Dilma, Serra e Marina têm 15 anos e estudam na Paulista
Dilma pode ser um menino de poupa? E Marina um mulato muito vivo? E Serra uma menina de gravata? Numa escola histórica de São Paulo, pode. (...)

Dilma, Serra e Marina têm 15 anos e estudam na Paulista
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 5 Homossexuais Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.1
DATA: 2010-09-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Dilma pode ser um menino de poupa? E Marina um mulato muito vivo? E Serra uma menina de gravata? Numa escola histórica de São Paulo, pode.
TEXTO: À esquerda um arranha-céus, à direita um arranha-céus, no meio isto: um casarão com cem anos. É o número 227 da Avenida Paulista, onde o metro quadrado há-de ser dos mais caros do Brasil. E eis esta resistente de um piso só, a Escola Rodrigues Alves, bela escola pública, memória do fervor republicano. Enquanto aqui à volta moram e trabalham os ricos, nesta escola estudam os filhos dos zeladores, das recepcionistas, das enfermeiras que trabalham no hospital em frente. Meninos de classe média-baixa rodeados de classe alta. E com as turmas do 8. º ano - o último do ensino fundamental, entre os 14 e os 15 anos - a professora de Português Priscilla Obrecht tem estado a trabalhar a matéria do momento: a eleição. Ao longo de semanas, os alunos estudaram os candidatos, os programas, os assuntos. E hoje vão fazer um debate, como na televisão. O PÚBLICO é o convidado, trazido por Priscilla. Aqui vem ela, cheia de dossiers, no corredor centenário. Madeiras, vitrais, eco. "Mas o outro edifício não é assim, não. . . ", vai avisando. No casarão estão as turmas dos pequenos, e no anexo estão os mais velhos. É um espaço bem batido pelo uso, sem charme de restauro, uma verdadeira escola pública brasileira: carteiras riscadas, recreio de cimento, alunos brancos, mulatos, negros, asiáticos. Percorremos corredores, com colegas de Priscilla a aparecer. Vão todas votar em Marina Silva, a candidata do Partido Verde que só tem subido nas sondagens. "Já viu os candidatos exdrúxulos que a gente tem? Tiririca [um comediante]. . . Mulher Pêra, Mulher Melancia [garotas de revista]. . . "7h15 da manhã, aula aqui é cedo. E o 8. º C já está todo na sala, mesas em volta, preparadas para o grande debate. Cada candidato tem um papel à frente com o nome, e uma equipa de assessores, o que significa que toda a turma participa. Espectadores só Priscilla e o PÚBLICO (ah, sim, e aquele par de meninas alheadas, lá atrás). Os candidatos apresentam-se. Género: "Eu sou o João Pedro. Sou a Dilma, do PT. " Um rapazinho de poupa com gel. Ou:"Bom dia, sou o Luís. Sou a candidata Marina Silva, do PV. " Um mulato com jeito de quem vai ganhar o debate. Ou ainda:"Eu sou Rafael. Sou o José Serra, e o meu partido é o PSDB. " Um cabeludo tímido, voz num fio. Depois há os candidatos a governador de São Paulo, nomes que não são tão familiares aos leitores portugueses - Geraldo Alckmin (PSDB), Aloizio Mercadante (PT), Celso Russomanno (PP), Paulo Skaf (PSB) ou Luís Carlos Prates, conhecido como "O Mancha" (PSTU) - mas significam a disputa pelo maior estado do Brasil, 40 milhões de pessoas. Vários estão representados nesta sala. "Marina, começa com a pergunta", diz Priscilla, apontado para Luís, o mulato bem-seguro. "Dilma Rousseff", começa ele. "Há 18 milhões de pessoas em fila de espera para o programa Minha Casa Minha Vida. O que você pretende fazer em relação a isso?"Dilma, o rapazinho da poupa, volta-se para trás e conferencia com os assessores. Resposta: "Manter a calma. " É a idade antes da política. A sala ri. Educação, saúde, ambienteO candidato a governador Skaf pergunta agora ao actual governador Alckmin (que provavelmente vai ser reeleito) se manterá a progressão continuada nas escolas, quando "tem muita gente no 8. º ano que não sabe ler nem escrever". "É que aqui em São Paulo até ao 8. º ano os alunos não reprovam, a progressão continuada é isso", explica Priscilla. Resposta do governador Alckmin: "Essa questão de passar alunos que não sabem ler e escrever é coisa séria. Eu vou aumentar o período escolar. "José Serra, candidato a presidente do mesmo partido, vem em seu socorro. "Nós vamos reforçar a ajuda aos alunos", diz, repetindo as palavras que a sua assessora de rabo-de-cavalo lhe bichana ao ouvido.
REFERÊNCIAS:
A viagem do sr. Olhos Grandes ao Japão
Uma semana dá para uma vida inteira a ter vontade de voltar. Vamos por Tóquio, Quioto, Hiroxima, pela natureza de Hakone, pela beleza da ilha de Miyajima, por vislumbres de Osaka. Uma viagem íntima sob o encanto do Japão. (...)

A viagem do sr. Olhos Grandes ao Japão
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma semana dá para uma vida inteira a ter vontade de voltar. Vamos por Tóquio, Quioto, Hiroxima, pela natureza de Hakone, pela beleza da ilha de Miyajima, por vislumbres de Osaka. Uma viagem íntima sob o encanto do Japão.
TEXTO: Fiz sushi e meditação, recebi uma lição de vida em Hiroxima, lições de filosofia de um artista, conversei com meninas que pareciam desenhos animados, vi Godzillas e robots a dançar, neóns do tamanho do mundo, gritos de karaoke, pus umas orelhas de coelho. Andei por ruas com milhões, ruelas e bares para seis convivas, cruzei o país em comboios-bala, parei o tempo em jardins zen, flutuei em templos e edifícios, fui rebaptizado como Sr. Olhos Grandes, fiz amigos. Eu vi plantar um clone de uma cerejeira com 400 anos. Tenho que voltar para ver a minha árvore. E se de repente um viajante aterrar em Tóquio por volta do meio-dia vindo doutra ponta do mundo, trazendo no corpo umas 20 horas de voos e aeroportos e um salto de oito horas no seu fuso horário natural? O que fazer? Descansar? Era o que faltava. A minha guia, no seu português aprendido no grande bairro japonês fora do Japão (o da Liberdade, em São Paulo), treme no sorriso e no relógio, que o tempo aqui é mesmo regulado ao segundo. É chegar ao hotel, arregalar os olhos para a cidadela que é a minha casa por duas noites, um dos grandes hotéis da cidade com as suas torres – que afinal são apenas mais duas nesta área de Shinjuku dominada por prédios de tirar o fôlego –, perder-me logo entre elevadores e pisos e os 1500 quartos. Tenho 20 minutos para mudar de roupa, descansar, tomar duche. Preparados?Um pé na rua e Tóquio abalroa-nos de imediato. A exuberância da megametrópole é impactante a cada passo por este bairro onde está a mais movimentada estação de comboios do mundo, uma aventura por si própria – junte-lhe o imenso metropolitano e temos o caos instalado (na nossa cabeça). Os olhos fogem-me para os céus, arranham os prédios, caem-me no chão à procura de espaço para o corpo. “Tóquio vem do futuro”, li algures. Seguimos pelas ruas de Shibuya, por Harajuku, olimpos das compras, tento sobreviver à corrente humana que pulsa pela capital japonesa. É complicado e o jet-lag só complica mais. Mas consigo seguir Naomi para o nosso encontro com umas das maiores embaixadoras do Japão no primeiro “templo” de muitos desta viagem. Este é especial e a religião é outra: chama-se KiddyLand e conheço muito boa gente que passaria de bom grado o resto da semana aqui. São seis andares sob o mote “paraíso dos brinquedos”. Há bonecada, japonesa e americana e etc. , para todos os gostos, mas Hello Kitty é omnipotente e omnipresente. A birra aérea faz-me resistir à sedução da gatinha-menina e fujo da loja a sete pés, cruzando fãs da bonecada, piso a piso, que se exaltam a cada novo personagem, a cada nova roupagem, a cada nova Kitty, até com o Charlie Brown (tenho selfies que provam isto tudo). Como hei-de aprender rapidamente, atrás das grandes avenidas sobrepovoadas há sempre algures, nos interstícios do gigantismo do betão – enquanto um “Big in Japan” continua a tocar-me em loop na cabeça –, umas ruelas para respirar fundo antes de voltar a mergulhar na multidão. “Por aqui, por aqui”, vai-me dizendo a minha nova amiga Makiko, jornalista e auxiliadora de visitantes lost in translation (sim, para a lenda da viagem, ela será a Scarlett deste filme). “Por aqui há uma ruazinha com uma esplanada onde se pode beber um cafezinho e fumar” – atenção fumadores: Tóquio é praticamente toda proibido-fumar, bairros inteiros, em todas as ruas; é preciso encontrar a smoking area ou ir a um bar ou restaurante com espaço de fumos. Cá fora, lá vamos nós, num desfile de prédios de “arquitectura zen”, como me diz Makiko, “uma tendência linda muito actual”, tipo minimal high tech meets zen. São belos, de facto. Além fica Omotesando, zona de modas, grandes marcas, galerias, forças gourmet. A meio da tarde, exércitos de trabalhadores deslizam os fatos mais afinados que me já foram dados a ver e fazem caminho neste caos ordenado, por entre grupos de jovens onde cada subcultura é marcada por uma identidade tão única quanto colectiva – feita de símbolos, roupas e bonequinhos, tatuagens, cortes e cores de cabelo do arco-da-velha. Eles sabem os passos todos, eu é que ando sempre a embater nesta cacofonia, como se estivesse num videogame qualquer, o pacman provavelmente, a tentar sobreviver no labirinto até conseguir devorar tudo o que me seja possível devorar, até devorar o Japão. A calma só vai chegar com uma aula de sushi com o sr. Sushizanmai, na escola Kiyomura Juku – na zona de Tsukiji, onde fica o mais espantoso e movimentado mercado de peixe. Entro com Naomi, Makiko e Junko (também da rede de apoio a jornalistas a precisar de ajuda como eu) para Tsukiji, zona onde está o grande mercado de peixe local e um dos maiores do mundo – eram horas impróprias para visitas nem a agenda o permitiu, mas numa próxima viagem é obrigatório. Ora que melhor zona que esta para um rapaz sem jeito para a cozinha nem gosto especial pelo sushi se tornar um sushimaster pronto-a-servir? Bem-vindos às cozinhas da Kiyomura Juku, a escola gerida por um afamado restaurante, Sushizanmai. E seguem-se mais peixes fatiados (carapau, atum, salmão), para dispor em camadas sobre bolinhas de arroz (nigiri sushi, sublinhe-se). E no fim, enquanto toda a sala – chefe, alunos de um lado para o outro, guias – se riem do meu muito jeito, comemos todos aquele opíparo manjar. E assim nasceu um novo fã de sushi, eu próprio, porque o meu estava uma delícia. Quem diria que o sushi pode saber a orgulho?A noite cai sobre Tóquio e a cidade começa a vociferar em neóns, embora, obviamente, a capital japonesa até dispense a escuridão para acendê-los. É todo o santo dia. Milhões deles, uma poesia visual que nos invade. Ando a catrapiscar entre gigantescos anúncios e ainda hoje sonho com desenhos de luzes, bonecos e caracteres japoneses. Naomi e Makiko vão-me guiando por este caleidoscópio que deixa qualquer português rendido pelo choque contínuo. “E por que anda tanta gente de máscara na boca e nariz?”. “Oh, uns é porque estão gripados, outros porque não querem gripar”. O certo é que é opção de muitos e refira-se que, para a dimensão, Tóquio até tem uma qualidade de ar satisfatória, segundo as medições oficiais. Vamos por Ginza, coração vibrante da riqueza japonesa, sítio fino, milhões pelas ruas, como sempre, os prédios a faiscarem de neóns. Vamos num entra-e-sai de lojas e damos por nós no Dover Street Market, grandes armazéns que albergam luxos de Prada a Vuitton e que são também uma instalação artística. Há ali uma escultura dum grilo gigante a olhar-se no espelho que me vidra. Há vendas e exposições, artes e a fina nata da vanguarda da elite japonesa cool e com muitos ienes na carteira. Para não sentir palpitações, é melhor desviar o olhar dos preços nas etiquetas, é melhor descer à cadeia japonesa Uniqlo, mais em conta, ou subir ao último piso. “É um segredo”, diz-me Makiko. No topo, a céu aberto, um jardim nos ares com um santuário xintoísta, Tenku Jinja, que, embora na localização mais moderna da cidade segue todo os preceitos tradicionais. Um sossego com vista para o desassossego de Tóquio. Respira fundo, desce de novo à terra. Cá em baixo, entramos no fabuloso e exclusivíssimo supermercado, de onde entre cogumelos a centenas de euros e vegetais que nunca os meus olhos tinham visto a preços idem, ibidem, surge uma prendinha doce para mim. Makiko compra-me uma fatia de kasutera, melhor dizendo castella, melhor dizendo o pão-de-ló japonês que deve tudo ao pão-de-ló levado pelos portugueses. E por acaso aqui pela zona fica um dos restaurantes preferidos de Makiko, sim é português (há muitos mais pela cidade e país) e chama-se Manuel (há mais Manuéis ou um Caravela) e até tem fados. Querem melhor final feliz para a primeira noite?Está bem. Entramos no colossal prédio da Nissan, o Nissan Crossing, onde brilham exemplos extraordinários da indústria automóvel japonesa. Algures por um dos pisos, uma diversão maravilhosa: um portal de realidade virtual permite-me, com os óculos especiais, conduzir um Nissan pelas curvas de Monza. Quem diria que o jet-lag faria de mim tão bom condutor?Depois desta adrenalina e de novo mergulho na noite de Tóquio, enquanto os meus 14 milhões de vizinhos parecem ainda estar todos na rua, conduzo-me até ao meu hotel-cidadela. Entre HelloKittys, sushis, hightechs, neóns, a imparável vida desta cidade, a minha cabeça é um farol. Foi longo o primeiro dia, naturalmente, e termina comigo a olhar das janelas do meu quarto no 33º andar para a vizinhança da frente, um portento do poder local. É o prédio do governo metropolitano. Sobe a 243 metros e duas torres. Num longo dia de corridas para o passado e para o futuro, eis aqui os sinais do futuro que se segue. A decoração deste titã são apenas dois cartazes onde se lê Tóquio 2020, sob anéis olímpicos. O futuro está à porta. Reerguida das cinzas, destruída pelas bombas da 2ª Guerra Mundial, esta cidade, toda ela novíssima, é deslumbrante nas suas idiossincrasias. E por que nós portugueses nos vamos dando tão bem com os japoneses, pergunto-me? Desconheço a resposta, mas com mais língua ou menos língua (o inglês é, ao contrário do que se possa pensar, pouco frequente), há um qualquer elo secular. Será porque chegamos ao Japão já lá vão quase cinco séculos? Está bem que foi particularmente para cristianizar e negociar (foco: espingardas), é um facto. Mas há uma relação qualquer de afecto aqui, garanto-vos, e isto deixou heranças na língua, na gastronomia, na cultura. “Porque toda esta gente do Japão é naturalmente muito bem inclinada e conversável”, já escrevia Fernão Mendes Pinto na sua seminal Peregrinação (lembra-te de fazer sempre uma vénia bem inclinada a cada cumprimento e despedida) – só é pena a maioria falar naturalmente japonês. Mas o segundo dia é passado pela mão de Masatoshi Watanabe, que fala português, espanhol e catalão e aprendeu isto tudo na também minha Barcelona. Isto vem a propósito daqueles momentos inesquecíveis que cada um de nós tem nas suas viagens. Sabem aquela de um português e de um japonês num comboio-bala a uns 300km/hora (sendo que o extraordinário Shinkansen pode acelerar ainda mais) pelo Japão fora a cantarem o hino da Catalunha num catalão quase perfeito? Pois. É o que vai acontecer mais logo. Por agora, Luís e Watanabe vão pela Tóquio mais tradicional, pelos vestígios do que sobrou. O programa aqui é mais convencional, com obrigatória e abençoada paragem nos jardins do Palácio Imperial (que só se pode espreitar em ocasiões especiais), onde reside a família imperial, outrora o castelo da era Edo, tempo do poder dos shoguns até estes serem superados pelo imperador, na altura em que a antiga capital, Quioto, foi trocada pela nova, Tóquio, em meados do séc. XIX. Além, as cerejeiras em série, que na Primavera são um espectáculo sakura por si só. Aqui, um parque imenso, pulmão de Tóquio, por onde espiamos pontes, jardins e jardineiros, sumptuosas portas de entrada, casas de guardas – e até, por entre a folhagem, nós e demais turistas nos entretemos a ver à distância os agentes em vestes tradicionais nos seus treinos marciais, no caso, kendo, quis-nos parecer pelo tak-tak tak-tak das espadas de madeira. É um passeio demorado e prazenteiro que abre o apetite, por isso, para interligar a História imperial e actual, vamos agora por Nagatacho, no centro político do país - zona do Parlamento e da residência do primeiro-ministro - e por muito do imaginário do Japão à mesa. Porque saltamos logo a seguir para um restaurante de cinema, o Kurosawa. Sim, precisamente como o grande Akira, que tanto Japão deu ao mundo nos seus filmes – e que no meu caso é muito do meu olhar para este país. Sapatos à porta (como em todos os locais que usam tatami, o tapete japonês), casa rústica de madeira que parece saída das películas, salinhas quase íntimas, este Kurosawa, ligado à família e equipa do realizador, presta homenagem ao mestre, confesso apaixonado pela gastronomia. Ora aqui, cercados por grupos de profissionais a almoçar (por acaso nem dei por turistas, “vêm aqui muitos políticos e famosos”, segreda-me Watanabe), passados corredores decorados com posters e memorabilia de filmes do criador (olha os Sete Samurais, o Ran, o Yojimbo) é tempo para deleite, soba (massa japonesa), shabu shabu (um cozido, porco, vaca), sopa de miso ou muito especialmente de tempura, mais uma herança lusa, tipo peixinhos da horta, aqui em edições vegetais ou de mariscos. Duas bolas de perfeito gelado de chá verde selam o filme do almoço, um chá serve de brinde ao sr. Kurosawa que à saída deste cenário me observa com um semisorriso de fotografia e óculos escuros e a quem rapto um envelope com uma dúzia de belos postais com imagens de storyboards dos seus clássicos. A sua bênção, mestre. A tarde será passada noutra estranha mistura de tempos, da religião ao universo anime (a animação japonesa que mudou para sempre a nossa infância e a forma como vemos o Japão), melhor espelho duas faces do Japão é difícil. Bem tentaram os portugueses e particularmente São Francisco Xavier no séc. XVI, convencer os japoneses que o cristianismo é que era. O budismo e o xintoísmo venceram mas a pregação do jesuíta deixou marcas. A ilha do sol nascente, um dos poucos países asiáticos a escapar ao colonialismo europeu – o que lhe terá dado força anímica, bélica e espiritual para tornar-se uma força colonizadora e imperialista – optou cedo pelo budismo e pelo seu particular culto do xintoísmo, embora inicialmente tenha recebido bem e guardado boas memórias e ensinamentos de Xavier e companhia – “São Francisco de Xavier é ainda hoje em dia mais conhecido no Japão que o Cristiano Ronaldo”, hão-de garantir-me, se bem que, na minha viagem, o jesuíta tenha perdido com o futebolista 2-0 o jogo da fama: zero referências para Xavier, um belo par de anúncios de Ronaldo. As duas religiões dominantes convivem no dia-a-dia, beberam e bebem uma da outra. O xintoísmo é uma crença animista praticada no país desde a Antiguidade, uma devoção à Natureza, aos antepassados, a muitos (muitos) deuses, que abarca o tudo e o todo – lembremos aqui que este moderníssimo país superindustrializado com mais de 127 milhões de pessoas, um dos maiores e com maior densidade populacional do mundo, é sistematicamente afectado por catástrofe naturais, por terramotos e tufões. O budismo japonês, repartido por várias correntes e seitas, convive diariamente com a prática xintoísta, “o caminho dos deuses”, tanto nas casas, como nas ruas, como nos templos das duas fés, que frequentemente são vizinhos. Deuses e espíritos são kami. E kami pode ser qualquer coisa (“temos oito milhões de deuses”, diz-me Watanabe). É no centro dessa união de fés que estamos agora, em Asakusa, bairro tradicional onde ainda se sente o passado e afluem milhares de turistas. Porque aqui está o imponente templo budista Sensoji, o mais antigo da capital, que remonta ao séc. VII. Toda a gente quer fotografar-se na bela porta de Kaminarimon, um ícone com os seus pilares decorados, divindades e gigantesca lanterna vermelha. Às portas do templo e do pagode, reconstruídos após a Segunda Guerra Mundial, crentes e visitantes aglomeram-se pela velha rua comercial de Nakamise, centro de peregrinação dos fiéis dos souvenirs e dos petiscos – há-os para todos os gostos e vale a pena também dar um salto às lojas das redondezas por Shin-Nakamise e Kappabashi. Ali pelo caminho, um painel de Omikuji dita-nos o destino: é meter uma moedinha, abanar um tubo, receber um número, retirar da respectiva gaveta o papelinho. A mim, sai-me uma “sorte regular” e fico a saber que “se for um bom guerreiro, poderia conquistar e controlar um país inteiro com apenas uma flecha” (espero que seja uma metáfora, que o teclado é mais forte que a flecha). E que “é boa altura para começar uma viagem”. Se a sorte lhe sair má, faça um nó com o papelinho e deixe-o ali amarrado, “para imobilizar os maus espíritos”. Eu trouxe a minha, que os deuses sabem muito. E sabem até conviver: mesmo ao lado do templo, por onde agora vejo a brincar um menino japonês vestido de Super-Homem (os EUA estão por todo lado), está o santuário xintoísta de Asakusa, muito mais calmo e sóbrio nos seus mais de três séculos. Passeiam-se grupos de meninas em quimonos coloridos, vistosos, floridos, visão rara nos dias de hoje. “Turistas”, explica-me Watanabe, “quase todos os que vires de quimono são turistas que alugam a fatiota para se divertirem e fotografarem, os quimonos dos locais são muito discretos e de cores sóbrias”. Outro Japão espera-nos em Akihabara, bairro feérico para onde se encaminham todos os nerds, fãs das tecnologias e electrónica, todos os otakus – que centram a sua vida no culto obsessivo de algo, especialmente da manga e do anime. Ainda para mais muitos deles vestidos como os personagens que veneram. Meninas vestidas de heroínas anime, meninos à dragon ball, é um sem-fim de animação. Esta é a Cidade Eléctrica. Prédios com neóns? Aqui há neóns com prédios. Rolam vídeos, sopram desenhos animados, rodopiam antropomorfias e efeitos especiais. Luzes, câmaras, animação! Os meus olhos fazem zappings imparáveis. Cumprimento o Super-Mário, espreito a Sega, bancas de revistas, faíscam salas de videojogos, máquinas, lojas de gadgets e toda a panóplia tecnológica imaginável. “É o paraíso da fantasia”, resume Watanabe. Ora para habitar tanta faiscante fantasia, onde nos poderemos sentar? Talvez num dos muitos cafés-fantasia do bairro, como o Maidreamin Heaven's Gate, onde tudo fofinho, querido, cute, moe moe, e as meninas se vestem de criadas “inocentes”. Cá fora, a cidade parece-me agora saída do Blade Runner. Para logo a seguir, parecer-me dos tempos dos samurais, mal entramos no Sengoku Buyuden, um izakaya (a taberna japonesa), por Shinjuku. O que é natural, é mesmo um restaurante que homenageia os guerreiros, entre armaduras e reservados com pinturas que imitam as dos seus castelos e retiros. É neste cenário de filmes (mesmo) que relaxamos entre sashimis e espetadas (eu vi ali carne de cavalo na ementa?). Umas cervejas e uns sakes preparam-nos para o acontecimento seguinte, que bem vamos precisar de uns copos. Sentemo-nos numa “terra dos sonhos”, num “paraíso da inocência”, no Maidreamin Heaven's Gate, portal onde entras num desenho animado. Ah, e as maids, que parecem todas ter 10 ou 12 anos (são maiores de 18, isso é certo), vestem-se de criadas antigas à francesa, dir-se-ia, com ligeiros retoques anime. As comidas e bebidas parecem todas ter sabores e decorações infantis. O corrupio de gente e barulho por Kabukicho, tradicional bairro da luz vermelha de Shinjuku, é uma obra de arte e hoje em dia centro de atracção para turistas, hipsters, viciados em doses várias da má vida (infelizmente, não tivemos agenda para inspeccionar os verdadeiros red ligth spots…). Por ali, um ovni cintila numa musiqueta repetida à exaustão e em luzes popcirco. É o Robot Restaurant que, apesar do nome, é afamado pelo dito show e não pela comida (aliás nem comemos), top das atracções para turistas pelo seu espectáculo maluco com robots, bailarinos e músicos. A parede da entrada cintila, barafusta, mostra já robôs, efeitos de luzes e visuais. Na casa à frente vai-se buscar os bilhetes reservados (a “bom” preço: cerca de 70 euros, comprados online). Entra-se então para o prédio deste projecto que terá custado milhões e milhões de euros – fala-se em mais de 100 milhões, faz parte da lenda –, partilhado com outras atracções e bares mais, quis-nos parecer, “aluzvermelhados”. Dentro do Robot Restaurant, a festa continua numa sala, montra-aperitivo do que aí vem: toda ela brilha em espelhos e espécies de vitrais com dragões e raparigas. É quase preciso pôr os óculos de sol. Há shows a cada hora e quase cem por cento são turistas – o meu guia apontou uns três ou quatro japoneses numas centenas de pessoas. Quando é dado o sinal, a clientela começa a descer escadas e mais escadas até atingir uma cave gigantesca onde o palco é uma passagem central e os espectadores ficam encadeirados dos dois lados, com paredes-vídeo a lançarem miríades de imagens. Compreendam-nos, acabamos de levar com uma droga forte e ninguém consegue raciocinar. “É capaz de ser o melhor pior espectáculo do mundo”, digo eu, que sou um poeta. “É isso! Sim! Sim!”. Riem-se e vão à sua vida, ainda cambaleando pela rua, soltando um último grito: “Mas quanto mais bebíamos melhor ia ficando o show!”. Depois disto, por favor, dêem-me um sake ou um whisky japonês (do melhor do mundo) num qualquer barzinho das ruelas da Golden Gai (cidade dourada, por sinal), dois dedos de conversa (pode ser no Kodoji, bar de fotógrafos) e estou arrumado. Esta Tóquio é uma confusão maravilhosa e um jogo de cintura contínuo entre a alta tecnologia e a tradição enraizada nos corpos. Enquanto sigo Makiko que, no seu vestido vermelho, rola a sua bicicleta por ruelas e pela noite, sei bem que esta Tóquio de filme ainda me vai dar insónias. E saudades. No Kodoji, vizinho de centenas de espacinhos íntimos e semelhantes pelas ruelas e becos da noctívaga Gai, entro seguindo Makiko por corredores e escadas estreitinhas. É um dos bares mais pequenos do mundo numa das maiores cidades do mundo. Devem caber umas seis pessoas bem contadas. Mas as suas estantes, balcão, pessoas e paredes, tornam-no um dos maiores bares do mundo. Porque é o bar duma comunidade de fotógrafos e nas paredes está uma exposição de fotografias de Natureza por outro Japão. Ao balcão está Aya Okabe. Por sinal, claro está, fotógrafa. E que lançou um livro com uma capa que não me sai dos olhos, “Appare”, onde um rapaz seminu (de calções de sumo, uns mawashi) segura uma grande melancia nas mãos enquanto uma árvore cresce atrás dele. Durante toda esta semana outonal é o calor que impera neste nosso Japão. Depois de Tóquio, precisamos de paz e frescura. E a escolha é Hakone, no parque natural de Fuji-Hakone-Izu, caldeira em monte vulcânico (nota: activo, hoje calmo, há notificações diárias). De vez em quando vislumbro o vizinho Monte Fuji, mas hoje está enevoado e só o pressinto, ainda assim, de vez em quando, catrapisco esse deus natural. O romântico comboio Romance Car (é mesmo romântico, bendito) leva-nos pelo campo – acompanhados de muitos grupos de senhoras idosas a papaguear, afinal vamos para as termas – até à verdura montanhosa de Hakone em hora e meia. E deixa-nos à beira do rio Haya-kawa, onde me perco a ver uma garça pesqueira nas pedras a tentar apanhar um peixinho na corrente. Parece o rapaz do Karate Kid em posição de ataque. Temos montanhas, grande lago, fontes termais a pulular por toda a região, complexos hoteleiros baseados nas águas, ryokans (os tradicionais albergues para dormir em futons), banhos públicos, bons ares (tirando o cheirinho a enxofre, particularmente no vale vulcânico, beleza infernal e fumarenta). Um descanso. Vivida a lufa-lufa toquiota, acredite, vai saber muito bem pelo menos um dia de paz em Hakone. Ora a nossa serena agenda passa por passeio de autocarrozinho a serpentar curvas acima até à Hamamatsuya (Hakone-machi), área de artesãos e seus ateliers, onde está uma metáfora da região: marchetaria, artesanato de origem demarcada. A primeira paragem dá-nos a calma da oficina do sr. Ichiro, onde brilham caixas e caixinhas secretas com muitos segredos…A arte chama-se Yosegi Zaiku, uma arte de trabalhar a madeira com embutidos, mosaicos em madeira inacreditáveis incluindo – para mim, a atracção maior – aquelas famosas caixinhas secretas, cada uma com o seu segredo para abrir, tipo cubo mágico (pequena, a minha custou 50 euros). Trouxe uma que por mais que tente ainda estou por conseguir abri-la, e eu que vi e ouvi o artesão, o mestre Ichiro Ishikawa, descendente já em sétima geração da mesma família a dominar a arte, a explicar-me, cercado de pedacinhos e folhas de madeira, tudo sobre a arte e os segredos das caixas, obras que demoram meses e meses de paciência. Ah, turista!Ainda com o som da madeira a ecoar nos tímpanos, vamos embalados pela brisa e pelo arvoredo, spirited away, animados até à origem do curso do rio, o lago Ashinoko, na parte ocidental da caldeira do vulcão. Espera-nos um cruzeiro breve em barco turístico que cruza o lago. O cruzeiro imita um veleiro (em kitsch puro) algo entre descobridores e piratas – há estátuas de capitães e à Barba Negra por aqui, os turistas disparam selfies como se fossem a Mona Lisa. Mas há que dizer que as vistas do lago – mesmo que agora em cenário enublado –, margens verdes e montanhas, templos e casinhas, são admiráveis. Chegados à margem, o ideal seria apanhar o teleférico, que vemos ali pelos ares, para arregalar ainda mais os olhos. Mas está em manutenção. Vamos de autocarro até avistarmos o vale vulcânico de Owakudani. Aposto que em dia limpo a paisagem é ainda mais impressionante. Num dia como hoje, sob um céu de chumbo, cortina de nuvens, fumos vulcânicos a escalarem o vale, só nos resta a imaginação até onde a vista alcança, a dois palmos de distância. E provar os, esses sim, estranhos ovos negros (kuro tamago) locais. São cozidos nos fornos do vulcão e têm direito a um teleférico que os carrega até às “cozinhas”, proibidas para seres humanos. Caixas vão pelos ares, desaparecem nas nuvens e nos fumos e voltam tempos depois com os ovos cozidos e pretos. Ovos das furnas, digamos. O enxofre q. b. fará bem à saúde? É que dizem que comer os ovos dá-nos sete anos extra de vida. Já vos direi um dia destes. Isto é toda uma arte por si própria. A próxima – a que chegamos no delicioso comboio de montanha – Hakone Tozan, vai de Hakone-Yumoto a Gora num passeio cénico – é mais convencional e mescla artes de jardins com as da Natureza e com as da mão humana. No Hakone Open Air Museum integram-se a céu aberto mais de uma centena de grandes esculturas, de Miró a Rodin e Henry Moore, incluindo uma galeria de Picasso. Vais passeando e surge-te uma Vénus, uma gigantona miróana, um ícaro a subir aos céus por entre as árvores, um rosto tamanho casa caído num jardim. Toda uma experiência orgânica nascida graças a um controverso Balsemão/Berardo japonês, o sr. Shikanai, já falecido, milionário que fundou o gigantesco grupo media Fuji Sankei e se tornou um megacoleccionador de arte. O passeio é visceralmente gratificante. “Todos os dias passeio hora e meia logo de manhãzinha, por trabalho e prazer. Todos os dias descubro uma perspectiva, algo novo e admirável”, sorri-me Tsujii Yuri, responsável do museu – o grupo tem outro espaço ao ar livre em Nagano e outro museu em Tóquio. “A colecção é muito grande”, diz-me Tsujii. Acredito. Aqui mesmo em Hakone, a cada temporada muda a Natureza (a região esgota para ver as cores outonais ou primaveris) e podem mudar também obras e exposições. Com o museu a fechar, ao lusco-fusco, há algo de fantasmagórico e belo em tudo isto. À noite, adormeço num quarto com grandes janelões que só deixam ver árvores. Ao longe oiço as águas correrem. Uma bonança que antecipa a chegada àquela que é a (minha) meca desta odisseia japonesa, a eterna Quioto. Confissão íntima: sempre sonhei ver Quioto. Por isso é com uma alegria infantil que salto do comboio-bala e me sinto em casa. Coisas do mundo, dos homens e dos deuses – e, não em vão, estou certo, o que vivi em Quioto ainda vai criar asas no futuro. Antiga capital, Quioto (perdoem o cliché) tem um charme irresistível, entre o zen global, os templos e natureza, os bairros de dimensão humana. Esse charme, e importância histórica e artística mundiais, tê-la-á salvo de danos maiores na 2GM. Os nossos primeiros passos na cidade são para a modernidade (no caso, o cool hotel New Miyako). Os seguintes são para a intemporalidade. No bairro de Kamigyo-ku, pelas ruas estreitinhas, casinhas baixas, ambiente de aldeiazinha, catrefada de fios a cortar os céus, oficinas e frutarias, mercearias e lojinhas, há um Japão que vive na Tondaya, velha casa e património, onde se pode entrar pela História adentro e fazer parte de actividades icónicas, como a venerada cerimónia de chá. Sacralizados pela cerimónia, estamos prontos para cirandar pela Quioto eterna, abençoada pelas águas e cercada por montanhas, que começa a mostrar a sua exuberância natural de telas outonais, um avermelhado ali, uma folhagem a amareceler ali. Hai. Em cada canto parece haver uma nova beleza e um Património da Humanidade – e em cada canto há um turista, fazemos todos parte da multidão, Ainda assim, tirando as grandes atracções, dos templos idílicos aos jardins zen, nem é muito difícil encontrar recantos pacatos. Na Tondaya, Ayano, 23 anos, recebe-nos no seu quimono segunda pele. Tondaya é uma casa tradicional, por gerações criadora de quimonos, hoje Património Cultural Nacional. Construída no séc. XIX é um primor de salas e tatamis, jardins zen e poços, santuários budista e xintoísta, materiais e madeiras nobres, pedra e bambu, majestosa sobriedade. Como é o caso, apesar de concorrido, do Castelo de Nijo, epicentro da cidade tão grande que permite escapar, aqui e ali, às massas. É que Quioto é a cidade mais popular do Japão para os turistas, com mais de 50 milhões de visitantes anuais para uma cidade de milhão e meio de habitantes. Sendo que, aliás, a política de crescimento do turismo local é promessa lapidar dos governantes, em particular do presidente da câmara. Parecia um dia de Verão do séc. XVII, quando andávamos a passear por este complexo nascido nesse mítico período dos senhores da guerra: foi a residência do primeiro shogun do período Edo, depois palácio imperial, sempre uma das mostras mais belas dos tempos feudais. Do Castelo de Nijo, verde mundo, séculos de história nos contemplam em 28 hectares. Passadas as suas muralhas de pedra e os seus imponentes portões, admira-se o palácio de Ninomaru, feito de cinco edifícios separados, em cipreste, interligados por rangentes corredores a que chamam “soalho rouxinol” e que têm a sua melodia – portas deslizantes, tectos e paredes de decorações e pinturas que são obras-primas. Conquistam-se os seus infindáveis jardins e lago, catrapisca-se o icónico vestígio do palácio de Honmaru, contornam-se o lago e os infindáveis jardins de miríades de folhagens e árvores, de pinheiros a ameixeiras e ginkgo e centenas de cerejeiras (sempresempre as cerejeiras). E até se podem de súbito avistar monges e figuras de poder a passearem-se por Nijo, cruzando os tempos. Estávamos nós a deambular quando percebemos que num jardim estavam reunidos autoridades locais, monges e sacerdotes, figuras presumivelmente importantes (e jornalistas). No centro, uma covinha e um monte de terra, com pás à espera, uma mesinha para um qualquer ritual, um microfone. “Vão plantar um clone de uma árvore histórica”, descobre-me Watabe. Retrato do Japão: em 1598, o daimô Hideyoshi, senhor feudal que uniu o país mas que também é reflexo de uma época de disputas e sague, plantou uma cerejeira essencial no templo budista de Daigo-ji. Morreria pouco depois, tendo sido sucedido por um inimigo da família, o shogun Ieyasu. Hideyoshi é o homem que fundou o castelo de Nijo, onde estamos. Se Nijo é uma das maiores atracções da cidade, a seguinte é até o seu ícone. Duas palavras: Pavilhão Dourado. É o monumento que se segue e o postal mais célebre de Quioto, esplendor de beleza originador de obsessões como a que Yukio Mishima – um homem com outras tantas obsessões e ideais que o levariam ao mais célebre e marcante dos suicídios, o harakiri dos samurais – compôs para um monge budista no livro com o nome do monumento. Este Kinkakuji (ou Rokuonji) é templo zen renascido, coberto a folha dourada, com uma fénix dourada a coroá-lo, circundado por um lago-espelho, envolto por exuberantes jardins e caminhos. Os elementos unem-se para a harmonia; os olhos, a alma, o corpo, rendem-se à beleza. Retiro do shogun Yoshimitsu, vindo do séc. XIV, como acontece pela História e por muitos monumentos do país, ardeu e voltou a ser reconstruído (e outra vez e outra vez), sendo que cada piso tem um estilo arquitectónico próprio. O que estamos a ver data de trabalhos da década de 1950. Quem diria, hein? Faltam as palavras, há que ver para crer, enquanto olhamos para as estátuas eternas dos seus poderes, Buda e Yoshimitsu. O neto deste último, Yoshimasa, noutra época conturbada, inspirou-se no avô e deu-nos outra formosura que veremos só amanhã (mas que merece entrar já na história), o Ginkaku-ji, que por contraponto, além de ficar na parte leste da cidade, no sopé do monte Tsukimachi (algo como monte de esperar a Lua), é o Pavilhão Prateado. Agora repare-se que o Ginkaku-ji – apesar de oferecer belas vistas para a cidade e garantir passeios por jardins que são uma lição histórica de arquitectura de paisagem – não tem prata nenhuma. Surge-nos assim, a meio da tarde, entre o castanho acinzentado, com um cone de areia construído há séculos como pináculo para o luar. É que é precisamente a lua, no caso, a artista maior: o pavilhão resplandece em fulgurante prateado quando o satélite sobe pelo monte e lança a sua luz sobre Ginkaku-ji. Falta-nos a lua (há que voltar, já sei) mas facilmente apreendemos o poder, o mistério e arte de tudo isto. No recinto está também um essencial salão de chá: é considerado o auge da perfeição de tais espaços e as suas medidas, linhas, desenho e tudo o mais são o padrão para as salas cerimoniais. Por aqui e ali, vou espiando muitos turistas, até casalinhos de mão dada, vestidos de quimono tradicional. E pelas ruas, de vez em quando, uma senhora japonesa mostra, indiferente, a elegância viva do traje. O quimono é um mundo e uma arte, por isso mesmo é o mote da nossa próxima paragem, onde nos aguardam surpresas e inesperados afectos. Venha daí a Arashiyama, nos arredores da urbe, ambiente de vila protegida pela montanha homónima, cenário idílico em redor do rio Katsura, cruzado por uma icónica ponte de madeira, Togetsukyo (algo como ponte para a lua). Ele é floresta, é água, é templos – o zen Tenryuji fica aqui, tal como a floresta de bambu de Sagano, locais imperdíveis que iremos perder em nome do imprevisto – é calma. E casas tradicionais, aquelas obras-primas de madeira e delicadeza, como a de Yusai Okuda, pintor e mestre de uma redescoberta arte de pintar quimonos, tecidos e telas, um artista que já representou o Japão até numa célebre exposição no Louvre de Paris. Descendente de gerações de especialistas no tingir de tecidos, Yusai Okuda, respeitando o xintoísmo de que vive imbuído, foi mais longe que os seus antepassados. Com 66 anos, magrinho, estatura mediana, só vos digo que é imponente na quietude da sua voz, no conhecimento, na filosofia e no humor que invade a sala através das nuvens dos nossos cigarros. A sua arte explica-se em segundos, mas é preciso ver, as palavras naufragam: basicamente, as obras pintadas e tingidas de Yusai parecem de uma determinada cor mas estão vivas e mudam conforme a luz. Dois dias para Quioto é nada, isto precisava de uma vida. Mas vá, tenho um dia mais, vou imaginando que atrás do tempo tempo vem, hei-de voltar com tempo. E, agora, tenho uma guia em inglês que me dará uma lição contínua de História em movimento, arte, quotidiano e detalhes da cidade e do país. Com Hiroko Kara, faço o percurso do turista tradicional local por alguns dos sítios indispensáveis no mapa leste de Quioto. Depois do naturalismo de Yusai à noite, a manhã começa prazenteira e budista no templo de Nanzenji, protegido pelas florestas da montanha de Higashiyama, tendo à porta os pilares de um curioso aqueduto moderno (bom, do séc. XIX). Este é um coração zen do rito Rinzai, complexo de templos e jardins, desde o séc. XIII. Como sempre, guerras e martírios destruíram partes, entretanto reconstruídas. Chegamos cedinho, felizmente há pouca gente, que o que vamos ver dispensa multidões. Passado o grande portal de Sanmon, é deambular. Templos, salas e pinturas são admiráveis mas a minha meca é numa espécie de clímax espiritual: cheguei aos jardins zen dos meus sonhos. As palavras tomam forma de árvores, pedra, água, musgo, terra, gravilha a ondular, a Natureza humana e divina em substância de jardins zen, repletos de simbolismo e perspectivas. Hiroko Kara sabe tudo sobre isto e coloca-me nos sítios exactos para a visão precisa. Ondulo os olhos pelos detalhes e continuo a encantar-me ao som repetitivo de uma cana de bambu que ora bate na bica de uma fonte e se enche de água ora descai, cheia, e se esvazia batendo na pedra. Ploc, silêncio, ploc. E repete. Isto é sagrado, isto é ciência. O passeio leva-nos depois por Okazaki, e logo a começar por um contraponto xintoísta, o santuário Heian (o antigo nome de Quioto). Tem pouco mais de um século mas é um achado, dedicado às almas do primeiro e último imperadores na cidade (Kammu, Komei). Passas o enorme portal torii e abre-se espaço por todo o lado. É dia de passeio para muitas famílias, que trazem aos deuses os seus filhos, vestidos de forma tradicional. Sim, é fofinho. E real e religioso. Respeitamos os ritos e, após uma passagem pelo vizinho (e moderno) Miyako Messe, com o Centro de Artesanato de Quioto – que é museu e loja e vale mesmo a pena para ter de uma vez só uma ideia de tudo o que estas mãos fazem, da caligrafia à madeira –, mudamos de filosofia. Vamos de passeio pelo Passeio do Filósofo, em Higashiyama, por entre cerejeiras (na Primavera isto é, garante-me Hiroko, uma beleza) e pelas margens do canal. O caminho chama-se assim porque era usado para meditar-a-andar pelo filósofo Nishida Kitaro, um dos mais importantes pensadores do séc. XX japonês, um homem que analisava as filosofias ocidentais e orientais para encontrar caminhos. Esse entrecruzamento é vivido por mim e por muitos turistas (ocidentais, sim, muitos), que agora repisamos os passos de Kitaro por este belo cenário tornado atracção turística. Portanto, logicamente, pontuado por lojas em série. O sítio mais pacífico da zona está mesmo a dois passos e é um passeio particular: um cemitério revela-se por entre o arvoredo da montanha, num respeito de pedra e símbolos. Para ganhar forças logo a seguir, udon: uns noodles rápidos e deliciosos ao balcão de um sítio de referência e de bom agouro, o restaurante Omen, especialista em massas. Depois, para sobremesa, cruzamos Quioto para doçuras especiais. E portuguesas. À tarde, ainda teremos tempo para mais passeios, pelo Pavilhão Prateado e pelo templo de Kiyomizu-dera, um apuro budista em vários edifícios num complexo que remonta ao séc. VIII e se eleva em madeira por entre as árvores e jardins, cataratas e santuários, onde se vislumbram águas com poderes para dar sorte e vida. As vistas desde Kiyomizu-dera, assinale-se, são belíssimas. Em volta, ruas cheias até ao tutano de lojas e turistas. É seguir pelas ladeiras e escadinhas de Ninenzaka e Sannenzaka. Ali abaixo, vemos os riquexós puxados por rapazes com corpos de aço, hoje em dia ímanes turísticos. “Ei, isso não cansa?”, pergunto eu a Yuta Sado, 32 anos, ar de 20, desportivo fato ergonómico e botas Tabi nos pés, botas em que o dedo grande do pé está separados dos outros (nota mental: pôr na lista de compras um par destes engenhosos cascos). “Não, habituas-te, até dá saúde”. “Mas há-de chegar uma idade que já não dá…”. “Pelo contrário”, contrapõe ele, férreo, “é para sempre”. Ainda assim, o que ele preferia ser era guia turístico, o que de certo modo já é, convenhamos, dá é mais corpo ao manifesto. Uma fuga doce deixou-me o dia mais luso: fugi ao programa japonês para ir a Portugal. Porque ali pelo centro fica outro reino, o da pastelaria Castella do Paulo. Juro que nem queria acreditar, mas quando o pastelinho entrou quase todo de uma vez só na minha boca rendi-me: é bom, bom, bom, é pastel de nata, é suave, cremoso e estaladiço, é português, é delicioso, derrete-se na boca em Quioto como se em Portugal. Verdade seja dita que pastéis de nata à portuguesa há muitos pelo Japão, até há mais casas de mote luso pelo país mas, desculpem-me, esta é especial. Esta nasceu em Lisboa, onde acabaria por fechar portas e mudar-se de armas e bagagens, de donos e doçarias, para Quioto. Quando chego à pastelaria e vejo a bandeira portuguesa a ondular por cima da porta por entre dois candeeiros de rua dos nossos, não resisto, confesso, a sentir aquele orgulho. Que se há-de fazer? Nós somos assim – e ainda mais no Japão, onde Portugal faz parte da História e da lenda, até com algumas boas recordações. Daqui é um salto até outro bairro mitológico, Gion, a terra das gueixas. Estas muitas vezes incompreendidas artistas do entretenimento continuam de saúde, muito graças, actualmente, ao turismo (e a obras como Memórias de uma Gueixa, que mantém a lenda viva e trazem aqui milhares e a cenários como o templo de Fushimi Inari Taisha). “Actualmente, há umas 200 gueixas – geiko – e 70 aprendizes, as maiko”, conta-me Hiroko. Espiamos pelas janelas as casas tradicionais de madeira, as casas de chá, os espaços das vidas das gueixas, as suas escolas, ruelas e travessas que albergam um fascínio irresistível. Variações das artes do entretenimento e de outras tradições japonesas estão todas no espectáculo que nos espera, no Gion Corner, sala de espectáculos a que acorrem maioritariamente os turistas para, por uma hora, apreciarem sete (sete!) quadros artísticos. Aos meus olhos, uma cerimónia do chá, uma sessão de harpa koto, até de arranjo de flores (kado), música dos tempos da corte Gagaku, teatro cómico vetusto (kyogen), a dança elegante kyo-mai das gueixas de Gion, o teatro de bonecas (bunraku). Uma hora de imersão rápida. Ideal para aperitivo do jantar, um luxo num banquete sagrado chamado Kaiseki, com direito à visita de uma futura gueixa. Enquanto volto a acelerar no comboio-bala, agora rumo a Hiroxima, é inevitável que as memórias dolorosas da bomba nos acompanhem. Para distrair-me a mente, compro mangas (gigantes, centenas de páginas cada revista), dos quais, naturalmente, não percebo uma palavra, mas vou admirando lutadores de sumos, paixões pueris, aventuras de animais, labirintos urbanos e deuses enquanto o Japão moderno se pinta numa tela a alta velocidade na minha janela. Chove em Hiroxima quando chego com a minha guia, Yasuko Noguchi. É um dia cinzento e lacrimejante. Houve que me perguntasse, já em Portugal, se a cidade não estava ainda “meio destruída”. Realmente o Japão é muito longe. A resposta é, pouco niponicamente, um rotundo não. É uma cidade viva e vibrante. Visito-a pela memória mas sinto-lhe essa vida a cada passo. Nada se esquece mas a vida continua, apesar desses letais momentos de há sete décadas, quando a cidade e Nagasaki sofreram bombardeamentos atómicos na 2GM. Chegamos até a tempo de uma celebração mundial de vida e sobrevivência: o almoço. Primeira paragem, Okonomimura, um prédio que é um paraíso do okonomiyaki, estilo tradicional de comida rápida em pequenos recantos e onde a mesa central para todos é uma chapa quente na qual o chefe faz uma espécie de deliciosas panquecas, com vegetais, ovo frito, massas e o que mais vier à rede. Este é um almoço até baptismal, porque foi aqui que fui repabtizado graças à simpatia esfuziante da dona (e dos restantes clientes): Me-me san, algo como Senhor Olhos Grandes. A madrinha foi a senhora Hisashi, que, aos 82 anos, com o marido, dá comida e boa disposição ao seu pequeno restaurante que não passa de uma mesa-chapa-quente redonda e que tem o nome do filho, notoriamente o orgulho da família, Hiro Chan, “é professor! professor!”. A mãe olha para mim e vai daí: “Olhem para esta cara linda, de bebé grande, olhem para estes olhos, grandes, grandes, lindos, me-me san, senhor olhos grandes”, traduziu-me a minha guia, rindo-se a bom rir, juntamente com os demais comensais (aliás todo o almoço foi uma festa familiar). Há que dizer que comparando com os cidadãos japoneses (e com praticamente todo o resto do mundo) os meus olhos são grandes. Agora, Me-me san forever. Se esperávamos só melancolias em Hiroxima, estávamos muito enganados. Houve tempo até para mais alegrias, entre passeio bucólico pelos jardins e “castelo” reconstruído como museu, em brincadeiras com samurais em versão pop a actuar para as fotos, a cruzar a cidade de eléctrico e a ver templos e museus, a entrar num hotel-cápsula e a ver os prédios high-tech ou a saborear a boa vida nesta cidade no delta do rio Ota, cruzada veneziamente por canais, bebendo uma cerveja numa esplanada ribeirinha. Ao jantar, mesmo, numa outra casa tradicional, uma izakaya, a saborear a especialidade de uma carne de vaca Wagyu (uma das mais celebradas do mundo), por nós grelhada em chapa e a sorrir perante a surpresa de na carta haver um vinho alentejano, um Porco Tinto de seu nome, com que brindamos ao caos que é o mundo e a vida em geral. Sim, o nosso dia nesta Hiroxima levantada do chão, embora cinzento e chuvoso, não é feito de guerra. É feito de paz. Mas, sim, o passeio central do dia, esse foi mais doloroso. Fomos pelos locais atómicos, epicentro de todas as visitas. Pelos espaços da memória, pela ponte em T que serviu de alvo à bomba – que matou mais de 80 mil pessoas com sequelas e mais mortes por anos fora de muitos mais milhares. Pelo espaços e vistas da Cúpula da Bomba Atómica, Genbaku, antigo pavilhão de feiras e exposições comerciais que, embora descarnado, se manteve de pé após a bomba, com a sua cúpula esvaziada a erguer-se nos céus, o único e maior prédio a ficar de pé na zona. Todos os que estavam dentro dele morreram, a estrutura ficou. Como um corpo derretido cujo esqueleto permanece altivo. Por todo o território do Memorial e Museu da Paz, onde a cada passo, estátua, monumento, sino, chama ardente, somos lembrados do martírio mas também da esperança de que não volte a acontecer. Pela cidade, cada passo nosso traz essa memória. E o medo nuclear continua bem presente, como sabemos – até por acidente, como o recente caso da central nuclear de Fukushima veio lembrar ao Japão e ao mundo. “Frágil, sinto-me frágil. Nós achamos sempre que somos fortes, parece que é sempre tudo para sempre. Mas depois isto acontece e tudo acaba, tudo desaparece. A beleza é destruída de repente. O ser humano não é muito forte. Acabei de sair do museu e o que sinto é isso, fragilidade. Temos que nos unir para que isto nunca mais aconteça no mundo. (Rina Arai, 16 anos)Big in Japan? Não, sinto-me muito pequeno enquanto oiço Rina. Ela, como nós, acaba de sair do Museu e Memorial da Paz, as expressões do rosto da minha guia japonesa denotam uma mescla de surpresa e emoção. Eu observo as duas enquanto as minhas perguntas são traduzidas para japonês e as respostas chegam daquele pequeno corpo em fato colegial que só deixa o movimento das mãos, do pescoço e do rosto pesado ao ar livre. É com um nó na garganta que a minha tradutora me entrega as frases de Rina e é com o mesmo nó na garganta que as oiço e aponto. Rina, 16 anos, estudante do secundário em Kasukabe – a quase mil quilómetros daqui, perto de Tóquio -, acaba de fazer uma visita de estudo com os seus colegas ao enorme complexo que regista, reconstrói e mostra, imagem a imagem, o apocalipse nuclear de Hiroxima a 6 de Agosto de 1945, cidade-mártir com direito a uma entrada fatal na História como a primeira cidade do mundo a ser arrasada por uma bomba atómica. “Frágil, sinto-me frágil. Nós achamos sempre que somos fortes, parece que é sempre tudo para sempre. Mas depois isto acontece e tudo acaba, tudo desaparece. A beleza é destruída de repente. O ser humano não é muito forte. Acabei de sair do museu e o que sinto é isso, fragilidade. Temos que nos unir para que isto nunca mais aconteça no mundo. Manhã cedo, dia a clarear, um comboio e um ferry vão pôr-nos em menos de hora e meia algures no Mar Interior do Japão, mar que separa três das ilhas japonesas. Aqui ficamos na paz dos anjos, em Miyajima – na verdade, oficialmente é Itsukushima, mas toda a gente a conhece pelo outro nome, que significa a ilha do santuário. A bela vista desde o barco explica logo porquê: uma gigante porta, torii, resplandece ao sol no meio das águas, onde, lá atrás, parece flutuar um santuário (ilusão mas realista: é palafita). Não é uma porta qualquer, é sagrada e, acima de tudo é um dos postais ilustrados de referência do país. À chegada, alguns dos seus melhores anfitriões vêm logo receber-nos ao cais. Os veados. Dezenas e dezenas de veados vivem livremente pela peregrinante ilha. Quem é que consegue resistir a isto?Pode dormir-se na ilha em cenário romântico, saborear as especialidades (enguias e ostras, entre elas), passear pelos campos e montanha, fazer a volta dos santuários, que são muitos. Do portal de toda a ilha, o santuário Itsukushima, ao templo budista de Daisho-in, um espaço repleto de vida, onde até se pode aprender a meditar. Pensamento: meditar abre o apetite. Com espaço para uma paragem posterior numa banquinha com pastéis de enguias, rumamos pelas ruas repletas de lojas e restaurantes seguindo as ostras, acepipe local afamado. No Yakigaki-no-Hayashi, devoro estes moluscos que sempre odiei. E, desta feita adorei. Deliciosas, suaves, vinham no prato com uma miniatura da porta sagrada da ilha. Abençoadas ostras. A nossa peregrinação, com direito a festinhas a cada veado que vejo, aflui no grande santuário. Xintoísta, ali está ele a flutuar e até nós parecemos caminhar pelas águas ao longo desta enorme construção em madeira sobre estacas. Os caminhos estão molhados, sinal de que a maré já por ali passou hoje. Há quem tire selfies ininterruptamente e há quem reze recatadamente numa cerimónia privada com um sacerdote. Ao fundo, no meio das águas, a omnipresente porta. Ali ao lado, eu faço as minhas próprias rezas, calças arregaçadas até aos joelhos, vou pela areia e entro pelo mar adentro. Uma viagem é sempre um novo baptismo, certo?É com pena de não ficar a relaxar pela ilha – onde a noite, dizem-me, é peculiarmente pacífica e meditativa – que partimos para o ponto final da aventura japonesa. Osaka acolhe-nos com a mesma trepidação de Tóquio. Confesso que não fazia ideia mas com mais de 2, 5 milhões numa área urbana (a segunda maior, depois da capital) de 20 milhões, é natural que isto volte a faiscar gente e neóns por todo o lado. Na foz do rio Yodo, a cidade parece-me o ponto ideal para o fim, embora, tendo chegado ao anoitecer, já só dê mesmo para vislumbrar luzes e vibrações nocturnas. Passeamos pelo centro do entretenimento, pela área de Namba (Minami), por avenidas que cruzam canais e mais prédios-néon, ruelas da boa e da má vida, admiramos a fachada do velho teatro Shochikuza – um templo do teatro kabuki, arte obrigatória para admirar em próxima visita, enervamo-nos num prédio de centenas de máquinas de jogo tipo slot machines (mas com umas bolinhas que redundam em 10 euros perdidos numa festarola ruidosa), paramos numa tasca para comer petiscos como se não houvesse amanhã (a menos de um euro cada, um sem-fim de variações de tempuras, vegetais e peixinhos, camarões e companhia) bem regados de cerveja. Para sentir toda a Osaka, metrópole da arquitectura contemporânea, agora iluminada como árvore de Natal ao longo da baía, vamos fazer as despedidas num ícone especial, que daqui a poucas horas, pela madrugada, começa o calvário do regresso, que se prolongará por quase 24h, com direito às 8h de, neste caso, regresso ao passado. Vamos despedir-nos via Jardim Flutuante. O Floating Garden Observatory do Umeda Sky Building (na área de Umeda, precisamente) é uma obra extraordinária num dos edifícios mais extraordinários do mundo. São duas torres envidraçadas de 40 andares, ligadas por pontes e nos topos por uma plataforma, que sobem a 173 metros sobre o coração económico de Osaka, projectado por um dos grandes arquitectos do país, Hiroshi Hara. O seu jardim flutuante panorâmico permite-nos, por um chão de pedrinhas e luzes fosforescentes, com recantos para fotografias amorosas e perfeitas, circular em redor do topo como se caminhássemos pelos ares. Aos nossos olhos, é Osaka by night 360º até aonde a vista alcança. Daqui parece que vemos toda a cidade. Para mim, um horizonte sobrepontuado de luzes de onde parece que vejo todo o meu Japão com estes olhos grandes que o céu há-de comer. (…)Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. p. s. – «Chieko descobriu as violetas que floresciam no velho tronco de carvalho. “Floriram também este ano. ” Com estas palavras foi ao encontro da doce Primavera. (Yasunari Kawabata, Kyoto [1962])», citação de abertura do novíssimo livro de valter hugo mãe, “Homens Imprudentemente Poéticos”, passado no Japão. E por nipónica coincidência o livro que comecei a ler assim que voltei desta viagem. É um livro onde não surge a palavra Não. "A palavra Não sublinha um traço impróprio no Japão, porque difere da relação cerimoniosa que estabelecem uns com os outros. Os japoneses evitam dizer por norma Não e optam por uma expressão para essa negativa que, traduzida à letra, terá o significado de "isso é difícil", disse o escritor esta semana a João Céu e Silva, no DN, descobridor da particularidade literária. "Essa negativa intermédia que os japoneses usam acaba por ser a solicitação do entendimento do outro sem que a conversa atinja o seu limite. Coisa que entre nós acontece muitas vezes, levando com o Não o diálogo ao limite". (Lembro que os “não” citados neste artigo chegaram praticamente todos via tradução). No Público, um vídeo leva-nos ao Japão, e a uma "floresta dos suicídos", central para o livro, com valter hugo. Sim, é o livro que aconselho, a quem chegou até aqui, para continuar a viagem. A Fugas viajou a convite do Turismo do Japão, Japan National Tourism Organization - (o organismo não tem gabinete em Portugal: está sob a alçada de Paris – info@tourisme-japon. fr)O nosso voo foi feito via Lisboa – Londres – Tóquio (British Airways 2h35 + 11h35), Osaka-Tóquio-Paris-Lisboa (JAL - Japan Airlines 1h+12h35, Air France 2h30). Mas há muitas variações (de preços a companhias e horários – lembre-se da diferença horária, GMT +8h/9h) à escolha, embora, infelizmente, nenhum voo directo de Portugal. As companhias oferecem rotas variadas e preços entre cerca de 600 e 800 euros (pesquisa base para Tóquio na Primavera), da British à Air France/KLM, Lufthansa, ANA ou JAL, da Turkish (via Istambul) à Emirates (via Dubai). O motor skyscanner. com pode ajudar. Nas agências, um programa de sete noites pelo país custa a partir de 2000/2500 euros. É à escolha: à volta da Primavera, para o deslumbre das ameixeiras (segunda quinzena Fevereiro) e especialmente cerejeiras (sakura) e do desabrochar da Natureza (a arte da contemplação chama-se hanami)? No Outono pelas belas tonalidades da vegetação e folhagem, (admirar a paisagem outonal também tem nome: momijigari)? Ou prefere as neves? Qualquer altura é boa, não se esqueça de verificar os calendários de festividades. Em Junho, chuvas (calor e muita humidade). De Julho a Outubro pode ser época de tufões em algumas áreas. Keio Plaza Hotel: cidadela de 1500 quartos luxuosa perto da estação de Shinjuku, um mundo e com restauração e pequeno-almoço de primeira. 2-2-1 Nishi-Shinjuku, Shinjuku-Ku. 160-8330 - Tóquio. Tel:+81 3 3344 0111. Preços: desde cerca de 250 euros. www. keioplaza. comRestaurante Kurosawa: 2-7-9 Nagatacho, Chiyoda-ku. 104-0045 – Tóquio. (estação: Tameike-Sanno). Tel: +81 3 35449638. Preços: 5000. www. 9638. net/nagata/eng_osakaOutras informaçõesMoeda: 1 euro = 113, 29 ienes (JPY)Preços indicativos (em ienes)Café: 100/150 (mas pode ir a 400) Cerveja: 500 Pequeno-almoço: 350/500 Almoço: entre 700/1000 a 2000 Jantar: 3000/4000 Hotelaria: em Tóquio 7000/10000, Quioto é mais caro, Hiroxima 5000/6000. Um hostel ficará em redor dos 20/30 euros. Metro: 160 a 210 (conforme cidade) Passe um dia: 600 Comboio bala (Shinkansen): Hiroxima-Quioto 2000, Tokyo-Osaka: 14000 Passe para transportes em Hakone: 4000 (Hakone free pass - http://www. odakyu. jp/english) Tabaco: 450 Táxi: 500/700 (2-3 km) Do aeroporto (Tóquio): autocarro 3000, Táxi 30000 Museus: 500/2000Sites e guiasO país é um manancial de atracções a cada passo e a diversidade é garantida. Além dos parcos exemplos vividos no texto, há muito mais. Nestes sites pode recolher muitas ideias e informações. Lonely Planet, Rough Guides ou Frommers têm também bons guias de viagens. Embaixada de Portugal Turismo do Japão: JNTO, (JNTO em português Brasil), dicas oficiais para um Japão mais económico Guia: Japan Travel Guia: Japan Guide Tóquio - site oficial Quioto - site oficial, Quioto Travel - guia, Inside Quioto - guia Hiroxima - site oficial Hakone - site oficial Osaka - site oficialTrês livros para companhiaO Japão é um lugar estranho. (Wrong about Japan). Peter Carey (2005), trad. Carlos Vaz Marques. Col. Literatura de Viagem, ed. Tinta da China (2010). Lost Japan Last Glimpse of Beautiful Japan. Alex Kerr (1993), ed. Lonely Planet / Penguin Books (2015). Sushi Bar – Nós e os japoneses. Eduardo Kol de Carvalho. Ed. Tágide (2005)10 Expressões japonesasBom dia – Ohayoo (gozai masu) Boa tarde – Kon nitiwa Boa noite – Konbanwa Adeus – Sayonara Obrigado – Arigatoo (ou sumimassen), doomo arigatoo Sim – Hai Não – Iie Com licença – Sumimassen Desculpe – Gomen nassai (ou sumimassen, domoo sumimassen) Por favor - Onegai shimasu10 CostumesSapatos: descalçar em qualquer sítio com tatami (boas meias sempre, portanto) Reverência: inclinar cabeça (“15 graus”, segundo meu amigo Hiro) em cada cumprimento e despedida e várias vezes se for preciso Táxis: largue a porta do táxi, ela abre e fecha automaticamente e é controlada pelo motorista Filas: Nem se atreva a furar ou posicionar mal na fila, incluindo no metro ou comboio (escolha a porta, ponha-se na bicha) Filas em andamento: nas escadas rolantes atenção: ponha-se à direita em Tóquio, à esquerda em Osaka Fumar: apenas nos locais com dístico smoking área, nem pense deitar um cigarro para o chão Comida: se lhe oferecerem comida, prove sempre, nem que seja um bocadinho Cartões-de-visita: se os tem, leve-os, é uma obsessão nacional: receba-os com as duas mãos, detenha-se a lê-los, entregue o seu com as duas mãos Pagar:ponha o dinheiro nas bandejinhas indicadas, não fica bem entregar em mão Condução: é à esquerda, à esquerda!AgradecimentosEste trabalho deve muito ao auxílio à preparação de Ikuko Nagao (Turismo do Japão); a Makiko Segawa e Junko Yamada (JFJN); à paciência e desenvoltura (e traduções) dos guias Naomi Kimura, Masatoshi Watanabe, Hiroko Kara e Yasuko Noguchi; e, muito especialmente, ao apoio (antes, durante e depois), de Carla B. Ribeiro, Susana Veiga e Hironori Ando.
REFERÊNCIAS:
Old Spice, o cheiro e o frasco que guarda os anos 70 e 80
Um aftershave resumiu uma visão do masculino a partir da prateleira da casa-de-banho. Tornou-se sinónimo de conservadorismo — ou será de conforto? Renasce mas continua a cheirar a homem, a anúncio com surfistas e ópera. Cheira a pai. Na segunda série Objectos (quase) Obsoletos olhamos para o que foi substituído, eliminado ou transformado nas casas portuguesas nas últimas décadas. (...)

Old Spice, o cheiro e o frasco que guarda os anos 70 e 80
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.1
DATA: 2018-07-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um aftershave resumiu uma visão do masculino a partir da prateleira da casa-de-banho. Tornou-se sinónimo de conservadorismo — ou será de conforto? Renasce mas continua a cheirar a homem, a anúncio com surfistas e ópera. Cheira a pai. Na segunda série Objectos (quase) Obsoletos olhamos para o que foi substituído, eliminado ou transformado nas casas portuguesas nas últimas décadas.
TEXTO: Quando se menciona o Old Spice, a resposta varia. “Carmina Burana!”, e começa o trautear de O Fortuna, da cantata de Carl Orff que marcou a publicidade do famoso aftershave nos anos 1980. “Smell like a man, man”, papagueia-se da campanha que o ressuscitou no mercado dos EUA e no YouTube do mundo. Ou lá vem a frase que encerrava a publicidade em qualquer país, “the mark of man”. É de homem, o Old Spice, um frasco leitoso e emblemático que vaporizava as casas e os homens do Portugal das últimas décadas do século XX. Descreve os anos 1970, de Serge Gainsbourg a O Tubarão, e finca-se nos anos 1980. No fundo, “é o perfume de uma geração”, como postula o perfumista Lourenço Lucena. É, para muitos, sinónimo de “pai”. A nove mil quilómetros de Portugal, Adam Tschorn escreve sobre o frasco de Old Spice do pai que guardou após a sua morte. O cenário caseiro era o mesmo que em qualquer casa de banho portuguesa de há três, quatro, cinco décadas. Um frasco de Old Spice, uma lâmina de barbear robusta, um pincel de pêlo. Aquele frasco de loiça em forma de bóia, nascido há precisamente 80 anos numa empresa que começou por fazer um Old Spice destinado a mulheres, guardava em si o aftershave transversal. A colónia Old Spice seguia o mesmo caminho. Em Los Angeles ou em Lisboa, ou numa aldeia da Covilhã, era paisagem caseira. “As recordações do meu pai tornaram-se ainda mais fortes, deixadas a flutuar por um frasco vintage — e ainda meio cheio — de Old Spice”, escreve Tschorn no Los Angeles Times sobre um frasco com 50 ou 60 anos que mereceu uma crónica no último Dia do Pai. Umas gerações mais novo que Tschorn e que o seu pai, o fotógrafo beirão Marco Gil resumia afectuosamente o seu progenitor numa crónica no P3 sobre a memória e os sentidos: “O meu pai é isso e umas peúgas cinzentas de algodão com quase tanto borboto como tecido, é também Old Spice e uma camisa de flanela só para os domingos”. Old Spice é um cheiro e um objecto, e tinha um lugar tão central nos hábitos portugueses que com os anos se tornou também num instrumento para recuar no tempo. Ou para descrever quem ficou preso nele. Outra resposta quando se fala do Old Spice, criado por Albert Hauck em 1938 para a Shulton Company e que desde 1990 pertence à gigante Proctor & Gamble, pode ser um olhar inquisitivo e uma ideia vaga do que representou de facto na época. Vende-se há 80 anos mas o clímax da sua relação com a cultura foi há décadas. Apesar de uma bem-sucedida campanha de relançamento em 2010/11, e de se manter no mercado com outra retórica, para quem viveu a era Old Spice ele também pode cheirar a conformismo. Como quando “às cinco e meia uma invasão de Old Spice anuncia o despejo de dezenas de funcionários públicos com tendências conservadoras”, como descreve Valério Romão no seu livro Dez Razões para Aspirar a Ser Gato (2015). Ou quando é usado pelo cronista José Diogo Quintela como um adereço para recuperar Salazar nos tempos da austeridade: “É ir então ao Vimieiro e desencovar o que sobra do tirano, borrifá-lo com Old Spice e pô-lo em contacto com a troika”, atirava. Foi nas décadas Old Spice que Lourenço Lucena viveu, como recorda, as suas “primeiras experiências olfactivas”. Hoje, “a dimensão do mercado é bem maior do que há 40 ou 50 anos”, contextualiza ao PÚBLICO. É um nez, um nariz profissional, um compositor de perfumes e o único português membro da restrita Société Française des Perfumeurs. Grato pelas memórias, não as trocaria pelo momento actual, “muitíssimo mais interessante do que há 30 ou 40 anos, no tempo em que o Old Spice e Aqua Velva tinham a sua hegemonia”. Um anúncio português da concorrente do Old Spice, datado de 1966, intrigava-se: “Há ‘qualquer coisa’ naquele homem: ‘Aqua Velva!’”, respondia a mesma publicidade sobre o rosto de uma mulher perspicaz envolto pelas mãos de um homem. O anúncio era para ele — e a aplicação do aftershave era, garantia-se, sinónimo de “um dia. . . ou uma noite. . . de sucesso”. De Aqua Velva ao Drakkar Noir nascido já em 1982, as mensagens destes perfumes acessíveis e aftershaves imprescindíveis eram claras. O homem era assertivo, o seu público — feminino — ficava rendido. Nos anos 1980, o Old Spice era vendido para o homem à séria, que arreia um cavalo num instante ou surfa ondas de quatro metros, “para quem gosta de um desafio… ao sucesso” como dizia o anúncio de 1987 que passava na RTP. O objectivo era sempre esse, o sucesso. Esse homem todo poderoso até dá a volta ao planeta num veleiro — em 2000, o iate que assinalou a circum-navegação de Sebastião Elcano e Fernão de Magalhães chamava-se precisamente Old Spice. O Old Spice terá sido “dos primeiros perfumes ditos para o grande consumidor — e na época era mais fácil vender mais aftershaves do que perfumes. Era um aftershave com um aroma muito característico, muito fresco. A fórmula clássica é uma composição marinha com notas aquáticas frescas e notas aromáticas bastante evidentes”, recorda Lourenço Lucena. Era o que “se procurava nesse segmento na época — perfumes muito frescos, com notas de madeira bastante masculinas, o vetiver, as madeiras aromáticas como o cedro, mesmo o sândalo. Porque os perfumes masculinos eram muito masculinos”, no sentido mais convencional. Evoca outros perfumes coevos como o Aramis ou o Azzaro, “muito amadeirados, muito aromáticos, um aromático denso, masculino, com uma personalidade masculina vincada — chegava e sentia-se que estava a chegar”. Era um cheiro acessível e forte, um cheiro para todo o serviço. Steven Spielberg que o diga. Quando pôs Roy Scheider num barco em Tubarão (1975) a arranjar isco para atrair o predador do filme que mudou o cinema, a personagem do chefe Brody encharcou um pano em Old Spice para se proteger com o mítico aroma, um escudo olfactivo contra o cheiro aviltante do balde onde vasculhava. O realizador voltaria a confirmar o frasco com um navio azul e letras vermelhas como ícone dos anos 1970 e 80 quando, explorando o seu habitual tema dos pais ausentes, os meninos Mike e Elliott cheiram, saudosos, as camisas dos pais cada vez mais distantes em E. T. - O Extra-Terrestre (1982). “Old Spice”, inspira Mike. O objectivo de Serge Gainsbourg era diferente. Internado em 1973 com o primeiro dos seus dois enfartes, a primeira coisa que o poeta da canção francesa pediu à mulher, Jane Birkin, para ter no hospital foi o seu frasco de Old Spice. Como ela recordou à Vanity Fair, achou que “ele estava a tornar-se muito caprichoso” com tais pedidos e vaidades, mas afinal o que Gainsbourg queria era camuflar o cheiro dos cigarros que continuaria a fumar no hospital. Hoje, e sobretudo depois do seu relançamento em 2010 com uma campanha forte e premiada em Cannes e nos Emmys que espalhou o musculado Isaiah Mustafa e o ainda mais trabalhado Terry Crews pelas televisões e pela Internet, o Old Spice está em franca recuperação. Antes dessa campanha, revistas especializadas como a Ad Age escreviam que “a Old Spice está a esfumar-se na história”, depois dela tinha o canal mais popular no YouTube. Em Portugal, e como disse ao PÚBLICO a gestora de marca da Unibrands Teresa Coelho, “é uma das marcas mais conceituadas para o público masculino” e o seu aftershave, que foi mudando de fórmula, ganhando declinações, nova embalagem e frasco, é este ano o aftershave com maior crescimento de vendas. “Oscila entre a 2. ª e a 3. ª posição na categoria” e “tem aproximadamente 10% de quota de mercado”, estando “presente na generalidade das lojas de grande consumo que representam cerca de 15 mil pontos de venda em Portugal”, diz a empresa de gestão e distribuição de marcas, que tem a Old Spice no seu portefólio. Nos hipermercados, lá está ele, com o vermelho a dominar agora a sua identidade. Lourenço Lucena recorda outro contraste com o passado: “Era um produto que encontrávamos sobretudo nas drogarias, em espaços que também se perderam, outra coisa que também se tem vindo a evaporar com os novos modelos de grande distribuição. Encontrávamos aguarrás, petróleo ou os sabões para lavar as escadas mas também produtos de toilette, como era hábito denominá-los”. Ainda se encontra nas drogarias e lojas de utilidades das cidades, da Rua do Benformoso lisboeta às grandes superfícies de todo o país, porque a sua história não é de um desaparecimento. O seu mercado, e o seu homem, é que mudaram. “Era um tempo em que as escolhas eram muito mais limitadas e isso levava a que existisse uma massificação maior dos hábitos. Hoje, com a multiplicidade de perfumes, marcas e ofertas a individualidade ganhou outra importância. Hoje é muito mais fácil termos uma identidade olfactiva própria, que não faça lembrar o nosso pai, o nosso amigo ou o nosso colega de trabalho”, congratula-se Lucena, também CEO da agência criativa Blug. Neste negócio milionário, muitas marcas clássicas foram recuperadas, os fundos de investimento entraram no sector e marcas mais estáticas perderam terreno. “O fim dessa hegemonia vem com a modernização e evolução da indústria da perfumaria nos últimos 30 anos”, explica o perfumista. Outras recuperaram, também graças a campanhas como a do regresso da Old Spice, que se dirigia sobretudo às mulheres apresentando “the man your man could smell like” — “o homem a que podia cheirar o seu homem”. Do clássico sedutor à Corto Maltese dos anos 1960 e 70 passou-se ao surfista corajoso para yuppie ver nos anos 1980, e os navios transformaram-se em iates elegantes. Marcas como a Axe entraram no mercado dos sedutores olfactivos, homens cheirosos nos transportes públicos e nas ruas publicitárias, ímanes de mulheres indefesas. Portugal assistiu ao relançamento da Old Spice em 2011 com a campanha “Homem que é Homem”, que além de ter Terry Crews e Isaiah Mustafa na Internet pôs por escrito que “Homem que é homem não usa roupa interior. Usa cueca” ou “Homem que é homem não apanha fruta. Abana a árvore” nos jornais. A masculinidade redefiniu-se e além de mais individual, ri-se da sua hipérbole. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não há pai para a marca do pai, parecem querer dizer os publicitários, apostados no exagero nos anos da metrossexualidade, da pansexualidade, dos lenhadores sensíveis e das barbas rijas mas meticulosamente tratadas. Entre o passado e o presente, num mundo heteronormativo onde outros modos de vida tentam afirmar-se igualitariamente, a sua abordagem de hipermasculinidade não tem sido isenta de críticas. Em altura de campanhas de Natal, Miguel Esteves Cardoso defendia há uns anos que a melhor água-de-colónia masculina é a Old Spice, embora o seu aroma tenha mudado um pouco. Mas lamentava: “No Natal de 2013 precipitou uma crise de masculinidade. O Old Spice, antigamente, era o after-shave de quem não pensava nessas coisas. Hoje, pelos vistos, precisa de reafirmar, ridiculamente, essa masculinidade”. As mudanças do Old Spice tornaram um frasco branco clássico em desodorizantes ou gel de banho vermelhos com nomes novos como "Bearglove" ou "Wolfthorn". Em paralelo, os coleccionadores guardam e trocam frascos vintage no mercado da nostalgia. A sua hegemonia material e olfactiva é uma história de outros tempos. Por isso se diz “o Old Spice cheira a memória”, como escreveu Alan Stokes no jornal australiano Sydney Morning Herald. A memória, o pai, um objecto ou um cheiro que nos leva a casa são constantes de que precisamos. Que por vezes procuramos para viver. Las Vegas, 2010. Glenn Harrington, de 44 anos, vivia nos túneis daquela cidade norte-americana e o Los Angeles Times acompanha-o na recordação de quem deixou para trás quando finalmente saiu das ruas. “Começou a listar as coisas que os seus antigos vizinhos não tinham. Um frigorífico. Desodorizante Old Spice. Comida quente, duche quente, café quente. O sentimento de dignidade que acompanha tudo isto. ”
REFERÊNCIAS:
Tecnologia à flor da pele com Arca
O que é que Björk, Kanye West e FKA Twigs têm em comum? Um produtor de 24 anos, natural da Venezuela, chamado Alexandro Ghersi, ou seja Arca, que se estreia agora com o álbum Xen. (...)

Tecnologia à flor da pele com Arca
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: O que é que Björk, Kanye West e FKA Twigs têm em comum? Um produtor de 24 anos, natural da Venezuela, chamado Alexandro Ghersi, ou seja Arca, que se estreia agora com o álbum Xen.
TEXTO: Alguns dos temas mais aventureiros de “Yeezus”, o último álbum do rapper Kanye West, têm o seu toque, e as canções de EP2 de FKA Twigs, o disco do ano passado da cantora britânica que antecipava o seu estoiro em 2014 com o álbum LP1, eram produzidas por ele. Também a sempre atenta Björk deu por ele e convidou-o para co-produzir o seu nono e novo álbum. No entanto não é crível que muitas pessoas saibam o seu nome. Acontece com alguns dos melhores produtores. Mas Alejandro Ghersi, nascido na Venezuela, de 24 anos, mais conhecido por Arca, não vai ficar na sombra. E para o provar aí está a assinar o primeiro álbum a solo, Xen. Até aqui era conhecido por providenciar sonoridades bizarras e futuristas a figuras que se movimentam no centro do mercado, ou com potencial para o virem a fazer – para além dos mencionados, poder-se-ia falar também da cantora americana Kelela ou de Mykki Blanco. Dito assim, poder-se-ia imaginar alguém com um estilo especial capaz de agradar a uma larga fatia de ouvintes, mas não é por aí. A sua música é alienígena, com qualquer coisa de elástico, viscoso e metálico. É um som de configurações digitalizadas retorcidas, ângulos rítmicos inesperados, muito espaço, orquestrações com qualquer coisa de glaciar e uma adrenalina sensual alienígena. O álbum agora lançado é como reunir aleatoriamente um acervo de microrganismos digitais que foram arremessados ao chão, e depois de repescados, o resultado final produzir sentido. Mais pensar do que dançar“O que é isto!!?”, “isto não é sequer humano!” ou “que doideira de música!” são algumas das expressões de estranheza mais correntes que se podem ler a acompanhar a sua música e vídeos na internet. Ele costuma dizer que a última coisa que deseja é que a sua música seja recebida passivamente e está a consegui-lo. Faz parte de uma geração de misteriosos produtores (de Actress a Oneohtrix Point Never ou Andy Stott) que começaram por fazer híbridos electrónicos no quarto, mas os seus temas são ambíguos, desviando-se das convencionais noções de melodia e ritmo, fazendo mais pensar do que dançar. Deu-se a conhecer com os EPs Stretch 1 e Stretch 2, vagamente inspirados no hip-hop, a que se seguiria a mixtape “&&&&&” o ano passado. Nessa altura ainda habitava em Nova Iorque. De há um ano a esta parte está em Londres, uma mudança operada por querer estar perto do namorado (o fotógrafo e artista multimédia Daniel Sannwald), mas também do artista e videasta Jesse Kanda – responsável por alguns dos notáveis vídeos de FKA Twigs – de quem é amigo e colaborador. Parte da adolescência passou-a em Caracas, a capital da Venezuela, ouvindo Aaliyah, Autechre ou Nine Inch Nails, antes de ser admitido, aos 17 anos, na Escola de Artes e Ciências da Universidade de Nova Iorque. Ali começou a criar canções electrónicas inspiradas pela vida e música de Arthur Russell ou pelas composições mais estranhas de Aphex Twin ou Björk. Depois surgiu o convite de Kanye West. Ao lado de Evian Christ e Hudson Mohawke, ele era a carta electrónica do artista de massas que não receia rodear-se de agentes das margens. Nas raras entrevistas que tem dado refere que quando foi convidado a enviar música ao americano optou pelo material mais estranho que tinha. O rapper gostou e deu-se então o encontro. Com FKA Twigs a junção foi mais instantânea. Conheceram-se em Nova Iorque e, segundo ela, quinze minutos depois de começarem a conversar resolveram de imediato trabalhar em conjunto. “Entendemo-nos naturalmente”, afirmou ela, acrescentando que até aí todas as pessoas que lhe haviam sugerido melodias ou letras, tinham levado uma nega. Dizia-lhes: “peço desculpa, são as minhas canções, escrevo as letras e componho as melodias. ” Mas com ele foi diferente. “Com Alejandro senti de imediato que podia existir uma relação de confiança e abertura mútua e ficámos grandes amigos. ”No álbum de FKA Twigs existem estilizações que remetem para Arca ou vice-versa. Mas o álbum de estreia dele é outra coisa. Ainda se vislumbram vestígios de hip-hop por entre ritmos desorientadores e alguns fragmentos vocais, mas a maior parte são temas instrumentais desafiadores, tão contemplativos quanto singulares, qualquer coisa de pós-humano, numa construção desengonçada de orquestrações e teclados sintéticos. Em termos sonoros e visuais movimenta-se nos interstícios: entre apresentar um som enegrecido ou de clarões brancos, entre ser homem ou mulher, entre ser inteligível ou alienígena. A sua relação com Jesse Kanda faz lembrar a de Aphex Twin com Chris Cunningham, música e imagens participando no mesmo imaginário. Para Arca, como já havia feito com FKA Twigs, o canadiano Jesse Kanda cria imagens distorcidas, corpos ambíguos, robotizados ou hiper-humanos, dependendo da interpretação. Não é difícil perceber porque é que a islandesa Björk se deixou enredar na sua música. As suas inquietações filosóficas tocam-se e existe a mesma vontade de dotar a música popular de qualquer coisa de novo. Numa altura em que o acesso instantâneo ao passado criou a ideia que tudo é derivativo, eis Arca a criar uma identidade sonora singular. A forma como trabalha a tecnologia é diferente, qualquer coisa de tangível, sensual, à flor da pele. No cinema a possibilidade de experimentar uma nova sexualidade, maquinal, já havia sido ensaiada, por exemplo em Crash (1996) de David Cronenberg. Dir-se-ia que, agora, Arca consegue-o com música, através da erotização das máquinas, numa lógica de moldagem onde os corpos sonoros retorcidos expõem uma música sensual de superfície metálica.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave escola humanos mulher homem sexualidade cantora
E afinal o que é um livro infantil?
“O que pode um livro?”, perguntámos a profissionais do sector. “Tanto, tanto”, “abrir o mundo”, “segurar a casa”, “dar músculo”, “ser o colo da mãe”, “um livro pode tudo”. Que livros são estes? (...)

E afinal o que é um livro infantil?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: “O que pode um livro?”, perguntámos a profissionais do sector. “Tanto, tanto”, “abrir o mundo”, “segurar a casa”, “dar músculo”, “ser o colo da mãe”, “um livro pode tudo”. Que livros são estes?
TEXTO: Livros ilustrados, álbuns, livros-jogos, livros-brinquedos, histórias (só) visuais, livros-objectos, pop-ups, livros interactivos e livros-livros enchem, nas livrarias e nas grandes superfícies, os espaços cada vez mais alargados dedicados ao público infanto-juvenil. O livro infantil está diferente, mas continua a ser um bom primeiro olhar sobre o mundo. “Em 2015, as editoras da Leya editaram cerca de 200 livros infantis e juvenis, aproximadamente mais 30% do que em 2014”, informa por email a direcção de comunicação daquela empresa. Vítor Silva Mota, editor da ASA infantil, que pertence ao grupo, acrescentou mais tarde que no ano passado a facturação no infanto-juvenil “foi de 10, 8 milhões de euros”, correspondendo este valor “a 25% da facturação global da Leya”. E concluiu: “Estamos bem, em curva ascendente no mercado. ”Para a sua principal concorrente, a Porto Editora, o negócio também se mostra positivo. “A aposta no infanto-juvenil tem corrido bem”, diz Paulo Gonçalves, responsável pelo Gabinete de Comunicação e Imagem. Informa que em 2015 editaram 98 livros, mais quatro do que em 2014, mas não fornece dados de facturação nem do peso deste segmento no total da editora. Dizer a “percentagem no conjunto das edições é muito complexo, considerando a abrangência do nosso trabalho, que chega a praticamente todas as áreas editoriais”, justifica. As mudanças na oferta e na procura neste sector motivaram a 5. ª edição dos encontros O Que Um Livro Pode, que decorreu no final de Novembro em Lisboa e teve como título Os Livros não Têm Idade. Durante três dias, o mercado nacional do livro infantil esteve em discussão, no que foi acompanhado pela mostra de ilustração para a infância Rodapé, comissariada por Pedro Moura e com a particularidade de os trabalhos estarem expostos a um metro do chão, ao nível do olhar das crianças. David Guéniot, da organização dos encontros e editor da Ghost (especializada em livros de artista), não tem dúvidas de que “houve um grande boom nos últimos dez anos” no segmento da edição destinada às crianças. E conta que cada vez mais encontra “livros de editoras portuguesas nas livrarias de Paris, de Londres e de outras cidades, prova do reconhecimento da qualidade do que se faz aqui”. Para este francês que escolheu viver em Portugal, “o livro infantil representa a utopia do livro” e quis, neste “passeio ilustrado pela infância”, mostrar “que hoje há um tratamento mais arriscado e arrojado em termos de construção do livro infantil e também maior cuidado na própria produção”. José Oliveira, editor responsável pela literatura infanto-juvenil das Edições Caminho até 2011, recordou, naqueles encontros, a forma “algo amadora” como iniciou nos anos 1990 “a primeira colecção de livros para crianças da Caminho com ilustrações a cores, Histórias Tradicionais Portuguesas, cada uma delas ilustrada por seu ilustrador”. Ao mesmo tempo que ia relatando processos, motivações e limitações desses tempos, mostrava os livros, começando por Os Anéis do Diabo, com texto de Alice Vieira e ilustrações de André Letria. “Como vêem, isto é muito quadrado. Tanto quanto me lembro, até era eu que fazia umas maquetes, no Pagemaker, e punha o texto. ” Depois, com o espaço que sobrava, dizia ao ilustrador: “Você que se arranje!”Divertido, contou: “Eu não conhecia o André, mas tinham-me dito que era ‘um rapaz com muito jeito’. ” Ouviram-se risos na sala e entre os oradores, onde se encontrava o próprio André Letria, convidado enquanto ilustrador, mas também como editor da Pato Lógico. José Oliveira mostrou outros títulos da mesma colecção, com ilustrações de Alain Corbel (“o primeiro livro dele em Portugal”, O Pássaro Verde, 1994) e Henrique Cayatte (Rato do Campo e Rato da Cidade, 1992). Neste último caso, contou, houve uma solução “mais solta e mais livre, ele passou por cima das minhas maquetes iniciais, fez bem”. Com o tempo, foi “aumentando o interesse e o cuidado na ligação entre texto e imagem”. José Oliveira enumera algumas das decisões que se esperam de um editor: “Conforme o formato, isto é, as dimensões, o ser de capa mole ou capa dura ou o tipo de ilustrações que se usa, o livro ganha uma ou outra natureza, e o horizonte de recepção que nós esperamos modifica-se. ”Houve mudanças que resultaram de “questões técnicas”. Exemplo: “Deixou de haver livros de 16 páginas, as tipografias que os faziam já não existem. Os livros maiores, com 32 págs. , ganharam outro fôlego de ilustração. Essa alteração e as crescentes preocupações com o design levaram a Caminho a iniciar uma colaboração com o atelier de Danuta Wojciechowska para a colecção Histórias Tradicionais Portuguesas. ” José Oliveira “livrou-se” das maquetes. Há uma obra que editou, uns anos mais tarde, que lhe dá grande satisfação, “juntou tudo o que eu queria fazer como editor”, diz. É o Romance do 25 de Abril, com texto de João Pedro Mésseder (alter ego de José António Gomes) e ilustrações de Alex Gozblau. “Um livro sobre o fascismo e sobre o 25 de Abril, com um texto bastante concreto, sob a forma de um romance como a ‘Nau Catrineta que tem muito que contar’. Um texto narrativo que nos conta a história da repressão do fascismo e depois a libertação. ”João Pedro Mésseder não conhecia Alex Gozblau. “Fiz essa ponte [entre eles] e trabalhei muito de perto com o ilustrador. Trabalhámos muito a caracterização dos rostos: o rosto deste militar deve ser plano ou deve ser rugoso? O Alex tem tendência para o escuro. . . foi tudo muito negociado”, conta com orgulho e entusiasmo. Esta obra materializa em pleno o editor que quis ser (e foi), gostando e valorizando “aquilo sobre que se escreve, o modo de escrever e a ilustração”. Mais um pormenor que muito agrada a José Oliveira, as guardas do livro (fólio que acompanha a parte interior de cada uma das capas do livro encadernado). “Quando abrimos a primeira guarda, não sabemos o que é [vê-se apenas um traço verde]; na guarda final, revela-se e conclui-se a história [o traço verde é o pé de um cravo vermelho]. ”Esse livro — idealizado por um editor que sempre se preocupou em dignificar o trabalho dos ilustradores, acautelar as suas condições de trabalho e garantir-lhes remuneração por direitos de autor — ganhou o Prémio Nacional de Ilustração em 2007. Se continuasse a editar, era ao livro ilustrado que se dedicaria. E afinal o que é um livro ilustrado? Dora Batalim, coordenadora da Pós-Graduação em Livro Infantil da Universidade Católica, divide as obras em três categorias, com base no “observar do comportamento da imagem”: o livro “imagiário” (palavra que cunhou do francês), em que “a imagem é absolutamente referencial — uma bola é uma bola, a Miffy é a Miffy e está a chorar”; o álbum, “em que a imagem tem preponderância sobre o texto, mas já tem valores de construção, jogos semânticos e conotativos”, e o livro ilustrado, em que “o texto tem preponderância sobre a imagem”. Para esta doutoranda de Literatura Infantil na Universidade Autónoma de Barcelona, “o mercado nacional está bom, no sentido em que está melhor, surgiram algumas editoras, pequenas, com critérios de qualidade e muito cuidado na parte gráfica”. Refere ainda que “se trazem para cá expoentes de qualidade”, através de compras de direitos de livros internacionais. Não quer nomear editoras em particular, mas vai dando exemplos de livros e autores que sabemos pertencerem, por exemplo, à Planeta Tangerina, à Bruaá, à Kalandraka ou à Gatafunho. Dora Batalim interessa-se em particular por livros dos 0-3 e dos 0-5 anos e diz que há muito pouca produção nacional para essas idades. A Edicare e a Gatafunho são dois exemplos onde a Revista 2 encontrou livros de qualidade para bebés, mas confirmou terem origem externa. A também professora na Escola Superior de Educadores de Infância Maria Ulrich (Lisboa) nota que, “de repente, chegaram ao mercado, ao mesmo tempo e por via de várias editoras, muitos livros-jogos, livros para brincar, para mostrar o que está escondido”. Recorrem a lupas, óculos para ver em 3D, encaixes, etc. Conclui que estas apostas resultam da presença das editoras portuguesas nas feiras internacionais. “O conceito de ‘livro inteligente’, não são pop-ups, foi premiado na mais recente Feira Internacional do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha, é natural que se aposte em formatos desta natureza”, mas surpreende-se com o facto de não haver produção digital, “zero”. Sente algumas faltas no mercado: “Estamos a perder a palavra. Precisamos de histórias de várias latitudes e diferentes universos. Também falta poesia, texto poético, há excesso de álbuns. ” Reclama a ausência de “narrativas tangíveis, onde se conjuguem o insólito, o inesperado, o humor e até o humor negro”. Gostava que houvesse mais abordagem de alguns temas sociais e contemporâneos, “mas sem pendor educativo, dos que exigem que todos sejamos bondosos e piedosos”. Prefere abordagens feitas “com subtileza, mas que saibam comunicar e formar”. Perguntamos-lhe “o que pode um livro?” “Tudo. Pode ser o colo da mãe, que ali não está e fica materializado. Pode ser o primeiro olhar para o mundo registado, com o peso de um volume e de um papel. ” Mas avisa: “É preciso ter cuidado com o que se dá. Porque é uma voz próxima e um primeiro olhar. Não tem a velocidade frenética da televisão. São momentos ao teu ritmo, tu danças com ele [o livro], usas quando tu quiseres. Impõe-se como noção de leitura da criança. É preciso cuidar de que os canais estejam sempre limpos: o informativo, o imaginário, o imaginário maravilhoso, o da palavra, o da esfera do visual e o do texto. ”Dora Batalim observa que “os pais estão confusos” perante tanta oferta nas livrarias, nas grandes superfícies e na Internet. Sobre a orientação que o Plano Nacional de Leitura (PNL) pode dar, legitimando alguns títulos, diz: “Os selos do PNL são estritamente escolares. É um olhar, mas não o único. ”Quem acredita que “o PNL foi o melhor que aconteceu para criar hábitos de leitura nas escolas” é Paulo Gonçalves, da Porto Editora. “A nossa estratégia junto das escolas passa pela educação, mas também pela fruição, dando a conhecer obras literárias, do 1. º ao 12. º ano, produzidas com grande cuidado editorial. ”A editora quer “promover hábitos de leitura nos mais novos, já que serão os leitores do futuro, a próxima massa crítica”. E tentam “associar o lúdico ao educativo”. Editam “histórias para diferentes ambientes” e daí integrarem a chancela digital Cool Books, “que está a correr bem”. Segundo Paulo Gonçalves, têm “uma colecção única no país, a Educação Literária, onde se reúnem todas as obras de alguns escritores e obras obrigatórias ou recomendadas no ensino básico e secundário”. Como tendências, enuncia: “Temos vindo a apostar nos autores nacionais com obras adequadas à criação de leitores, claramente nos consagrados — Sophia de Mello Breyner Andresen, Álvaro Magalhães, Luísa Ducla Soares, Maria Alberta Menéres —, mas também em autores de ficção de grande qualidade que fazem incursões nesta área, como Valter Hugo Mãe, Richard Zimmler ou Mário de Carvalho. ”A promoção de autores menos conhecidos e mais jovens também faz parte dos objectivos da editora: “Carlos Garcia (Cancioneiro da Bicharada), Miguel Morais (colecção O Ano mais Estúpido do Meu Irmão mais Novo), Isabel Ricardo (O Coelhinho Avarento) e Ana Rita Faustino (O Cotão Simão, distinguido com o Prémio Branquinho da Fonseca — Expresso e Fundação Calouste Gulbenkian). ”Para o pré-escolar, os livros-objectos são a prioridade, “ajudam [a criança] a familiarizar-se com as palavras e o som, por exemplo, são livros que respondem a essa necessidade de estímulos nas idades mais baixas”. Depois, passam a “histórias com uma forte presença da ilustração”, o livro-álbum. “À medida que a idade avança, o livro vai dando primazia ao texto, em detrimento da ilustração”, conclui Paulo Gonçalves. A Porto Editora tenta “um equilíbrio entre autores portugueses e estrangeiros, mas com prevalência para autores portugueses”. À pergunta “o que pode um livro?”, aquele responsável de comunicação responde: “Pode tanto, mas tanto. Um excelente meio de se conhecer o mundo em que se está. O livro abre-nos o mundo. ”A direcção da Leya não tem dúvidas de que “a importância das edições infantis e juvenis é decisiva, porquanto se trata do principal motor da criação de hábitos de leitura e de construção de futuros leitores, tendo um importante peso económico e cultural”. E faz uma aposta clara deste segmento nos países lusófonos: “O facto de a Leya estar presente em Angola, Moçambique e Brasil tem permitido um trabalho muito relevante de promoção e publicação dos autores portugueses naqueles países, sobretudo no Brasil, onde alguns autores já encontram um maior número de leitores do que em Portugal. ”Ao mesmo tempo que promovem autores e ilustradores lusófonos, também representam “marcas internacionais de referência no âmbito das edições infantis e juvenis, como DK, Disney, Enid Blyton ou Roald Dahl”. As apostas são divididas em “interactividade (formatos e recursos que contribuam para enriquecer a experiência de leitura, como realidade aumentada, paginação criativa e passagem para o mundo digital), conhecimento (novos e bons livros que, sem serem as enciclopédias visuais de antigamente, conseguem captar a atenção dos mais novos por terem uma forma organizada e cativante de apresentar a informação) e colecções juvenis (geradoras de leitores de longa duração e fiéis às suas colecções preferidas)”. O editor da ASA infantil reconhece como principal concorrente “no segmento juvenil, sobretudo em livros traduzidos no domínio da ficção, a Editorial Presença”, editora que não aceitou falar com a Revista 2 para este artigo. A Leya existe desde 2008 e, sobre a junção das várias editoras, Vítor Silva Mota, que já integrava os quadros da ASA, recorda que “se fizeram ajustamentos, pois eram muitas as disparidades entre as diferentes editoras”. No entanto, considera que “houve sensibilidade e cuidado para não ferir susceptibilidades perante os hábitos e procedimentos de cada editor”. Conta ter havido “uniformização de critérios, mas preservando a identidade própria de cada uma das editoras”. As escolas são um dos caminhos para o sucesso das editoras e do mercado do livro para os mais novos. Explica Vítor Silva Mota: “A literatura infantil e juvenil é muito importante no ensino. A existência de textos de autores lusófonos nos manuais escolares, por um lado, e a presença física dos autores nas escolas de todo o país, por outro, são dois factores de grande relevo para a formação dos alunos, bem como para fazer com que conheçam os autores portugueses e para que cultivem o gosto pela leitura e pelo conhecimento. ”A Leya promove “mais de 650 encontros de autor por ano nas escolas portuguesas, o que resulta numa média superior a três encontros por dia de aulas”. Adélia Carvalho, editora da Tcharan e livreira da Papa-Livros (Porto), considera que “as escolas estão muito sobrecarregadas” na busca de espaços para “escoamento de todo o tipo de livros”. Em conversa com a Revista 2, chamou “poluição das escolas” à constante investida, “sobretudo por parte de quem faz edições de autor”, para mostrar e vender livros sem critérios de qualidade. Não se referia às grandes editoras, mas “às que exploram o sonho de quem quer ter um livro editado”. Olha para o mercado com optimismo e reconhece que houve “um aumento de qualidade e um crescimento brutal no álbum, que revolucionou o conceito da ilustração e transformou o livro num objecto mais bonito”. Para Adélia Carvalho, que é também autora, “um livro pode com uma casa, pode fazer com que a casa mude de sítio e pode encher a casa de gente”. A Tcharan edita três a quatro livros por ano (com tiragens de 1500 exemplares, mais cem exemplares em espanhol e outros cem em inglês, para representações em feiras e vendas internacionais). No mercado nacional, teve um crescimento de 15% em relação ao ano passado, e no internacional cresceu 30% (com venda de cinco livros para o Brasil, Coreia, Colômbia, Espanha e Alemanha). A editora mantém parcerias com a Vista Alegre (Era Uma Vez Um Cão, Adélia Carvalho e João Vaz de Carvalho; Chá, Café e Etc. , Rui Reininho, Armando Teixeira e Marta Madureira), a Cruz Vermelha Portuguesa (A Inocência das Facas, vários), Câmara Municipal do Porto (Wonderporto, Adélia Carvalho, Cátia Vidinhas, e Senhoras e Senhores, Meninos e Meninas, Bem-Vindos ao Palácio de Cristal, vários), Direcção Regional da Cultura do Norte (Era Uma Vez Um Castelo) e o Colégio do Sardão (Abrigos, Adélia Carvalho e Maria Remédio). A Papa-Livros não teve crescimento face ao ano passado, “talvez porque agora a cidade do Porto tem mais oferta e o público dispersa”, justifica a livreira, que se queixa da plataforma que a Fnac criou para a gestão dos livros, em que “cobra pacotes de mensagens online sobre as vendas e penaliza em 5 euros, desde Novembro de 2014, o envio de factura em papel”. O fim do Plano Nacional de Leitura é visto como um problema, porque “os pais, os educadores e os professores seguiam as listas que saíam e compravam alguns títulos”. Agora, “com o fim do Ler+, vamos ressentir-nos com certeza”, diz. Por isso, vai continuar a organizar exposições, actividades e lançamentos na Papa-Livros. Nestes últimos, consegue, por vezes, “vender logo 50 livros”. Os lançamentos da Planeta Tangerina rendem mais, como nos conta Isabel Minhós Martins, autora e editora, “são sempre grandes festas com belos lanches”. Aí, aproveitam para “conhecer os novos leitores e conviver com os amigos”. Nesses dias, conseguem vender mais de uma centena de títulos. “Levamos outros livros já editados, mas também os nossos postais e cartazes. Normalmente, vendemos bastante. E ajuda a pagar o lanche…”Para esta editora nacional pioneira em projectos de concepção de álbuns em articulação directa e de raiz entre autores e ilustradores, “o negócio não piorou em relação ao ano passado, nem nas livrarias portuguesas nem na loja online”. Continuam a apostar na “venda de direitos na Feira de Bolonha” e têm “títulos que não morrem”. Segundo Isabel Minhós Martins, “tem sido um processo de internacionalização lento e gradual, agora temos vendas para a Alemanha e Suécia”. Embora já estejam na Holanda, Brasil, Coreia, no Reino Unido e EUA, “Espanha, aqui ao lado, é um país que não está muito explorado”, afirma. “Mas continuamos a precisar do mercado nacional. ” Começaram a actividade como atelier e editora em 2004 e até hoje publicaram 50 títulos. A partir de certa altura, começaram a editar seis livros por ano. “A editora tem vindo a tomar mais espaço e já traz mais retorno do que o atelier”, revela. Quando lhe falamos da forma como a Planeta Tangerina contribuiu para a mudança na oferta dos livros para a infância em Portugal, explica: “Nós construímos um modelo que tem que ver com auto-edição, que nos torna mais ágeis e permite uma relação mais próxima com os leitores. Conseguimos fazer álbuns. Foi aí que fomos inovadores. ”Fazem tiragens de 1500 a 2000 exemplares e algumas reedições, com um preço médio de capa de 13, 60 euros. “Neste primeiro semestre houve melhorias. Tivemos um volume de negócios de 350 mil euros e fechámos 40 contratos de venda de direitos. ”Para Isabel Minhós Martins, o aparecimento de outras pequenas editoras de qualidade foi bom e melhorou o panorama da edição. “É melhor o negócio estar distribuído por muitos do que concentrado em poucos”, diz, considerando que “o mais interessante que está a acontecer é feito pelos projectos mais pequenos, as grandes editoras têm apostado em livros mais clássicos”. Depois da edição do livro Lá Fora (sobre a natureza), que foge ao álbum, estão a planear o Lá Dentro (sobre o cérebro e as emoções). “Queremos fazer livros informativos e rigorosos, mas um pouco diferentes. Também temos um projecto sobre o consumo”, conta. Na parte das edições para jovens, lembra que prevalece a importação de títulos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. À pergunta “o que pode um livro?” preferiu responder por escrito: “Mesmo quando nos encolhem e entristecem, os livros são capazes de nos aumentar, naquele sentido em que nos dão mais vidas (como num jogo de computador). Os livros conseguem preencher essa lacuna, essa falha que é não podermos viver mais, ainda mais. Dão-nos a possibilidade de calçarmos as sandálias do outro, de vestirmos outras peles e de nos tornarmos um pouco mais completos. Os livros também nos dão músculo, ferramentas e força para lidar melhor com a realidade. Os livros podem ser um lugar onde nos refugiamos quando a realidade não nos preenche ou nos fere, mas para mim, mais do que isso, podem ser como lanternas que iluminam zonas escuras. Hoje, mais do que nunca, pode ser no silêncio de um livro, afastando com os dois braços toda a poluição que nos rodeia (visual, sonora, comunicacional), que conseguimos ver as coisas de uma forma mais límpida. Menos baça. Mais luminosa. ”O Que Um Livro Pode continuará o debate à volta da edição de livros infantis, de 11 a 13 de Março, em Lisboa (Espaço Rua das Gaivotas, 6), mas centrando-se em projectos internacionais. A organização é partilhada pela editora Ghost, a associação de artes gráficas Oficina do Cego, a plataforma Tipo. pt e a livraria Stet.
REFERÊNCIAS:
O segredo do donut de David Lynch
Espaço para sonhar é a nova biografia de David Lynch, escrita num pingue-pongue entre o cineasta e a jornalista e crítica de arte Kristine McKenna. Um capítulo dela, um capítulo dele, e uma conversa com ela para perceber como é ser avatar ou intérprete circunstancial de David Lynch. Todos os detalhes, nenhuma explicação, e um donut. (...)

O segredo do donut de David Lynch
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento -0.4
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Espaço para sonhar é a nova biografia de David Lynch, escrita num pingue-pongue entre o cineasta e a jornalista e crítica de arte Kristine McKenna. Um capítulo dela, um capítulo dele, e uma conversa com ela para perceber como é ser avatar ou intérprete circunstancial de David Lynch. Todos os detalhes, nenhuma explicação, e um donut.
TEXTO: David Lynch é magnético. Tem o porte do homem mais simples e mais especial – pelo menos é o que parece ao longe, nas entrevistas, nas aparições, nas conversas dos outros e nos ecrãs distantes. Kristine McKenna é a sua biógrafa, suficientemente amiga para ter sido autorizada a entrar na sua mente e para não insistir em falar do que ele não quer. Sim, sobre o bebé perturbador de Eraserhead ou sobre a animada vida amorosa. A escritora americana é momentaneamente o seu avatar nas conversas sobre Espaço para sonhar, o livro com capítulos dela e capítulos dele, “basicamente uma pessoa a ter uma conversa com a sua própria biografia”. Andar à procura do sr. Lynch, num livro ou num festival de cinema, é pura pornografia Lynch. “Ele tem um ego de artista ferozmente forte. É indómito no que toca ao seu trabalho e sabe o que deve ser e ninguém lhe pode dizer o contrário”, diz Kristine McKenna numa manhã límpida de Lisboa, convidada pela editora Elsinore e pelo Leffest – Sintra & Estoril Film Festival a vir a Portugal para apresentar Espaço para sonhar e participar num festival de cinema com duas exposições sobre o cineasta (em Sintra até final de Dezembro), um cartaz e um programa intitulado “Waiting for mr. Lynch” - afinal, ele até veio em 2007, mas não voltou em 2018. “Noutros aspectos, é muito humilde. Gosta de viver de forma simples. Gosta de varrer. Gosta de mexericar com coisas. Adora arranjar coisas. É tão engraçado, estava com ele numa coisa há dois meses e o meu sapato estragou-se. Os olhos dele iluminaram-se e ele disse ‘posso arranjar-te isso’. Fui para casa só com um sapato e ele levou o meu sapato para casa dele e arranjou-o. ”É nesta dualidade que vive Espaço para sonhar, cuja estrutura - um capítulo da jornalista e crítica de arte seguido de um capítulo do realizador e pintor, apenas ordenados cronologicamente - foi ideia de McKenna, para dar proeminência à voz de David Lynch. Dá espaço ao fétiche Lynch - a frases ou revelações com o encanto corriqueiro de quem procura num génio os traços do dia-a-dia. Em Junho, numa rara e longa entrevista à revista New York, o entrevistador até da sanita tão especial de David Lynch fala com enlevo. Haverá, por isso tudo, dois livros em Espaço para sonhar? “É uma pergunta interessante… Se fossem só os meus capítulos, o David pareceria ausente. E se fossem só os capítulos do David, o leitor não teria muitos factos – o David não se interessa nem se lembra de coisas como orçamentos, datas, esse tipo de coisa. E eu queria que fosse um livro definitivo. ” Kristine McKenna esteve na origem de Espaço para sonhar e “não foi preciso nada para o convencer. Fiquei muito espantada. Tive a ideia de fazer o livro, telefonei-lhe e disse ‘há toneladas de livros sobre ti, estas pessoas estão a fazer dinheiro com a história da tua vida, porque é que não fazemos o nosso próprio livro. Será a tua versão, e tudo estará correcto e tu farás algum dinheiro com ele’”. E ele disse que sim. ”A partir daí, trabalharam. Entre sandes repetitivas e a honra. “Ele cumpre sempre com a sua palavra. ”O jogo foi aparentemente simples e dele saem muitas pepitas Lynch sobre as primeiras namoradas, a sexualidade, os filmes e a televisão que o influenciou, a infância em Boise, no Idaho. O nascimento de alguns dos seus vocábulos estéticos - “Quando visualizo Boise na minha cabeça, vejo o optimismo cromado e eufórico dos anos 1950” - ou a mulher nua e ensanguentada que viu na rua e que “apesar de estar traumatizada, era linda”. Quando tiveram de se mudar de Boise, “a música parou”. A obsessão por café, cigarros e batidos do Bob’s, os quatro casamentos, ter estado no leito mortal de Federico Fellini, a sua teoria sobre quem matou John F. Kennedy (o vice-presidente Lyndon B. Johnson, que sucedeu a Kennedy na presidência), ou aquela noite em que conduzia com amigos e ficou hipnotizado pelos traços da auto-estrada até parar em plena via, num preview de Lost Highway: Estrada Perdida (1997). Ter a primeira filha, Jennifer, “não foi como ter um cão, mas como ter uma nova textura em casa”. As dificuldades com Anthony Hopkins na rodagem de O Homem Elefante (1980), a cuja estreia nem foi de tão nervoso que estava. O amor da sua vida: o cão Sparky. Os muitos empregos e biscates, a entregar jornais ou a fazer suportes para paus de incenso, quando o cinema não lhe dava sustento. Ou como foi aos Óscares perder “para Oliver Stone, que ganhou com Platoon – Os Bravos do Pelotão”, mas como nessa festa de derrota de Veludo Azul (1986) conheceu e beijou demoradamente, numa primeira de várias vezes, Elizabeth Taylor, o seu sonho. É expansivo quanto a Duna (1984), uma adaptação do clássico de ficção científica que foi um flop a todos os níveis, e graças ao qual nasceu um novo Lynch, que só filmava o que podia controlar do princípio ao fim. “O [produtor do filme] Dino de Laurentiis não entendia conceitos abstractos nem poéticos, de forma nenhuma – ele queria acção. (…) O Dino queria ganhar dinheiro”, diz Lynch em Espaço para sonhar. “Só quando se tratava de filmes é que eu e o Dino não nos entendíamos. O Dino ama o cinema, mas não o meu tipo de filme. ” Lynch e McKenna conversam sobre as marés, os elogios e a perda dos favores da crítica, a importância de encontrar o público certo, a fama depois da televisão. Estes relatos, e os que McKenna coligia falando com toda a gente desde os primeiros agentes, melhores amigos de infância, mulheres, Sting ou Mel Brooks, compuseram-se em duas mesas. “Eu fazia um capítulo, dava-lho e ele supostamente lia-o. Mas nem sempre o fazia”, ri-se a autoria no Chiado lisboeta. “Depois encontrávamo-nos, ele almoçava – eu levava-lhe o almoço, uma sandes de salada de ovo, ele comia sempre a mesma coisa ao almoço - e era suposto ele responder [ao capítulo anterior] no [seu] capítulo. Mas às vezes ele nem sequer o lia. E noutras vezes, mesmo que o tivesse lido, simplesmente ia para outro lado. É assim que ele é. ” Na entrevista à New York, apura-se que o tema alimentar mudou ligeiramente. “para almoço, como uma fatia de pão torrado com maionese e frango. Só isso. Depois, ao jantar, como uma fatia de pão com maionese e frango e como sopa de legumes. Todos os dias. ”McKenna esteve em todas as filmagens de David Lynch desde Veludo Azul. “Foi simplesmente mágico, estar lá. Porque foi uma rodagem muito longa para eles, durante nove meses, ficaram todos muito próximos, o David estava felicíssimo por estar a fazer aquilo depois de Duna. Na noite em que levam Jeffrey Beaumont [Kyle MacLachlan] de carro, Dennis Hopper beija-o e borra-o de baton - nessa noite foi espantoso estar lá. Estava muito frio, a [stripper] Bonnie estava a dançar em cima do carro, foi espectacular. ”O sorriso não se desvanece. “Em Coração Selvagem, a cena no Palomino em Los Angeles, em que Lula [Laura Dern] e Sailor [Nicolas Cage] estão a dançar e é um speed metal, louco, lembro-me muito bem disso. ” Mais recentemente, para televisão: “Em Twin Peaks: O Regresso, estava lá em algumas das filmagens na Sala Vermelha. Os plateaus dele são divertidos”. Uma sala vermelha também seria o centro do trailer que David Lynch, cineasta com mais de 80 créditos como realizador que não toca numa longa-metragem para o cinema desde 2006, com Inland Empire, fez para Dangerous (1991), 30 segundos para o álbum de Michael Jackson. “Tudo o que ele queria fazer era falar do Homem Elefante”, escreve Lynch. A ausência de descodificação de uma obra é tudo menos invulgar no cinema, ou nas artes em geral, mas num autor como David Lynch, que tanto toca o culto quanto atinge o mainstream, essa despreocupação didáctica no seu trabalho torna-se num mistério. E um mistério é algo a descodificar, a resolver, é um puzzle com satisfação garantida. Há mais biografias de Lynch, e livros onde se tenta descobrir mais sobre como foi feito o bebé de Eraserhead - No céu tudo é perfeito (1997), “esse Santo Graal dos obsessivos de Lynch”, como descreveu o crítico do Guardian John Patterson, e Kristine McKenna está consciente das leituras e duplas leituras de Espaço para sonhar. E também está ciente das críticas ao livro que assina com Lynch e que, em alguns casos, lamentam uma suposta ausência de profundidade. “Todos ansiamos compreender-nos, particularmente aos artistas. São fascinantes. Sinto que as pistas estão lá. Mas não as disse directamente nem as sublinhei. Algumas críticas disseram que é um livro superficial, mas… quando ele era criança experienciou violência, o pai era uma espécie de rancheiro, havia armas, tiros em animais. E também era doido por raparigas desde o jardim-de-infância e essas duas coisas ainda estão no seu trabalho. Acho que passa a ideia de quem ele é. ”Assinar um livro com Lynch, o Godot do Leffest e de tantos outros eventos que com gostariam de contar com o homem que tem um toque de agorafobia e pouco sai da sua rotina americana, é saber em parte que será lido em busca de pistas, que o subtexto será tão importante quanto o discurso à superfície? “Não é que o David tenha segredos que está a proteger, não está é interessado em explicar-se nem em explicar a vida. Vê ambos como inexplicáveis e isso é central no seu trabalho. Ele não quer que o seu trabalho seja uma experiência de ligar dos pontos, quer que seja experiencial, não uma ferramenta didáctica. Está perfeitamente confortável com o facto de haver aspectos do seu trabalho que as pessoas não compreendem. ”McKenna, que já entrevistou e compilou em vários livros conversas com Brian Eno ou Leonard Cohen e fez a crónica, nos anos 1970, da cena punk de Los Angeles, recorda como mergulhou nos adereços que Lynch faz à mão para todos os filmes. “De Twin Peaks: O Regresso há um frasco de feijões. Perguntei-lhe: ‘O que é isto, por que é que fizeste isto?’. E ele disse: ‘Bom, é uma pista’. ‘Queres dizer que pode ser descodificado?’. E ele diz: ‘Sim, claro, tudo pode ser descodificado’. O que significa que tudo o que ele faz tem um significado mais profundo. Mas ele não vai dizer-te o que é. ”No livro, McKenna resume a certa altura, a propósito de o próprio Lynch não entender inteiramente a história de Veludo Azul, durante cujas filmagens andava sempre com M&Ms de amendoim nos bolsos: “Lynch prefere operar na fenda misteriosa que separa a realidade quotidiana e o reino fantástico da imaginação humana… Quer que os seus filmes sejam sentidos e experienciados em vez de compreendidos”. Na vida, por vezes, repete frases que o próprio Lynch emprega. “A vida não pode ser explicada. Simplesmente não pode. ” Di-lo quando falamos sobre se o fascínio colectivo por David Lynch residirá em parte nessa ausência de explicações, nesse mistério sem chave. Essa impossibilidade de explicar “esse ciclone de beleza e horror” que é a vida - “e todos lutamos para passar por ela” -está no trabalho do realizador. O rio que corre entre as linhas de Espaço para sonhar afinal sempre esteve à superfície, recorda Kristine McKenna. “O David quereria que o subtexto fosse: ‘você devia meditar’. É a mensagem dele na vida, que toda a gente estaria melhor se meditasse. Isso está no livro até certo ponto, mas ele falaria sobre isso largamente e eu não o deixei. ” O hinduísmo e suas crenças filtram a forma como se retrata e como se conduz na vida. Acredita no karma, na reincarnação. “É muito tolerante. Não tem qualquer problema em dizer ‘aquele gajo é uma besta’, mas também é muito tolerante com as pessoas, não acalenta rancores. Não o conhecia antes de começar a meditar, conheci-o em 1979 e ele começou em 1973. Era uma pessoa muito zangada antes, mas ainda se zanga. Não gosta que ninguém mexa com o trabalho dele. Ele é uma pessoa muito pacífica e amorosa, é invulgar nesse sentido. É por isso que toda a gente que trabalha com ele o adora. ”Em Estrada Perdida, a personagem Fred Madison comenta: “Gosto de me lembrar das coisas à minha maneira”. “David lia as recordações dele de outras pessoas e dizia ‘Não me lembro disso dessa maneira’, mas percebia. [Só] houve um par de casos que disse ‘isso não aconteceu’. Esses cortámos”, explica Kristine McKenna, que vive na mesma Los Angeles cuja luz tanto enfeitiça David Lynch, sobre o processo de edição do livro. A área verdadeiramente sensível para tratar em Espaço para sonhar foi a vida amorosa “incrivelmente complicada” de Lynch, confirma McKenna. David Lynch é focado e concentrado a trabalhar, e as suas mulheres e namoradas testemunham a sua facilidade em apaixonar-se, um homem disponível para a alegria e para o encantamento em todos os aspectos da vida, mas também de se desligar. Delas, de um casamento, de um longo namoro como o que terminou com Isabella Rossellini com um seco telefonema. O trabalho está sempre primeiro e, como diz a sua mulher actual, a actriz Emily Stofle, “ele é muito egoísta”. “E ele sabe que é”, diz Kristine McKenna. “Tenho o olhar fixo no donut, não no buraco do donut”, escreve Lynch. A sua história é uma história americana. “Lynch é, em primeiro lugar, um artista americano, e embora os temas do seu trabalho sejam universais, o território das suas histórias é a América – onde foram impressas, de forma indelével, as memórias da infância que caracterizam o seu trabalho; e onde Lynch viveu os casos amorosos e arrebatadores da sua juventude, que moldaram as suas representações subsequentes do amor romântico como um estado de exaltação. Depois, há o próprio país: as árvores enormes do noroeste do Pacífico; os bairros suburbanos do centro-oeste e o som dos insectos nas noites de Verão; Los Angeles, onde o negócio do cinema devora as almas; e Filadélfia, a terrível provação em que foi forjada a sensibilidade estética do realizador durante a década de 1960. ”É assim que Kristine McKenna resume, em parte e em Espaço para Sonhar, o seu biografado. Esse terreno é o da imagem de Lynch, e inscreve-se na sua linguagem: “A cena precisa de um pouco mais de vento”, diria a certa alguma num plateau. A autora acrescenta-lhe “o fascínio pela complexidade do corpo humano”, desde Eraserhead a Um Coração Selvagem passando pelo pedido, dentro da sua obsessão por texturas, a Raffaella de Laurentiis sobre se podia ficar com o seu útero depois de uma histerectomia (os médicos não deixaram). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Jennifer Lynch, que colaboraria com o pai e passou parte da infância nas filmagens, lembra a McKenna nas páginas de Espaço para Sonhar que “o seu cérebro funciona segundo a ideia de que as coisas devem acontecer de uma certa forma e de que existem pequenos milagres. O seu interesse por matrículas de carros e superstições? Tudo isso são estratégias que ele usa para fazer algo mágico e transformador. Foi sempre assim”. David Lynch produz aforismos com facilidade, e sempre o fez nos seus 72 anos de vida. “Podemos dizer que a Laura Palmer é a Marilyn Monroe e que Mulholland Drive [2001] também é sobre a Marilyn Monroe. Tudo é sobre a Marilyn Monroe. ” Ou: “sinto que há muito de rock ‘n’ roll em Um Coração Selvagem. O rock é ritmo e amor, sexo e sonhos, tudo junto. Não é preciso ser-se jovem para o apreciar, mas o rock é uma espécie de sonho de juventude sobre aproveitar a vida em liberdade”. Parte do fetichismo sobre a personagem David Lynch é deliciar o leitor com os seus hábitos - afinal, era um adolescente que andava sempre de blazer e gravata, ou laço. “Sempre apertei o primeiro botão das camisas porque não gosto de sentir o ar no pescoço e não gosto que ninguém toque no meu pescoço. Deixa-me louco, não sei porquê. ”Kristine McKenna, amiga de décadas de David Lynch, sabe que está a falar nesse lugar onde se procura outrem. “Tento representá-lo como ele quereria ser representado, mas ele é tão imprevisível. É muito difícil saber o que ele vai dizer a cada minuto. ” Quis contar a sua história “de uma forma com a qual ele conseguisse viver. E tentar transmitir quão cómico ele é, porque ele tem um óptimo sentido de humor”. Quem é David Lynch? “David Lynch é uma pessoa mesmo boa. É generoso e dado. Isso, e arranjou-me o sapato. ”
REFERÊNCIAS:
Morreu o escritor Urbano Tavares Rodrigues
Em Dezembro faria 90 anos, tinha 61 anos de carreira literária. (...)

Morreu o escritor Urbano Tavares Rodrigues
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-08-09 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em Dezembro faria 90 anos, tinha 61 anos de carreira literária.
TEXTO: O escritor, jornalista e militante do PCP Urbano Tavares Rodrigues morreu na manhã desta sexta-feira, no Hospital dos Capuchos, em Lisboa. Estava a poucos meses de completar 90 anos. O escritor estava internado há três dias. A notícia foi conhecida através da página de Facebook "Urbano Tavares Rodrigues - escritor" e foi publicada pela filha, a escritora Isabel Fraga: "O meu pai acaba de nos deixar. Estava internado nos Capuchos há três dias. Não tenho mais informações. Soube agora mesmo. " O PÚBLICO confirmou. O corpo de Urbano Tavares Rodrigues estará em câmara ardente a partir das 19h desta sexta-feira, na Sociedade Portuguesa de Autores, em Lisboa. Numa entrevista ao Ípsilon, em Outubro do ano passado, Urbano Tavares Rodigues dizia: “Mereço amplamente o Prémio Camões”. A frase saiu a meio de uma conversa sobre livros e política. Reflectia o sentimento de uma justiça por fazer. Não era a primeira vez que deixava cair o desabafo. Fazia, então, 60 anos de obra literária e 89 de uma vida cada vez mais frágil fisicamente devido a uma insuficiência cardíaca. Continuava a escrever e continuou a editar até ser internado. Urbano Tavares Rodrigues nasceu em Lisboa, a 6 de Dezembro de 1923, filho de uma família de grandes proprietários agrícolas de Moura, Alentejo. Foi, aliás, em Moura que fez a escola primária. Depois, já em Lisboa ingressou no Liceu Camões, onde foi colega de Luís Filipe Lindley Cintra e do irmão de Vasco Gonçalves, António. Licenciou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa onde cursou Filologia Românica. Desde cedo começou a militar na oposição ao Estado Novo. Isso valeu-lhe o impedimento de trabalhar como professor. Passou pela prisão em Caxias e foi para um longo exílio em França. Em Paris, conheceu alguns dos intelectuais da década de 1950, caso de Albert Camus, de quem foi amigo e que era presença frequente nas suas conversas. Foi professor na Faculdade de Letras, crítico literário e esteve sempre ligado ao Partido Comunista Português. Mários Soares: "Pessoa com muitas virtudes"O escritor, autor de Os Insubmissos, era amigo de Mário Soares. “É para mim uma grande e profunda tristeza o falecimento de Urbano Tavares Rodrigues, de quem fui amigo desde a minha juventude. Era um amigo íntimo e muito querido, uma pessoa com muitas virtudes”, disse esta sexta-feira ao PÚBLICO o antigo Presidente da República. “Tivemos divergências políticas, naturais, sobretudo porque ele a partir de uma certa fase da vida transformou-se, tornou-se comunista. Mas quando nos víamos éramos os amigos de sempre, tínhamos conversas óptimas, discutíamos política”, acrescentou Mário Soares, que foi visitar o amigo há uns meses e que, por isso, já esperava a "notícia triste". “Nessa altura já o tinha achado muito em baixo, fiquei convencido de que ele estava numa fase derradeira. De qualquer maneira é sempre uma tristeza muito grande saber da morte de um amigo querido. Um amigo que o foi até ao fim porque, apesar das nossas diferenças ideológicas, nunca deixámos de o ser. Tínhamos muito contacto. Era extremamente humano, dado. Estimo-o como escritor, como homem. Estimo-o muito. ”Manuel Alegre: "Um escritor que marcou o século XX"Autor de uma vasta obra, onde se destaca o romance, a prosa poética, o conto e a poesia, Urbano Tavares Rodrigues era um crítico atento e presença regular nas páginas dos jornais. Ao PÚBLICO, Manuel Alegre lembra que foi Urbano o autor do primeiro texto publicado sobre a Praça da Canção. “Saiu no República, em pleno fascismo”, lembra o poeta, recordando “um grande amigo, grande camarada, um escritor que marcou o século XX; um grande prosador que sempre tomou partido e não se fechou nunca numa torre de marfim e que combateu pela liberdade, pela acção e pela palavra. ”O escritor e ex-deputado salienta ainda a enorme atenção de Urbano Tavares Rodrigues às novas gerações de escritores. Foi para ele que José Luís Peixoto enviou um exemplar da edição de autor de Morreste-me, o seu primeiro livro publicado em edição de autor. E seria Peixoto a apresentar o último título de Urbano Tavares Rodrigues, A Imensa Boca dessa Angústia e outras Histórias, editado em Abril passado pela D. Quixote. “A minha mãe era leitora do Urbano. Havia muitos livros dele lá em casa. Parte da minha formação foi feita a lê-los. Na minha adolescência encontrava ali o Alentejo que era a minha realidade”, disse o escritor ao PÚBLICO. Mário Cláudio: "Nos anos 50/60 foi uma lufada de ar fresco na literatura portuguesa"O escritor Mário Cláudio, lamenta muito a sua morte, mesmo se ela estava anunciada devido à sua doença. "Foi um amigo do coração, mestre de escrita, de coragem, de profissionalismo, de companheirismo, de humanidade, de espírito de conciliação para além de todo o sectarismo", disse ao PÚBLICO o escritor num depoimento por telefone. Urbano Tavares Rodrigues "era alguém de quem se dizia bem em vida – o que não é habitual entre nós –, não só como escritor mas também no plano cívico. Nunca usou o seu posicionamento político, que era bem conhecido, para fazer qualquer espécie de segregacionismo. Há melhor? Não há. Parecido? Também não. Quase não se acredita que fosse português. Mas era. Por isso, nem toda a esperança está perdida. "O que Mário Cláudio também acha admirável em Urbano Tavares Rodrigues é que ele manteve a sua oficina de escrita até ao fim, e também o seu contacto com os amigos e companheiros de escrita. "Nos anos 50/60, ele surgiu como uma lufada de ar fresco na literatura portuguesa, tendo conseguido superar o modelo neo-realista, estabelecendo pontes com a literatura francesa da época e o realismo mágico da América Latina. E enfrentou de forma aberta, sem falsos pudores, o tema do sexo e do erotismo. ""Uma figura assim não podia escapar a determinadas agressões: morderam-lhe os calcanhares – era fatal que isso acontecesse. Mas Urbano Tavares Rodrigues foi sempre superior a tudo isso. Deixou um itinerário de excelência", concluiu Mário Cláudio. Uma carta sobre tolerância para o filho de sete anosDa Amazónia, onde está a participar num festival, José Luís Peixoto lamenta a morte do amigo, lembra a generosidade do homem que nos últimos anos tinha “alguma mágoa por ver a vida afastar-se de si”. Sinal dessa vitalidade que agora se manifestava apenas na escrita, lembra, Peixoto, é o filho de Urbano Tavares Rodrigues, António. Para ele Urbano deixou uma carta. Falava muito dela. Dizia que era a grande herança que lhe deixava. António que agora tem sete anos, deveria abri-la aos dez anos. A mensagem é a da tolerância. A académica Maria Alzira Seixo foi sua aluna no primeiro ano da Faculdade de Letras de Lisboa. Contou ao Ípsilon que o professor passava por ela e dizia: "Sabe, trago sempre comigo a pasta de dentes e o pijama. ”A aluna naquela época, finais dos anos 50, achava desconcertante o desabafo. E nesse artigo do Ípsilon, em 2007, explicava ainda que quando, em 1958, apareceu Uma Pedrada no Charco, com que Urbano Tavares Rodrigues ganhou o seu primeiro prémio, o Ricardo Malheiros, da Academia de Ciências, percebeu o que o seu professor lhe queria dizer: “No mesmo dia o Urbano era chamado e às vezes preso pela PIDE [a ex-polícia política da ditadura de Salazar]. ”“Portugal perde um grande escritor e um homem exemplar. Lutou sempre pelas suas convicções com um grande sentido humanista”, diz ao PÚBLICO o editor Manuel Alberto Valente que perdeu um grande amigo. “Julgo que Portugal não lhe prestou a merecida homenagem em vida e espero que agora se lembre de lha prestar”, acrescenta o director da Porto Editora. “Enquanto isso, espero que as pessoas o possam homenagear lendo os seus livros”. A despedida no novo livro: "E tudo será luz"Em 2007 começaram a ser publicadas pela Dom Quixote as suas Obras Completas. Nessa altura, Urbano Tavares Rodrigues disse ao Ípslion que era a concretização de um sonho antigo. No início de Julho passado fez chegar à sua editora na Dom Quixote, Cecília Andrade, aquele que será o seu último livro, Nenhuma Vida, a publicar ainda este ano, divulgou nesta sexta-feira a editora. Esse romance, que será lançado para assinalar os 90 anos do escritor aborda questões que Urbano Tavares Rodrigues tratou na sua obra, mas também ao longo da sua vida, como as lutas políticas e sociais, a solidariedade, as relações humanas, mas também a sexualidade e o erotismo. “É um romance muito curto e onde está todo o espírito do autor”, diz Cecília Andrade, acrescentando que apesar de as personagens não serem auto-biográficas, as questões abordadas têm muito da experiência do autor. Tem um prefácio escrito pelo próprio e que é já uma despedida. "Daqui me vou despedindo, pouco a pouco, lutando com a minha angústia e vencendo-a, dizendo um maravilhado adeus à água fresca do mar e dos rios onde nadei, ao perfume das flores e das crianças, e à beleza das mulheres. Um cravo vermelho e a bandeira do meu Partido hão-de acompanhar-me e tudo será luz".
REFERÊNCIAS:
Partidos PCP
Miley Cyrus continua imparável: a polémica agora é com Sinead O’Connor
Sinead O'Connor afirmou que Cyrus está a ser prostituída pela indústria mediática. Esta respondeu com alusões a um desiquilíbrio psiquiátrico de O'Connor. (...)

Miley Cyrus continua imparável: a polémica agora é com Sinead O’Connor
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-10-05 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sinead O'Connor afirmou que Cyrus está a ser prostituída pela indústria mediática. Esta respondeu com alusões a um desiquilíbrio psiquiátrico de O'Connor.
TEXTO: Miley Cyrus disse à Rolling Stone que o vídeo de Wrecking ball, o seu novo single, foi inspirado no famoso teledisco da Nothing compares 2 you cantada por Sinead O’Connor. E eis então O’Connor a ver-se também atraída para o furacão Miley. Foi o início da mais recente polémica envolvendo a cantora de We can’t stop. Realmente, ela não pára. Para aqueles que a criticam, está com a sua nova imagem hiper-sexualizada a prostituir o seu talento e a legitimar a visão do corpo feminino enquanto mero objecto sexual. Para os defensores que se têm erguido recentemente e a que o New York Times dava voz num artigo publicado a 2 de Outubro, está a expor a sua sexualidade de uma forma sincera e a chocar de frente com o puritanismo social em relação ao sexo e à nudez. Sinead O’Connor está, claramente, do lado dos primeiros. No início da semana, a cantora irlandesa escreveu uma carta aberta na sua conta do Facebook em que alertava para os perigos de Miley Cyrus estar a usar a sua sexualidade em benefício de uma indústria mediática que não a protegerá. “Irão prostituir-te em tudo o puderem, e habilmente fazer-te pensar que era isso que querias”, escreveu. Miley, aparentemente, não apreciou os conselhos. Respondeu repescando tweets de Sinead O’Connor de há dois anos, quando a cantora atravessava uma crise psiquiátrica. Sob os tweets citados, a frase “Antes de existir Amanda Bynes [jovem celebridade televisiva americana actualmente internada para tratamento psiquiátrico]… havia O’Connor”. Algumas trocas de palavras pelas redes sociais depois, Sinead O’Connor ameaça agora Miley Cyrus com um processo judicial se não lhe forem apresentadas desculpas públicas. Miley Cyrus não liga nenhuma: tweetou estar demasiado ocupada a trabalhar como anfitriã do histórico programa Saturday Night Live para continuar a conversa. Demasiado ocupada com o programa mas não só. Esta semana protagonizou nova sessão de fotos, da autoria de Terry Richardson, que, pela quase nudez e pose soft-porn, certamente alimentarão a controvérsia, o debate, o falatório, nas próximas semanas. Entretanto será editado dia 8 de Outubro um novo álbum, Bangerz. Porque Miley Cyrus é, afinal, uma cantora. E uma marca que está a saber construir-se na perfeição, como defendeu no New York Times a directora editorial do Hollywood Reporter, Janice Min. “Ela quer horrorizar as mães em toda a América. Essa é a sua marca. Ela tem estado numa campanha incessante para deixar de ser Hannah Montana [a personagem que primeiro a celebrizou na Disney] e para se tornar um símbolo de rebeldia e tumulto”. Até a artista Marina Abramovic, apesar de considerar a sua actuação nos últimos MTV Video Awards “vulgar e não original”, considera que Cyrus “capta algo sobre ser jovem e rebelde”, declarou ao New York Times. “Há ali energia, e consigo ver um talento”. Tudo isto começou, recordemos, com a supracitada aparição nos MTV Video Awards, no final de Agosto, mas essas imagens em que Miley Cyrus, 20 anos, a antiga celebridade pré-adolescente adorada pelos pré-adolescentes chamada Hannah Montana, simulava masturbação com um dedo de borracha e dançava, de língua de fora e rabo bamboleante na pélvis do cantor Robin Thicke (o já conhecido mas agora mui célebre movimento de dança chamado twerking), parecem coisa distante na era da informação ao tweet. Desde essa altura que a discussão em torno de Miley Cyrus tem sido incessante. Ela ocupa agora o lugar da última polemizadora pop da era das redes sociais, Lady Gaga. Sexta-feira, o site Entertainment News, adiantava que, nas 24 horas anteriores, na sequência da exibição na MTV do documentário Miley: The Movement, a cantora tinha sido objecto de 900 mil tweets. Se já era uma campeã de receitas enquanto Hannah Montana (o documentário Hannah Montana & Miley Cyrus, de 2008, por exemplo, está em nono na lista dos mais lucrativos de sempre nos Estados Unidos), a sua nova imagem e a polémica associada multiplicou o interesse que suscita. We can’t stop, o primeiro single do novo álbum, bateu com cem milhões de visualizações o recorde da plataforma online Vevo. Wrecking ball , o segundo, contabilizou os mesmos cem milhões em meros seis dias, levando Cyrus a bater o seu próprio recorde. No meio de tudo isto, a cantora, capa recente da Rolling Stone, omnipresente na imprensa e redes sociais, confessava à revista: “Julgo que este não é o melhor momento para me googlar”.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave adolescente social sexo sexual corpo sexualidade cantora
"Rosita" e o império como objecto de desejo
Na fronteira ténue entre o espectáculo e a antropologia, a cultura popular e a cultura científica, os zoos humanos serviram diferentes discursos coloniais. Expuseram também práticas de um racismo e de um sexismo que hoje subsistem sob outros formatosOs "jardins zoológicos humanos" foram um fenómeno muito popular, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, entre 1840 e 1940. Consistiam em grupos de "selvagens" ou "nativos", como eram designados, expostos em jardins zoológicos, jardins de aclimatação, exposições universais e coloniais ou circos itinerantes. O contexto colonial europeu deste período foi especialmente... (etc.)

"Rosita" e o império como objecto de desejo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-08-27 | Jornal Público
TEXTO: Na fronteira ténue entre o espectáculo e a antropologia, a cultura popular e a cultura científica, os zoos humanos serviram diferentes discursos coloniais. Expuseram também práticas de um racismo e de um sexismo que hoje subsistem sob outros formatosOs "jardins zoológicos humanos" foram um fenómeno muito popular, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, entre 1840 e 1940. Consistiam em grupos de "selvagens" ou "nativos", como eram designados, expostos em jardins zoológicos, jardins de aclimatação, exposições universais e coloniais ou circos itinerantes. O contexto colonial europeu deste período foi especialmente propício a estes eventos e foram poucas as vozes contemporâneas que os condenaram. "Vieram à exposição mais de um milhão de portugueses. Muitos - possivelmente a maioria - vieram em ar de festa, com o mesmo espírito alegre e descuidado com que vão ao arraial e ao teatro, aos touros e ao futebol. Diziam alguns: vamos ver os pretos!" Um ano depois da primeira (e última) Exposição Colonial Portuguesa, que teve lugar no Porto em 1934, fazia-se o balanço, positivo, do evento. Um álbum comemorativo publicado em 1935 descrevia a exposição e o sucesso alcançado entre os públicos de "todas as classes". Tinham sido atraídos pelas novidades - sobretudo a encenação de uma aldeia de "indígenas guineenses" -, mas tinham acabado "comovidos" e "orgulhosos" dos feitos coloniais portugueses que ali se tornaram visíveis através das mais variadas tecnologias expositivas e visuais. O jardim do Palácio de Cristal, da mais industrial das cidades portuguesas, fora temporariamente ocupado por reproduções de monumentos de Goa e de Macau, exemplares da fauna africana, cinema com exibição de filmes sobre as colónias, desfiles militares com soldados moçambicanos, a banda militar de soldados angolanos, uma livraria destinada à venda e propaganda de livros coloniais, a mostra industrial com 600 expositores - incluindo produtos portugueses de interesse para o mercado colonial, produtos coloniais passíveis de interesse metropolitano, e muitas outras exposições, a mostrar artesanato africano ou os resultados mais recentes da colonização portuguesa, na área da educação, transportes ou medicina. Entre esta multiplicidade de exibições - em que ainda acrescia o divertimento de uma feira popular e um comboio para que o público não se cansasse da viagem entre Angola e Moçambique -, as "representações etnográficas" acabaram por ser as mais populares. Em 1933, o ministro das colónias, Armindo Monteiro, escrevera uma carta a todos os governadores das colónias portuguesas a pedir-lhes que enviassem para o Porto os "seus nativos" para serem alojados "em aldeia ou habitações típicas". Trezentos e vinte e quatro mulheres, homens e também crianças, provenientes de Cabo Verde, Guiné, Angola, Moçambique, Índia, Macau e Timor, estiveram expostos no Porto. Entre eles, o grupo de balantas da Guiné-Bissau foi o mais fotografado pela câmara oficial de Domingos Alvão. Os seus retratos foram dos mais reproduzidos nos populares postais fotográficos que se compravam como souvenirs, bem como os que mais atenção mereceram da parte da imprensa, que multiplicou os públicos da exposição com a sua cobertura exaustiva do evento. A Exposição Colonial Portuguesa de 1934 foi emblemática de uma nova fase do colonialismo português - mais centrado em África, interessado na emigração de portugueses para territórios africanos, e empenhado em afirma-se numa Europa também ela colonizadora. O modelo adoptado pela iniciativa portuense, tanto pela inspiração estética como ideológica, fora em parte o da Exposition Coloniale de Paris em 1931. Numa ilha no meio de um lago, onde uma fonte luminosa vinha dar um toque de modernidade, qual metáfora do empreendimento português em África, instalaram-se umas dezenas de guineenses, que viviam o seu quotidiano numa aldeia de palhotas, sob o olhar dos visitantes portugueses. O público da exposição podia assim ocupar, mesmo que temporariamente, o olhar e o lugar do colonizador. Um colonizador que, na segurança oferecida por um parque no centro do Porto, podia já beneficiar dos resultados das "campanhas de pacificação" em África. Mesmo a da Guiné-Bissau, uma das mais tardias. Assim designadas pelos portugueses porque visavam eliminar a resistência africana à ocupação portuguesa, estas campanhas militares não faziam, naturalmente, parte do discurso expositivo. O que se anunciava em 1934 era uma outra fase da colonização portuguesa - a ocupação dos territórios africanos por colonos portugueses. O evento, de carácter didáctico e propagandístico, procurava relembrar ao povo português que "Portugal não era um país pequeno". A dimensão, excessiva, do espaço imperial, precisava de quem o ocupasse e trabalhasse. Para que Portugal pudesse voltar a ser aquilo que já tinha sido. O tal passado que a exposição evocava de muitas formas, para aqueles que sabiam ler e para a maioria que só sabia ver. É que a ideologia das exposições deve ser analisada lado a lado com outros espaços de uma cultura visual bem circunscrita: da fotografia aos postais, dos jornais ilustrados ao cinema, dos museus de antropologia aos livros de propaganda colonial. O desejo de um impérioE como voltar a transformar o império num objecto de desejo? Como incentivar os "fortes portugueses que navegam", cantados por Camões, a voltar a partir? A exposição era ela própria uma ode às possibilidades coloniais do futuro, um balanço daquilo que se fizera recentemente, e um anúncio de um Portugal do além-mar que seria central à ideologia política e colonial do Estado Novo. As exposições de "nativos", e sobretudo de "nativas", tornaram-se o símbolo mais concreto dessa erotização de um império onde a virilidade lusa devia voltar a semear riqueza. As metáforas de género já desde há muito faziam parte da linguagem colonialista portuguesa, tal como da francesa ou britânica. Os espaços coloniais surgiam feminizados, selvagens e feitos da natureza desordenada que a masculinidade imperial europeia iria controlar. A conquista territorial era descrita com o vocabulário da conquista sexual, onde o colonizador branco masculino exercia duplamente o seu domínio sobre a mulher colonizada - domínio étnico e domínio de género iam, por isso, a par. Esta linguagem, banalizada na prolixidade da escrita produzida nos contextos imperiais europeus do século XIX, manifestara-se graças às possibilidades reprodutivas da fotografia. Inventada quase em meados de oitocentos, a tecnologia fotográfica desenvolveu-se em paralelo com a consolidação dos impérios coloniais e tornou-se um dos seus mais importantes instrumentos de propaganda colonial, juntamente com as exposições. O "objecto" mais descrito, fotografado e reproduzido na Exposição Colonial de 1934 foi uma mulher, negra e nua. A Rosa, Rosinha, ou Rosita, nome com certeza mais fácil do que o seu verdadeiro nome islâmico, era uma mulher balanta, da Guiné recentemente "portuguesa" (ver artigo de Isabel Morais no livro Gendering the Fair). Fotografada por Alvão em várias poses encenadas já pelos códigos visuais de um erotismo feminino, por vezes com os braços levantados para melhor revelar o peito, a Rosinha personificou aquilo que o império deveria ser - o lugar das mulheres disponíveis sexualmente para os homens portugueses que a exposição queria incentivar a partir. Como eram negras podiam estar nuas e podiam ser observadas num espaço familiar e domingueiro de lazer aceitável. Não transgrediam a moral vigente porque não eram brancas como as mães, mulheres e irmãs dos homens que as observavam - dos visitantes do evento aos que organizaram a exposição ou promoveram os discursos de miscigenação além-mar. Sempre implícita na ideia de miscigenação - tão implícita que nem tinha de ser afirmada - estava uma relação entre os homens colonizadores brancos e as mulheres colonizadas africanas. Nunca, naturalmente, a possibilidade - o tabu - de uma relação sexual entre uma mulher branca e um homem negro. Mais tarde, a miscigenação conheceu no "luso-tropicalismo" do antropólogo brasileiro Gilberto Freyre a mais legítima das suas teorizações. Mas já era apresentada como uma característica do colonialismo português desde que Afonso de Albuquerque promovera, na Goa do século XVI, os casamentos com mulheres hindus convertidas ao cristianismo. A ideia de miscigenaçãoComo poderão ser consideradas excepcionais todas estas políticas coloniais? Todos os impérios coloniais europeus de oitocentos legitimaram as suas empresas com a afirmação do seu "excepcionalismo" e da sua menor violência em relação às práticas coloniais dos outros. Se os portugueses alegavam a sua capacidade de mistura com os nativos (leia-se "as nativas") face a uns britânicos que faziam da separação racial uma das suas bandeiras, os últimos denunciavam a violência religiosa dos portugueses, em contraste com sua própria tolerância em relação ao hinduísmo. Ou, mais tarde, já no principio do século XX, os britânicos denunciavam as práticas de trabalho forçado nas roças de São Tomé, numa altura em que a "escravatura" supostamente já não existia. Os "outros" colonizadores eram sempre piores e por isso não mereciam as colónias que tinham. Tentar ler as políticas de mistura - e, relembramos, de mistura de homens brancos com mulheres dos territórios colonizados -, que pontuaram a colonização portuguesa, em diferentes contextos e por razões distintas, como um sinal do "não-racismo dos portugueses" é reproduzir acriticamente os próprios discursos colonizadores. E é, sobretudo, também não ter em conta a profunda desigualdade entre os géneros que, à partida, estava implícita nestas relações. Na base destas políticas de colonização e interacção com os locais estava a distinção entre, em primeiro lugar, a sexualidade masculina, livre de escolher o seu objecto de desejo, cá ou lá (embora mais lá do que cá), e onde estava implícita uma superioridade; em segundo lugar, a sexualidade feminina da mulher branca, regulada pelas prescrições legais, culturais e sociais de uma sociedade patriarcal. Em terceiro lugar, estava a sexualidade da mulher negra, uma mulher que surgia como passiva e sem poder, apresentada como disponível para o homem branco que, ao ocupar o lugar do homem negro, estava também, metafórica e literalmente, a dominá-lo. Mas o sexo não chega. E o colono português também teria de andar bem alimentado e bem vestido. Num outro pavilhão da exposição colonial, um enorme diorama com figuras de tamanho natural mostrava as mulheres negras a aprender a cozinhar e a coser sob o olhar paciente das freiras missionárias portuguesas. Expunham os progressos da evangelização portuguesa em África através do encontro de dois tipos de mulheres. Um encontro também de valores religiosos e domésticos, aqueles que as mulheres, brancas ou negras, podiam viver no império. Apesar de também ter opositores, até entre antropólogos prestigiados, a miscigenação tornou-se uma ideologia central do regime, e a Rosinha estava ali para a ilustrar: o nome português, provavelmente da conversão ao cristianismo, para a tornar mais próxima e até casadoira; o diminutivo de "inha" ou "ita" para a familiarizar; e a sua sexualização, usada e abusada no contexto expositivo, para que o império também pudesse ser imaginado como uma conquista sexual. Os homens guineenses que vieram com a Rosinha foram entrevistados. Mas as mulheres, não. Não se julgou necessário ouvir a sua voz. Vê-las era mais importante do que as ouvir. Aqui, como em muitos outros casos, "raça" e "género" não são conceitos dissociáveis. Inseparável da cor da pele era o seu género feminino, e era nessa combinação que se reificava uma dupla hierarquia - a do branco sobre o negro, a do colonizador, neste caso, português, sobre a colonizada, neste caso proveniente da Guiné-Bissau e, finalmente, a de um homem sobre uma mulher, onde o domínio patriarcal e sexual era assumido. O espaço da exposição encenava, de um modo lúdico e legítimo, o projecto colonial. Entre partir e tornar-se colono havia um oceano pelo meio. No jardim portuense, apenas um lago os separava de África. E de uma África que nada tinha de ameaçador. A colonização do corpoAs notícias de jornal e as fotografias, popularizadas em postais fotográficos, multiplicaram os discursos escritos e visuais da exposição, fazendo-a chegar também àqueles portugueses que não tinham ido ao Porto. Um livro publicado em Luanda em 1934, celebrava a província de Angola e a sua presença na 1. ª Exposição Colonial. Na página dedicada ao Banco de Angola, duas fotografias do "magnífico e luxuoso stand próprio, lindamente decorado", partilhavam a página com duas fotografias de mulheres seminuas: Uma "beleza negra da Huíla", de boca semiaberta e braços levantados como os da Rosinha, a erguer o peito desnudo, não disfarçava a sua óbvia conotação erótica; a "preta Mucancala" inscrevia-se num outro tipo de imagem, também muito popular desde a segunda metade do século XIX - a da fotografia "etnográfica", realizada ao ar livre no lugar de origem (ou, muitas vezes, nas encenações recriadas nas exposições europeias, coloniais ou universais). O texto a legendar a imagem descrevia o oposto do Portugal moderno e inovador que se queria transplantar para os trópicos: aquela "curiosa tribu" angolana era "uma das mais baixas espécies da escala da humanidade". A mulher negra desnuda - quer na sua versão "sexualizada" quer na sua versão "primitiva" - contrastava com a prosperidade e modernidade do Banco de Angola e ao mesmo tempo reificava as distinções de género tão explícitas na documentação colonial, a masculinização do colonizador, neste caso daquele que geria a riqueza da exploração colonial, e a feminização da colónia, neste caso, numa "preta" e numa "negra", sem nome e sem roupa. No contexto das discriminações raciais da Europa da década de 1930, como já no século XIX, o corpo da mulher negra podia ser exposto, legitimamente, de muitas formas, num claro contraste com o corpo nu da mulher branca, remetido para as fotografias transgressivas de uma pornografia para consumo privado masculino. O corpo nu da mulher negra estava disponível visualmente, porque imperava uma ideologia legitimada por um racismo científico que o inferiorizava, e que lhe retirava voz e poder. Os lugares desta exposição legítima do corpo eram inúmeros: nas exposições universais e coloniais, nos postais fotográficos que jogavam com a ambiguidade entre a legitimidade científica da antropologia e o erotismo; ou em imagens de jornal a ilustrar os costumes de povos "estranhos e distantes". Uma consciência crítica desenvolvida sobretudo desde os anos 1960 veio questionar a violência com que os corpos das mulheres negras foram transformados em objectos e desumanizados, ao longo da história. De Saartjie Baartman - a chamada Vénus de Hotentote que em princípios do século XIX circulava tanto nos meios científicos como nos de entretenimento, entre Londres e Paris - até às muitas mulheres e homens que, ao longo da segunda metade do século XIX, foram apresentados como "selvagens" ou "nativos" e expostos no jardim de aclimatação de Paris, nas exposições europeias ou no circo itinerante do norte-americano Barnum. Este mesmo fenómeno, central para se compreender a ideologia colonial deste período, foi desprezado pela academia durante muitos anos. Porém, desde há cerca de vinte anos que os "zoos humanos" têm sido estudados na perspectiva da história do colonialismo, racismo e cultura visual. Que continuidades e cisões subsistem, hoje, na cultura visual contemporânea que caracteriza o nosso contexto nacional? Uma muito maior consciência anti-racista - incentivada tanto pelos debates do pós-colonialismo como por políticas de direitos humanos mais democráticas - tornaria impensáveis muitos dos textos e imagens do colonialismo português dos séculos XIX e XX. No entanto, ainda subsistem entre nós muitas formas contemporâneas de racismo associado ao género. O que é que a sexualização das mulheres africanas ou brasileiras, no contexto português - no humor machista, em conversas masculinas não escritas, na formulação de estereótipos primários -, diz sobre os preconceitos enraizados de tantos portugueses? Outras perguntas são inevitáveis e também têm sido objecto de estudo nas últimas décadas. Como é que o corpo da mulher, independentemente da cor da pele - sexualizado sob um ponto de vista masculino, anónimo, e passivo -, continua a ser tão utilizado acriticamente na visualidade contemporânea? Se é certo que tais corpos já não servem para propagandear projectos coloniais, nem promessas de uma vida melhor nos grandes territórios de um país pequeno, continuam a ser usados para vender automóveis, cerveja e tudo o resto. Sobretudo, vendem a ilusão de que o desejo do olhar de um público - que se assume como sendo masculino - pode desresponsabilizar eticamente aqueles que detêm o poder sobre os discursos do visível. Investigadora do ICS-UL
REFERÊNCIAS:
Religiões Cristianismo Hinduísmo
Crónica de um crime anunciado
No dia 10 de Fevereiro, Manuel Baltazar, conhecido como “Palito”, começará a ser julgado pela morte da tia e mãe da sua ex-mulher, Angelina, e por ter disparado contra ela e contra a filha. Angelina vive no medo de que ele regresse. Só no ano passado morreram 40 mulheres vítimas de violência doméstica. (...)

Crónica de um crime anunciado
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 14 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: No dia 10 de Fevereiro, Manuel Baltazar, conhecido como “Palito”, começará a ser julgado pela morte da tia e mãe da sua ex-mulher, Angelina, e por ter disparado contra ela e contra a filha. Angelina vive no medo de que ele regresse. Só no ano passado morreram 40 mulheres vítimas de violência doméstica.
TEXTO: Após matar a tia e a mãe da sua ex-mulher, ferindo ainda esta e a filha de ambos, Manuel Baltazar, "Palito" como é conhecido, escapou pelo cerejal nas traseiras de sua casa e escapou à polícia durante 34 dias. São esses 34 dias, em que - segundo polícia e especialistas - não podia ter sobrevivido sem a ajuda dos seus conterrâneos, que tornam este simultaneamente um dos mais excepcionais e exemplares crimes de violência doméstica dos últimos anos. Semanas antes do início do julgamento de Palito, voltámos a Trevões e Valongo dos Azeites para perceber como foi isto possível. Em Dezembro, Angelina passou a receber um apoio financeiro do Estado; até então, impedida de trabalhar, subsistiu graças aos seus vizinhos, que lhe ofereciam a comida. Também não consegue dormir à noite, recordando constantemente o que sofreu. E está em crer que, apesar de “Palito” — como Manuel Baltazar, seu ex-marido, é conhecido — estar preso, ainda controla cada um dos seus passos. A 10 de Fevereiro, “Palito” começará a ser julgado pelo crime praticado a 17 de Abril de 2014; Angelina vive no medo de que de alguma forma, legal ou ilegal, ele consiga regressar para matá-la. Há uma razão para Angelina temer que ele consiga escapar à prisão — é que já assim aconteceu no passado. Estiveram casados 29 anos, de 2 de Janeiro de 1982 a 12 de Dezembro de 2011. Mas ainda antes do divórcio, em Fevereiro de 2009, Angelina abandonou a casa do casal em Trevões, de onde “Palito” é natural. E a 15 de Outubro apresentou queixa contra o marido, que viria a ser condenado por crimes de violência doméstica, ofensas à integridade física e ameaça agravada contra Angelina, a tia desta, Elisa Barros, e o filho, Rui. A sentença do processo — em que pelo menos dez pessoas testemunharam a favor de Angelina — saiu a 18 de Novembro de 2013. As agressões e ameaças praticadas por “Palito” e dadas como provadas pelo tribunal de São João da Pesqueira são descritas em 26 pontos, tornando-se claro que a periodicidade e o grau de violência de “Palito” aumentaram exponencialmente desde que a ex-mulher saiu de casa: a 8 de Outubro de 2009, “Palito” “apertou com força” o pescoço de Angelina; a 29 de Setembro de 2012, apontou uma caçadeira ao peito do filho Rui, quando este trabalhava com a mãe na apanha da azeitona, dizendo-lhe “chama a GNR, agora, chama”; a 21 de Outubro de 2012, “Palito” conduziu o seu Toyota Corolla na direcção de Maria Angelina, travando bruscamente em cima desta — depois disse-lhe: “Agora já não arreganhas os dentes”; a 5 de Dezembro de 2012, ameaçou-a, bem como aos seus tios Elisa e António Barros, que se encontravam a podar uma vinha: “Hei-de cozer-vos a todos, hei-de pegar fogo à vossa casa”; e a 20 de Setembro de 2013, “Palito” perseguiu, de foice na mão, Angelina no cemitério, agarrando-a pela parte de trás do pescoço até Angelina ficar no chão — quando a GNR a encontrou, escondida num café, a urina escorria-lhe pelas pernas abaixo. “Palito” foi condenado a um cúmulo jurídico de quatro anos, mas a pena foi suspensa e em vez de ser preso, “Palito” foi proibido de se aproximar a menos de 400 metros da ex-mulher e tinha de usar pulseira electrónica. Às 16 horas da tarde do dia 17 de Abril, “Palito”, após cortar a pulseira electrónica e munido de uma caçadeira, dirigiu-se a casa de Elisa, onde as quatro mulheres se encontravam a fazer bolos para a Páscoa, e disparou. Depois enfiou-se serra de São Paio dentro e, durante um mês e quatro dias, escapou ao dispositivo policial montado para o apanhar. Esses 34 dias não são um pormenor, antes constituem o traço distintivo de um crime que tendo contornos excepcionais, também é, em termos simbólicos, exemplar dos restantes crimes de violência doméstica ocorridos em Portugal — e a razão pela qual ao longo de vários meses fomos e voltámos a Trevões e a Valongo dos Azeites. Segundo a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), de 1 de Janeiro a 30 de Novembro de 2014, houve 40 mulheres assassinadas por companheiros, ex-companheiros ou familiares do sexo masculino; outras seis escaparam à mesma sorte. Já a Associação de Apoio à Vítima (APAV) fez saber no final do ano passado que recebeu 7265 queixas de violência doméstica ao longo de 2013; nesse período, a Direcção-Geral de Política de Justiça reporta que, dos inquéritos que o Ministério Público levou a cabo, apenas 3541 casos de agressão doméstica a mulheres foram julgados. Em 2014, apenas 96 homens foram presos por esse crime. Os números não sofreram grandes alterações ao longo dos últimos anos — o que significa que pouco mais de 1% das mulheres que recorrem à APAV vêem os seus agressores condenados. 7265 queixas de violência doméstica chegaram à APAV em 2013. Em 2014, 96 homens foram presos por esse crimePor duas vezes, lê-se na sentença de 2013, “Palito” encontrou a mulher nos refúgios que a APAV lhe providenciou quando saiu de casa. Estas casas são secretas — como foi possível a “Palito” descobrir as moradas?“Isso basta alguém vê-la e dizer [a ‘Palito’]”, responde um GNR da zona. Mas porque é que alguém iria contar a um homem que agredia a mulher onde esta se escondera?Há outras peças importantes para montar o puzzle. Ao atacar a filha, a ex-mulher e a tia e a mãe desta, “Palito” qualifica-se como um “familicida”. Por norma, e como explica Fernando Almeida, psiquiatra especializado em crimes de sangue, “o familicida entrega-se às autoridades, deixa-se apanhar ou suicida-se”. “Palito” não só não se entregou, como o número de dias que andou a monte o torna uma excepção face ao habitual neste tipo de crimes. O mesmo GNR disse à Revista 2 ser impossível um homem andar este tempo fugido sem ajuda dos vizinhos: “Alguma coisa ele tinha de comer. ” Porque é que alguém iria ajudar um duplo homicida?Fernando Almeida tem uma explicação: “Algumas das pessoas que o alimentaram durante um mês pensam: ‘Coitadinho, ele tanto trabalhou para alimentar a família e ela agora vai abandoná-lo? Ela jurou que era para a vida toda. E ele nem a tratava assim tão mal, só enxotava umas moscas de vez em quando. Porque é que aquelas mulheres [a tia e a mãe de Angelina, que ‘Palito’ acreditava serem as responsáveis pela separação] se foram intrometer?’”Os dias de apoio a “Palito” espelham a que ponto a mentalidade que subjaz à violência doméstica está entranhada: a ideia de que o homem tem direito a abusar fisicamente da mulher e — aspecto fundamental para que o abuso se perpetue — que sobre o assunto deve fazer-se silêncio. A conclusão é que, “aquelas pessoas, ao ajudarem-no durante um mês, constituem uma espécie de essência do machismo dominante”, diz o psiquiatra. O silêncio e cumplicidade das pessoas de Trevões é a história de futuras Marias Angelinas. Muitas podem vir a ter ainda menos sorte do que ela. Ao redor destas terras, a serra ergue-se monumental, montes sobrepondo-se como ondas encarpadas em dia de maré zangada, determinando a vidas dos seus habitantes ao mais ínfimo pormenor, como a luz que recebem: Trevões, por exemplo, é mais sombria que a entrada de Valongo dos Azeites — enquanto esta começa numa zona aberta de moradias expostas ao sol, Trevões parece enterrada num socalco da serra, um apêndice de pedra onde a luz não entra. As escassas povoações existem recolhidas em si mesmas, pequenos pontos compactos cor de xisto no imenso verde. Há apenas dois autocarros diários a ligar Valongo e Trevões a São João da Pesqueira: é fácil sentir solidão aqui. Angelina, nascida a 24 de Novembro de 1961, era filha única de Lina (morta no ataque de “Palito”) e Acácio Félix (que morreu em Maio de 1996). Segundo o Registo Civil do Tribunal de São João da Pesqueira, Acácio tinha pelo menos três irmãs: Maria Ermelinda, Maria Judite e Elisa, que foi também assassinada por “Palito” e deixou marido e filhos em França. A população falou-nos em mais duas irmãs: Delfina, que morreu e tem filhos em Lisboa; e Celestina, que morreu deixando os filhos António Félix, Ana Maria e Antero. O Registo Civil não encontrou dados sobre Celestina, mas encontrámos Antero (em Valongo) e Ana Maria e António (em Trevões). Esta disparidade não é caso único na família: no acórdão do tribunal, lê-se que Manuel Baltazar “é o mais velho de nove irmãos”; contudo, no Registo Civil, apenas se encontram sete (incluindo o próprio Manuel Baltazar). Hoje, Carlos, dono do café Século XXI em Valongo, diz que Maria Angelina se “descuidou” em relação à aparência, o que considera “normal, com tudo o que passou”. Mas à época do casamento, Maria Angelina, 18 anos, era “uma estampa”. Sendo casado com uma prima de Maria Angelina, Carlos tem opinião formada sobre a forma como “Palito” a via: “Antes dizia a toda a gente que ela era um espectáculo e que nunca teria hipótese com ela. Quando casou, foi como se tivesse ficado em dívida para com ela. Não acreditava que a tivesse conseguido. Achava-se abaixo dela. ” Apesar dos laços familiares, Carlos teve pouco contacto com “Palito” e Angelina. “Eu vendo calçado — neste tempo todo, ele nunca me comprou sequer uns chinelos. ”É verdade que vende calçado ao balcão. Não fora isso e o café Século XXI podia ser um café de qualquer parte do país: chão em mosaico, mostruário de vidro com tampo em folha de mármore, Chupa-Chups, pastilhas Gorila. Carlos, baixote, ligeiramente careca, tira um par de sapatos de vela debaixo do balcão, enquanto serve vinho do garrafão. Quando a polícia entregou “Palito” ao tribunal, a população brindou-o com aplausos, o que chocou o país — porque raio estaria um homicida a ser aplaudido? O dono de um café em São João da Pesqueira explica os aplausos pela antipatia que o povo tem para com a polícia: “A GNR está sempre à caça da multa. Prantam-se [forma popular de dizer que ficam especados] à espera de quem sai dos cafés e vai guiar. O que irrita o povo, que quer beber em paz. ” Ouvimos a mesma justificação noutros sítios — mas não encontrámos quem admitisse ter aplaudido. Tal como Carlos, Ana Maria tem escassa memória das três últimas décadas de vida de Angelina. A prima diz que “em miúdas [eram] como irmãs”. Depois, “durante mais de 20 anos, nunca mais houve contacto com ela”. Quando deixaram de se ver? “Quando ela se casou. ”Cada um trata do seu lar, ninguém põe a colher no prato do outro, mas bichana-se acerca de todos. ”Da casa de Ana Maria à de “Palito” demora-se cinco minutos a pé. Da de António Félix, seis. No entanto, a mulher de António declara nunca ter tido qualquer contacto com o casal. Nem no Natal?, perguntamos. “A gente aqui passa a ceia com a família de casa. ”Este é um mote constante: cada um vive na sua casa, com a sua família e só se mete no que lhe diz respeito. Pese embora umas semanas na zona nos demonstrem que os homens comentam as vidas dos outros nos cafés, e as mulheres, nos intervalos da lida da casa ou da faina, segredam entre si. Diz Albino [nome fictício], de Valongo: “Cada um trata do seu lar, ninguém põe a colher no prato do outro, mas bichana-se acerca de todos. ”Sabe-se pouco da vida de “Palito” até ao acidente que supostamente o mudou para sempre: a morte dos pais, afogados no Douro após um aluimento de terras derrubar a viatura em que seguiam, a 14 de Fevereiro de 1979. Descobrir o que aconteceu nesse dia depende de quem se ouve: num relato, “Palito” estava na viatura e sobrevivera, visto saber nadar; noutro, uma pedra gigante teria caído em cima do pai de “Palito”, esmagando-lhe o peito. Há narrativas que incluem várias pedras, ocupantes do automóvel que variam, diferentes mortos. Certo é que, após o aluimento, o carro se enfiou num braço do Douro. Segundo um primo de “Palito”, que se recorda bem do acidente, o casal Baltazar fora a uma consulta médica na Régua acompanhado pelo casal Laranjinha, respectiva filha, e um moço chamado João Madureira. No regresso, várias pedras aluíram, tendo uma esmagado o peito de Laranjinha, que ia ao volante — e não o pai de “Palito”. “Palito”, note-se, só o é em Valongo — em Trevões chamam-lhe “Sem-Tripas”. O único que se salvou foi Madureira — o que sabia nadar. Qualquer história em Trevões tem tantas versões como as pessoas que a contam. E é difícil acreditar em tudo o que se ouve: muitas vezes ouvimos “nem os conhecia” dito por vizinhos que viveram 60 anos a dois metros de distância. Há o caso de um homem que no decorrer da nossa reportagem certo dia nos afiançou que não sabia de nada porque fora para França antes do assassinato e voltou já “Palito” estava preso; dias depois, lá lhe escapou: “Até disse ao rapaz para se entregar. ” Inquirido sobre a discrepância, respondeu com “isso agora”, e fechou-se em casa. Os pais de “Palito”, Baltazar e Celiza, eram “gente muito boa”, “com posses” e “às vezes ajudavam quem não tinha que comer”, “dando couvinha ou feijão” — é este o retrato que muita gente em Trevões faz. Depois há Hélder [nome fictício], que também ali mora e se lembra de que “o pai [de ‘Palito’] era bom tanoeiro e tinha um carro de bois”. “Chamavam-lhe ‘Sem-Tripas’” devido à extrema magreza, que o filho herdou. Segundo Hélder, o casal Baltazar “ficava a dever a este e àquele”. “O meu pai era sapateiro e o pai dele [Baltazar] mandou pôr meias solas nuns sapatos. Quando estavam arranjados apareceu lá em casa, calçou as botas e disse: ‘Só posso pagar no fim-de-semana. Posso levá-los já?’ O meu pai fê-lo descalçar as botas. Você veja como era esta gente. ”A casa dos pais de “Palito”, a que os locais chamam “Casa Velha”, dá a entender — pelo tamanho — que o casal não viveria mal. Para lá chegar, é preciso tomar a ondulante N229, inflectir para leste, EM504 adentro, entrar numa estrada ainda mais estreita que as demais e por fim dar com três caixotes do lixo, que dividem a terra entre zona alta (mais moderna) e zona baixa (a mais rude): para a esquerda há um banco (com caixa multibanco, a única até São João da Pesqueira) e, ao fundo da rua, as casas dos primos de Maria Angelina. Por ali também existe um lar de idosos e a escola primária onde “Palito” e os irmãos estudaram — é a única da zona e os miúdos de Valongo ou Penedono iam aprender lá. Maria Angelina, dizem-nos, fez a quarta classe, numa altura em que só as meninas com posses estudavam. Na realidade, confirmaram-nos que Angelina completou o equivalente ao actual 9. º ano de escolaridade. Trevões é vila, Valongo é aldeia. O Paço Episcopal, um par de casas senhoriais, a Igreja Matriz e uma série de capelas indicam que a vila teve uma grandeza que hoje não possui. Disseram que [‘Palito’] esteve na Líbia, numa fábrica de manteigas, nos anos 70. Havia lá fábricas de manteiga na Líbia nessa altura!”À direita dos caixotes do lixo há um caminho estreito, em empedrado, de margens ladeadas por muros de xisto, onde é impossível passarem dois carros: é a zona baixa, o Douro profundo e esquecido pelo tempo — e é a rua de Manuel “Palito”, cuja casa é a segunda quando a estrada começa a subir. A primeira é do seu irmão António. Por trás de casa de “Palito” ergue-se a Casa Velha e depois estende-se o cerejal por onde terá fugido após o duplo homicídio. Acompanhando o muro de granito e xisto que demarca o cerejal, dá-se a volta a meia terra, retornando-se aos caixotes do lixo — no meio do cerejal há um pequeno lago, que tornou impossível seguir o rasto de “Palito” quando a polícia ali entrou com os cães. Este terreno, que ocupa meia Trevões, divide-se em vários, que pertencem a “Palito” e a uma senhora que não vive ali. Há um caseiro, mas a população ou recusa dizer o seu nome ou dá nomes díspares. É difícil dizer em que anos estiveram emigrados quando os próprios familiares transmitem informações erróneas: “Escreveram-se tantas mentiras”, lamentou-se um dia a mulher de António. “Disseram que [‘Palito’] esteve na Líbia, numa fábrica de manteigas, nos anos 70. Havia lá fábricas de manteiga na Líbia nessa altura!” De facto, “Palito” não esteve numa fábrica de manteigas na Líbia; esteve lá na construção civil, bem como na Suíça e em França, segundo dois homens que estiveram com “Palito” na Líbia. Graças à emigração, conta Albano [nome fictício], amigo caçador, “Palito” começou a construir casa e comprou um Toyota azul, do qual tinha muito orgulho. “Isto em 1976, uns anos antes de se casar com Maria Angelina. ”Hélder também afiança que Maria Angelina “agradou-se do carro”, ideia que parece ser unânime na faixa que vai da saída de Trevões até Valongo: “Na altura havia cá poucas viaturas”, lembra António Canela, amigo de “Palito”. Uma familiar de um homem que, segundo vários membros de Valongo e como veremos mais à frente, terá sido assassinado por António Canela, recorda que o carro agradou até à mãe de Angelina; de acordo com este testemunho, ela gabar-se-ia à população de ter encontrado “um bom pretendente para a filha”, a quem obrigara a terminar um namoro com um homem com menos posses (e cujo nome não foi mencionado). Esta familiar considera que Maria Lina sempre foi “má, ruim, afeiçoada ao dinheiro” e que “atiçava” “Palito”, que tratava dos terrenos da família da mulher, “contra o povo [de Valongo]”. De acordo com outros moradores, “Palito” teria o hábito de disparar na direcção de quem atravessasse os terrenos dos seus sogros — não para matar, mas para assustar. A dada altura, diz-nos: “As outras não, mas a Maria Lina mereceu morrer. ”Houve pelo menos um texto na imprensa em que se relatou que a compra do Toyota foi posterior ao casamento. Esta disparidade nos relatos está sempre presente em Trevões e Valongo. Não só a disparidade mas também o secretismo: Canela é apontado pela população de Valongo (vive junto à moradia de Elisa) como a pessoa que terá telefonado a “Palito”, de um telemóvel descartável, a avisar que as mulheres estavam no quintal de Elisa. As teorias de conspiração são discutidas pelos homens; as mulheres não se metem nestes assuntos. O GNR citado acima admitiu ser “possível” a existência da chamada para “Palito”, garantindo não ter sido identificado nem o autor da chamada nem o dono do telemóvel. A acusação a Canela foi-nos contada pela primeira vez num café em Valongo. Aproveitando que o grosso dos homens discutia que arma “Palito” usou, o sr. Sérgio abeirou-se e narrou a história ao ouvido, afastando-se de imediato, de modo a não passar a imagem de delator. A cena repetiu-se várias vezes, com outros homens e versões ligeiramente diferentes. Em todas, o narrador aproveitou um momento em que os amigos estavam distraídos, contou e depois voltou para o grupo. No primeiro dia em São João da Pesqueira, um GNR afirmou: durante anos, “nunca ouvimos a versão dela, só conhecíamos a dele”, a de que Maria Angelina tinha uma depressão. Talvez seja por tudo ser contado em surdina e nada ser muito certo que foi possível a “Palito” criar na população essa imagem de uma Maria Angelina deprimida — em vez de uma Maria Angelina abusada. O funcionário de uma funerária local, que há 13 anos fez um funeral de um tio de Angelina, nunca ouviu de “Palito” mais do que um “ando aqui aflito porque a minha mulher se quer divorciar”, frase que muitos recordam. Desde a separação que o único assunto de “Palito” era a mulher. “Era uma obsessão que ele lá tinha”, diz o sr Carlos. “Na caça”, recorda António [nome fictício], “cada vez que parávamos para comer, lá vinha ele com a história de se vingar das mulheres que ajudaram à separação”. António descreve “Palito” como “um tipo exemplar na caça — mas refilão”. Perito em javalis e perdizes, era o que “mais se enfiava mato adentro”, nunca hesitando em “rastejar pelos trilhos deixados pelos javalis”, sabendo “como não os alertar. Conhece estas serras como a palma da mão” e falava tanto em matar que a dada altura começaram a gozar com ele: “Dizes que matas mas não matas nada, pá. ”Eis um homem não muito bonito, não muito forte, com menos dinheiro que a mulher e que se vê divorciado. Os problemas já vinham de trás. Albano diz que mesmo “no tempo em que o Acácio ainda estava vivo já havia discussões verbais graves entre ele e “Palito”. Depois da morte do pai, a Lina e o “Palito” costumavam discutir à frente de toda a gente”. Conta isto em voz baixa, porque no restaurante está uma familiar de “Palito”. De acordo com Albano, a família de Angelina “nunca [acatou] bem a junção”, em parte porque “tinha mais valores patrimoniais que a do ‘Palito’”. A ideia de que o casal não vinha do mesmo meio é confirmada por outros: “Os pais dela tinham mais dinheiro que os do ‘Palito’. Ela é herdeira de uma vinha com bastante benefício”, lembra Hélder. No acórdão do tribunal, descreve-se “Palito” como sendo “filho de um casal de modesta condição socioeconómica”. O nível de vida de “Palito” melhorou depois de ter estado emigrado. Em Trevões, e quando confrontadas com a hipótese de Acácio e Manuel Baltazar não se darem, as pessoas respondem “isso era lá com eles”. Em Valongo, as zangas são um dado adquirido. É recorrente ouvir-se dizer que Maria Angelina “teve pena” de “Palito”, após este perder os pais, o que a levou a casar. Sendo alguns dos irmãos de “Palito” muito novos aquando do acidente, Angelina terá cuidado deles como se fossem seus filhos. Em Valongo e no Penedono, há quem diga que “Palito” tratou Angelina mal desde o primeiro dia. Em Trevões, ninguém admite tal coisa. Se ao início o casal se dedicava à apanha da azeitona nos terrenos dos pais dela, de “Palito” e de terceiros, entre outras actividades agrícolas, com a morte de Acácio Félix, o casal passou a ser dono de um conjunto de terrenos que permitiam uma boa vida. Na maior parte dos relatos, por esta altura “Palito” já não emigrava — fixou-se na terra quando acabou a casa e não voltou a sair do país após o nascimento do segundo filho, Rui. Contudo, uma fonte próxima de Maria Angelina assegurou-nos que, já com os filhos nascidos, “Palito” ainda emigrava. Isto dá o retrato de um homem trabalhador, empenhado em criar um lar para a mulher e os filhos. Umas semanas em Trevões revelam outro homem — um que a cada regresso passava mais tempo na caça que em casa e estourava dinheiro pagando almoçaradas aos amigos caçadores, enquanto Angelina jornava nos “prédios” (terrenos) do casal e de outras pessoas. É comum, aqui, a violência doméstica? (A pergunta é injusta: a violência doméstica é comum em todo o país. ) O GNR tira o chapéu, coça a cabeça rapada a pente 3 ou 4, e diz: “Isso das mulheres. . . sabe como é. Terra pequena, não há nada para fazer, chega-se a casa todos os dias. . . Elas não ficam mais bonitas com o tempo. Bebe-se uma pinga e quando se dá por ela já só se fala à chapada. É assim. ”É assim, mas ouvindo os moradores de Trevões não era assim com “Palito”, que não bebia. Basta um pulinho ao café Século XXI, ou ao Buraco, em Trevões, onde há uns anos a GNR apreendeu 17 armas ilegais numa só rusga, para encontrar dezenas de homens que concluem que “o crime foi um bocado culpa delas, que não tinham nada que se meter”. “Intrometer-se” era dizerem a Angelina que não tinha de se sujeitar à violência. Ainda há coisa de semanas, uma prima de Maria Angelina repetiu a mesma ideia. Não raro as pessoas têm um rebate de consciência e refazem a afirmação: “Mas o que ele fez foi errado” ou “perdeu a razão quando matou”. Ninguém afirma que “Palito” perdeu a razão quando começou a bater na mulher. Já viúva, mas com a filha ainda casada, Maria Lina deu ordem para se fazer uma vinha nos seus terrenos; na prática arrendava (por 10 ou 20 anos, há informações em ambos os sentidos) os terrenos a “Palito”, que estava incumbido de explorar a vinha e recebia os dinheiros. Esta terá sido a altura do casamento em que o casal viveu melhor. Mas, quando Maria Angelina saiu de casa, “Palito” proibiu-a de entrar nos “prédios” de Maria Lina, o que legalmente podia fazer: “Estava a tentar matá-la à fome”, conta Albano. Já separados, “Palito” “surpreendia-a na jorna e ameaçava-a e a quem estivesse com ela”. Esta agressividade foi aumentando até ao ponto de “Palito” bradar ter uma bala para quem se aproximasse da ex-mulher. É sabido que até à ordem do tribunal para manter os 400 metros de distância, “Palito” passava diariamente à porta de casa dela; em Valongo, diz-se que pagou a um reformado local para vigiar Maria Angelina. O reformado nega qualquer contacto com “Palito”. A separação de Maria Angelina coincide, segundo Manuel [nome fictício], vizinho e amigo de infância de Angelina, com “a altura em que a Elisa obteve a reforma e começou a passar mais tempo em Valongo que em França”. Na realidade, Angelina só saiu de casa quando os filhos — que não foram para a universidade mas acabaram o 12. º ano — já haviam saído. Para o psiquiatra Fernando Almeida, na cabeça de “Palito”, “Angelina pertencia-lhe; podia ter de lhe arrear de vez em quando, mas isso faz parte; ter saído de casa não era uma manifestação da vontade dela, antes fraqueza face às manipulações da tia e da mãe que por isso, pensaria ele, mereceriam ser punidas”. “Palito” estraçalhou o corpo de Elisa ao alvejá-la directamente no peito. A primeira pessoa a relatar publicamente actos de violência de “Palito” foi Filomena, mulher de Mário: “Foi no cemitério, no dia dos Fiéis [do ano passado]”, contou. “Atirou a Sónia [a filha] ao chão, tentou bater-lhe, meti-me no meio e ele derrubou-me e deu-me pontapés. ” De volta a Trevões, “Palito” apertou-lhe o pescoço. Houve uma altura em que o único dado acerca de violência doméstica que se conhecia no caso era que Maria Angelina tinha pedido ajuda à APAV, sendo colocada em casas-abrigo, primeiro em Vila Real e depois, quando “Palito” a descobriu, na Régua, onde voltou a ser descoberta pelo ex-marido. No acórdão do tribunal que puniu “Palito”, lia-se que ele dava chapadas na mulher e recorria a violência para a obrigar a dormir na cama do casal. O motivo do isolamento de Maria Angelina seria a violência doméstica?, perguntei a uma familiar muito próxima de Maria Angelina, em casa a passar a ferro e a dobrar a roupa. “Não”, diz com as mãos a tremer e lágrimas prestes a cair. “Nunca lhe bateu. ” Nunca lhe bateu?, insisti. Ela pára, baixa a cabeça e diz: “Ela não se queixava. ” E o facto de não se queixar indica que não lhe batia? Ela pára de novo, antes de se recompor e voltar a dobrar a roupa. E é ela quem diz: “Os homens, aqui, são do século XVII. Há muita coisa escondida. As telhas escondem muita coisa. ”Insisto: ele começou a bater-lhe quando? Ela começa a chorar — foi a única pessoa que vi chorar nas semanas que passei em São João da Pesqueira. Foi cedo?, pergunto. E aqui sim, ela chora mesmo. E baixa a cabeça e pede-me que saia antes que o marido volte. Última pergunta: porque é que as mulheres dali que apanham não se divorciam? Ela olha-me atónita. “E fazer o quê? Ir para onde? Ao menos aqui sabemos com o que contar. . . O senhor sabe o que se passou, não precisa de mim, deixe-me, eu só quero esquecer. ” Senta-se na cama e chora. “Um rapaz tinha uma namorada, estavam noivos e a rapariga rompeu o noivado. A mãe do rapaz não foi de modas: esperou que os pais da moça saíssem de casa, bateu à porta e quando a miúda abriu: tau, tau, tau, cinco chumbadas nos cornos. ” A história é verificada por vários habitantes das duas localidades. Porque é que ela não quis casar?, pergunto. “Porque não queria levar na tromba. ”Os homens, aqui, são do século XVII. Há muita coisa escondida. As telhas escondem muita coisa. ”A maior parte das mulheres por estas bandas é de idade. “Quando [os homens locais, mesmo os casados] querem acção vão ao alterne” nas terras circundantes, relata um caçador, que não quis ser identificado. Um dia fomos os dois pela serra verificar os casebres onde “Palito” podia ter-se escondido. No trajecto demos com algumas dessas casas, como o 125 Azul, que recebe “brasileiras e tailandesas — as tailandesas são muito bonitas” e “são todas ilegais”, informa. Resolvi perguntar a este caçador — cuja mulher estava emigrada como ama para dar mais algum à escassa reforma — porque perdia o seu tempo a ser meu guia. “Solidão. Ao menos assim, estou entretido. ”Valério diz que em Valongo não há farmácias, o que tem implicações nas mais simples situações quotidianas. “Se uma miúda quiser a pílula, tem de ir a São João da Pesqueira”, conta, antes de elucidar acerca da moral ainda vigente na zona. “Pela vontade dos pais, não é possível uma miúda de 16 anos ter sexo antes do casamento. Elas aproveitam as jornas ou fazerem um recado. Não há precaução, pelo que o sexo é uma roleta: pedem aos homens para se virem fora ou rezam para não engravidarem. Se engravidarem, é simples: levam na tromba e o pai vai convidar o emprenhador a casar. ” Faz uma pausa e entrega a punchline com um sorriso entre o amargo e o resignado: “O convite é feito com uma chumbeira. ”Estávamos sentados na mesa de um café em Valongo: entra-se, há um balcão em U e à direita uma enorme sala de cujo tecto pende uma bola de espelhos. Fazem bailes aqui?, pergunto. “Não. O Buraco, em Trevões, tem uma salinha onde puseram uma bola de espelhos. Esta surgiu por imitação. Foi ‘se tu tens, eu também tenho de ter’. Há uma grande rivalidade entre as terras”, responde Valério. Em Valongo, certa tarde, estavam algumas mulheres a conversar quando uma diz: “Ao menos isto deu para falarem [de Valongo]. ”Nos 34 dias em que esteve a monte, “Palito” foi avistado quatro vezes. A primeira foi no dia imediatamente a seguir ao crime, quando apareceu a José Costa, na quinta do pastor, no Penedono. Costa, amigo de “Palito”, recusou-se a falar, visto os jornalistas serem “todos uns vigaristas”. Um jornalista de televisão disse-lhe que “telefonava a avisar quando saía a peça e nunca mais telefonou”. Um fotojornalista fotografou-o num ângulo que ele não apreciou. Calçado com galochas, Costa move-se com facilidade por entre a lama. A sua quinta tem um grande salão repleto de bandeiras do Benfica — o trabalho, a bola, as cartas e o dominó que joga à noite num café no Penedono são os seus únicos assuntos. “O que é que eu havia de fazer?”, responde quando perguntamos porque ajudou “Palito”. “As amizades aqui são complexas”, explica um amigo que conheceu ambos na caça. “Os caçadores não querem problemas. Há uma época legal para caçar, armas designadas, mas eles caçam fora de época com armas ilegais e têm medo de ser investigados. Por isso ajudam-se. ”Além disso, faz ver, “ele tem razão: o que é que você faria se lhe aparecesse um homem que tinha matado duas pessoas no dia anterior? Aqui as amizades são de caça, de cartas, do cultivo. Mas tem-se sempre uma desconfiança”. António Canela é acusado (por muita gente de ambas as terras) de ter matado o filho de um vizinho que teria, alegadamente, molestado crianças. Certa noite, Canela e um comparsa perseguiram o filho do suposto pedófilo e este fugiu para casa — mas os perseguidores haviam estragado as fechaduras e por mais que o rapaz chamasse pelo pai, este, preso por dentro, não o pôde acudir. Foi morto à paulada à entrada de casa, em Valongo. Uma sobrinha do alegado pedófilo confirma que Canela e um cúmplice terão matado o seu primo. Na sua versão, contudo, alegado pedófilo e filho viviam num dos muitos barracos hoje vagos na serra (e que “Palito” usou para se abrigar, durante a fuga); o pai estaria dentro do barraco, que foi fechado por fora. Esta versão parece mais coerente do que outras, cujo grau de elaboração deverá ser fruto do tempo. Noutra história, e segundo rezam várias almas, os dois irmãos Puges raptaram um homem endinheirado, a quem extorquiram as posses e ataram a um cavalo; açoitaram o animal, que ao fugir desmembrou a vítima. Os dois casos terão ocorrrido há mais de 30 ou 40 anos e fornecem um retrato dos amigos chegados de “Palito”. A maior parte dos habitantes de Valongo acusa os Puges de ajudarem “Palito”, enquanto este andou a monte. Em Trevões, ninguém sabe nada. O terreno dos Puges, que inclui pastagens para os animais, é próximo do cerejal. Era nas manjedouras dos seus animais que um dos Puges deixava diaramente comida para “Palito” — isto segundo os valonguenses. Tal como a própria Maria Angelina, Filomena está assustada com a possibilidade de “Palito” vir a ser libertado. “Dizem que está a preparar-se para [se fazer passar por] doido” durante o julgamento. Dizem que António não trocava uma palavra com Manuel e que Mário ainda tentou manter relações com o irmão — até ao incidente com a mulher. As partilhas não terão deixado os irmãos em pé de igualdade. Mário, além de lidar com os seus pequenos terrenos, tem de trabalhar à jorna nos terrenos dos outros, no cultivo dos produtos locais mais procurados — a vinha, os olivais, os castanhais, a amêndoa e a maçã. A primeira vez que o vimos, em Maio, Mário vinha a subir um carreiro, acartando um saco às costas, quando nos viu à conversa com Filomena. Gritou para a mulher: “Tu, vai para casa que já falaste demais. ” Depois, ameaçou-nos. Por fim, ofereceu cerveja e vinho. É um homem baixo e encorpado, de face rósea, com um bigode alourado. Perdeu recentemente um dedo na lavoura e repete várias vezes que “ainda [está] à espera do seguro”, mostrando o dedo em falta: fala mais deste que do irmão. Está suado do trabalho, com galochas e roupa de trabalho suja, o cabelo empastado do esforço físico e recusa chamar-se Mário, ser irmão de “Palito”, exigindo ser tratado por João — só respondeu quando o tratámos assim. Durante alguns minutos pode ter mentido sobre tudo: “Não sei ler, mas sei estreler”, diz. (Um antigo colega contesta-o: “Estudei com ele e ele fez pelo menos a 4. ª classe. Todos os irmãos fizeram. O ‘Palito’ até deve ter feito mais. ”)O que é que você faria se lhe aparecesse um homem que tinha matado duas pessoas no dia anterior? Aqui as amizades são de caça, de cartas, do cultivo. Mas tem-se sempre uma desconfiança”. “Eu sou um homem que vive com 450 euros e é a minha mulher que os ganha [no lar de idosos de Trevões]. Sem ela, como é que eu vivia?”, diz Mário. Nas semanas em que ali estive, foi a única vez que ouvi um homem elogiar a mulher. “Eu trago dinheiro, ele traz comida, é assim que fazemos vida”, corrobora Filomena, ainda especada à porta de casa. Comem “batatas e azeitonas todos os dias”, que é o que Mário cultiva. “Tirando beber umas minis, que isso bebo, a minha vida é só trabalho”, diz. Mais calmo e já de cerveja na mão explica que “se a [sua] mulher morresse arranjava outra, mas o [seu] irmão não era assim”. Joaquim, que mora a meio caminho entre os dois irmãos, conta que “Palito” repetia muito uma frase: “Aqui entrou uma mulher; a sair alguma, só morta. ” O sr Joaquim só tem uma coisa a dizer sobre o caso: “Tenho ali uma cassete com um filme de Entre-Os-Rios, também deviam fazer um filme disto. ” Ri-se e oferece tinto e chouriço. Segundo Carlos, uma pipa de vinho produz 500 litros e “dá benefício de 2 mil euros”. “Benefício” é o termo técnico para o que um produtor recebe pelo vinho que vende como vinho do Porto; Mário tem uma microprodução de vinho na garagem, que inclui lagar e uma pipa semi-industrial. Faz “250 litros por ano”, isto é, meia pipa: mil euros ao ano. Tem um jipe Nissan que foi topo de gama há anos, remanescente dos dinheiros da emigração na construção civil; mas reclama com a qualidade do sinal dos quatro canais da TDT. É este o paradoxo em que vivem os habitantes de Trevões: uma côdea de dinheiro que restou da emigração, a casa construída a pulso e batatas com batatas para o jantar. Mário, que tem dois filhos emigrados e “um já com contrato!” — dado que repete muito —, aponta para um altar a Nossa Senhora de Fátima erguido numa das paredes de sua casa. “Sou um homem temente a Deus. ” “Fui eu que fiz [o altar]. ” Já quase sem força mas não sem orgulho: “À noite, está sempre ligada. ” E de facto à noite lá está a brilhar no escuro. A última coisa que ouvi deste homem, nessa primeira conversa em que me pareceu um ser ferido, foi: “Se eu pudesse contava tudo, amigo. Mas é família. ” Fiquei na dúvida se por família Mário estava a referir-se só a “Palito” ou a incluir Maria Angelina. Segundo fontes familiares, Angelina não era a única a sofrer violência doméstica. Já separada, Angelina quis ir uns tempos para França; “Palito” ameaçou o transportador e chamou-lhe corno. Os seus actos públicos de agressão aumentaram com a separação e chegou também a apontar uma arma ao filho e agredir a filha. O que espoleta a espiral de violência, diz-nos Fernando Almeida, “é a separação do objecto amado — e no caso admirado”: Angelina sair de casa. “Pelos testemunhos, ela estava uns furos acima do que ele pensaria obter. Torna-se o objecto central da sua razão de vida. A partir daí a existência dele só tem sentido com ela. Ou é com ela ou não é com ninguém. ”O homicídio terá então sido o culminar de um processo de desintegração que se iniciou quando a mulher saiu de casa e que levou o filho Rui, que na altura da separação ficou com o pai, a cortar relações com este. A primeira vez que bati à porta de casa de uma das amigas de Maria Angelina que testemunharam a seu favor no caso contra “Palito”, ela escusou-se a comentar, afirmando ter de “fazer o comer” para o marido. Pela janela, via-se o marido já a jantar — e também se o ouvia a mandá-la para dentro. A segunda amiga disse exactamente o mesmo, mas insisti: o seu marido já está a comer. A violência começou cedo? Ela anuiu com a cabeça. Era muita? Anuiu com a cabeça. Ela evitava contar? Anuiu com a cabeça. Porque é que não queria contar? “Tenho de fazer o jantar para o meu marido. ” E a porta fecha-se. Meses depois do atentado — numa altura em que Angelina, de canadianas, voltara a casa, sendo visitada com regularidade pelos filhos (Sónia andava com uma espécie de corpete a proteger as costas) — um morador em Valongo contou-me: “A Elisa dizia que dava a vida pela sobrinha e deu. Agora você anda aqui a fazer perguntas às mulheres sobre violência doméstica quando a maior parte delas sofre o mesmo. E qual é a lição que este caso lhes dá? Que, se se divorciarem, acabam assim. ”Há dias, voltámos a Trevões e Valongo. Fonte próxima de Angelina disse-nos que “Palito” começou a bater logo ao início do casamento; e que Maria Angelina tentou esconder o facto por vergonha e uma estranha culpa. Mas também porque não valia de nada falar: “As outras mulheres sofrem o mesmo. E em muitos casos os pais [das vítimas] ou não acreditam ou acham que têm de se aguentar. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A própria Maria Angelina diz-nos apenas: “Não sei ainda o que vai ser a minha vida; mas vou lutar. ”Pelos testemunhos, ela estava uns furos acima do que ele pensaria obter. Torna-se o objecto central da sua razão de vida. A existência dele só tem sentido com ela. Ou é com ela ou não é com ninguém. ”
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