Histórias do interior: o “milagre” do Seixo, onde a população duplicou
Para ocupar uma dezena de casas de pedra, no monte do Seixo, há apenas um homem. Nas últimas semanas deu-se quase um milagre – a população cresceu 100 por cento. Ele arranjou uma companheira (...)

Histórias do interior: o “milagre” do Seixo, onde a população duplicou
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Para ocupar uma dezena de casas de pedra, no monte do Seixo, há apenas um homem. Nas últimas semanas deu-se quase um milagre – a população cresceu 100 por cento. Ele arranjou uma companheira
TEXTO: Despovoamento rima com desertificação, em todo o Nordeste algarvio. Alcoutim, Castro Marim e Tavira (zona serrana) estão em queda livre na demografia. As pessoas vão tombando uma a uma, à medida que a idade avança, e nem rasto de gente jovem se vê no horizonte. Por aqui “só há notícias das pessoas que morrem”, lamenta a presidente da Junta de Freguesia de Cachopo, Otília Cardeira, atarefada, com a preparação dos festejos natalícios. “Vou cozinhar uma açorda de galinha, pois tenho um grupo de convidados da In Loco. Esta associação de desenvolvimento local, diz, “foi quem primeiro deu a conhecer o interior algarvio”, quando ainda não existia GPS para localizar o povoamento disperso. A autarca, tecedeira de profissão, arranca no carro oficial da autarquia – uma carrinha todo-o-terreno de caixa aberta. O motor da viatura, ao acelerar, acusa o cansaço das muitas voltas e reviravoltas percorridas pela montanha. “Quando vou a reuniões, riem-se deste carro velho”, graceja. Ao descrever o que se passa à sua volta, a mulher de 68 anos faz uma espécie de marcha atrás no conta-quilómetros da vida. “A freguesia [concelho de Tavira] tinha 46 montes, mas hoje já só temos 31 habitados”, assinala. Os sobreiros, os que não se perderam no grande fogo de 2012, morrem aos poucos, de doença incurável. Os raros habitantes que ainda resistem sentem as vertigens de um tempo que não volta para trás. Projectos de centrais fotovoltaicas não faltam, e os chineses estão nesse negócio em Alcoutim, acompanhando uma tendência comum a outras zonas do Sul do país. O ladrar dos cães faz eco pelo vale, mas não há quem ouça o apelo dos animais. O aglomerado, monte do Seixo, tem cerca de uma dezena de casas, onde não falta o equipamento de painéis solares, pregados em habitações de pedra. Porém, a modernidade fica-se por este equipamento. “Não se ouve um passarinho”, lamenta José Gonçalves, enquanto apanha medronhos. O homem, de 70 anos, sozinho, com balde de plástico no braço esquerdo, colhe os frutos silvestres que se hão-de converter, daqui por alguns meses, em aguardente. No sítio dos Currais, onde nasceu, há três destilarias – lugares icónicos da partilha de saberes e de afectos. Por todo o lado, com a chuva que caiu de mansinho, os medronheiros surgem pujantes. O mesmo não sucedeu com outras espécies autóctones: “Este sobreiro é novo, e já tem aqui as marcas da doença”, aponta o agricultor, mostrando a mazela no tronco da árvore, de folhas pálidas. José Gonçalves reside em Faro, mas é na serra que encontra a paz e tranquilidade para se reencontrar consigo próprio. “Perdi uma filha, de 39 anos, com uma doença terrível. Deixou-me três netinhos”, lamenta. A ida para Cachopo, explica, deve-se ainda à necessidade de “dar apoio” ao sogro, de 93 anos, e à sogra, de 88 anos, que vivem no lugar dos Currais. “Este ano, apanhei mais de mil quilos de medronho”, diz, prevendo que a colheita do próximo ano seja melhor. A descida até ao Seixo obriga a uma condução com cuidados redobrados, pelo caminho de terra batida. “Só lá vive o Valério, mas ele anda quase sempre por fora”, avisa, deixando cair lamentos: “É pena é não haver pessoas. . . ” A presidente da junta de freguesia, em tom de graça, exulta: “A população do Seixo aumentou 100%, porque ele [Valério] arranjou uma companheira”. Ela vive no Garrobo, um monte próximo. José Gonçalves comenta: “Estavam os dois sozinhos, fizeram muito bem: ele deve ter aí uns 55 anos, a Celeste é um pouco mais velha”, adianta. Durante a visita do PÚBLICO, confirma-se a indicação do vizinho: o casal estava ausente, algures na apanha do medronho. Os animais, cães e galinhas, sinalizam a presença humana, sem dar tréguas. A luz eléctrica só chegou ao local em 1996, através de um projecto de “desenvolvimento rural” no concelho de Tavira – um investimento de 215 mil euros. Nessa altura, os moradores já estavam a desaparecer por falta de perspectivas de futuro, e pela força da lei da vida. No concelho de Alcoutim, no lugar do Vale da Rosa (freguesia de Vaqueiros), há mais de três décadas uma empresa francesa instalou um projecto experimental de energia fotovoltaica, que permitiu a cada um dos moradores ter um televisor, frigorífico e meia dúzia de lâmpadas acesas, em casa. Por falta de manutenção, o sistema falhou ao fim de três anos. A câmara municipal, entretanto, conseguiu que a electricidade lá chegasse através da rede da EDP. A medida não foi suficiente para manter as pessoas ligadas à terra. “Está tudo em ruínas, já lá não mora ninguém”, esclarece o presidente do município, Osvaldo Gonçalves, enfatizando: “Sentimos aqui, no Nordeste algarvio, as duas faces da interioridade: a desertificação física dos solos e o despovoamento”. O problema, esclarece o autarca, (vice-presidente da Comunidade Intermunicipal do Algarve – Amal), entranhou-se como uma doença crónica: “Nós só sentimos, efectivamente, o efeito da desertificação quando nos começámos a aperceber de que não havia pessoas”. Metade da dezena de habitações do Vale da Rosa está reduzida a ruínas. A capacidade de resiliência da população, enfatiza o autarca socialista, “mitigou, de alguma forma, o êxodo que continua para a zona litoral”. Em contraciclo, na freguesia de Vaqueiros, está projectada a construção de um dos maiores parques fotovoltaicos da Europa. O grupo CITEC – China Triumph International Engineering, em parceria com a empresa We Link, do Reino Unido, anunciou no ano passado a instalação de um equipamento capaz de produzir electricidade para abastecer uma cidade com 130 mil habitantes, duas vezes a população de Faro. Os trabalhos, num terreno com área de 400 hectares, encontram-se ainda na fase de desbaste do mato, mas a perspectiva é de que a produção se inicie no final do próximo ano. O investimento anunciado é de 200 milhões de euros. De regresso a Cachopo, há um número a reter. O autocarro municipal, de 30 lugares, faz o transporte diário de 12 crianças – de várias idades – daqui para a escola da freguesia de Martim Longo, já no concelho de Alcoutim. No edifício sede da junta funcionam, ao mesmo tempo, os serviços administrativos da autarquia, o posto médico e o serviço de Correios. No primeiro andar de um prédio a precisar de manutenção, os utentes falam de “noites mal dormidas”, enquanto trocam impressões sobre os sintomas de doenças – hipertensão, diabetes e colesterol, as mais frequentes. “Esta casa precisava toda de ser remodelada, leva mais de 40 anos sem manutenção”, queixa-se a autarca Otília Cardeira, convidando o PÚBLICO a ver uma exposição fotográfica sobre gente da terra. “Este, o ferreiro, já morreu”, aponta. À medida que sobe as escadas, vai passando as páginas da história local. Segue-se o quadro do albardeiro, em grande plano. Passa ao capítulo seguinte, faz uma pausa: “Estas mãos são de uma tecedeira”, comenta, como que se revisse no retrato. “A associação In Loco foi quem criou aqui uma oficina de tecelagem, trouxe professores da escola António Arroio para dar formação, e fizemos coisas muito interessantes”, destaca. Assim, as mulheres de Cachopo recuperam técnicas antigas e o gosto de preservar as tradições. “Desapareceu quase tudo, só estamos duas na tecelagem”, diz, referindo-se ao progressivo desmoronar do tecido económico e social, alicerçado na promoção e venda do artesanato. “Chegámos a participar numa passagem de modelos em Vilamoura”, recorda. Victor Palmeira, médico, prestou serviço em Cachopo, entre 1986 e 1989. Neste período, recorda, “nasceram apenas quatro crianças em toda a freguesia”. Na altura, a câmara reabilitou uma habitação para fixar clínicos. Não resultou. “Nunca cheguei a ocupar a casa”. Casado e com filhos, não deixou de residir em Tavira, porque os interesses familiares obrigavam a permanecer na cidade. A deslocação ao interior era compensada por um subsídio, atribuído pela administração regional de saúde, mas não foi isso que o motivou. “Mal dava para o combustível e os pneus do carro”, diz. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Osvaldo Gonçalves, cujo avô nasceu no Seixo, critica as medidas que têm sido aplicadas para revitalizar o interior. “Não existe uma interligação entre os vários projectos”. Em meados dos anos 80, exemplifica, foi o criado o Plano do Nordeste Algarvio, o que permitiu a construção de vias e equipamentos públicos. Seguiram-se os apoios à reflorestação. Nesta sub-região foram plantados 37 mil hectares de pinheiro-manso (844 árvores por hectare) para evitar a erosão do solo, mas ficou por avaliar o resultado e o impacto ambiental desse projecto. “Todas essas medidas padecem da falta de continuidade e de harmonia com os instrumentos de ordenamento do território”, sintetiza. Além disso, destaca a necessidade de manter os serviços públicos nesses locais. “Perde-se o contacto com o terreno, retira-se a presença do Estado, e cria-se uma realidade virtual”, diz, lembrando que desapareceram do concelho as extensões de desenvolvimento rural e do Ministério da Agricultura, entre outras. A história do Alcoutim divide-se entre o interior a zona raiana do Guadiana, marcada pelas histórias do contrabando e emigração. A ponte transfronteiriça, flutuante, que une as duas margens do rio (Alcoutim-Sanlúcar) só funciona três dias por ano, em Março, durante o festival do contrabando. Uma vez passados os festejos, os dias desaguam na “falta de compreensão” da administração central, sublinha, para encarar o interior de um país debruçado sobre o litoral.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
"Deixei de me surpreender com os mitos ou verdades doutrinárias que os professores repetem sem questionarem"
Robert Vitalis é professor de relações internacionais e ciência política na University of Pennsylvania. Ao longo da sua carreira, dedicou-se à investigação das dimensões internacionais e globais das questões colonial e racial. Em 2015, publicou o aclamado White World Order, Black Power Politics: The Birth of American International Relations. (...)

"Deixei de me surpreender com os mitos ou verdades doutrinárias que os professores repetem sem questionarem"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 7 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.1
DATA: 2018-10-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: Robert Vitalis é professor de relações internacionais e ciência política na University of Pennsylvania. Ao longo da sua carreira, dedicou-se à investigação das dimensões internacionais e globais das questões colonial e racial. Em 2015, publicou o aclamado White World Order, Black Power Politics: The Birth of American International Relations.
TEXTO: No seu livro, de 2015, um dos grandes objectivos é compreender o nascimento das Relações Internacionais e da Ciência Política nos Estados Unidos da América. Contra a ortodoxia historiográfica de ambas as disciplinas, mostra como mundividências imperiais foram cruciais na formação de ambas as disciplinas e ao seu posterior desenvolvimento. Quais as principais causas e consequências desta história pouco conhecida?Eu mostro como a história do império é apagada, mas também como os académicos das relações internacionais começaram, de modo activo e talvez inconscientemente, a construir uma história mais útil da sua disciplina durante a Guerra Fria. O que é verdade em relação a muitas disciplinas, na verdade, não apenas no caso das Relações Internacionais. A história diplomática, a história do “desenvolvimento” e a Sociologia são outros exemplos. Se, como os então líderes emergentes da disciplina insistiram, as Relações Internacionais só se tornaram uma disciplina “científica” nos anos 1940 e 50, através da promoção do “realismo” (uma vez que Realpolitik era então uma palavra má) e da construção dos Estados Unidos como um “poder do statu quo”, então não haveria nada mais a dizer sobre essas décadas pré-científicas anteriores. Como seria de esperar, os professores marcharam, mais ou menos, com o Departamento de Estado, a Casa Branca e outras agências do Governo, procurando refutar os argumentos do rival soviético e dos chamados “países não alinhados” sobre a natureza e a extensão do poder que os Estados Unidos exerciam globalmente. Também demonstra que ocorreu um processo de “invisibilização do racismo”, apesar de as “relações internacionais significarem relações raciais”. Porque acha que isto aconteceu? Quais foram, e são, as consequências deste facto?A realidade persistente da opressão dos afro-americanos na sua demanda por direitos iguais era o outro problema que fazia coxear o Governo americano na sua rivalidade com a União Soviética em relação aos corações e às mentes dos europeus, dos africanos e dos asiáticos. O racismo em casa complicava a diplomacia dessas décadas. O contexto da Guerra Fria ajuda a explicar os esforços das administrações em dessegregar os Estados do Sul no pós-guerra, como os trabalhos de vários historiadores têm demonstrado (Mary Dudziak, Penny von Eschen e Paul Gordon Lauren foram os mais proeminentes). Também aqui, uma história mais útil do passado começou a ser criada: do racismo como um atavismo e uma excepção ao que Gunner Myrdal identificou como o “credo americano” — roubando a ideia sem o dizer a Alain Locke, da Universidade Howard, já agora. Mais tarde, a escritora Toni Morrison escreveu sobre a tendência poderosa, na cultura do pós-guerra, de “silêncio e evasão” sobre o passado e o presente do racismo. Eu peguei na ideia e traduzia-a usando um termo em voga na teoria das relações internacionais nos anos 1990: descrevi-a como a “norma contra a detecção”. Outro aspecto importante que sublinha tem que ver com o facto de a contribuição de académicos afro-americanos nessas disciplinas ser também desvalorizada ou omitida. Qual a razão? A realidade é hoje diferente?Não há exemplo mais poderoso do silêncio e evasão do que a persistente ignorância sobre os académicos negros e as suas inovações intelectuais numa academia profundamente segregada. Só começa a mudar quando académicos negros são admitidos nas torres de marfim (brancas) nos EUA. O mesmo é verdade em relação às mulheres nas relações internacionais, e há agora trabalho a ser feito por Patricia Owens e outras pessoas no Reino Unido no sentido de identificar académicas influentes neste campo, mas que hoje estão completamente esquecidas. Em alguns meios, a ideia de que os EUA eram essencialmente um poder anti-imperial e anticolonial persiste. É uma consideração sustentada na sua condição de antiga colónia e no facto de, mais tarde, ter sido uma das grandes potências que patrocinaram a descolonização. A história entre estes dois momentos perde-se, ou é desvalorizada. Pode falar-nos um pouco mais dessa história e de como condicionou o desenvolvimento de várias ciências sociais?O saudoso e grande economista do MIT Morris Adelman — que é uma personagem central no livro que estou a escrever agora sobre os vários mitos que preocupam a esquerda anti-imperialista e a direita imperialista nos EUA — disse uma vez que “o senso comum sabe muitas coisas que não são verdade”. As crenças que referem sobre os EUA, aparentemente indisputáveis, mas na verdade artificiais, encaixam-se nesta definição. Deixei de me surpreender com os vários mitos ou verdades doutrinárias que os professores repetem sem questionarem determinadas certezas, sem reflectirem seriamente sobre a natureza das “provas” e sobre os problemas que resultam de se pensar a partir dessas “provas”. Por isso, pergunto no White Order: como é que aqueles que acreditam que os EUA nunca foram imperialistas explicam que uma geração pioneira de pensadores conservadores, liberais e progressistas tenha dito o oposto? Porque estão eles errados?Após as invasões americanas do Afeganistão e do Iraque, deu-se uma renovação do interesse nas histórias do colonialismo, da administração colonial e da repressão colonial. Como é que as ciências sociais se relacionaram com estas dinâmicas? E com os seus trágicos falhanços, posteriormente?É verdade que o início dessas guerras no Médio Oriente, que agora percebemos serem intermináveis, deram um novo fôlego ao estudo do colonialismo, e a ideia de que os EUA eram um império emergiu de uma forma que não víamos desde os finais dos anos 1960 e inícios de 70. Victor Bulmer-Thomas e Tony Hopkins lançaram este ano novos e detalhados estudos, Empire in Retreat e American Empire, respectivamente, que “nasceram” das invasões no Afeganistão e no Iraque. O coronel na reserva Andrew Bacevich, que também se reformou recentemente na Universidade de Boston, onde leccionava História e Relações Internacionais, escreveu sete livros sobre o militarismo e a política externa norte-americana desde 2003, e, talvez devido ao seu historial e conservadorismo profissional, granjeou maior visibilidade nos media do que a maior parte dos outros críticos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Eu diria que o padrão mais significativo nas ciências sociais se prende com a militarização da academia desde 2001. A Antropologia, a Psicologia, a Ciência Política tiveram papéis auxiliares a desempenhar na contra-subversão, no regime de tortura e por aí fora. As antigas “escolas de estratégia” (Harvard’s Kennedy School e Belfer Center, a School for Advanced International and Strategic Studies da John Hopkins, a Woodrow Wilson School de Princeton e as suas cópias) prosperam, enquanto o Departamento de Defesa e o arquipélago de intelligence (CIA, DIA, NSA, etc. ) são hoje fontes muito mais importantes de financiamento para os meus colegas do que as fundações privadas. Ao contrário do que sucedia na década de 1960, não há praticamente oposição a esta transformação altamente problemática. No seu livro, e entre os vários escritos dos autores que estudou, deparamo-nos com um medo generalizado da “mistura racial”, da “decadência civilizacional” e com um alarmismo relacionado com as políticas populacionais. Infelizmente, podemos encontrar ansiedades semelhantes hoje em dia. O que é novo e o que é velho nos discursos presentes do medo?Concordo completamente sobre os ecos que se fazem sentir do passado, e creio que não dei o devido valor ao peso que o medo assumiu (e continua a assumir) nesses projectos. Estou agora a tentar, de facto, acompanhar o que as ciências sociais têm a dizer sobre o medo. Ele é fundamental, como deixam claro, para os argumentos a favor da restrição da imigração e similares, mas também remete para crenças irracionais sobre escassez de recursos e sobre as ameaças como o Irão ou o Iraque colocavam ao “acesso” a estes. Posso estar errado, mas tenho dificuldades em ver diferenças sérias entre os argumentos produzidos por actores políticos e intelectuais da, sei lá, década de 1920, e os do presente. Qual a importância de expandirmos as nossas investigações sobre processos que tornam o racismo invisível ou marginal, no sentido de lidarmos com os desafios políticos contemporâneos? Ainda é possível detectar uma Realpolitik racial hoje em dia?Da mesma forma, entendo que uma Realpolitik “racial”, ou melhor, “racista”, com a sua imaginada fractura de absoluta e inerradicável diferença, está viva, e bem viva, hoje em dia. Retorno ao tema que estou a estudar presentemente. Na década de 1920, as “matérias-primas” que se dizia estarem em escassez e que, como tal, despertavam a ameaça de um futuro conflito, tal como hoje, estavam nas colónias, semicolónias e dependências de África, da Ásia e América Latina. Apologistas da ordem imperial começaram a insistir que as matérias-primas encontradas nos trópicos e semitrópicos eram, por direito, “a herança da humanidade”. Como o ex-governador da Nigéria Frederick Lugard enquadrou o problema no seu Dual Mandate in British Tropical Africa (1922), as raças que habitavam estes lugares não tinham qualquer “direito de negar as riquezas aos que delas precisavam”. Era uma questão de vida ou morte. Durante a Guerra Fria, os gurus de uma “geopolítica” reabilitada (ou, pelo menos, eles assim o esperavam), George Kennan a despontar entre eles, opunham-se à independência das colónias, sustentando que essa independência bloquearia inevitavelmente o acesso do Ocidente a essas matérias-primas de que tanto necessitava. Também eles se dirigiam para a ideia de “herança da humanidade” e desdenhavam da que postulava direitos soberanos. Estas crenças persistiram incólumes desde o trauma nacional erradamente recordado como o “boicote da OPEP”, quando as acções dos países produtores, como um precoce crítico desta duplicidade de princípios o colocou, foram regularmente condenadas como “crime”, “máfia”, “pirataria” e “chantagem de preços”, e que persistiram até às intervenções de 1991 e 2003 no Iraque e bem depois disso.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Este é o apocalipse dos “sem direito” a casa
Andar pelo 6 de Maio é pisar despojos de vidas. Ainda lá vivem pelo menos 100 famílias. Ao fim de 23 anos, e de 2,4 mil milhões de euros, o Programa Especial de Realojamento deixou milhares “sem direito” a casa. Dois peritos em direitos humanos da ONU estão em Portugal a avaliar a habitação (...)

Este é o apocalipse dos “sem direito” a casa
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.285
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Andar pelo 6 de Maio é pisar despojos de vidas. Ainda lá vivem pelo menos 100 famílias. Ao fim de 23 anos, e de 2,4 mil milhões de euros, o Programa Especial de Realojamento deixou milhares “sem direito” a casa. Dois peritos em direitos humanos da ONU estão em Portugal a avaliar a habitação
TEXTO: No dia em que lhe demoliram a casa, eram umas 9h. Ondina Tavares desceu do seu quarto, apagou o lume, abriu a porta e deu de caras com a polícia e com alguém que julga ser funcionário da Câmara Municipal da Amadora. — A senhora vai ser desalojada hoje, tem de sair. Vá arrumar as suas coisas, disseram-lhe. Estava à espera de um papel na porta da sua casa no Bairro 6 de Maio, Amadora, a notificar. Mas nada. De roupão, perguntou:— Não põem papel na porta, não avisam, não telefonam? Mas têm o meu número!Era dia 3 de Outubro. Estava sozinha. Subiu ao segundo andar para ligar à filha. — Fiquei a tremer, não conseguia fazer nada. Nada, nada, desabafa hoje, voz trémula, nervosa na conjugação dos verbos. Ondina tem problemas de tiróide e de tensão, tem um pacemaker. — Maria Suzete, vem rápido porque eu estou desorientada, pediu à filha. A câmara mandou tirar as coisas, a casa vem para baixo. Ela continuava desorientada. Deixou os homens que entraram a tratar das suas coisas. Sentia-se incapaz. — Não sabia dar conta de nada. Eles deviam ter avisado… eu tirava as minhas coisas, queixa-se hoje. Foram eles que puseram as coisas em sacos de lixo pretos, ainda hoje amontoados em casa do irmão, para onde Ondina, a filha e os netos foram temporariamente viver. Os móveis seriam levados para um armazém da câmara, com remédios e papéis de consultas lá dentro. 77 agregados PER (dos 424 iniciais), ainda esperam realojamento; quanto às famílias “sem direito” ao PER, a CMA não sabe quantificar. Ondina dirige-se agora ao lugar a que chamou casa durante 18 anos. Uma carcaça de cimento pintada de verde-claro com azulejos brancos — e que era a casa do vizinho — ainda se mantém de pé. Em baixo havia uma sala com um corredor, a cozinha e a casa de banho; em cima eram os dois quartos. Pagava uma renda de 250 euros. Tinha espaço suficiente para cinco pessoas. Hoje atravessa sempre a estrada para não passar mesmo ao lado da casa que foi sua. Não trabalha e teve de “mandar buscar” a filha Suzete a Cabo Verde para tratar dela. Na câmara, quando foi tentar perceber a sua situação, disseram-lhe: “Não tem direito a casa. ”Sugeriram que ela e a família fossem viver com o irmão, a pessoa que oficialmente ficou com direito a ser realojado por via do Programa Especial de Realojamento (PER) – a casa onde está provisoriamente era da mãe. O irmão “ainda não decidiu se vai aceitar o dinheiro”, diz Ondina. Criado em 1993 para realojar “pessoas residentes em barracas” nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, dando apoio financeiro para construção ou aquisição de habitações, o PER tem vindo a ser executado de maneira diferente pelas autarquias. A Câmara Municipal da Amadora (CMA), que diz já ter investido mais de 46 milhões de euros nos realojamentos, tem sido criticada pelos despejos no Estrela de África, Santa Filomena, 6 de Maio. Muitas queixas são sobretudo de pessoas que estão fora do PER, ou seja, que não foram recenseadas pelo INH – Instituto Nacional de Habitação (hoje IHRU – Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana). O 6 de Maio tem sido demolido ao longo do tempo, mas mais sistematicamente desde 2015. Ainda lá estão 77 agregados PER (dos 424 iniciais) à espera de realojamento; quanto às famílias “sem direito” ao PER, a CMA não sabe quantificar. A presidente Carla Tavares, ex-vereadora da Habitação, diz que “os números estão sempre a mudar”. Enquanto Ondina e a família estão alojados temporariamente em casa do irmão, ele mudou-se para a da namorada. — Eu tenho o meu agregado familiar, diz Ondina. Achava que podia [ter uma casa com] a minha filha, os meus netos que estão no meu coração. Não estou a conseguir dormir: eu dentro e a minha filha e neto na rua… Fui internada quatro vezes, quem é que me ajuda?É reformada por invalidez, e no total recebe cerca de 400 euros, que tem de dar para se sustentar, comprar medicamentos, ajudar a família em Cabo Verde. — O dinheiro não chega, sinceramente. Na casa onde agora está, pouco espaço existe para se circular. Chega-se atravessando becos do bairro. Pelo meio circulam jovens, alguns ficam à esquina parados. Suzete pede desculpa pelo cheiro abafado e a esgoto no ar. Mostra o quarto onde o filho dorme, colado à cozinha. Teme pela saúde dele. Ela dorme com outro filho num divã que se abre à noite e fecha de manhã na pequena sala. 400 euros de reforma por invalidez é quanto recebe Ondina Tavares. É com este valor que se sustenta, compra medicamentos, ajuda a família em Cabo VerdeA casa não tem janelas, e as paredes, apesar de pintadas, mostram o sinal da humidade. Em todos os cantos há sacos de plástico empilhados. Uns bidões azuis têm roupa dentro, às vezes também comida. Ondina dorme num quarto com um desumidificador, que fica ligado durante a noite e retém litros de água. A janelinha dá para um beco sem luz. Maria Suzete vem da cozinha, onde as paredes têm bolor e os canos escorrem água. — Isto não são condições para a minha mãe viver, ela é doente. Nas paredes da sala há várias estátuas de Nossa Senhora. Ondina costuma ir a Fátima pedir ajuda. — O bairro vai acabar. Não se importa de sair. Só quer uma casa onde viver. Não interessa onde. A casa de Ondina tornou-se em mais um dos escombros que por estes dias dominam o 6 de Maio. Desde que as demolições começaram em força no início de 2015 que o bairro se tem tornado um cenário apocalíptico. Tijolos, entulho, roupas, lixo, móveis abandonados, sofás, sapatos, garrafas, toalhas, tudo se amontoa naquilo que já foram ruelas de um bairro habitado maioritariamente por famílias de origem imigrante. Algumas paredes ainda têm azulejos. Outras têm graffiti. Pelo soalho agora partido adivinha-se que alguém investiu em melhorar o chão que pisava. A Irmã Deolinda Rodrigues vive no bairro há anos. Trabalha desde 1986 com população imigrante que foi chegando à Amadora e criando o 6 de Maio ou os já desaparecidos Fontainhas e Estrela de África. É directora do Centro Social 6 de Maio, gerido pelas Irmãs Missionárias Dominicanas do Rosário. Vive também o despejo das famílias. “Actualmente, o bairro não tem nada que ver com o que era. Quase metade está demolido”, lembra no seu escritório no Centro Social. “As crianças daquele tempo são agora adultas com filhos. ”Muita gente vem de países em que é difícil ter documentos, com processos demorados. O SEF está a responder lentamente, dá entrevista depois de seis meses da marcação… E muita gente podia ter a nacionalidade portuguesa uma vez que nasceu cá”Preocupa-a quem veio depois do recenseamento de 1993, e não tem direito ao PER, ou quem estava no PER mas está indocumentado e é excluído. “Muita gente vem de países em que é difícil ter documentos, com processos demorados. O SEF está a responder lentamente, dá entrevista depois de seis meses da marcação… E muita gente podia ter a nacionalidade portuguesa uma vez que nasceu cá”, desabafa. Numa reunião no Centro Social para apoiar no processo de despejo e realojamento, com técnicos da autarquia e de organizações de voluntariado, foram poucas as presenças. Duas mulheres estavam hesitantes entre aceitar o apoio financeiro/ indemnização ou o realojamento. As questões eram muitas. A CMA tem três programas para quem está no PER: o PAAR, Programa de Apoio ao Auto-Realojamento, que financia 20% do valor da casa que teria de ser construída se a família fosse realojada (o dinheiro é usado como se quiser), o Retorno, que financia o mesmo valor para a pessoa regressar ao país de origem (com pouca adesão); e o PAAR Mais, que financia 40% do valor da casa que teria de ser construída mas o dinheiro tem de ser usado na compra de um imóvel. Para os agregados PER do 6 de Maio, foi criado um programa em que financia 60% do valor do fogo que teria de ser construído (o que representa até agora 1, 5 milhões de investimento). Os valores máximos oscilam entre 78. 296 euros para um T4 e 43. 546 euros para um T0. 46 milhões de euros, ou mais, é quanto a Câmara Municipal da Amadora diz já ter investido nos realojamentos. A autarquia tem sido criticada pelos despejos no Estrela de África, Santa Filomena, 6 de MaioNo terreno, as soluções que apresentam a quem está fora do PER são ir para um centro de acolhimento temporário ou um mês de renda e outro de caução mediante apresentação de contrato de arrendamento. A autarquia tem argumentado que “ninguém fica na rua” e todos são acompanhados por técnicos durante meses. “O bairro está muito degradado, penso que grande parte das famílias se pudesse ia-se embora. Já não apetece viver aqui”, diz a irmã Deolinda, preocupada com o tráfico e consumo de droga. Deolinda ainda se lembra da altura em que a câmara colocava um papel na porta a avisar que a casa ia ser demolida. Hoje “parece” que já não o faz. Mas “ninguém pode dizer que não sabia”, há anos que se anunciou que o bairro vai ser demolido, justifica. “Em alguns casos as pessoas são descuidadas. ”Há também situações em que “a gente não sabe o que dizer, nem que pensar”, desabafa, partilhando o sentimento de desespero de quem, se pudesse, dava casas às pessoas. Muita gente veio alugar casas nestes bairros por várias razões, lembra Rita Silva, da Habita, uma associação que tem feito pressão contra os despejos sem alternativa. Mas isso é apenas “manifestação do problema brutal que existe no acesso ao mercado privado da população negra e pobre. Os senhorios não gostam e pedem fiador, e as rendas são caras. As pessoas viram-se para estes bairros onde as rendas são mais baratas e os pré-requisitos menores”. À medida que as casas caem, cai também o cuidado com o ambiente à volta. Andar pelo 6 de Maio hoje é pisar despojos de vidas. Ainda assim, a vida continua. Um grupo de homens reúne-se à entrada do bairro. Numa mesinha, servem chá à marroquina, mudando a bebida de um copo para outro até formar uma certa espuma. Às vezes também aparece uma senhora a cozinhar numa fogueira panelas de couratos, por exemplo. Adriano Furtado, mais conhecido como “Florzinho”, aproxima-se. Usa um blazer cinzento e uma boina. É falador. — Vejo-os a chegar aqui com polícia de intervenção rápida, partir as portas e as casas. Tratam a raça negra pior que um animal. Quem é que reage com a força policial que eles põem aqui no bairro?Vejo-os a chegar aqui com polícia de intervenção rápida, partir as portas e as casas. Tratam a raça negra pior que um animal. “Florzinho” vive no primeiro andar de uma das casas que estão à entrada. A estrutura de tijolos à vista tem um pequeno balcão, onde armazena um grelhador e se empilham um micro-ondas e restos de cadeiras. Lá dentro, o chão em placas de madeira dá mais luz à sala, com um sofá, uma mesa e cadeiras. Aos 66 anos, pensionista, recebe 320 euros por mês. Gravou com músicos como Katuta Branca. Até aparece na Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, com direito a fotografia, tocando fero. Está em Portugal desde 1971, aqui cumpriu o serviço militar. Foi mobilizado para Angola, voltou em Janeiro de 1974. Entregou a farda em Cabo Verde, onde nasceu, depois do 25 de Abril. Vive desde 1975 no bairro. — A barraca não tinha número. Não havia telefone. Íamos buscar as cartas à papelaria, lembra. O primeiro emprego foi como cobrador na Carris. A zona onde estamos sempre foi bem servida de transportes. Apesar de viver ali há décadas, dizem-lhe que não está recenseado no PER. Foi a várias reuniões na câmara, mas nada. Pagava cerca de 40 euros anuais de IMI. Tem um advogado a tratar do assunto. — Se a câmara vier aqui pôr-me na rua, da maneira que eu vejo fazer, que vida é minha? Para onde vou? Para debaixo da ponte? Sou negro mas sou português de nascimento. Já disse: ‘Vocês querem expulsar os negros de Portugal. ’ Andei a dar a minha vida pela pátria portuguesa. E agora: sou um cão?“Florzinho” usa estas palavras para descrever o que viu acontecer no bairro a pessoas como Mozer Almeida, quase 25 anos. Com o 7. º ano, desempregado, anda a dormir em casa de uma familiar enquanto a situação não se clarifica. Mozer está em cima de um cadáver: os escombros do que foi a sua casa durante seis anos, no Estrela de África, bairro contíguo ao 6 de Maio. A casa era do avô. Depois do despejo, esteve uns tempos a dormir no carro; outros em casa de um primo, outros em casa de amigos, pessoas que têm as suas próprias vidas. Há uma lixeira do lado de lá das paredes que ainda estão intactas. Uma delas tem um quadrado que era uma janela, a única do quarto e praticamente a única de casa tirando a porta de entrada. O tio é que o ajudou a fazer aquela janela. — A parede suava. Quando era calor, era calor demais; quando era frio, era frio demais, diz. O quarto era pequeno, tinha espaço para uma cama de casal e um armário. Vivia ali com a avó, doente, que agora está em casa de uma prima. Aos 72 anos, é reformada e recebe uma pensão de 237 euros. Ele não tem direito a subsídio de desemprego, anda à procura do que for preciso. Mas não é chamado. A avó não estava abrangida pelo PER. Saíram pelas 7h30 de dia 3 de Outubro. — Nunca recebemos nenhuma notificação, queixa-se. Ninguém da autarquia os contactou a avisar, acusa. Eram os vizinhos que diziam “um dia a vossa casa vem abaixo”. Derrubaram tudo com as coisas dentro, como o frigorífico, conta. Ele levou para o armazém da câmara um colchão, sacos com roupa, loiças. — Foi o pior dia da minha vida em Portugal. Nunca esperei. Podia ter sido tudo diferente com avisos, ajudas. Mas fomos tratados como animais, com polícia dentro de casa. Empurram as portas e põem as pessoas na rua, entram com armas como se fosse um crime. À avó, propuseram-lhe ir para um lar ou para Cabo Verde. Não quis. — Uma pessoa que trabalha 20 anos para depois ser tratada como um animal… A entrarem assim… é barraca mas é a casa, é o lar, o porto de abrigo da pessoa. Sentiu-se “humilhado”. — Ainda por cima à frente das pessoas, a tirar as coisas à pressa…Foi o pior dia da minha vida, repete. Não conseguia olhar para ninguém. A Habita está a apoiar 25 agregados familiares no 6 de Maio que estão fora do PER. “As pessoas não podem ser despejadas sem que haja uma alternativa”, diz a dirigente, Rita Silva, ex dirigente do Bloco de Esquerda. “Tem de haver uma resposta do Estado, seja do Governo ou da câmara. ”Por causa de situações como a de Mozer ou Ondina, a Habita escreveu várias vezes ao provedor de Justiça que ainda recentemente emitiu uma recomendação para que o PER seja revisto. José de Faria Costa disse na carta enviada ao Ministério do Ambiente (MA) — o supervisor do PER — que “a resposta não pode ser encontrada apenas pelos municípios”. Contactado pelo P2, o MA não respondeu a tempo desta reportagem. Deu dados: em 1995 estavam identificadas quase 48. 500 famílias para realojar, neste momento faltam 3301 famílias. O investimento total até agora no PER foi de 2, 4 mil milhões de euros. A Câmara da Amadora não quer saber se são crianças ou idosos. Nas últimas demolições, vimos um senhor acamado, idoso, deixado em frente a sua casa no chão. Não conseguimos mobilizar ninguém, quem o ajudou foram os vizinhos. ”Terão sido estes os dados que o MA passou, esta semana, aos dois peritos em direitos humanos da ONU que vieram a Portugal em missão de recolher informações para avaliar o impacto das medidas de austeridade nos grupos mais vulneráveis, focando-se na habitação. Entre os locais que visitaram, estava o 6 de Maio. Esta terça-feira dão uma conferência de imprensa. A Habita fez uma queixa à ONU em 2012 sobre demolições e despejos. “Em Cascais, conseguimos que as mulheres com crianças fora do PER fossem realojadas”, diz Rita Silva. “Mas a Câmara da Amadora não quer saber se são crianças ou idosos. Nas últimas demolições do 6 de Maio, vimos um senhor acamado, idoso, deixado em frente a sua casa no chão. Não conseguimos mobilizar ninguém, quem o ajudou foram os vizinhos. ”O mesmo aconteceu meses antes a Suleimane Baldé, 47 anos. Entraram e demoliram-lhe a casa. Ele ficou sem lugar para onde ir. Não recebeu qualquer justificação ou apoio. A fotógrafa Ana Brígida, que acompanhava as demolições (autora do portfólio que acompanha este texto), foi quem lhe tentou arranjar apoio através da linha de emergência social. Deu-lhe dinheiro para os transportes até ele chegar a um Alojamento de Emergência. Mas passados dias teve de sair. É o Instituto da Segurança Social (ISS) que presta apoio a quem fica na rua, mas “apenas nas situações de grave vulnerabilidade e desprotecção social”, segundo a assessoria de imprensa. E, “na impossibilidade de encontrar alternativa habitacional em tempo útil”, encaminha as pessoas para os Centros de Alojamento de Emergência, “mantendo-se o acompanhamento até à existência de condições de autonomia”. Operado cinco vezes, Suleimane não pode trabalhar nem voltar à Guiné-Bissau justamente por causa da sua saúde. Agora está no quarto de um amigo, depois de ter dormido numa garagem, ao frio, e numa mesquita na zona. O seu corpo é esguio e visivelmente frágil. Vivia naquela casa com mais quatro homens desde 2010. Em Fevereiro de 2015, vinha da mesquita e viu tirarem-lhe as coisas de casa. Já o tinham avisado. Mas Suleimane Baldé não tinha qualquer condição para pagar renda, não tem modo de trabalhar. Há oito meses que está sem casa. — Tenho dificuldade. Fiquei admirado com a câmara e a Segurança Social. Cadáver não precisa de comer. Cadáver não precisa de casa. Cadáver não precisa de dinheiro. Mas uma pessoa que vive precisa de ajuda. Antropóloga que acompanhou as demolições no bairro de Santa Filomena e no 6 de Maio, Rita Alves não tem dúvidas de que nestes processos estão a ser “violados um rol de direitos, do direito à habitação à intimidade e família”. Autora da tese de mestrado “Para uma compreensão da segregação residencial: o plano especial de realojamento e o (anti-racismo)”, diz: “O mais grave é a violência e a negação sistemática da dignidade às pessoas”, critica. Contextualiza o PER: nos anos 1990, aparece um discurso de reconhecimento da periferia “que faz uma racialização e criminalização dos bairros”. O programa é criado num período de projecção de Portugal (primeiro na Lisboa Capital da Cultura 1994 e depois na Expo-98). É um “projecto robusto” de realojamento que também faz “uma limpeza das cidades”. Além disso, o PER usa a palavra barraca quando na verdade “a maioria das casas são construções de alvenaria feitas por pessoas que trabalharam nas grandes obras públicas em Portugal”. Ao realojar, “não está a dar casa”: na maioria dos casos, as pessoas fizeram investimentos, sacrifícios, em territórios simbólicos que elas próprias transformaram. Na sala de Amália, 39 anos, ouve-se, por estes dias, a retroescavadora que destrói a casa do lado. — Eles vão partir a minha parede, diz, olhando para trás, assustada ao som da destruição. — A parede protege o meu quarto. Se partirem a janela, fica na rua — e isso mete-lhe medo. Ouve-se também, de vez em quando, o choro da neta de dois meses. As paredes tremem, e a filha, de 23 anos, também. Amália foi mãe aos 16/17 anos. Tem outro filho com dez anos. Vive com os três, sozinha. Já fez muita coisa na vida, entre elas, ser ajudante de cozinha, o último emprego que teve. Veio-se embora porque o patrão queria que ela ficasse a trabalhar de segunda a sábado, por 530 euros, em horário repartido (das 10h às 15h e depois das 19h30 às 23h30). Não aceitou. Ao fim de meses a insistir, conseguiu finalmente que ele lhe passasse uma carta para ela receber o subsídio de desemprego. Está a sobreviver com a ajuda do pai do filho e o abono de família de 40 euros. Mora há 13 anos no 6 de Maio, e é um dos exemplos de quem investiu na casa. Fez remodelações. E as mudanças notam-se. Entra-se por um quintal amplo onde há um sofá por baixo do telheiro. A roupa está estendida ao ar. Dentro de casa ouve-se o som da máquina de lavar. A filha aparece com a bebé. Enquanto pisamos o chão de azulejos em direcção à mesa da cozinha, ela diz:— Já fiz muitas obras. Mesmo lá em cima, para proteger das chuvas. A humidade continua, porém, a estender-se pelas paredes. Desde que começaram as demolições, e agora com a retroescavadora à porta, há mais água a entrar. O filho de dez anos tem asma, que “apanhou por causa da humidade”. Antigamente, todos os anos pintava a casa de fresco. Costumava comprar muitas velas e ambientadores para disfarçar o cheiro a esgoto e humidade. Não tem meios para sair dali. — Uma casa T2 são 400 e tal euros. O ordenado mínimo é 500 e poucos…A autarquia ajuda-a com um mês de caução e um de renda, mas Amália tem de encontrar uma casa para ela, os dois filhos e a neta por, no máximo, 300 euros mês. — Pedem contrato de trabalho, fiador, está muito complicado mesmo…Pagava 150 euros de renda, até que um dia disseram-lhe, na câmara, que o dono da casa tinha resolvido o seu caso pelo PER. — Fiquei, fiquei. Em 2007, ela chamou-me para eu entregar documentos. Disse que não tenho direito a PER, mas estava no programa Pro Habita [alternativa de apoio a quem estava fora do PER e que foi suspenso por alegada falta de verbas em 2009]. Fiquei com esperança de ter uma ajuda. Vou procurando trabalho, a minha filha também, se me ajudarem com avanço do princípio…Na autarquia deram-lhe até 19 de Dezembro para resolver a situação. Investigador em Estudos Urbanos, António Brito Guterres lembra que passaram 23 anos desde o PER, e isso significa que muitas pessoas morreram, outras já nasceram, novas foram morar para os bairros. Por isso há uma enorme massa de gente que fica de fora do programa. “Muita da resistência tem que ver com isto. Como é que se pode agarrar este processo sem actualização de recenseamento?”, questiona. Grande parte do problema, neste e noutros bairros do concelho da Amadora, está no facto de a CMA não ter construído o número de habitações suficientes para o recenseamento que fez, acusa Rita Silva. “O Estado tinha que encontrar soluções para dar habitação àquelas famílias, que não são assim tantas”. O parque habitacional da autarquia distribui-se por vários bairros periféricos, como o Casal da Mira, da Boba, do Silva ou o Bairro do Zambujal, e por casas dispersas em vários bairros do concelho. Carla Tavares, a presidente, diz que não há espaço nem meios para construir mais habitação social. Reconhece que a solução tipo Casal da Mira é a prova de erros que não se devem cometer. “As dificuldades de gestão e de vivência são imensas. ” É um mau exemplo porque “são 750 fogos, com seis andares, não é possível manter as relações de proximidade que havia” e as pessoas vivem longe de tudo. Nisso a CMA e a Habita estão de acordo. A aplicação do PER destruiu laços de suporte social que existiam e “guetizou”, acusa Rita Silva. Por isso defende “um realojamento in loco”. Explica: “O 6 de Maio hoje está muito mais bem servido em termos de infra-estruturas, serviços públicos e transportes do que as segundas e terceiras periferias para onde a câmara manda as pessoas”, argumenta. “Parte significativa” do terreno onde está o 6 de Maio “é municipal”, esclarece a autarca. Mas construir e realojar ali os moradores está fora de questão. “Vá visitar o Casal da Mira e percebe o que é realojar uma Azinhaga dos Besouros em 750 fogos. ” Quanto a Santa Filomena, os terrenos são privados. "O PER mandata a erradicação dos bairros degradados mesmo em terrenos privados. Ao contrário do que diz o Bloco de Esquerda e o Habita nunca entrou na câmara uma pretensão urbanística para aquele terreno, embora tanto quanto sei Santa Filomena está num fundo fechado", responde. O Casal da Mira, hoje freguesia da Encosta do Sol, é um lugar para o qual muitos não querem ir. Foi construído em 2004 e as rendas são calculadas com base nos rendimentos declarados, composição e características do agregado familiar. A autarquia financiou este empreendimento com 22, 6 milhões de euros. O 6 de Maio hoje está muito mais bem servido em termos de infra-estruturas, serviços públicos e transportes do que as segundas e terceiras periferias para onde a câmara manda as pessoas”Pelo menos é essa a narrativa que circula entre moradores e entre quem acompanha os realojamentos. “Rusga ‘rende’ sete presos”, “Polícia cerca Casal da Mira” são títulos da imprensa sensacionalista sobre o bairro. Com prédios brancos e laranjas todos iguais, é difícil lá chegar de transportes públicos. No Google Maps, por exemplo, não há circuito sugerido para autocarro, camioneta ou comboio. A porta do prédio para onde Maria da Piedade se mudou há pouco mais de um mês está aberta. Subimos no elevador. Na sala, a árvore de Natal já pisca com as luzinhas. Um móvel castanho tem fotografias de família e estatuetas de porcelana. Uma imagem da Mona Lisa enorme pendurada na parede finta quem está sentado num dos sofás. É um apartamento com uma boa sala e dois quartos. — Estou melhor, porque onde estava não estava bem, não tinha sítio certo. Maria da Piedade, 49 anos, vive aqui com o filho e o companheiro. O outro filho, a filha e a mãe ainda vivem no 6 de Maio, em casas diferentes. Em casa da mãe entra chuva, “estamos fartos de falar com a câmara”, queixa-se. Lá vivem seis pessoas: a mãe e os irmãos, um deles com deficiência auditiva e outros dois com deficiência mental. Está a tentar que sejam realojados junto dela. Entre a família, foi a primeira a ser realojada. Arranjou um advogado, depois de lhe ter sido dito que estava fora do PER. Morava, na verdade, no Estrela de África, na casa do pai dos filhos. Ele vendeu a casa e “deixou-a na rua”. Ficou contente por ir para o Casal da Mira, não reconhece o retrato negativo que traçam. Sabe que “a câmara não dá casa”: “aluga casa”. Doente crónica, desempregada, recebe Rendimento Social de Inserção. Cresceu ao mesmo tempo que os bairros Estrela de África e 6 de Maio. O pai chegou de Viseu eram eles pequenos. Punha-a a pedir esmola, a acartar papelão, a buscar água, ainda o bairro funcionava a gerador. Lembra-se bem das destruições no Bairro de Santa Filomena, quando subiu a uma retroescavadora para impedir que destruíssem a casa de uma mulher. — Na maneira como fazem às pessoas, só na Amadora acontece, queixa-se. Na Damaia sentia-se melhor. Tinha amigos vizinhos, “porta a porta”. Tinha transportes. Aqui só rodoviária: nem Carris nem metro. — Nunca vou esquecer do bairro 6 de Maio. A nossa casa é a nossa casa. António Brito Guterres fez tese de licenciatura em Serviço de Acção Social sobre o realojamento na Pedreira dos Húngaros (que acabou em 2003) e lembra que o que está a acontecer no 6 de Maio não é novidade. Há movimentos parecidos: quem foi realojado por vezes regressa regularmente ao bairro antigo, caso do Flávio, que todos os dias vai ter com as amigas a Santa Filomena, a uma das poucas casas que resistem. Volta porque pelo menos ali havia vida de bairro, o pai construiu a casa e aumentou-a à medida da sua família, explica num dia de sol. A sensação de ser “um espaço conquistado”, no sentido em que as pessoas tinham capacidade para decidir sobre ele, reforçava uma relação afectiva que parece desaparecer quando as populações são realojadas, analisa Guterres. Parece que o realojamento é negativo? “Nem sempre”, responde. “Cada câmara fez o realojamento de forma diferente e em tempos diferentes. Houve a sensação de que ia resolver parte da pobreza. Muitas vezes a conotação do realojamento é negativa porque o tecto é melhor mas os outros aspectos são piores, como a mobilidade, o emprego, as relações com os vizinhos. Depois, o centro de saúde fica mais longe e a escola é mais segregada. ”Cada câmara fez o realojamento de forma diferente e em tempos diferentes. Houve a sensação de que ia resolver parte da pobreza. Muitas vezes a conotação do realojamento é negativa porque o tecto é melhor mas os outros aspectos são piores, como a mobilidadeAntropólogo de formação, doutorado em Geografia, Eduardo Ascensão faz parte do Expert, um projecto interdisciplinar e internacional de investigação que estuda a política de habitação e o papel dos peritos no PER. Lembra que desperta o interesse dos colegas estrangeiros por ter incluído uma solução de realojamento maciço, como o Casal da Mira, onde vive Maria Piedade, numa altura em que na Europa e nos Estados Unidos esse tipo de políticas já não se praticava (tinham sido substituídos por outro tipo de modelos como subsídio à compra ou ao arrendamento). “A maior parte desses modelos veio a revelar concentração de pobreza, situações problemáticas que fazem com que haja uma espiral para baixo, com corte das ligações económicas com o resto da cidade”, analisa. Autor do artigo “A barraca pós-colonial: materialidade, memória e afecto na arquitectura informal”, analisa a relação do PER com o passado colonial, pois a maioria dos recenseados na altura vinham das ex-colónias portuguesas em África. Olha para o programa como “um dos instrumentos da nossa reconfiguração social como país”. Por um lado, foi “maravilhoso”, afirma, por ser o primeiro programa de habitação pública com os imigrantes como destinatários. Por outro, as instituições do Estado, autarquias, IHRU várias vezes trataram “os destinatários de cor do PER com poder coercivo excessivo”. E isso fez com que “ficassem desprotegidos”, praticando assim “formas aproximadas de racismo institucional”, analisa. Exemplos: “A falta de voz com que algumas pessoas ficaram, o facto de em alguns sítios as populações brancas terem sido realojadas primeiro. ” Outro exemplo, o programa Retorno: “A indemnização era bastante abaixo de um fogo público e portanto havia aqui a ideia de que ‘ajudamos-te a ir embora e deixas de ser problema nosso’. ”O que o turismo tem que ver com as demolições?Neste momento, “o PER já não responde à sua função que é realojar, está é a justificar o despejo”, critica Rita Silva. António Brito Guterres acrescenta: “É intolerável as pessoas viverem em sítios esconsos, sem esgotos. Mas não realojá-las é escandaloso. O que está em causa é que estamos no século XXI e não dão alternativas além da rua. Dão dois meses de renda a quem não tem fiador, nem rendimento, nem muitas vezes documentos. ”Para Eduardo Ascensão, os agregados “não PER” “muitas vezes” têm condições “mais precárias e são mais pobres do que os que foram recenseados em 1993”. Defende que o facto de “serem administrativamente não PER” não os deve excluir. É taxativo: é preciso concluir o programa e “resolver de vez estes casos”, que têm sido “tratados de forma brutalmente opressiva por parte de agentes do Estado”, “injectando, se for preciso, financiamento adicional”. Situações como a de Amália, de Suleimane, de Ondina, de Mozer, em que o “dono da barraca” aproveita o seu próprio realojamento para fazer dinheiro, são minoritários, diz. “O Estado tem obrigação de providenciar habitação digna para estas pessoas. Não pode deixar as autarquias em roda livre e ser cúmplice de situações que já foram denunciadas. ” Se o investimento no PER foi de 2, 4 mil milhões, neste momento para fechar o programa é necessário “uma ínfima parte disto”. Acrescenta: “A transferência de populações deu imenso dinheiro a ganhar a muita gente. Menos às pessoas que lá viviam. ”O que devia ser feito ao PER? Primeiro concluir. Depois, planear com os moradores, defende António Brito Guterres: “Estou habituado a trabalhar em processos com as pessoas, por isso confio nisso para decidir melhor. ”A verdade é que, lembra, o próprio primeiro-ministro, António Costa, parece ter sugerido indirectamente o falhanço do PER na Cimeira Europeia de Bratislava, Eslováquia, em Setembro, ao apresentar como medidas de combate ao terrorismo a regeneração urbana, o desenho de políticas públicas específicas e “regeneração física dos bairros periféricos” na Europa. Algumas das soluções propostas pela Habita para resolver o problema da habitação social em Portugal passam pela expropriação e acordo com os privados nos terrenos em que foram construídos estes bairros, misturando depois a construção de habitação a custos controlados com a habitação privada (sendo que em alguns casos, como no bairro da Cova da Moura, a reestruturação seria suficiente). Apesar de serem consideradas barracas, é preciso lembrar que os proprietários pagavam Imposto Municipal sobre Imóveis em quase todos estes casos. 6690 número de pessoas a viver em barracas em 2011, segundo o INE. Em 1981 eram 74. 603 em 1981. Mas a habitação social não chega aos 2%A realidade alterou-se muito nos últimos anos. O número de pessoas a viver em barracas passou de 74. 603 em 1981 para 6690 em 2011, segundo o INE. Mas a habitação social não chega aos 2%. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Isto mostra que “não há política social de habitação neste país”, diz Rita Silva. “Depois do PER, não houve outro programa de habitação social. O Estado gastou muito dinheiro público desde os anos 1980 em créditos bonificados, que eram subsídios à banca através das famílias. E investiu muito pouco em habitação social”, critica a activista. As verbas deviam ter sido usadas para a habitação social, defende. “Os aumentos dos arrendamentos nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto são preocupantes. A pressão é enorme, faz com que esteja a haver aumentos em toda a AML de Lisboa e Porto, o que afecta a maior parte das famílias. ” A consequência é a população ser empurrada para os segundos e terceiros subúrbios. “A habitação social não tem de ser esta construção pobre, feia, para os pobres”, critica, por outro lado, Rita Silva. E sublinha: “A sociedade acha inaceitável que seja recusado um tratamento hospitalar a alguém por não ter dinheiro. Mas é bastante aceite que uma pessoa seja despejada por não ter dinheiro, nem alternativa. ”Está na Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todo o ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e à sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis. ”
REFERÊNCIAS:
Sete refugiados olham-nos nos olhos: e agora?
Sanctuary, de Brett Bailey, coloca os espectadores no labirinto burocrático e moral em que a União Europeia se transformou desde a crise migratória de 2015. Na nova instalação-performance do polémico encenador sul-africano – até dia 24 em Lisboa, a partir de dia 2 no Porto – não há cadeiras confortáveis, só arame farpado. (...)

Sete refugiados olham-nos nos olhos: e agora?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 5 Refugiados Pontuação: 18 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sanctuary, de Brett Bailey, coloca os espectadores no labirinto burocrático e moral em que a União Europeia se transformou desde a crise migratória de 2015. Na nova instalação-performance do polémico encenador sul-africano – até dia 24 em Lisboa, a partir de dia 2 no Porto – não há cadeiras confortáveis, só arame farpado.
TEXTO: Não é algo de que ele goste de se gabar, mas a realidade não tem parado de dar razão a Brett Bailey – só na última semana, por exemplo, a realidade deu-lhe 629 razões, uma por cada migrante resgatado pelo navio Aquarius que a Itália se recusou a receber (“Na nossa casa mandamos nós”, declarou para memória futura Matteo Salvini, o novo ministro do Interior, imediatamente aplaudido por 59% dos eleitores do país) e que após vários empurrões e o habitual non-sense europeu acabaram por encontrar um porto em Espanha. “Bom, e entretanto temos o ministro do Interior da Alemanha [Horst Seehofer] num braço-de-ferro com a chanceler [Angela Merkel], a ameaçar com deportações unilaterais. Definitivamente, as tensões na Europa estão a ficar descontroladas. E há mais tempestades a caminho”, diz o polémico encenador e artista visual sul-africano ao PÚBLICO, sempre no seu flow torrencial, antes de desligar o telefone. À hora em que nos dá esta entrevista sobre Sanctuary – a instalação-performance que até dia 24 acampa na Tobis Portuguesa, em Lisboa, e que de 2 a 7 de Julho sobe ao terceiro andar do Palácio dos Correios, no Porto –, Brett Bailey ainda não sabe que 86% dos alemães subscrevem a ideia de deportar os imigrantes ilegais rapidamente e em força, mas adivinha. Os meses que passou a visitar campos de refugiados, fronteiras “difíceis” e centros de acolhimento para migrantes e requerentes de asilo nos países europeus onde a questão migratória se tornou mais crítica foram bastante elucidativos – e antes disso já tinha aprendido tudo o que havia para aprender na África do Sul, “que após o fim do Apartheid, quando as fronteiras se abriram, se tornou a terra das oportunidades para milhões de pobres de toda a África subsariana” e, paralelamente, um viveiro de “violência xenófoba” que teve o seu apogeu em 2008, quando só numa semana 41 estrangeiros foram assassinados e 60 mil pessoas fugiram para campos de refugiados. Há mais de 15 anos que a África do Sul também é essa história pouco edificante de pobres contra pobres, e há mais de 15 anos que, com a sua Third World Bunfight, Brett Bailey a vem querendo contar nos seus espectáculos sempre apontados ao coração das trevas. Num dos últimos, Macbeth, que em 2014 trouxe ao Teatro Maria Matos, atirava à cara dos seus vizinhos africanos, mas também do Ocidente, a avidez com que os traficantes de diamantes e as multinacionais dos smartphones continuam a predar a República Democrática do Congo, onde nos últimos 20 anos se amontoaram 5, 5 milhões de cadáveres. Entretanto, como era de prever, África trouxe-o à Europa – Exhibit A (2010) e Exhibit B (2013), os seus esforços para denunciar a persistência dos “sistemas raciais” do colonialismo, visaram, respectivamente, o passado alemão da Namíbia e o passado belga da República Democrática do Congo – e aqui estava em 2015, quando as notícias cada vez mais apocalípticas sobre a “crise migratória” e os inquietantes sinais “do crescendo da resposta xenófoba” o puseram nervoso, ou seja desejoso de entrar em campo. O espectáculo a que chegou (muitos relatórios, muitas reportagens, muitos vídeos amadores, muitos documentários, muitas entrevistas presenciais e muitas visitas de estudo depois) é a sua maneira de dar voz às tensões “que estão a dilacerar a Europa” – vista de fora, diz, “a fractura é cada vez mais ostensiva”. E também a sua maneira de colocar os espectadores europeus, ainda que muito temporariamente, no labirinto burocrático e moral em que se transformou o lugar a que chamam casa, e que vários milhares de pessoas por ano morrem a tentar atingir. Aqui não há cadeiras confortáveis nem distância de segurança: apenas vedações, arame farpado, funcionários de rosto fechado, câmaras de vigilância e um fio de lã vermelho, cor de sangue, a conduzir o público, dividido por grupos de seis ou sete pessoas, até às histórias que Brett Bailey quis contar. Não são histórias reais. Mahmoud, o proprietário de uma loja de vestidos de Yarmouk, na Síria, que acaba sozinho com um bebé nos braços no campo de refugiados de Idomeni, na fronteira entre a Grécia e a Macedónia, ou Fatima, a vendedora de frutas e legumes de Turalei, no Sudão do Sul, que acaba em soutien num peep-show de Nápoles depois de uma odisseia de violências e violações, são ficções. Mas são ficções que nos olham directamente nos olhos, e nunca desviam o olhar. Tal como Simone, a reformada francesa, vizinha da “Selva” de Calais, que se entusiasma com os slogans xenófobos de Marine Le Pen na televisão, ou Marcel, o funcionário municipal alemão que até aplaudiu a disponibilidade de Angela Merkel para receber migrantes e refugiados mas agora acha sinistros os bandos de homens sem mulher e sem família que se juntam no jardim ao fim da tarde. São nove flashes, nove quadros-vivos da Europa tal como Brett Bailey a vê hoje. “Quis contar histórias similares às que encontrei nos campos de refugiados de Lesbos e de Calais, ou nos centros de acolhimento de Hamburgo, ou na fronteira entre a Áustria e a Eslovénia: histórias de migrantes que dão por si presos num limbo quando chegam à Europa, vindos de um país que viram violado ou destruído, e descobrem que afinal o lugar a que chegaram não é o santuário que tinham imaginado; e histórias de europeus que sentem que o seu próprio santuário tem sido violado por intrusos”, explica. Uma parte do que está em Sanctuary, “talvez uns 10%”, vem do que viu nos meses em que deambulou por esses purgatórios, “à procura de sons, de imagens, dos pequenos detalhes que tornam as coisas reais” – o rasto de “malas, roupas e coletes de salvação fluorescentes espalhados pela praia” em Lesbos depois da "relocalização" dos refugiados para a Turquia, as condições atrozes da “Selva” de Calais, entretanto desmantelada, a espera interminável, reunião após reunião, formulário após formulário, do nigeriano há 12 anos retido num abrigo em Palermo. Os restantes 90% são uma mistura de coisas – reais, como parte dos intérpretes, que a cada apresentação Brett Bailey recruta localmente a partir de entrevistas com refugiados, imigrantes ou activistas (em Portugal, haverá quatro performers novos: um iraquiano, um sírio, e dois cidadãos da União Europeia), e imaginárias, como o mito do Minotauro, a metáfora em que o encenador encontrou um chão para isto tudo. Sentados numa cadeira de rodas à porta de uma loja, entre cartazes do Syriza e anúncios de marcas de roupa, ou mantidos à distância por uma barreira policial, os figurantes de Sanctuary não abrem a boca. Mas Brett Bailey acredita que os vemos melhor aqui do que em mais um zapping apressado pelos telejornais, em mais um scroll pelo mural do Facebook, em mais uma corrida pelos corredores do metro: “Eu não estou só a pedir aos espectadores para olharem, talvez até lhes esteja a pedir o contrário. A principal instrução que dou aos performers é: olhem para os espectadores fixamente, sem desviarem os olhos. É muito desconfortável. E torna impossível não reflectir sobre a situação. Principalmente porque estamos habituados a ver estas pessoas entre anúncios, o último tweet idiota do Trump ou o gatinho fofinho que alguém postou. Aqui não há mais nada, não há distracções, não há interrupções: tens mesmo de te confrontar com estas histórias. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Nesse processo, a história dos outros acabará por tornar-se nossa. Porque é aqui, em casa, que isto está a acontecer, e está a acontecer há muito tempo, desde a Antiguidade. O mito que estrutura a peça é a história do neto de uma princesa fenícia raptada por um deus grego, meio homem, meio touro, preso num labirinto e condenado a devorar rapazes e raparigas até à eternidade – e a princesa chama-se Europa. “Era irresistível ir buscar um mito grego, que ainda por cima é um mito sobre as relações entre a Europa e o Médio Oriente, via Mediterrâneo, porque parte desta crise está a desenrolar-se na Grécia e tem a sua origem na Síria”, diz o encenador. E quem é o Minotauro desta história? “Ah, boa pergunta… Acho que é a ganância. É a ganância que nos desumaniza, que nos faz perder de vista que as pessoas são pessoas e esquecer que somos em parte responsáveis pela destruição dos países de onde estas pessoas estão a fugir. ”Ao contrário do que aconteceu quando replicou os infames zoos humanos que divertiram os europeus do século XIX para mostrar como o colonialismo não é uma história totalmente ultrapassada – a apresentação de Exhibit B acabou cancelada em Londres e Paris na sequência de petições e protestos violentos –, ainda ninguém lhe perguntou o que é que dá a um branco sul-africano o direito de falar em nome de migrantes e refugiados sírios, sudaneses, iraquianos ou eritreus. “Aprendi muita coisa com esse terrível episódio. Muita coisa má, também, porque trouxe imensa auto-censura ao meu trabalho. A sensação que às vezes tenho é de que fui atropelado por um carro e tive de aprender a caminhar outra vez. Na primeira versão de Sanctuary ainda estava nitidamente a cambalear; entretanto, reescrevi a peça completamente”, conta. Depois da estreia em Atenas, e de uma digressão que passou por Hamburgo e Marselha, Sanctuary chegou esta terça-feira a Portugal para integrar o ciclo com que o Teatro Maria Matos se despede, dedicado ao tema das Migrações, e que inclui também, esta quinta-feira, às 18h30, uma conferência com o sociólogo argelino Mehdi Alioua e a jurista francesa Claire Roudier, e, a partir de dia 28, uma série de apresentações da peça Provisional Figures, que Marco Martins construiu com a comunidade de imigrantes portugueses de Great Yarmouth. Será o primeiro país no roteiro desta peça onde a presença dos refugiados não tem uma “dimensão cataclísmica”, nota Brett Bailey. Estamos longe desses lugares onde ele encontrou a “desesperança” que, se tudo correr bem, dominará por estes dias os corredores da Tóbis e do Palácio dos Correios. “É uma sensação difícil de descrever: a sensação de estar encurralado num lugar tão longe do sonho, sem poder sair, e de mesmo assim o sonho permanecer. ”
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
Isto é uma guerra, dizem os bóeres de Terre"Blanche
Terre"Blanche era o rosto da extrema-direita sul-africana. Sobre a sua campa, o sucessor jura pela independência bóer. Acha que os negros vão atacar os brancos e portanto os bóeres estão a treinar-se para a guerra. Viagem ao mundo rural, onde 85 por cento da terra continua na mão dos brancos. (...)

Isto é uma guerra, dizem os bóeres de Terre"Blanche
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 5 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-05-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Terre"Blanche era o rosto da extrema-direita sul-africana. Sobre a sua campa, o sucessor jura pela independência bóer. Acha que os negros vão atacar os brancos e portanto os bóeres estão a treinar-se para a guerra. Viagem ao mundo rural, onde 85 por cento da terra continua na mão dos brancos.
TEXTO: Às 10h da manhã, arranha-céus com roupa estendida no centro de Joanesburgo, e a meia-hora de distância as grutas onde viveram os nossos avós australopitecos. Bem-vindos à África do Sul. Estamos a 1500 metros, mas não se dá por isso. Saindo da cidade, é um infindável planalto. E, à medida que continuamos para noroeste, estufas, milharais, girassóis abertos, fardos de palha, vacas e ovelhas, fazendeiros brancos, trabalhadores negros. Dezasseis anos após as primeiras eleições democráticas, 85 por cento da terra agrícola continua na mão de brancos, e esta não é excepção. No tempo do apartheid, era a província do Transvaal, uma das regiões dominadas por afrikaners. Os afrikaners vêm de holandeses, franceses e alemães que se instalaram na África do Sul - os holandeses colonizaram o Cabo no século XVII; franceses protestantes chegaram em fuga às perseguições católicas; juntaram-se-lhes alemães (e ainda escandinavos, irlandeses, escoceses). Descendentes deste caldo, os afrikaners falam afrikaans (uma deriva do holandês), e constituem 60 por cento da população branca. Os outros brancos têm o inglês como língua materna e provêm dos colonos ingleses. Foi para escapar ao poder inglês que muitos afrikaners subiram do Cabo até estas províncias do Norte, no século XIX. Domaram a terra, e por isso são chamados bóeres, ou seja, agricultores. Mas agricultores-guerreiros, como se provou em duas guerras com ingleses e várias batalhas com povos nativos, como os zulus. Uma delas, a de Bloedrivier, em 1838, tornou-se um mito afrikaner: Deus mostrou-lhes que eram o povo escolhido de África. É esse mito levado à letra que alimenta a extrema-direita afrikaner, personificada por Eugène Terre"Blanche. Na versão supremacista dele, os bóeres não são apenas europeus que se tornaram africanos. São os verdadeiros africanos. E a África do Sul é a Terra Prometida. O mundo já não se lembrava deste punhado de eleitos divinos desde o fim do apartheid, mas a 3 de Abril Terre"Blanche foi encontrado na cama sem calças e a cara desfeita. Espancado com um tubo de ferro e esquartejado com uma panga (faca grande), morreu assim, aos 69 anos. Dois negros entregaram-se à polícia como autores do homicídio, alegando autodefesa. O mundo receou uma explosão em vésperas do primeiro Mundial em África. Centenas de polícias foram destacados para o funeral. Milhares de afrikaners acorreram. Tudo isto aconteceu em Ventersdorp, a terreola para onde estamos a avançar. Avó, mãe, filhaA primeira coisa que se avista é a torre de uma igreja. Igreja, lojas-armazém, bomba de gasolina, vacas na erva. Podia ser uma terreola do Kansas, com duas diferenças: os letreiros estão em afrikaans e só se vêem negros e mestiços na rua. Depois entramos num supermercado agrícola, e há uma branca obesa semiadormecida ao balcão, e atrás dela um branco a limpar as mãos a um pano. Cheira a fritos. Perguntamos pela sede do partido de Terre"Blanche, Movimento de Resistência Afrikaner (AWB, na sigla em afrikaans), onde o sucessor nos espera. - Viram à esquerda na igreja e seguem em frente - explica o homem. Parece fácil, mas perdemo-nos até dar com a rua, uma daquelas ruas de brancos com casas de tijolo, relvado e pick ups. A pick up dos bóeres é uma extensão da casa, serve para a fazenda e para os churrascos. E no pátio de uma das casas, cá está uma pick up, duas mulheres dentro e uma fora, a despedir-se. São avó, mãe e filha, Lina, 65 anos, Alta, 42, e Joanne, 18, todas com os mesmos olhos verde-clarão, que se enchem de lágrimas quando se fala em Terre"Blanche. Cada fazendeiro tem os seus lutos. - O meu marido e o meu irmão foram mortos há seis anos - diz Lina. - Estavam a apanhar trabalhadores ao pé de Pretória e deram-lhes um tiro. Quem?Lina hesita. - Não se sabe. Até hoje não o apanharam. Joanne, a mais nova, inclina-se para a janela. - A situação é muito má. Há um mês, no Free State [província vizinha, a sul], um negro veio com uma faca para o meu irmão. Ele tirou-lhe a faca e prenderam o meu irmão 24 horas. Os polícias também eram negros. Muita gente agora teme pela sua vida. Já ninguém quer viver nas quintas. Mas sem quintas não haverá comida. - O meu marido tem abelhas na quinta de Terre"Blanche - acrescenta a mãe. - E gostava muito dele. - Ele era muito gentil para toda a gente - reforça a filha. A avó começa a chorar. Às armasA sede do AWB é aquela casa mais à frente com portão de grades e uma velha carruagem à entrada. Pastores-alemães saltam na relva, à volta do novo líder. - São os cães do senhor Terre"Blanche, não fazem mal - assegura ele. Apresenta-se com férreo aperto de mão. André Visagie, 56 anos, cabelo cor-de-palha, sorriso fino e aquela pele dos ruivos que a todo o momento pode ficar vermelha. Além dos cães, rodeiam-no três rapazes de pistola no bolso e cara fechada, a ganharem barriga. Entramos. Átrio com ursos de peluche, sala de recepção com duas senhoras de província, e depois a sala do líder. Uma secretária imponente rodeada de retratos ancestrais e na parede principal a enorme pintura de uma águia a segurar nas garras o símbolo do AWB: uma espécie de suástica negra. André identifica a galeria de ilustres. - Eram generais da guerra anglo-bóer. E este é o senhor Terre"Blanche a cavalo. No seu inglês muito claro, diz sempre "Mr. Terre"Blanche". E, a propósito, nos nomes do AWB parece haver uma estranha predisposição racial. Terre"Blanche significa terra branca. - E o meu nome, André Visagie, significa cara branca, ou cara limpa - assegura ele, sorridente. Puxa duas cadeiras e sentamo-nos em frente à secretária, como se fosse um altar. O cadeirão do líder morto mantém-se vazio. - A situação é tensa, a nossa gente está furiosa. E agora o povo bóer afrikaner reclama a independência porque não recebe protecção do governo neste genocídio. Desde 1994, mais de 3000 fazendeiros foram mortos por negros. E mais de 50 mil brancos das cidades foram mortos por negros. Segundo as estatísticas, desde o fim do apartheid foram mortas cerca de 650 mil pessoas. Se 53 mil eram brancas, as outras 600 mil eram negras. Ou seja, na África do Sul morrem 12 vezes mais negros que brancos. Mas os fazendeiros brancos têm sido, de facto, um grupo particularmente atingido. Os sindicatos apontam problemas sociais por trás disso: os negros continuam a ser maltratados, com salários muito baixos, e os fazendeiros usam trabalho imigrante ilegal ainda mais barato, deixando muita gente sem subsistência. Os dois rapazes negros que mataram Terre"Blanche trabalhavam para ele. Um tem 28 anos e veio do Zimbabwe. O outro tem 15 e é da township vizinha, onde vivem os que trabalham para os brancos. Segundo o seu advogado, pastoreava o gado de Terre"Blanche das cinco da manhã às sete da tarde, por 50 euros por mês, uma taça de comida e alojamento num estábulo. Porque é que Terre"Blanche estava sem calças? A polícia disse que encontrou sémen nas partes íntimas. Levantou-se a hipótese de ele ter tentado violar os rapazes, ou de lhes ter pago por sexo. Também se levantou a hipótese de terem sido os rapazes a puxar-lhe as calças para o castrar. Crê-se que o fazendeiro lhes devia dinheiro. O processo vai continuar nos próximos meses. André Visagie não tem dúvidas. - Foi assassinado por razões políticas. É absurdo pensar num crime sexual. A imprensa fez do senhor Terre"Blanche um racista. Então, tem de decidir se ele é racista ou homossexual com negros. Não bate certo. Porque haveriam os rapazes de ter razões políticas para o matar?- Porque ele tinha a capacidade de unir os bóeres. Mas o AWB é um partido minoritário entre os bóeres. André sorri o seu sorriso fino, águia por trás das costas. - Só posso responder-lhe com o número que foi ao funeral, 20 mil. Gente de todo o país. As reportagens mencionaram "alguns milhares". A BBC falou em três mil. E a maior parte eram fazendeiros que não pertencem ao AWB. - Mais de mil foram ao funeral em uniformes do AWB. Caqui, e aquela suástica. Com quanta gente conta, então, o AWB?- Entre 100 e 150 mil pessoas. Como sabe isso?- De terça a quinta estamos a fazer reuniões pelo país, e chegamos a ter sete mil pessoas. Tenho falado do futuro da nação bóer. Recebemos mensagens a dizer que o Zimbabwe vai mandar os seus veteranos de guerra treinar os negros da África do Sul para tomarem as quintas dos brancos, como no Zimbabwe. "Mata o bóer"No Zimbabwe, Robert Mugabe levou 4000 fazendeiros brancos a deixar o país. O Presidente Jacob Zuma garantiu que aqui não acontecerão tomadas de terra. Mas o Zimbabwe é o fantasma dos fazendeiros sul-africanos. E para isso tem contribuído Julius Malema, o líder da Juventude do ANC, onde se destacaram homens como Nelson Mandela, Walter Sisulu e Oliver Tambo. Longe dessa tradição conciliadora, Malema é um incendiário que insiste em cantar uma velha canção anti-apartheid com as palavras "mata o bóer". Os fazendeiros acusam-no de incitar assim mortes como a de Terre"Blanche, e o ANC baniu a canção. - A invasão das fazendas vai acontecer aqui - garante André. - E a nossa primeira linha de defesa é dizer às pessoas que vão para as quintas e resistam. Armem-se para quando forem atacados por esta gente negra. Um milhão de pessoas da nação bóer já fugiu para escapar a este genocídio. O fim do apartheid gerou medos. Dos 4, 4 milhões de brancos da África do Sul, cerca de 800 mil partiram. Mas ao contrário do que muitos temiam, não foram só alguns negros a enriquecer. O poder de compra dos negros subiu 37, 5 por cento, mas o dos brancos subiu 83, 5 por cento. Apesar dos programas de discriminação positiva para negros, os brancos ganham hoje sete vezes mais do que os negros. São ainda os efeitos do apartheid. Não só os negros quase não tiveram acesso a boa formação como, desde o chamado Natives Land Act de 1913, os brancos ficaram com 87 por cento da terra. O governo quer que até 2014 um terço da terra agrícola passe para negros, mas até agora apenas passaram dois por cento. Isto é combustível para o populismo de Malema. O mundo admirou a contenção dos negros sul-africanos que depois de décadas de opressão não tocaram na propriedade branca. Quando o AWB de Terre"Blanche tentava impedir a democracia com atentados terroristas, Nelson Mandela manteve o país calmo. Foi um militante do AWB que assassinou o popularíssimo Chris Hani do ANC antes das eleições livres, e Mandela evitou a vingança com um apelo histórico. Desde que surgiu, nos anos, 70, a história do AWB é de confronto e violência. E por trás dessa história esteve sempre Terre"Blanche, a acicatar multidões, apesar do álcool e de nem sempre se aguentar no cavalo. A jovem bóer Joanne pode recordá-lo como gentil, mas não será essa a memória do empregado da bomba de gasolina que Terre"Blanche espancou e do segurança que tentou assassinar, ambos negros. O segurança ficou paralisado e com danos no cérebro. Eugène Terre"Blanche foi condenado a seis anos e cumpriu três, de 2001 a 2004. Quando saiu, anunciou-se cristão renascido. Independência ou morte- Isto é uma guerra - resume o seu sucessor. - É uma guerra que a polícia já não controla e temos de nos proteger. Cada pessoa está armada. Eu tenho as minhas armas de fogo, a minha mulher tem as dela. E entretanto, as crianças aprendem. - Ensino os meus filhos a disparar. A minha mais nova tem 13 anos e dispara melhor que eu. Tínhamos nove repúblicas bóeres e queremos a independência. Não estamos disponíveis para ser absorvidos nesta nova África do Sul. Temos a nossa religião, a nossa cultura, a nossa língua. E porque não ter tudo isso entre os negros?- Pela mesma razão que os portugueses não vivem com os espanhóis. Não é por serem pretos e brancos misturados, é por serem pessoas de nações diferentes. Porque é que não podemos ter uma nação nossa? É por sermos brancos? O apartheid não era apartheid, era separar nações diferentes. Com 75 por cento da população apertada em 13 por cento do território. - As fronteiras fazem paz. Primeiro, vamos abordar o governo e reclamar a nossa terra. Depois vamos para o Tribunal de Haia, para as Nações Unidas e para a Carta das Liberdades. Nós, quem? O AWB?- A Frente Afrikaner, formada nos últimos dois anos, que tem todas as organizações afrikaners. Teremos eleições no próximo ano. E até lá?- Não temos outra hipótese senão dar treino militar aos nossos homens. Quantos?- Os suficientes. Sorriso fino. - Não direi quantos. Estão a ser treinados em todo o país. Não põe a hipótese de partir?- Não. Podem matar-me e exportar o meu corpo, se quiserem. É o meu país. Os meus antepassados pagaram-no com sangue e eu tenho o direito de ficar. A campa de Terre"Blanche fica a 15 quilómetros, fora da cidade. André mete-se no carro com os seus três guarda-costas e arrancam. Vão levar-nos até lá. Passamos a cidade, estrada de asfalto, depois um caminho de terra à direita, sem qualquer sinal. Milho de um lado, capim do outro. Os dois carros saltam entre as pedras. Quando acaba o caminho, é mato mesmo, até umas árvores. Aí, a céu aberto, estão as sepulturas da família Terre"Blanche, várias, desde o século XIX. A campa nova destaca-se por estar coberta de flores embrulhadas em plástico. Como as flores apodreceram, ao longe parece lixo. Depois, ao perto, vê-se uma cruz de madeira no chão com palavras em afrikaans. - "O nosso herói descansa em paz" - traduz André. Metade da campa está guardada para a mulher de Terre"Blanche, que se mantém na casa de Ventersdorp e não fala com jornalistas. - Esta casa está vazia - diz André, apontando a quinta ao fundo. - E vendeu-se o gado dele. Contempla a cabeceira da campa, onde está o símbolo do AWB, com aquela suástica de três pernas. - Sabe o que isto significa? São três "7" que representam as três figuras de Deus: Pai, Filho e Espírito Santo. É o número perfeito, 777, em contraste com o de Satã, 666. É o símbolo de Deus que adoramos. E não receiam a comparação com a suástica nazi?- Não, porque a suástica nazi é assim. . . . - agarra num pauzinho e tenta desenhá-la na terra, mas engana-se. Depois acerta. - E o círculo vermelho à volta é o sangue de Cristo que nos lava. A nossa organização está enraizada na religião. Exemplo de um líder no mundo que admire?André mira o céu. - Eugène Terre"Blanche. Um líder do século XX?- Não consigo pensar em ninguém melhor que Eugène Terre"Blanche. O que pensa de Nelson Mandela?- Hum. Um prisioneiro libertado, a servir uma sentença por bombardear gente inocente. Talvez para o seu povo fosse bom, mas para nós não. E apontando as cores na campa. - Não reconhecemos a nova bandeira e o novo hino. Não nos importamos de os ter como vizinhos, se querem ter uma taxa de crime única no mundo, não nos importamos. Mas queremos a nossa nação, a nossa língua. Ninguém tocou no afrikaans. - Mas agora temos 11 línguas oficiais! É um circo!Depois cala-se, a olhar a campa. - Ainda não acredito que o meu líder tenha morrido. E de uma forma tão trágica. Um dos guarda-costas vem por trás e apaga o desenho da suástica com o pé. O novo líder levanta a cabeça. Agora não há sorriso, e a cara está vermelha. - Diga às pessoas que se protejam quando vierem para o Mundial. Os criminosos vão apontar aos visitantes. A toda a volta é capim. O sol desce rápido, como só em África. O medo continuaNo centro de Ventersdorp continuam a só andar negros, mas é difícil encontrar quem fale. Em nenhuma township encontrámos esta relutância. Júlia, 43 anos, três filhos, está sentada na sua pequena drogaria, onde não parece haver mais de dez coisas para comprar. Grande parte das lojas é de brancos. Isto para ela é uma novidade. - Trabalhei nas quintas a apanhar milho. A maior parte das pessoas aqui trabalha para os brancos. Alguns são bons, tratam bem as pessoas, outros não. Mais adiante, Mamase, 28 anos, é empregada de uma loja de móveis. A dona branca está lá ao fundo, ao telefone. - Eu vivo na township. Venho todos os dias com os meus pés. - Ri-se e aponta os pés. Conhecia Terre"Blanche?Ela ri. Não diz nada. Depois diz:- Conheço-o desde miúda. Lembro-me de estar na escola e a professora nos mandar sair porque pensavam que havia uma bomba do Terre"Blanche. Cá fora, de boné, está o carteiro Nadazana, 46 anos. Primeiro não quer falar, depois faz muitas perguntas. - Houve medo por causa da morte do senhor Terre"Blanche - explica, enfim. - Eu cresci aqui. Conheci o senhor Terre"Blanche há muitos anos. Fizeram uma coisa má em matá-lo, mas ele era cruel. Porquê?- Era racista. Tivemos medo que houvesse uma vingança dos brancos. As pessoas têm medo de falar, porque podem ver-nos no jornal. Quem?- Os gajos do AWB. Estas lojas são todas de gente do AWB. Nem de propósito, um carro com várias mulheres brancas encosta junto ao passeio e chama Nadazana. Ele debruça-se para responder. Depois o carro arranca. Nadazana viveu 30 anos sob o apartheid. É um homem experiente. - Perguntaram o que é que eu estava a falar convosco - explica. - E eu disse-lhes que vocês eram estrangeiros que queriam investir na África do Sul. Esta é a primeira de várias reportagens até ao início do Mundial.
REFERÊNCIAS:
Estranha estupidez
Quarenta e um anos depois de Abril, o velho paternalismo salazarento é uma nódoa que não desgruda. (...)

Estranha estupidez
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.32
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Quarenta e um anos depois de Abril, o velho paternalismo salazarento é uma nódoa que não desgruda.
TEXTO: Todos nós fazemos coisas estúpidas, mas há coisas que são tão estúpidas que nem sequer deveríamos lembrar-nos de as fazer. São coisas — por exemplo, o projecto de lei de PSD, PS e CDS para obrigar os media a apresentar planos de cobertura de campanhas eleitorais a uma comissão de exame prévio — que deveriam estar para além do próprio território da idiotice. É isso que nos choca tanto num caso como este. Não é a asneira em si, mas o enquadramento mental que a possibilita. A pergunta certa a fazer não é: como é possível que deputados da nação tenham proposto uma coisa daquelas? Mas sim: como é possível que deputados da nação se tenham lembrado de propor uma coisa daquelas?O Parlamento pode propor uma má lei eleitoral; mas não se lembraria de propor uma lei que impedisse as mulheres de votar. O Parlamento pode propor uma má lei da imigração; mas não se lembraria de propor uma lei que impedisse etíopes, somalis e bosquímanos de entrar no país. Ou seja, numa sociedade decente, há limites para o dissenso. Hoje em dia, não se discute a escravatura, nem o direito à igualdade das mulheres, nem o direito à existência dos judeus ou à liberdade religiosa, na medida em que existe um património de princípios partilhado por 99, 99% da população. Por muitos conflitos políticos que aconteçam no Parlamento, os valores mais importantes (vamos ser optimistas) são comungados por todos: a adesão à democracia, a protecção dos mais fracos, o combate à discriminação, o respeito pela liberdade de expressão. Por isso, ao sermos confrontados com um projecto de lei tão profundamente atentatório da liberdade de imprensa como aquele que terá sido assinado por Inês de Medeiros (PS), Carlos Abreu Amorim (PSD) e Telmo Correia (CDS), é difícil conter o espanto e a indignação. É que não é só a absoluta ignorância que este triste trio demonstra em relação ao trabalho da comunicação social — é o tal enquadramento mental que os leva a acreditar que uma lei como esta poderia ser aceitável no Portugal de 2015, apenas com o argumento de que há uma lei em vigor (à qual ninguém ligava desde o final dos anos 70) que era muito pior. E assim voltamos à vaca fria. Quando eu ando por estas páginas a chorar a falta de cultura liberal do país, e de como essa pecha é transversal à esquerda e à direita, é precisamente isto que eu quero dizer: só uma cultura profundamente estatista e dirigista, que faz parte do ADN do regime e de todo o seu espectro político, do PCP ao CDS, seria capaz de criar o ambiente mental onde tão estapafúrdia ideia pudesse germinar em documento. Todos os nossos insignes representantes estão absolutamente convencidos de que são indispensáveis à salvação da pátria, e de que só mesmo a sua bondosa e denodada acção permite corrigir os males em que o pobre Portugal, eternamente débil e infantil, insiste em mergulhar. Quarenta e um anos depois de Abril, o velho paternalismo salazarento é uma nódoa que não desgruda. Pior: é uma nódoa que os próprios meios de comunicação não combatem com o músculo necessário. É certo que o coro de indignação foi unânime e que a ameaça de não dar notícias sobre as eleições resultou. Mas essa é a ameaça errada. O que os media deveriam ter feito era anunciar a sua desobediência conjunta e lutar por ela nos tribunais europeus, se preciso fosse. A primeira obrigação de um jornal é informar os leitores, e não obedecer a leis iníquas. Para alguma coisa o direito de resistência está inscrito na Constituição. Jornalista, jmtavares@outlook. com
REFERÊNCIAS:
Partidos PS PSD PCP
Berlim 2017 começa ao som de Django Reinhardt
Biografia do guitarrista de jazz é o filme de abertura de uma edição menos ousada, cheia de pontos de interrogação pelo meio da passadeira vermelha e programada sob o signo da utopia. Teresa Villaverde está no concurso principal. (...)

Berlim 2017 começa ao som de Django Reinhardt
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.4
DATA: 2017-02-15 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20170215070109/http://publico.pt/1761265
SUMÁRIO: Biografia do guitarrista de jazz é o filme de abertura de uma edição menos ousada, cheia de pontos de interrogação pelo meio da passadeira vermelha e programada sob o signo da utopia. Teresa Villaverde está no concurso principal.
TEXTO: Django, de Étienne Comar, biopic romanceado do guitarrista Django Reinhardt, faz esta quinta-feira a abertura da 67. ª edição do Festival de Berlim, com a proverbial passadeira vermelha orquestrada por Dieter Kosslick, o truculento director do certame desde 2001. Uma produção francesa sobre um nome mundialmente conhecido da música – faz pensar numa repetição de 2007, há dez anos certos, quando o festival deu honras de abertura a La Vie en Rose, a biografia de Edith Piaf por Olivier Dahan que acabaria por dar o Óscar a Marion Cotillard. T2, a sequela do Trainspotting de Danny Boyle, e o adeus de Hugh Jackman a Wolverine, com Logan, vão ser os pontos altos das sessões de gala fora de competição, em que irão também marcar presença Catherine Deneuve e Catherine Frot (por Sage femme, de Martin Provost), ou o australiano Geoffrey Rush (por Final Portrait, de Stanley Tucci), ou Gillian “Scully” Anderson e Hugh “Lord Crowley” Bonneville (em Viceroy’s House, de Gurinder Chadha). Mas a edição 2017 da Berlinale, que se prolonga até dia 19 e inclui de novo uma forte presença portuguesa – uma longa e quatro curtas a concurso, mais quatro co-produções noutras secções –, está longe de ter a mesma ressonância das anteriores, como se o venerando certame alemão se tivesse “retraído” depois de três anos fortes. Em 2014, houve Richard Linklater (Boyhood), Alain Resnais (Amar, Beber e Cantar), Wes Anderson (Grand Budapest Hotel), Karim Ainouz (Praia do Futuro), Ira Sachs (Love Is Strange); em 2015, Patricio Guzmán (O Botão de Nácar), Pablo Larraín (O Clube), Andrew Haigh (45 Anos), Werner Herzog (Rainha do Deserto), Terrence Malick (Cavaleiro de Copas); em 2016, Gianfranco Rosi (Fogo no Mar), Mia Hansen-Love (O Que Está por Vir), Jeff Nichols (Midnight Special), Lav Diaz (A Lullaby to the Sorrowful Mystery), Ivo Ferreira (Cartas da Guerra), Salomé Lamas (Eldorado XXI), Alex Gibney (Zero Days)…Este ano, a competição berlinense, que Dieter Kosslick coloca à sombra das utopias (mas parece ser muito menos um “festival do tema” do que é habitual, pelo menos até ver), propõe o finlandês Aki Kaurismäki (The Other Side of Hope), o sul-coreano Hong Sang-soo (On the Beach at Night Alone), o japonês Sabu (Mr. Long) e a nossa Teresa Villaverde (Colo). É pouco, sobretudo quando entradas potencialmente fortes como The Lost City of Z, de James Gray (A Imigrante), Berlin Syndrome, da australiana Cate Shortland (Lore), Untitled, o filme inacabado do falecido Michael Glawogger, ou The Young Karl Marx, de Raoul Peck, ficaram relegadas para as paralelas Berlinale Special ou Panorama. O Forum, a secção paralela dedicada às vanguardas, é também este ano fervilhante – com dois filmes de alunos do Laboratório de Etnografia Sensorial de Harvard (Véréna Paravel e Lucien Castaing-Taylor com Somniloquies, J. P. Sniadecki e Joshua Bonnetta com El Mar la Mar), o novo Alex Ross Perry (Golden Exits, com Chloe Sevigny e Jason Schwartzman), ou um programa 3D, Ulysses in the Subway, a oito mãos – Flo e Ken Jacobs, Marc Downie e Paul Kaiser. Há, claro, sempre os pontos de interrogação – como Félicité, do francês Alain Gomis, rodado nas ruas de Kinshasa; ou Wilde Maus, estreia na realização do comediante austríaco Josef Hader, que vamos ver em breve no papel de Stefan Zweig. E a “prata da casa” alemã é este ano discreta mas interessante: o sempre estimável Thomas Arslan segue a “experiência americana” de Ouro com Helle Nächte, história de pai e filho que procuram voltar a saber quem são; Andres Veiel, depois de filmar os primeiros tempos do grupo Baader-Meinhof em Wer Wenn Nicht Wir, mostra um documentário sobre o artista Joseph Beuys, montado a partir de imagens e sons inéditos; e o veterano Volker Schlöndorff traz um filme rodado nos EUA, Return to Montauk, adaptação de Max Frisch com Stellan Skarsgard e Nina Hoss. Mas a sensação com que se fica, ao percorrer o programa, é a de um festival menos ousado do que em anos anteriores, cheio de nomes de “segunda linha”, como a polaca Agnieszka Holland, cujo Pokot foi co-dirigido por Kasia Adamik; a inglesa Sally Potter (Orlando), que apresenta The Party, uma sátira política com um elenco que inclui Bruno Ganz, Timothy Spall ou Kristin Scott Thomas; o chileno Sebastián Lelio, cujo Gloria valeu a Paulina García o prémio de Melhor Actriz, com Una Mujer Fantastica, ou o romeno Calin Peter Netzer, com Ana Mon Amour, que sucede a Mãe e Filho, Urso de Ouro em 2013. Os filmes da América Latina e da Ásia, para os quais Berlim teve sempre faro, estão praticamente ausentes do concurso principal (ainda não é desta que Lucrecia Martel mostra o seu Zama, do qual se anda a falar há mais de um ano – a ver se é Cannes). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Claro que há uma “corda bamba” em que o festival ainda e sempre se mexe; de todos os certames ditos de “classe A”, Berlim é aquele mais aberto ao público (300 mil bilhetes vendidos em média por edição, com espectadores de toda a Alemanha que tiram férias para acompanharem os dez dias de certame), que mais procura o meio-termo possível entre a descoberta e o conforto, que menos veleidades “autorais” tem. É esse equilíbrio que é anualmente questionado pela imprensa alemã, protestando regularmente contra uma descaracterização do certame – contra a qual as últimas edições foram argumentos fortes, mas que a presença constante de filmes de prestígio dirigidos a um “gosto de classe média” e cujo destino é muitas vezes o video-clube ou a televisão e a recente aposta em séries televisivas parecem sublinhar. Não é, no entanto, possível medir “de fora” o peso das turbulências políticas globais na montagem do programa de 2017, que fechou mais tarde do que é costume; a começar pela eleição de Donald Trump para a presidência americana e pela incerteza daí resultante e a terminar no atentado de Natal junto à Igreja da Memória, a escassos metros do Zoo Palast, uma das salas emblemáticas do certame. Certo é que a cidade parece viver como sempre viveu, como se nada tivesse acontecido em Dezembro, com uma pontual presença policial mais reforçada sublinhada pelas solicitações da organização do festival relativamente a medidas de segurança adicionais. E igualmente certo é que, pelo meio da loucura que é e continua a ser navegar por uma programação multifacetada, vai continuar a haver descobertas. E até redescobertas – através de uma homenagem à figurinista Milena Canonero (com Barry Lyndon e Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, Cotton Club, de Coppola pai, e Marie Antoinette, de Coppola filha), da secção de cópias restauradas Berlinale Classics (com a Noite dos Mortos Vivos de George Romero e a Annie Hall de Woody Allen), e da retrospectiva dedicada ao cinema de ficção científica, Future Imperfect (que vai do Ghost in the Shell de Mamoru Oshii ao Mundo no Arame de Rainer Werner Fassbinder, de Blade Runner e Alien de Ridley Scott a À Beira do Fim de Richard Fleischer e THX 1138 de George Lucas). Distopias para colorir as utopias de que Dieter Kosslick falava; se calhar, será este o “tema” de Berlim 2017. A ver vamos.
REFERÊNCIAS:
“Eu canto o amor para toda a gente”
Em Janeiro, Marco Paulo fez 70 anos. Em 2016, completará 50 de carreira, durante os quais vendeu mais de cinco milhões de discos. Este mês lança um novo álbum, Diário. O cantor que detesta Eu tenho dois amores já não divide, como nos anos 1980. Tornou-se uma marca de um tempo. (...)

“Eu canto o amor para toda a gente”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em Janeiro, Marco Paulo fez 70 anos. Em 2016, completará 50 de carreira, durante os quais vendeu mais de cinco milhões de discos. Este mês lança um novo álbum, Diário. O cantor que detesta Eu tenho dois amores já não divide, como nos anos 1980. Tornou-se uma marca de um tempo.
TEXTO: Em Janeiro, Marco Paulo fez 70 anos. Em 2016, completará 50 de carreira, durante os quais vendeu mais de cinco milhões de discos. Este mês lança um novo álbum, Diário. O cantor que detesta Eu tenho dois amores já não divide, como nos anos 1980. Tornou-se uma marca de um tempo. Prior Velho, às portas de Sacavém, aeroporto da Portela nas proximidades. Marco Paulo está há quase oito horas naquela sala ampla de pé direito altíssimo na sede da sua editora, a Espacial. Sucederam-se jornalistas atrás de jornalistas, que o cantor recebeu com cordialidade, curioso por ouvir e ansioso por contar. Sente-se que quer aproximar-se um pouco mais de quem o cobrirá de perguntas. Por isso, a conversa flui sem que seja ainda entrevista. “Estamos a conhecer-nos um pouco. ”Está cansado, mas um artista é um artista e cumpre escrupulosamente as suas obrigações. “Foram horas e horas neste blá-blá-blá”, dirá então. “Mas vamos conversar. Vou dar-lhe uma hora e qualquer coisa, pode ser?” Podia. Seguiram-se duas horas de entrevista. Viajámos desde Mourão, a pequena vila alentejana onde nasceu quando a II Guerra Mundial chegava ao fim, até este Diário que edita pouco depois de completar os 70 anos de vida (aconteceu em Janeiro), idade que, pela aparência, pela pele sem rugas, nunca lhe daríamos. Fomos desde a Alenquer em que se descobriu cantor, até à Eurovisão em 1967. Daí até uma jaula de leões, pouco depois da Revolução de Abril, e ao superestrelato com essa Eu tenho dois amores com que, curiosamente, mantém relação difícil. “Odeio o célebre ‘Dois Amores’”, disparará. Explica: “Primeiro porque cansava-me muito, tinha de puxar muito pela voz na parte final. Depois, achava-a muito repetitiva. E por fim a letra. Aquele ‘tenho dois amores e não sei de qual deles gosto mais’ não era coisa que me agradasse. Soava um bocado a bigamia. ” Ainda assim, não se arrepende de a ter gravado e certamente que não a tem como maldita. “Eu não tenho de agradar a mim. Tenho de agradar às pessoas. A partir do momento em que um disco vai para o mercado, já não é meu. ” Ou melhor, sendo de Marco Paulo, é para as pessoas. Foi por elas que Marco Paulo esteve dois anos e meio sem editar discos. A crise financeira e social atingia o pico de onde parece não ter ainda saído e o cantor de Ninguém, ninguém não quis dificultar mais a vida aos que o ouvem. “Uma família até tem emprego e está a alugar uma casa. Mas tem muitos filhos”, conjectura. “A mãe é grande fã do Marco Paulo e, se quisesse comprar o CD dele, possivelmente o dinheiro fazia falta. Pedi à editora esse espacinho. ” Esse espacinho terminou agora. Porquê? “Eu falo muito com as pessoas. Estou no palco e digo o nome das pessoas, das fãs, das minhas amigas que vão aos concertos. E auscultei. ”Eu não tenho de agradar a mim. Tenho de agradar às pessoas. A partir do momento em que um disco vai para o mercado, já não é meu. Ouviu dizerem-lhe que tinham saudades de canções novas, que estavam a precisar de um disco novo do seu amigo que é também seu ídolo. E Marco Paulo voltou. Diário é nome do novo álbum de um dos cantores mais populares do país, de um dos rostos ícone do Portugal dos anos 1970 e, principalmente, dos 80. O cantor que via extremarem-se posições à sua volta — era ídolo adorado como ídolo e era também visto como corpo (e caracóis) de um popularucho nada sofisticado que o bom gosto não deveria tolerar. Marco Paulo respondia às críticas como sempre respondera. Respondeu como recorda agora. “Saía um disco meu e era platina. Depois lia ‘tem uma grande voz, canta muito bem, só que as canções. . . ’ Mas o grande público fazia delas grandes sucessos. Quem é que estava enganado? Eu não era. O público não era de certeza absoluta. Só podia ser quem tinha a facilidade de dizer mal do trabalho de uma pessoa. ” Não o magoava não gostarem da sua música, entenda-se. “Eu já pertenço um bocadinho às pessoas, mas não me convenço e ninguém me convence de que todo o país gosta de me ouvir cantar. Claro que não. E respeito isso. ” O que o magoava era a desconsideração pelo empenho na profissão. “Estava a tentar fazer o meu trabalho com dignidade, o melhor que conseguia. É a minha profissão e é com isso que ganho o meu pão e que governo a minha casa. ” Este pormenor é-lhe muito importante. João Simão da Silva nasceu em Mourão, a 21 de Janeiro de 1945. Cinco anos depois mudou-se com os pais e irmãos para Alenquer. Foi na cidade do Oeste que foi descoberto. Decorria um casamento e, no meio da festa, um dos convidados ouve um miúdo que cantava na rua com os amigos. Passados uns minutos, o miúdo de oito anos estava no cimo de um banco a trautear uma canção do famoso cantor criança Joselito, Campanera, e a receber os aplausos pela primeira actuação pública. Com direito a cachet e tudo. “Ofereceram-me um prato de arroz de cabidela”, recorda o miúdo que, 13 anos depois, escolheria o nome artístico de Marco Paulo. Entre os convivas, estava um membro da comissão de festas da vila. Resultado: algum tempo depois, João Simão subia ao palco das festas de Alenquer para interpretar novamente a Campanera. O sucesso garantiu convite para regresso no ano seguinte, dessa vez já com acompanhamento profissional assegurado pela orquestra do maestro Nóbrega e Sousa, futuro autor do Sol de Inverno com que Simone de Oliveira venceu o festival da Canção de 1965 e do Sobe, sobe, balão sobe com que Manuela Bravo ganhou o de 1979. A actuação redundaria, porém, em desastre. A Campanera, sempre ela, o maestro a lançar a canção num tom demasiado alto e o jovem cantor que nunca tinha ensaiado — “eu sabia lá o que era ensaiar” — a perder-se nas alturas do tom que não alcançava. “Nem acabei a música. Saí de palco a correr. Foi traumatizante. ” Os pais haveriam de o encontrar à porta de casa, lavado em lágrimas. Mas a música ficara — não tardaria a receber o primeiro cachet a sério: 50 escudos e um garrafão de tinto. Entretanto, nova mudança de cidade, seguindo o percurso profissional do pai, trabalhador nas Finanças, levou-o ao Barreiro. Tinha 17 anos. “Como ficava só a uma hora de Lisboa, era mais fácil ir conhecer o meio [artístico]. ” E João Simão foi. Em 1965, Cidália Meireles, do Trio Irmãs Meireles, que na década de 1940 conquistara grande sucesso em Portugal e no Brasil, e então apresentadora de Tu Cá, Tu Lá, programa televisivo de variedades, apresenta no pequeno ecrã o jovem cantor. Chamou-lhe João Paulo. Em 1966, contratado para a Valentim de Carvalho pelo produtor Mário Martins, que o vira na actuação televisiva e que com ele trabalharia nas três décadas seguintes, deixa de ser João Paulo e, definitivamente, João Simão da Silva. “Naquela altura, tínhamos de ter dois nomes. Amália Rodrigues, Simone de Oliveira, Madalena Iglésias, António Calvário. Eu gostava de Marco, porque ouvia falar muito do Marco António, o de Roma, e já tinha o Paulo [da apresentação televisiva]. Ficou Marco Paulo. ”Quando foi editado o primeiro disco, o cantor de 21 anos passeava pelas ruas de Lisboa, encantado com os cartazes “enormes” espalhados pela cidade. “Já não era o meu nome. Era o nome que tenho há 50 anos. ” A carreira arrancava. Marco Paulo estava feliz. A mãe, que tanto gostava de o ouvir cantar e a quem tanto orgulhavam os elogios das vizinhas, estava feliz igualmente. Na editora, que vira na sua nova contratação “um rapaz com voz potente e com boa figura” — “para aquela época, era como artista de cinema, de novela” — esfregava-se as mãos de contentamento ao imaginar um sucessor para a grande estrela António Calvário. No meio de tudo isto, só o senhor Silva se mostrava reticente. “O meu pai não achava muita graça às cantorias”, recorda Marco Paulo. “Lá em casa não queria artistas, porque os artistas morriam todos na miséria, tinham amizades falsas, ganhavam hoje e gastavam amanhã. Ele ambicionava para mim o que tinha para ele. Era funcionário do Estado e queria que eu o seguisse nas Finanças. Eu sabia que não era por mal. Queria proteger-me. ” A pressão da mãe, aliada à persuasão da editora, asseguraram que tal nunca se concretizasse. O mais próximo que Marco Paulo esteve de seguir o desejado pelo pai aconteceu quando do destacamento militar para a Guiné-Bissau durante a Guerra Colonial, período em que ocupou, durante dois anos, a função de escriturário. Nas férias, regressava a Lisboa para gravar, de forma a manter viva a carreira. O pai, por sua vez, aceitaria por fim que o filho tomara a opção correcta. Aconteceu cerca de duas décadas depois, ao entrar na casa que este adquirira nos arredores de Sintra. Na passagem da década de 1960 para a de 1970, Marco Paulo continuou a aumentar a sua discografia. Um dueto com Simone de Oliveira, Tu e só tu, versão de Something stupid; o verter para português do hino hippie San Francisco (Be sure to wear flowers in your hair); uma revisita às canções do Festival Eurovisão da Canção de 1970. “O estúdio era uma responsabilidade tão grande que, hoje, não sei se o faria. Tinha de gravar com uma orquestra ao vivo, não podia desafinar, não podia enganar-me na letra. Gravava humildemente, à espera de um sucesso e de fazer bem feito para que toda a gente ficasse contente. Se tivesse um engano ou não cantasse como o produtor queria, deixava mal as 50 ou 60 pessoas da orquestra. Era uma coisa maravilhosa, mas também um sofrimento. ”Quando cai a ditadura a 25 de Abril de 1974, Marco Paulo está no Canadá a cantar para as comunidades emigrantes. No regresso, estranha o país. “Achei isto tudo muito esquisito. Chegar ao aeroporto e ver tanta tropa, tanta gente, tanta euforia. Era o 25 de Abril, era a liberdade, mas como não estava metido na política, nem de uns, nem de outros, não me apercebi de mais nada. ” Não demorou a compreender, porém, que para o seu ofício os tempos tinham mudado. A revolução estava no ar e a música comprometia-se, reflectindo e ambicionando ser alavanca para o novo país em construção. A música ligeira e os cantores românticos do nacional-cançonetismo perdiam protagonismo. Ou, como diz agora Marco Paulo, “havia outro estilo de música, adequado ao que estávamos a atravessar”. Acontece que “precisava de trabalhar” e que a sua “enxada” era a sua voz. Consequência disso, deu por si a fazer coisas que hoje não faria. Como cantar num circo no Porto, enfiado numa jaula de leões. “Estávamos quase no final das festas [de Natal e Ano Novo] e, para aguentarmos mais uma semana, perguntaram-me se teria coragem de entrar na jaula dos leões e cantar uma canção ou duas. Não achei muita piada. Estava lá todas as semanas, via os leões e eles não eram nada simpáticos. ” Mas cantou. E foi um sucesso, como recorda com humor. “Foi anunciado em todos os jornais e tivemos sempre casa cheia. Estava toda a gente à espera que o Marco Paulo fosse devorado na jaula. ”Uma década depois, tudo mudara. Marco Paulo não voltaria ao circo, não voltaria a enfiar-se certamente numa jaula. Em 1978 gravou Ninguém, ninguém. O país trauteava o romantismo existencialista enquanto dançava aquela opulência disco para festa popular do refrão — “Ninguém, ninguém, poderá mudar o mundo/ Ninguém, ninguém, é mais forte que o amor/ Ninguém, ninguém, ninguém” —, e as portas abriam-se, por fim, de par em par. A partir daí, as vendas dos seus discos passaram a contar-se em dezenas de milhares, em centenas de milhares, em milhões. Em 1988, com Joana, torna-se o primeiro músico português a atingir a tripla platina. Seis anos depois, está na RTP a apresentar o seu programa televisivo, Eu Tenho dois Amores — e as audiências mostram que o país o via em peso, ora para seguir o ídolo, ora para criticar o cantor de “música para sopeiras”. Quando, depois de superar um cancro, regressa aos concertos em 1997, é recebido em apoteose no Coliseu do Porto, segundo relatou a imprensa à época. Hoje, encontramo-lo orgulhoso e vaidoso da carreira que construiu, mas não parece haver nele pingo de deslumbramento. “O meu pai dizia-me para pensar no dia de amanhã e foi o que fiz. Trabalhar, trabalhar e trabalhar para que um dia, se deixasse de cantar, não precisasse de servir-me dos meus amigos. E para demonstrar ao meu pai que consegui organizar a minha vida. ”Ao longo da entrevista, desvalorizará os seus feitos. A participação no Festival da Canção de 1967, com Sou tão feliz, na edição vencida por Eduardo Nascimento com a vibrante interpretação de O vento mudou? “Cantei porque me convidaram e porque estava numa editora [Valentim de Carvalho] que fez questão que eu fosse. ” O estrelato na década de 1980, quando era o cantor mais ouvido no país? “Havia muitas solicitações, mas não respondia a muitas. Achava sempre que as pessoas não me davam grande importância. ” O convite que nos conta ter-lhe sido endereçado recentemente para actuar no Olympia de Paris e nos Coliseus de Lisboa e do Porto? “Acho sempre que essas coisas todas são demais para mim. Se tiver de fazer, farei com muito gosto, mas isso não fará com que deixe de ser o Marco Paulo, de ter a voz que tenho e a carreira que fiz. Não vai fazer com que cante melhor do que quando vou dar um concerto numa vila qualquer de Portugal. ”Marco Paulo conhece o seu lugar, que é o seu país, e o seu público, que é o povo envelhecido que o habita. “Grandes produções? Não tenho. Tenho o que é necessário para a forma como devo apresentar-me ao meu público. Foi ele que me pôs lá em cima e eu tenho de lhe dar o melhor. Mas não são grandes produções, porque eu sei o país em que vivo. ” Em Estrada da Minha Vida, biografia editada em 1995, lia-se: “[Os ouvintes] Sabem que vivi as situações que canto e que tal como eles sou um ser humano que adora a cozinha à portuguesa, bacalhau com grão, sardinhas assadas e tantas outras coisas que fazem as delícias deste povo espantoso a que eu pertenço. ” O percurso de Marco Paulo espelha também, de certa forma, aquilo que o país foi, é e não deixou de ser. Vemo-lo. Há aquela foto do jovem galã encostado ao carro desportivo laranja. Cabelo cortado curto, pullover sobre a camisa, casaco sobre o pullover. Estávamos em 1966 e Marco Paulo sorria para a objectiva do fotógrafo na capa do seu primeiro single, Não sei. Há aquela outra foto: as mãos nos quadris, a camisola de gola alta em padrão amarelo e castanho muito anos 70, o cabelo a crescer que os tempos já eram outros, a árvore onde se apoia em primeiro plano e a paisagem rural em fundo. Estávamos em 1972 e Marco Paulo dava voz a Fala amorosamente, cantada sobre a banda sonora de O Padrinho, composta por Nino Rota, e cantava, no lado B Tu és uma mulher, não és uma santa, primeiro sinal dos corpos mais expostos e da luxúria “você não tem um pingo de vergonha/ e todo o homem sonha ter alguém assim” que se revelaria na década de 1990 — período em que o católico Marco Paulo viu duas músicas do álbum Amor Total, Leva-me para a cama e Amante, irmão e amigo, proibidas na Rádio Renascença. E há, claro, a imagem do cantor sorrindo para a foto, em pose. Tem sobre o peito a mão de uma mulher a quem não vemos o rosto. Tem como penteado os caracóis que se tornaram marca de um tempo. Sob a foto, fundo amarelo desmaiado, o título da canção. Ano, 1980. Eu tenho dois amores. O Marco Paulo que já era uma estrela tornava-se, definitivamente, um fenómeno. Demorara década e meia para ali chegar. Marco Paulo: os caracóis, a voz, o microfone a saltar de uma mão para a outra, o passaporte para a eternidade na memória popular. O meu pai dizia-me para pensar no dia de amanhã e foi o que fiz. Trabalhar, trabalhar e trabalhar para que um dia, se deixasse de cantar, não precisasse de servir-me dos meus amigos. E para demonstrar ao meu pai que consegui organizar a minha vida. Ao longo de todos estes anos, mantém esse estranho paradoxo de ser alguém que parece muito próximo enquanto se mantém à distância. Durante a entrevista com a Revista 2, atenderá dois telefonemas. Uma senhora que exclama “olá meu querido amigo”, antes de partilhar com ele a felicidade de Diário estar a ser “muito bem recebido”. Um médico, fã como a mãe já o era, que lhe quer dar os parabéns pela prestação num programa televisivo em que participara na noite anterior. Tal conjuga-se com a distinção que faz entre o artista e o homem distante dos holofotes. “Eu sou o cantor no palco. Aí, gosto de lidar com as pessoas normalmente. [Fora dele] não me exponho muito. Não frequento locais públicos. Não vou a centros comerciais. Não vou todos os dias a restaurantes, porque não fui habituado. Não frequento a noite, porque também não fui habituado. ” Garante que as suas primeiras férias só chegaram em 1995, quase três décadas depois de iniciar uma carreira profissional. “Gosto muito mais de estar em minha casa”, comenta. Enquanto conversamos, descreve-nos o almoço anual, em Fátima, que junta 300 admiradoras ali chegadas em autocarros por elas fretados, vindos de Lisboa e do Porto. “Eu não mexo em nada. Estou presente e pago a minha parte. ” Paga-se o almoço, o autocarro, “e um euro todas elas para depois me ofereceram uma lembrança”. O cenário é assim descrito: “As que são casadas levam os maridos, as que têm namorados levam os namorados. As avós levam os netos e juntam-se 300 pessoas num convívio. ” No fim, Marco Paulo canta para todas elas. A mulher de costas na capa de Eu tenho dois amores são todas as mulheres de Marco Paulo, homem solteiro. Ele é o cantor que já não tem fãs, tem amigas. “Eu criei uma amizade tão grande com as pessoas que já não me dá jeito chamar-lhes fãs. ”Eis então o rei da música ligeira portuguesa, ainda impressionado com os números da sua carreira. Ao longo de 49 anos, Marco Paulo vendeu mais de cinco milhões de discos. “Passados este 49 anos, ainda me surpreende pensar que metade dos portugueses têm em casa a minha voz, porque eu vivi tudo isto com muita naturalidade, sem grandes coisas por trás. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Isto” são os quase 50 anos de carreira que se cumprem em 2016, cinco décadas certas passadas desde a edição de Não sei. O tempo esbateu as divisões e Marco Paulo foi absorvido pela cultura popular, sem hierarquização de gosto, acima do “pimba” que antecedeu e do qual se sente distante. É-nos próximo, tornou-se um familiar com quem atravessámos as últimas décadas. A banda sonora é extensa e já atravessou gerações. De certa forma, já não precisa de ser legitimado ou reavaliado. Marco Paulo são pedaços de música e as imagens que evocam. São refrões que todos conhecem mesmo que pertençam à metade da população que não tem um disco dele em casa. Joana, Maravilhoso coração, Taras e manias, Sempre que brilha o sol, Eu tenho dois amores, Morena, morenita, Canção proibida, Amante, irmão, amigo. Ao longo destas quase cinco décadas de carreira, manteve-se constante. Marco Paulo nasceu cantor romântico e cantor romântico, à antiga, continuará a ser. “Eu canto o amor para toda a gente, desde que as pessoas se sintam bem a ouvir o amor que eu canto. Não é o amor piegas. Não é o amor de vão de escada. É o amor normal do dia-a-dia da vida das pessoas. ” Foram as últimas palavras da entrevista. Ficam-lhe bem. Repita-se: Marco Paulo é para as pessoas.
REFERÊNCIAS:
Partidos BE
A história da vila que guarda uma mina dentro
Há 45 anos, as minas de São Pedro da Cova encerraram com um rasto cor de carvão encoberto pelo Estado Novo. Mas na terra mineira, outrora motor do Norte, uma estranha força fez nascer gente de luta. Lá se ergueu um dos mais agitados e impressionantes processos revolucionários no pós-25 de Abril. (...)

A história da vila que guarda uma mina dentro
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há 45 anos, as minas de São Pedro da Cova encerraram com um rasto cor de carvão encoberto pelo Estado Novo. Mas na terra mineira, outrora motor do Norte, uma estranha força fez nascer gente de luta. Lá se ergueu um dos mais agitados e impressionantes processos revolucionários no pós-25 de Abril.
TEXTO: Enquanto descia às profundezas da terra, gasómetro na cabeça e saco de farnel na mão, os 16 anos de vida de Manuel Reis não puderam amparar-lhe a tremeliqueira das pernas. De repente, o rosto cândido e pálido enegreceu-se até à cor do carvão. Até à cor do medo. Lá no fundo, onde a luz não chega, passaram-lhe para a mão uma pá e pronunciaram meia dúzia de palavras. E ele começou a acartar carvão. Foi a primeira vez de um vaivém de duas décadas nas profundezas das minas de São Pedro da Cova. Manuel regressa agora ao complexo mineiro, 45 anos depois do dia que ninguém apaga da memória: 25 de Março de 1970, a data de encerramento das minas. As pernas já não tremem, mas os olhos humedecem quando recorda a “vida de escravidão”. Durante os quase dois séculos em que funcionaram, as minas de carvão foram o principal sustento de famílias inteiras nesta freguesia de Gondomar. Mas foram também sinónimo de miséria e de fome, de doença e de morte. E mudaram para sempre São Pedro da Cova. Nesta terra mineira a 20 quilómetros do Porto, nunca quiseram enterrar as dores de outros tempos. A exploração a que milhares de trabalhadores foram sujeitos desde 1795, quando o carvão de pedra (antracite) foi descoberto na freguesia, escreve-se a letras garrafais. Recordar para não esquecer. Para Serafim Gesta, investigador local que adoptou o pseudónimo de Mazola e é autor de vários livros sobre São Pedro da Cova, as minas não são apenas um objecto de estudo. Estão-lhe gravadas no ADN há gerações, desde os “pioneiros do carvão”. “Tenho das minas as memórias mais tristes que pode haver. Memórias de morte. Estou a ver o meu avô morrer, com uma medalha ao peito, mas pobre, cansado, miserável, tuberculoso. O meu pai tísico, depois de muitos anos de mina. E a minha mãe a perder a vida à minha frente, a sujar os lençóis de sangue. Silicose: 100% de pó. ”Esta vida feita no subsolo dificilmente pode ser descodificada por quem não a testemunhou. Palavras de Manuel Reis, 89 anos de idade e quase 20 de mina: “Mesmo que houvesse um filme, esta mocidade não acreditava. Era realmente horrível. ” Manuel Teixeira Bento acena em sinal de concordância. Mostra nas mãos cicatrizes feitas pelo carvão que por algumas vezes o atingiu, mas não se deixa abalar à chegada ao complexo onde trabalhou dos 14 aos 24 anos. Volta e meia vai até lá, sozinho. “Parece que foi noutra vida. ” A avó criou-o desde que tinha um mês. Vivia numa casa de madeira “com dois quartinhos e uma cozinha” no bairro mineiro. Manuel trabalhava numa fábrica de tacos na Corujeira, no Porto. Um dia, a empresa que explorava as minas bateu à porta da avó e fez-lhe um ultimato. “Disseram-lhe que ou eu ia para as minas ou nos tiravam a casa. Fui obrigado a ir. ”O monopólio da Companhia das Minas, empresa que explorou o complexo de São Pedro da Cova a partir de 1921 e até ao encerramento definitivo, era estrangulador. Além de ser uma das poucas empregadoras da região, a empresa era proprietária das casas onde boa parte dos trabalhadores viviam e, para terem direito à habitação, todo o agregado familiar era obrigado a trabalhar na mina a partir de tenra idade. Foi assim que “quatro ou cinco gerações inteiras” foram condenadas ao trabalho no complexo mineiro, aponta o presidente da junta de freguesia local, Daniel Vieira, que acrescenta mais ramificações desta dependência: a cantina onde os trabalhadores iam buscar caldo e broa, a água e a luz da igreja paroquial, o cinema, a escola, o campo de futebol utilizado pela equipa local, a associação desportiva com uma biblioteca e a banda de música estavam também sob a alçada da Companhia das Minas. Do pátio da sua casa, Maria de Almeida aponta para os terrenos quase baldios a poucos metros de distância como se ainda vislumbrasse o rebuliço e os pés descalços e ouvisse o som constante da mina a laborar. Tiritando com a recordação, pega no seu “cadastro” (a sua ficha de trabalhador), prova de um tempo de “escravatura”: “Passámos ali uns bocadinhos amargados, passámos. Mas não havia coisa melhor. Até ir para a mina, não achei melhor. ” Até ir para a mina, aos 21 anos, Maria corria para o Porto todos os dias porque trabalhava numa fábrica de farinha de pau, em Campanhã. “Eram duas horas para lá e duas para cá, a pé e sempre a correr para chegar a horas. Ganhava dez escudos. Ora, eu assim antes preferia a mina. Era ruinzinho, mas sempre era perto. Tinha de se fazer pela vida. ”Esses, aponta Serafim Gesta Mazola, “chegavam muitas vezes sem saber ler nem escrever, em busca de um jardim do éden que produzia todas as riquezas”. Não podiam vir mais enganados: “Davam-lhes duas tábuas compridas e dois bancos para as pôr em cima e era lá que eles dormiam. Lá ou em carqueja. E, mal chegavam a São Pedro da Cova, perdiam a identidade. Se vinha do Covelo era o Chico do Covelo, se andava mais mal arranjado, era o Zé badalhoco. Isto, parecendo uma insignificância, diz muito sobre a forma como eram tratados os trabalhadores. ” A triste sina não era exclusiva dos “malteses”: de dentro ou de fora da freguesia, com trabalhos à superfície ou no subsolo, “todos foram miseravelmente explorados”, sublinha o autor, cujo livro Um Grito Que Rompe o Silêncio, uma compilação de depoimentos de quem trabalhou nas minas, vai ser agora reeditado pela junta de freguesia local. Rosa Martins de Sousa, filha de mineiro e britadeira, britadeira se tornou. Suspira demoradamente ao recordar a casa onde vivia com os sete irmãos. “Tão pequenina” que a obrigava a dormir no chão — e muitas vezes no mesmo quarto dos rapazes. “A minha mãe, coitadinha, não tinha como nos separar. ” Aos 15 anos, foi para as minas. Só saiu de lá em 1970, mais de três décadas depois. Cumpriu quase todas as tarefas destinadas às mulheres, mas é do trabalho nos tanques de lama, onde tinha de fazer o desmonte do carvão e transportá-lo depois em gigas levadas na cabeça, que mais más memórias guarda: “A gente pegava às oito e às oito e meia já era preciso tirar a roupinha toda. Se chovia, não nos deixavam abrigar. No terreiro, andávamos de joelhos a partir o carvão miudinho, à feição de o botar para o fogo, e quando nos queríamos levantar já nem sentíamos as costas. Mas preferia isso à lama. ”Os trabalhadores das minas laboravam sob vigia constante dos capatazes, responsáveis por definir o volume de trabalho que cada um devia cumprir por dia. “De manhã ia pela mina e dizia: ‘Tu tens de botar x [carvão], tu mais x, tu mais x. ’ Se eles não botavam, eu tinha de participar deles e ficavam sem salário ou eram castigados”, recorda António Aguiar, antigo capataz com “mais de 90 anos”. “Custava-me fazer aquilo. Mas ganhava-se melhor e eu precisava do dinheiro. ” Entre os encarregados, havia “os maus e os menos maus”, conta Rosa Martins de Sousa: “Havia uma mulher capataz que até era capaz de dizer para a gente ir para um sítio abrigadinho quando chovia. Mas se a gente não fizesse o serviço, ela pegava no caneco da água e deitava fora. A gente ficava o dia todo sem beber. ” Medo das consequências? “A gente tinha medo era de ficar sem o salário. Numa altura, o capataz achou que eu estava a falar durante o serviço e castigou-me. Fui para casa. Não havia remédio. Quando fui receber, vi que queriam cortar-me meio dia. Era só um quarto. Fiquei cega! Fiz tanto barulho que me pagaram. Não me deixava vergar”, responde Maria de Almeida. Além do trabalho fisicamente esgotante, não havia garantias de segurança e, no subsolo, os “homens toupeira” estavam expostos à poeira causadora de silicose, doença pulmonar crónica e incurável que vitimou um número incalculável de pessoas em São Pedro da Cova. Manuel Reis andou pouco tempo na frente das marcas (onde se davam as explosões), mas a pré-reforma que conseguiu aos 57 anos conta parte das consequências da mina: foi aposentado por doença profissional, com “10% de silicose”. Debaixo de terra, a terra era outra. Trabalhava-se sem qualquer protecção contra o pó, às vezes com parte do corpo dentro de poços. Em alguns locais, o calor era de tal forma insuportável que, apesar do perigo extra de queimaduras, muitos dos mineiros preferiam trabalhar quase sem roupa, conta Manuel Teixeira Bento: “Era uma tangazita e tronco nu. A gente tinha uns calções, mas como se suava muito às tantas aquilo roçava nas pernas, com a areia do carvão, e fazia cieiro. Era doloroso. Então a gente enrolava os calções e ficava só com uma espécie de cinto, a tal tangazita. ”Não era raro que alguns mineiros se automutilassem: “Mesmo em prejuízo do dinheiro, que lhes fazia muita falta, pegavam num machado ou noutro objecto e cortavam-se nos pés, nos tornozelos ou nos pulsos para terem direito a uma semana de descanso”, conta em voz revoltada Serafim Gesta Mazola. Repouso só concedido em situações limite como esta. Ou quando o médico, por indicação da Companhia das Minas, dispensava os trabalhadores que apresentavam “sinais de silicose”. “Mandava os homens embora sem qualquer justificação, sem lhes dizer que estavam doentes, para evitar pagar indemnizações. Era cúmplice da empresa. O mais trágico é que, muitas vezes, essas pessoas estavam tuberculosas e, como não sabiam, acabavam por contaminar toda a família”, denuncia o investigador. Há um amontoado de caixotes de cartão no escritório de Mazola. Além do espólio do Museu Mineiro, criado em 1989 com a missão de valorizar e divulgar o património local, é ali que se guarda uma parte significativa da história das minas, diz orgulhoso e frenético enquanto puxa de um processo quase secular de um antigo trabalhador. Em 1930, Joaquim Júlio de Magalhães escreveu uma carta ao director das minas: “Encontro-me doente já vai para meio ano, deito sangue pela boca e mal posso trabalhar”, lê-se na ficha do trabalhador número 105. Pedia à empresa a misericórdia do descanso. Tempos depois, o homem acaba por morrer. “São às dezenas e dezenas os casos como este”, lamenta o sampedrense. Manuel Reis e Teixeira Bento confirmam. A companhia não mostrava qualquer preocupação com a saúde dos trabalhadores. E, quando morria um homem no fundo, tudo se fazia para que passasse despercebido, conta Teixeira Bento, tirando a boina por breves instantes como quem homenageia os esquecidos: “Eles só estavam preocupados com o trabalho, que não podia parar. O morto era metido numa berlinda e mandado para a farmácia da mina discretamente. Parecia um sapo ali dentro, encolhido e escondido. ” Manuel Reis traz na memória um desses dias. Não sabe se houve silêncio ou gritos. Um amigo morreu-lhe à frente. Soterrado por uma chaminé tombada. “Nós tínhamos um fio que contactava com o exterior e puxávamos quando acontecia alguma coisa. Naquele dia, fui puxar e aquilo não funcionava. Vim a correr até cá acima. Mas já não havia nada a fazer. ”O fardo da ditadura era evidente e apoiado por “vários movimentos, como a Legião [Portuguesa], a União Nacional e a própria PIDE, que tinha um coio de informadores locais”, conta Serafim Gesta Mazola. Com a crescente influência do PCP, que se reorganiza nos anos 40, os comunistas tornam-se aliados dos trabalhadores de São Pedro da Cova e, a partir de 1946, são várias as referências no Avante!, órgão oficial do partido, à greve nas minas. Além disso, “distribuem já comunicados aos mineiros, falando das condições de trabalho e fazendo apelos à mobilização e consciência de classes”, concluiu o presidente da junta de freguesia, também ele neto de um mineiro e de uma britadeira. José Carlos Almeida foi durante alguns anos responsável da organização central do PCP no distrito do Porto e acompanhou de perto as lutas desta freguesia: “Os mineiros de São Pedro da Cova foram, a par dos pescadores, a classe de profissionais do Norte com um papel mais destacado nas lutas operárias. ” Ainda que fossem muitas vezes motivadas por questões económicas, como sucede na greve de 46, as batalhas dos mineiros tinham “consciência política associada”, considera. “As pessoas mais activas não eram espontâneas, estavam organizadas partidariamente. O PCP tinha uma célula em São Pedro da Cova. ” José Carlos Almeida não se recorda de muitos nomes — “a maioria usava pseudónimos” —, mas não esquece os bastidores da organização. “Reuníamo-nos muitas vezes com o organismo local num tasco em frente ao sanatório, à beira da estrada. A gente fazia a redacção de um texto apontando uma orientação, imprimia num copiógrafo e assinava ‘a organização local do partido’. Para os mineiros, era uma coisa muito importante. ”A conclusão de Daniel Vieira aponta exactamente no sentido de uma intervenção dos comunistas na freguesia: “Fiz entrevistas a ex-mineiros e contaram-me que, como muitos deles não sabiam ler, encontravam-se em tascos ou mercearias locais e havia um companheiro do PCP que lhes lia o Avante! em voz alta. ” A greve geral de 1946, acrescenta, significou uma importante conquista de direitos: “Fiz uma comparação das condições de trabalho e dos salários dos mineiros, e verifica-se, de facto, um aumento salarial. Foi uma greve com efeitos. ”O medo da repressão da PIDE era grande e a contestação quase sempre discreta. Mas arriscavam — e, volta e meia, uns panfletos contestatários apareciam pela freguesia. Manuel Reis preferia manter-se discreto. Conhecia bem o destino de quem não o fazia. Certo dia, já não sabe precisar em que ano, a polícia entrou pelo complexo dentro em busca de “desertores”. Foi uma grande zaragata. “Nessa altura, magoei-me de propósito para ir para casa. Não dava para reclamar muito. . . Quem o fazia, às tantas, desaparecia. Um dia chegávamos ao serviço e já não estava. Todos sabíamos que tinha sido levado pela PIDE. ”Com mais ou menos intervenção, havia entre os trabalhadores das minas um sentimento comum de injustiça e revolta. Afinal, todos trabalhavam em condições de segurança e higiene precárias, tinham salários miseráveis, sofriam castigos e repressão. Foi também essa realidade, explica o docente de História Jaime Guedes, a responsável pelo reforço de “laços de solidariedade” e pelo desenvolvimento de uma “identidade mineira, como o trabalhador que partilha experiências penosas e luta por melhores condições de trabalho”. Seria essa a principal razão invocada pela Companhia das Minas no “aviso ao pessoal” afixado nas janelas do escritório no dia 4 de Março de 1970, onde se comunicava o encerramento da empresa. “Por manifesta impossibilidade económica de continuar com a exploração destas minas, em virtude do cancelamento das expedições para a Central da Tapada do Outeiro, e se terem gorado as negociações com a Companhia Portuguesa de Electricidade para a sua integração, sou encarregado de transmitir a todo o pessoal que a Exmª. Administração desta Companhia resolveu, ontem, parar a laboração destas minas a partir do dia 25 do corrente mês (exclusive). ” O anúncio caiu como uma bomba. O complexo que por mais de dois séculos foi o maior empregador da freguesia ia fechar — e se isso significava a boa notícia do fim da “escravatura”, deixava também um gigante ponto de interrogação no ar: como seria o futuro daquelas quase mil pessoas, homens e mulheres iletrados, que só sabiam o ofício das minas, alguns com idade avançada, muitos deles doentes, portadores de silicose, pobres?Era uma realidade camuflada pela empresa a todo o custo. Com a conivência do Estado Novo. A miséria que apodrecia a terra mineira não devia ter eco e isso significava ter em acção permanente os serviços de censura. A edição censurada de um artigo do jornal O Século, com publicação prevista para o dia 21 de Março de 1970, é disso espelho. Parágrafos inteiros são riscados a azul: referências à fome, à miséria, às doenças de que os mineiros sofrem e ao futuro incerto dos mil trabalhadores (e dos cerca de quatro mil que constituem os agregados familiares respectivos) quase desaparecem. “Tenho 30% de silicose nos pulmões e isso não me facilita a ida para outro emprego, além de que não sei outra profissão. Vivo numa casa da companhia e também não sei para onde ir. Tenho nove filhos que vivem todos do meu trabalho, só o mais velho anda a trabalhar no Porto. São apenas 64 escudos por dia aquilo que eu ganho. Pouco, mas o suficiente para se ir vivendo. A casa era de graça. . . E agora? Vou pagar renda de casa? Eu que tenho seis filhos na escola. . . Emigrar? Razão tinham os centos deles que o fizeram há mais tempo e que insistiram comigo para que fosse também. Agora é tarde, com os meus 30% de silicose no corpo já não me aceitam nem aqui nem lá fora. ” Este testemunho, por exemplo, foi completamente eliminado. O texto publicado, em contraponto, faz questão de referir que as minas “fomentaram o bem-estar social e material da terra e contribuíram para o seu progresso, progresso esse com que todos lucraram”. A Companhia das Minas permaneceu na freguesia até 1972, para finalizar o desmantelamento da estrutura — fechou as portas, mas prolongou o monopólio que detinha na vila. Os bairros mineiros continuavam a pertencer à empresa e os habitantes eram obrigados a pagar rendas por casas minúsculas e sem condições. Em alguns casos, as indemnizações demoravam a ser pagas. Na esmagadora maioria, os mineiros eram prejudicados na avaliação médica e tinham, por isso, menos direitos. Esta névoa no lugar do futuro não derrubou o povo de São Pedro da Cova, talvez empurrado pela inevitável esperança de que o fim da “escravatura da mina” lhes trazia ou por um sentimento que Maria de Almeida resume numa frase curta: “Pior do que aquilo não havia de ser. ”Estávamos nos anos 70 e Portugal vivia o fim de uma longa e castradora ditadura. E isso sentia-se no ar. “As pessoas foram perdendo o medo e os sentimentos de injustiça e revolta cresciam de ano para ano”, descreve Serafim Gesta Mazola. O 25 de Abril de 1974 foi o empurrão. Mas “a verdadeira revolução” chegou a São Pedro da Cova pouco mais de um ano depois: 22 de Maio de 1975, o dia em que a população local ocupou os terrenos do antigo complexo mineiro e iniciou um dos processos revolucionários mais quentes do país. António José Correia estava lá. Homem da companhia local Teatro Círculo, viveu sempre em São Pedro da Cova, mas nunca foi condenado às minas. “A minha família não teve esse destino, mas todos os meus amigos eram filhos de mineiros, toda a vida aquilo fez parte de mim. ” Fazer parte do grupo que iniciou a “revolução” na freguesia foi, por isso, mais do que natural. Sem líderes assumidos, o núcleo que planeou a invasão dos escritórios da empresa — completamente deixados ao abandono — era constituído por professores da escola secundária local, actores do Teatro Círculo e um grupo mais político, maioritariamente composto por militantes do PCP. “Desde o fecho das minas, as pessoas tinham na cabeça que aquele espaço devia pertencer à freguesia. Pessoas daqui deram o sangue lá. Muita gente morreu, muita gente ficou doente. Nós queríamos, ao menos, devolver-lhes o que lhes pertencia”, desenvolve José Teixeira das Neves, militante comunista e primeiro presidente da comissão administrativa de São Pedro da Cova. Foi um processo verdadeiramente intenso. Um dia após a invasão, duas mil pessoas juntaram-se no complexo mineiro e em plenário nasceu o Centro Revolucionário Mineiro (CRM), típica organização do PREC. Decidiu-se, por exemplo, que as rendas das casas dos bairros mineiros passariam a ser pagas ao próprio CRM, que constituiria um fundo financeiro para usar em benefício da população. Fizeram-se obras nas casas dos antigos trabalhadores, reconstruíram-se ruas, ergueram-se parque infantil, teatro, farmácia e posto médico. Num segundo plenário, juntaram-se “umas cinco mil pessoas” no campo de futebol, lembra José Teixeira das Neves. O envolvimento e o entusiasmo da população era grande. Nos escritórios do complexo mineiro, onde o CRM constituiu sede, foram descobertos os “cadastros”. Permitiu revelar finalmente os verdadeiros índices de silicose que os consumiam. “Isso subiu-lhes a reforma. E deu outras a viúvas sem nada. ” Durante três anos, não houve um dia em que a sede do CRM não estivesse ocupada 24 horas por dia. “Muita gente disponibilizou a vida para aquilo. Dormíamos lá. Fazíamos vigília constante”, recorda António José Correia. Vivia-se o pico do Verão Quente e as sedes do Partido Comunista eram frequentemente incendiadas. “Nunca tivemos problemas de maior, mas era preciso manter os olhos abertos. ”Manuel Correia Fernandes lembra-se bem do dia em que tudo começou. O arquitecto, responsável pelo processo SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local) em São Pedro da Cova, estava em casa, no Porto, quando três pessoas da freguesia de Gondomar lhe bateram à porta. “Era o chefe da brigada SAAL e talvez vissem em mim uma espécie de autoridade”, recorda com um sorriso. “Fui com eles ao quartel-general na Praça da República comunicar ao oficial de dia que tínhamos ocupado os escritórios. Ele olhou para nós e disse que estava tudo bem, que não tínhamos de fazer nada. Foi tão insólito quanto isso. ”A intervenção SAAL, projecto arquitectónico e político criado poucos meses depois do 25 de Abril de 1974, durou menos de dois anos na terra mineira, mas teve “uma dimensão política e social enorme, bem maior do que a verificada no Porto”. Ao chegar ao local, Correia Fernandes — que contava com o apoio de um grupo de estudantes de Arquitectura previamente instalados — deparou-se com um imenso “bairro clandestino”. O Bela Vista, com mais de mil casas construídas pelos antigos trabalhadores que iam abandonando os bairros mineiros, foi o território definido para a intervenção do SAAL — e a missão era complexa. “O normal nas operações SAAL era fazer casas. Ali, o desafio era completamente diferente”, recorda o arquitecto. Ajudar os cidadãos a alterar as habitações para que pudessem ser legalizadas e intervir no espaço público (iluminação, água canalizada e saneamento não existiam), construindo alguns equipamentos comuns foram as intervenções prioritárias. Foi um período “impressionante”. “Havia muitos estudantes de Arquitectura e arquitectos que passavam o dia em São Pedro da Cova. Dormiam nos escritórios ou nas casas das pessoas de lá. Criaram-se relações sociais e humanas comoventes. ”Comoção. Palavra que resume bem o sentimento de António José Correia e José Teixeira das Neves ao pisar o agora completamente degradado escritório da Companhia das Minas. Não entravam no complexo desde que o CRM se extinguiu. Foram sete longos anos de uma luta que beneficiou muita gente. Mesmo não tendo cumprido um dos principais objectivos: o de expropriar o complexo e fazer com que passasse a ser propriedade da freguesia. “Estar aqui e olhar para isto assim. . . dá aquela mágoa. É como se a gente tivesse perdido um filho”, matuta António José Correia. Falta a voz ao companheiro de luta José Teixeira das Neves, para quem o sucesso dos projectos do CRM era uma questão muito pessoal: “Nunca trabalhei aqui, mas a minha família sim. No último dia em que o meu pai trabalhou nas minas mandou um recado para o chamarem. Estava sentado em cima dos canos de água e não podia com o gasómetro nem com o machado. Tinha nove anos e vim buscar-lhe as ferramentas. Marca sempre a gente. O meu pai era um homem exemplar. Morreu aos 55 anos por causa da silicose. Tinha 100%”, recorda emocionado. “Perder isto custou. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Há uma bruma especial que paira sobre São Pedro da Cova. À história negra junta-se um carregado sentimento de orgulho. Opressão, miséria, fome e medo esmorecem perante o brio de ter combatido. De ter sobrevivido. “É difícil explicar. Há por aqui um sentimento de pertença único, muito criado pelo trabalho, mas não só”, considera Daniel Vieira, dando um exemplo de um comportamento típico das gentes da freguesia que espelham bem essa ligação: “Quem vive em freguesias de Gondomar diz geralmente que é de Gondomar, mas quem vive em São Pedro da Cova, freguesia de Gondomar, diz só que é de São Pedro da Cova. ” A “herança pesada” dos quase dois séculos de mina não se rasura. Os níveis de qualificação dos sampedrenses continuam baixos, a população maioritariamente envelhecida também. São quase 17 mil pessoas. “Às vezes, costumo perguntar se alguém conhece alguma região que tenha recursos naturais e seja rica”, desafia Daniel Vieira. “Em quase todas, foi gente de fora explorar esses recursos e quando eles deixaram de ser rentáveis foram-se embora. Aconteceu aqui. Foi retirada muita riqueza de São Pedro da Cova, mas nenhuma ficou por cá. ”
REFERÊNCIAS:
O Inferno são as finanças
Penhoras emitidas enquanto o contribuinte já está a pagar a dívida; dívidas antigas de que o contribuinte nunca foi notificado;o imposto sobre carros que já não existem há anos. Ouvimos histórias de quem se sente apanhado na teia apertada das Finanças e não consegue sair. (...)

O Inferno são as finanças
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Penhoras emitidas enquanto o contribuinte já está a pagar a dívida; dívidas antigas de que o contribuinte nunca foi notificado;o imposto sobre carros que já não existem há anos. Ouvimos histórias de quem se sente apanhado na teia apertada das Finanças e não consegue sair.
TEXTO: Em 2014 chegou a notificação de uma dívida de IUC (Imposto Único de Circulação) de 2011. A confusão começa logo aí. Catarina Dias e Jorge Grilo não negam que a dívida existisse, mas não foram informados. Como o pequeno Smart foi herdado, assumiram que o IUC já tivesse sido pago. De qualquer forma, liquidaram depois o imposto de 2012 e de 2013, sem nunca terem sido avisados de que deviam o de 2011. Só em 26 de Dezembro de 2014 chegou a notificação. Pagaram a 29 de Dezembro. Mas como, segundo ulterior explicação dos serviços, o crédito entra no sistema com um atraso de 48 horas, o registo da dívida transitou para o ano seguinte. O que, segundo uma regra agora em vigor, implica o cancelamento de todos os benefícios fiscais a que se teria direito no ano anterior. Como é argumentista profissional, Catarina só paga IRS de direitos de autor sobre 50% dos rendimentos. Jorge, por outros motivos, também tem alguns benefícios. Feita a simulação, no próprio site das Finanças, iriam receber cerca de 2400 euros de reembolso. Mas só receberam 61 euros. Explicação de um funcionário: perderam os benefícios fiscais por terem uma dívida que transitou de um ano para o outro. Como isso só aconteceu por atraso dos serviços, reclamaram. Não obtiveram resposta. Também nunca foram notificados sobre a perda dos benefícios fiscais. Após uma segunda reclamação, em que foi preciso apresentar documentos provando os factos de que os serviços supostamente têm registo (e pagando pelas fotocópias), disseram-lhes para esperar 120 dias. O assunto estava “em análise”, pelo que agora teria de ser tratado na secção de Contencioso, explicaram com ar dramático. E não era caso para menos. Ali, no departamento onde o contribuinte é um presumível criminoso, todo o cenário está montado para intimidar. “A iluminação é fraca, o ambiente é sinistro, não há um sorriso”, descreve Jorge o Contencioso do serviço de Finanças de Cascais, que, segundo vários testemunhos, não parece ser muito diferente do mesmo departamento noutras repartições de Finanças. “Parece um calabouço”, disse um contribuinte que foi prestar declarações. “As pessoas são interrogadas de forma agressiva, pouco respeitosa”, disse outro. “Assume-se que o contribuinte é culpado e tem de ser condenado”, “uma pessoa sente-se ameaçada”, “apertam connosco, como se o objectivo fosse confessar”, contaram outros supostos maus pagadores. Uma vez entrado no Contencioso, um caso fica como que envolto em descabelado secretismo. Deixa de ser possível obter informações, ou, pior ainda, elas passam a ser escassas, vagas, confusas ou contraditórias. “Não podemos fazer nada, o caso já está no Contencioso”, disse a funcionária a Catarina. E esta soube, nesse momento, que nunca mais veria o seu dinheiro. Porque no ponto em que o absurdo toma conta de uma situação deixamos de ter controlo sobre ela. Não por a conjuntura se tornar complexa, demasiado técnica para um contribuinte leigo em Direito Fiscal. Pelo contrário. Quanto mais simples, mais monstruosa. Pois então não era claro e incontestável que a dívida fora paga no prazo exigido? Que tinha sido feita ainda em 2014? Como justificar a perda dos benefícios fiscais por a dívida ter transitado de ano? Além disso, se a dívida é de 2011, porque não levou à perda dos mesmos benefícios nesse ano, em 2012 e em 2013?Se foi por a regra (de perda dos benefícios fiscais) só ter começado a ser aplicada em 2015, terá então a Autoridade Tributária ido repescar agora, no final do ano, essa dívida de 2011 expressamente para poder subtrair os benefícios ao jovem casal?Catarina e Jorge já perderam dias inteiros na repartição de Finanças de Cascais. Jorge consulta frequentemente o site das Finanças. “Já conheço aquilo de trás para a frente”, diz ele. “A informação tem de estar lá. É preciso chegar a ela por várias vias: ou através do link ‘Obter’, ou ‘Consultar’, ou na secção de ‘Dívidas Fiscais’. O site é complicado, mas ao fim de muito tempo até se torna intuitivo. ”Catarina e Jorge, que vivem em Alcabidexe com a filha de 15 meses, continuam a tentar, “por descargo de consciência”. Mas têm a certeza de que nunca receberão o reembolso devido. “Eles vão sempre arranjar um argumento qualquer. Pode aparecer qualquer coisa, é imprevisível”, diz Catarina. Está convencida de que dependia do funcionário com quem calhou falar. “Tenho a certeza de que, se fosse umas das senhoras que me atenderam, tudo se teria resolvido. ” Mas agora está no Contencioso. “Se eles admitissem, nesta fase, que não tinham razão, teriam de pagar mais. Os 2400, mais os juros. Isso nunca vai acontecer. ”Jorge, mal viu, no site, que o IUC deste ano estava a pagamento, liquidou logo tudo. Passados dias, a dívida ainda surgia no site, com o sinal vermelho de “Incumprimento”. Pelo sim pelo não, pagou outra vez. Tudo é preferível a ir parar ao Contencioso. É sempre melhor pagar a mais do que entrar em litígio com a Autoridade Tributária e Aduaneira. “E se me aparecer de novo o IUC do Smart deste ano, pago uma terceira vez. ”Num dos guichets da repartição de Finanças da Rua dos Correeiros, na Baixa de Lisboa, foi colocado um letreiro que diz: “Insultar um funcionário da AT em exercício das suas funções é punível com multa até 240 dias ou prisão até 1 ano. ”A chefia terá achado que o contraste entre a delicadeza dos processos atribuídos àquela funcionária e a indelicadeza com que ela se exprime seria susceptível de provocar faíscas na paciência dos contribuintes. Com efeito, à medida que são chamados, pelo número da senha, e depois de terem exposto o seu caso, exibindo notificações, intimações e contra-ordenações, por vezes pastas cheias de fotocópias, certidões, queixas, decretos e outra fútil papelada, vão explodindo em sentimentos biliosos. “Isto é roubo! Extorsão!”, grita um. “A senhora é uma incompetente!”, berra outro em surdina, vermelho de fúria, olhando de esguelha para o letreiro dissuasor. E um outro, de lágrimas nos olhos: “E então propõe que eu faça o quê? Tenho a conta bancária penhorada, o salário penhorado. Como vou comprar comida para os meus filhos? Vamos morrer à fome? É isso, minha senhora? É isso que propõe? Ou quer que me suicide? É essa a solução? Não há outra? A senhora é desumana. A senhora é…”Outro: “Mas eu já lhe disse que paguei tudo! Está aqui a liquidação! Como é que não apresentei a declaração de 2008? Veja lá bem. Quando é a vosso favor, são tão eficientes a cruzar dados. Quando é a favor do cidadão… Isso é um erro grosseiro. A senhora não sabe o que está a fazer. ”Uma mulher na casa dos 40 anos, saltos altos e ar de quem não sabe porque foi ali chamada: “Mas eu estou divorciada do meu marido, ele já não vive comigo, não sei que dívidas tem. Vão penhorar a sua parte do imóvel? Digam-me lá como é que vão penhorar metade da casa! Penhoram a sala de jantar e a casa de banho? Ou meu quarto e a cozinha? A senhora deve estar a brincar comigo. ”O ambiente é cavernoso e pungente, um estranho limiar entre a Urgência de um hospital e a sala de interrogatórios de uma esquadra. Aqui, como em todos os departamentos de Contencioso e Execuções Fiscais das várias repartições de Finanças do país, raramente há conversas pacíficas. As pessoas queixam-se e protestam ou imploram e choramingam, desarmadas, impotentes e envergonhadas. Umas horas na fila de espera bastam para perceber que os casos se repetem. Há as histórias de penhoras de casas, salários e contas bancárias emitidas enquanto o contribuinte já está a pagar a dívida segundo um plano de prestações aprovado, as de dívidas antigas de que o contribuinte nunca foi notificado, as de pagamentos por conta a partir de estimativas irrealistas, o IUC de carros que já não existem há anos, por vezes décadas. As queixas referem-se sempre aos mesmos problemas — erros, má informação, dados contraditórios, confusões no sistema informático, uniformização desumana no tratamento de cada situação e, claro, excesso de tributação, excesso de coimas, excesso de juros, excesso de custas. E há frases recorrentes, quer ouçamos contribuintes desesperados em Cascais, em Lisboa, em Almada ou no Porto: “Aqui, a regra é pagar primeiro, queixar-se depois. ” Ou: “Não aguento mais. Vou emigrar para outro país. ” Ou ainda: “Eu não sei como é que ainda não houve alguém que tivesse entrado aqui com uma arma…”Pagar impostos nunca foi agradável. Sempre houve queixas e é normal que as pessoas tentem pagar o menos possível. E também é verdade que estavam mal habituadas. Durante muitos anos, os serviços eram tolerantes e frouxos. Mas talvez agora os limites do tolerável tenham sido ultrapassados. E não se trata apenas do aumento brutal dos impostos, principalmente para os que ganham menos ou têm empregos precários. Está em causa saber se o tratamento dado aos cidadãos é impróprio. Se há descontrolo, desproporção de meios e abuso. Eduardo Paz Ferreira, professor no Instituto de Direito Económico, Financeiro e Fiscal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, pensa que foi “demasiada a pressão para a receita” e que por isso se “facilitou”, em termos de procedimentos e transparência. “Durante muito tempo havia tolerância, a máquina não perseguia as pessoas. ” Depois houve um choque, que, na origem, foi positivo. “Paulo Macedo é um momento importante. ” Enquanto director-geral dos Impostos, entre 2004 e 2007, fez as reformas que levaram a uma maior eficácia do sistema fiscal. “Acima de tudo, ele conseguiu introduzir a noção do dever de pagar impostos. E o sistema passou a funcionar melhor. No tempo dele, de uma forma equilibrada. Mas depois vieram as políticas de austeridade. Os governos introduziram metas quantitativas para cobranças coercivas. ”Terá sido este cruzamento do choque da eficácia com as necessidades da austeridade que desequilibrou o sistema. Parte do problema reside na própria solução que foi encontrada: a informatização. “Hoje, tudo é automático. Não há a possibilidade de se analisar cada caso na sua especificidade. Isso já levou à falência de milhares de empresas. E tenho muitas dúvidas de que, feitas as contas, estes métodos estejam a levar a um aumento da receita. ”Esta “ditadura” do sistema informático, combinada com “a precarização da classe dos trabalhadores dos impostos”, cria problemas graves no relacionamento com os contribuintes e dificulta, na prática, a justiça fiscal. A informatização, segundo Paz Ferreira, não deixa de ser útil, mas teria de ser completada com “guidelines para negociar com as pessoas, caso a caso”. Seria de supor que já tivesse sido criada, diz o fiscalista, uma organização de contribuintes, que os ajudasse e defendesse os seus direitos, o que ainda não aconteceu. “É estranho que não tenha surgido ainda um movimento de cidadãos contra o Fisco. Seria útil uma associação de contribuintes, do tipo da Deco, que funcionasse como interlocutor social. Já houve um provedor do Contribuinte, mas não serviu para nada. Talvez isto pudesse entrar nas competências do provedor de Justiça. ”Os actuais métodos criaram um tal sentimento de injustiça que acabam por legitimar a tentativa de evasão fiscal. Eduardo Paz Ferreira chega a interrogar-se se não será já apropriado invocar o artigo 21. º da Constituição, sobre o Direito de Resistência (“todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”). Hoje, tudo é automático. Não há a possibilidade de se analisar cada caso na sua especificidade. Isso já levou à falência de milhares de empresas. E tenho muitas dúvidas de que, feitas as contas, estes métodos estejam a levar a um aumento da receita. Em 2010, Cristina Branco, cantora, e Tiago Salazar, escritor, foram chamados para uma inspecção de Finanças. Em causa estavam os últimos cinco anos de actividade profissional de Cristina, que incluíam concertos em Portugal e vários outros países. Segundo o inspector, não terão sido pagos todos os impostos devidos, de acordo com os “indícios” por ele recolhidos. Terá havido cruzamento com dados de entidades compradoras dos serviços da artista ou outros indícios de pagamentos não declarados. Foram pedidas provas do pagamento de IRS ou documentos que a ilibassem de responsabilidades, mas a cantora não conseguiu apresentá-los. Durante todo esse período, trabalhou com um agente que geria e organizava a contabilidade dos concertos que ela protagonizava, mas em que participavam também uma série de músicos e técnicos. Cristina ocupava-se das canções, não das contas. Sabe apenas que, de todos os honorários que recebeu, pagou o correspondente IRS, após ter apresentado as declarações anuais. Após a inspecção, sem entender como nem porquê, foi-lhe fixada uma dívida de mais de 200 mil euros. Não de uma só vez. Ia recebendo, cada ano, valores a pagamento correspondentes a anos anteriores, que estavam a ser inspeccionados. Do ano de 2006 devia, segundo a estimativa dos inspectores, cerca de 11 mil euros. Reuniu todas as suas economias e pagou. Mas dos dois anos seguintes, 2007 e 2008, já devia, também segundo as estimativas, mais de 100 mil euros. Como os rendimentos em todos esses anos foram mais ou menos equivalentes, Cristina e Tiago concluem que as estimativas foram realizadas sobre bases totalmente arbitrárias. Mas esse argumento não serviu. O que lhes foi explicado é que foram aplicados “métodos indiciários” para chegar aos valores fixados. O contrato de um concerto nos EUA a que correspondeu um pagamento de oito mil euros foi-lhes mostrado, muito em segredo, por fazer parte do processo a que o contribuinte não pode aceder, explicaram. A partir desse contrato terá sido feita uma projecção, com base num número presumível de contratos por ano. O que os funcionários não consideraram é que aquele contrato, apesar de estar feito em nome de Cristina Branco (por ela ser a cabeça de cartaz) e assinado por ela, continha o valor total recebido pelo concerto, do qual foi preciso extrair, além do cachet da cantora, os honorários dos músicos e dos técnicos, bem como as despesas de deslocação. Em vão, Cristina tentou explicar isto aos funcionários das Finanças. “Toda a minha vida se desmoronou”, diz ela. “Não acreditava que aquilo estava a acontecer. Caiu-me tudo em cima. ” Foi interrogada em longas sessões na secção de Contencioso das Finanças de Santarém. “Foram muito agressivos. Perguntavam-me se eu estava consciente da minha situação. Senti que havia uma preocupação em me diminuir. Senti-me ameaçada. Eles não faziam ideia de como se organiza um espectáculo. Não se informaram sobre a especificidade do caso. Assumiram que eu ganhei dinheiro em concertos gratuitos de promoção da editora, em concertos de beneficência. Nem sabiam o que são royalties. ”Eles não faziam ideia de como se organiza um espectáculo. Não se informaram sobre a especificidade do caso. Nem sabiam o que são royalties. Cristina consultou um advogado, tentou obter a colaboração do antigo agente, para que disponibilizasse todos os documentos. Por fim, por sugestão do próprio inspector de Finanças, levantou o sigilo bancário. Mas nem depois de ter ficado patente que não recebeu quaisquer valores não declarados a atitude mudou. Pensou levar o caso a tribunal, envolvendo a AT, mas também agentes e empresários do mundo da música, para que fossem apurados todos os factos e modos de proceder. Mas pensou duas vezes. “Nós, os artistas, somos muito vulneráveis. Todos somos precários. Eu só tenho a minha voz. Se implicasse outras pessoas, isso seria mal visto no meio. Não posso provocar muito burburinho, sob pena de deixar de ter trabalho. ”Cristina e Tiago, casados desde 2009, tinham comprado uma casa em Almeirim, com um empréstimo bancário, para lá viverem e criarem uma espécie de residência para artistas. Queriam transformá-la num centro cultural, de intercâmbio, para criadores de várias áreas artísticas. Foi tudo penhorado. A casa, as contas bancárias, os honorários. Para a dívida antiga, conseguiram um plano de pagamento no valor de mais de 150 mil euros, em prestações de cerca de 1300 euros mensais, durante mais 11 anos. Com os outros encargos fiscais, que incluem outras dívidas antigas, além das recentes, viram a mensalidade conjunta ao fisco (são casados com comunhão de bens) ascender aos 5 mil euros. Escreveram cartas, lavraram protestos, ninguém os atendeu. Ambos com profissões precárias e dois filhos menores a cargo, tomaram uma decisão: saíram do país, há dois anos, fixaram residência na Holanda. Continuam a pagar a dívida em Portugal, mas os rendimentos actuais são taxados lá. “Além de a carga fiscal ser mais baixa, percebe-se onde são aplicados os impostos. Há protecção social, a Saúde e a Educação são totalmente grátis. As crianças não pagam nada”, diz Tiago. “Perdi a confiança em Portugal. As penhoras são automáticas, não há nada que se possa fazer ou alegar. Não há meios de defesa. Já este ano, penhoraram-me a conta bancária. Depois penhoraram o carro. Mas, como viram depois que não é meu, porque o estou a pagar, desistiram, mas ficaram-me com o livrete, como forma de chantagem, numa atitude completamente arbitrária e ilegal. ”Cristina Branco, considerada um nos nomes mais importantes da música portuguesa contemporânea, diz que tudo isto lhe afectou a motivação e a criatividade. Na necessidade urgente de fazer dinheiro, tem aceitado todo o tipo de concertos e actuações, eventualmente descurando, por vezes, a preocupação com a imagem e o prestígio que deve orientar uma carreira artística como a dela. As canções do último disco, Alegria, reflectem a situação e a revolta contra a injustiça a que se sente votada. Cristina criou várias personagens femininas de uma forma ou de outra vítimas de prepotência e convidou escritores a desenvolverem uma letra para cada uma delas. “A música é a minha forma de desabafar”, diz ela, quase envergonhada. Também Tiago escreveu um livro, Quo Vadis Salazar?, onde relata o que lhe tem acontecido e a vida e os projectos que o seu país lhe negou. “Recuso-me a pagar seja o que for neste país”, diz ele. “Sinto que fui saqueado. ”Perdi a confiança em Portugal. As penhoras são automáticas, não há nada que se possa fazer ou alegar. Não há meios de defesa. Não tanto pelo volume de impostos que tem de pagar (“sempre cumpri as minhas obrigações fiscais. Nunca me recusei a pagar nada. Expliquem-me correctamente quais são as minhas dívidas e eu pago tudo”), mas pela forma como foi tratado. A impossibilidade de ser ouvido, a prepotência dos serviços, a presunção de culpa. “Falavam à Cristina com paternalismo. ‘Veja lá, olhe que ainda se vai prejudicar’. ” Quando o inspector foi a casa deles, em Almeirim, insistiu que queria entrar. Olhando em redor, ia dizendo: “Sim senhor, tem aqui uma bela casa…”Nas várias audiências, segundo Cristina e Tiago, eram feitos comentários do género: “A senhora é cantora, deve ganhar muito dinheiro. ” E quando o inspector anunciou o montante das estimativas de dívida, não deixou de acrescentar, dando a entender que, no seu livre-arbítrio para decidir os destinos dos contribuintes, foi especialmente benevolente neste caso: “Podia ter sido muito pior. Olhe que podia ter sido muito pior. ”Paulo Ralha, presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, diz que as actuais regras e instruções dadas aos trabalhadores do Fisco criaram uma conflitualidade sem precedentes entre estes e os contribuintes. “A conflitualidade verbal é quotidiana, e há muitos casos de conflitualidade física”, diz. E as vítimas são tanto os contribuintes como os próprios funcionários. Muitas das situações que levam às queixas — penhoras automáticas, penhoras de casas por dívidas ridículas, coimas sucessivas, devem-se ao sistema informático instalado. “Os trabalhadores não têm responsabilidade nestas situações. Eles próprios são vítimas. Dantes, os chefes de repartições de Finanças tinham autonomia para tomar decisões. Eles é que decidiam vender as casas penhoradas. E faziam acordos com as pessoas. Agora, é automático. Surge no ecrã do computador do funcionário uma bolinha avisando que determinada casa vai ser penhorada ou vendida. É o SIPA (Sistema Informático de Penhoras Automáticas). E o chefe não pode fazer nada. Ainda que depois a notificação de penhora siga para o contribuinte assinada com o nome dele. ”Em rigor, explica Paulo Ralha, o chefe até poderia ir contra a decisão do sistema. Mas teria de justificar por escrito e geralmente tem medo de o fazer. “Hoje, com as aposentações de muitos funcionários, e devido ao congelamento das carreiras, cerca de 60% dos chefes de Finanças ocupam o lugar em regime de substituição. É uma espécie de comissão de serviço, de que podem ser dispensados a qualquer momento. Isso dá-lhes uma grande fragilidade. ”No entanto, acontece que o omnipotente sistema informático é muito fraco. “Mais de 90% das queixas que temos dos trabalhadores referem-se a falhas do sistema informático. O sistema está sempre a cair, não permite aceder às informações necessárias, etc. ”60% dos chefes de Finanças ocupam o lugar em regime de substituição. É uma espécie de comissão de serviço, de que podem ser dispensados a qualquer momentoMuitas das informações imprecisas, contraditórias ou erradas prestadas pelos funcionários devem-se a isto. Mas também, admite o dirigente sindical, ao facto de não terem formação. “As regras mudam mais ou menos de 15 em 15 dias. E há mais de dez anos que não há qualquer acção de formação para os trabalhadores. ”Deixou de haver por causa dos cortes orçamentais. No entanto, está neste momento a decorrer uma formação, obrigatória para todos, que custou, diz Ralha, cerca de 5 milhões de euros. “É uma formação que veio na sequência do fim da ‘Lista VIP’ e que é sobre o relacionamento com contribuintes especiais. ”Sendo “contribuintes especiais” as grandes empresas ou as entidades que movimentam muito dinheiro. Esses têm direito a negociar os seus casos, elaborando planos de pagamentos e regimes que lhes sejam mais favoráveis. “A Unidade de Grandes Contribuintes funciona como um gabinete de consultoria para as grandes empresas. ”Todo o suposto rigor fiscal dos últimos anos, os métodos coercivos implacáveis, a uniformização e inflexibilidade são uma ilusão, diz o sindicalista. “Está tudo feito para apanhar o pechisbeque. Entre as grandes empresas, continua a evasão. Só diminuiu a fraude em alguns nichos — restaurantes, cafés, cabeleireiros. A eficácia é uma falácia. Pura propaganda. ”A prova, segundo Paulo Ralha, é que, “segundo os dados do Observatório de Economia e Gestão de Fraude, a economia paralela representa hoje entre 30% e 36% do PIB, quando em 2012 era de 26, 64%. Com os reflexos que isso tem na colecta fiscal. ”A “agressividade fiscal” funciona como “pesca de arrasto”, explica Paulo Ralha. “Limpa tudo. ” O sistema está feito para a arbitrariedade e para que as pessoas não consigam protestar. “Não nos dizem exactamente: ‘Façam o que têm a fazer, e eles que reclamem. ’ Mas sabemos que às pessoas não lhes adianta reclamar. Para que o fariam? Para perder tempo e dinheiro nos tribunais?”Algumas recentes alterações nas regras foram mesmo, segundo Paulo Ralha, “feitas de má-fé”. É o caso do regime do IUC. “Houve uma alteração na natureza do imposto. Dantes incidia sobre a viatura, agora sobre o sujeito. ”Ou seja, até Outubro de 2013, um carro que estivesse parado não pagava imposto (que se chama “de circulação”). Agora, basta possuir o carro para ser tributado. “O problema é que a nova regra tem efeito retroactivo, o que não é correcto. As pessoas são agora notificadas para pagar IUC sobre carros que já foram abatidos há anos. ” E como não era devido imposto, nem todos se certificavam de que o carro tinha realmente sido abatido, com comunicação às Finanças ou que os novos proprietários mudaram atempadamente o registo, nos casos de venda. Tudo isto permite agora ao Fisco cobrar aos incautos contribuintes milhares de euros por carros que não são deles ou que não existem. Muitas da dívidas de Paulo T. Têm origem em carros velhos. Não apenas neste Fiat Punto Vermelho de 1983 onde agora vive, mas nos quatro ou cinco que teve na última década e de que não chegou a dar baixa. Abandonou-os ou deixou-os apodrecer completamente, e agora lá aparecem eles na lista dos IUC por regularizar. “Não sei bem qual é a origem das minhas dívidas, mas acho que é o IUC e o IRS”, diz Paulo, sentado na esplanada no restaurante Fazenda, numa aldeia dos arredores de Mortágua. São dez da noite e o frio começa a tornar-se insuportável, mas Paulo não parece dar-se conta disso. Dentro do Fiat Punto, estacionado ali ao lado, não deve estar muito melhor. O restaurante está fechado, não há ninguém na rua, o silêncio é total. Pela familiaridade que mostra com o lugar, percebe-se que Paulo passa ali muitas das suas horas vagas. Antes, viram-no dentro do carro, parado à porta de outro café, numa outra aldeia das redondezas. Mas para dormir costuma estacionar junto a uns prédios situados entre os Bombeiros e a Câmara Municipal de Mortágua. “Ali junto à parede sempre é mais abrigado, protege um pouco do frio, no Inverno. Não muito, mas já sei que tenho de aguentar. Não há nada a fazer. Aguenta-se. ”Cada vez que vou ao portal, a dívida aumentou. Há meses, tinha 70 processos e devia 12 mil euros. Fiz as contas a um pagamento em prestações, mas não conseguiria, porque o prazo máximo que concedem é de 36 mesesO carro, que comprou por 1500 euros, a prestações, é tudo o que tem. É lá que guarda as ferramentas para os biscates na construção civil e é lá que dorme. Como é um comercial, com bancos não reclináveis, tem de dormir sentado. E como já não há vedação estanque entre os fumos do motor e o habitáculo, não é possível ligar o carro para aquecer, durante a noite. Paulo já trabalhou numa empresa de construção civil, que depois faliu, com a crise, em 2001. Ficou sem emprego, deixou de conseguir pagar a renda da casa onde vivia, em Santa Comba Dão. Passados alguns meses, o senhorio decidiu mudar a fechadura da porta. Ficaram lá a mobília, cama, roupa, frigorífico, máquina de lavar, tudo o que Paulo tinha. Ele ficou na rua. Começou a dormir no carro. Ia tentando uns biscates, mas não surgia quase nada. Passou fome. Por vergonha e orgulho, recusou-se a pedir ajuda à mãe e aos amigos. “Em 2010, não tinha trabalho, a crise era forte… Uma vez, não comia há três dias, despedi-me dos amigos. Fui até à linha do comboio. Nem sei o que ia fazer. Mas uns amigos (nem sei se eram realmente meus amigos) telefonaram para a GNR. Os guardas foram à minha procura, levaram-me para o posto. Fiquei lá, até aparecer uma assistente social, que disse que o meu caso já estava sinalizado. Arranjou-me um quarto. Fui para lá, mas paguei sempre a renda. Nunca aceitei esmola de ninguém. ”Começou a arranjar alguns trabalhos nas obras e a senhoria, que, segundo Paulo, não gostava que ele lhe sujasse as escadas com as botas sujas, despejou-o. Foi de novo para o carro e nunca mais teve casa. Passaram dez anos. Paulo, 50 anos, óculos grossos e rosto de criança, é um homem inteligente. Até ao 12. º ano do Secundário, gaba-se de nunca ter tido menos de 20 a Matemática. Participou nas Olimpíadas da Matemática e ficou em terceiro lugar a nível nacional. Mais tarde, já a trabalhar, matriculou-se no curso de Agente Técnico, no Instituto Politécnico de Coimbra. De início, os colegas gozavam-no, por ser o único pedreiro. Os outros eram desenhadores, topógrafos. “Eu era o burro, o morcão. ” Mas depois, conta ele, passaram a respeitá-lo, quando perceberam que era dos melhores alunos. Até Novembro de 2008, era reconhecida competência aos agentes técnicos para assinarem projectos de construção. Paulo terminou o curso ainda a tempo de apresentar um projecto seu à Câmara de Mortágua, mas o funcionário responsável chumbou-o no último dia de Outubro. E depois era demasiado tarde. “A câmara era um cartel. Não queriam lá um novo projectista. ”A partir daí, foi ainda mais difícil conseguir trabalho, porque os colegas levaram-lhe a mal ter estudado. “Afastaram-se de mim. Ninguém me ajudava a ter trabalho. Mas eu queria saber mais. Não queria ser só pedreiro. Interessava-me muito a construção, mas tinha vontade de saber mais qualquer coisa. ”Voltou aos biscates que iam surgindo, pagos a recibos verdes. Vive assim há dez anos, dormindo no carro. Recebe em cheque ao portador, que um amigo lhe faz o favor de descontar. Não poderia depositá-lo porque tem a conta bancária há muito penhorada. Com o telemóvel, usando as redes wifi que vai apanhando aqui e ali, acede ao portal das Finanças para passar os recibos, depois de ter reaberto actividade. Grava-os em pdf, que envia a um amigo, que os imprime. Nos últimos anos, tem feito isto com um mesmo patrão, que exige recibos. E foi lá que descobriu a sua desgraça. Entre dívidas de IRS, IVA e IUC, com multas, coimas e juros, num total de mais de 80 processos de execução fiscal, já deve mais de 15 mil euros. “Cada vez que vou ao portal, a dívida aumentou. Há meses, tinha 70 processos e devia 12 mil euros. Já li tudo, estudei o site, introduzi os dados no Excel que tenho no telemóvel. Fiz as contas a um pagamento em prestações, mas não conseguiria, porque o prazo máximo que concedem é de 36 meses. Escrevi um email à Deco a expor a minha situação, não me responderam. Pedir a insolvência está fora de questão, porque eu quero trabalhar e endireitar a minha vida. ”Mas não sabe por onde começar, porque entrou num círculo vicioso. Deixou caducar o cartão de cidadão e não o pode renovar porque isso exige uma morada. Os serviços enviam uma carta para a morada, para confirmação. Sem o cartão de cidadão, não pode renovar a carta de condução, que caducou quando completou 50 anos. E sem a carta de condução não conseguiu fazer seguro para o carro (que logrou pôr em seu nome porque o vendedor aceitou escrever a sua morada no registo). Como não tem domicílio fiscal, não recebe notificações das Finanças e portanto não pode pagar as dívidas. No entanto, sabe que um fiscal anda atrás dele para pagar. Há dias, foi interceptado com o carro numa operação stop. Quando tentou explicar ao agente os motivos por que não tinha documentos, ele respondeu: “Em Lisboa é que há sem-abrigo. Aqui não se pode ficar a dormir no carro. Se quer ser sem-abrigo, vá lá para Lisboa. ” Mas Paulo gosta de viver em Mortágua. O trabalho que tem feito todos os dias é em Coimbra, que fica a pouco mais de 30 quilómetros daqui. Se dorme no carro, bem podia encostar numa esquina e ficar lá a dormir. “Esta é a minha terra. Gosto de vir cá dormir, mesmo não tendo casa. ”Ao fim da tarde, estaciona o carro em frente a cafés e restaurantes, pela ilusão de ter companhia. Quando tem menos trabalho e menos dinheiro, salta refeições. Nessas alturas tenta dormir algumas horas durante o dia, para enganar a fome. A actual rotina tem, porém, os dias contados. Agora que tem passado os recibos sempre à mesma empresa, é uma questão de tempo até as Finanças o detectarem e penhorarem o patrão dos valores que lhe paga. Ou seja, deixará de receber, porque o patrão terá de passar a pagar às Finanças o que lhe deve a ele. Paulo sabe exactamente quando isso acontecerá, porque fez as contas às datas em que a declaração fiscal da empresa será processada. Não sabe o que fará mas, ao mesmo tempo, alimenta planos ambiciosos. Anda atento às vagas da primeira fase do curso de Engenharia Civil. “Este ano houve 120 candidatos, para oito lugares, mas estão a diminuir. Como a Construção Civil está em baixa, já ninguém quer ser engenheiro. Eu hei-de tirar o curso. Tenho a certeza de que fazia as cadeiras todas com uma enorme facilidade. Isso é o meu sonho. Acho que vou consegui-lo quando tiver 65 anos, e pedir a reforma. Não terei mais de trabalhar, vou dedicar-me totalmente a estudar Engenharia Civil. ”Com uma dívida de 15 mil euros a crescer todos os dias, Paulo sabe que nunca mais conseguirá levantar-se. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Criou no telemóvel uma página Facebook, sob o nome de Fernão Capelo Gaivota. Coloca lá pequenos textos sobre as suas vagabundagens e fotografias da Barragem da Aguieira, entre o Mondego e o Dão, onde por vezes vai tomar banho. “Li os livros de Richard Bach. O Fernão Capelo Gaivota era uma gaivota que queria voar mais alto do que as outras. Caiu, mas levantou-se e fez o seu grande voo. Eu também sonhei com um grande voo, ao estudar. Também caí, mas ainda não me consegui levantar. Ainda estou de rastos. Mas um dia vou conseguir. ”
REFERÊNCIAS: