Para tirar a Andaluzia ao PSOE, PP e Cidadãos distribuem cargos. Até pelo Vox
Liberais ficam com a chefia do parlamento e populares com a presidência da Junta – detida pelos socialistas há quatro décadas. Acordo à direita inclui oferta de cargos na mesa da assembleia a todos os partidos, incluindo a extrema-direita. (...)

Para tirar a Andaluzia ao PSOE, PP e Cidadãos distribuem cargos. Até pelo Vox
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Liberais ficam com a chefia do parlamento e populares com a presidência da Junta – detida pelos socialistas há quatro décadas. Acordo à direita inclui oferta de cargos na mesa da assembleia a todos os partidos, incluindo a extrema-direita.
TEXTO: Partido Popular (PP) e Cidadãos anunciaram esta quarta-feira ter chegado a um compromisso para pôr um ponto final em 36 anos de governação ininterrupta do Partido Socialista (PSOE) na Andaluzia. O segundo e o terceiro partidos mais votados nas eleições do início do mês acordaram que caberá aos Cidadãos assumir a presidência da mesa do parlamento e ao PP ficar com a presidência da Junta da mais populosa comunidade autónoma de Espanha. A solução terá a bênção do Vox, o primeiro partido de extrema-direita a entrar num parlamento autonómico espanhol, a quem foi oferecido um cargo na mesa do parlamento – o órgão responsável pela definição, calendarização e controlo dos trabalhos na assembleia andaluz, à volta do qual se centraram nos últimos dias as negociações entre partidos. O PSOE foi o vais votado das eleições autonómicas (33 deputados), seguido por PP (26), Cidadãos (21), Adelante Andalucía (17) – uma coligação de esquerda que inclui o Podemos – e Vox (12). A proposta dos populares e dos liberais para alcançar os 55 votos necessários para a maioria, essenciais para impedir a renovação do mandato da socialista Susana Díaz, investir um novo presidente da Junta e aprovar a nova composição da mesa, passa pela distribuição de pelouros, neste último órgão, por todos os partidos. Para além de presentear o Cidadãos com a liderança da mesa, o plano prevê a distribuição das suas vice-presidências por PP, PSOE e Adelante Andalucía e das secretarias por PSOE, PP e Vox. E confirma a opção dos partidos de direita de não erguer um cordão sanitário para afastar a extrema-direita do diálogo e dos cargos políticos. Até porque sem os 12 deputados do Vox, será praticamente impossível a PP e Cidadãos conseguirem uma maioria – teriam de virar-se para a esquerda em busca de votos. O Vox logrou entrar na arena política espanhola sem apresentar uma única proposta para a Andaluzia. Em vez disso, divulgou um programa de “100 medidas urgentes para Espanha”, que abarca, entre outras propostas, a supressão dos poderes autonómicos, a deportação imediata de todos os imigrantes ilegais, a revogação da lei sobre a violência de género ou o fim do imposto sucessório. “A proposta garante que toda a gente fica representada na mesa do parlamento, com voz e voto, em conformidade com os resultados das eleições andaluzes”, justificou Juan Marín, cabeça-de-lista do Cidadãos nas eleições, na linha do líder do partido Albert Rivera, que já tinha defendido ser “irresponsável descartar seja quem for” das negociações, incluindo o Vox. Em conferência de imprensa, Marín sublinhou que o pacto com o PP, tornado público esta quarta-feira, “não é sobre o presidente” da Junta, mas apenas sobre a mesa. Porém, afiançou que o Cidadãos não será “um obstáculo” à investidura de um presidente popular. E deixou uma certeza: “Haverá governo de mudança. E o PSOE vai para a oposição”. Pouco depois destas palavras, o próprio Juan Manuel Moreno, candidato do PP ao cargo de Susana Díaz – que também se vai apresentar à investidura – assumiu: “É mais do que previsível que o próximo presidente da Junta seja eu”. Moreno e Marín pretendem agendar o debate de investidura para o dia 16 de Janeiro do próximo ano e esperam apresentar a composição do governo “cinco ou seis dias antes” dessa data. Fontes dos dois partidos disseram ao El País que as negociações sobre o executivo “estão muito avançadas”, mesmo não tendo arrancado “oficialmente”. Até porque na terça-feira foi divulgado um programa de governo conjunto, assente em 90 medidas que, de acordo com Rivera, “desmantelarão a rede clientelar montada pelo PSOE durante 40 anos”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “É o projecto reformista mais ambicioso nesta terra deste a transição democrática [pós-1975]. Espero que os restantes partidos estejam à altura dos andaluzes e não bloqueiem a legislatura”, escreveu o líder do Cidadãos no Twitter. A resposta do PSOE foi célere e de olhos postos na ‘aliança’ com a extrema-direita. “Esse acordo só é possível com os votos do Vox. Sem a extrema-direita não têm governo. Porque é que o esconde? Envergonha-o?”, questionou Susana Díaz na mesma rede social.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave lei violência comunidade social género deportação
Cidadãos garante presidência do parlamento andaluz com a ajuda da extrema-direita
Marta Bosquet foi eleita presidente do parlamento da região autonómica, com os votos do PP e do Vox, no primeiro passo para a tomada da Andaluzia ao PSOE. Extrema-direita terá um lugar na mesa. (...)

Cidadãos garante presidência do parlamento andaluz com a ajuda da extrema-direita
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.080
DATA: 2018-12-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Marta Bosquet foi eleita presidente do parlamento da região autonómica, com os votos do PP e do Vox, no primeiro passo para a tomada da Andaluzia ao PSOE. Extrema-direita terá um lugar na mesa.
TEXTO: Os partidos da direita deram esta quinta-feira o primeiro passo para tirar a Andaluzia das mãos do Partido Socialista (PSOE), ao unir forças para eleger Marta Bosquet para a presidência do parlamento da região autonómica espanhola, controlada pelos socialistas há 36 anos. A deputada do Cidadãos contou com o apoio do Partido Popular (PP) e do Vox para dirigir a mesa, que terá um membro da extrema-direita como secretário. O passo seguinte é a formação de um governo liderado pelo PP. Segundo e terceiro classificados nas eleições regionais do dia 2 de Dezembro, ganhas pelo PSOE, populares e liberais já tinha anunciado na véspera ter chegado a acordo para dar a mesa ao Cidadãos e a presidência da Junta ao PP. Um compromisso que só seria possível com o apoio do Vox, o primeiro partido de extrema-direita a entrar num parlamento autonómico em Espanha. Juntos, PP (26 deputados), Cidadãos (21) e Vox (12) somam 59 lugares – quatro acima da maioria –, precisamente o número de votos que Bosquet obteve na eleição desta quinta-feira, na inauguração da legislatura no parlamento em Sevilha, contra Inmaculada Nieto, a deputada da coligação de esquerda Adelante Andalucía (17), que recebeu o apoio do PSOE (33). A estratégia dos principais partidos à direita para afastar os socialistas e a presidente cessante Susana Díaz dos dois principais órgãos de poder na região, passou por uma proposta que, entre vice-presidências e secretarias, oferecesse a cada uma das formações políticas eleitas um lugar na mesa do parlamento – o órgão responsável pela definição e controlo dos trabalhos. O Vox aceitou e o deputado Manuel Gaviria foi eleito terceiro secretário da mesa, convertendo-se no primeiro membro da força de extrema-direita a deter um cargo institucional em Espanha. Um triunfo histórico para o partido que defende a supressão dos poderes autonómicos, a deportação de todos os imigrantes ilegais e a revogação da lei sobre a violência de género, e que elegeu 12 deputados sem apresentar uma única medida para a Andaluzia – divulgou apenas um programa de “100 medidas urgentes para Espanha”. Por outro lado, a Adelante Andalucía rejeitou a oferta do eixo Cidadãos-PP e não apresentou qualquer candidato à mesa. Ao fazê-lo, a coligação que integra o Podemos e a Esquerda Unida quis tornar ainda mais evidente que o plano dos partidos à direita só foi possível graças ao conluio com a Vox. “Por coerência não participamos em alianças entre as direitas e as extremas-direitas andaluzas. Têm de apresentar-se como são: uma aliança tripla. E nós seremos a sua oposição mais firme durante os próximos quatro anos”, justificou Teresa Rodríguez, coordenador do Podemos na Andaluzia, citada pelo site Publico. es. Estratégia semelhante foi adoptada pelo PSOE, quando optou por não apresentar ninguém para competir com Bosquet pela presidência do parlamento. Até porque, mesmo sem os 55 votos necessários para o efeito, os socialistas vão propor a investidura em Susana Díaz e forçar os partidos à direita a terem de depender, novamente, do apoio da extrema-direita. Que já anunciou que não facilitará o processo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Não nos sentimos responsáveis nem obrigados pelos acordos que tenham sido alcançados PP e Cidadãos. As negociações [para a formação do governo] serão claras, transparentes e leais, mas também serão difíceis, porque queremos tratar de muitos temas”, afiançou o secretário-geral do Vox Javier Ortega, citado pelo El País, sem revelar, no entanto, se vão ser exigidas mudanças ao programa de governo conjunto revelado na terça-feira pelos dois partidos. A votação do presidente da Junta da Andaluzia deverá acontecer em meados de Janeiro e terá, quase seguramente, como candidatos, a actual presidente socialista e Juan Manuel Moreno, do PP. “É mais do que previsível que o próximo presidente da Junta seja eu”, afirmou na quarta-feira o dirigente popular.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave lei violência género deportação
Entre a calma de Beja e a busca de um sonho
Futura doutorada em Ciências Musicais troca a terra onde nasceu por Lisboa, enquanto uma jovem minhota se fixou na cidade alentejana pela qualidade de vida de que passou a desfrutar. (...)

Entre a calma de Beja e a busca de um sonho
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.300
DATA: 2018-12-29 | Jornal Público
SUMÁRIO: Futura doutorada em Ciências Musicais troca a terra onde nasceu por Lisboa, enquanto uma jovem minhota se fixou na cidade alentejana pela qualidade de vida de que passou a desfrutar.
TEXTO: Este é o terceiro de uma série de artigos sobre pessoas que chegaram e saíram de cidades portuguesas durante o ano de 2018. Acompanhe o dossier O que chega e o que vai. Marina Lima é funcionária forense num escritório de solicitador na cidade de Beja. Nasceu em Póvoa de Lanhoso, há 33 anos, terra que testemunhou a revolução da Maria da Fonte, efeméride que a jovem vinda do Minho realça com orgulho, cerrando os punhos. Quanto a semelhanças entre as duas terras, apenas o facto de ambas terem orgulho no seu castelo medieval. E já agora no foral que D. Manuel I, filho de Beja, atribuiu aos dois concelhos. Um “acidente de percurso, fruto do acaso” transportou Marina Lima até Beja. Ficou uns tempos para conhecer a cidade com as suas características peculiares e acabou bafejada pela sorte. Conseguiu um emprego que a radica no Alentejo, mas no seu horizonte permanece a vontade de um dia, não sabe quando, poder regressar às suas raízes. Chegam uns, partem outros. Isabel Pina tem 26 anos e já não preserva o sotaque cheio de gerúndios. Depois de ter aprendido o bê-à-bá da linguagem das fusas e semifusas, no Conservatório Regional de Música do Baixo Alentejo, rumou a Lisboa para prosseguir o seu percurso académico em Ciências Musicais na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Nova de Lisboa. “Agora, estou afecta à universidade por três anos [até obter o doutoramento]”, assinala. É bolseira, carreira que “infelizmente não é reconhecida e está marcada pela precariedade”. Guarda de Beja, sobretudo, a memória dos amigos de escola, que o sentimento gregário cimentou, ainda mais, quando foi necessário superar o infortúnio de uma colega do secundário com uma doença grave. “A coesão então posta à prova vai manter-se por toda a vida”, acredita Isabel Pina. A incerteza que marca o seu futuro, para além do percurso académico, leva-a a considerar a possibilidade de partir para outro país, se a oportunidade surgir, apesar de “gostar muito de Lisboa”. Regressar a Beja não está nos seus planos de vida. A jovem que veio do Minho não aparenta preocupação em relação ao seu futuro profissional na cidade alentejana. Já granjeou amigos no desempenho da sua profissão. “Atende-nos sempre com um sorriso nos lábios”, confessa quem encara a Justiça como um “papão insensível e castigador” e encontra em Marina apenas afabilidade. Outro testemunho realça a “simpatia e o tom de voz que tranquiliza”. Mas ainda lança alguma confusão quando atende uma chamada telefónica. Por vezes, as pessoas julgam ter-se enganado na marcação do número. O sotaque não bate certo. “De certeza que estou a ligar para Beja?” é pergunta que persiste, mas que Marina supera recorrendo ao humor. De início, tornava-se complicado lidar com as diferenças que há entre a mentalidade nortenha e a alentejana: “Foi um choque, mas habituei-me. Hoje, tenho amigos fantásticos e sinto que estou integrada. ”Também Isabel Pina, que os amigos tratam por “Isa”, não teve problemas de integração. Quando decidiu viver em Lisboa, sabia que podia contar com familiares que residiam na capital, pormenor que ajudou a criar um grupo de amigos. “Com eles convivo, janto, danço e vou a festas e concertos. ” Há ainda o grupo de Beja que nas vésperas de Natal se reúne em Lisboa ou na terra natal para fazer o balanço do ano que termina. Chegam de todo o lado. É o Nuno, que vem da Arábia Saudita, onde aprofunda os seus conhecimentos em Matemática, o Gaspar, que dá um salto da Holanda, onde estagia na Agência Espacial Europeia, a Adriana, que frequenta em Londres o mestrado em Física de partículas, o Carlos, que terminou o mestrado em Ciências da Comunicação, e a Teresa, que optou por Engenharia do Ambiente em Lisboa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. É também no Natal que Marina se reencontra com a família e os amigos em Póvoa de Lanhoso. “Agora está tudo bem, mas no início a família tinha dificuldade em perceber como é que eu tinha optado por trabalhar tão longe. ” Hoje reconhecem que Beja “é uma cidade calma, que dá qualidade de vida e onde não se é atormentado pelo stress das cidades grandes. ” Mas como o sossego não é tudo, Marina admite que sente a “falta de muita coisa”, sem especificar, para não ferir susceptibilidades. Beja, que continua a ser terra de partida de alentejanos para a emigração, é, em simultâneo, ponto de chegada para dezenas de milhares de homens e mulheres vindos sobretudo do centro da Europa, da Península do Indostão (Índia, Paquistão e Nepal) e da região subsariana. Vêm substituir a mão-de-obra que a região não disponibiliza por duas razões: o declínio demográfico e a recusa em aceitar relações laborais baseadas no trabalho sem direitos. A Associação Solidariedade Imigrante tem uma estimativa: na campanha de recolha de azeitona que está a decorrer no Alentejo, sobretudo nos olivais do Alqueva, estarão a trabalhar quase 30 mil imigrantes.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos homens escola filho doença mulheres imigrante
Genocídio: Os yazidis querem ter futuro
Povo de uma religião milenar concentrado no Iraque, os yazidis já são menos de 800 mil. Há séculos que são perseguidos por radicais, poucos com a eficácia do Daesh. Waad tem 13 anos e não sabe se a sua comunidade vai sobreviver. (...)

Genocídio: Os yazidis querem ter futuro
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-29 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20181229194123/https://www.publico.pt/n1754841
SUMÁRIO: Povo de uma religião milenar concentrado no Iraque, os yazidis já são menos de 800 mil. Há séculos que são perseguidos por radicais, poucos com a eficácia do Daesh. Waad tem 13 anos e não sabe se a sua comunidade vai sobreviver.
TEXTO: Os yazidis são um grupo religioso com milhares de anos, há séculos concentrado no Norte do Iraque. A sorte ditou que se reunissem ali, na região de dezenas de etnias e confissões. É por causa dos yazidis – e dos católicos caldeus, dos cristãos coptas, dos mandeus e dos curdos e dos muçulmanos, dos árabes e dos turquemenos, dos sunitas e dos xiitas – que o Iraque é o que é. Os radicais sempre olharam de lado para os yazidis, etnicamente curdos (consideram-se os primeiros curdos; os curdos vêem-nos como uma minoria religiosa da sua comunidade) e com ritos que envolvem dar nós em tiras de cetim e pedir desejos, como hereges. Diferentes e, por isso, assustadores. Basta visitar o Monte Sinjar ou Lalish, o principal santuário dos yadizis, para perceber que os yazidis não metem medo a ninguém. Lamiya al-Bashar Taha e Nadia Murad, que acabam de receber o Prémio Sakharov 2016 para a Liberdade de Pensamento (atribuído pelo Parlamento Europeu), são doces e frágeis. Vestidas de blusa e saia preta, meias da mesma cor, parecem ainda mais magras. Lamiya passou quase dois anos nas garras do Daesh e dos homens a quem os jihadistas a venderam como escrava sexual. Fugiu quatro vezes e foi sempre capturada. Na fuga final, em Março, uma mina desfigurou-lhe o rosto. Tem 18 anos. Nadia tem 23 e conseguiu fugir três meses depois da captura. “Quando eles chegaram separaram as mulheres mais velhas, que decidiram que não serviam, e mataram-nas. Mataram a minha mãe”, contou no discurso de aceitação do Prémio Nadia, que lidera uma campanha para que os crimes dos extremistas contra os yazidis sejam considerados um genocídio. “As valas comuns estão todas lá, à espera que alguém chegue para recolher os restos e contar as vítimas”, diz Nadia, exausta, numa conversa em Estrasburgo, onde ambas se desdobraram em entrevistas. Foram as duas levadas no mesmo dia: 3 de Agosto de 2014, quando o Daesh entrou na sua aldeia, Kocho, depois de ter vindo da Síria para tomar largas zonas do Norte do Iraque. Foi nesse dia que tudo começou. “Foi horrível perceber que os nossos vizinhos, que sempre tinham convivido connosco, foram os primeiros a atacar-nos. Mataram muitos dos nossos homens. Precisamos de ajuda para voltar a confiar”, diz Lamiya. Lamiya esteve em Lisboa em Junho, muito pouco depois de ter sido levada para a Alemanha pelo psiquiatra Mirza Dinnaye, que dirige um programa com a região alemã de Baden-Württemberg que já permitiu que 1100 yazidis fizessem a mesma viagem. “Tivemos muita sorte”, diz Nadia. Nos campos, no Curdistão iraquiano, as sobreviventes como elas não têm a psicoterapia e o apoio que elas encontraram na Europa. No início do Verão, Lamiya era um destroço, mal via do olho esquerdo, que agora recuperou (a vista direita estava perdida), parecia temer cada gesto e cada passo. Não era a mesma menina que levou dezenas de eurodeputados às lágrimas na terça-feira, com um discurso emocionante e político. “Agora não penso nisso, mas sim, ainda quero ser professora”, responde, quando o PÚBLICO lhe pergunta se mantém a vontade de ensinar. “Quando era pequena queria ser professora de História. Mas também pensava em abrir um salão de beleza para maquilhar como hobby”, diz a bonita Nadia, rosto quase vazio e tez especialmente branca do cansaço e da dureza de estar sempre a reviver. O cansaço de ambas é difícil de descrever – os yazidis, como os católicos e os muçulmanos, jejuam; calha que o façam três dias em Dezembro; calha que esses dias tenham coincidido com o Prémio. É preciso ir ao passado para as forçar a falar do que pode ser o futuro. Se lhes perguntamos sobre a Alemanha ou um futuro na Europa, se não puderem voltar a casa, a resposta é sempre comunitária. “Não consigo pensar só na minha vida na Alemanha. Eu e a Lamiya não somos só nós. O problema não é nosso como indivíduos mas de toda a comunidade, o problema são as milhares de mulheres e meninas raptadas [mais de 3500 ainda], os sobreviventes e os yazidis no Iraque, com medo de serem mortos. ”Estima-se que haja ainda perto de 500 mil yazidis no Iraque; ao todo, os yazidis são menos de 800 mil – há comunidades na Síria, Arménia, Geórgia e Turquia, de onde muitos emigraram para a Alemanha, como o médico Mirza. “A nossa religião está em perigo se não protegermos estas pessoas. O problema é de toda a comunidade e nós temos de viver com esse problema. Esse é o nosso futuro agora”, afirma Nadia, que antes do Sakharov recebeu o Prémio Vaclav Havel, foi nomeada embaixadora da Boa Vontade da ONU e nomeada para o Nobel da Paz. A União Europeia ainda não reconheceu o genocídio, mas o Parlamento Europeu pediu aos estados-membros para o fazerem em Fevereiro. Esta quinta-feira, o PE vai votar “uma resolução onde se pede financiamento para uma missão de recolha de provas e outras medidas para acelerar o processo”, explica Ulrike Lunacek, eurodeputada dos Verdes austríacos e vice-presidente responsável pela Rede Sakharov. As Nações Unidas já reconhecem os crimes do Daesh como “tentativa de genocídio”. Os yazidis querem o que sempre quiseram, viver em paz entre os outros. Por vizinhança e sobrevivência, os foram assimilando rituais de outros. Têm um Génesis e ritos que já ninguém sabe dizer que vinham de antes. O que os yazidis sabem é que foi por volta do século XVI que começaram a ser considerados “adoradores do diabo”. Sinjar e Lalish, no Curdistão iraquiano, o extremo norte do país, são as duas zonas de maior concentração yazidi. Sinjar foi a região atacada pelo Daesh em 2014, quando 50 mil chegaram a estar escondidos nas montanhas. Lalish é a Meca dos yazidis, um templo feito de vários tempos; ali perto, na vila de Sariqani, vive o Baba Sheikh, o líder espiritual, que aconselha e abençoa. Os yazidis têm sete anjos – um com cara de pavão, é o mais importante, chama-se Melek Taus ou Shaytan, e é a ele que rezam cinco vezes ao dia – e fontes e túmulos de profetas e velas que têm de ser acesas antes do pôr-do-sol; assim, o sol, que é sagrado (como a água, a terra e o ar), é celebrado todos os dias. Em Lalish, há duas fontes, a Qania, onde se baptizam, e a Zamzam, como a de Meca. À direita da entrada principal do templo maior há uma serpente que os yazidis acreditam ter sido usada por Noé para tapar o buraco da arca. Na tradição local, Sinjar é onde a Arca de Noé pousou, depois do dilúvio; para os yazidis, o mundo nasceu em Lalish, logo a seguir. Os yazidis têm rituais diferentes para dias diferentes mas a quarta-feira, dia em que falámos com Lamiya e Nadia, é o dia sagrado da semana. Lalish, que se deve percorrer descalço, tem seis torres – vistas de cima, formam o sol, a terra e a lua. Ninguém se pode converter ao yazidismo, nasce-se yazidi e morre-se yazidi, façam os radicais do Daesh o que fizerem. Os yazidis casam entre si, quando há problemas o Baba Sheikh arbitra. Se as famílias são contra um casamento, o Baba Sheikh tenta perceber se os jovens gostam um do outro. “Se estão apaixonados digo-lhes para fugir”, contou ao PÚBLICO em 2010, na casa onde ainda vive. Os yazidis têm padres a quem chamam piers e cozem ovos que pintam com cores porque acreditam que a vida vem toda de um ovo. Em 2013, uns sete mil morreram, 5000 foram sequestrados. Em Agosto de 2007, ainda não havia Daesh, camiões explodiram perto de Lalish e mataram entre 500 e 800 yazidis. “O Iraque pode continuar a existir mas vai ser outro país, sob controlo do Daesh. Mas não vai ser o mesmo sem os yazidis, sem os cristãos, as outras minorias e muitos muçulmanos que não apoiam o Daesh”, diz Nadia, com Lamiya a acenar que “sim”. Antes da entrevista, estavam as duas a falar com uma televisão, o pequeno Waad, 13 anos mas corpinho de menos, cabelo muito ruivo e pestanas castanhas que brilham quando ele fecha os olhos, sentou-se no lugar delas. “O teu cabelo tem uma cor bonita. Pintas?”“Não, é mesmo assim. ”“O que é que vais fazer na Alemanha?”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Vou para escola. ”Waad é o irmão mais novo de Lamiya. Reencontraram-se na segunda-feira, aqui mesmo. Waad esteve refém do Daesh até um tio o comprar de volta. Passou o último ano e meio num campo no Iraque. O pai foi morto e a mãe está desaparecida, assim como quatro irmãs. Duas irmãs já vivem com Lamiya. “Não sei o que pode mudar. Já muitos parlamentos de muitos países reconheceram o genocídio, Reino Unido, Canadá, França, mesmo a ONU, mas nada mudou em termos práticos”, lamenta Nadia. “A realidade do nosso povo é igual. Ainda não há futuro para nós. ”
REFERÊNCIAS:
A enfermeira revolucionária “expulsa” de Portugal e aclamada no Reino Unido
Sílvia Nunes licenciou-se em Portugal, mas nunca encontrou emprego no seu país. No Reino Unido, está nomeada para dois prémios profissionais. As críticas, mágoas e elogios da enfermeira que tinha “medo” do ofício. (...)

A enfermeira revolucionária “expulsa” de Portugal e aclamada no Reino Unido
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sílvia Nunes licenciou-se em Portugal, mas nunca encontrou emprego no seu país. No Reino Unido, está nomeada para dois prémios profissionais. As críticas, mágoas e elogios da enfermeira que tinha “medo” do ofício.
TEXTO: Na hora da despedida, a boleia até ao aeroporto não costuma ser encargo da família. É uma espécie de pacto de não-agressão, drible a choradeiras mais demoradas. Desta vez aconteceu a excepção: a mãe, a irmã e as três sobrinhas ficaram em Vila do Conde, mas o pai conduziu até ao aeroporto Francisco Sá Carneiro, traje de homem forte da casa vestido. Dentro de poucas horas, Sílvia Nunes apanhará o avião low cost que a leva de volta ao Reino Unido, onde vive desde Agosto de 2014. Mas antes do embarque há ainda uma entrevista para dar, a fechar umas mini-férias agitadas por uma notícia feliz: pelo segundo ano consecutivo, a enfermeira de 33 anos está nomeada para o prémio de melhor profissional de cuidados de longa duração do Reino Unido e integra ainda a lista dos melhores da região leste de Inglaterra. A partida tem, ainda assim, sabor agridoce. Portugal é família, Inglaterra a vida arrumada. Portugal foi rejeição, Inglaterra reconhecimento. “Não era nada disto que eu queria”, nota entre o lamento e o conformismo quando questionada sobre a condição de emigrante. Mas enquanto a enfermagem não estiver nas prioridades do Serviço Nacional de Saúde, voltar é uma impossibilidade. Quando era menina, Sílvia sentia “medo” de qualquer profissão relacionada com saúde. Concluiu o secundário num curso profissional, convencida de que era “um pouco preguiçosa para o estudo”, e nada fazia prever uma viragem. Aconteceu com a entrada nos Bombeiros Voluntários de Vila do Conde. Queria desafiar-se a si mesma, a mãe antevia uma desistência rápida. Mas ela foi ficando. Fez cursos, conheceu hospitais, unidades de cuidados paliativos. Viu sofrimento e o bálsamo para ele. O “bichinho” foi ganhando espaço — e o “medo” de criança caiu de vez em 2009, ao entrar no curso de Enfermagem na Escola Superior de Saúde do Vale do Ave, em Famalicão. A licenciatura revelou-se a confirmação do “caminho certo”. O fim dos estudos, a declaração de um percurso difícil. Sílvia entregou currículos em clínicas, hospitais, unidades de cuidados continuados. Nas entrevistas de emprego apontaram a falta de experiência como justificação das respostas negativas. Na maior parte dos casos, nem resposta tinha. “Fiquei triste”, admite a enfermeira ao recordar aquele período. “Via colegas com três e quatro empregos e eu não tinha nenhum”, comenta para logo deixar no ar uma possível explicação: “Provavelmente um emprego não chega para pagar as contas. É preciso discutir isto. ”Isto é um cenário sem espaço para optimismos: muitos jovens formados todos os anos e sem local de trabalho, precariedade, gente tratada como “máquinas”, poucos enfermeiros para muito serviço, a qualidade dos cuidados em causa, um grande desgaste físico e psicológico, a não revisão da carreira. Motivos para as greves que se têm verificado, para um novo período de protesto marcado a partir de 8 de Novembro. Ainda há dias, um colega de Sílvia lhe enviava uma mensagem a queixar-se de falta de reconhecimento das chefias. Sempre que conversa com quem resiste em Portugal, parece-lhe que está a assistir a um filme de narrativa incoerente: “Não percebo por que não ouvem os profissionais. Se for despedida ou não tiver emprego, todo um sistema se desmorona, toda a família, as ligações com outras. Não estão a ver a fotografia alargada. ”O descontentamento foi empurrão para a decisão de Sílvia. Em Agosto de 2014 comunicou ao namorado, agora marido, a decisão: ia mudar-se para casa da futura sogra, em Thetford, cidade a 140 quilómetros a nordeste de Londres, e procurar emprego por lá. Sem garantias, com um baixo domínio da língua. Disposta a virar a vida do avesso para lhe encontrar o lado certo. “Cheguei a procurar emprego como empregada de limpeza. Podia ir ganhando alguma coisa e melhorar o meu inglês”, divulga. Não precisou. Um dia, uma conhecida falou-lhe de uma vaga como auxiliar no lar onde trabalhava e Sílvia agarrou a oportunidade. “Fui aprendendo a falar e a escrever. Apontava, perguntava o nome das coisas. Ia ao Google Tradutor. Toda a gente me ajudou. Em casa, via televisão local, lia jornais e revistas”, conta, dizendo que nem com o Brexit o apoio se abalou. Esperou dez meses pelo PIN, cartão profissional que lhe permitia trabalhar como enfermeira no Reino Unido. De auxiliar passou a enfermeira, depois a directora clínica, a vice-directora. No lar Ford Place, onde está agora, conquistou colegas e residentes. E isso conduziu-a à nomeação para os dois prémios que a tornam notícia por estes dias, cujos resultados serão conhecidos durante o mês de Novembro. Sílvia Nunes, crente no poder do elogio, sorri. O reconhecimento é importante, consente, sobretudo quando as distinções vêm sem avisos e preparativos prévios. “Nem sabia que havia estes prémios quando comecei, já trabalhava assim”, graceja. Os National Care Awards distinguem anualmente os melhores profissionais do Reino Unido. Na categoria Care Registered Nurse, onde a portuguesa está nomeada, reconhecem-se enfermeiros com excelentes qualidades clínicas e de gestão e especial cuidado com os doentes. O documento da nomeação da vilacondense — seleccionada por chefes, colegas e idosos do lar Ford Place — merece honras de caixilho. Palavra a um dos residentes: “Quando está a trabalhar, a Sílvia faz-nos sentir a pessoa mais importante da vida. Nunca nos faz sentir que está com pressa, mesmo quando quer correr para casa. Sinto que posso ser honesta com ela sobre o que sinto porque ela compreende-me. ” Testemunho de um colega: “A Sílvia apoia-nos sempre. Pergunta como nos sentimos e sinto que posso falar com ela de forma confidencial se for preciso. ” Avaliação da directora Alison Charlesworth: “Consegue um balanço óptimo entre o seu papel de enfermeira e de vice-directora. É solidária, cheia de iniciativas e ideias, com um sorriso capaz de iluminar a casa. É uma alegria trabalhar com o entusiasmo, compaixão e empatia dela. ”Há acções específicas a sublinhar. A enfermeira aplicou mudanças na nutrição, reforçando os lacticínios, fruta e mel para compensar cortes no financiamento público dos suplementos alimentares. A alguns residentes mudou a alimentação e medicação para melhorar o seu bem-estar e controlar o aumento de peso. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Sílvia não se sente “melhor do que ninguém” — só gostava que também em Portugal os colegas pudessem ter os mesmos incentivos. O que podemos aprender com o Reino Unido? “A respeitar a enfermagem”, contesta sem qualquer hesitação. No seu lar em Thetford, há dois enfermeiros a trabalhar durante o dia, de forma permanente, um presente toda a noite. E esse quadro, lamenta, é algo demasiado distante para a maioria dos lares portugueses. “Cá não me candidatei a lares porque não concordava com a forma como trabalhavam. Os enfermeiros entram e saem, não ficam. Quando andava nos bombeiros ia muitas vezes buscar pessoas aos lares e só me apetecia trazer aquelas pessoas para minha casa”, diz a jovem, agora a estudar para ser directora de lares. “Sou um bocadinho revolucionária”, aponta para logo fechar o assunto: “Aquilo não era para mim. ”A separação da família ainda mói. Durante anos, os pais estiveram emigrados em Angola, Sílvia e a irmã em Portugal. E quando se reformaram e voltaram a casa, ela emigrou. “É óbvio que custa. ”Para enganar a saudade, há o Skype e o telemóvel, um voo de apenas duas horas marcado umas quatro vezes por ano, às vezes viagens de carro de dois dias. E em Thetford, uma casa já feita lar, com gatos e tudo. “Gostava de abrir um lar cá, com uma unidade de cuidados paliativos com as regras de lá”, diz quando o assunto são os sonhos. Para já, Sílvia sabe que é desejo nas nuvens, inalcançável. Mas mesmo sem vislumbrar mudanças breves, não deixa fugir a visão de um país com todo o potencial. Só falta mudar o chip.
REFERÊNCIAS:
O teatro de Jean Bellorini não tem de brilhar menos do que a feira popular
Liliom — Vida e Morte de um Vagabundo é a estreia em Portugal de uma das imaginações mais férteis do teatro francês. Jean Bellorini encena a vida no subúrbio como uma pista de carrinhos de choque: difícil, para não dizermos impossível, sair-se daqui ileso. (...)

O teatro de Jean Bellorini não tem de brilhar menos do que a feira popular
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.377
DATA: 2018-07-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Liliom — Vida e Morte de um Vagabundo é a estreia em Portugal de uma das imaginações mais férteis do teatro francês. Jean Bellorini encena a vida no subúrbio como uma pista de carrinhos de choque: difícil, para não dizermos impossível, sair-se daqui ileso.
TEXTO: Na noite em que estreou o seu primeiro espectáculo como director de um dos maiores teatros da periferia suburbana de Paris, o Théâtre Gérard-Philippe, em Saint-Denis (35, 6% de imigrantes, 18, 1% de magrebinos), Jean Bellorini montou “uma verdadeira feira popular” à porta: bolas de sabão, algodão doce, carrinhos de choque. Eis como abrir uma temporada (e um mandato) com uma metáfora explícita: o teatro, sobretudo o teatro de uma cidade onde se ouvem “70 a 90 línguas diferentes” só no trajecto a pé entre a saída do metro e a bilheteira, como aquele que dirige desde 2014, há-de ser esse lugar onde “todas as classes sociais se encontram”. No mínimo, tem de facto sido o lugar onde este encenador nascido em Paris em 1981, filho de uma médica de clínica geral e de um cardiologista, se vem encontrando com uma criada com hora marcada para voltar a casa dos patrões pela porta de serviço e um aspirante a gangster que por enquanto é só o melhor a anunciar mais uma corrida, mais uma viagem aos microfones de um carrossel dos arrabaldes de Budapeste circa 1909. Encenação:Jean Bellorini Texto:Ferenc MolnárDura há 12 anos, esse encontro. Liliom — Vida e Morte de um Vagabundo, o espectáculo deste 35. º Festival de Almada que finalmente faz chegar o fulgurante teatro de Jean Bellorini a Portugal (segunda-feira, dia 9, às 21h e terça-feira, dia 10, às 19h, na sala principal do Teatro Municipal Joaquim Benite), foi a peça que montou da primeira vez que teve à sua frente um grupo de miúdos de um curso de teatro, e não consegue parar de lá voltar (o grupo de miúdos, aliás, também lhe ficou no sangue: são a sua família de actores até hoje, a família Air de Lune). Na altura, tinha uma memória adolescente deste texto do dramaturgo húngaro e depois argumentista americano Ferenc Molnár (Budapeste, 1878-Nova Iorque, 1952), uma memória que vinha de outra feira popular, o cinema — não a memória mais comum, a do filme de Fritz Lang (1934), outra mais antiga ainda, e que para ele brilha ainda mais no escuro, a da versão original de Frank Borzage (1930). Tantos anos depois desse primeiro embate, tem dificuldade em perceber o que é que nesta sua terceira encenação de Liliom (além da que fez em 2006 para esse curso de teatro, houve outra determinante, em 2013, a convite do Printemps des Comédiens, de Montpellier, que a Air de Lune instalou num espaço “do tamanho de dois campos de futebol”) é herança “consciente ou inconsciente” desses filmes, mas, diz ao Ípsilon num café de Paris, há “uma iconografia”. “Esta dimensão onírica, e até um pouco fora de moda, como a luz incerta dos candeeiros a gás, seguramente vem daí. Pensas no filme do Fritz Lang e vem-te à cabeça o polícia com aquelas asinhas de anjo: os meus detectives, os terrestres e os celestes, transportam essa poesia naïve tão bonita quanto inusitada. Sendo o Liliom um brutamontes, não é nada evidente que nesses filmes ele apareça como um anjo — e por influência deles ou não, o actor que fui buscar, o Julien [Bouanich], faz o tipo do loirinho ingénuo. Como um Pierrot, no fundo. ”Quando o virmos aparecer de peito feito, toda a garganta do mundo, três mulheres aos pés, a lábia de um fura-vidas pós-graduado em esquemas, na pista de carrinhos de choque que por estes dias há-de roubar o palco em Almada — uma pista verdadeira, com carrinhos de choque verdadeiros, que Jean Bellorini alugou a uma família de feirantes —, talvez não vejamos imediatamente o lado bom deste delinquente que prefere roubar porque os sonhos que tem não se realizam com um salário de porteiro e que bate na rapariga que engravidou porque alguma coisa nele se parte, e isso dói como o corte profundo de uma ponta-e-mola, quando vê alguém chorar. Mas o lado bom existe, diz o encenador: “O Liliom é exactamente a tensão, o estilhaçamento, a fractura, entre alguém que quer fazer pela vida mas não resiste às piores tentações e aquele pequeno anjo perdido. Aquele bandido, aquela pestezinha nervosa, e ao mesmo tempo a doçura. Um ser humano que nasceu fundamentalmente bom, só que foi posto num ambiente atroz — enfim, Rousseau. ”Ferenc Molnár recria esse “ambiente atroz” para depois poder redimir (ou tentar redimir) o seu protagonista. Esta peça sobre vidas proletárias do princípio do século passado — vidas de criadas e feirantes, vigaristas de bairro e assalariados crónicos que só muito superficialmente Jean Bellorini inscreve nos dias de hoje, efeito do guarda-roupa, porque para ele o teatro não tem um tempo, ou, melhor, “tem o seu próprio tempo” — é fundamentalmente uma peça sobre segundas oportunidades (e teremos de falar com Jean Bellorini sobre isso, sobre como o teatro opera o milagre da transformação). Liliom terá a sua, caída do céu 16 anos depois de se suicidar ao ver fracassado o golpe definitivo, aquele com que ia ganhar o dinheiro da passagem para a América. Mas isso é muito depois da noite em que Julie, ainda sem um bebé na barriga, lhe jura coisas à luz da roda gigante. E em que mesmo vendo que a roda não pára de girar, inexorável como a passagem do tempo, fatal como o destino, ele lhe responde: “Sabes, mesmo um vagabundo pode tornar-se alguém. ”As luzes da pista de carrinhos de choque e da roda gigante brilham tanto que às vezes ofuscam tudo, até a violência terminal dos gestos sem perdão e das palavras atiradas à cara como cuspe. Mas para Jean Bellorini não há razão para que o teatro não possa brilhar com potência igual — e muito melhor música. A metáfora operativa da feira popular que lhe foi tão útil para se apresentar em Saint-Denis continua a servir-lhe para explicar o que entende que deve ser o teatro: o lugar do impossível, do fantasioso, do espectacular: “Hoje em dia faz-se imenso teatro com quase nada e isso é excelente, mas também são necessárias as grandes formas. Este espectáculo é emblemático do teatro que eu quero fazer: uma história simples, numa forma espectacular”, resume. Na verdade, a metáfora vem da anterior encarnação que Liliom teve em Montpellier, quando Bellorini teve a ideia “completamente idiota, ou pelo menos um pouco louca”, de pedir ao director do festival para instalar no enorme pinhal do Domaine d’O uma feira popular funcional que servisse como antecâmara do espectáculo, montado nas traseiras. “Os espectadores passavam por lá antes de entrar, e a feira popular permanecia ao longo do espectáculo como uma espécie de memória de uma vida paralela. No dia da desmontagem, quando retirámos os carrosséis, uns objectos lindos, disse aos feirantes: ‘Se remontasse o espectáculo em sala, o cenário seria isto’. Seis meses depois estava a ser convidado para dirigir o Théâtre Gérard-Philippe, e foi mesmo. ”Na transposição, a pista de carrinhos de choque que em Montpellier era apenas “o lugar onde os actores faziam o aquecimento e repetiam o texto antes de entrarem em cena” transformou-se no cenário do espectáculo. “O texto é exactamente isso, pessoas que se procuram, que se amam, mas que se batem: era uma metáfora muito simples mas ao mesmo tempo absolutamente justa”, diz Bellorini. “E então”, conta, “liguei ao proprietário, um feirante que herdou a pista do pai dele (é mesmo um objecto de família dos anos 60), e aluguei-lha”. Foi “verdadeiramente um encontro”: “Como a peça tem circulado imenso, esta família viu-se obrigada a andar sempre connosco; no processo, um dos dois filhos do casal passou a fazer teatro, chamei-o para o meu Karamazov. Mas voltando a Liliom: foi divertido fazer um espectáculo que fala daquele mundo com as pessoas verdadeiras. Nisso não fizemos batota. ”Também não foi batota transpor para o coração suburbano de Saint-Denis esta “lenda de subúrbio em sete quadros”, como lhe chamou o autor em subtítulo: “Simbolicamente, correspondia ao lugar. E é uma peça acessível, o que era crucial: à minha chegada, tinha de fazer um espectáculo que pudesse ser compreendido e recebido por toda a gente. O Liliom é um espectáculo muito popular no bom sentido do termo. ” Um termo — “popular, não populista” — que lhe parece “fundamental defender”: “Um teatro popular é um teatro legível a vários níveis, um teatro onde todas as camadas da sociedade se possam encontrar, um teatro para todos. O que não significa que os espectáculos mais elitistas não possam ter aí um lugar: acredito no choque artístico. ” É a experiência de Jean Bellorini, uma experiência concreta: “Quando fui nomeado para Saint-Denis, e me empurravam no sentido contrário, com o argumento de que tinha de me dirigir às comunidades que moram ali, contar a história da colonização francesa, etc. reivindiquei o direito a fazer ópera, a fazer grandes formas, a fazer coisas que a priori estão distantes desses espectadores, para inventar a partir daí uma comunhão, no sentido cívico da palavra. Certamente que o teatro deve ser um espelho do mundo, e permitir que nos reconheçamos no palco, mas também podemos reconhecer-nos no que é maior do que nós. Acho que é aliás aí que o teatro se torna catártico. ”Mas não emana só do palco, desse lugar “em que os bons podem ser maus e os maus podem ser bons” (“e experimentar isso muda uma pessoa”, garante), o milagre da transformação em que Jean Bellorini também acredita: “Amo a ideia, mas amo-a profundamente, de o espectador sentado ao nosso lado no início de um espectáculo deixar de ser um estranho para, quando as luzes voltam a acender-se, passar a ser alguém com quem partilhámos qualquer coisa. ”Talvez para se proteger, ou para nos proteger a nós, espectadores, da desilusão que parasita a ilusão, Jean Bellorini põe o mestre de cerimónias de Liliom a anunciar, logo ao primeiro minuto, que “isto é teatro”, mantra que se vai repetindo implicitamente até ao fim. Não para evitar a suspensão da descrença, porque no limite vê o palco como o lugar onde “nos contam histórias”, mas para que, juntos, “tomemos como ponto de partida este código: era uma vez”. Trata-se mais de “reafirmar a narração” do que de “tentar esquecer”, diz: “Na verdade, acho que o teatro é aquilo em que aceitamos acreditar juntos, actores e espectadores, não o que vemos ou o que nos mostram… Nesta peça há toda uma maquinaria que induz imagens, mas o que verdadeiramente me importa é o que isso produz intimamente e de maneira invisível: a grande magia do teatro é sobretudo imaginária. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para chegar a essa magia, na sua maneira de fazer, a música é um atalho especialmente importante. Normalmente, um espectáculo de Jean Bellorini começa com um encontro da família Air de Lune em que pode não haver nada na manga, nem sequer um texto — mas a música chega sempre cedo, é uma certeza. “É frequente eu conduzir os ensaios atrás de um piano, a tocar… o meu primeiro gesto de encenação é encontrar um canto colectivo que nos faça começar. No caso de Liliom, ficou, é o início da peça, o aquecimento. Mas acontece servir apenas como ferramenta para encontrarmos uma tonalidade comum a partir da qual começamos a dizer o texto, e ficar implícita, como batimento cardíaco do espectáculo: uma música que não se ouve mas que as personagens têm na cabeça, o seu sopro interior. ”A de Liliom ouve-se sempre. Tanto para o suicida 16. 673 como para quem está só de fora a vê-lo voltar a falhar, mas a falhar pior, é impossível sair dela ileso. O Ípsilon viajou a convite do Festival de Almada
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Palavras-chave morte violência filho adolescente espécie mulheres rapariga salário
V.S. Naipaul, o Nobel da Literatura que queria "entender o mundo como ele é"
O escritor tinha 85 anos. (...)

V.S. Naipaul, o Nobel da Literatura que queria "entender o mundo como ele é"
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: O escritor tinha 85 anos.
TEXTO: O escritor britânico Vidiadhar Surajprasad Naipaul, vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 2001, morreu este sábado, na sua casa em Londres. Tinha 85 anos. A notícia foi avançada pela família, em comunicado. "Era um gigante em tudo o que o fazia e morreu rodeado dos que amou”, anunciou Nadira Naipaul, mulher do escritor, citada pelo britânico Guardian. Vidiadhar Surajprasad Naipaul (que usava "V. S. " para assinar todos os seus livros) nasceu no dia 17 de Agosto de 1932, na ilha de Trindade (Antilhas), no seio de uma família de imigrantes indianos. Com 18 anos partiu para Inglaterra para continuar os estudos no Queens Royal College, antes de ingressar em Oxford para estudar Literatura Inglesa. Depois de Oxford, trabalhou como jornalista na BBC. Foi aí que começou a escrever o seu primeiro livro, The Mystic Masseur (1957), publicado quando o escritor tinha apenas 25 anos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Em cinco décadas de actividade, Vidiadhar Surajprasad Naipaul foi autor de mais de 30 livros: desde novelas cómicas passadas na Trindade e Tobago natal, a memórias, diários de viagens e ensaios. Crítico acérrimo do colonialismo, descreveu, nos seus livros, os países que ia conhecendo. Percorreu todo o mundo (Índia, Antilhas, América Latina, África e Oriente) e procurou compreendê-lo "como ele é". E as experiências ficariam imortalizadas nos seus livros, entre os quais Guerrillas (1975), A Curva do Rio (1979), O Enigma da Chegada (1987), Para Além da Crença (1981), India: A Million Mutinies Now (1990) e A Way in the World (1994) e Uma Vida pela Metade (do ano em que foi premiado com o Nobel) são algumas das suas obras maiores. Armado cavaleiro pela rainha Isabel II em 1989, viria a ser distinguido com o Nobel da Literatura doze anos depois, em 2001. Na atribuição do galardão, a Academia das Ciências Sueca salientou a capacidade de união entre a "narrativa perceptiva e uma descrição pormenorizada incorruptível" do autor em trabalhos "que nos compelem a ver a presença de histórias reprimidas". Em 2016, o escritor esteve no Folio - Festival Literário Internacional de Óbidos para uma apresentação. Seria a última em território português. Paulo Moura, jornalista do PÚBLICO, esteve presente e relatou que o escritor “chegou a Óbidos de cadeira de rodas, e, mal começou a falar, suscitou logo, na audiência que enchia o recinto, suspiros ambíguos, entre a indignação e a troça. Talvez estivesse já demasiado cansado”. Mas não era o caso — quando questionado se pensava continuar a escrever, Naipaul foi peremptório: “Mais do que nunca”. “Porque sinto que me empurram para o repouso, para uma atitude de não fazer nada, como se já tivesse escrito tudo. Mas eu sinto uma preocupação constante. Sinto que tenho de escrever mais e mais. E outra vez, e outra vez. É terrível. ”
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Palavras-chave mulher rainha
Este corpo é nosso
Um desempregado tenta o regresso ao mundo do trabalho. O mercado cobra-lhe, quer controlar o seu espírito. Vincent Lindon – actor que dá o seu corpo, as suas dificuldades e reservas, entrega-se e resiste – tem a sua moral. Um dos filmes do ano, A Lei do Mercado. (...)

Este corpo é nosso
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um desempregado tenta o regresso ao mundo do trabalho. O mercado cobra-lhe, quer controlar o seu espírito. Vincent Lindon – actor que dá o seu corpo, as suas dificuldades e reservas, entrega-se e resiste – tem a sua moral. Um dos filmes do ano, A Lei do Mercado.
TEXTO: Stéphane Brizé não gosta do título em inglês de A Lei do Mercado/La Loi du Marché. Chama-se The Measure of a Man/A Medida de Um Homem. Explica porquê (adiantamos já que não concordamos nada): “A Lei do Mercado é um título melhor, porque também ressoa como A Lei da Selva, pelo menos em francês. Quando se falou na tradução em inglês surgiu Market Forces, mas disseram-me que era demasiado económico. Também me propuseram Dog Eats Dog. Preferiam um título que fosse mais ligado a um homem. Em muitos países traduziram a partir do título inglês encontrado, The Measure of a Man. Mas acho que empobrece. Não sei o que é ‘a medida de um homem’. Não iria ver um filme com esse título. ”Discordamos: iríamos. Fomos. Quem viu A Lei do Mercado/La Loi du Marché viu também “a medida de um homem”. Esse título dá, mais do que o original, a dimensão moral de Vincent Lindon — como em alguns corpos dos westerns, e aliás podia ser o título de um filme de Budd Boetticher. É a moral de um corpo porque a disponibilidade de Vincent Lindon, como naqueles actores de uma tradição mais antiga e que actualmente é pouco francesa, é dar o físico, as suas dificuldades e reservas, entregar-se e ser invadido. Resistir. É esta a história de A Lei do Mercado: o conflito pela ocupação do corpo e da mente de Thierry Taugourdeau/Lindon. E é por esta forma íntima de sondar as mensagens que emitem os corpos — veja-se aquela sequência de dança em que ensinam Thierry a dançar, e como ela, aparentemente alegre e generosa, pode ressoar a algo de violento — que nada neste filme sobre um desempregado que tenta regressar ao trabalho é reduzido à retórica do cinema social. (Estamos a pensar na vertente Dardenne, os belgas Jean-Pierre e Luc, que fizeram com Marion Cotillard um simplório action movie moral, Dois Dias, Uma Noite, 2014. ) A Lei do Mercado é um filme social, mas foi sujeito a um processo de decantação. Como seria um “filme social” realizado pelo Anthony Mann dos westerns desencantados?Desempregado, na idade em que se complica de forma irreversível o regresso ao mercado, na idade em que a falta de emprego é o desapossamento de tudo, é a anulação, Thierry inicia cursos de formação, de aconselhamento profissional. Finalmente, é integrado numa empresa: vigilante num hipermercado, controla os gestos e delitos dos clientes. No processo para aí chegar, para ser seleccionado, já se iniciara a tentativa da sua despersonalização — já era ele próprio que estava a ser controlado. Já se iniciara o trabalho de invasão sobre um corpo e um espírito. Primeiro subtilmente ocupado, por fim praticamente violado. Terceira colaboração de Stéphane Brizé com o actor, depois de Mademoiselle Chambon (2009) e de Quelques heures de printemps (2012), é o resultado apurado do encontro entre dois homens de mundos diferentes, o realizador Brizé e o actor Lindon, que se descobriram numa mesma forma de se construírem com as suas falhas. O passo dado do habitat íntimo, sentimental, dos dois filmes anteriores para as “leis do mercado” é, em si, a exposição e violentação de um corpo, das suas dificuldades, reservas. O íntimo e sentimental torna-se público e político. E é política de actor. Se o filme é uma decantação do “cinema social”, também é uma síntese da “persona” Lindon: o caos, a desordem do mundo — como em La Moustache (2005), de Emmanuel Carrère, em que Lindon sentia o reconhecimento ausentar-se, de forma assustadora, a partir do momento em que cortava o bigode — e o melancólico heroísmo de títulos como Welcome (2009), de Philippe Lioret (em que, professor de natação, ajudava um imigrante curdo a atravessar o canal de França para Inglaterra) ou Les Salauds, de Claire Denis (em que, marinheiro, vinha de longe, como um vingador, para resolver o problema dos seus: era a sua família que estava em causa e pagava com o corpo). Sacrifício e erotização: o corpo não escapa nem a uma coisa nem a outra, filmado por homens ou por mulheres. Terceira colaboração de Stéphane Brizé com o actor, depois de Mademoiselle Chambon (2009) e de Quelques heures de printemps (2012), é o resultado apurado do encontro entre dois homens de mundos diferente que se descobriram numa mesma forma de se construírem com as suas falhas. O passo dado do habitat íntimo, sentimental, dos dois filmes anteriores para as “leis do mercado” é a exposição e violentação de um corpo, das suas dificuldades, reservas. O íntimo e sentimental torna-se público e político“Esta história cresceu com a leitura dos jornais e reportagens que nos falam de uma tragédia, o desemprego, que é aceite por todos, especialistas, economistas, que dizem que isto é normal”, conta Brizé. “Não me parece que seja normal. Deram as chaves dos países aos bancos. Ora o interesse dos bancos não é o dos cidadãos. Os cidadãos passaram a dar conta aos bancos das suas próprias perdas e os bancos vão ganhar ainda mais dinheiro e limpar as pessoas dos seus próprios bens. No momento em que escrevi esta história, não conhecia pessoas que tinham vivido isto. Quando filmei, encontrei pessoas e escolhi-as para interpretar as personagens para que o seu social fosse para além do cliché no filme, para captar o real. Discuti muito com profissionais que me descreveram os mecanismos, e projectei, claro, algo de íntimo. Thierry [a personagem que interpreta Lindon], sou eu. Escrevo sempre projectando-me. E escolhi o nome da personagem a partir de alguém que eu conhecia, eu conhecia um Thierry. Peguei apenas no nome, só isso. . . Um dia depois do filme feito, encontrei de novo Thierry. Tinha sido despedido. E começou a ter vida igual à do filme. ” Foi por aqui, pela verificação do caos do mundo, que começámos esta conversa com Brizé sobre um dos grandes filmes do ano. Depois dos seus dois filmes anteriores, Mademoiselle Chambon (2009), história de uma relação amorosa que quebra uma estabilidade conjugal e profissional, e de Quelques heures de printemps (2012), sobre a difícil coabitação entre um filho e a mãe que tem um tumor cerebral, A Lei do Mercado faz figura de declaração, de afirmação: sair da intimidade, do espaço interior dos sentimentos, que era o habitat dos outros filmes, quebrar com isso alguma coisa. O que se passou no seu percurso, ou seja, de onde vem A Lei do Mercado?Senti a necessidade absoluta, neste momento da minha vida, de me confrontar com o caos do mundo e de observar o laço entre o íntimo e o social. Abriu-se espaço em mim que me permitiu sair da minha personagem principal, da sua nevrose pessoal, para a colocar em relação com o exterior. O que nos leva a Vincent Lindon, que era já o intérprete dos outros filmes: as suas dificuldades em verbalizar, os gestos — tudo o que nos filmes anteriores era uma reserva da personagem — permitem aqui um acréscimo de ressonâncias. O que era pessoal, íntimo, vibra agora, com a exposição de Lindon ao social, com uma dimensão política. Fale-me dessa utilização da “persona” Lindon neste novo contexto, mais aberto e mais violento. . . Neste filme a violência vem do exterior, do social, enquanto em Quelques heures de printemps a violência era íntima — quer do lado da personagem interpretada por Lindon, quer do lado da mãe. Aqui Lindon confronta-se com a instituição. Tenta fazer-se compreender, ouvir, exprimir o seu ponto de vista. Não é uma disfunção íntima que faz aqui progredir a história mas uma disfunção social. Mas se o contexto destes filmes são diferentes, eles são igualmente violentos. Só que aqui a personagem não tem de dar contas das suas próprias disfunções. É um homem de rectidão, vertical, que querem colocar de joelhos. Vincent Lindon é todos estes homens: honesto, recto, doce e violento ao mesmo tempo. E era interessante observá-lo já não em dificuldades em relação a si mesmo mas em relação ao mundo que o rodeia. A ficção permite-me decidir sobre o ponto de partida e o ponto de chegada e a minha necessidade de realismo permite-me alimentar essa ficção de verdade. A ficção dá-me também acesso a espaços aos quais eu não teria acesso com o documentário. Há lugares (a cama, por exemplo) onde o documentário não pode entrar. Tem limites. Eu quero entrar em todo o ladoHá uma sequência em que alguém tenta ensinar Lindon a dançar, como mover o corpo. Tem o ar de experiência calorosa, mas há também algo de violentação ali: como se alguém quisesse tomar o controlo daquele corpo. É esse, afinal, o tema do filme, é tudo o que se passa nele: o controlo do corpo e do espírito de alguém. É interessante essa interpretação que faz dessa cena e a conclusão a que chega é justa: efectivamente este filme fala da vontade de uma estrutura de assumir o controlo sobre o corpo e o espírito de um homem. Mas se se pode ler isso na cena da aula de dança, a verdade é que não a filmei com essa intenção. A minha intenção era mais simples: mostrar a ligação de um casal. Este homem e esta mulher têm 50 anos, têm um filho de 18, ou seja, estão há muito juntos. E quando os vejo a terem aulas de dança juntos, vejo uma conjugalidade viva, um casal que se ama, um homem e uma mulher que têm vontade de estar juntos. Com uma única cena mostro a força da sua ligação. Vincent Lindon é um “profissional”. Contracena no filme com “amadores”. Mas a verdade é que o poder está com os segundos, são eles que controlam — pelas personagens que interpretam, pelo papel na narrativa — a informação, o acesso às palavras. É muito interessante — porque muito verdadeira — esta inversão de poderes. Como chegou aí, como manteve o “profissional” na situação mais frágil? Havia pedaços de argumento ou diálogos que Vincent ignorava e os outros actores sabiam?Fala com propriedade da linguagem. Isso é o que é mais complicado de filmar em cinema, a linguagem de uma função. Uma profissão é uma forma de ligação ao mundo, uma linguagem, uma forma de ser, uma energia, e é tremendamente complicado reproduzir isso com os actores — porque é difícil contornar os clichés que podemos ter em relação a uma profissão. Ao procurar actores não profissionais que não interpretavam o seu papel íntimo, mas, na maioria dos casos, a sua própria função social, eu levava também uma linguagem para o plateau. Logo, uma verdade. Quanto a Vincent, ele estava mais fragilizado porque, ao contrário de uma rodagem clássica em que um actor aprende o seu texto, havia ali apenas informações que lhe diziam respeito mas não um texto preciso. E ele estava sempre perante alguém que conhecia perfeitamente os mecanismos e as estratégias da situação. Isso criava um desequilíbrio extremamente precioso para conseguir fazer surgir o máximo de verdade. Realização:Stéphane Brizé Actor(es):Vincent Lindon, Karine de Mirbeck, Matthieu SchallerHá qualquer coisa nele de antigo — penso nos actores do cinema clássico americano que falavam com os gestos ou com a sua reserva mas não com as palavras. Como Jimmy Stewart ou Gary Cooper nas suas versões mais sombrias em alguns westerns, por exemplo. Que “modelo” de actor é este no actual contexto do cinema francês?O cinema francês tem a imagem de um cinema da palavra. Não era assim há algumas décadas com actores como Jean Gabin ou Lino Ventura. Mas a nouvelle vague trouxe o verbo, ao mesmo tempo que fez soprar um vento de liberdade sobre este cinema que em França chamavam “cinema de papa”. E o verbo tornou-se o epicentro do nosso cinema e fez surgir uma geração de actores. Alguns deles maravilhosos, como Mathieu Amalric, por exemplo. Dou muitas vezes este exemplo, porque ele nasceu com Arnaud Desplechin, realizador que coloca a palavra no centro da sua dramaturgia. Vincent Lindon escapa estranhamente a esse sistema. E a sua carreira construiu-se e desenvolveu-se ao mesmo tempo que um tipo diferente de actores emergia e se impunha também. Acabou por conquistar um lugar essencial. Penso também que Vincent representa todos os homens. Ele é viril, tem um corpo sólido, mas não tem medo de mostrar as suas falhas. Está a meio caminho entre os antigos e os modernos. Entre os que não diziam nada e os que falam em demasia. Quem é Lindon no seu cinema? Um duplo? Um veículo? A vossa colaboração alimenta-se de quê? De amizade, de cumplicidade? Vêm de mundos diferentes. Qual foi o ponto de intercepção? Qual é o contacto e como é que as coisas se passam durante o processo criativo?Quando começo a escrever, a personagem que vai aparecer, homem ou mulher, sou eu. Construo a partir das minhas próprias falhas. E tive um encontro maravilhoso com este actor que, se vem de um mundo bem diferente do meu — vem de um meio muito burguês —, estruturou-se em redor das mesmas dúvidas que eu. E consegue reencarnar com uma força incrível trabalhadores e operários. Acho que é a pessoa que melhor faz esse tipo de homem de 45-50 anos sobre o qual tenho escrito. Demo-nos conta que nos fomos construindo sobre as mesmas falhas e problemas, somos homens que se parecem e que reagem da mesma maneira. As nossas cóleras, as nossas alegrias, as nossas penas, ecoam. Eu diria que Vincent Lindon é aquele que faz melhor de Stéphane Brizé no ecrã. A Lei do Mercado é uma ficção. Porque é que não é um documentário? O que ganhou com a ficção?O que me interessa é recriar o real dominando os contornos da história. A ficção permite-me decidir sobre o ponto de partida e o ponto de chegada e a minha necessidade de realismo permite-me alimentar essa ficção de verdade. A ficção dá-me também acesso a espaços aos quais eu não teria acesso com o documentário. Há lugares (a cama, por exemplo) onde o documentário não pode entrar. Tem limites. Eu quero entrar em todo o lado. Penso também que Vincent representa todos os homens. Ele é viril, tem um corpo sólido, mas não tem medo de mostrar as suas falhas. Está a meio caminho entre os antigos e os modernos. Entre os [actores] que não diziam nada e os que falam em demasiaUtiliza como actores pessoas que pertencem ao mundo descrito no filme. Deve haver uma série de sobreposiçõs, jogos de ironia, como se fosse a história privada, secreta, do próprio filme. Conte algo dela. Como aconteceu o casting? A proximidade a um mundo específico era condição?O director do hipermercado no filme, por exemplo, não é director de hipermercado na vida real. Dirige uma empresa que nada tem que ver com as grandes superfícies. Mas o director do hipermercado onde rodámos A Lei do Mercado interpreta no filme a personagem do homem que quer comprar a casa-caravana. Ele não queria interpretar a personagem do director do hipermercado, porque percebeu logo que o filme ia ser hiper-realista e não quis sofrer represálias, não quis que o desprezassem por causa disso. Ele não estava muito à vontade com aquela história da personagem da empregada que se suicida, para ele isso seria um pesadelo, não quis interpretar esse papel. Na vida real esse homem é um militante a criar no quotidiano condições de trabalho correctas, por isso não fazia sentido para ele mostrar-se num papel que podia atrair algum desprezo sobre a sua própria pessoa. Arranjei-lhe então outro papel: era divertido vê-lo discutir o preço a pagar por uma casa-caravana, porque ele é um comerciante, domina perfeitamente a argumentação nesse tipo de situações. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O casting processou-se da mesma maneira que um casting clássico. Só que não nos dirigimos a agentes de actores, mas propusemos a zés-ninguém que fizessem ensaios. É espantoso ver a capacidade de algumas pessoas de serem justas em frente a uma câmara e utilizei essa rara particularidade para alimentar o meu filme de realismo. Com excepção dessa história que contei sobre o verdadeiro director de hipermercado que não quis interpretar esse papel para evitar confusões, na verdade toda a gente interpreta o seu próprio papel, ou melhor, utiliza a sua própria personalidade numa situação imaginária — o que não é a mesma coisa. O cinema passou a ser algo de diferente para o realizador Stéphane Brizé?A Lei do Mercado e sobretudo a maneira como o realizei, com equipa ligeira, permitiu-me adaptar o utensílio cinema à minha mão. Foi um alucinante sentimento de ligeireza a que tive acesso [pequena equipa e orçamento, realizador e actor prescindiram dos salários em favor de uma participação nos lucros para a equipa ser paga com dignidade, sem argumento, sem maquilhadora, sem iluminação]. Acabei de adaptar o primeiro romance de Guy de Maupassant, Une Vie. Nada que ver com as temáticas, mas impus a este filme de época a mesma, ou quase a mesma, ligeireza de A Lei do Mercado: poucos técnicos, rodagem com a câmara ao ombro, sem projectores no plateau. Essa ligeireza permite-me procurar, testar, enganar-me, fazer, refazer antes de encontrar.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens lei violência filho mulher homem social medo mulheres corpo desemprego imigrante
Teletrabalho: incentivar a natalidade à distância
Qualquer estratégia que vise incentivar a natalidade terá de considerar questões de flexibilidade laboral e de equidade entre géneros. (...)

Teletrabalho: incentivar a natalidade à distância
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-27 | Jornal Público
SUMÁRIO: Qualquer estratégia que vise incentivar a natalidade terá de considerar questões de flexibilidade laboral e de equidade entre géneros.
TEXTO: No mais recente inquérito à fecundidade realizado em Portugal (2013), os níveis de fecundidade desejada (que remetem para o desejo intimo de cada pessoa, dissociado de quaisquer constrangimentos) corresponderam a 2, 29 filhos, para as mulheres entre os 18 e os 49 anos, e a 2, 32 para os homens entre os 18 e os 54 anos – uma média de 2, 31 filhos no global. Se estes números traduzissem a realidade, Portugal não seria um dos países mais envelhecidos da Europa, com uma população simultaneamente a envelhecer e a decrescer. De acordo com os dados mais recentes do Eurostat (2016), verificou-se uma média de 1, 36 nascimentos por cada mulher em idade fértil (em cerca de cinco décadas o número de nascimentos em Portugal caiu para menos de metade) – apenas Espanha e Itália apresentaram uma taxa inferior (1, 34%). Estes dados, quando conjugados com o aumento da esperança média de vida e a elevada emigração, resultam em cada vez mais idosos e cada vez menos crianças e jovens. Por sua vez, uma população envelhecida coloca desafios enormes à sociedade, nomeadamente à sustentabilidade financeira dos sistemas de segurança social, com cada vez menos pessoas em idade ativa a contribuir para um número cada vez maior de pensionistas e reformados. Note-se que, de acordo com as projeções do INE, o índice de sustentabilidade potencial (quociente entre o número de pessoas com idades compreendidas entre os 15 e os 64 anos e o número de pessoas com 65 ou mais anos) poderá diminuir de forma acentuada, podendo passar de 340 para 149 pessoas em idade ativa por cada 100 idosos no cenário central – valor que poderá baixar até 111 pessoas em idade ativa por cada 100 idosos. É sabido que o processo de decisão que respeita ao ter filhos (ou ter mais filhos) é complexo e multifatorial. Todavia, parece consensual que fatores tais como o esforço financeiro, o receio pela carreira profissional e a dificuldade em conciliar a vida profissional com a vida familiar e pessoal têm uma grande relevância. E se tal é verdade no geral, é especialmente verdade para as mulheres que se encontram numa posição particularmente vulnerável. Segundo os dados mais recentes da ONU, as mulheres fazem cerca de 67% do trabalho não remunerado em todo o mundo (em média, as mulheres trabalham diariamente 302 minutos em trabalho não remunerado contra apenas 77 minutos dos homens). O estudo da OCDE “The Pursuit of Gender Equality” aponta Portugal como o quarto país onde as mulheres passam mais tempo a fazer trabalho não remunerado, com mais de quatro horas por dia entre as tarefas domésticas e de cuidado dos filhos, dos idosos ou dos familiares doentes. Este compromisso com responsabilidades domésticas, sublinha o relatório, pode “desencorajar as mulheres de terem filhos”, porque quem ocupa a maior parte do seu tempo em tarefas não remuneradas não consegue ter a mesma disponibilidade para o trabalho remunerado, resultando numa maior precariedade laboral, salários inferiores e, consequentemente, menos descontos para uma reforma futura (razões que potenciam um maior risco social para as mulheres). Ainda assim, somos um dos países com menor diferença na participação de mulheres e de homens no mercado de trabalho, e onde também é comum as mulheres regressarem ao trabalho logo a seguir à licença parental. Note-se que na UE a 28, 78, 3% dos homens com crianças dependentes trabalham, em comparação com 66, 7% das mulheres na mesma situação. Em Portugal a percentagem de pais a trabalhar (76, 3%) é menor do que a média europeia, enquanto a percentagem de mães a trabalhar (69, 4%) é superior à média. Portugal é também um dos países onde a diferença salarial entre mulheres e homens tem aumentado, tendo passado de 12, 8% em 2010 para 17, 8% em 2015 – a média europeia é de 16, 3%. E estes dados importam porque quando é necessário prestar assistência a um filho (menor de 12 anos) é atribuído um subsídio para assistência a filho, que se traduz em 65% do valor da remuneração. Se pensarmos que um corte de 35% tem impacto no orçamento familiar, a decisão financeira mais lógica será que o corte se dê no salário mais baixo do agregado familiar, o que resulta num “incentivo” para que sejam as mulheres a prestar assistência quando tal é necessário, resultando, inevitavelmente, num maior absentismo por parte das mulheres em relação aos homens. Nalguns países europeus, a dificuldade em conciliar a vida profissional com a vida familiar é atenuada pela elevada percentagem de trabalhadores que optam por trabalhar a tempo parcial. Na Holanda, 77% das mulheres com idade entre os 15-74 anos trabalham a tempo parcial, na Áustria esse valor é de 48% e na Alemanha de 47%. Uma alternativa não considerada por muitos trabalhadores portugueses devido ao corte salarial associado (Portugal é um dos países com maior percentagem de trabalhadores abrangidos pelo salário mínimo e onde mais horas se trabalha). É neste contexto que modelos de trabalho flexíveis como o teletrabalho podem ter um papel importante no desafio de incentivar a natalidade, ao facilitar a conciliação da vida profissional com a vida familiar e pessoal. Na realidade, a importância que o teletrabalho pode ter nas questões da parentalidade parece ser bem entendida pelo legislador. Desde de 2015 que a Lei n. º 120/2015, de 1 setembro (que procede à nona alteração ao Código do Trabalho), prevê que “o trabalhador com filho com idade até 3 anos tem direito a exercer a atividade em regime de teletrabalho, quando este seja compatível com a atividade desempenhada e a entidade patronal disponha de recursos e meios para o efeito” (nos termos do n. º 3 do artigo 166. º). Um pedido que apenas pode ser recusado com fundamento (i) em exigências imperiosas do funcionamento da empresa ou (ii) na impossibilidade de substituir o trabalhador se este for indispensável (constitui contraordenação grave a violação do disposto no n. º 3). Nos casos em que seja recusado, o processo deve ser submetido à apreciação da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE). Ainda que não existam dados oficiais, não parece existir evidência para julgar que a sua aplicação seja uma prática comum. Um dado em si relevante é o número de pareceres solicitados à CITE, com apenas um parecer pedido desde que a Lei entrou em vigor (Parecer n. º 684/CITE/2016 – de acordo com a informação disponível na página oficial). Considerando os dados acima, talvez não seja inadequado pensar que o número reduzido de pedidos, e consequente limitada aplicação, traduza algum receio por parte dos trabalhadores de que o mesmo pedido possa ser entendido como refletindo pouco comprometimento para com a organização – com possíveis consequências negativas nas suas carreiras profissionais (vale a pena consultar o relatório “Pregnancy and maternity-related discrimination and disadvantage”). E é neste contexto que importa sublinhar a importância que o teletrabalho pode ter na conciliação da vida profissional com a vida familiar e, consequentemente, nas políticas de incentivo à natalidade. O teletrabalho, ao permitir trabalhar remotamente em regime de tempo inteiro, parcial, apenas alguns dias por semana ou de forma pontual, de acordo as necessidades do trabalhador ou da organização, garante mais flexibilidade e autonomia aos trabalhadores na gestão dos seus horários, assim como possibilita uma redução nas despesas com deslocações, guarda-roupa, refeições, entre outras. No caso particular de trabalhadores com filhos pequenos facilita toda a logística diária, reduz o absentismo por assistência aos filhos, possibilita um acompanhamento mais próximo dos mesmos, permite reduzir as horas que as crianças passam nas creches (em Portugal o número médio de horas que uma criança com menos de três anos passa numa creche é superior a 35 horas por semana – nos Países Baixos e no Reino Unido é de 22 horas, ou inferior) e, dependendo daquela que for a opção educativa, possibilita mesmo a não colocação dos filhos na creche – com a respetiva redução de custos associada. No caso das famílias monoparentais, maioritariamente agregados familiares compostos por mulheres com pelo menos um dependente a seu cargo (uma realidade crescente nas sociedades atuais), e considerando o esforço acrescido que é pedido a estas famílias, a flexibilidade que o teletrabalho possibilita é particularmente importante dado que permite o cumprimento quer das responsabilidades profissionais, quer das responsabilidades parentais (e de todas as restantes, como sejam as domésticas) com menos condicionalismos. Acresce que, no caso das famílias monoparentais, a redução de custos que o teletrabalho possibilita não é de todo irrelevante se considerarmos que a taxa de risco de pobreza para famílias constituídas por um adulto com pelo menos uma criança dependente é de 33, 1% (no global é de 18, 3%);No caso de famílias biparentais, o teletrabalho permite uma variedade de soluções familiares. Pode ser utilizado apenas pelas mulheres, apenas pelos homens, ou por ambos, eventualmente num sistema revezado. Um sistema de teletrabalho revezado permite aos pais, por exemplo, trabalharem parte da semana em teletrabalho e parte presencialmente, ao mesmo tempo que garantem uma assistência próxima e constante aos filhos, por parte de pelo menos um dos pais. Se a licença parental partilhada tende a favorecer cada vez mais o acompanhamento dos homens nos primeiros meses depois do nascimento dos filhos, o teletrabalho permite que essa participação seja alargada no tempo;Se considerarmos o elevado custo de vida nos grandes centros urbanos, em particular o custo de aquisição ou arrendamento de uma habitação, que resulta frequentemente num obstáculo à natalidade, o teletrabalho representa a possibilidade de uma família trabalhar onde existe mais e melhores oportunidades de emprego, ao mesmo tempo que pode optar por se deslocar dos grandes centros urbanos para zonas mais periféricas, onde se observa uma disponibilidade de habitação a menor custo (tal constatação é também verdade em relação às creches e ao preço das mesmas). No longo prazo, ao diminuir a necessidade de concentração nas grandes áreas urbanas, poder-se-ia assistir a uma maior urbanização periférica, favorecendo o desenvolvimento de cidades de média dimensão, o que possibilita um crescimento mais inclusivo e sustentável de todo o território nacional;A migração é influenciada por uma conjugação de fatores económicos, ambientais, políticos e sociais. Politicas de incentivo à natalidade, que promovam a conciliação da vida profissional com a vida familiar e pessoal, e consequentemente melhorem a qualidade de vida e o bem-estar dos trabalhadores, são um importante fator de atração e de retenção de mão de obra qualificada. Tal é verdade para atrair imigração qualificada como para travar a emigração de jovens qualificados (e em idade fértil). Politicas de incentivo à natalidade concertadas com políticas migratórias constituem, assim, uma via tão necessária quanto positiva para travar o envelhecimento e o declínio populacional;Por último, do ponto de vista das organizações, a opção pelo teletrabalho pode levar à redução de diversos custos fixos. Por exemplo, ao reduzir-se, ou eliminar-se, a necessidade de deslocação para o trabalho de parte dos seus recursos humanos, permite-se uma otimização dos espaços disponíveis, conduzindo a uma diminuição das despesas com infraestruturas, nomeadamente ao possibilitar a aquisição ou o arrendamento de imóveis de menores dimensões e, portanto, menos dispendiosos;Posto isto, e ainda que sejam as organizações, públicas e privadas, a ter um papel chave na adoção e na promoção de modelos de trabalho mais flexíveis, a OCDE tem vindo a chamar a atenção para o papel que os governos podem ter, nomeadamente ao (i) garantir a todos os trabalhadores o direito a requerer regimes de trabalho flexível; (ii) ao incentivar os seus parceiros sociais a incluírem modelos flexíveis de trabalho nos Acordos Coletivos de Trabalho (ACT); e (iii) ao promover uma mudança na cultura organizacional, através da partilha de boas práticas e de campanhas de informação. Vale a pena referir o caso alemão, onde o Governo Federal e os parceiros sociais assinaram, em 2011, a “Charter for Family-friendly Working Hours” incentivando a adoção de modelos e horários de trabalho amigos da família. Em 2015, as partes signatárias e a Associação Federal das Associações de Empregadores Alemães (BDA) deram sequência ao acordo com o “New Reconciliation Memorandum”, concebido pela rede empresarial Erfolgsfaktor Familie (Family as Success Factor) e co-financiado pelo Fundo Social Europeu, que visou incentivar a partilha de boas práticas entre “empresas amigas das famílias”. Desde 1999 que as empresas alemãs podem, também, candidatar-se a um certificado de “Empresa Amiga das Famílias” (Audit Berufundfamilie). No contexto português é de salientar que a Estratégia Nacional Portugal 2030 tem como um dos seus objetivos a sustentabilidade demográfica, em particular “travar o envelhecimento populacional e assegurar a sustentabilidade demográfica e os recursos necessários ao crescimento da economia”, por via de (i) promoção das condições necessárias à melhoria do saldo natural, (ii) diminuição do índice de dependência total e reforço da conciliação entre a vida familiar e a vida laboral, e (iii) melhoria dos saldos migratórios. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Se é verdade que o teletrabalho não representa a “bala de prata” nas políticas de incentivo à natalidade, tal constatação serve somente para sublinhar a necessidade de um conjunto articulado, transversal e coerente de medidas políticas. Qualquer estratégia que vise incentivar a natalidade terá de considerar questões de flexibilidade laboral e de equidade entre géneros. Voltemos um pouco atrás e recordemos que, em Portugal, são os homens quem mais filhos deseja ter. Importa, por isso, mudar uma cultura organizacional que simultaneamente desresponsabiliza os homens das suas responsabilidades parentais e penaliza as mulheres por as assumirem. Falhar neste objetivo significa que uma parte da população continuará a ser penalizada na sua carreira profissional. O Institute of Public Policy (IPP) é um think tank académico, independente e apartidário. As opiniões aqui expressas vinculam somente os autores e não refletem as posições do Institute of Public Policy, da Universidade de Lisboa ou de qualquer outra instituiçãoA autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU UE OCDE
A extrema-direita espanhola veio para ficar
A desilusão com a governação socialista de Susana Díaz e a ofensiva da extrema-direita devem levar o PP e Cidadãos ao poder na Andaluzia, com uma piscadela de olho ao Vox. Tudo isto terá repercussões a nível nacional. (...)

A extrema-direita espanhola veio para ficar
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.053
DATA: 2018-12-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: A desilusão com a governação socialista de Susana Díaz e a ofensiva da extrema-direita devem levar o PP e Cidadãos ao poder na Andaluzia, com uma piscadela de olho ao Vox. Tudo isto terá repercussões a nível nacional.
TEXTO: Espanha inaugurou um novo e imprevisível capítulo da sua história política e eleitoral. Ao fim de 36 anos de governação ininterrupta, o Partido Socialista (PSOE) está muito perto de perder a mais populosa comunidade autónoma do país, depois de uma vitória (muito) pouco convincente nas eleições da Andaluzia de domingo. A ofensiva inédita do Vox – a primeira vez que um partido de extrema-direita entra num parlamento autonómico – abre portas para a formação de um governo de direita, que Partido Popular (PP) e Cidadãos (C’s) querem liderar. “Se me perguntar se o Vox veio para ficar, a resposta é ‘sim’”, disse ao PÚBLICO José Pablo Ferrándiz, doutorado em Sociologia e investigador do centro de sondagens Metroscopia. “Do sistema bipartidário que tivemos durante décadas, passámos a um sistema de quatro partidos. É muito provável que comecemos agora a falar em sistema pentapartidário [com cinco partidos]. Nas próximas sondagens nacionais já vamos ver o Vox com 10%”, remata Ferrándiz. Uma nova era, portanto. O PSOE perdeu 14 deputados e mais de 400 mil votos em comparação com as eleições de 2015. Os 27, 9% alcançados por Susana Díaz equivalem a 33 deputados, longe dos 55 necessários para a maioria absoluta, numa eleição marcada por uma participação muito reduzida, de 58, 7% – a pior desde 1990 –, sobretudo nos bastiões socialistas de Sevilha e Jaén. O PSOE está obrigado a procurar acordos para manter a presidência da junta da Andaluzia. Endereçou um convite público de coligação ao C’s (18, 3%, 21 deputados), que acrescentou 12 aos nove deputados que já tinha. “Queremos perguntar ao Cidadãos se quer apoiar o Partido Socialista ou se prefere embarcar numa aventura com a extrema-direita”, anunciou o ministro do Fomento e secretário do PSOE José Luis Ábalos. “Porque se o Cidadãos acredita que, para chegar ao poder, o mais importante é juntar-se à extrema-direita, então já nem sei bem se regeneração e reconquista são sinónimos”, acrescentou, referindo-se ironicamente aos motes políticos dos dois partidos. A proposta socialista de liderar um cordão sanitário que deixe o Vox (11%, 12 deputados) de fora de uma solução na Andaluzia – um “apelo às forças constitucionalistas”, como rotulou Díaz – não está, no entanto, a receber a simpatia dos partidos à direita. Cidadãos e PP (20, 8%, 26 deputados) recusam fechar a porta ao partido que defende a supressão dos poderes autonómicos, a revogação da lei sobre a violência de género ou a deportação imediata de todos os imigrantes ilegais, e que entra de rompante na arena política espanhola sem apresentar uma única proposta para a região andaluz – o seu programa assenta em “100 medidas urgentes para Espanha”. Até porque o Vox, que passou de 0, 46% a 11% de votos em três anos, já veio garantir, através do cabeça-de-lista para a Andaluzia Francisco Serrano, que os nacionalistas “não serão obstáculo para acabar com o regime socialista” na comunidade autonómica. “Sou incapaz de descartar qualquer cenário”, assumiu o secretário-geral do C’s José Manuel Villegas, deixando uma certeza: “Haverá um novo governo, onde não estará o PSOE nem Susana Díaz”. O candidato popular à presidência da Andaluzia Juan Manuel Moreno, prometeu que se vai apresentar à investidura, diz que a Constituição tratará de definir “as linhas vermelhas” nas negociações com a extrema-direita, para destronar o PSOE. Essa porta, como adiantou o próprio líder Pablo Casado, “está aberta”. Em cima da mesa pode estar uma entrada do Vox no governo ou um acordo parlamentar que permita a entrada de um executivo de direita. O El País cita fontes da direcção nacional do PP que sublinham que há uma clara noção de que “o Vox veio para ficar” e que, por isso, há que lidar com ele. A questão catalã teve uma enorme importância no crescimento brutal do partido de extrema-direita Vox, disse José Pablo Ferrándiz. “As pessoas já estavam descontentes por terem de votar eternamente no PP e não gostaram da forma como Mariano Rajoy [ex-presidente do Governo] geriu o problema independentista. E o Cidadãos até ganhou as eleições catalãs [2017], mas o facto de não ter conseguido governar provocou uma grande frustração. Movimentos como o Vox tornaram-se, por isso, atractivos para o eleitorado da direita espanhola”. Em relação ao PSOE, as intenções de voto para as legislativas do próximo ano até são mais simpáticas para o presidente do Governo Pedro Sánchez, se compararmos com os apoios a Susana Díaz nestas autonómicas, diz Ferrándiz. Mas é difícil identificar quem tem mais culpa no fiasco da Andaluzia. Isto porque os “números já apontavam uma enorme vontade de mudança” e um “grande desgaste do eleitorado” da comunidade andaluz mais conservadora. “Independentemente do culpado, este resultado é uma mensagem dos eleitores andaluzes ao resto do país e, naturalmente, a Sánchez”, considera. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. José Pablo Ferrándiz acredita que essa vontade do eleitorado fará com que PP, Cidadãos e Vox “se ponham de acordo” para governar a Andaluzia. É isso que faz com que os dois partidos de direita acreditem que “não serão prejudicados eleitoralmente” no futuro por se juntarem à formação de extrema-direita. Questionado sobre se o Vox vai ter uma palavra a dizer nas eleições europeias e legislativas de 2019, José Pablo Ferrándiz hesita: “A política e actualidade espanhola estão a mudar muito rapidamente. O que pensávamos há cinco meses é diferente do que pensamos agora e é provável que venha a acontecer o mesmo daqui a cinco meses”, começa por dizer.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave lei violência comunidade género deportação