Cancro, o imperador de todos os males
A cientista Maria de Sousa e o patologista Manuel Sobrinho Simões fazem perguntas, questionam o modo como se faz ciência, dialogam sobre uma doença que é parte de nós, nos invade e muitas vezes nos mata. É uma entrevista dura. (...)

Cancro, o imperador de todos os males
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A cientista Maria de Sousa e o patologista Manuel Sobrinho Simões fazem perguntas, questionam o modo como se faz ciência, dialogam sobre uma doença que é parte de nós, nos invade e muitas vezes nos mata. É uma entrevista dura.
TEXTO: Cancro ou cancros? Em que estádio? Em que hospedeiro? Submetido a que agressão ambiental? Um cancro é um que cresce dentro de nós. É o “gémeo univitelino que não tivemos ao nascer. [. . . ] Tão bem sucedido aliás que, na sede de sobreviver e crescer, acaba frequentemente por nos (e se) matar”, explica Manuel Sobrinho Simões no livro. É o imperador de todos os males, assim designado por Siddhartha Mukherjee, no livro homónimo de 2010. É uma representação da morte, palavra última que nos detém (para recorrer a um poema de Sófocles traduzido por David Mourão Ferreira que Maria de Sousa traz para o livro: “Inúmeras são do mundo as maravilhas, mas nenhuma que ao homem se compare. É o ser dos recursos infindáveis [. . . ] Aquilo que o detém? Somente a morte”). Os cancros que mais matam em Portugal são os do cólon e recto, pulmão e brônquios, e estômago, em ambos os sexos; os da mama e próstata nas mulheres e nos homens. Os números de 2010 segundo o Instituto Nacional de Estatística: morreram 24. 917 pessoas devido a doenças cancerosas. O cancro mata. Não mata sempre. Prevê-se que num futuro próximo (uma ou duas dúzias de anos) mais de metade da população vá ter cancro. É bom que nos habituemos a isso. Esta entrevista aconteceu na Ordem dos Médicos, no Porto. Não foi fácil para nenhum dos intervenientes. Porquê? Porque todos conhecemos pessoas que morreram por causa da doença, que têm a doença, porque nós podemos ter a doença. Muda tudo. Maria de Sousa — Não gosto do caranguejo. MdS — Tentei, para esta entrevista, que é muito difícil, por respeito pelas pessoas que têm cancro — e toda a gente vai ter, como diz o New York Times —, colocar o cancro numa perspectiva histórica. Tudo começa com o aparecimento de um tumor, uma massa. Com o progresso da ciência médica, a primeira coisa que acontece é a cirurgia — tira-se. Depois, percebe-se que, mesmo tirando, aquilo nunca mais acaba — volta. Depois, segue-se a irradiação. Depois, aparece o conceito da imunologia, a importância de uma surveillance imunológica. Depois, desenvolve-se a química, a quimioterapia. Hoje, se uma pessoa tiver um tumor, ainda passa por estes passos históricos. MdS — Há um progresso parcelar imenso, que permite a melhoria do prognóstico e da prevenção. Mas globalmente isto não é assim. Globalmente, temos de dizer a um amigo: “Não há muito a fazer. ” Como é que é possível o progresso que se fez na sida, em 30 anos? O que é que é diferente? No caso do cancro, andamos há 200 anos a fazer progressos, mas não é comparável. MSS — Controlável. MdS — Não é estigma, é a realidade. MSS — Estou de acordo com a Maria. Há um elemento numa entrevista sobre cancro que é terrível. Temos pessoas de quem somos muito amigos que morreram, que têm agora e que podem vir a ter cancro. E nós próprios. Isso pesa sobre…MdS — A própria entrevista. Imenso. MSS — Percebo que não goste do caranguejo porque é datado. Mas há uma coisa no caranguejo que continua a ser verdade: o cancro é um ser vivo que cresce dentro de nós e que não respeita as fronteiras. O que nos caracteriza como seres vivos é termos fronteiras. É porque não respeita as fronteiras que aparece depois noutros sítios. Vai sendo capaz de se reproduzir à distância. E é este o perigo. A maioria dos cancros não mata as pessoas em mais de 50% dos casos. Mas sabemos que podem morrer. MSS — Sim. Uma ameaça que já não é substanciada em número, mas que nos faz ter muito medo. MdS — A diferença entre nós é que eu, como investigadora básica, partilho de um sentimento de culpa. Como é que as coisas evoluíram de tal maneira e não se sabe quais são as fronteiras? Sabe-se tanto, tanto, tanto. Mas falta qualquer coisa. Isto tem que ver com a forma como fazemos investigação, com a forma como se faz ciência. E por isso é que a sida é muito importante. Os doentes contribuíram para o avanço que se fez na investigação. Se a sida tivesse ficado em África, como ficou a malária, se não tivesse atingido ruas de homens que viviam em São Francisco, talvez o progresso ainda estivesse lá atrás. MdS — Estou a falar da importância da participação das pessoas. Eu estava em Nova Iorque nos anos 80. Os médicos novos nunca tinham visto pessoas da mesma idade morrer assim. Aquilo mobilizou de uma maneira extraordinária. Aqui, uma pessoa que tem um cancro diagnosticado o que quer é ser tratada. MSS — Isso é verdade. Apesar de tudo, na sida, há um agente externo causal. No cancro, o desencadeador pode ser um agente externo, e é muitas vezes. Quase nunca é um vírus. Estamos a discutir uma coisa que é crucial: porque raio evoluímos tão pouco?MdS — Evoluímos no conhecimento. MSS — No conhecimento evoluímos imenso. E na eficiência do tratamento. MSS — Não tem chegado. MdS — Os da imunologia acham que é a imunologia que vai resolver. Os da genética acham que é a genética. Depois não há instituições que encorajem os da genética a falarem com os da imunologia. MSS — Faz todo o sentido. Há aqui um elemento que nos distingue. A Maria é cientista, mesmo, e eu sou um patologista, um médico. O cancro é uma espécie de preço que temos de pagar por nos mantermos uma espécie viva. MSS — Pela manutenção de uma espécie que ainda por cima esticou a duração da sua vida. E ainda por cima se expôs mais ao sol, engordou, fuma, toma medicamentos que são imunossupressores. O nosso problema no cancro não é a causa, é o desenvolvimento. E o desenvolvimento é nosso, somos nós. Nós com uma instabilidade genética de tal ordem que torna estas aproximações, como a Maria diz, sempre parcelares. Há muita gente que acha que se soubermos mais dos genes e dos epigenes e dos metagenes, que quando tivermos de cada pessoa uma descrição completa, vamos poder tratar essa pessoa identificando cada uma dessas coisas como alvos. Não vamos. Porque, sempre que aumentamos o número de alvos sobre os quais tratamos os doentes, aumentamos a toxicidade. MSS — São alvos que fazem parte de nós. Sou muito céptico em relação à capacidade de tratar cancros que estejam desenvolvidos. Sou muito favorável à possibilidade de virmos a controlar a doença. MdS — Essa é a parcela em que se tem avançado mais. MSS — Esses tratam-se com cirurgia. E a cirurgia cura se se tiver a sorte de aquilo não ter deixado de respeitar as fronteiras e não tiver uma metástase à distância. À medida que as populações forem mais idosas, e passarmos a ter, para além da exposição aos agressores ambientais, uma incapacidade de corrigir erros (porque permanentemente cometemos erros genéticos nas divisões [celulares]), vamos ter mais cancros. MSS — Vamos ter todos pelo menos um cancro, ou dois. Mas vão ser tão tarde que não nos vão causar problemas. Vamos morrer com os nossos cancros. Estamos a falar de duas coisas diferentes. O cancro enquanto doença mortal num adulto, num adolescente ou numa criança. Ou o cancro numa pessoa idosa que vai ter, se prolongar a sua vida até aos 90, 100, 110, inexoravelmente, dois, três, cinco cancros. MSS — Pensávamos que o sistema imunológico era para nos defender das coisas de fora. MdS — Numa primeira fase em que num tumor aparecem células do sistema imunitário, por causa da influência histórica, o que a pessoa pensa é que aquelas células estão lá para matar o tumor. Curiosamente, é o Manuel Sobrinho a primeira pessoa que me diz que é capaz de não ser sempre assim. MSS — No [cancro] da tiróide, alguns linfócitos, em vez de serem matadores das células malignas, proporcionavam factores de crescimento das próprias células malignas. MSS — Eu sabia que os cancros da tiróide cresciam muito pouco. Dividiam-se muito pouco. Mas eram invasores. Na altura, fazia-se microscopia electrónica e comecei a ver as células com autofagia (a comerem-se a si próprias). E, burro, escrevi na minha tese: “. . . uma célula em autofagia quase pronta a morrer. ” Não percebi que aquela célula em autofagia era um mecanismo de sobrevivência para que ela não morresse. A célula maligna fazia autofagia parcial utilizando os seus próprios alimentos do citoplasma para sobreviver. Tornando-se mais pequenina, gastando menos. MdS — Gostava que saísse desta nossa conversa isto que o Manuel acaba de ilustrar: a maneira como a pessoa, sozinha, vê as coisas. E como julga, sozinha, que vai chegar [à resolução]. Não vai chegar. É necessário integrar o conhecimento da cirurgia, da quimioterapia, da imunologia. Ele diz: “Eu fui burro. ” Não foi nada burro. Era aquilo que ele sabia e que se pensava na altura. Os programas de ensino estão a ficar muito dirigidos e um aluno sai de um programa só a saber aquela coisa. MSS — É pior que sectorial, é auto-sustentada. E a pessoa é premiada por ser sectorial. MdS — É financiada por ser sectorial. A economia, os ministérios, e não é só cá, dizem que “a ciência tem de servir para. . . ”. Voltemos ao caso da sida. Se um ministro da Economia tivesse dito que saber sobre as células T4 não servia para nada, porque não dava dinheiro, imagine o que se tinha perdido. A primeira responsabilidade é dos cientistas, é dos professores. Depois é da sociedade em que estamos. Temos de ter doentes educados. A sida é um exemplo fantástico de como se integrou o conhecimento, o comportamento da comunidade, a ciência. MSS — Tudo o que a Maria está a dizer faz um sentido absoluto. Estava a olhar para aquelas árvores. O que acho graça nas árvores é que estão quietas. MSS — As árvores estão ali paradas na Primavera e no Verão. Resistem à falta de água, ao calor imenso. As suas células têm características que lhes deram capacidade de sobrevivência. As células cancerosas têm isso, também. Todos temos, todos os dias, células que são potencialmente cancerígenas e vemo-nos livres delas. Quando temos a pouca sorte de ter um cancro, as coisas sucederam naquelas células e nas filhas delas…MdS — E no ambiente. MSS — Claro. Quando isso lhes deu vantagem de crescimento. Só vemos os casos de sucesso [do cancro], que são os nossos casos de insucesso. É muito interessante, quando estudamos células cancerosas, o número de situações em que encontramos os mesmos mecanismos de resistência — à morte — que as plantas têm. O cancro é um ser vivo multicelular, exactamente como nós. MSS — Ganha porque é mais eficiente. MdS — A minha primeira reacção é sempre a de me sentir responsável no tecido do ensino superior. As pessoas das células dos mamíferos têm imenso a aprender com as plantas. No nosso sistema educativo, os miúdos aos 15 anos decidem se vão fazer Ciências ou Humanidades. Uns vão crescer sem saber o que é um gene, uma célula. Os outros vão crescer sem saber quem é Espinosa. Nunca em Medicina ensinaram Botânica. MSS — Mas deviam ter ensinado. MdS — Sem dúvida. Voltando atrás. Temos uma coisa que cresce. Que cresce num ambiente. Se cresce num ambiente que toda a gente sabe que muda com a idade, é preciso perceber porque é que muda. Pode ser que se corrija este ambiente de forma a que o equilíbrio seja a favor do hospedeiro e não a favor do cancro. MSS — A palavra “imunidade”: a Maria está a substituí-la por “ambiente”. Tem razão. A ideia é a de que os cancros não são células apenas, é um tecido que tem elementos. Ainda as plantas. O que é que acontece se eu tiver uma célula normal e ela ficar a apanhar sol permanentemente? Vai morrer. A única hipótese que tem de sobreviver é raspar-se dali. E voltamos à história de não respeitar fronteiras. O cancro, graças ao microambiente e a coisas que são as mais variáveis, está permanentemente a encontrar estratégias para se raspar dali. Em 99, 9% dos casos, o microambiente e o sistema imune dão cabo das células — elas não se raspam dali. Agora, há sempre a possibilidade de uma delas, de repente. . . sheer chance. MSS — As pessoas que têm cancro têm muito pouca sorte. Dizemos que o tabaco provoca o cancro; provoca, mas só em 15% das pessoas. Deus me livre de acusar os que têm cancro: “Puseram-se a jeito. ” Isso é uma estupidez. MdS — Há, há. É criar um sistema de liberdade. Não vai nunca fazer perguntas diferentes se não tiver a liberdade de as fazer. A escola, a forma como estamos a financiar os projectos de investigação, tudo está a limitar como é que se fazem perguntas diferentes. As equipas que escrevem projectos têm de escrever quais são os resultados esperados. Já ninguém financia resultados inesperados. MSS — Os cientistas, para ganharem projectos, têm de se formatar. E não é só no cancro, é em relação a tudo. Há muito pouca liberdade porque o risco de não ter resultados é enorme. E as agências financiadoras o que querem é que a pessoa apresente resultados preliminares — que já estão feitos. MdS — E que, se possível, vão dar dinheiro. MSS — Esse é outro lado. O cancro tem muitas coisas semelhantes, seja um cancro da pele ou do estômago ou do pâncreas. Quando há um medicamento que é eficiente para o cancro do estômago, a indústria farmacêutica, que já desenvolveu esse medicamento, que já sabe que não é tóxico, paga agora aos cientistas para testarem se, porventura, aquele medicamento que é eficiente para o cancro do estômago não será também bom para o cancro do ovário. MSS — Permanentemente. Chama-se estratégia me too, “eu também”. Dá alguns resultados, mas as perguntas não são muito inteligentes do ponto de vista do que a Maria estava a dizer: da pergunta curiosa, transversal. A investigação é muito formatada. Os orientadores são enviesados. As revistas científicas são…MdS — Enviesadíssimas. MSS — As situações de cancro familiar em que conhecemos o gene que aumenta o risco de cancro são aquelas onde progredimos mais — porque temos uma causalidade. São 5 a 10%. São 10% na mama. São 10% no cólon e recto. Menos do que isso no estômago. Não sabemos muito bem o que é que se passa com a próstata nem com o pulmão. No pulmão, o peso do tabaco é muito maior. Os 5 ou 10% não são um valor independente das condições ambientais. Estes 5 ou 10% não são verdade em África. MSS — Em África são mais porque as pessoas não vivem o tempo suficiente para ter a influência dos meios ambientais que nós temos na Europa ocidental, em que vivemos até aos 80 ou 90 anos. Como em África as pessoas morrem mais cedo, a percentagem das que morrem de cancro é maior por susceptibilidade genética. MSS — Na minha família nunca tinha havido cancro. Tínhamos acidentes vasculares cerebrais, tínhamos diabetes. E eu, que trabalhava em cancro, nunca tinha percebido esta ameaça vital para mim e para as pessoas de quem gostava até o meu pai morrer de cancro. MSS — Estamos a entrar numa coisa que permeia todo este universo: o das expectativas e dos medos que distorcem a realidade. Até essa altura não tinha percebido o risco porque a minha família não tinha tradição de ter cancro. MdS — Completamente. O cientista tem uma responsabilidade social. E tem uma responsabilidade ética. No que respeita ao conhecimento e à ignorância, temos uma responsabilidade acrescida. MSS — O cancro que eu estudo é um cancro que praticamente não mata ninguém, o cancro da tiróide. MdS — Não mata ninguém se. . . MSS — Temos sobrevidas melhores que 95% aos 30 anos. Numa fase da vida, interessei-me por cancro do estômago. Depois deixei. Havia gente muito melhor do que eu a fazer cancro do estômago. E apercebi-me, no cancro do estômago, que me sentia menos à vontade porque os doentes morriam. Voltei para a tiróide. No limite, se quiser fazer investigação successfully em cancro, devo escolher cancros muito mortais. Aí é que consigo ver se estou ou não a interferir na história natural. Mas na tiróide tenho muito menos má consciência. Só dou boas notícias, mesmo quando digo: “Tem uma neoplasia maligna, vamos tratar. ”MSS — A investigação em cancro da tiróide é menos recompensadora do ponto de vista económico porque é menos mortal. E há uma distorção da sociedade que valoriza sobretudo os cancros que aparecem no mundo ocidental. O cancro do pâncreas, o cancro do sistema nervoso central. Não valoriza o cancro do colo do útero que aparece em África. Isto é muito complexo porque a nossa forma de ver o cancro é marcada não só pela experiência pessoal, mas pelo lugar onde estamos inseridos. MdS — A tiróide é a primeira grande contribuição de um investigador português chamado Manuel Sobrinho Simões, e as pessoas em geral não sabem isso. Não vai dar muito dinheiro à farmacêutica da quimioterapia. Agora pergunte o que é que aconteceu em Chernobyl. MSS — Como o reactor rebentou e atirou com o iodo radioactivo para a atmosfera, o mesmo iodo radioactivo que em doses muito fortes trata as células malignas, e mata as células, em doses muito fraquinhas pode provocar cancro. E provocou. Sobretudo nos miúdos que bebiam muito leite. Somos um dos seis institutos do mundo escolhidos para estudar isto. Houve uma quantidade enorme de cancros da tiróide na Bielorrússia porque os ventos sopravam da Ucrânia para a Bielorrússia. Morreram cinco ou seis pessoas, apesar de haver centenas de novos casos. Tratámo-los. O ponto da Maria é que os tratámos porque tínhamos um conhecimento que o tornou possível. MdS — Uma coisa que não é considerada importante por ministros da Economia. MSS — Tem etiologia. Aqui tínhamos uma causa. Era o iodo radioactivo. No colo do útero, a causa é o HPV [Human Papilloma Virus] e há uma vacina. MSS — Exactamente. MdS — No da tiróide, sabe-se a causa mas não se sabe porque é que há uma tão grande variação entre os tecidos. “Porquê?”: começa-se agora a fazer esta pergunta. Como a minha perspectiva é de cientista portuguesa em Portugal, a minha preocupação nesta fase da vida, em que já não estou no laboratório, é fazer a pergunta. Será que Portugal pode contribuir com pessoas como o Sobrinho e como o instituto que criou, e como a gente nova que tem no seu instituto, para demonstrar, para provar o que está errado?MSS — Isto leva muito tempo. E aumenta os potenciais doentes de cancro. Esse é que é o grande problema. Vamos continuar a aumentar a pool de pessoas que não morreram precocemente, que deixaram de morrer de enfarte e de acidente vascular cerebral, e que vão ter ou doenças neurodegenerativas ou cancro. MdS — Falei com uma pessoa que faz investigação em cancro. Ela acha importante que se diga que não há “o” cancro. MSS — Muito diferente. MdS — Mesmo no caso da mama, não há um cancro da mama. Os cancros, eles próprios, são diferentes. E os hospedeiros, no caso, as mulheres, também. O hospedeiro em quem o cancro vai aparecer é diferente. Depois, é importante ter uma segunda opinião. MSS — Sou um adepto feroz. MdS — Não. MSS — É verdade. E os doentes têm vergonha de pedir. A segunda opinião não é especialmente para o cancro, é em tudo. É um grande problema na nossa sociedade: não estamos habituados a confrontar. MdS — Isto tem que ver com a educação dos doentes. O conhecimento é a coisa mais importante. O doente português não deve temer ter uma segunda opinião. MSS — Quero dizer que estou de acordo que não há só um cancro. Há muitos cancros. A palavra “cancro” é uma palavra infeliz. MdS — Daí não gostar do caranguejo. MSS — Se tivermos uma pessoa que tem um cancro da tiróide ou do testículo, em princípio, as coisas vão correr bem. Se tivermos um cancro do cérebro ou do pâncreas, em princípio, as coisas vão correr mal. Mesmo no pâncreas, há uma percentagem cada vez maior de casos que correm bem. MSS — Tem de se dizer que tipo de cancro é e em que estadio foi apanhado. Estamos a ter casos de sucesso, por exemplo, quando os doentes fazem icterícias de repetição e não têm cálculos. O doente fica amarelo porque a bile não flui; em princípio, é uma calculose. Se tiver episódios de icterícia de repetição, sem ter cálculos, a probabilidade é que tenha uma neoplasia dos canais. Se for apanhado nessa fase, o cancro do pâncreas cura-se. MSS — A primeira coisa é fazer prevenção. Não deve fumar, não deve engordar de mais, não deve beber de mais. Não se deve expor ao sol a horas más e muito tempo. É aquilo que sabemos que é de evitar. Deve estar vacinado. Se não estiver vacinado contra a hepatite B, se não estiver vacinado contra o HPV, tem mais probabilidade de ter infecções no fígado e colo do útero. MdS — É criminoso. MSS — Não vacinam as crianças porque há um risco, que é mínimo, mas que há, de terem doenças imunologicamente determinadas que são chatas. Esse risco é menor do que o risco que a pessoa tem de vir a ter a doença. Sobretudo, se interrompemos as vacinações, interrompemos uma conquista da sociedade. É como os partos em casa ou na água. Agora há uma gente que gosta de ir para o ribeiro ter as crianças! “Uma coisa muito natural. ” Um discurso totalmente disparatado, pré-científico, criminoso para os próprios e para a sociedade. MdS — É assustador! É incompreensível. MSS — O custo para a sociedade de ter um miúdo que tem uma paralisia cerebral porque teve um parto em más condições não é só para os pais e para a criança. Todos nós pagamos aquilo. A primeira coisa é fazer prevenção. Não deve fumar, não deve engordar de mais, não deve beber de mais. Não se deve expor ao sol a horas más e muito tempo. É aquilo que sabemos que é de evitar. Deve estar vacinado. Se não estiver vacinado contra a hepatite B, se não estiver vacinado contra o HPV, tem mais probabilidade de ter infecções no fígado e colo do útero. MdS — Tudo isso tem que ver com falta de educação. Falta de educação científica. As pessoas têm muito acesso à informação, mas falta-lhes formação. Se a pessoa valorizar os seus filhos, os seus amigos, tem a obrigação de tomar conta da sua vida. Vivo no Passeio das Virtudes [no Porto] e as árvores sabem quando é que é Primavera, quando é que é Inverno. Faça chuva ou faça sol, não vão a sítio nenhum, mas a verdade é que vão estar cá e muito mais tempo do que nós. Nós, se queremos estar cá, temos de ter cuidado. E aquilo onde há verdadeiro progresso é na prevenção. Temos de estar atentos e vigilantes. MSS — O problema não é só o cancro. O problema é a hipertensão, os AVC. MSS — Temos muita dificuldade, como sociedade, em incorporar o risco. Temos dificuldade, eu também tenho. A percepção do risco, e até que ponto a percepção do risco nos leva a mudar comportamentos, é muito mais frequente nos povos do Norte da Europa do que nos povos mediterrânicos. O que tem que ver com falta de cultura científica e de literacia, mas também com religião. MSS — Há uma ideia de que “cá se fazem, cá se pagam” nos protestantes. Nós temos a ideia de que Deus nos protege e, se nos arrependermos, aquilo “zera”. Há uma responsabilidade pessoal e social nos protestantes que é mais to the point. A minha avó dava-nos um garrafão de água de Fátima benzida que tínhamos na casa de banho, debaixo do lavatório. Sempre que havia feridas, a minha mãe limpava com água de Fátima [riso]. A minha mãe é uma mulher muito inteligente e o meu pai era médico e cientista. MSS — É cultural. Mas quem faz isso não tem o mesmo cuidado em não fumar, porque acha que, se tiver de correr para torto, corre, se não tiver, Deus protege. Temos uma extrema responsabilidade nos nossos comportamentos e não fomos treinados a assumi-la. De qualquer forma, o sistema pode começar a ser muito punitivo. Há uma culpabilização que é indecente porque há aqui um elemento de sorte. MSS — Na Noruega, tenho vindo a observar uma coisa horrível. Os noruegueses ficam furiosos com os imigrantes porque são gordos. São gordos e gastam mais ao Serviço Nacional de Saúde do que com os próprios noruegueses. Começa a haver umas vozes a dizer que se devem pesar os imigrantes quando chegam. E medir-lhes o perímetro abdominal. MdS — Isso é legal?MSS — Não há leis, mas está a acontecer. MdS — O why me é muito comum. MSS — É verdade. Mas não é só em relação ao cancro, é em relação a qualquer doença grave, degenerativa. No Brasil, não se falava em lepra. “Lepra? Aqui não se fala lepra, é hanseníase. ” É a doença de Hansen, que foi quem a descreveu. Temos o preconceito de que algumas doenças são… Mas mais do que a punição, há a sensação de a pessoa se sentir fragilizada. Atenção, sendo um especialista de cancro, eu tenho um pavor de ter cancro. Tenho medo. Sei que a maioria deles são controláveis, mas também sei que há 30 ou 40% que não são. E se tiver a pouca sorte de ter um desses…MSS — Agora é um em três. Daqui a 30 anos, nos países mais desenvolvidos, por exemplo nos Estados Unidos, nos anglo-saxónicos, é um em dois. MSS — Mas não nos vai matar. Isso é que é muito importante que as pessoas percebam. Nos sítios onde já está entre um para três, um para dois, já se está a morrer menos de cancro. Apesar de a incidência estar a aumentar, a prevenção, o diagnóstico precoce e os tratamentos têm melhorado. É horrível dizer isto, mas estamos a morrer de infecções. Volto à tiróide porque quero falar de esperança: se houvesse um cancro, e se fosse um caranguejo, ninguém com um tumor na tiróide se safava. Como o Manuel disse, a tiróide não interessa a ninguém porque não morre muita gente. Eu digo que a tiróide devia interessar a toda a gente porque qualquer coisa acontece para que o tal caranguejo não cresça. MSS — Estamos com um problema grave de aumento da tuberculose por toda a Europa. Em parte porque as terapêuticas criaram resistências, em parte porque deixou de haver os dispensários. Em parte porque economicamente há gente muito mais pobre do que havia e fluxos migratórios que antigamente não havia. Estamos a ter Alzheimer e muitos cancros, mas as populações idosas, ricas, dos Estados Unidos não estão a morrer de Alzheimer — que não mata ninguém directamente —, nem estão a morrer de cancro, porque têm cancros pequeninos e controlados. Estão a morrer de infecções respiratórias, insuficiências cardíacas, insuficiências sistémicas, infecções urinárias. Por falência do sistema. E voltamos à imunidade. O cancro vai ser muito, muito frequente. Toda a gente vai ter. Mas vai morrer de outras coisas. MSS — Nos adultos jovens e adultos, sim. E a partir dos 80 anos, devemos ter atenção mínima, mas não estarmos chateados porque vamos ter. MSS — Exactamente. Como a diabetes. E vamos ter de evitar fazer sobrediagnóstico. MSS — Acontece que sob a palavra “cancro” se acobertam realidades muito distintas. A vigilância tem de ser inteligente, não pode levar de uma forma acéfala aos passos seguintes. É a diferença entre a Coreia do Sul e o Japão, que têm a mesma incidência de cancro da tiróide. A Coreia do Sul foi para a ideia de que sempre que se vê um nodulozinho se deve enfiar uma agulha, demonstrar que é cancro e fazer sobretratamento. O Japão decidiu o contrário. Sempre que se vê um nódulo que tem menos de um centímetro, não se faz coisíssima nenhuma. Faz-se vigilância todos os anos para ver se aquilo cresce ou não cresce. Nesta altura, na Coreia do Sul, o cancro da tiróide é o mais frequente de todos os cancros da mulher. Em Portugal, é o quinto. MSS — Ninguém morre daquilo. E os japoneses gastam muitíssimo menos dinheiro e não têm a chatice de as senhoras viverem com o pavor do cancro da tiróide. Isto é verdade para a próstata, no homem, é verdade para a mama na mulher. A mulher tem imensos microcancros que não se devem tratar. Se começarmos a tratar, damos cabo. MdS — É muito importante a variação de órgão para órgão, é uma coisa que só agora começam a valorizar. MSS — Isto não invalida que quando uma pessoa de 39 anos aparece com cancro da tiróide grande, a crescer, tenha de ser tratado mesmo como um cancro. A mesma coisa com a próstata aos 56 ou 60. Ou com a mama aos 45. MdS — Veja a importância que está a ter esta conversa. Se as pessoas não percebem que podem ter um cancro da tiróide — as da Coreia do Sul —, e que não faz mal nenhum. . . A educação do doente, insisto eu, é extraordinariamente importante. E a educação do médico pelo doente, que é uma coisa que não passa pela cabeça de ninguém, ou passa pela cabeça de muito poucos em Portugal. MdS — A educação em geral, a educação do doente em particular e a segunda opinião são importantíssimas. As pessoas têm medo de morrer. Se ouvem que têm um cancro na tiróide, querem ser tratadas e não precisam de ser tratadas. Volto à tiróide porque quero falar de esperança: se houvesse um cancro, e se fosse um caranguejo, ninguém com um tumor na tiróide se safava. Como o Manuel disse, a tiróide não interessa a ninguém porque não morre muita gente. Eu digo que a tiróide devia interessar a toda a gente porque qualquer coisa acontece para que o tal caranguejo não cresça. Vamos lá situar o prof. Sobrinho Simões. Qual é a sua tese de doutoramento? Fez quantas autópsias?MSS — Umas 500. MdS — O doutoramento dele, que não servia para nada, porque o cancro da tiróide não tem importância nenhuma, fez um estudo que permitiu encontrar cancros na tiróide em 500 autópsias. Este trabalho nunca seria financiado, mas é o trabalho que o leva a ser convidado para ir para a Noruega, vão ter com ele quando Chernobyl acontece. E novamente falamos de as perguntas estarem muito condicionadas pelo investimento que é feito, pela expectativa de resultados. Se se aponta numa direcção, é para aí que se vai, o caminho está tracejado. MdS — Claro que há esperança, mas o que é preciso é ter coragem de fazer perguntas diferentes. E de fazer coisas diferentes que não vão ser financiadas. Numa sociedade educada cientificamente, tem de haver liberdade e espaço para que miúdos — como este foi — façam coisas que parecem perfeitamente inúteis. A história diz-nos que nada é inútil desde que seja bem feito. MdS — É assustadora. Por isso é tão importante falar de cancros. Dessa maneira, as pessoas percebem que o significado pode ser outro. MSS — Há muitos movimentos para estes microcancros não serem chamados “cancros” e serem chamados “IDLE, indolent lesions of epithelial origin”. Há aquele ditado: “O diabo trabalha com idle fingers. ” Indolentes. Isto tem consequências até do ponto de vista dos seguros. Uma senhora que tem diagnóstico de um microcancro não tem o mesmo acesso a condições boas de seguro de quem não tem esse diagnóstico. MSS — Não é necessariamente todos os anos, varia. Depende das idades, depende do risco que têm, em função de uma análise prévia. Uma colonoscopia pode ser de cinco em cinco anos ou de dois em dois anos, consoante os resultados da colonoscopia anterior e da história familiar. MdS — Mas deve fazer-se a partir dos 50 anos regularmente. MSS — A mamografia continua a ser indiscutível. O que se discute na mamografia é a idade em que se começa. MSS — Exactamente. De novo a história familiar é muito importante. E bom senso. Mais importante que ter regras é, por exemplo, a pessoa ter modificações do seu trânsito intestinal ou ter um sinal da pele que mudou, e vigiar. Estamos a safar-nos razoavelmente no cólon, na mama e no colo do útero. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. MSS — Não. Nem estômago nem sistema nervoso central, pâncreas, fígado, pulmão. Nem fazendo todos os anos um raio-x pulmonar. Pode-se fazer raio-x todos os anos, mas aumenta imenso a radiação da pessoa e tem muitos órgãos que vão ser submetidos. E sabemos que quando um raio-x banal encontra um nódulo do pulmão, ele, infelizmente, já ultrapassou a fase em que podia ser removido sem problemas. A sensibilidade da radiologia actual não é suficiente. Agora passou a fazer-se uma TAC espiral, que é muito mais eficiente. O problema da TAC espiral é que aumenta ainda mais a radiação. Em termos de custo/benefício é muito complicado. MdS — O que saiu desta conversa é que a prevenção é muito importante e que ter um tumor não é uma sentença. MSS — A maior parte das vezes não é. E cada vez vai ser menos. A incidência de cancro aumentou exponencialmente nos Estados Unidos e a mortalidade está a diminuir. As taxas de mortalidade já estão abaixo dos 40%. MdS — É muito importante as pessoas sentirem isso. Porque as pessoas não estão preparadas para morrer. Olhemos para uma célula: com tanta e tão estranhamente bela organização, como pode uma célula vir a crescer de tal modo que toma conta de um homem inteiro? É de facto uma estranha doença. Tem de haver uma forma de surdez de quem a alberga para não perceber o perigo que representa. É compreensível que se pense que acordar o sistema imunológico vai ajudar, mas o sistema imunológico evoluiu para se defender do perigo que vem de fora. E um tumor tão parecido, tão igual ao hospedeiro só raramente será reconhecido como perigo pelo sistema imunológico. E lembro Garcia d’ Orta, que cito em Meu Dito, Meu Escrito: “O que sabemos é a mais pequena parte do que não se sabe. ”
REFERÊNCIAS:
Extremo Ocidental: A última noite do Living Opera
As discotecas de praia, esses templos que durante décadas foram o centro do Verão, estão a acabar. O Living Opera, em Santa Cruz, viveu 32 anos. O dono, Carlos Fortuna, anunciou a última noite. (...)

Extremo Ocidental: A última noite do Living Opera
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: As discotecas de praia, esses templos que durante décadas foram o centro do Verão, estão a acabar. O Living Opera, em Santa Cruz, viveu 32 anos. O dono, Carlos Fortuna, anunciou a última noite.
TEXTO: Percorrer a costa ocidental portuguesa é uma das grandes viagens que se podem fazer na Europa. É um trajecto pleno de sonho e sobressalto, como um poema. A diversidade do país revela-se na longitude. O litoral é uma sequência de súmulas, a babugem dos imensos corredores que atravessam a península, para desaguar no Atlântico em forma de âmbar, de pérola ou de lágrima. Cada praia é muito mais do que si própria. Representa centenas de quilómetros de interior, e todos os que, vivendo longe, podem, e querem, dizer: “Esta é a minha praia”. Por isso cada cenário é completo, cheio, perfeito, e ainda uma projecção, uma metáfora. A sua rápida sucessão provoca a vertigem. Depois de São Jacinto, pode atravessar-se o canal no velho ferry Cale de Aveiro (com a moto ou o carro) até ao Forte da Barra, e daí seguir pela estrada florestal até à Praia de Mira, depois Quiaios, Buarcos e Figueira da Foz. Entre Mira e a Tocha, a estrada avança entre pinheiros, que protegem uma zona de dunas, até à praia, quase sempre deserta. Não se avista o mar. Para a verdadeira experiência de voar sobre o oceano, é preciso virar a Oeste depois das dunas de Cantanhede e das dunas de Quiaios, em direcção à Praia de Quiaios e à Serra da Boa Viagem, pela rua do Farol Novo, e daí prosseguir para Buarcos, retomando a Nacional 109, até à Figueira. Então, depois de atravessar a ponte sobre o Mondego, toma-se, por poucos quilómetros, a N109 em direcção a Leiria, até cortar à direita para apanhar a Estrada Atlântica. Aqui, sim, paira-se sobre o azul, passando Pedrógão, Vieira, São Pedro de Moel, Nazaré. De São Martinho do Porto à Foz do Arelho há outra Estrada Atlântica, de certa forma, a continuação da mesma. Mas depois não é fácil acompanhar a linha costeira. O melhor é aproveitar a boleia da A8, ou, pelo menos, da N8, contornando a Lagoa de Óbidos, para desembocar na península de Peniche e no Baleal. Logo à saída da Foz do Arelho, na estrada que vai na direcção de Caldas da Rainha, é possível ver a ruína do que foi durante anos a maior e mais animada discoteca da zona Oeste, o Green Hill. Outros antros da vida nocturna de Verão surgem a espaços ao longo do percurso, decadentes, abandonados, destruídos. A partir de Peniche, o caminho torna-se extasiante. Não são já as estradas panorâmicas como as de Quiaios, ou da Costa de Lavos, depois da Figueira. Agora não há o artifício da rota turística, mas antes um espaço de fusão de campos e mar, cujo equilíbrio natural não exclui o povoamento. O segredo desta cumplicidade chama-se Estrada Nacional 247. Leva-nos em curvas, loopings e outros movimentos de gaivota, até à órbita da praia da Consolação, de São Bernardino, Santa Cruz, e daí para a Ericeira, Sintra e Cascais. Os 50 quilómetros que ligam Peniche à Ericeira são um mundo de características próprias. É uma zona de ventanias e nevoeiros, de agricultura e de surf, de aldeias, montes suaves, falésias sobre o mar e penínsulas verdejantes. Se noutras regiões as praias parecem ser um bem escasso, insuficiente para a avidez estival das populações de cidades vizinhas, aqui sobram, esperam, repousam. É impossível conhecer todas as praias, memorizar-lhes os nomes. Algumas são apenas um bar de madeira sobre a arriba, outras a foz de um riacho, ou uma laguna de mercúrio entre rochedos na maré baixa. Aqui, como em todo o país, cada praia tem também o seu carácter. Que percorre um largo espectro, mas nunca é melancólico, como nas costas da Bretanha, da Cornualha, ou mesmo das Astúrias. Em Portugal, a praia é uma festa. Vamos lá para nos transformarmos, inventarmos um modo de vida intenso, generoso e livre, sermos felizes por algumas horas, ou dias. A praia é o melhor de nós. Revela a face mais luminosa da nossa natureza. Como a espuma de outras ondas, invisíveis, que rolam da terra para o mar. Ao passar junto do edifício, uma mulher pára, deixando o marido e os filhos, carregados de guarda-sóis, toalhas e sacos, continuarem a caminhada para a praia. “Há vinte anos, vinha aqui todos os fins-de-semana”, diz ela. “Era o melhor das minhas férias. E foram os melhores tempos da minha vida. ” O marido, Carlos, 45 anos, que cresceu na região de Viseu, detém-se lá à frente, um pouco confuso com as faíscas nos olhos da mulher, Joana, de 38. “Era a melhor discoteca de toda a zona oeste”, diz ela, com cara de quem duvida estar no mesmo lugar, ali, à porta do Living Opera, agora fechado. “Dançávamos até amanhecer, depois íamos para a praia. ”Carlos Fortuna abriu o Living Opera em 1983, ao regressar da Bélgica, para onde tinha “fugido” da guerra colonial. Na zona da Grand Place, em Bruxelas, onde vivia, frequentava, nos anos 70, um pub chamado Drug Opera. E foi esse pequeno clube todo em madeira, rústico, que o inspirou, na hora de baptizar o seu novo empreendimento. Antes, foi proprietário de uma loja de instrumentos musicais, em Torres Vedras, e tocou guitarra, durante quatro anos, na banda Atlântida, de Lena D’Água. Mas os anos 80 foram a época de ouro das grandes discotecas. Principalmente as discotecas de praia. “Quando abriu, o Living Opera era diferente de todas as outras. As luzes, a decoração, com ícones do cinema e das artes, criavam um ambiente único, muito apelativo”, diz Carlos. Arrendou o velho edifício, que fora uma casa particular, e transformou-o completamente, com dois andares, aquecimento central, duas pistas de dança, cinco bares. O primeiro Disc-Jockey foi Luís Perdigão, que gostava de pôr música new wave, rock, funky e disco sound, e tinha uma paixão por electrónica e sistemas áudio. Ele próprio quis explorar o negócio do Living Opera, mas Fortuna, que na altura tinha outro sócio, foi mais forte. Trabalharam juntos desde então, na instalação do som e luzes, na programação musical, na organização de festas e noites temáticas. Carlos Fortuna nunca largou o Living Opera, durante 32 anos. Pelas suas contas, mais nenhuma discoteca em Portugal viveu tanto tempo, com o mesmo dono. E foram anos gloriosos. A casa tem lotação para 500 pessoas, mas a média, nas noites de Verão, era de mil pessoas numa noite. “Havia uma discoteca em Torres Vedras, o Túnel, que dominava as noites, no Inverno. No Verão, o Living era rei. Vinha gente de todo o lado. Até de Lisboa, e de todo o país, porque tinham ouvido falar do Living”, recorda Carlos. “Quando comecei, em 1983, estava cá o FMI. Depois vieram os anos da euforia, do dinheiro. Mas já passei por quatro crises. E sobrevivi sempre. ”De Junho a Setembro, a casa estava cheia todas as noites. Em cada uma havia um tema, uma festa diferente. Às quartas-feiras era a Festa da Espuma. “As pessoas traziam uma mochila com uma muda de roupa, porque iam ficar todas molhadas. ” Noutra noite era a Festa Black and White, noutra a Festa da Penumbra, onde todas as luzes se apagavam. Aos clientes eram distribuídas pequenas lanternas, à entrada, e eram eles que iluminavam o recinto, apontando para quem queriam ver melhor. “O efeito era incrível, com as pessoas a dançar, e centenas de lanternas a moverem-se”. Em certas noites, dos “anos loucos”, Carlos e Luís convidaram artistas para actuar. Grupos de dança e performance, ou bandas, como a de Rui Veloso, ou mesmo Samantha Fox. “Durante bastantes anos isto foi um bom negócio, admito. Várias gerações dançaram aqui, e foram marcadas pelo Living. ”As discotecas de praia eram uma componente importante das férias de todos os jovens, faziam parte da própria ideia de Verão. Ouvir música e dançar, conhecer pessoas, o próprio culto desses lugares a abarrotar de gente e de fumo, com música que ensurdecia e luzes que cegavam, onde muitas vezes não era fácil entrar, com porteiros caprichosos e discriminadores, tudo isso compunha a mitologia do Verão. A noção de que o período de férias era especial facilitava essa sacralização do espaço da discoteca, lugar de emoção onde tudo o que acontecia assumia uma qualidade de lenda. Carlos Fortuna habituou-se a esse papel de mestre de cerimónias, de monge do templo da música. E talvez se tenha viciado, porque quando, há dez anos, o negócio deixou de ser lucrativo, não conseguiu ser realista, e desistir. “Devia ter fechado isto há dez anos. Assim como ganhei muito dinheiro, também perdi, desde essa altura, muito dinheiro”, diz ele. O paradigma da noite das praias começou a mudar. Abriram muitos bares, chegou a crise, as pessoas deixaram de ter dinheiro e paciência para certas coisas. Ultimamente, a machadada final nas discotecas, segundo Carlos Fortuna, foi a “lei de liberalização dos horários. Dantes os bares tinham de fechar às 3, e as discotecas podiam ficar abertas até às 6. Agora os bares podem fechar tarde, tal como as discotecas, por isso as pessoas ficam lá, por ser mais barato, e mais descontraído, pode-se entrar e sair de copo na mão, estar lá sem consumir. A culpa é desta lei do nosso ministro da Economia, Pires de Lima, que não acautelou os interesses dos empresários. É muito estranho. Acho que por trás disto só podem estar os interesses dos produtores de cerveja, para os quais o ministro trabalhava. Isto é só a minha opinião. ”As discotecas são estruturas pesadas, com muitas obrigações legais. Têm de possuir segurança, porteiros, casas de banho preparadas para pessoas com deficiência, etc. Os bares não têm as mesmas obrigações, mas podem ter equipamentos de som equivalentes, DJ, pistas de dança, e estar abertos até tarde. A vantagem competitiva é óbvia. Além disso, há o fenómeno dos DJ superstars, diz Luís Perdigão, que veio juntar-se ao amigo para a última noite do Living Opera. “As pessoas conhecem os DJ. Eles são ídolos. E só vão a uma festa se conhecerem o DJ, se ele for bom. E um bom DJ cobra 8 mil a 10 mil euros por noite. Tornou-se incomportável. Uma discoteca não pode pagar isso. Os DJ vão aos festivais, a festas subsidiadas, etc. ”Durante bastantes anos isto foi um bom negócio. Várias gerações dançaram aqui, e foram marcadas pelo Living. ”Os festivais de Verão também se tornaram concorrentes das discotecas. O orçamento para música esgota-se nesses eventos que enchem o Verão, e não sobra para ir à discoteca. Tanto mais quanto já não vale a pena ir à discoteca para ouvir música. No início, recorda Carlos, era isso que fazia a diferença. E Luís lembra-se dos discos que a mãe lhe trazia das viagens ao estrangeiro, ou dos LP que o próprio Carlos Fortuna tinha trazido da Bélgica. “Era isso que atraía as pessoas”, explica Carlos. “Mas era possível porque toda a gente gostava mais ou menos da mesma coisa. Hoje, os jovens dividiram-se em demasiadas tribos. Não é possível agradar a todos. Se trago um DJ techno, isso vai afastar muita gente. ”A própria evolução das discotecas, ao optarem por se tornarem locais de dança, e não para ouvir música, como eram inicialmente, foi também, aos poucos, cavando a sua sepultura. A música de dança foi-se tornando uniforme e desinteressante. Já ninguém lhe chama música, mas apenas “som”. E deixou de ser suficiente para atrair pessoas a um local fechado, com porteiro e bebidas mais caras do que num bar normal. Além dos festivais há as festas das aldeias, que já não são só para os locais e os emigrantes de férias. “Os organizadores nas autarquias foram inteligentes, e perceberam que podiam atrair outros públicos”, explica Luís. “Agora, nas festas das aldeias, há sempre um palco para jovens, com outra música, e uma zona de bebidas. E resulta. Os jovens preferem ir a essas festas do que às discotecas. ”“As discotecas estão a desaparecer”, diz Carlos Fortuna com tristeza. “As pessoas já não vêm. O mundo mudou. Dantes, isto era importante. As pessoas produziam-se para a noite. Agora, já ninguém quer saber. Temos de nos resignar a isso. Dantes, à meia-noite, havia uma enorme fila ali fora, para entrar. E não importava as atracções especiais que tínhamos. As pessoas vinham de qualquer maneira. Hoje, é muito difícil meter aqui cem pessoas num fim de semana”. Durante o passado mês de Julho, Carlos tentou abrir as portas, usando as velhas fórmulas. Organizou uma Ladies Night, uma Festa da Penumbra, uma Festa da Espuma. Quase ninguém apareceu. “As pessoas já não acham graça a essas coisas. Não estão para se chatear. Não estão para se molhar. Na Festa da Espuma nem cem pessoas apareceram”. Desde que começou a crise, Luís Perdigão decidiu diversificar a actividade. Em 30 anos, tinha feito o sistema de som de mais de 500 discotecas, entre as quais algumas das maiores do país, incluindo as lisboetas Kremlim, Kapital e Urban Beach. Agora virou-se para Angola, onde tem instalado os mais sofisticados sistemas de som, luz e imagem, em mega-discotecas luxuosas (onde viu “um tipo abrir duas garrafas de champanhe de 5 mil euros numa noite”), ou em casas particulares. Dedica-se também à domótica, integrando todos os media e sistemas electrónicos de uma casa, com controlo por smartphone. Carlos não se dedicou a mais nada. O Living Opera é tudo para ele. Tem uma pequena agência de publicidade, que dificilmente sobrevive. Entregou-se demasiado ao Living Opera, e agora não sabe o que poderia fazer, nos negócios da noite. Nem tem vontade. “Tenho tantos anos disto, que já não percebo nada”, diz ele. “Acho que nunca mais vai haver discotecas. Talvez venha a haver outras coisas, locais que não se chamem discotecas. Ou talvez tudo seja cíclico, e a moda volte. Mas não, acho que não. Locais fechados onde as pessoas vão para dançar, nunca mais haverá. Isso é ponto assente. ”Carlos Fortuna decidiu então fechar o Living Opera. Mas, em conversa com Luís Perdigão, resolveram organizar uma última festa como despedida. Chamaram-lhe Remember Living Forever. Festa de Encerramento. Marcaram para sexta-feira, 14 de Agosto, lançaram página no Facebook, enviaram mensagens SMS para amigos, antigas namoradas e antigos clientes. Começaram a ter muitas respostas, outras páginas de apoio foram abertas, e, de repente, “tornou-se viral”, diz Luís. Choveram mensagens de apoio, organizaram-se grupos para vir, de todos os pontos do país, até a Santa Cruz na Sexta à noite. Espalhou-se uma febre de nostalgia, uma saudade da juventude, ou simplesmente uma onda de pena e solidariedade pelo Living Opera e o seu dono. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Luís está eufórico. Garante que já estão garantidas mais de mil pessoas. Carlos não quer acreditar. Esperava, na melhor das hipóteses, umas duzentas pessoas. Está aflito. “Não tenho bebidas suficientes. Nem pessoal. É preciso contratar pessoas. ” Tem medo que seja uma ilusão, e que vá gastar dinheiro para nada. Mas também não quer desiludir, se realmente afluirem às centenas ou milhares. Sexta-feira foi a última noite do Living Opera. O edifício de colunas azuis e paredes lilases vai ser vendido, para ser uma casa de habitação de luxo, sobranceiro ao mar e ao Penedo do Guincho. Luís Perdigão continuará a trabalhar para milionários em Angola. E Carlos Fortuna, que fará ele nas noites de Verão de Santa Cruz, quando pela última vez bater atrás de si a porta da sua Opera?“De uma coisa tenho a certeza”, diz. “Os jovens nunca deixarão de sair à noite. E nunca deixarão de ouvir música no Verão, junto ao mar. ”
REFERÊNCIAS:
E que mal há em dizer isto?
Ganhou fama nas redes sociais e a sua influência chega a todos os cantos do mundo. Suspeita-se de que Mizanur Rahman seja um dos grandes recrutadores do Estado Islâmico. (...)

E que mal há em dizer isto?
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ganhou fama nas redes sociais e a sua influência chega a todos os cantos do mundo. Suspeita-se de que Mizanur Rahman seja um dos grandes recrutadores do Estado Islâmico.
TEXTO: Mizanur Rahman está sentado num café de Palmers Green. Debaixo da sua longa túnica preta, tipicamente muçulmana, está escondida uma pulseira electrónica. As autoridades britânicas suspeitam de que ele seja um dos recrutadores do autoproclamado Estado Islâmico, por isso vigiam de perto todos os seus movimentos e confiscaram-lhe o passaporte. Está proibido de se encontrar com mais de duas pessoas ao mesmo tempo, e todas as noites tem recolher obrigatório para a sua casa no norte de Londres, onde é obrigado a pernoitar. E, o que é mais difícil para Rahman, está proibido de tocar em qualquer aparelho com ligação à Internet. Rahman é conhecido pelos discursos longos e fervorosos de exortação ao Estado Islâmico, que publica na Net. Apoia declaradamente um califado global, uma pátria governada pela sharia (a lei islâmica), que segundo ele é um sistema económico, jurídico e político superior à democracia. Pretende que o Reino Unido adopte a sharia e diz que um dia a bandeira preta do EI esvoaçará na Casa Branca. Enquanto bebe uma chávena de chá Earl Grey com leite, comenta que provavelmente os islamistas irão conquistar Washington pela força militar, mas garante que isto não significa que ele defenda a violência. Ainda assim, argumenta, o conceito de espalhar o islão pela força não é menos nobre do que os países ocidentais invadirem o Iraque e o Afeganistão para espalharem a democracia. Numa conversa telefónica, na semana passada, Rahman comentava que os atentados do EI em Paris, a 13 de Novembro [que fizeram 130 mortos], foram “uma consequência inevitável” da participação francesa nos ataques aéreos da coligação contra Raqqa, a cidade síria declarada capital pelos islamistas. “Acho que ninguém pode ficar realmente surpreendido com aquilo que aconteceu”, diz. “Na guerra, as pessoas bombardeiam-se umas às outras. Acho que esta é uma oportunidade para os franceses sentirem empatia com as pessoas de Raqqa, que sofrem um impacto bastante parecido sempre que os ataques franceses as atingem — as vítimas civis, o choque, o stress. A raiva que devem estar a sentir neste momento contra o Estado Islâmico é o mesmo tipo de raiva que as pessoas da Síria e do Iraque sentem em relação a França. ”Rahman não tem uma presença impositiva. Ligeiramente encorpado, um metro e 65 de altura, uma barba negra rala. É calmo, articulado e charmoso — mesmo que argumente que decapitar jornalistas americanos, como faz o Estado Islâmico, não é pior do que os Estados Unidos matarem muçulmanos civis em ataques de drones. “Eu promovo a sharia porque acho que é o melhor [sistema]”, comenta o antigo contabilista e web designer durante a entrevista no café londrino. “Acho que é melhor do que aquilo que temos. E que mal há em dizer isto?”Muito, dizem as autoridades em Londres e Washington, que acreditam que este homem de 32 anos é uma figura central do círculo mundial de pregadores, professores e verdadeiros crentes, cuja eficaz propaganda online é fundamental para o poder de atracção do Estado Islâmico. Dizem que os seus milhares de tweets e posts no Facebook e as leituras inflamadas no YouTube pretendem inspirar jovens vulneráveis — de Londres, a Chicago, até Nova Deli — a juntar-se ao grupo que decapita, crucifixa, queima e afoga inimigos em nome de Deus. Num sermão no ano passado, publicado no seu canal no YouTube, Rahman manifestou-se contra os EUA e exortou os muçulmanos a “acordarem e unirem-se pelo califado!” Mas sem nunca dizer explicitamente a ninguém para cometer actos violentos. “Parem de jogar e de ficar à margem, simplesmente a olhar: ‘Oh, os americanos estão a matar os nossos irmãos [no califado]. O que é que eles vão fazer?’”, lançou num tom de voz crescente. “Façam alguma coisa em relação a isso!”Em Agosto, o Reino Unido acusou-o de “instigar ao apoio” ao Estado Islâmico, e se for condenado enfrenta uma pena que pode ir até dez anos de prisão. Agora está a aguardar o julgamento em liberdade, com uma caução e duras restrições, incluindo a pulseira electrónica. Os governos ocidentais dizem que confrontar os responsáveis da propaganda é vital para combater o recrutamento e, consequentemente, derrotar o Daesh. Por isso a pressão sobre Rahman e outros proselitistas tem aumentado. “Ele é perigoso porque cria as condições para que a ideologia extremista seja vista como normal”, comenta Peter Fahy, um polícia de Manchester que recentemente passou à reforma e que tem ajudado a polícia britânica a tentar conter a radicalização. “Ele é o início da rampa de lançamento no percurso para o extremismo. ”Um alto responsável da agência americana de combate ao terrorismo, que pede para não ser identificado de forma a poder falar sobre questões altamente sensíveis dos serviços secretos, descreve Rahman como alguém que exerce uma “influência significativa” e que faz parte de uma rede mundial de promotores do EI. No café, Rahman afirma que as acusações contra ele são ridículas e antimuçulmanas. Diz que não fez nada a não ser pregar as virtudes do islão e que nunca recrutou ninguém para se juntar especificamente ao Estado Islâmico, nem apelou a ninguém para cometer actos violentos. “Eu não faço recrutamentos para o ISIS. Não faço parte deles”, afirma Rahman, que nasceu em Londres e tem uma pronúncia britânica perfeita. “Isto é uma caça às bruxas. Se temos uma ideologia diferente de como o governo ou o país devem ser geridos, eles atacam-nos e rotulam-nos terroristas. ”O caso de Rahman ilustra bem os desafios que os países que defendem a liberdade de expressão enfrentam na sua tentativa de levar a tribunal os defensores do EI. Como impedir que se ultrapasse a linha cinzenta que separa a liberdade de expressão do incitamento à violência?“Ele leva-os à beira do abismo e depois são eles que têm de decidir se dão o passo em frente — e as autoridades têm uma extrema dificuldade em lidar com isso”, diz Peter Neumann, presidente do Centro Internacional para o Estudo do Radicalismo do King’s College, em Londres. Segundo Neumann, Rahman é um dos poucos “faróis” das redes sociais, servindo de guia para as pessoas vulneráveis que procuraram respostas. Adianta que Rahman é habilidoso na persuasão de muçulmanos de que é seu dever religioso jurar obediência ao líder do Estado Islâmico, argumentando que Deus quer o mundo reunido sob um califado — sem sequer apelar abertamente a que eles se mudem para a Síria ou o Iraque [onde o EI domina um território superior à área do Reino Unido]. “Se tivermos em conta tudo o que ele diz, é óbvio que está a defender que se vá para lá, mas ele não diz ‘Vão para lá’”, adianta Neumann. Rahman nem sempre conseguiu manter-se no lado certo da lei. Passou dois anos na prisão, entre 2006 e 2008, por ter feito um discurso condenando a publicação de cartoons do profeta Maomé por parte de um jornal dinamarquês. Numa manifestação, afirmou desejar que os soldados britânicos no Iraque “voltassem para casa em sacos” e que queria “ver o seu sangue a correr pelas ruas de Bagdad”. Afirma que mantém o que disse, mas admite que as declarações foram proferidas num momento “tenso” em que muçulmanos de todo o mundo se sentiam atacados pelos cartoons e a guerra no Iraque. Adianta que pedir a Deus que os soldados britânicos fossem mortos no que considerava uma guerra injusta contra o islão foi incendiário, mas que não incitou os rebeldes de Bagdad à violência. “Não acho que eles fossem orientar as suas políticas com base no que dizia um miúdo de 22 anos que ninguém conhecia, durante um comício em Londres”, declara. Mas, para frustração das autoridades britânicas, Rahman tornou-se uma estrela das redes sociais desde que foi para a prisão. E tem sido mais cuidadoso em relação à lei quando lança a sua verborreia de apoio ao califado. Quando lhe perguntamos se gosta de “brincar” com a linha que separa o discurso legal do ilícito, Rahman sorri e responde: “Isso é uma boa caracterização daquilo que eu realmente faço. ” “Tendo a conhecer a lei melhor do que a polícia”, adianta. A polícia acusa-o de radicalizar jovens muçulmanos, sendo ele profundamente influenciado por um pregador mais velho. Rahman nasceu em Londres em Junho de 1983, filho de pais que emigraram do Bangladesh. Cresceu a jogar basquete, a ouvir música pop e a divertir-se com videojogos. A família era muçulmana mas não muito religiosa, e ele frequentou escolas protestantes da zona, geridas pela Igreja Inglesa. Quando se tornou adolescente, o pai, engenheiro, começou a pressioná-lo sobre o que ele queria fazer da sua vida. Disse-lhe para estudar Medicina, como o irmão, ou Direito — nenhum dos cursos o atraía. Sentiu-se desnorteado, até que um dia, em Janeiro de 2001, aos 17 anos, conheceu Omar Bakri Mohammed. Bakri, nascido na Síria, tornar-se-ia depois um dos pregadores islamistas mais famosos de Londres; em 2004, garantiu que os muçulmanos dariam ao Ocidente “um 11 de Setembro a cada dia que passa”. Foi a força motriz por trás de dois grupos que acabariam por ser proibidos pelo Governo britânico: o Hizb ut-Tahrir e o al-Muhajiroun. Está preso no Líbano, onde procurou exílio depois de lhe ter sido recusada entrada no Reino Unido em 2005, por se considerar que a sua presença “não conduzia ao bem público”. Quando Rahman ouviu pela primeira vez Bakri pregar numa mesquita perto da sua casa de infância em Palmers Green, sentiu-se inspirado. “Descobri todo um mundo de islão. Vi quão vasto era, quão incrível era”, diz Rahman. “Apercebi-me de que desperdicei toda a minha vida a aprender coisas que eram inúteis para mim, a fazer desenhos em [disciplinas de] Arte. É preciso dizer uma coisa sobre a arte. Ainda gosto, mas não é isso que é importante na vida. Não responde ao sentido da vida. ”Anulou os seus planos de ir para a universidade e em vez disso começou um curso intensivo de cinco anos com Bakri. Diz que isso lhe deu um conhecimento profundo e agora considera-se um especialista em teologia islâmica e na sharia. “O islão é muito mais do que um livro com uma história antiga. É na verdade um código para a vida”, defende, acrescentando que o islão contém as instruções para tudo, desde a higiene pessoal às relações internacionais. “Não são apenas longos discursos medievais. ”Afirma que o pai ficou preocupado quando ele começou a falar em espaços públicos com o seu novo fervor e roupas conservadoras, e prevendo que “o Governo não iria gostar”. Rapidamente se comprovou que estava certo. A primeira detenção foi em Fevereiro de 2002, quando foi multado em 50 libras (64 euros) por arrancar um póster de uma banda pop que tinha a imagem de mulheres com pouca roupa, o que ele considerava uma indecência. Na Primavera de 2005, durante as eleições legislativas, foi novamente multado por colocar cartazes a dizer “Muçulmanos não votem” na sede do Partido Trabalhista. Na sua opinião, os muçulmanos não deveriam aceitar nenhuma lei redigida pelo homem ou participar em nenhuma forma de governo que não seja regido pela sharia. Quando em 2006 foi condenado à prisão, depois da publicação dos cartoons dinamarqueses, já se tinha tornado uma inspiração para outros muçulmanos radicalizados. Um jovem nigeriano convertido ao islão, Michael Adebolajo, foi preso por ter atacado dois polícias à porta da sala de audiências de Old Bailey, onde decorria o julgamento de Rahman. Em 2013, Adebolajo e outro homem mataram o soldado britânico Lee Rigby, quase o decapitando numa rua de Londres. “A coisa mais importante que aprendi na prisão foi a ser paciente”, diz Rahman. “A paciência é muito subvalorizada. Aprendemos a lidar com as coisas, a resistir. ”Os analistas apontam para uma mudança geracional entre os pregadores mais radicais da capital britânica, que nos últimos anos se tornou um dos principais centros de proselitismo islâmico em língua inglesa. Neumann adianta que o herdeiro de Bakri é Anjem Choudary, que também estudou com ele durante vários anos, e que tem sido um amigo próximo e mentor de Rahman. Mas agora que Choudary está quase com 50 anos, diz Neumann e outros analistas, a tocha irá passar para Rahman. Consideram que ele representa a nova geração de discípulos com conhecimentos em tecnologia, imersos nas redes sociais e na cultura da juventude, levando a mensagem de Bakri e usando ferramentas modernas para inspirar os jovens. “Ele é o príncipe herdeiro”, diz Neumann. O seu alcance é global: uma mulher indiana, Afsha Jabeen, que está a ser investigada por promover o Estado Islâmico, disse às autoridades indianas que seguia os discursos e textos de Rahman, segundo notícias publicadas na Índia. Depois de o Daesh ter declarado o califado, em Junho de 2014, Rahman usou os seus sermões online para saudar os que “derramaram o seu sangue” e “lutaram a jihad” para criar o primeiro califado desde que o califado otomano foi abolido, em 1924. “Há 90 anos que as pessoas esperavam um califado”, comentou num discurso a 2 de Julho de 2014, publicado no YouTube. “Algumas pessoas estiveram à espera e algumas pessoas estiveram a trabalhar pelo califado. Esta é a diferença entre aquele que esteve sentado à espera na mesquita, rezando e esperando que ele caísse do céu, e aqueles que se têm sacrificado e derramado o seu próprio sangue, a sua saúde, e que vão para a prisão, viajam para os territórios, combatem a jihad, trabalham para estabelecer o califado na Terra!”Rahman diz que também ele adoraria levar a família para o califado, mas queixa-se de que as autoridades britânicas lhe tiraram o passaporte. Numa quinta-feira, a 7 de Agosto de 2014, Rahman estava ao computador publicando a sua torrente habitual de tweets e posts no Facebook. Criticou os EUA, twitando “As pessoas têm visto demasiados filmes de Hollywood e acham que os EUA são imbatíveis”. Depois, chegou-lhe uma mensagem de @lionofthed3s3rt, a conta no Twitter de Mohammed Hamzah Khan, um adolescente americano de um subúrbio de Chicago. Khan, de 19 anos, estava a pensar ir para a Síria com a irmã e o irmão mais novos para se juntar aos combatentes radicais. Mas primeiro queria fazer umas perguntas a Rahman sobre o autoproclamado Estado Islâmico. Usando uma mistura de árabe e inglês, Khan perguntou se era suficiente pregar sobre o califado a muçulmanos que não estavam disponíveis para se juntarem: “o q dizes [às] pss q defendem [que pregar] é mais importante agora?” A resposta de Rahman foi imediata e directa, e nos 40 minutos seguintes enviou oito tweets ao adolescente, dizendo-lhe que era seu “dever” como muçulmano “aceitar” e “obedecer” ao “califa” — o líder do EI, Abu Bakr al-Baghdadi. “É [preciso] declarar e prestar [um juramento de obediência] imediatamente. ”Os seus tweets davam a justificação religiosa para a obrigação de obediência ao califa. Mas nenhum deles dizia especificamente a Khan que devia ir para a Síria. E acrescentava que jurar obediência era uma questão de “cada um, de acordo com as suas próprias capacidades”. Menos de dois meses depois, Khan e os irmãos mais novos, de 17 e 16 anos, foram detidos no Aeroporto Internacional de O’Hare a caminho da Síria. No mês passado, Khan deu-se como culpado de dar apoio material a uma organização terrorista e enfrenta uma pena de 15 anos de prisão. Charlie Winter, investigador da Quilliam Foundation, diz que os tweets se encaixam perfeitamente no padrão de Rahman. “Ele está a dar a justificação ideológica para a adesão a um grupo como este”, afirma Winter. “Faz a pessoa com quem está a falar sentir-se muito especial porque ele é muito conhecido. O acesso a líderes importantes do EI faz com que a sua estratégia de alcance seja muito mais eficiente. ”No café de Londres, quando lhe mostramos uma cópia da sua troca de tweets com Khan, Rahman diz lembrar-se dele. Faz notar que em parte alguma diz a Khan para ir para a Síria. Perguntamos-lhe o que sente por, dois meses depois de ter dito a Khan para prestar obediência a Baghdadi, o jovem americano tenha tentado chegar à Síria. “Fico indiferente”, responde. “Não estou a responder a perguntas para tentar ou inspirar as pessoas nem nada desse tipo. Falo por dever islâmico. Falo por dever a Deus. ” Diz que não se sente culpado pela detenção de Khan. “Não tenho nada que me sentir culpado”, afirma. “Fizeram-me uma pergunta, eu respondi a uma pergunta. Se isso te inspira a ir viver para lá, é contigo. ”Rahman foi preso em Setembro de 2014 acusado de “incitar ao terrorismo” e de pertencer a um grupo proibido; diz que nunca o informaram de que grupo se trata. Foi detido juntamente com Choudary e com o seu amigo de infância, Siddhartha Dhar, também conhecido como Abu Rumayasah. Pouco tempo depois, Dhar saiu sob caução e deixou secretamente o país juntamente com a mulher e os filhos pequenos. Em Novembro de 2014, postou no Twitter uma fotografia dele na Síria, com o filho recém-nascido num braço e uma espingarda no outro. Rahman apresentou Dhar a Bakri e encorajou a sua conversão ao islão. Agora, Dhar é um importante porta-voz na Internet e propagandista do Estado Islâmico, e o seu velho amigo saúda-o através do Twitter. Há dois meses, as autoridades britânicas voltaram a deter Rahman e Choudary e juntaram novas acusações de “incitamento ao apoio” ao Estado Islâmico através de sermões divulgados na Internet. Depois de um mês na prisão, Rahman pagou uma caução e aguarda o julgamento em liberdade. Diz que chegou a ter um pequeno negócio em que ajudava as pessoas em contabilidade e web design, mas que a sua fama torna impossível angariar clientes. Ele e a mulher, e os seus três filhos, voltaram a viver com a mãe, na pequena casa onde ele cresceu. O Governo do primeiro-ministro David Cameron anunciou recentemente um novo combate ao extremismo e aos que radicalizam fiéis. O executivo tem sido louvado por muitos, mas também criticado por privilegiar a segurança em nome da liberdade de expressão e das liberdades pessoais há muito consagradas. “Vemos a frustração nos olhos deles: ‘Estes tipos não violam a lei, por isso como é que conseguimos travá-los?”, lança Rahman. “Acho que houve muita pressão para se dizer ‘Ouçam, temos de acusar estes tipos de alguma coisa’. ”Doug Weeks, investigador convidado da London Metropolitan University, que entrevistou exaustivamente Rahman e Choudary, é da opinião de que a acusação será o “grande teste” numa altura em que o Reino Unido tenta equilibrar segurança e liberdade de expressão: “Este julgamento pode ser um momento definidor da lei britânica. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Exclusivo PÚBLICO/The Washington PostCom Adam Goldman, em Washington, e Karla Adam, em Londres
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
"É ilusório pensar que o Estado-nação constitui um casulo protector contra a globalização"
Sandrine Kott é professora de História Europeia Contemporânea na Universidade de Genebra e é uma das mais reputadas especialistas na história do Estado social e das relações de trabalho na Europa. (...)

"É ilusório pensar que o Estado-nação constitui um casulo protector contra a globalização"
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sandrine Kott é professora de História Europeia Contemporânea na Universidade de Genebra e é uma das mais reputadas especialistas na história do Estado social e das relações de trabalho na Europa.
TEXTO: Sandrine Kott tem uma obra extensa e de referência na história do Estado social e das relações de trabalho na Europa, sobretudo em França e na Alemanha. Recentemente co-editou Globalizing Social Rights. The International Labour Organization and Beyond (2013) e Nazism across Borders (2018). É ainda autora de Day to Day Communism. State Enterprises in East German Society (2014). O internacionalismo tem sido um tópico negligenciado na história. Tal tem mudado recentemente. O que explica uma e outra coisa?Durante muito tempo, os historiadores cujas carreiras e redes profissionais se organizavam estritamente à escala nacional, negligenciaram o internacionalismo como realidade ideológica, social e política. Hoje, os estudos em torno deste tema têm-se multiplicado e assumido várias formas, reflectindo não só a internacionalização da profissão, mas também novas preocupações. Em resposta à globalização económica que vivemos, os historiadores da economia têm produzido múltiplos trabalhos sobre as interligações económicas e sobre a financeirização global. Na realidade, estes trabalhos inscrevem-se numa corrente já antiga que, desde a Segunda Guerra Mundial, se foca nas “economias-mundo”, sobretudo em épocas mais recuadas. Os trabalhos sobre o Mediterrâneo de Fernand Braudel (1949) ou sobre Sevilha e o Atlântico de Pierre Chanu (1959) constituem fontes de inspiração, apesar de frequentemente esquecidos pelos nossos colegas norte-americanos. Ainda assim, é verdade que os historiadores da economia contemporânea trabalham muitas vezes sobre períodos mais recentes e interessam-se mais pelas questões financeiras do que pelas trocas comerciais. C’est dans l’air du temps. Onde se nota mais esse interesse recente?É sobretudo no campo da história social, cultural e política que a atenção dada à dimensão internacional levou a uma forte renovação das abordagens analíticas. Certos temas tradicionalmente estudados no contexto nacional, como a imigração ou as guerras, passaram a ser tratados do ponto de vista internacional. Os historiadores privilegiam cada vez mais o estudo de fluxos migratórios a partir dos países de origem, ou de fenómenos de hibridização, relativamente às análises das legislações nacionais sobre a imigração ou às formas de integração num espaço nacional delimitado. Da mesma maneira, as guerras, tradicionalmente estudadas sob o ângulo duma expressão agudizada do nacionalismo, que elas de facto são, podem também ser vistas como momentos de troca internacional. Numa perspectiva de “conhecer o seu inimigo”: os governos dos países em guerra inspiraram-se mutuamente na planificação das suas economias de guerra, por exemplo. Por outro lado, a constituição de organizações internacionais após as guerras decorre certamente do objectivo de preservar a paz, mas é também fruto das trocas que tiveram lugar entre as forças beligerantes durante os conflitos. As associações e organizações internacionais que durante muito tempo foram negligenciadas pelos historiadores tornaram-se, por isso, objectos ou terrenos de investigação particularmente populares. O internacionalismo nunca foi incompatível com projectos nacionalistas e com a ideia de um “mundo de nações”. Porquê?O século XIX marcou a emergência e a consolidação das nações na Europa ocidental, tanto na definição daquilo que elas incluíam como daquilo que elas excluíam. Ora, é neste mesmo período que se difundem os projectos internacionalistas, como as associações e organizações internacionais. Esta concomitância revela de facto uma relação complexa entre o nacionalismo e o internacionalismo. O nacionalismo é ele mesmo um projecto internacional, na medida em que se impõe como um modelo universal de organização política durante o século XX. É, aliás, a generalização do modelo de Estado-nação que torna possível, mas também necessária, a criação de associações e de organizações internacionais. O carácter internacional destas associações e organizações define-se pelo facto de elas constituírem espaços onde representantes (oficiais ou não) de estados diferentes se encontram de forma regular para discutir questões que vão além do perímetro nacional. Nestes espaços internacionais, as lógicas nacionais estão duplamente presentes: por um lado, os representantes nacionais defendem os interesses específicos dos seus governos nacionais, por outro, funcionários, especialistas internacionais, e até mesmo activistas obtiveram as suas formações em espaços nacionais, onde não raramente se ligaram de forma estreita a redes nacionais de origem. Isto não impede, contudo, a emergência de projectos e lógicas internacionais. Estes inscrevem-se na formulação de causas cuja dimensão internacional está menos ligada ao facto de elas serem defendidas por actores de várias nações do que ao facto de elas apresentarem uma mensagem que é global: as associações contra a escravatura no final do século XVIII são disto um caso exemplar. Na sua maioria de origem anglo-saxónica, elas defendem uma mensagem que é universal e que as torna “internacionais”. Hoje, as associações de defesa dos direitos humanos ou do ambiente, de um modo geral centradas no Ocidente no que à criação e composição diz respeito, assumem-se como “internacionais”. Além disso, tanto nas organizações intergovernamentais como nas associações internacionais, funcionários, especialistas internacionais e activistas elaboram análises e métodos de trabalho que se inspiram em diferentes culturas nacionais e se enriquecem mutuamente. Criam-se assim normas e soluções internacionais que podem posteriormente servir de inspiração aos decisores nacionais, e das quais diferentes grupos sociais, em contextos nacionais diversos, se podem apropriar. São, portanto, realidades interdependentes?De tudo isto decorre claramente que o nacionalismo e o internacionalismo são realidades co-construídas e que, contrariamente ao que certos discursos nacionalistas afirmam, o internacionalismo não constitui de forma nenhuma uma ameaça contra o Estado-nação ou contra as identidades nacionais. Pelo contrário, permite um espaço de expressão e de enriquecimento. O internacionalismo tem sido tradicionalmente associado a projectos “liberais” ou “socialistas”, mas existiram (e existem) várias modalidades de internacionalismo. Pode falar-nos um pouco sobre esta diversidade de processos históricos?Os historiadores trabalharam inicialmente sobre os projectos liberais e socialistas porque, surgindo de certa forma com os Estados-nação, são os primeiros a apresentar-se aberta e claramente como internacionalistas. São, aliás, o espelho um do outro. Se Marx propunha que os proletários não tinham pátria e que se deviam organizar internacionalmente, isso decorria de o capitalismo liberal ser, também ele, internacional. Estes dois projectos organizam-se em modalidades políticas precisas: grandes associações internacionais multiplicam-se ao longo do século XIX. Do lado socialista, está a Associação Internacional de Trabalhadores, criada em 1864, e mais tarde a Internacional Socialista, criada em 1889. Do lado liberal, verificamos uma multitude de congressos, movimentos e associações que geram, a partir do século XIX, mas sobretudo no início do século XX, grandes organizações internacionais. Como a Sociedade das Nações. . . A Sociedade das Nações (SDN), fundada em 1919, no seguimento da Primeira Guerra Mundial, e que precede a Organização das Nações Unidas, exclui inicialmente a então nova União Soviética e todos os países colonizados (excepto a Índia) da possibilidade de adesão. O seu internacionalismo era estritamente limitado pela forma como as grandes potências ocidentais vitoriosas o concebiam. A SDN é rodeada por uma multitude de organizações e associações internacionais que se inspiram igualmente duma visão liberal do mundo e que são dirigidas pelas elites sociais desses mesmos países. Neste contexto, os comunistas criam um internacionalismo concorrente fortemente centrado na defesa da União Soviética como primeiro país comunista. O movimento comunista internacional organiza, ademais, populações trabalhadoras numa miríade de organizações e permite a participação aos povos colonizados. Esse internacionalismo concorrente, que consegue atrair uma parte dos países recentemente descolonizados, constitui uma verdadeira alternativa e abre a porta à contestação do projecto liberal, favorecendo soluções de terceira via. Contudo, ao longo da década de 1970, as patentes falhadas da economia planificada, assim como a denúncia repetida de desrespeito pelas liberdades e direitos humanos, enfraquecem consideravelmente o projecto universalista comunista. O projecto internacionalista que dele decorre perde assim, e de forma definitiva, a sua força de atracção. Os projectos internacionalistas não começam ou terminam nessas duas manifestações. Pode dar exemplos?Há outras formas de internacionalismo. O mais antigo e mais poderoso é o internacionalismo cristão que se organiza de maneira centralizada no catolicismo (podemos mesmo considerar o catolicismo como a mais antiga organização internacional) ou em redes mais difusas no caso do protestantismo. Além da mensagem universal largamente difundida no mundo, o cristianismo ou o islão, que são religiões prosélitas, também inspiraram a criação de múltiplas associações internacionais, especialmente de carácter caritativo, mas não só. Ao longo do século XIX, por exemplo no campo sindical, estas associações podem mesmo produzir um internacionalismo rival dos dois primeiros. A sua força vai-se intensificando, especialmente nas últimas décadas do século. Finalmente, os historiadores têm-se debruçado mais recentemente sobre o internacionalismo fascista e de extrema-direita. Eles mostraram, como demonstram hoje as iniciativas de Steve Bannon, que, apesar do seu nacionalismo declarado, os movimentos de extrema-direita estão estreitamente ligados e que os seus líderes mantêm diálogo constante entre si. Os movimentos e governos populistas ou de extrema-direita inspiram-se também uns nos outros na formulação das suas agendas políticas. O salazarismo português serviu de inspiração a outros regimes cristãos e conservadores a partir dos anos 30. É o caso do marechal Pétain, em França, durante a Segunda Guerra Mundial. Os nazis, por seu turno, criaram organizações e movimentos internacionais que eles utilizaram sobretudo para tentar difundir o seu modelo de organização política e social. O internacionalismo nazi é uma forma disfarçada de imperialismo, como mostram as organizações internacionais que ele inspira, todas centradas em torno da celebração do Grande Reich alemão. Esta diversidade lembra-nos que o internacionalismo é, tal como o nacionalismo, um instrumento de inclusão, mas também de exclusão, e até de discriminação. É por isso importante ficar atento às formas precisas que o projecto internacional assume. Nas últimas décadas tem trabalhado sobre a história da “globalização dos direitos sociais”. Quais são os seus aspectos fundamentais?A questão dos direitos sociais constitui uma belíssima ilustração da dialéctica complexa que une o nacionalismo e o internacionalismo e dos efeitos perversos do discurso nacionalista. A partir do primeiro terço do século XIX, alguns grandes industriais, preocupados com a necessidade de uma mão-de-obra qualificada e em boa saúde, procuraram limitar e enquadrar o trabalho das crianças e das mulheres, dois grupos excluídos das organizações políticas e sindicais e por isso impossibilitados de se fazer ouvir. Eles consideraram, contudo, que a regulação do trabalho num só país iria prejudicar a concorrência entre as empresas e defenderam por isso uma legislação social de cariz internacional. Na segunda metade do século XIX, os países industrializados da Europa ocidental adoptaram progressivamente medidas sociais que protegiam os trabalhadores assalariados, a fim de evitar uma exploração excessiva da mão-de-obra, que poderia colocar em perigo a população e, portanto, o próprio Estado-nação. Eles exploraram medidas legislativas que favorecessem o desenvolvimento do diálogo social e que evitassem revoltas e revoluções. Através de programas de segurança social e diferentes formas de responsabilização do estado por necessidades fundamentais, acabaram por gerar processos de redistribuição social. Que explicam a emergência dos Estados sociais. . . Estas legislações sociais nacionais deram origem aos Estados sociais, os quais permitiram o reforço dos laços sociais entre os que eram beneficiados pelos programas de protecção, além de contribuírem fortemente para a construção nacional, incluindo as populações beneficiárias e excluindo as outras. É com este pano de fundo que os discursos populistas actuais insistem no facto de o Estado-nação constituir um casulo protector para as populações fortemente afectadas pela globalização, ao mesmo tempo que rejeitam quem, segundo eles, beneficiariam de forma ilegítima das vantagens desse casulo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Quão “nacional” é o direito laboral de cada país?Importa lembrar que as legislações nacionais na Europa e no mundo foram elaboradas numa conversa internacional. As soluções implementadas diferem entre países, mas organizam-se em torno de um número de modelos simples, elaborados através de discussões em arenas internacionais e posteriormente difundidos. A concorrência virtuosa entre as nações tem aqui um papel muito importante. É verdade que as normas sociais internacionais, como as da Organização Internacional do Trabalho ou as mais recentes da Comissão Europeia, não se impõem de forma automática aos governos nacionais, mas servem de quadro de referência e grupos nacionais podem apropriar-se delas. Pode dar um exemplo?É o caso da recente convenção da OIT sobre os trabalhadores e trabalhadoras domésticos em 2011. Esta convenção regula um grupo fortemente feminizado e que inclui uma proporção considerável de migrantes. Estes trabalhadores são por isso duplamente marginalizados nos espaços nacionais e por essa razão são mais dependentes da protecção internacional que outros. A maneira através da qual os grupos de activistas se envolveram nesta questão é reveladora da importância simbólica, mas também prática, que uma regulação internacional pode ter para estes trabalhadores, que são indispensáveis à prosperidade económica dos países em que trabalham. Se é verdade que a redistribuição social se faz essencialmente num quadro nacional ou infranacional (regional ou local), é falso dizer que não há redistribuição internacional. Os fundos regionais europeus contribuíram fortemente para a elevação do nível de vida das populações mais desfavorecidas na Irlanda, nos países do Leste e no Sul da Europa. Enfim, num mundo em que as empresas multinacionais escapam maciçamente às regulações sociais nacionais e, pela evasão fiscal, não participam na redistribuição social é ilusório pensar que o Estado-nação constitui ainda um casulo protector contra a globalização. Tradução de Tiago Moreira Ramalho
REFERÊNCIAS:
As noites e lágrimas de Mihai pedem um plano e abrigo
Câmara apresentou na terça-feira o seu plano de apoio aos sem-abrigo. Nesse dia, começava a saga de Mihai Corfu para escapar à rua. A luta de um assistente social, as mãos atadas de instituições lotadas. E um email para Marcelo. Mihai já tem um tecto. Será suficiente? (...)

As noites e lágrimas de Mihai pedem um plano e abrigo
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Câmara apresentou na terça-feira o seu plano de apoio aos sem-abrigo. Nesse dia, começava a saga de Mihai Corfu para escapar à rua. A luta de um assistente social, as mãos atadas de instituições lotadas. E um email para Marcelo. Mihai já tem um tecto. Será suficiente?
TEXTO: O sobressalto tornou-se cicatriz profunda nos dias de Mihai. Quando a saúde enfraqueceu, o álcool anestesiou inquietações. Pouco a pouco, doença e bebida foram cavando o afastamento do trabalho. O biscate como vendedor em feiras ambulantes foi-se, os poucos euros que garantiam a sobrevivência desapareceram, a relação com os “patrões” complicou-se. Mihai Victor Corfu perdeu o seu tecto improvisado, ora em carrinhas de vendedores, ora em tendas. Caiu na rua. Doente, a milhares de quilómetros de Tulcea, a sua cidade romena junto à fronteira com a Ucrânia. Sozinho. José António Pinto foi dar com ele choroso num colchão junto a um dos blocos habitacionais do Lagarteiro. Era terça-feira, o assistente social fazia o atendimento semanal no bairro, e vieram falar-lhe de um homem caído por ali. Nessa manhã, na reunião camarária, o vereador da Habitação e Coesão Social, Fernando Paulo, apresentava o plano de contingência e política para os sem-abrigo. O município prometia uma equipa a trabalhar nas ruas, a garantia de acolhimento de emergência, uma rede de restaurantes solidários e aposta em alojamento de longa duração. E a vida de Mihai Victor Corfu, caberia naquele quadro?O assistente social de Campanhã - a quem a Assembleia da República deu, em 2013, a medalha de ouro da Declaração Universal dos Direitos do Homem - levou o romeno de 45 anos ao Hospital de São João ainda na terça-feira, deixando-o na sala de espera ao final da tarde. Mas a madrugada chegava e Mihai não tinha resposta. Foi-se embora. Na manhã seguinte, bateu à porta da junta de freguesia. José António Pinto agarrou no telefone e disparou para todos os lados. Segurança Social, Santa Casa da Misericórdia, Hospital Joaquim Urbano, Centro São Cirilo, quartos de pensões, albergues nocturnos. As respostas repetiam-se: não há vagas, tem de aguardar vez. A noite de quarta-feira ia caindo e o recurso ao 144, linha nacional de emergência social, era já a última esperança. Novamente um não. “Onde está a equipa multidisciplinar de que fala a câmara? Onde está a Segurança Social?”, questiona. A ajuda veio de uma moradora do Lagarteiro. Abriu-lhe as portas de casa para deixar Mihai tomar um banho. Lavou-lhe a roupa, cedeu-lhe o sofá. Não foi a primeira vez que o fez. Mihai Victor Corfu já não guarda ilusões de felicidade. Sabe da composição de cristal da vida desde menino, percebeu cedo que tudo se pode perder num soluço. Aconteceu-lhe pelos 16 anos, quando o pai se deixou morrer numa linha de comboio e a mágoa com a mãe, divorciada dele tempos antes, desaguou numa separação irremediável. “Fui criado pela minha irmã mais velha”, diz Mihai Corfu, olhos vibrantes a acumular lágrimas. Estudou 12 anos, fez tropa, depois entregou-se ao mundo de trabalho. Na construção civil aprendeu a fazer um pouco de tudo. Aguentou-se. Teve um filho. O abalo veio quando o emprego tremeu. “O país estava podre, ninguém tinha trabalho”, conta. Na angústia do dinheiro escasso para pagar contas, dois amigos falaram-lhe de Portugal: iam emigrar e Mihai podia juntar-se a eles. Fez-se à estrada sem planos definidos. Foi há dez anos. Mihai Corfu nunca tratou de papelada para se legalizar porque nunca conseguiu um emprego certo. Mas a pele de vendedor chegava-lhe como abrigo: “Conseguia uns 30 euros quando vendia bem, já dava para alguma coisa”, relata num português já bem afinado. Agora que o “doutor Pinto” lhe deitou a mão, Mihai Corfu decidiu-se a fazer uma desintoxicação. “Preciso de ficar internado uns sete ou oito dias”, diz decidido, as mãos a tremer pela falta de álcool, as lágrimas a cair: “Se me curar não bebo mais. ” Para ser acolhido na Unidade de Alcoologia do Porto tem de levar documentos de identificação e exames médicos que, diz José António Pinto, custariam umas centenas de euros. “Onde está a lei que diz que um cidadão estrangeiro sem documentos não pode ter assistência médica em Portugal?”, questiona o assistente social. A história de Mihai Victor Corfu ganhou lastro. Nas redes sociais, as partilhas do texto do assistente social chegaram aos três dígitos. E à assessora de Marcelo Rebelo de Sousa chegou também um email. Se o Presidente da República “gosta de vir ao Porto comer com os sem-abrigo, tirar selfies e dizer aos órgãos de comunicação social que se preocupa com esta gente”, pensou, então devia saber da história de Mihai: “A política social da cidade é de uma profunda hipocrisia”, acusa. Questionado pelo PÚBLICO, o gabinete de comunicação do executivo de Rui Moreira esquivou-se de responsabilidades, argumentando que “as situações de sinalização, acolhimento e alojamento de emergência são da responsabilidade da Segurança Social, que coordena o Eixo de Acompanhamento Social do NPISA Porto - Núcleo de Planeamento Intervenção Sem-Abrigo do Porto”. Mas o documento apresentado pelo vereador Fernando Paulo tem outra versão. É o NPISA quem está no terreno, mas a câmara passou a assumir em Fevereiro deste ano “o compromisso da sua coordenação que era da responsabilidade da Segurança Social”. No Porto, o plano de apoio a quem vive nas ruas está integrado na Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo de 2017 a 2023. Os últimos dados da autarquia apontavam para a existência de 158 sem-abrigo sinalizados, 22 realojados e seis em comunidade terapêutica. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para responder ao problema, o plano tem disponíveis o Hospital Joaquim Urbano, para situações de emergência, e com capacidade para 25 utentes; dois apartamentos para “acolhimento de média duração” com cinco lugares (todos ocupados); sete fogos no Bairro das Artes Gráficas, numa parceria com a Misericórdia do Porto; 285 camas em albergues, na Santa Casa e em centros de acolhimento. Em curso, está também um plano municipal da igualdade e de combate à violência. A meio da tarde de quinta-feira, a resposta da Segurança Social surgiu. Mihai Victor Corfu podia ir para o albergue da Praça da República. Mas José António Pinto não descansava. O local, diz, é conhecido pelas fracas condições (“ninguém aguenta ficar lá por muito tempo”). E ver as estruturas funcionarem apenas sob ameaça é uma “triste realidade”: “Não tenho dúvidas de que se não tornasse isto público ele ia dormir na rua de novo. ”Há muito que Mihai deixou de imaginar o dia de amanhã, como se ao viver no presente pudesse pôr uma capa ao medo. Sente já não ter lugar em Portugal, pensa em regressar a Tulcea. Há quase um ano o filho de 28 anos, polícia na fronteira com a Ucrânia, enviou-lhe pelo Facebook uma fotografia da neta acabada de nascer. “Com quatro quilos e meio, a cara muito gordinha”, diz sorridente e emocionado. O filho conhece apenas parte da vida do pai. Mihai Corfu recusa-se a enredá-lo nos problemas dele. Não admite pedir ajuda: “Quero que ele guarde o dinheiro para ele e para a minha netinha”. E se ainda for permitido sonhar, só pensa voltar um dia à Roménia e pegar na menina ao colo.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos lei violência filho ajuda homem comunidade social doença igualdade medo
Montalegre mentalizado para o dia do jogo impossível de perder
O Benfica será recebido em Trás-os-Montes pelo único representante dos escalões não profissionais ainda ?em prova na Taça de Portugal, em ambiente declaradamente de festa. (...)

Montalegre mentalizado para o dia do jogo impossível de perder
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.53
DATA: 2018-12-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Benfica será recebido em Trás-os-Montes pelo único representante dos escalões não profissionais ainda ?em prova na Taça de Portugal, em ambiente declaradamente de festa.
TEXTO: Terminou a espera. Montalegre cumpre, finalmente, o grande desígnio em dia de redesenhar o mapa-mundo. A diáspora barrosã converge para o castelo, cuidadosamente engalanado para a recepção ao Benfica, adversário dilecto na única competição em que os sonhos e a alma ganham corpo. Indelevelmente marcada pela emigração, a terra fria de Barroso — paredes-meias com a Galiza — reúne em plena época natalícia os filhos oriundos das sete paragens do mundo. Dos Estados Unidos ao coração da Europa não faltaram pedidos de bilhetes para encher um estádio que triplicou a capacidade de dois mil lugares, encerrando aí a grande vitória do clube transmontano: escrever o mais bonito capítulo da história, independentemente do que acontecer nestes oitavos-de-final da Taça de Portugal. Montalegre apresenta-se ainda como o último bastião do futebol não profissional, símbolo de uma resistência que será posta à prova pelo recordista de conquistas de um troféu que a última edição vincou ser possível derrubar os maiores mitos. Benfiquista assumido, condição partilhada por muitos dos poucos habitantes da vila raiana, José Manuel Viage garante o distanciamento emocional necessário para colocar a “águia” em sentido. O treinador do Montalegre nem sequer precisa de aprofundar o conhecimento natural que possui da equipa de Rui Vitória, pois, sempre que possível, acompanha-a na qualidade de adepto, como sucedeu em Munique, na penúltima ronda da fase de grupos da Liga dos Campeões, precisamente três dias antes de receber a prenda mais desejada no sorteio da quinta eliminatória da prova-rainha. Nessa noite fria em solo germânico, não esperou pelos últimos 20 minutos, perdendo o golo de Ribéry, que confirmou a goleada (5-1), algo que agora não quer sentir na pele. “Só espero que não nos aconteça na Taça o mesmo que sucedeu com o Benfica frente ao Bayern”, insinua, resumindo os argumentos do clube presidido pelo irmão mais novo, Paulo Viage, a uma vontade insuperável de conseguir uma partida “de paixão, sem medos”, transferindo toda a pressão e responsabilidade para o campo do adversário. “Se perdermos, ninguém nos vai recriminar. No dia seguinte volta tudo ao normal e guardaremos esta experiência como algo valioso. Mas também sabemos que temos 2% ou 3% de probabilidades de contrariar o destino. O Benfica já foi eliminado em casa pelo Gondomar! E é isso que temos de ter presente: encarar o jogo como uma festa, sem pressões, retirando o máximo de prazer, mesmo sabendo que para a maioria dos nossos jogadores esta será a primeira e provavelmente a última vez que disputam um encontro rodeado de tanto mediatismo”, insiste, consciente das diferenças entre o oitavo classificado da Série A do Campeonato de Portugal e o, actualmente, quarto da I Liga, posição que denuncia algumas fragilidades, ainda que irrelevantes perante a diferença de potencial dos dois contendores. Dignificar o nome do clube e da região é ponto de honra, se possível com a qualidade que o terceiro escalão nacional vem reclamando, até por considerar que este “é o jogo mais fácil” que o Montalegre disputará na presente campanha. Na verdade, para Montalegre — vila e clube — este é um jogo impossível de perder. “Antes de entrarmos em campo, já ganhámos. Provámos ser capazes”, assume o treinador, porta-voz de todos quantos se empenharam nesta empreitada, orgulhoso pelo esforço e pela capacidade de mobilização demonstrados e indispensáveis para vencer todos os obstáculos que desaconselhavam a organização no Estádio Dr. Diogo Vaz Pereira, a desafiar a lógica da casa emprestada que vai imperando em situações semelhantes. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Montalegre era conhecida, essencialmente, pela feira do fumeiro e pelas sextas-feiras 13. Organizar um jogo destes no nosso estádio, na nossa terra, é algo que nunca será apagado nem esquecido”, remata um José Manuel Viage que preparou toda a estratégia sem saber se poderia sentar-se no banco para liderar a equipa, situação que se arrasta praticamente desde o arranque da época, na sequência de uma suspensão de 45 dias logo após a primeira jornada, na deslocação a Fafe. Um castigo cuja data de início demorou cerca de dois meses a ser fixada, motivando um mal-entendido relativamente ao período de suspensão, que levou mesmo o técnico e os responsáveis do clube a pensarem que tinham a folha disciplinar limpa. . . com o pormenor de estarem, involuntariamente, a antecipar o prazo determinado pelo Conselho de Disciplina (CD) e que só ontem foi verdadeiramente atingido, mais de quatro meses depois do encontro com o Fafe. Para agravar a situação, o CD instaurou novo processo por suposta “violação” da área técnica na quarta eliminatória da Taça de Portugal, frente ao Águeda (de que o Montalegre recorreu, alegando que o técnico se limitou a entrar na rouparia para pedir um casaco), o que poderia ditar novo afastamento de José Manuel Viage do banco, com a agravante de coincidir com o jogo frente ao Benfica, deixando a equipa sem timoneiro. Isto porque, para além do “adjunto” Ricardo Chaves (expulso no sábado em Felgueiras), apenas o médio João Fernandes possui curso de treinador (nível I), embora seja habilitação insuficiente para assumir o “cargo” numa emergência. Em terra célebre pelas sextas-feiras 13, pelo culto do oculto, pelas jornadas de medicina popular promovidas pelo padre Fontes — na vizinha e famosa Vilar de Perdizes —, depois de o início do treino de segunda-feira ter sofrido um atraso considerável, motivado pela avaria da carrinha que transportava jogadores e material desportivo para Vila Pouca de Aguiar, é caso para dizer que, mesmo não acreditando em bruxas, é bem possível que elas andem à solta.
REFERÊNCIAS:
Alemanha pondera contratar cidadãos da UE para as suas Forças Armadas
A falta de efectivos é um dos problemas de uma força militar em "péssimo" estado. (...)

Alemanha pondera contratar cidadãos da UE para as suas Forças Armadas
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: A falta de efectivos é um dos problemas de uma força militar em "péssimo" estado.
TEXTO: O Exército alemão está a considerar recrutar especialistas de países da União Europeia para tarefas específicas, por exemplo na área da informática ou da medicina, disse o inspector-geral das Bundeswehr, Eberhard Zorn, numa entrevista aos jornais do grupo de media Funke. É “uma opção”, disse o responsável das Forças Armadas. As Forças Armadas alemãs sofrem de subfinanciamento e de falta de material e pessoal especializado. O comissário do Parlamento alemão para as Forças Armadas, Hans-Peter Bartels, comentou ao mesmo grupo de media que esta possibilidade não seria nada de extraordinário, argumentando que há já bastantes militares com dupla nacionalidade. A ideia terá já sido abordada na União Europeia, onde não foi encarada com muito entusiasmo, dizem os jornais do grupo Funke. Vários países de Leste, especialmente a Bulgária, expressaram reservas, temendo que a medida levasse os seus jovens a emigrar para a Alemanha. A ministra da Defesa, Ursula von der Leyen, disse numa entrevista ao jornal Rheinische Post que as Forças Armadas empregam actualmente 182 mil pessoas, um aumento de 6500 em dois anos, com um peso de 12% de mulheres. As Forças Armadas querem conseguir mais 21 mil efectivos até 2025. O Governo tem recorrido a várias medidas para tentar fazer aumentar o número de efectivos: admitiu no início do ano que as Forças Armadas estão a recrutar cada vez mais menores – 2128 recrutas, o triplo do número de 2011, quando o país acabou com o serviço militar obrigatório. Para seguir em frente com a ideia de integrar cidadãos da UE em certas áreas especializadas, seria preciso alterar a lei que data do final da II Guerra Mundial, e que restringe a participação no Exército a cidadãos alemães. Depois da guerra, o país tentou mudar a tradição militar criando um exército baseado no conceito de “cidadãos em uniforme”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A ideia terá já sido abordada na União Europeia, onde não foi encarada com muito entusiasmo, dizem os jornais do grupo de media Funke. Vários países de Leste, especialmente a Bulgária, expressaram reservas, temendo que a medida levasse os seus jovens a emigrar para a Alemanha. O relatório anual do Parlamento, feito no início do ano, sobre o estado das Forças Armadas resumia: é “péssimo”. Submarinos, carros de combate e aviões estão muitas vezes avariados, o que impede os militares de cumprir as horas de treino necessárias. Até faltava material básico como tendas. A falta ficou também evidente na última cimeira do G20, quando a chanceler, Angela Merkel, aterrou na Argentina num voo comercial, depois de falhas técnicas nos dois únicos aviões de longo curso.
REFERÊNCIAS:
Entidades UE
Se a França cair
A revolta francesa nasce sobretudo numa “pequena classe média” branca, que se viu afectada pelas consequências sociais da globalização. (...)

Se a França cair
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: A revolta francesa nasce sobretudo numa “pequena classe média” branca, que se viu afectada pelas consequências sociais da globalização.
TEXTO: 1. É um clássico: os franceses não fazem reformas, apenas revoluções. É também um exagero, que serve apenas para descrever a particular identidade de um país com uma História que olha como gloriosa, que se vê, em momentos de euforia, como sendo ainda o centro do universo. Que alterna cada vez mais com uma profunda “malaise”, sempre pronta a explodir numa fúria incontida que normalmente derruba governos, desfaz reformas, mas raramente despede o ocupante do Palácio do Eliseu. É esta a história da V República, moldada pela personalidade do General De Gaulle e pela sua visão do poder – “La France c’est moi” -, onde a figura do Presidente da República Francesa funciona com o centro da vida política da França em redor do qual se organiza o poder, reservando ao primeiro-ministro o custo e a impopularidade da governação, um lugar secundário que pode ser sacrificado em caso de crise económica e social. Jaques Chirac, apesar do seu estilo caloroso e afável, ainda cumpriu este figurino. Alain Juppé, o seu primeiro-ministro, foi sacrificado quando a reforma das pensões levou milhões de franceses às ruas. Lionel Jospin, primeiro-ministro socialista que governou com Chirac em coabitação, tentou enfrentá-lo sem grande resultado. Quando resolveu desafiá-lo nas presidenciais de 2002, sofreu a tremenda humilhação de não passar à segunda volta, abrindo espaço a um confronto dramático entre o Presidente e o líder da Frente Nacional, Jean-Marie Le Pen. O resultado mostrou ainda uma França firme perante o desafio do nacionalismo e do extremismo. A disciplina republicana funcionou em pleno dando a Chirac uma vitória de 82% dos votos e anulando qualquer ambiguidade perante a ascensão da Frente Nacional. 2. Nicolas Sarkozy quis quebrar o molde, com uma presidência combativa e irreverente e um estilo que se afastava da figura que tinha o dever de encarnar a grandeza da França. Foi um Presidente de um só mandato. Acabou derrotado por um candidato socialista sem brilho e sem carisma, que chegou ao Eliseu com o propósito expresso de ser um “Presidente normal”. Mudou o estilo, mudaram os rituais, não mudou a sorte. François Hollande cumpriu apenas um mandato, com alguns actos simbólicos para agradar à esquerda mas de muito pouca substância. Não conseguiu reequilibrar a aliança franco-alemã, que está na base da integração europeia. Não conseguiu reformar. O seu “ministro-prodígio” haveria de impedir a sua recandidatura, fundar um partido a partir do zero, avançar para o Eliseu prometendo um “centrismo radical”, sem qualquer cedência à extrema-direita de Marine Le Pen ou à extrema-esquerda de Jean-Luc Mélenchon, destruindo pelo caminho o Partido Socialista e abanando fortemente a direita de Os Republicanos. Tudo em menos de um ano. Macron foi eleito numa onda de euforia. Prometeu uma revolução em França e uma refundação da Europa. Animou os governos europeístas da União Europeia. Berlim saudou-o como a oportunidade de ter finalmente o parceiro que tanto desejava: reformista, aberto e europeu. A boa e velha Europa, amarfanhada pela ascensão dos populismos e dos nacionalismos, dividida pela crise do euro e sobre o seu destino, rejubilou. Emmanuel Macron, 40 anos, intelectual brilhante, Júpiter de regresso ao Eliseu para restaurar o prestígio da França, acaba de descer à Terra. A esperança durou um ano. Não há a menor razão para regozijo. Quando Paris se incendeia, a Europa sofre um abalo profundo. Um desastre político e social em França seria, porventura, um golpe mortal. 3. O alcance europeu da crise francesa é evidente. Macron é o inimigo jurado dos movimentos e dos governos populistas, de Viktor Orbán a Matteo Salvini. Aliás, o próprio nunca enjeitou esse papel. “Macron deixou de ser meu adversário. Deixou de ser um problema meu. É um problema para os franceses”, disse Salvini. A popularidade do líder da Liga e vice-primeiro-ministro de Roma está em alta. A do Presidente francês em queda. Há um ano, a sua juventude e o seu dinamismo eram saudados por banhos de multidão na Europa. Trump é, ele próprio, a voz dos populistas, incluindo de muitos “coletes amarelos”. Disse ele: “Os contribuintes americanos [ao contrário dos franceses] não têm de pagar para limpar a poluição dos outros. ” Antes tinha tweetado que o seu “amigo Macron” já tinha percebido “as razões pelas quais ele se tinha oposto ao Acordo de Paris [sobre o clima]. ” De Moscovo e de Ancara, suprema ironia, chegam os apelos para que a França “se abstenha de qualquer tipo de recurso excessivo à força”. 4. A revolta francesa não vem, como em 2005, dos banlieues das grandes cidades onde vivem várias gerações de imigrantes, muitos de origem magrebina. Não é a revolta dos excluídos ou dos desempregados, como diz o historiador francês Pierre Ronsavallon ao Le Monde. É a dos assalariados de salários modestos, pequenos empreendedores, artesãos e pequenos comerciantes. E de muitas mulheres. Nasce sobretudo numa “pequena classe média” branca, que se viu afectada pelas consequências sociais da globalização, que não vê a imigração com bom olhos, não por uma razão étnica ou religiosa, mas porque teme que ela a substitua nos empregos da indústria, do comércio ou de proximidade. Coincide, em boa parte, com os movimentos populistas que emergiram por quase toda a Europa. São os que ficam para trás, mesmo que vivam razoavelmente, que têm medo do futuro que já tiveram por certo e que hoje têm por incerto. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Sarkozy prometeu melhorar o nível de vida dos “franceses que trabalham”. Hollande prometeu a penalização dos ricos para uma melhor distribuição da riqueza. O imposto sobre as fortunas que decretou não enchia os cofres do Estado, mas tinha um efeito psicológico. Macron aboliu-o, justamente porque era apenas simbólico e afastava o investimento. Não basta dizer que o Presidente francês é arrogante, distante das pessoas, indiferente à realidade em que vivem. A arrogância pode alimentar momentaneamente a cólera e unificar os protestos. Mas há uma diferença: os manifestantes exigem a sua demissão. No primeiro ano de mandato, Macron fez aprovar todas as reformas que prometeu, depois de as negociar com patrões e com sindicatos. A sua ideia era libertar a economia e a sociedade francesa de espartilhos que cerceavam o crescimento e mantinham o desemprego elevado. A contestação nas ruas foi menor do que a que enfrentaram alguns dos seus antecessores quando quiseram mudar alguma coisa. Mas as percepções passaram a contar cada vez mais. De repente, o que muitos franceses viram foi um Presidente que “governa para os ricos”. As redes sociais desempenham o seu papel: dispensam a comunicação social, os partidos políticos, os sindicatos, o poder local, as organizações sociais. “Hoje é a palavra directa que se impõe como forma democrática; mas é, ao mesmo tempo, uma expressão confusa, que dificilmente se unifica e que é extraordinariamente vulnerável às teorias do complot e às fake news”, diz Rosanvallon. Um vídeo de disseminação veloz no Facebook diz que o Pacto Global para as Migrações, que a França se prepara para subscrever, visa “abolir as fronteiras para os imigrantes e promover a mistura racial em proveito de um supergoverno mundial”. “Macron prepara-se para vender a França à ONU e para aceitar a vinda de 480 milhões de imigrantes para a Europa. ” Outros falam de um “governo paralelo” que ninguém vê, ou reivindicam a VI República (uma ideia de Mélenchon), uma democracia directa (como o 5 Estrelas de Di Maio). Outros ainda querem “uma mão de ferro para governar a França”. De novo Rosanvallon: “O termo ‘desigualdade’ não chega para traduzir este enorme passivo social e moral. (…) Esta revolta obriga-nos a olhar para a sociedade com um novo olhar. Precisamos de indicadores de dignidade e de desprezo, de guetização e de afastamento social, de apreensão dos medos e dos fantasmas, para apreender a realidade. ” A heterogeneidade é tanto sociológica como ideológica. Há os activistas e os que os seguem. Mas há também “a câmara de eco e uma câmara de escuta”, muito mais ampla – a que permite que 70% dos franceses apoiem, em maior ou menor grau, esta revolta. O que vem a seguir ninguém sabe. 5. Entretanto, a elite europeia parece anestesiada. Em Bruxelas, os eurocratas preocupam-se com uma situação de excepção que leve Paris a não cumprir as regras do Pacto de Estabilidade. Um amigo contou-me que participou há três dias numa conferência em Bruxelas sobre a “autonomia estratégica” da Europa. O que se passa em Paris não constou de nenhuma das intervenções.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU
Partido Republicano perde domínio do Congresso, mas a "nação Trump" mantém-se firme
O Partido Democrata ganhou a maioria na Câmara dos Representantes e pode agora travar a agenda da Casa Branca e deixar o Presidente em sentido. Mas o Partido Republicano também tem motivos para sorrir. (...)

Partido Republicano perde domínio do Congresso, mas a "nação Trump" mantém-se firme
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.25
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20181231180318/https://www.publico.pt/n1850240
SUMÁRIO: O Partido Democrata ganhou a maioria na Câmara dos Representantes e pode agora travar a agenda da Casa Branca e deixar o Presidente em sentido. Mas o Partido Republicano também tem motivos para sorrir.
TEXTO: Quem ficou acordado na madrugada de quarta-feira à espera de ver uma onda azul do Partido Democrata a engolir o mapa eleitoral dos Estados Unidos, num claro repúdio da presidência de Donald Trump, deve ter sofrido um arrepio na espinha quando percebeu que o resultado final soou mais a um empate do que a outra coisa qualquer. Mas a verdade é que o sistema eleitoral norte-americano não depende de vitórias estrondosas para que haja mudanças profundas. Que o diga Hillary Clinton, que perdeu a corrida à Casa Branca em 2016 apesar de ter recebido mais três milhões de votos do que Donald Trump. E foi isso que aconteceu, mais uma vez, nas eleições de terça-feira. Apesar de o Partido Democrata ter ficado ainda mais fragilizado no Senado, o facto de ter roubado a maioria ao Partido Republicano na Câmara dos Representantes representa uma mudança profunda na forma de se fazer política no país. A partir de Janeiro, e até às eleições presidenciais de 2020, o Partido Democrata terá campo aberto para matar as propostas mais emblemáticas do Partido Republicano e do Presidente Trump à medida que elas forem chegando à câmara baixa do Congresso. Entre elas, a continuação das reformas fiscais defendidas pela Casa Branca – que os críticos dizem ser benéficas apenas para os mais ricos – e as polémicas medidas para limitar a imigração. Por outras palavras, o muro na fronteira com o México – que o Presidente Trump continua a usar nos comícios para agitar a sua base de apoio – caiu mesmo antes de começar a ser construído. Para além disso, a Casa Branca tem agora de se preocupar com um cenário muito mais desfavorável do que quando beneficiava da maioria do Partido Republicano nas duas câmaras do Congresso: com a maioria na Câmara dos Representantes, o Partido Democrata ganha também poderes para intimar o Presidente a revelar as suas declarações de impostos, por exemplo, e para reabrir as investigações sobre a Rússia através das comissões de inquérito. Neste caso, é possível que algumas figuras importantes ligadas à campanha de Donald Trump em 2015 e 2016 sejam intimadas a depor, pela primeira vez, na Comissão de Serviços Secretos da Câmara dos Representantes – um processo que é controlado pelo partido que tem a maioria. E se a principal investigação sobre a Rússia, chefiada pelo procurador especial Robert Mueller, assim o justificar, a maioria do Partido Democrata poderá também lançar um processo de impeachment contra o Presidente Trump. É um jogo arriscado, e muitos responsáveis nos dois partidos lembram o falhanço do impeachment do Presidente Bill Clinton, em 1999, e o triste destino do então presidente da Câmara dos Representantes, o republicano Newt Gingrich. Em vez de conquistar lugares nas eleições de Novembro de 1998 por causa desse processo de impeachment, o Partido Republicano perdeu cinco lugares na Câmara dos Representantes e Gingrich foi forçado a afastar-se da liderança pelos seus pares. Como o processo de impeachment começa na Câmara dos Representantes (com uma maioria simples) mas é julgado no Senado (sendo precisos dois terços para o afastamento do Presidente), o Partido Democrata terá muitas dificuldades para convencer dezenas de senadores do Partido Republicano a destituírem o Presidente Trump. E, mesmo que isso fosse possível, não é claro se interessa ao Partido Democrata que o vice-presidente, Mike Pence, assuma a cadeira principal da Casa Branca e que se apresente em 2020 como o candidato do Partido Republicano nas eleições presidenciais. Ainda assim, poucos dirão que a conquista do poder para lançar o impeachment de Donald Trump é outra coisa que não uma vitória para o Partido Democrata. O mais provável é que a divisão se aprofunde ainda mais e que o processo legislativo fique bloqueado, já que o Partido Democrata consegue impedir que o Partido Republicano aprove as leis que quiser, mas continua a precisar de fazer alianças com os seus adversários no Senado para fazer avançar a sua própria agenda. E o Presidente Trump já avisou o seu partido que espera pagar na mesma moeda uma eventual ofensiva de inquéritos e investigações contra ele na Câmara dos Representantes. "Se os Democratas pensam que vão gastar dinheiro dos contribuintes investigando-nos na Câmara, então nós seremos forçados a investigá-los no Senado por causa de todas as fugas de informação classificada e muitas outras coisas. Ambos podemos jogar este jogo!", disse Trump esta quarta-feira, numa mensagem publicada no Twitter. Mas também é verdade que o Partido Republicano tem razões para sair da noite eleitoral com um sorriso. Ou, pelo menos, pôde adormecer na madrugada de quarta-feira aliviado por não ter sido varrido do mapa – um receio apenas partilhado pelos mais optimistas no Partido Democrata e pelos mais pessimistas no Partido Republicano, já que todas as sondagens apontavam para o resultado que acabou por acontecer. O Partido Republicano só poderia perder a maioria no Senado num cenário de proporções históricas, já que este ano tinha de defender apenas nove dos seus 51 lugares – um capricho do mapa eleitoral, que determina que apenas um terço dos 100 lugares no Senado estão em jogo de dois em dois anos. (Como cada um dos 50 estados elege dois senadores para mandatos de seis anos, foi preciso fazer aquela divisão para que nem todos estejam em campanha ao mesmo tempo. )Do outro lado, o Partido Democrata tinha de manter, este ano, 26 dos seus 49 lugares no Senado e, para além disso, roubar dois dos nove do Partido Republicano. Era muito difícil que isso acontecesse, mas também é verdade que o Partido Democrata não podia ver a sua minoria reduzir-se ainda mais, para se poder apresentar ao país como o grande e único vencedor da noite eleitoral. No final, o Partido Republicano não só manteve a sua maioria de 51 senadores como até deverá reforçá-la para 53 ou 54. E foi este resultado que deu ao Presidente Trump razões para dizer que a noite foi um "tremendo sucesso". Afinal, há décadas que o partido do Presidente não ganhava lugares no Senado em eleições a meio do primeiro mandato na Casa Branca, e este ano o Partido Republicano ganhou pelo menos três ao Partido Democrata – Indiana, Dacota do Norte e Florida. Mas as vitórias nestes três estados também podem ser mais facilmente explicadas do que se tivessem acontecido em estados como a Califórnia, por exemplo. Trump venceu no Indiana, no Dacota do Norte e na Florida em 2016, e cada um destes estados tinha outras particularidades que os deixavam mais vulneráveis a uma reviravolta: o Indiana é o estado do vice-presidente, Mike Pence; no Dacota do Norte, a senadora Heidi Heitkamp, do Partido Democrata, foi penalizada por ter votado contra a nomeação do juiz Brett Kavanaugh para o Supremo Tribunal; e na Florida o senador Bill Nelson teve de enfrentar Rick Scott, o governador do estado. Com este resultado, o Partido Republicano e o Presidente Trump ficam com uma margem ainda mais confortável para nomear e confirmar juízes para os vários tribunais federais e para o Supremo Tribunal. Mesmo que não se abra nenhuma vaga entre os quatro juízes mais à esquerda nos dois próximos anos, é possível que um dos cinco juízes mais à direita, como Clarence Thomas, se reforme dando lugar a uma escolha ainda mais à direita – fala-se de Amy Coney Barrett, uma juíza de apenas 46 anos filiada no grupo anti-aborto Faculty for Life. Mas a forma como ambos os partidos garantiram as suas vitórias na Câmara dos Representantes e no Senado também pode lançar pistas para as eleições no país nas próximas décadas. Por um lado, a forma como o Partido Democrata conquistou a maioria na Câmara dos Representantes mostra que o partido está cada vez mais a garantir um ascendente nos subúrbios das grandes cidades, muito graças ao forte aumento da participação das mulheres brancas com estudos superiores – zonas e eleitorados que em tempos davam vitórias ao Partido Republicano. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Por seu lado, o Partido Republicano mostra que a sua linha de defesa nas zonas rurais manteve-se sólida, apesar de muitos candidatos do Partido Democrata terem mantido os seus lugares em estados do Midwest. Ou seja, o Partido Republicano tem um ascendente em zonas que estão a perder habitantes e em eleitorados menos diversificados, num país cada vez mais diversificado; e não provou que as vitórias à tangente de Donald Trump na Pensilvânia, no Wisconsin e no Michigan, em 2016, podem ser facilmente repetidas em 2020. E há outro resultado das eleições de terça-feira que pode vir a beneficiar o Partido Democrata a partir de 2020. Na Florida, foi aprovada uma proposta que devolve o direito ao voto aos antigos reclusos – uma população estimada em 1, 4 milhões de pessoas, excluindo os condenados por homicídio ou crimes sexuais. Num estado que decidiu as eleições presidenciais em 2000, após uma série de recontagens de votos entre George W. Bush e Al Gore que deu a vitória ao candidato do Partido Republicano, e em que quase todas as eleições se decidem por margens curtas, a entrada de centenas de milhares de novos eleitores nas eleições de 2020 – a maioria negros – pode mudar esse cenário.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave aborto homicídio imigração campo tribunal minoria mulheres
Contratos a termo, a nova realidade do mercado de trabalho português?
Dez anos depois da crise, o mercado de trabalho português é uma ferida ainda aberta. (...)

Contratos a termo, a nova realidade do mercado de trabalho português?
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.136
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Dez anos depois da crise, o mercado de trabalho português é uma ferida ainda aberta.
TEXTO: A OCDE prevê um abrandamento económico global, explicando que este ciclo de expansão já atingiu o limite. Em Portugal, prevê-se um crescimento de 2, 1% em 2019 e 1, 9% em 2020, depois de um crescimento de 2, 2% este ano. Contudo, o desemprego vai continuar a baixar, e depois de uma média anual de 7, 1%, prevê-se ser de 6, 4% em 2019 e 5, 7% em 2020. O aumento do emprego é um dos principais objetivos 2020 da União Europeia e, em 2017, 73, 4% dos portugueses entre os 20 e os 64 anos já estava empregado, cada vez mais perto da meta dos 75%. Mas a descida do desemprego em Portugal esconde uma realidade de precariedade, que afeta principalmente os jovens e as mulheres. Em 2008, a taxa de emprego na Europa foi de 70, 3%, superior ao ano precedente, mas começou a descer até atingir 68, 4% em 2013, afetando principalmente os grupos etários entre os 15 e os 24 anos, homens, trabalhadores temporários e imigrantes. A crise do subprime sentiu-se mais nos países onde a legislação de proteção do emprego era mais forte, nomeadamente nos países “sob stress” [1]. Verificava-se na Europa uma “dualidade” nessa legislação, caracterizada por maior fragilidade dos contratos temporários. Um estudo conduzido pelo BCE mostrou que políticas laborais implementadas principalmente nos países sob stress entre 2011 e 2013 facilitaram os despedimentos e flexibilizaram os horários de trabalho. No caso português, foram aplicadas medidas como a redução da indemnização em situações de despedimentos, assim como a diminuição dos salários. Entre dezembro de 2014 e dezembro de 2015, em Portugal, os contratos a termo cresceram 6, 66%, contra um aumento de apenas 2, 08% nos contratos permanentes, criando uma maior instabilidade e aumentando a probabilidade de cair no desemprego. Em 2017, segundo o Eurostat, 18, 5% dos trabalhadores dos 20 aos 64 anos estavam em situação de contrato a termo, bastante acima da média dos 11, 3% e 12, 7% da UE e da Zona Euro, respetivamente. Contudo, em 2006, antes da crise, este número já era de 15, 7% no nosso país. De facto, segundo o INE, a proporção de contratos a termo já tinha aumentado 5, 5 pontos percentuais entre 1998 e 2008. Recorde-se que esse tipo de contrato tinha sido flexibilizado em 2003 no Código de Trabalho através do prolongamento do seu limite temporal, mas a revisão feita em 2009 reverteu essa alteração. Os trabalhadores com contrato a termo foram também os mais afetados do ponto de vista salarial e, por isso, são mais expostos ao risco de pobreza, representando o seu salário hoje apenas 72% do daqueles em situação de contrato permanente, segundo o Observatório das Desigualdades. A crise de 2008 revelou, assim, a vulnerabilidade dos trabalhadores com contratos a termo, mas a recuperação económica não foi acompanhada por uma descida da precariedade laboral. É certo que as políticas implementadas foram uma das causas, mas o Observatório das Crises apontou que a dinamização económica, que afetou principalmente serviços ligados ao turismo caracterizados por menores níveis de qualificação, também contribuiu para a já apontada flexibilização do mercado de trabalho. Os jovens têm sido particularmente afetados, revelando o Eurostat que, em 2017, enquanto que a média europeia era de 41, 3%, 63, 2% dos trabalhadores portugueses entre os 15 e os 24 anos estava em situação de contrato a termo. Também as mulheres mostram níveis de precariedade contratual elevada, até porque são mais expostas ao trabalho a tempo parcial. Em 2017, Portugal é o sétimo país europeu com mais trabalho a tempo parcial involuntário, constituindo 47, 5% do total dos empregados a tempo parcial. Mais uma vez, a subida do emprego não foi acompanhada por medidas que assegurassem a sua qualidade e respondessem adequadamente à oferta de trabalho existente. É verdade que os contratos a termo constituem um instrumento da vida empresarial, principalmente na fase inicial mas não só, necessários para eventos tão simples como a substituição de um trabalhador ausente ou no caso de um acréscimo excepcional das atividades, e portanto não deixam de ter um papel importante na nossa economia. Mas é igualmente fundamental que o uso dos mesmos responda sempre às necessidades da empresa. Os contratos não permanentes também podem ser uma solução ao desemprego de longa duração, mas que será sempre temporária, não devendo ser renovada vezes sem conta. Dez anos depois da crise, o mercado de trabalho português é uma ferida ainda aberta. O perfil contratual do emprego é uma das causas da precariedade, que deixa muitos portugueses empregados numa situação de grande insegurança e vulnerabilidade aos choques económicos. É certo que já se deram alguns passos com vista a melhorar o emprego, nomeadamente no combate à utilização indevida de contratos de prestações de serviços, mas o abrandamento do crescimento que se prevê nos próximos anos exige medidas eficazes, de criação de trabalho menos precário, para resolver um problema com que o país já se confronta há duas décadas. A autora escreve segundo o novo Acordo OrtográficoVox Nova é uma parceria entre o PÚBLICO e o Nova Economics Club, o grupo de estudantes de Economia da Nova School of Business and Economics. Um membro deste grupo escreve quinzenalmenteSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. [1] Países sob stress: a Grécia, a Irlanda, a Eslovénia, Itália, o Chipre, Portugal e Espanha.
REFERÊNCIAS:
Entidades UE OCDE