum entre estas três personagens, que de alguma forma desestabilizam o lugar do masculino e do feminino, pondo em causa a concepção de género enquanto marcador cultural e social estático. Numa altura em que se começa a falar mais sistematicamente sobre estes assuntos, Nino Laisné considera que olhar para estas figuras “das culturas tradicionais” é uma maneira de nos “lembrar” que as questões de género já andam por cá há séculos. François Chaignaud concorda. “Sinto que a perspectiva histórica do espectáculo permite reenquadrar estas questões de uma forma muito mais ampla. A fluidez de género não é uma coisa recente”, observa, referindo que procura reflectir nos seus trabalhos o seu próprio “processo de identidade”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para o coreógrafo, “é muito inspirador” conectar-se com “estas manas dos séculos passados”. “A nível artístico, elas são como fantasmas que visitam os nossos corpos; politicamente, legitimam as negociações de género enquanto processo secular. Impressiona-me o facto de estas figuras serem movidas pela sensualidade e pela intensidade dos seus desejos, que as colocam numa situação de vida precária, mas que ainda assim mostram o caminho para uma acção e agência inspiradoras. ” Outra dessas “manas” é Orlando, a personagem marcante de Virginia Woolf, que apesar de não estar na peça, é evocada no título por causa de algumas “semelhanças” entre o romance de Woolf e a forma como o espectáculo está construído. “Os sonos de Orlando, durante os quais muda de identidade de género, poderiam ser aqui os momentos em que eu saio do palco por alguns minutos, que são como décadas e que me permitem reaparecer com uma identidade diferente”, aponta Chaignaud. Apesar de as questões de género estarem habitualmente presentes nas suas performances, o coreógrafo e bailarino francês diz estar muito mais interessado “na prática de danças e de músicas específicas”. Neste caso, foi beber ao ballet, ao flamenco e ao jota, às danças de corte e às danças com andas. Outro eixo central da coreografia é “os pés, os sapatos, o chão”. Dos saltos altos às andas, aquilo que usa nos pés “determina muitas das (im)possibilidades” do movimento. E isso tem também a ver com as personagens. “Ao colocarem-me constantemente num equilíbrio impossível, estes objectos espelham a procura das personagens, o sentido de risco delas. ”Mesmo que não consigamos tirar os olhos de François Chaignaud – e ele parece que nasceu para isto, para encarnar estas personagens – a verdade é que nem esta Donzela Guerreira, nem este arcanjo São Miguel nem esta Tarara existiriam sem os músicos em palco. “Isto não é um solo com quatro músicos. Os nossos cinco corpos convergem para fazer com que cada figura apareça. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra mulher homem social género corpo donzela
Fernando, Gilberto e a água do Bengo
Angola, terra fantástica, deu-me todas as respostas nas idades das perguntas todas. Devo-o aos irmãos Fernando e Gilberto, ao carimbo que me deixaram. (...)

Fernando, Gilberto e a água do Bengo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-05-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Angola, terra fantástica, deu-me todas as respostas nas idades das perguntas todas. Devo-o aos irmãos Fernando e Gilberto, ao carimbo que me deixaram.
TEXTO: Às vezes, perguntam-me. Chegaram a confrontar-me politicamente, como se o escondesse. A razão por que não me chamo Santos e Castro é prosaica: quando nasci, a lei proibia que alguém fosse registado com mais de três apelidos. Como o apelido de meu pai era composto (Santos da minha avó, Castro do meu avô) e o da minha mãe binominal (Almeida Ribeiro), os meus pais preferiram respeitar a integridade do apelido da minha mãe a transmitir o nome profissional de meu pai. Assim fiquei com os três apelidos do limite legal: Almeida Ribeiro e Castro — e, na cultura da Faculdade de Direito, fiz o “Ribeiro e Castro”. Tenho orgulho e muita honra nos dois irmãos Santos e Castro, grandes referências e exemplos na minha vida e formação, a que dedico o Dia dos Irmãos que se festeja para a semana (31 de Maio). A minha avó, Santos, e o meu avô, Castro, eram ambos de longa ascendência madeirense, ilhéus mesmo ilhéus — não lhes conheço avoengo doutra terra. O meu pai, Fernando, nasceu no Funchal, em 1922; o meu tio, Gilberto, era angolano, nascido no Lobito seis anos depois. O meu avô Castro fez-se oficial das Alfândegas e concorreu à carreira de África. Colocado como director em São Tomé, quando o meu pai tinha três meses de idade, navegou com a família para África. Poucos anos depois, é colocado em Angola, onde parece que a carreira se fazia de sul para norte: Moçâmedes (hoje, Namibe), Benguela, Lobito e Luanda. O meu tio nasceu na escala do Lobito, mediando seis anos dessa errância africana. Depois, a família rumou a Luanda, onde ficou até 1939, altura em que o meu avô se reformou, por problemas de saúde, vindo para a Amadora e, enfim, Lisboa. Os seis anos de diferença não perturbaram a coesão e cumplicidade dos irmãos Santos e Castro. Sempre me lembro deles assim, desde Mafra ou Lisboa a Luanda, Salazar, Cambambe ou Massangano, ou a Madrid e Lisboa outra vez. O meu tio Gilberto era assaz selectivo nos alimentos. Cunhou esta frase: “Não como camarão, e gafanhoto também não; não como caranguejo, nem aranha. Não como bichos de forma pouco definida, nem animais com asas. Não como caça, nem mamíferos abaixo de vitela. ” Se interrogado sobre o apertado catálogo alimentar, proclamava: “Eu é que sou de ‘boa boca’. Não como de tudo. ”Quando tinha dez anos, num jantar de festa em Luanda, notou que o meu pai, com 16 anos, punha os rabanetes de parte. Era uso, então, decorar pratos e travessas com rabanetes, nomeadamente bifes, carne assada ou quejandos — ainda apanhei esse costume por meus avós. Perguntou o meu tio, que tinha o seu geniozinho inventivo: “Fernando, tu não comes os rabanetes?” Perante o olhar de espanto do meu pai, atalha a minha avó: “Porquê? Gostas de rabanetes?” Resposta pronta: “Eu gosto muito de rabanetes! Como sempre os rabanetes. ” E, para não ser desmentido, comeu os dois rabanetes que tinha no prato. A consequência, reza a lenda familiar, foi a de, por uma semana inteira, só ter, no prato, rabanetes para almoço e jantar. Não acredito que a minha avó, que era brincalhona, fosse tão severa. 24 horas de dieta de rabanete terão bastado para educar o génio do filho mais novo — e completar o seu catálogo alimentar: nunca o vi comer rabanetes. Aliás, a ninguém — rabanete era paisagem. Viveram a infância e a juventude em Angola. Eram angolanos, embora só um nascido lá. Foi por eles que, muito antes de lá ter ido, bebi a água do Bengo, o feitiço que marca os que lá viveram ou por Angola se deixaram tocar. As histórias de juventude que lhes ouvia, as aventuras, as brincadeiras, as paródias, eram de Luanda. Cresci com esse mistério distante. Com a guerra em 1961, o meu tio, que era militar, foi para Angola, onde faria três comissões e fundaria os Comandos. Seguíamos com ansiedade as notícias. Mas lembro, em especial, o Verão de 1963, altura em que o meu tio voltou cá. Eu tinha nove anos. Recordo, ainda maravilhado, os serões na pequena varanda de S. Domingos de Rana, na casa que viria a ser de meu irmão e meus sobrinhos. A casa está muito diferente, a varanda ainda lá está. Era a varanda onde o meu pai gostava de pôr-se literalmente a ver navios, de binóculos assestados sobre a foz do Tejo, lá em baixo, em São Julião da Barra. A varanda que dava para a pequena salinha onde, três anos depois, noutro Verão famoso, o do Mundial 1966, escaqueirei um divã, aos pulos consecutivos de entusiasmo, a partir do terceiro golo de Portugal contra a Coreia do Norte — aquele jogo inesquecível que vencemos por 5-3, depois de estarmos a perder 0-3. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Depois de jantar, o meu pai e o meu tio foram para a varanda, onde só cabiam os dois, à conversa pela madrugada dentro. Eu sentei-me no chão, atrás, já na salinha, a escutá-los. O meu tio falava mais, meu pai punha as perguntas. Também terão falado da guerra, mas disso não me lembro; lembro as memórias da terra. Lembro-me porque eram sítios que nunca vira, apenas podia imaginar, por entre o diálogo dos irmãos, carregado de saudade, episódios, exclamações e gargalhada. O Aero-Clube, a Fortaleza, a Samba, a marginal, a Brito Godins, a Mutamba, as Ingombotas, o São Paulo, a Maianga, Cacuaco, a estrada de Catete, a ilha, o Clube Naval, a alfândega, a Cidade Alta, o Liceu Salvador Correia. . . “E à Restinga, Gilberto, foste?” Sim, o meu tio também tinha ido à Restinga, no seu Lobito natal. Foi por eles que bebi à água do Bengo. Quando, no Verão de 1970, fui pela primeira vez a Luanda com meus pais e meu irmão, pareceu-me que já conhecia, por causa daquele Verão de 1963 e doutros serões assim. Não sonhavam de todo que um viria a ser governador-geral e outro do distrito de Cuanza Norte. O meu tio vivia, então, no bairro de Alvalade, onde moravam alguns militares com suas famílias. Acompanhei, deliciado, os dois irmãos, na romagem pela infância e juventude. Fomos à casa que tinha sido a de meus avós, de que não lembro a morada. Na minha memória, ficou como a casa do “Quitufo”, porque aí ouvi, em directo e ao vivo, a formidável proeza. O “Quitufo” era o gato da minha avó. Foi recrutado pelos dois irmãos, sob a orientação técnica de meu pai, para uma experiência aeronáutica. Subiram ao telhado da casa, enfiaram o gato num saco de pão, com a cabecita de fora, penduraram-no pelos atilhos no cabo de um guarda-chuvas e lá foi o bichano de herói paraquedista até ao chão. A experiência tinha pouco risco, uma vez ser conhecido que os gatos têm sete vidas — e, ali, só arriscava uma. Aterrou, aliás, de boa saúde. Tão boa que, mal os irmãos o libertam do saco, o felino fugiu como um foguete; e só apareceu dois dias depois, para grande inquietação da minha avó. Creio que foi poupada à razão do desaparecimento. Por providência divina, os gatos miam e não falam. Nunca houve denunciante. A marca que tenho de Angola é de histórias entretecidas comigo mesmo, em que as imaginadas são mais fortes do que as vividas. Angola, terra fantástica, deu-me todas as respostas nas idades das perguntas todas. É por isso que tenho tanta pena de não ser angolano. Devo-o aos irmãos Fernando e Gilberto, ao carimbo que me deixaram.
REFERÊNCIAS:
Será que andas a engordar o teu animal de companhia com mimos?
A comida demasiado gulosa — ou dada em quantidades não medidas — e os extras para compensar a tua ausência ou a falta de tempo, associados a um estilo de vida sedentário, podem ser responsáveis pelo teu cão ou o teu gato estarem a ficar gordinhos. (...)

Será que andas a engordar o teu animal de companhia com mimos?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 17 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-12 | Jornal Público
SUMÁRIO: A comida demasiado gulosa — ou dada em quantidades não medidas — e os extras para compensar a tua ausência ou a falta de tempo, associados a um estilo de vida sedentário, podem ser responsáveis pelo teu cão ou o teu gato estarem a ficar gordinhos.
TEXTO: Se fazes parte do clube de tutores de coração mole (como eu) e não resistes à patinha do teu cão a bater-te na perna enquanto comes ou ao ar de "Gato das Botas" do teu bichano enquanto preparas a sandes de fiambre, então este texto é para ti. Repito, eu também faço parte deste clube. Adoro os meus animais e não sou imune aos seus encantos. Mas, pela saúde deles, obrigo-me a não ceder à tentação e recompenso-os de outras maneiras, de forma mais saudável e apropriada à sua natureza. A comida demasiado gulosa — ou dada em quantidades não medidas — e os extras para compensar a tua ausência ou a falta de tempo, associados a um estilo de vida sedentário, podem ser responsáveis pelo teu cão ou o teu gato estarem a ficar gordinhos. Apesar de achares muita graça ao refego fofinho ou à pele pendente da barriga que já toca no chão, a verdade é que “gordura não é formosura” — e esse excesso de peso que ele carrega também traz problemas de saúde e menos anos de vida. Recompensá-lo com comida ou snacks em vez de atenção, festinhas, passeios e brincadeiras, é “estragá-lo” com mimos de uma forma que lhe pode fazer mal. Eu sei que a intenção é boa, que ele fica feliz e nos agradece com lambidelas ou turrinhas e ronrom, mas a verdade é que, da mesma maneira que uma goma ou um chocolate não substitui um abraço e um beijo de um pai, também aqui as recompensas na forma de comida nem sempre são as mais saudáveis para os animais — tanto em termos físicos como emocionais. Ao contrário de ti, o teu animal de companhia não tem controlo sobre a alimentação e o exercício que faz, conta contigo para estabeleceres as regras e um plano. Isso inclui uma atenção especial da tua parte para reparar se algo não está bem: se o teu gato já não sobe para os móveis ou salta para a janela como antes; se o teu cão já não corre para a porta assim que dizes “vamos à rua” ou passou a ressonar muito mais enquanto dorme; se se cansa mais do que era costume. É importante saberes que a obesidade é considerada uma doença crónica. E que está intimamente associada ao aparecimento mais precoce de uma série de patologias — osteoartrite, diabetes mellitus, problemas cardiovasculares e respiratórios, entre outros — que provocam uma perda significativa de qualidade de vida nestes animais. Tal como reparas quando ele está doente e o levas ao veterinário de imediato, também aqui o médico dele te poderá ajudar a decidir se está na altura de dar início a um programa de perda e controlo de peso, com uma dieta especialmente formulada para o efeito e um plano de exercício adequado à idade e condição física. Atenção: cortar apenas nas quantidades do alimento de manutenção é batota, pouco saudável e pode mesmo provocar-lhe desequilíbrios nutricionais. Na consulta de controlo do peso, o veterinário terá a oportunidade de perceber se o teu animal tem apenas excesso de peso (10-20% acima do peso ideal) ou se já sofre de obesidade (>30% de excesso de peso). A partir daí, desenha um plano alimentar e de exercício de acordo com as suas necessidades e particularidades específicas, que o ajude a voltar ao peso ideal. E para quem não consegue deixar de dar algum “miminho” extra, o veterinário poderá até incluir alguns snacks saudáveis e de baixo teor calórico (como courgette, cenoura ou o alimento húmido da dieta de perda de peso), que não estraguem o resto do plano. O importante é teres noção de que os “extras” nunca devem ultrapassar os 10% do aporte calórico diário. Aqui, mais uma vez, a moderação e o bom senso devem imperar. O tratamento deste problema depende sobretudo de ti e das mudanças que deves fazer nos teus hábitos e no ambiente que o rodeia. Para o sucesso, há que voltar a equilibrar a balança de consumo/gasto calórico. Daí a importância do exercício físico e da escolha de um alimento adequado no seu todo em termos calóricos e nutricionais, que seja eficaz na perda de peso, mas que o faça de uma forma saudável. Há muitas maneiras de se fazer isto. Não tem de ser um “castigo” nem um regime militar. O compromisso de toda a família e o acompanhamento contínuo assegurado pela equipa veterinária são fundamentais. Se não estiverem todos “a bordo” deste barco, não vão conseguir levá-lo a bom porto. Porque o caminho é longo, trabalhoso, pode ser frustrante e haver a tendência para desistir, tal como acontece nas nossas dietas. E, por isso, sempre que tenhas alguma dúvida ou questão, não deixes de falar com a equipa veterinária que acompanha o teu animal. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Raramente as recomendações iniciais da quantidade de alimento são as que depois prevalecem no longo prazo. Há animais que atingem o seu peso ideal em três ou quatro meses, outros levam seis meses a um ano. Há outros até que nunca o chegam a atingir (é por exemplo o caso dos mais seniores). Mas, nestes, por pouco peso que percam, ganham muito mais vitalidade e qualidade de vida. Têm de se ir fazendo os ajustes necessários, pois há animais que vão perder peso demasiado rápido (o que pode ser muito perigoso, especialmente nos gatos) e outros que vão precisar de fazer uma maior restrição calórica e intensificar o exercício para voltarem a ficar fit. Muito mais do que os números na balança, o que interessa são as melhorias que vais notar ao longo das semanas ao ver o teu animal de estimação mais brincalhão, feliz, e a fazer coisas que não fazia desde que era jovem. Quando perdem peso, parece que “ganham pilhas novas”. E tu ganhas um companheiro mais activo e saudável por mais tempo.
REFERÊNCIAS: