A balada de Tavira
Há anos que ingleses, suíços, franceses pousam aqui porque querem mudar de vida. A cidade majestosa e a serra à sua volta são hipnóticas. Agora, a ameaça chamada “petróleo e gás de xisto” pode transformar Tavira num paraíso perdido. (...)

A balada de Tavira
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há anos que ingleses, suíços, franceses pousam aqui porque querem mudar de vida. A cidade majestosa e a serra à sua volta são hipnóticas. Agora, a ameaça chamada “petróleo e gás de xisto” pode transformar Tavira num paraíso perdido.
TEXTO: O carro na noite avança lentamente na ponte negra e reluzente. Os reflexos luminosos multiplicam-se. Tavira surge suavemente da escuridão. E, a seguir, os cheiros. A pinheiro, a iodo, a esteva, a limo do rio e do campo. Tavira-Tabira, do árabe “a escondida, a discreta”. Aliás, como que ecoando um passado imemorial, nas alturas capta-se a rádio marroquina. Esta cidade é o belo segredo mais repetido do momento. Tavira dorme e no entanto palpita e daqui a umas horas a vida vai jorrar de todo o lado, radiosa. A lânguida majestade e a luz da região de Tavira têm atraído numerosos pintores e artistas plásticos portugueses e estrangeiros. Bartolomeu dos Santos viveu lá, Paula Rego lá ficou muitas vezes, Pedro Cabrita Reis é um habitué da serra, tal como Felim Egan, pintor contemporâneo irlandês. A lista é longa. Mais espantoso ainda, o concelho de Tavira também é um destino de músicos. A vila de Estorninhos, nas ondulações da serra de Tavira, é disso um exemplo interessante. Ao virar de uma estrada sinuosa, praticamente invisível aos olhos dos passantes, esconde-se uma encantadora casinha, um antigo moinho restaurado. Foi construída por Dick Morrissey, saxofonista e jazzman britânico com dezenas de álbuns editados, tornado célebre a partir dos anos 1960. Ele viveu lá até ao fim da vida e compunha, com os montes em seu redor por únicos companheiros e o silêncio apenas ornamentado pelo ruído dos insectos e das aves, perante pores do Sol de cortar a respiração. E sem nada à volta. O acaso — mas será mesmo o acaso? — fez com que um outro casal de artistas conhecidos se instalasse a umas centenas de metros de Dick Morrissey. Os suecos Kärsti Stiege e Johan Zachrisson. Ela, fotógrafa de renome e autora imbuída de cultura budista; ele, compositor de world music com vários álbuns de muito honorável sucesso na Suécia e noutros sítios da Europa. Como o disco Ritmo de Estorninhos, onde Johan mistura todo o tipo de influências, portuguesas, árabes e muitas outras. Quando Johan ouviu dizer que havia um saxofonista a dois passos dali, apresentou-se em casa de Dick Morrissey, o contacto estabeleceu-se logo e deu-se o início de uma bela amizade musical e produtiva. O casal sueco viajou sempre muito, mas foi em Estorninhos que decidiu pousar. A história é invulgar: quando, em 1986, tem lugar a catástrofe de Tchernobil, Kärsti e Johan estão na Suécia. Kärsti, preocupada, faz averiguações, liga para a Greenpeace para saber para onde ir de maneira a fugir à contaminação radioactiva. Para a Nova Zelândia? Demasiado longe. Kärsti lembra-se então das maravilhosas férias passadas nos anos 1950 em Tavira, com a filha do casal ainda bebé (imita o gesto de embalar). Kärsti publica e expõe regularmente livros de fotografia e textos, nomeadamente sobre os tempos antigos em Tavira, os ofícios tradicionais e a vida no campoO bebé cresceu na natureza selvagem e inspiradora. Diga-se que a criança, hoje adulta, de seu nome Lykke Li, cantora e compositora, tornou-se uma estrela planetária em 2011 com o seu hit I Follow Rivers (com mais de 230 milhões de visionamentos no YouTube). A partir de Los Angeles, Lykke Li diz-nos algumas palavras sobre a sua vida em Estorninhos: “Crescer lá foi uma experiência muito especial e libertadora. Corríamos como selvagens nas montanhas, roubávamos laranjas e apanhávamos cobras. Fico muito agradecida por isso tudo e espero um dia poder dar a mesma oportunidade aos meus filhos. ”Johan Zachrisson também se lembra: “A vida na Suécia era muito moderna e cheia de constrangimentos. Aqui, encontrámos uma vida que estava sempre muito ligada à cultura da terra, ‘minha terra!’, uma pequena aldeia do campo. Quando chegámos a Estorninhos, só havia um telefone em toda a aldeia, quase nenhum televisor e nenhum computador. Não havia turismo nem semáforos. Mas havia mulas, galinhas, ovelhas e sobretudo vizinhos tão amáveis que passavam pela nossa casa de regresso dos seus lotezinhos de terra e nos ofereciam uma parte das coisas frescas que tinham acabado de colher. Era uma vida muito mais livre, em suma. ”A serra ouve-se no seu trabalho: “A nossa casa e a natureza envolvente enchem-nos de inspiração criativa e são um bom ambiente para a música. Utilizei registos sonoros dos arredores, o latir dos cães, o ruído dos pássaros, os grilos que no Outono, após a primeira chuva, sobem na noite e produzem um som muito especial, como que a pedir por mais chuva. ”Hoje em dia, o compositor continua muito activo e ligado a muitos músicos da região. Quanto a Kärsti, publica e expõe regularmente livros de fotografia e textos, nomeadamente sobre os tempos antigos em Tavira, os ofícios tradicionais e a vida no campo. Uma das suas fotos a preto e branco, de um camponês a caminhar ao lado da sua mula, teve aliás uma tiragem de milhares de exemplares. Artista à sua maneira e num domínio mais inesperado, Fred Levy é muito conhecido na região: criou uma empresa de design e concepção de espaços verdes e de construções duráveis. É um artista da coisa viva e é a mascote dos donos de estalagens chiques e outros felizes proprietários de belas moradias que desejam criar jardins ao mesmo tempo pensados, autónomos e ecologicamente responsáveis. Francófono e belga, chegou a Tavira há 30 anos. Naquela altura, salienta, havia “ainda uma forte marca da presença harmoniosa das três religiões monoteístas, que me parecia ser um bom sinal para uma terra de acolhimento numa altura em que as culturas judaico-cristã e muçulmana já começavam a desgarrar-se mutuamente. Tavira foi literalmente um amor à primeira vista: uma relação física que ia muito para além da estética arquitectónica ou paisagística. ”Cheio de vitalidade, de espiritualidade, cidadão de causas, Fred foi o iniciador do movimento Tavira em Transição, que promove a permacultura, esse modo de exploração durável e ecológico da natureza que, nas suas palavras, “faz de cada problema um recurso. É um novo fôlego que nos vem de uma geração que sabe aliar as tecnologias ao respeito pelo ambiente”. Fred Levy é muito conhecido na região: criou uma empresa de design e concepção de espaços verdes e de construções duráveisTavira, explica, conservou o seu carácter antigo e um centro vivo. As zonas rurais foram marcadas por uma agricultura tradicional de sequeiro, o que confere um carácter muito particular à região. Trata-se de uma forma de agricultura não intrusiva para a natureza, uma vez que se adapta aos factores limitadores naturais (escassez de água, forte exposição solar, terreno muito calcário). “Infelizmente, há dois ou três anos, assistimos a uma degradação devido a políticas agrícolas que não parecem medir o seu drástico impacto sobre a identidade e a verdadeira riqueza da região. O movimento Tavira em Transição reúne jovens e menos jovens atraídos pelos valores autênticos e actuais: uma vida saudável ao ar livre, uma relação directa com a natureza sem cair num consumismo desenfreado. ”Eles produzem o que consomem, mas continuam online no seu iPad. Vivem em tribos onde os géneros e as gerações se misturam e fazem parte das redes sociais. O acesso e o desenvolvimento da cultura representam aliás uma linha importante do orçamento municipal. Um grande esforço tem sido feito na educação, a acção social e o desendividamento da cidade, que representava 120% do PIB anual de Tavira, segundo o actual presidente da câmara. Aos 48 anos, com uma expressão aberta e sorridente e uma palavra amável para cada um, gestos tranquilos e o ar seguro e decidido de quem exerce o poder, não há dúvidas: o presidente da Câmara de Tavira vestiu perfeitamente a camisola da sua função. Jorge Botelho dirige a cidade há dois mandatos (eleito pelo PS em 2009) e não esconde que tenciona concorrer a um terceiro em 2017. O autarca indica-nos que pelo menos 10% do orçamento é dedicado à animação cultural, à reabilitação do património — que é abundante e precisa de restauro — e aos museus e concertos. No passado mês de Setembro, por exemplo, o conhecido cantor pop Agir, de 27 anos, deu um concerto no largo principal. O seu público tem a reputação de ser jovem, enérgico e urbano. Faz portanto 40 anos que Tavira assiste à instalação de grupos cada vez maiores de europeus no seu solo. Os ingleses, para começar, seguidos dos suecos e mais recentemente dos franceses. Há também um bom número de alemães e de holandeses. Uma espécie de tectónica dos povos. As razões desta afluência de residentes vindos de paragens longínquas são múltiplas. A qualidade de vida e o clima, obviamente. O menor custo de vida, claro. O efeito de arrasto, de moda em rápido desenvolvimento nos países insulares ou de tamanho modesto. Mas também a abertura de linhas aéreas directas e low cost, a martelagem mediática em torno de Portugal e as vantagens fiscais concedidas pelo Governo português aos reformados suecos e franceses. Frantz Pigneul, um francês de 43 anos, é um globe-trotter que se instalou há muito em Lisboa. Renova, decora e comercializa imóveis e vivendas de topo de gama para clientes ricos. É amante de coisas belas e conhecedor de mil e um sítios fabulosos no globo, mas mesmo assim investiu o seu dinheiro pessoal (e, por uma vez, não o dos clientes) numa casa em ruínas do centro histórico. E, como a sua paixão por Tavira é contagiosa, arrastou com ele mais quatro franceses, que por sua vez compraram casa na região. João Rodrigues, vereador do urbanismo na câmara, explica que a municipalidade pôs aliás em marcha um plano para motivar e facilitar a reabilitação de prédios devolutos, definindo para isso uma zona de intervenção prioritária no centro histórico. Esta zona permite aos senhorios que fazem renovações obter isenções e facilidades. Mesmo que as condições de elegibilidade das casas a estas vantagens pareçam por vezes complexas a alguns senhorios. Prossigamos a nossa exploração. Camisas às flores, óculos de hipster, uma alegre maldade que surge em contínuo para ser rapidamente substituída por uma generosa gargalhada e a bondade que se lê nos seus olhos: Leif e Philip são dois reformados cheios de vida, um inglês e o outro sueco. Este casal de estetas procurou longamente uma ilha de paz e de beleza para se fixar. “Estávamos muito desiludidos por não ter encontrado uma região em Espanha que não tivesse sido estragada e, uma noite numa pizzaria de Cadiz, desistimos de procurar. E como ambos falávamos português, decidimos passar uns momentos agradáveis em Portugal. Depois de ultrapassarmos o primeiro obstáculo — não havia estradas directas para Portugal, estávamos em 1988 —, tivemos de dormir uma noite na fronteira, antes de apanharmos, na manhã seguinte, um pequeno ferry que circulava no rio Guadiana. Às 9h de uma manhã de Outubro de 1988, entrámos no hotel Princesa do Gilão. Ficámos surpreendidos com a beleza natural da região e o seu sossego. As vistas eram de cortar a respiração e percebemos então que tínhamos acabado de encontrar aquilo com que sonhávamos. ”O cônsul da Suécia, Peter Morawetz, atesta da presença não só de reformados, mas também de investidores e de empresas suecas que recebe quando se deslocam a Tavira. Leif e Philip são dois reformados cheios de vida, um inglês e o outro sueco. Este casal de estetas procurou longamente uma ilha de paz e de beleza para se fixarMas o que é que os tavirenses autênticos pensam disto tudo? Como corre a coabitação entre estes povos aparentemente tão diferentes? Não há um sentimento de perda de identidade e de invasão, visto o elevado número de casas do centro histórico ou de terrenos que são postos à venda pelos portugueses e comprados por estrangeiros?Rui Horta é advogado e trabalha para os estrangeiros que compram propriedades e se radicam em Tavira. Aos 50 anos, parece dez anos mais jovem e passa com vivacidade de um dossier para outro, atende o telefone, distribui recomendações às colaboradoras. No passado, dedicou-se à política local durante mais de dez anos (eleito pelo PSD). “A aquisição de um imóvel gera uma necessidade permanente de serviços aos mais diversos níveis, que os tavirenses souberam criar e oferecer, gerando agora emprego e riqueza, fora dos períodos típicos de Verão. Em Tavira surgiram muitas e variadas ofertas na área da restauração, construção e remodelação, jardinagem, gestão de imóveis, negócios de consultoria e imobiliário, que geram oportunidades de negócio e trabalho para os residentes locais. Todo este movimento gera novas formas de pensar e de fazer as coisas. Tavira e os tavirenses estão hoje num rumo com futuro. ”Continua: “Durante anos, Tavira foi apontada como uma cidade onde nada acontecia, onde ninguém investia, onde os privados não acreditavam e que o sector público ignorava. Se foi certo que estas condições remeteram a cidade para algum isolamento e atrasos, também é verdade que isso nos protegeu das aventuras urbanísticas gananciosas, dos investimentos sem regras e da loucura ‘turística’, que agora se revelam, em muitos outros locais, como opções não muito boas. E também é verdade que a evolução das regras e boas práticas urbanísticas, ambientais, de protecção do património, aliadas a uma maior consciência dos decisores políticos e investidores, serviram de barreira e de salvaguarda para Tavira. ”Quando perguntamos ao presidente da câmara se não há um paradoxo no facto de gerir uma cidade onde muitos constituintes com um peso económico importante não votam nas eleições porque são estrangeiros, e como é que se adapta a esta dupla população de tavirenses e estrangeiros, responde sem hesitar: “Não fazendo distinções. Costumo dizer que tavirense é quem cá está, quem gosta da nossa terra e quem faz desta terra a sua própria terra. Nós temos uma grande comunidade estrangeira, cerca de 10% da população. Uns votam, outros não, nunca fiz nenhuma distinção. Os estrangeiros e turistas fazem uma coisa que é a base de toda a comunidade: promovem o comércio, promovem o emprego. Quando há emprego, há estabilidade social. ”Frantz Pigneul, um francês de 43 anos, é um globe-trotter que se instalou há muito em Lisboa. Renova, decora e comercializa imóveis e vivendas de topo de gamaNunca os nossos entrevistados evocam qualquer mal-estar entre os tavirenses, que pelo contrário demonstram muito boa vontade e simpatia para com os novos residentes. A vereadora Ana Martins, encarregada da acção social entre outras coisas, confirma-o mais uma vez, sublinhando ao mesmo tempo que existem apesar de tudo em Tavira bairros e populações em apuros, cuja inserção tem sido objecto de esforços por parte da câmara e que têm dificuldade em apanhar o comboio dos benefícios ligados à imigração. Segundo o último recenseamento que nos fornece e ao contrário do que se poderia pensar, em dez anos houve um aumento de jovens com menos de 24 anos três vezes maior do que a média nacional. A população total de Tavira aumentou 20%, ou seja dez vezes mais do que no conjunto do país. Mas a taxa de desemprego permanece superior à média nacional, nos 15, 12%. Corre um boato, cada vez mais forte, segundo o qual o céu limpo de Tavira arrisca-se a ficar ensombrado nas próximas semanas. As informações passam dificilmente e, não fosse o alerta dado por várias associações de protecção do ambiente, é provável que nada teria ainda vindo a público. Uma quinzena de contratos foram efectivamente assinados, entre Fevereiro de 2007 e Setembro de 2015, entre o Estado português e uma série de empresas de exploração petrolífera e de gás: a Repsol (Espanha), a Portfuel, a Galp, a Partex (Portugal), a Australis (Austrália), a ENI (Itália). Segundo as informações comunicadas por associações de defesa, tais como a ASMAA (Algarve Surf and Marine Activities Association), zonas inteiras do Algarve, incluindo Tavira, mas também do Oeste e do Norte de Portugal, foram concessionadas, tanto para construir plataformas petrolíferas no alto mar como no interior das terras do Algarve, para a exploração de gás de xisto. O que é muito mais inquietante. As directivas europeias impõem que, antes de se fazer qualquer exploração do subsolo, seja tornado público um estudo do impacto sobre a saúde e o ambiente (ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, onde a ausência de regulamentação deste tipo já desencadeou a procura em grande escala de gás de xisto e vários desastres ecológicos). Os contratos devem igualmente ser tornados públicos e, mesmo que sejam difíceis de descodificar, estão acessíveis no site da Entidade Nacional para o Mercado de Combustíveis: http://enmc. pt ou, mais simplesmente, em http://palp. pt. O que aconteceria, uma vez que o Estado é dono do subsolo, se uma empresa decidisse fazer perfurações numa concessão onde há agricultores ou habitações? Expropriação obrigatória com indemnizações — mas que quantias? Mistério. Esta é uma das questões que as associações de defesa tencionam colocar ao Governo. Os comerciantes que souberam o que poderia vir a acontecer ficaram obviamente atónitos. Rui Nabais é o jovem dirigente de uma agência imobiliária situada no centro histórico de Tavira: a Manor Properties. Como muitos outros, ouviu os boatos que correm, mas sente-se desorientado quando se trata de saber se deve informar ou não os seus clientes sobre o que poderia acontecer. Sabe sem saber e a inexistência de explicações claras e oficiais enfurecem-no: “Como cidadão, acho terrível que quem nos governa possa tomar estas decisões sem consultar os habitantes, favorecendo apenas os interesses das megacompanhias petrolíferas preocupadas com o lucro que vão obter com mais uma exploração. ”Como sócio-gerente de uma empresa em que 95% dos clientes são estrangeiros que procuram Portugal, neste caso a região do Algarve, para habitar ou passar férias, “com certeza toda a economia local será afectada. Estamos a falar de uma região que vive do turismo muito pelas suas características geográficas e pela sua beleza natural, beleza essa que é o nosso património, que temos e devemos preservar”, diz. O movimento Tavira em Transição, bem como muitos cidadãos oriundos de toda a região, tem-se empenhado, há várias semanas, na organização de um protestoMas então o que é que se sabe ao certo? Nada melhor, para perceber, alertar e combater eficazmente os mastodontes do petróleo, do que uma antiga profissional do sector, com grande experiência dos costumes das empresas e fina conhecedora do interior do reactor desse mundo impenetrável. Laurinda Seabra fez quase toda a sua carreira na indústria petroquímica, mineira e da energia na África do Sul. O seu currículo é impressionante e a sua tese de MBA sobre o tema “Riscos de contaminação da água, do ar e dos solos pelas empresas petroquímicas na África do Sul” (que inclui um estudo do impacto sobre a saúde pública) ainda se encontra sob a alçada de uma cláusula de confidencialidade assinada com uma empresa petrolífera…Laurinda, hoje instalada no Algarve, criou há quatro anos a associação ASMAA, que tem entre as suas razões sociais a defesa do ambiente marinho e sobretudo a sensibilização e a luta contra a exploração petrolífera na costa do Algarve e do Oeste, para prevenir e impedir a contaminação das águas e das praias, bem como outros estragos ambientais. O site da ASMAA fornece uma série de informações acerca dos contratos, das negociações, dos riscos e dos prazos. A leitura dos contratos revela, por exemplo, que os oito primeiros anos serão dedicados a sondar o subsolo com vista à realização de testes geológicos e sísmicos. A seguir serão feitas perfurações à procura de gás, dando-se depois início a um período de produção de 25 anos. Quando lhe perguntamos se tem uma lista dos produtos químicos utilizados, misturados com a água a alta pressão (obtida no local, apesar de ser um bem tão escasso e precioso), para fazer explodir o subsolo e libertar o gás de xisto, envia-nos 60 referências que fariam as delícias dos estudantes de química orgânica. A quantidade, os nomes e as funções exóticas são estonteantes: metaborato de potássio, cloreto de tetrametilamónio, lauril sulfato, hidróxido de sódio, copolímero de acrilamida, ácido clorídrico, sulfato de hidroximetilfosfónio. Bom apetite. Laurinda Seabra não tem papas na língua: “Na minha opinião, todo o processo foi gerido de maneira irresponsável. O que coloca a questão dos porquês. Por que é que a população visada não foi informada e ouvida? Por que é que o segredo foi mantido até finais de Julho 2015? Por que é os media não falaram de temas como a inexistência de uma agência de informação sobre a energia? Porquê tanta reticência em questionar os contratos?” Só uma pessoa falou alto, em 2012-2013: Mendes Bota (PSD), diz Laurinda. “O BE e o Partido Comunista levaram a questão ao Parlamento, mas receberam respostas insignificantes. Cabe perguntar o porquê destas não respostas. Por que é que ninguém fez perguntas acerca dos 3%, 6%, 8% por barril de gás natural — taxa que o Estado português deverá cobrar por cada barril, mas só quando as companhias tiverem recuperado o que gastaram em investigação, desenvolvimento, custos operacionais de produção (o que, segundo Laurinda Seabra, é demasiado pouco comparado com o que se pratica nos outros países, onde a taxa vai de 10% a 30% ou mais)? Por que é que os contratos não foram contestados ou discutidos pelos partidos da oposição? Por que é que nenhum partido político falou da exploração petrolífera durante as eleições anteriores? Muitas perguntas… Mas nenhuma resposta satisfatória. ”A associação Plataforma Algarve Livre de Petróleo (PALP), pela voz de Rosa Guedes, faz eco destas preocupações. E acrescenta que o Estado português publica decretos destinados a favorecer a exploração de hidrocarbonetos, mas muito pouco deverá ganhar em caso de descoberta de depósitos. Cita ainda os contratos: para além dos escassos 3, 6 e 8% por barril, no caso do contrato “Tavira”, “o contrato acrescenta ainda: ‘A concessionária pagará ainda impostos e rendas de superfície nos primeiros três anos no valor de 20€ até 40€ por km2’. ”Há também uma outra fórmula confusa. No caso de Tavira, as empresas deverão “disponibilizar”, em média, 20 mil euros por ano. Mas trata-se de um empréstimo por parte das empresas? Ou de um pagamento? O contrato não especifica. Seja como for, é claro que as quantias pagas a Portugal parecem bastante baixas em relação aos riscos e estragos possíveis — e sobretudo aos ganhos que se imaginam para as empresas. Quando o tema do petróleo e do gás de xisto surge na conversa, o presidente da câmara sabe que se trata de um terreno… escorregadio. Jorge Botelho baixa um pouco a voz, mas o olhar continua a reflectir determinação. Na altura em que falamos, sabe que o boato começa a espalhar-se na população (em particular, entre alguns profissionais do imobiliário e as associações). E também sabe que há contratos que foram assinados e que, daqui para frente, poderá vir a haver um braço-de-ferro entre a população de Tavira e o Governo. Por último, sabe que o silêncio obstinado do Governo na matéria está a ser muito mal interpretado pelas associações. E sê-lo-á ainda mais pela opinião pública (comerciantes, cabeleireiros, operários, utentes de instalações desportivas, grande público: nenhuma das cerca de 20 pessoas inquiridas sobre o acaso tinha ouvido falar das perfurações previstas). O nosso pedido de entrevista demorou algum tempo a ser ouvido e foi preciso insistirmos várias vezes. Mas a espera valeu a pena, porque Jorge Botelho vai brindar-nos com um discurso sem qualquer ambiguidade. “Em relação à questão que agora surgiu com um contrato assinado para a exploração de gás de xisto aqui no concelho de Tavira, o fracking, posso dizer-lhe que não há nenhum documento entregue na câmara sobre isso, nós não fomos envolvidos. ” Afirma que soube da celebração do contrato pela comunicação social. “Foi conhecido há dois meses? Não fui a nenhuma reunião, não fui envolvido, ninguém me pediu a opinião. Uma coisa é o envolvimento do Governo e outra o envolvimento e o consentimento das autarquias em relação às decisões do Governo. ”O autarca adianta: “O que lhe posso dizer é que eu sou contra. Sempre fui e serei contra. Primeiro sou contra a exploração do gás natural offshore no Algarve, porque o Algarve é muito mais do que exploração de gás natural. E aqui em Tavira, em relação a este último contrato assinado, eu sou absolutamente contra. Não me parece que seja o caminho para o Algarve e o território. Nós não fomos envolvidos, verdadeiramente não sabemos o que quer dizer o processo e as consequências hipotéticas para os territórios, nomeadamente em relação às construções e à forma com a sondagem é feita. Nós somos uma zona reconhecidamente sísmica e tudo que seja mexer neste território não me parece bem. ”Depois, há uma segunda questão: “Todo o Algarve e Tavira são uma terra que é reconhecida pela UNESCO, tem paisagens mediterrânicas, tem territórios que devem ser preservados e acima de tudo são uma terra turística. Sendo uma terra turística, têm de ser conservados os habitats, a sua reserva agrícola, a sua reserva ecológica (temos 80% de área protegida), temos REN, temos RAN e temos a ria Formosa. ”Jorge Botelho diz ter sido contactado pelo departamento do Governo que trata da regulação do petróleo para marcar uma reunião com os autarcas e explicar o que se está a passar, para haver uma primeira conversa sobre o processo. “Ainda não foi marcada, mas será brevemente. Não sei a opinião dos outros autarcas, veremos na altura. Nós juntamos-nos, mas primeiro temos de verificar qual é o estado de maturação dos processos. ”Mas o que é que os autarcas das cidades costeiras do Algarve poderão fazer contra os gigantes do petróleo depois de o Governo português ter assinado os contratos?“Há meios judiciários e há a força da opinião pública. É uma questão do Algarve todo. Eu tanto não quero aqui, como não quero no concelho vizinho. Considero que é uma situação negativa para a economia algarvia. As pessoas acham que o Algarve é um jardim à beira-mar plantado e que deve ser livre de um conjunto de empresas poluentes, por muito que nos digam que as explorações são 100% seguras. A opinião pública terá força, mas isto é um processo que está iniciado e terá seguramente muito caminho para andar. ”Depois, continua, também depende do Governo. “Porque há governos sensíveis aos argumentos e governos não sensíveis. A única coisa que os cidadãos têm de saber é que o presidente da câmara fará tudo para impedir um processo destes, dentro das suas capacidades e dentro do seu poder, que tem algum, mas não tem todo. ”Fred Levy, do movimento Tavira em Transição, bem como muitos cidadãos oriundos de toda a região, tem-se empenhado, há várias semanas, na organização da informação e da resposta. “[A data de] 29 de Novembro é o dia da marcha mundial do clima. Decidimos participar nesta marcha e aproveitar a oportunidade para apontar o dedo a estas decisões tomadas pelo poder actual, em total contradição com as preocupações do momento. Trata-se de beneficiar alguns em detrimento de todos…”O objectivo “é informar as populações locais sobre as consequências reais destas actividades e de fazer saber quem beneficia delas. Fala-se em furar poços petrolíferos ao largo das nossas costas e de fracking para a procura de gás de xisto numa grande parte do concelho de Tavira. Obviamente, esta notícia foi percebida como uma real aberração. O choque desta informação reforçou-se com a aproximação do COP21, em Paris: enquanto o planeta inteiro se debate contra as repercussões de uma política energética que nos levou à beira do abismo, Portugal decide pregar mais um prego na questão. É tão descabido que muita gente nem consegue acreditar!”O artigo 7 dos contratos relativos ao Algarve estipula que os petroleiros deverão tomar as medidas necessárias para “minimizar o impacte ambiental, assegurando a protecção do ecossistema envolvente e salvaguarda do património cultural (…)” e terão obrigação de “repor, quando aplicável, a situação original ou equivalente”. Tentemos acreditar que assim será. Numa espécie de irónica homenagem, alguns dos contratos de exploração que dividem o Algarve têm nomes de crustáceos: Caranguejo, Sapateira, Camarão, Amêijoa, Mexilhão, Ostra, Lavagante, Santola e Gamba. As iniciativas populares e associativas vão portanto multiplicar-se, seguindo o exemplo das duas petições que podem ser assinadas online nos sites da ASMAA e da PALP. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Tavira, pérola do Algarve, ainda enche o ar com o perfume dos pinheiros, do iodo, das estevas, dos limos do rio e do campo. Mas por quanto tempo? É por vezes vital que certos segredos se tornem públicos e sejam conhecidos de todos para se transformarem em informação… e não em desastre. Leia a versão francesa deste artigo: La balade de Tavira
REFERÊNCIAS:
Cultivar a terra para pertencer à terra
No bairro do Talude, em Loures, há mais de 100 hortas. No bairro Terras da Costa, na Costa da Caparica, há uma cozinha comunitária. Nestes dois bairros ilegais moram mais de mil pessoas sem saneamento básico e com acesso condicionada a água e luz. Estes bairros existem mas são quase invisíveis. (...)

Cultivar a terra para pertencer à terra
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: No bairro do Talude, em Loures, há mais de 100 hortas. No bairro Terras da Costa, na Costa da Caparica, há uma cozinha comunitária. Nestes dois bairros ilegais moram mais de mil pessoas sem saneamento básico e com acesso condicionada a água e luz. Estes bairros existem mas são quase invisíveis.
TEXTO: Área Metropolitana de Lisboa, 2015. Dois bairros, um na margem norte, outro na margem sul do Tejo, classificados como ilegais, erguidos em terrenos privados e públicos que não permitem construções, vivem um dia atrás do outro. Os moradores são maioritariamente cabo-verdianos. Não há saneamento básico, as condições de vida são precárias, a vulnerabilidade social e económica colou-se à pele. Como falar de segurança alimentar em territórios com acesso limitado à água? Como conquistar a soberania alimentar em bairros excluídos socialmente num país que não se cansa de repetir como se deve comer? Onde estão as condições institucionais para colocar em prática uma alimentação saudável? A resposta terá de surgir de uma sintonia de várias vozes ao nível local, nacional e global, tal como propõem os objectivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030, promovida pela ONU. Erradicar a fome e atingir a segurança e melhoria alimentares são dois desses objectivos. No bairro do Talude, em Loures, investigadores e um engenheiro agrónomo disponibilizaram conhecimentos científicos e técnicos para melhorar a produção agrícola e a alimentação. Nas Terras da Costa, na Costa da Caparica, arquitectos e investigadores pensaram uma cozinha comunitária como pretexto para os moradores do bairro terem acesso à água. É sexta-feira e não há grande agitação no bairro do Talude. Dona Bemba, 60 anos, 12 filhos e 24 netos, sai de casa. Calças, bata por cima até aos joelhos, lenço na cabeça, ar despachado, já tratou das lides e pelas cinco da tarde regressará às limpezas em Lisboa. O seu fim-de-semana ainda não começou. Chegou há 41 anos da ilha de Santiago, Cabo Verde, com vontade de ter uma outra vida. Morou seis anos na Buraca antes de se mudar para o bairro do Talude. “Aqui é melhor, resolvi ficar para ajudar os meus filhos. ” “De dois em dois anos, punha um menino no chão. Não havia televisão, não havia nada. ” E ri-se numa gargalhada que contagia. Na ilha onde nasceu falavam em campos. Em Portugal, chamam-lhe hortas. “Em Abril, as hortas estão cheias, as sementeiras começam no fim de Fevereiro. ” A sua horta está seca, a chuva há-de chegar para humedecer e amolecer a terra de onde retira parte do seu sustento. Dona Bemba planta milho, couve, feijão bongolon, ervilhas, favas. Ainda tentou mandioca, mas percebeu que não vingaria naquele solo. Tudo o que sai da horta vai para o prato e é partilhado com a família. “Como gostávamos de plantar na nossa terra, também plantamos aqui. Trabalhamos três meses para nos sustentar nove. Tem cabra, mata; tem porco, mata, é a vivência de vida”, diz. Quem chega de Cabo Verde está habituado a chãos áridos, a chuva que rareia. O bairro do Talude, freguesia de Unhos, concelho de Loures, fica numa ravina com vista para o rio Trancão. Tem casas de betão, barracas de madeira, ao longo de 1, 5 quilómetros de uma estrada militar que perdeu o alcatrão e recupera o aspecto de terra batida. Lá em cima, há aviões que não se cansam de rasgar os céus. Cá em baixo, famílias com seis, sete, dez, doze filhos, que dependem das hortas que semeiam, dos animais que criam e do Banco Alimentar. Segurança alimentar é um conceito distante, o importante é ter os alimentos que plantam à mesa e que os transportam para o país de origem. No Talude, há e não há água. Há e não há luz para os cerca de 700 moradores das 150 casas. Apenas os que estão integrados no Plano Especial de Realojamento (PER) podem ter contratos de água e luz. Os restantes, quase metade da população, arranjam-se como podem. Puxada aqui, puxada ali num território paradoxalmente atravessado por dezenas de estruturas gigantes de electricidade que “calcam” os campos de cultivo e acompanham a linha do horizonte. A sexta-feira aproxima-se da noite, os mosquitos começam a picar a pele e não dão tréguas. Domingos Semedo vive no Talude há 15 anos, desde que chegou de Santiago, Cabo Verde. A mulher levanta-se às 4h45 para apanhar a camioneta das 5h e passar o dia nas limpezas na cidade. Chega a casa às dez da noite, ao sábado trabalha até às duas da tarde. Domingos vai fazendo o que pode para contornar necessidades, cata ferro-velho para vender, aproveita biscates na construção civil. “A vida é assim, a vida é complicada”, desabafa. Tem seis filhos. O mais velho tem 20 anos, o mais novo nove. Todos estudam. De vez em quando, há cachupa feita na lenha e compra-se entremeada e entrecosto. “Há um tempo trouxemos coisas da horta e fizemos um cachopada, os filhos comem o que vem da horta. O que sobra armazenámos numa arca e, às vezes, criamos porcos, galinhas. ” Tem várias hortas no Talude e no bairro da Boavista, não muito longe dali, que partilha com o cunhado. Planta batata-doce, feijão, couve, ervilhas, de tudo um pouco. O tempo que passa com a enxada na mão liga-o a Cabo Verde. “Lá a gente fazia vida no campo e cá sinto mesmo orgulho de ter a minha horta. ” Ir para o campo é também tempo de lazer, de descomprimir. O grande problema é a água. Investigadores de Coimbra quiseram perceber o direito à habitação naquele território e as hortas estiveram no centro das atenções. Domingos absorveu várias coisas. Ouviu falar de rega gota a gota, da necessidade de construir um depósito para armazenar água. “Se não temos água, fazemos um tanque, colocamos um tipo de chapa por cima. A água da chuva cai na chapa que cai no depósito e aquela rega gota a gota dá para aproveitar. ”O Talude está próximo de uma várzea ecológica que já abasteceu Lisboa de alimentos — a várzea do rio Trancão. Nas hortas, protegidas por cercas de madeira feitas à martelada para proteger as plantações das cabras e outros animais, há quem tenha frondosas bananeiras e colha marmelos, romãs, limões, dióspiros. Há quase de tudo. Na outra margem, a sul do Tejo, há outro bairro ilegal. Tem mais de 30 anos e a construção das casas foi aumentando a partir das estruturas de apoio à actividade agrícola. Na linha do horizonte, é quase imperceptível, mas do alto da arriba fóssil da Costa da Caparica, mostra-se tal como é: barracas de cimento e de madeira, telhados de chapa, plástico e cartão, bandeiras de Portugal, casas coladinhas, chão de terra, portas e janelas feitas nos lugares que dão mais jeito. O dia-a-dia não é muito diferente do de qualquer bairro. Os que têm trabalho saem de manhã, elas sobretudo para as limpezas, eles para a construção civil, agora menos do que há uns anos. As crianças vão para a escola. Nas Terras da Costa vivem à volta de 500 pessoas, cerca de 100 são crianças, maioritariamente cabo-verdianas, num território classificado de reserva agrícola nacional, na zona de protecção da arriba fóssil da Costa da Caparica. O bairro está rodeado de campos de cultivo alimentados por sistemas de rega automática a paredes meias com uma população que viveu mais de três décadas sem acesso a água potável. Quase tudo mudou há precisamente um ano com a instalação de uma cozinha comunitária que traz um ponto de água canalizada e saneamento ao bairro. A cozinha tornou-se uma espécie de ponto de encontro, onde acontecem reuniões da associação de moradores, almoços partilhados, ateliers de sabão ecológico, workshops de tipografia para os miúdos, peças de teatro. Até Dezembro de 2014, era necessário caminhar um quilómetro e meio para ir buscar água em carrinhos de mão a um chafariz junto ao IC20. Ali também há e não há luz. Depois de tanta atenção mediática por causa da inauguração da cozinha, os moradores querem regressar à invisibilidade. Há uma espécie de pacto de silêncio. Apenas Vitória, que chegou há 36 anos a Portugal vinda de Cabo Verde, lá explica que continua a lançar ervilhas e favas à terra. E com os olhos postos na terra faz um breve comentário: “O gelo queima as colheitas. ”Juliana Luiz é socióloga e conhece as hortas do Talude. É no âmbito da sua tese de doutoramento do programa Democracia no Século XXI e do projecto Biosense Cidadania e Território: A Valorização dos Espaços de Hortas Urbanas do Bairro do Talude (ambos do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra) que chega ao bairro em 2011 para compreender em que medida as hortas urbanas desenvolvidas em territórios não planeados podem significar uma via de construção e expressão do direito à cidade. A maioria da produção destas hortas tem como destino final a mesa das famílias que as cultivam. Chegam ao prato através de guisados com feijões, cachupa, arroz pintado — arroz com favas, ervilhas e cenouras —, sopas, salada de alface e alguns pratos com milho. As hortas são de uso familiar ou individual, cultivadas tanto por mulheres como por homens. O projecto de investigação fez nascer actividades que surgiram principalmente dos pedidos dos agricultores. “As suas identidades passam pelo trabalho de ser agricultor, mesmo com todos os constrangimentos — acesso à terra, à água — e litígios que fazem parte das suas vidas. Vão à horta porque é uma estratégia de sobrevivência. Vão à horta para se alimentarem, mas também para tentar alguma renda — mesmo que mínima, quando vendem ou trocam alimentos. Vão à horta para aliviar o cansaço, o stress, as humilhações e incertezas face ao realojamento”, refere Juliana Luiz. “É na procura de respeito, de subversão às precariedades vivenciadas através dos constrangimentos sociais, económicos, culturais e ambientais no espaço de viver não reconhecido pelo poder público, considerado ‘clandestino’ e ‘informal’, que as hortas emergem como possibilidade de aceder a um espaço de liberdade”, acrescenta. Criaram-se novas relações à volta da água e das hortas. Juliana Luiz não esquece a relação social e cultural que o engenheiro agrónomo Pedro Santos criou com os agricultores — georreferenciou hortas para monitorizar a rotação das culturas e a quantidade de produção de comida e colheu amostras do solo para averiguar se haveria alguma contaminação em metais pesados. Não havia. “A construção de um tanque em adobe, os encontros sobre agroecologia no tratamento de pragas, a organização da produção agrícola e as acções de diversificação da produção alimentar, a combinação de diferentes culturas num mesmo espaço, a integração de produção de pequenos animais, foram as principais acções do projecto”, descreve Juliana Luiz. No Talude, a grande quantidade de garrafões de plástico e bidões espalhados pelas hortas revelam a dura realidade de como a água é crítica para o aumento do rendimento agrícola. Pedro Santos sugere que os passos futuros passem por garantir o abastecimento de água, aumentar a produção agrícola e almejar a criação de um mercado no Talude. O Biosense terminou em Setembro de 2013. “Qualificar o debate e o entendimento sobre as hortas e as pessoas que as cultivam no próprio bairro e para as instituições sociais que ali operam, como a associação de moradores, foram as principais contribuições do projecto”, recorda Juliana Luiz. “Esses reconhecimentos e esse processo fazem parte de uma história de luta, que não se encerra com um projecto como o Biosense. Porque é uma luta pelo direito à moradia, pelo direito de plantar na cidade”, conclui. O bairro do Talude começa a ser construído ainda antes do 25 de Abril, na primeira vaga de imigrantes vinda de Cabo Verde e que se vai fixando na Área Metropolitana de Lisboa. As áreas ocupadas foram objecto de intervenção pelo Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) na segunda metade da década de 1970, e depois pelo Programa Especial de Realojamento (PER) em 1993. O bairro tinha então 504 casas e 2200 moradores. Neste momento, há 185 famílias para realojar e 99 que não estão no PER. A Câmara de Loures acompanha a situação, vê a associação de moradores do bairro como um parceiro, tem equipas multidisciplinares nas escolas para tentar perceber onde estão as situações mais problemáticas. Maria Eugénia Coelho, vereadora da Coesão Social e da Habitação, não esconde que o bairro do Talude é para ir abaixo à medida que se consiga realojar os moradores em habitação social — o que é complicado porque o poder central não está a atribuir bolsas de habitação e o esforço financeiro não pode ser exclusivamente suportado pela autarquia. “Não há discriminação entre quem está no PER e quem não está”, garante. Quem está pode ter contrato de água e luz, quem não está não pode. Casa desabitada, casa demolida. “Há muitas famílias que não querem sair do Talude, foram melhorando as suas casas, suportam-se nas hortas que têm, criaram um grande sentimento de pertença e de vizinhança”, diz a vereadora. A Associação para a Mudança e Representação Transcultural nasceu numa casa e numa horta “remodeladas” pelos homens do Talude. Tem as paredes pintadas no exterior com desenhos, andorinhas e a frase “sonhar é o primeiro passo”. No salão polivalente da associação, acondicionam-se alimentos e roupas que serão distribuídos pelos moradores. Às quartas-feiras, Liliana Rodrigues, assistente social, atende famílias para avaliar caso a caso e agenda visitas domiciliárias. Neste momento, 30 famílias do Talude recebem ajuda do Banco Alimentar, apoio que chegou ao bairro em 2006. O azeite não chega todos os meses. As famílias que têm crianças pedem sobretudo papas. “Inicialmente não tínhamos stock, agora temos para os cabazes de emergência porque há cada vez mais pedidos não planeados”, adianta a assistente social. Carla Santos, antropóloga, faz parte dos órgãos sociais da associação que tem as portas abertas para todos, sobretudo para os mais novos que beneficiam de apoio ao estudo, de actividades desportivas. “As hortas sempre foram um problema pela questão da água. As pessoas do bairro estão ligadas à terra. Não se pode falar num realojamento sustentado se não integrar hortas”, sublinha. Pedro Graça, da Direcção-Geral de Saúde (DGS) e director do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável, refere que o conceito de segurança alimentar defende “o acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, económica e socialmente sustentáveis”. Este responsável recorda ainda que o direito à alimentação adequada é previsto em vários tratados de Direitos Humanos: “Para combater a insegurança alimentar, existe consenso sobre uma abordagem tripla. Capacitando as populações para uma escolha adequada, nos casos em que existe possibilidade de escolha; criando condições para que a ajuda alimentar ofereça produtos frescos e de qualidade e afastando-se das lógicas do arroz, massa e enlatados, ainda prevalecente em Portugal; e, por fim, dando condições para a produção própria e promovendo a soberania alimentar através da produção agrícola de subsistência. ”Estas estratégias implicam várias abordagens, ir ao terreno, envolver vários parceiros. Implicam conseguir chegar a populações com baixo nível de literacia, capacitando os agentes da saúde e outros para uma linguagem simples e efectiva. Implica, sublinha, “criar condições para uma lógica de distribuição alimentar que privilegie a presença de produtos frescos, o ensino da culinária saudável e de baixo custo e a presença de nutricionistas nestes locais de distribuição”. E implica a possibilidade de as autarquias e de outros agentes do poder local criarem condições “para a existência de espaços de produção própria a custos muito reduzidos ou até gratuitamente, nomeadamente no que concerne ao acesso à água”. A antropóloga Ana Catarino está a trabalhar na tese de mestrado que se centra na construção e história de um lugar a partir de um objecto arquitectónico que, no caso das Terras da Costa, é a cozinha comunitária. Quer perceber aquele sítio e a sua materialidade. Durval Carvalho, da associação de moradores, tem sido um interlocutor para reconstruir a história do bairro, perceber dinâmicas, conflitos e expectativas da comunidade. A cozinha comunitária chegou às Terras da Costa assumidamente para levar água ao bairro. A ideia ganhou forma pelas mãos do gabinete de arquitectura Ateliermob de Lisboa. Desde o início que havia a intenção de construir uma cozinha como uma estrutura visualmente permeável e aberta para o bairro e que, ao mesmo tempo, delimitasse uma área de espaço público e de uso comunitário. O processo foi participado. A comissão de moradores foi apresentando propostas e o projecto foi sendo alterado durante a construção de forma a reflectir vontades e preocupações. O nome “cozinha” vem, aliás, de dona Vitória, que gosta de reunir a população à volta da fogueira e que viu ali uma oportunidade de dar ênfase a uma dinâmica social e de partilha de alimentos. Em 2013 e 2014, puseram-se mãos à obra. O Projecto Warehouse, colectivo experimental de arquitectura de Lisboa, juntou-se à construção da cozinha. “Desde o dia que se abriu a torneira e a água começou a correr que a vida do bairro mudou”, garante Rúben Teodoro, do Warehouse. Há um antes e um depois. “Antes da cozinha comunitária existia uma microeconomia no bairro, onde alguns elementos iam buscar água em carrinhos de mão à Costa da Caparica e vendiam aos moradores com maior dificuldade em fazer o trajecto. ” Isso acabou e surgiu um sistema para se abastecerem. “Muitos têm, na cobertura das suas casas, depósitos de mil litros e utilizam a gravidade para conseguir ter algo semelhante a água corrente nas suas habitações. ”Contactada sobre o assunto, a Câmara de Almada remeteu-se ao silêncio. Francisco Sarmento, consultor da FAO (a organização das Nações Unidas para a agricultura e a alimentação) e autor da estratégia para a Segurança Alimentar e Nutricional da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), refere que a questão alimentar é absolutamente fundamental em termos de estratégia de desenvolvimento de um país. Nos bairros do Talude e das Terras da Costa não adianta apenas agir sobre a água. “A coordenação intersectorial com participação social da segurança alimentar e nutricional é perfeitamente aceite hoje em dia e está no mainstream”, comenta. “Isto é um arranjo institucional que os países da CPLP se comprometeram a implementar na estratégia que assinaram em 2012. ” “Em termos institucionais, isto significa que nos países onde há ao nível macro um conselho de segurança alimentar e nutricional, este conselho tem os seus correspondentes ao nível local nas estruturas junto do poder autárquico que se organizam de forma multissectorial, tendo como pano de fundo a questão da alimentação. Esta estrutura de governação é multinível e vai desde o local ao nacional e ao global. ”Os projectos de investigação-acção nos bairros do Talude e das Terras da Costa reforçam a importância da intervenção de organizações não-governamentais (ONG), universidades, poder local, através da acção de construção de capacidades ou de assistência local. “Mas é uma gota no oceano”, avisa. Em seu entender, a alimentação no centro dos processos de desenvolvimento “consegue-se abordar mais eficientemente se se tornar uma prioridade em termos de política pública, e sendo uma prioridade de política pública inter-sectorial deve ter mecanismos institucionais que permitam materializar essa prioridade”. Os constrangimentos vividos nos bairros do Talude e das Terras da Costa revelam a inadequação ou ausência de arranjos institucionais nacionais e locais para lidar com o problema. Apesar de o nosso país ter ratificado os acordos internacionais que consagram o direito humano à alimentação adequada, o consultor da FAO refere que “em Portugal, pese embora todos os avanços, tal como em muitos outros países, ainda não existem mecanismos ágeis para a exigibilidade do direito humano à alimentação adequada”. A partir do México, Raúl García Barrios, doutorado em Economia Agrícola e Recursos Naturais e professor e investigador da Universidade Autónoma do México, questiona o que devem fazer as populações quando os seus direitos económicos, sociais e culturais não são cumpridos. “Como é possível explicar a dissonância entre a existência formal de direitos humanos universais que se considera estarem acima de qualquer discussão, uma das conquistas mais formidáveis da sociedade ocidental, e a realização prática desses mesmos direitos? O que podem fazer as populações quando o direito não se realiza?”, questiona. A sua resposta é radical. “Esta dissonância não resulta de nenhuma condição natural, mas, pelo contrário, é produto do sistema ético-económico vigente”, afirma. “As populações dispostas a usar os seus poderes comunitários para exigirem os seus direitos fundamentais precisam de ser capazes de mostrar a incoerência ética sustentada por um contexto legal e económico que não lhes reconhece, efectivamente, esses direitos. ”O Observatório para a Alimentação e Nutrição revela no relatório “A Crise Alimentar Mundial e o Direito à Alimentação” de 2015, aquilo que muitos movimentos sociais e a sociedade civil já conhecem: o impacto negativo para o direito à alimentação das medidas de austeridade. Falam do caso espanhol, mas Portugal vive a mesma realidade. No contexto da crise alimentar mundial e o direito à alimentação, o actual modelo económico não garante as condições para que os governos nacionais cumpram as suas obrigações relativamente aos direitos humanos, incluindo o direito à alimentação adequada e à nutrição, acrescenta-se nesse relatório. “Precisamos de um novo projeto ético-político para o nosso mundo”, conclui Raúl García Barrios. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Esta reportagem foi realizada no âmbito da bolsa de criação jornalística Aquele Outro Mundo Que É o Mundo, atribuída pela Associação Coolpolitics, a ACEP, o CEIS20/UCoimbra e o CEsA-ISEG/ULisboa, com apoio do Instituto Camões e da Fundação Gulbenkian
REFERÊNCIAS:
Entrevista: O que a natureza ensinou a um rapaz de Lisboa
Alfredo Cunhal Sendim falou sobre o futuro da agricultura e da alimentação, a relação do homem com a natureza, o milagre que é o montado. E contou a história da Herdade do Freixo do Meio, que é a história da sua vida. A vida de um homem que vive aquilo em que acredita. Profundamente. (...)

Entrevista: O que a natureza ensinou a um rapaz de Lisboa
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Alfredo Cunhal Sendim falou sobre o futuro da agricultura e da alimentação, a relação do homem com a natureza, o milagre que é o montado. E contou a história da Herdade do Freixo do Meio, que é a história da sua vida. A vida de um homem que vive aquilo em que acredita. Profundamente.
TEXTO: Sonhava com o mar e era “um menino da Avenida de Roma”. Mas acabou por se dedicar à terra e mudou-se para o campo. Alfredo Cunhal Sendim, 49 anos, herdou a Herdade do Freixo do Meio, no Alentejo, e, passadas as ingenuidades iniciais, percebeu que o caminho era a recuperação do montado, um agro-ecossistema que “é uma coisa extraordinária”. Enfrentou mil e uma dificuldades. Aprendeu muitas lições. Hoje tem uma loja no Mercado da Ribeira onde vende o que produz no Freixo do Meio — “toda a dieta mediterrânica menos o peixe”. E é uma figura de referência para quem se dedica à agricultura biológica. Recorda-se da primeira vez que olhou para a Herdade do Freixo do Meio? Foi logo claro para si qual era o caminho, a recuperação do montado, a opção pelo biológico?De maneira nenhuma. Tinha uma relação com o Freixo desde miúdo, antes do 25 de Abril. Tinha oito anos quando se deu a revolução, mas até lá os meus pais passavam o mês de Setembro no Freixo. Depois, com oito anos, fui completamente afastado desta realidade porque os meus pais emigraram para Pamplona, Espanha. Por isso, tinha uma imagem muito construída no meu imaginário, mas muito bonita, do Freixo, e um bocadinho a ideia do que era a realidade do meu avô, que era latifundiário. Entre 1975, quando se dão as expropriações para o Estado português, e 1990, que foi o momento em que [nos] foi entregue uma parte do Freixo, voltei lá apenas duas vezes, quando estava já a estudar em Évora Engenharia Zootécnica, sem nunca imaginar que o Freixo voltaria a ser nosso. Os processos da reforma agrária numa primeira fase atribuíam apenas um número limitado de hectares a cada antigo proprietário para que estes não pudessem refazer os latifúndios. Mas depois as cooperativas começaram a enfrentar problemas, muitas acabavam por se fundir, algumas terras ficavam abandonadas, e nessas alturas os antigos proprietários tinham prioridade para as pedirem de volta. Lembro-me de ir duas vezes com alguns colegas, meio escondido, visitar o Freixo. Estava lá uma cooperativa muito boa, ao contrário da maioria. Nunca me passou pela cabeça voltar. Mas dá-se uma reviravolta e aparece a oportunidade. É a própria cooperativa que nos vem pedir para colaborarmos. Foi uma coisa inesperada. Voltamos em 1990, e a minha primeira reacção foi de deslumbramento. Não tinha noção nenhuma de questões relacionadas com a natureza. Por isso, no início não tive a sensação, que tive alguns anos mais tarde, de estar a trabalhar quase num deserto. Num deserto pode-se produzir, mas tem de se trazer todos os factores de produção de fora. Se eu levar água, plantas e energia para um deserto, faço facilmente um oásis. Mas com o que lá está muito pouco se faz. Era o que acontecia ali. Tudo o que era necessário à produção tinha de vir de fora. Fui viver para o Freixo, acabadinho [de sair] da universidade, com todo o pacote tecnológico-mecânico-químico muito fresquinho na cabeça. Era a única coisa que me tinham explicado. Nesse início recebemos apenas três culturas: a cortiça, que sempre teve rentabilidade; mil ovelhas, que decidi aumentar para cinco mil; e o trigo, nessa fase já em completo declínio. E estava com a minha mãe, para quem o fundamental era criarmos postos de trabalho. Estávamos em 1990, com muito desemprego em Portugal. A maior parte dos meus amigos perdeu-se na droga, uns morreram. . . A ajuda que comecei a dar à minha mãe [na herdade], provavelmente, salvou-meQuando escolheu estudar Engenharia Zootécnica, foi já pensando que iria trabalhar no campo?Não, não. Quando voltei de Espanha, fui para Lisboa. Tinha um colega que foi das primeiras pessoas a fazer surf em Portugal. Comecei a fazer desportos no mar. No Verão ia para o Algarve e tinha um amigo cujo pai era pescador, começámos a pescar, a comprar redes. O meu sonho era o mar. Queria estudar Oceanografia, que só havia no Abel Salazar, no Porto. Eu era um menino da Avenida de Roma. Era tudo menos ruralidade, tudo nos puxava para os Estados Unidos, era o tempo dos yuppies, do [escritor norte-americano] Bret Easton Ellis, de Menos Que Zero [a primeira obra de Easton Ellis, um romance sobre jovens ricos de Los Angeles e o consumo de drogas nos anos 1980]. Nunca me passou pela cabeça ir para o campo. Isso era, para mim, um desterro. Mas pronto [na colocação na universidade] calhou-me Évora. No primeiro ano, queria era ir para Lisboa o mais depressa possível. Mas depois comecei a gostar imenso do aspecto social de Évora. Era uma universidade muito nova, nós éramos miúdos de todos os sítios do país e formámos um grupo muito interessante. Évora tinha sido muito abalada com o 25 de Abril, de uma situação completamente feudal e hierarquizada passou a uma liberdade total. Nós conseguimos beber do bom que Évora tinha, mas formámos uma cultura diferente. Mais tarde, a maior parte dos meus amigos perdeu-se na droga, uns morreram. . . A ajuda que comecei a dar à minha mãe [na herdade], provavelmente, salvou-me de eu não ter ido pelo mesmo caminho. Encontrei ali uma âncora. O seu avô ainda era vivo quando se iniciou o processo de devolução das terras?O meu avô recebeu o primeiro pedaço de terra em 81, eu entrei na universidade em 84. Ele tinha vivido a perda das terras com muito dramatismo?O meu avô era um homem extraordinário e nunca julgou ninguém. Teve uma aceitação enorme perante todas as barbaridades que lhe aconteceram. Sempre conseguiu ter um posicionamento de distância, sem julgar e sem odiar. Acompanhei-o muito quando ele esteve quase exilado em Lisboa, e nunca me transmitiu essa revolta, pelo contrário, sempre a atenuou. Foi muito martirizado porque era um “latifundiário bonzinho”, que não interessava ao Partido Comunista que existisse sequer. Ainda por cima, tinha o nome do dr. Álvaro Cunhal. Álvaro Cunhal era primo distante. . . Sim, há uma única família Cunhal, que vem de Seia. O meu avô era parente do dr. Álvaro Cunhal em décimo grau. Eles conheciam-se, sabiam perfeitamente quem eram, eram ambos formados em Direito, mas tinham tido percursos completamente diferentes. Mas não interessava naquele momento, na revolução, que existisse esse vínculo. A sua passagem por Évora ajudou a afastá-lo da cidade e do mar?Sim, foi gradual. Fui aprendendo a gostar do campo. Liguei-me claramente à esquerda nessa altura. Tinha muita vergonha da atitude latifundiária e até da maior parte dos membros da minha família, da minha idade. Mais tarde tive de vestir a pele do lobo, de ser eu o latifundiário. Pensei: como é que vou fazer isto? Tinha vergonha, muitas vezes, de dizer aos meus amigos que era o menino da Amoreira da Torre, ou da Eira [propriedades da família]. Em Évora, a minha família era muito conhecida, com um palácio enorme no meio da cidade. E os meus amigos eram muito mais ligados a outra lógica. Havia ainda um olhar muito politizado sobre essas questões, os latifúndios, a terra, a propriedade. Havia. Nessa altura [início dos anos 90] lutava-se ainda pela terra a quem a trabalha. E não sentia que essa realidade para os seus amigos de Lisboa era uma coisa que não fazia já grande sentido? Que era uma coisa muito localizada ali no Alentejo?Os meus amigos tinham passado a ser os amigos da universidade e estavam completamente inseridos nessa lógica. Os de Lisboa estavam a leste. Os meus amigos eram pró-cooperativas, não eram pró-reversões, nem eram pró-estabelecimento de propriedade privada. Havia esse peso, e isso custou-me. A concentração da produção no trigo, ovelhas e cortiça vinha do tempo do seu avô?A seguir à II Guerra Mundial há uma mudança radical na agricultura de todo o mundo, que chega a Portugal mais pelos anos 50. Houve uma simplificação dos processos com a revolução industrial e ao mesmo tempo uma intensificação da produção, que tem que ver com a fome que nós criámos, a destruição do aparelho produtivo e com a necessidade de produzir mais. E estas duas tendências começaram a ser aplicadas pelo meu avô. Desmonta-se o sistema agrícola que tivemos durante pelo menos 800 anos, a que chamamos “montado”. É um sistema definido por uma complexidade enorme de culturas e de actividades em que existiam não apenas vacas, mas cabras, porcos, galinhas, frangos, perus. E todo o tipo de cereais, em pequena escala, leguminosas, hortícolas. Havia sempre uma horta em cada monte, havia cultura da oliveira, a vinha, o forno de lenha. O montado é uma história maravilhosa do nosso país. Temos na Península Ibérica um clima muito especial, o mediterrânico, que só ocupa 2% do planeta e tem características muito importantes para a agricultura, com quatro estações muito marcadas. Normalmente, na natureza, 1 cm de solo leva pelo menos 100 anos a formar-se, na Península Ibérica leva pelo menos 1000 anos. Nestes solos muito lentos e com um clima muito adverso, há um ecossistema que se estabelece aqui, milhares de anos antes de nós, e a natureza faz sempre a mesma coisa nestas circunstâncias: criar complexidade. O que o Homo sapiens encontrou na Península Ibérica foi um bosque cerrado, com uma complexidade de espécies que nós não fazemos ideia. Um esquilo podia ir de copa em copa de árvore desde Sagres até Barcelona. E o homem começa a criar uma coisa extraordinária, um agro-ecossistema, que é o montado. Portanto o montado é uma criação do homem?Que demonstra que o homem é capaz de fazer melhor do que a própria natureza. É um sistema agrícola, com pelo menos três níveis: árvores, arbustos e pastagens. É um mosaico muito complexo de culturas e actividades (pecuárias, agrícolas, florestais), muitas domesticadas, mas interactuando com actividades silvestres como a caça, as plantas silvestres. Há no montado processos de simbiose, de entreajuda, um porco que ajuda uma árvore e ajuda todo um sistema — com o nariz faz buraquinhos no solo e quando chove a água em vez de escorrer fica ali em microlaguinhos, cuja água se vai infiltrando para o lençol freático e a árvore vai ter a possibilidade de ir lá abaixo ao freático nos meses de Verão, bombear água cá para cima, criar uma zona húmida por baixo da copa da árvore, que faz com que os microrganismos não morram e com que o processo seja todo diferente. Depois há a ecofuncionalidade: cada ser deste planeta tem muitas funções. E, ao contrário do que as pessoas pensam, há [no montado] muito mais biodiversidade do que numa floresta amazónica. É nos sítios difíceis do mundo que a natureza cria os maiores índices de biodiversidade, por causa da cooperação. O que o Homo sapiens encontrou na Península Ibérica foi um bosque cerrado, com uma complexidade de espécies que nós não fazemos ideia. Um esquilo podia ir de copa em copa de árvore desde Sagres até BarcelonaQuanto mais seres, mais conexões. Se eu só tenho vacas, elas só são capazes de comer uma parte da pastagem alta; se eu tiver ovelhas, elas comem mais um bocadinho abaixo; se eu tiver um peru, ele come a folhinha minúscula e o insecto que está ao lado; se eu tiver um porco, ele ainda come por baixo. Quanto mais dimensões, quanto mais ferramentas, melhor posso aproveitar os recursos. Esse modelo permitiu-nos durante 800 anos construir um metro de solo fértil no Alentejo. Se fosse só a natureza, teria feito 1cm, nós fizemos 100 vezes mais. Eram coisas que não lhe tinham ensinado na faculdade. Não, descobri isto por casualidade porque a Ana Fonseca, que tinha acabado de se licenciar em Ciências do Ambiente, começou a trabalhar comigo no Freixo e pediu-me para fazer uma tese de mestrado sobre o montado. O montado começou a ser destruído para se começar a usar o solo para produzir cereais, com uma crescente mecanização. Salazar manda fazer as campanhas do trigo, cortar as árvores e transformar em cereal aquele solo vivo, completamente autónomo, que não necessitava de adubos. É nesse período que o Alentejo se transforma no “celeiro de Portugal”. O Alentejo é a paisagem portuguesa que mais mudou nos últimos anos. O resto dos recursos, o pouco solo que ainda havia, é gasto com uma mistura dos químicos quando Portugal entra para a Comunidade Económica Europeia (CEE). Portanto, nós hoje não temos montado. Dizemos que temos um milhão e cem mil hectares de montado. . . Não é verdade. Temos restos de uma estrutura abandonada. Voltando ao Freixo, como é que as coisas corriam a nível económico?Estávamos dependentes da cortiça, que ainda ia pagando os prejuízos do trigo e das ovelhas. Antes do 25 de Abril, nunca tinha entrado um camião no Freixo. E, naquela altura, para a gente produzir tinham de entrar camiões de adubo, de farinha, de proteína para os animais. Lembro-me de um senhor de idade me ter dito: “Há cem anos nesta herdade fazia-se comida para mais de 200 pessoas e só entravam aqui duas coisas: sal, para conservar os alimentos, e ferro. ”Eu comprava toneladas de comida para alimentar as ovelhas. Tinha [comprado mais animais] na lógica de aumentar a produtividade, mas não conseguíamos, tínhamos um risco brutal. E houve a entrada na CEE, a Política Agrícola Comum. Sim. Entramos na CEE em 1986, eu comecei a trabalhar no Freixo em 90, os ovinos não funcionaram, o trigo vinha por aí abaixo, a cortiça mantinha-se oscilante, mas não era nada de especial, pagava os buracos do resto. A nossa única visão estratégica foi voltar ao montado e foi consciente. Isso faz-se contrariando os erros anteriores que levaram à perda da diversidade de culturas, reconstruindo o solo através de uma série de técnicas, permitindo a regeneração de árvores e arbustos e reintroduzindo uma série de culturas, da azeitona à uva, passando pelas leguminosas e, nas áreas mais férteis, os hortícolas, além dos diferentes tipos de animais que vão fertilizar este ecossistema. Hoje tem uma loja de produtos biológicos do montado. Há dez anos uma loja como esta poderia sobreviver?Não. Eu tentei fazê-la. E ainda hoje entra aqui 0, 01% das pessoas que entram no Pingo Doce ali ao lado, é uma batalha. Quando decidimos voltar para o montado, percebemos que em vez de ter borregos duas vezes por ano em grandes quantidades, cortiça de nove em nove anos e duas toneladas de trigo uma vez por ano, passamos a ter produtos todas as semanas, em muita diversidade, mas em quantidades muito pequeninas. Meia dúzia de ovos, cinquenta litros de leite. . . Como vamos fazer? Descubro então que é possível diferenciar em agricultura. Convenço os meus irmãos a fazer uma marca de produtos do montado. Mas a diferenciação tem um problema que não medimos e que nos ia matando: a necessidade de transformar matérias-primas em alimentos finais. Porque se eu tenho uma diferença construída na primeira parte da produção mas se não consigo que essa diferença seja transportada até ao momento do consumo, ela não tem valor. E se quem compra os borregos não tem essa estratégia de diferenciação e mistura tudo, biológico e não biológico, não faz sentido. Como não havia prestadores de serviços nessas áreas da transformação de carnes, tivemos de aprender. Primeiro foi o porco. Juntei duas mulheres da aldeia e disse-lhes “Façam como fazem em casa, vamos fazer linguiças. . . ”Depois comecei a perceber como é que era a legalização, criei uma unidade de transformação de carne. Mas ainda não havia valorização destes produtos em Portugal. Comecei a vender para a Holanda e andei dois anos a ir lá de 15 em 15 dias com um camiãozito carregado de carne. Ficava dois, três dias a aprender a transformar, a cortar num talho. Era uma loucura, essa viagem com tanta frequência. Sim, mas era a única forma de escoar. Eu tinha a cabeça no cepo, tinha vendido [à família] esta estratégia toda, tinha de conseguir ser consequente com ela. E compensa? São muitos custos que têm de ser traduzidos no preço. Certo. Não sabíamos. Hoje fazemos a dieta mediterrânica toda excepto o peixe. Terceira surpresa: temos imensos produtos, mas ninguém vem cá comprá-los! Então incorporámos uma terceira função, que foi a distribuição. Depois da Holanda, comecei a distribuir para todo o país. Não havia lojas biológicas, havia a Biocoop, que foi o meu primeiro cliente, mas depois ia por mercearias e mais tarde entrámos na distribuição alimentar por grosso. Comecei a trabalhar com o Pingo Doce quando tinham umas 12 lojas. E trabalhei com eles até terem 150 lojas, portanto veja a evolução que isto teve. Mas acabou por criar a sua própria loja. A distribuição por grosso não era suficiente. Andámos sempre a sobreviver, abaixo do limiar do positivo económico. Abrimos uma loja no Freixo. Não funcionou. Fomos para Montemor. Abri um talho e uma loja de produtos biológicos no mercado. Não tínhamos clientes suficientes, fechámos. Abrimos em Évora, dois anos, não tínhamos clientes suficientes, fechámos. E finalmente, viemos para Lisboa. Foi a nossa salvação. Ao contrário do que as pessoas pensam, há no montado muito mais biodiversidade do que numa floresta amazónica. Entretanto, criámos os serviços turístico-didácticos, começámos a abrir o Freixo, a fazer eventos. Percebi que não havia clientes, que não havia consciência, porque não havia informação. Se nós não informamos o cidadão, as pessoas não compram. Em 2008 há uma crise enorme, os factores de produção aumentam muito e a minha família diz-me que andamos há anos a investir nisto, nunca tivemos rentabilidade, não conseguimos pagar as contas, e que tenho de adoptar uma estratégia agrícola mais convencional. Eu disse que não era capaz. Com aquilo em que acredito, ou não faço nada ou faço desta forma. E continuo o meu caminho [separado da família]. No Freixo, fomos criando a evidência de que este projecto é para todos. A única coisa que quero é o meu posto de trabalho. A terra, tenho muitas dúvidas de que a passe directamente para os meus filhos. Neste país, a maior parte das pessoas não sente responsabilidade quando herda. Na Dinamarca, o filho de um agricultor tem prioridade mas tem de demonstrar que tem capacidade. E, porque precisamos de homens no ecossistema, criei um projecto de microempresas que neste momento tem oito microprojectos estabelecidos no Freixo, com famílias a viver e a produzir. Estou cada vez mais convencido de que um dos papéis mais dignos do homem é a capacidade de entendermos o funcionamento do que está à nossa volta. Temos essa capacidade por termos a ligação com o material e o espiritual. Quando percebemos o funcionamento da natureza, somos capazes de verdadeiramente criar édenes. Sente-se a pregar no deserto? Quantas pessoas estariam dispostas a passar pelo que passou, a fazer esse percurso?Não sou um caso isolado. O que fizemos no Freixo pode aplicar-se a outras realidades. Hoje há imenso interesse em dizer que este tipo de agricultura nunca vai alimentar os nove mil milhões que vamos ser dentro de pouco tempo. É preciso ir investigar, temos imensas coisas para descobrir na ecologia, temos meio bilião de espécies de fungos das quais nem o nome sabemos, quanto mais as suas funções. Demos saltos tecnológicos brutais e não sabemos o bê-á-bá do funcionamento da nossa terra. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não ando a pregar, falo quando me pedem. Acho que tenho obrigação de falar gratuitamente, numa lógica de partilha. Porque fui inspirado por outros e estou absolutamente convencido de que as coisas funcionam bem numa lógica de cooperação competitiva, como existe na natureza. Só acredito em responsabilidade colectiva com base em responsabilidades individuais. Tenho a noção de que a única coisa que levo é a satisfação com o trabalho que faço. Mas ganho muito mais a fazer a minha realidade cooperando com os outros.
REFERÊNCIAS:
No mapa emocional de Miraflor cabem dores e delicadezas de toda uma cidade
Numa plataforma online, a rua e travessa de Miraflor mostram-se pelos depoimentos dos seus habitantes. Artéria pontilhada de ilhas e antigos armazéns do tempo da forte indústria de Campanhã, Miraflor cambiou com um espaço cultural. No seu mapa emocional cabe a história de uma cidade (...)

No mapa emocional de Miraflor cabem dores e delicadezas de toda uma cidade
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Numa plataforma online, a rua e travessa de Miraflor mostram-se pelos depoimentos dos seus habitantes. Artéria pontilhada de ilhas e antigos armazéns do tempo da forte indústria de Campanhã, Miraflor cambiou com um espaço cultural. No seu mapa emocional cabe a história de uma cidade
TEXTO: O quotidiano da rua corria sem perguntas, num “silêncio” onde não cabiam palavras escritas nem memórias partilhadas. Manuela Matos Monteiro e João Lafuente eram novos ali. Tinham comprado uns antigos armazéns e apuravam planos de um projecto cultural com a fotografia como epicentro e a intervenção social como alma. Para erguer esse futuro na Rua de Miraflor, parecia-lhes imperativo conhecer o seu pretérito. Mas, nessa busca, imperava uma folha em branco. Pouco a pouco, numa lenta conquista de confiança, o casal ia estreitando laços com a Associação Recreativa Malmequeres da Noêda, na travessa a poucos metros dos seus armazéns, de nome Miraflor também. E assim souberam um dia de uma inundação que tinha roubado quase todo o espólio à colectividade nascida em 1952. “Decidimos que havíamos de os ajudar a reconstruir essa história”, recorda Manuela Matos Monteiro. Era a ponta de um novelo a ser desatado. Enquanto recolhiam depoimentos, não era apenas a história dos Malmequeres que ganhava forma. Era toda uma rua, desconhecida para eles, em momento de revelação. Da promessa de recuperação da “herança” da colectividade, nasceu a vontade de alargar a vista. E do encontro com Nacho Muñoz, um activista e entusiasta da música, a inspiração para o projecto final. Em Santiago de Compostela, contou-lhes Muñoz, tinha construído um mapa emocional da cidade. Na Rua de Miraflor, pensaram Manuela e João, poderia nascer algo semelhante. Neste sábado, às 16h, apresentam uma plataforma online onde se conta a história da rua - ou, se ouvirmos bem, se reconhece a narrativa de toda uma cidade. Os telhados dos armazéns onde as galerias Mira se instalaram não eram estranhos a João Lafuente. Da janela da casa onde passou boa parte da infância, mirava muitas vezes aquelas telhas. Lá dentro, onde antes se guardara vinho, cereais e redes de pesca, uns tios de Manuela Matos Monteiro, revisores nos comboios na estação vizinha, acartavam material. E ela, ainda menina, passava por perto nas viagens entre a escola e a fábrica do pai, a Pincelaria Pardal, na Rua do Freixo. Era artéria movimentada, com infindos armazéns, camiões em rebuliço constante, incontáveis ilhas. A vida levou-os para longe de Campanhã. E o estigma da freguesia oriental, pobreza entranhada e fado infeliz para negócio, foi atrito inicial na decisão do casal. Mas isso foi no princípio. Antes de as artes se instalarem em Miraflor e, com pezinhos de lã, lhe cambiarem os dias. Depois do Mira, vários armazéns abandonados da rua foram comprados e reabilitados para habitação. A rua ganhou novos rostos. As relações com a vizinhança cozinharam-se em lume brando. E analisadas de 2018, cinco anos depois da abertura do espaço cultural, tornaram-se “intensas”. “Há uma proximidade afectiva muito grande”, conta Manuela Matos Monteiro. E, de certa forma, o mapa emocional de Miraflor, feito em parceria com o programa Cultura em Expansão da Câmara do Porto, “advém dessa proximidade” e “reforça-a” ao mesmo tempo. De câmara de vídeo na mão, Manuela e Patrícia Barbosa recolhiam depoimentos para a plataforma desenhada por Ágata Dzianach e Lukasz Dzianach e emocionavam-se com testemunhos “muito tocantes”. De tal maneira que Manuela, ex-professora de Filosofia, ia tecendo uma teoria: “A rua e as pessoas da rua têm qualquer coisa de particular e especial capaz de fazer com que gente muito diferente tenha sentimentos semelhantes só porque, de repente, partilha o mesmo passeio. ” E essa “mistura”, analisa, é uma lição para todo o Porto aprender. Para todas as cidades com ambições de conseguir carimbo de diversidade: “Desde que ninguém seja expulso, gente de estatutos sociais, origens e formações diferentes podem conviver e manter relações de vizinhança afectivas. A pior coisa que se pode fazer a uma cidade é criar guetos. ”E não se pense que ali se impôs a “militância das boas relações”. Os laços são resultado de um certo tempo, vínculos atados pela convivência diária. O varrer o chão, o cuidar da casa alheia se a desgraça de um incêndio acontece, uma conversa à janela, um São João com palco improvisado na estreita rua de paralelo, os nomes dos vizinhos decorados. Condimentos aproveitados pelo galego Nacho Muñoz, que construiu com os moradores da rua e zona envolvente uma efémera orquestra experimental. Também neste sábado, às 17h, eles vão subir ao palco da Associação Recreativa Malmequeres da Noêda. Cristina Marinho não troca Miraflor por nada deste mundo. Jura a pés juntos que nem um Euro Milhões a levaria da sua mercearia herdada do pai. Talvez a renovasse, mas deixar o ofício que sempre quis é pensamento fora do radar. A artéria, recorda, era movimento constante, tinha o negócio em ebulição por todo o lado. E se a mãe lhe dizia ser dia de ir para aqueles lados, era a “maior alegria” para todos os irmãos. “Era chique vir ao Freixo”, conta num dos depoimentos do Mapa Emocional de Miraflor, dividido em três períodos: antes, agora e porvir. Desse tempo passado, as memórias são muitas. Os “fadinhos antigos” recordados por José Joaquim das Neves, as “pataniscas” do “tasco da dona Alzira” que deliciavam José Cruz, “um balde e uma corda” para retirar água dos “poços” da rua revividos por Ilda Figueiredo, os carros de bois do tempo de menino do ex-alfaiate Américo Almeida Blanquet, o primogénito da rua, com os animais atrelados no terreno onde agora se ergueu um edifício de luxo de uma empresa de telecomunicações. Quando há coisa de vinte anos Lurdes Correia comunicou estar a mudar-se para uma ilha a notícia veio como um “escândalo”. As memórias da infância da filha de emigrantes, com visitas anuais àquela artéria, são pueris e saudosas de Miraflor, que assim se chamou por erro do escrivão: a ideia era chamar-se Miraflores. “Havia as peixeiras de rua, que vinham da Afurada e de Miramar com o cesto. O cheiro do mar, o cheiro do peixe, sinta falta desse cheiro. ”Uma outra realidade. Como a gravada nas memórias de Rui Silva e Sandra Castro, casal nos trintas, agora com dois filhos, que se conheceu no palco dos Malmequeres, ela com 14 anos, ele com 19. Por ali, os vizinhos eram segunda família, a rua enchia-se de crianças a brincar, Rui treinava os remates contra as portas do armazém onde se instalou o Mira. Rosa Meireles, trabalhadora na Pincelaria Pardal, ali perto, passou parte da meninice por Miraflor e o regresso à rua, para ali abrir a sua Adega A Viela, foi uma partida feliz do destino. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O futuro da cidade está em Campanhã, acredita Rosa, que faz do seu restaurante um espaço de convívio sem hierarquias e auxílio para gente sem rendimentos maiores. Naquela geografia há-de nascer o “centro” do Porto: “Tenho uma fé viva que vai ser [assim]. ” E o designer e fotógrafo André Henriques, Deck 97 de nome artístico, habitante em Miraflor depois do efeito contagiante do Mira, não dúvida que ali existirá um dia “o Soho do Porto”. Nas narrações emotivas de 17 moradores, num mapa em permanente construção e crescimento, Manuela Matos Monteiro encontrou um “retrato da cidade que foi e já não é”. Crianças a apanhar feijão e milho caídos dos sacos que eram transportados da estação até aos armazéns. Uma pobreza e miséria profundas. O papel do homem na casa, o das mães e mulheres, o número impressionante de pessoas encaixadas em casas de dez metros quadrados. Os poucos momentos de festa e o hábito de tirar os sapatos para não gastar as solas. “Coisas das quais podemos ter informação e ver estatísticas, mas que ganham outra dimensão ao ser ouvidas assim. São relatos, não a puxar à desgraceira mas descritivos, sem adjectivos”, comenta. O sonho maior da equipa construtora desta plataforma era vê-la replicada por outras ruas da cidade, por outras cidades e ruas. Quem se aventurar a fazê-lo, dizem em jeito de compromisso, só tem de bater à porta do Mira e levará um kit e todo o apoio: “Estes trabalhos têm um valor patrimonial inacreditável. ” O mergulho no pretérito lembrou Manuela Matos Monteiro do quanto o país evoluiu. E nessa “consciência do tempo” reconheceu ingrediente relevante para receitas de presentes mais risonhos.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave filha escola cultura homem social mulheres pobreza
A minha família teve uma escrava
Eudocia Tomas Pulido foi levada das Filipinas para os Estados Unidos na década de 1950 para servir os Tizon. Ao longo de 56 anos fez o papel de mãe, pai, irmã. Sobretudo de criada. Nunca recebeu um tostão. Alex Tizon, jornalista premiado, escreveu a história de Lola, que é também a sua. (...)

A minha família teve uma escrava
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-07-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Eudocia Tomas Pulido foi levada das Filipinas para os Estados Unidos na década de 1950 para servir os Tizon. Ao longo de 56 anos fez o papel de mãe, pai, irmã. Sobretudo de criada. Nunca recebeu um tostão. Alex Tizon, jornalista premiado, escreveu a história de Lola, que é também a sua.
TEXTO: As cinzas enchiam uma caixa de plástico preto do tamanho de uma torradeira. Pesava 1, 6 kg. Coloquei-a dentro de um saco de pano-cru a um canto da mala que já tinha preparada para o voo transpacífico para Manila. Seguiria daí de carro para uma aldeia rural, o meu destino nesta viagem para deixar tudo o restava daquela mulher que durante 56 anos fora a escrava da minha família. Chamava-se Eudocia Tomas Pulido. Para nós, era a Lola. Media 1, 50 metros, a pele dela era da cor do café e tinha olhos de amêndoa, os olhos que ainda hoje vejo a mirar os meus naquilo que é a minha primeira memória. Lola tinha 18 anos quando o meu avô a ofereceu como prenda à minha mãe. Quando a minha família se mudou para a América trouxemo-la. Esta mulher foi uma escrava para nós e não há outra palavra no dicionário para descrever a vida que Lola levou. Levantava-se antes de acordarmos, deitava-se depois de todos estarem na cama. Preparava três refeições por dia, limpava a casa, servia os meus pais e tomava conta de mim e dos meus quatro irmãos. Os meus pais nunca lhe pagaram e passavam a vida a criticá-la. Não a tinham com algemas mas era como se tivessem. Tantas noites em que, a caminho da casa de banho, ia dar com ela a dormir a um canto, afundada sob uma pilha de roupa, os dedos ainda agarrados à última peça que estivera a dobrar. Os nossos vizinhos americanos viam-nos como imigrantes exemplares, uma família ideal. O meu pai era licenciado em Direito, a minha mãe estava a acabar o curso de Medicina, os meus irmãos e eu tínhamos boas notas e éramos educados a responder sempre com um “por favor” e um “obrigado”. Nunca falávamos sobre Lola. O nosso segredo fazia parte de quem éramos e, pelo menos para nós, crianças, de quem sonhávamos ser. Em 1999, quando a minha mãe morreu de leucemia, Lola veio morar comigo numa pequena cidade a norte de Seattle. Eu tinha uma família, uma carreira, uma casa nos subúrbios. O sonho americano. E também tinha uma escrava. Na recolha da bagagem em Manila, abri a mala para verificar que as cinzas de Lola ainda lá estavam. Lá fora, na rua, havia um odor que me era familiar, uma mistura entre fumo de escape, lixo, mar, frutas e suor. Nas primeiras horas da manhã do dia seguinte, descobri um motorista, um homem amável já de uma certa idade, com alcunha “Doods”. Fizemo-nos à estrada enfiados na sua carrinha, que dançava por entre o trânsito. Aquele cenário deixa-me sempre estupefacto, tal a quantidade de carros, motas, “jeepneys” [carrinhas de transporte público]. As pessoas serpenteiam por entre os veículos, enchem os passeios. Os vendedores de rua andam descalços ao lado dos carros a apregoar cigarros, pastilhas para a tosse, sacos de amendoins cozidos. As crianças colam os rostos às janelas a mendigar uma esmola. “Doods” e eu estavámos a caminho do lugar onde a história de Lola começou, a norte: a Província de Tarlac. O país do arroz. A terra do tenente Tomas Asuncion, o meu avô, um homem que fumava charutos desalmadamente. A família descrevia-o como um homem temível, excêntrico e mal-humorado. Um homem que era proprietário de muitos hectares, mas onde o dinheiro não abundava, que mantinha as amantes separadas em várias casas dentro da propriedade. A mulher morrera no parto, quando dava à luz a única filha do casal, a minha mãe. Foi criada por muitos utusans, ou “pessoas que recebem ordens”. A história da escravatura no arquipélago remonta ainda antes à chegada dos espanhóis, no século XVI. Habitantes de algumas ilhas já escravizavam outros, sobretudo prisioneiros de guerra, criminosos e pessoas com dívidas em falta. Havia toda uma diferente tipologia para a escravatura, desde os que literalmente se batiam para conquistar a liberdade, chamados “guerreiros/lutadores”, aos serviçais que eram considerados mercadoria pelos donos e que eram comprados, trocados, vendidos. Mesmo entre os escravos havia uma hierarquia de estatuto e os que estavam no degrau de cima podiam ter direitos sobre os que lhe ficavam imediatamente abaixo e por aí fora. Para alguns, ser escravo era também sinónimo de sobrevivência: trabalhavam em troca de comida, de casa, de protecção. Em 1500, quando os espanhóis chegaram, fizeram escravos entre os habitantes daquelas ilhas antes de trazerem outros, de África e da Índia. Gradualmente, a Coroa Espanhola foi erradicando a escravatura em Espanha e nas colónias, mas havia zonas remotas das Filipinas que escapavam ao controlo das autoridades. A tradição da escravatura persistia sob diferentes mantos, mesmo depois de os Estados Unidos ocuparem o arquipélago, em 1898. Hoje, até os pobres menos pobres têm utusans, katulongs (“ajudantes”) ou kasambahays (“empregadas domésticas”). É um poço sem fundo. O tenente Tom tinha três famílias de utusans que viviam nas suas terras. Na Primavera de 1943, já com as ilhas ocupadas pelos japoneses, trouxe para casa uma rapariga de uma vila próxima. Era uma prima afastada da família, produtores de arroz. O meu avô era um homem astuto e viu naquela rapariga sem recursos e sem formação escolar uma “presa” moldável. Os pais dela queriam vê-la casada com um produtor de porcos que tinha o dobro da sua idade. A rapariga estava desesperadamente infeliz e sem sítio para onde ir. Tom fez-lhe uma proposta: teria comida e guarida se, em troca, estivesse disposta a cuidar da sua filha, que tinha acabado de fazer 12 anos. É a minha prenda para ti”, disse o tenente à minha mãe. “Não a quero”, respondeu-lhe, sabendo que não lhe restava alternativaLola aceitou, sem ter consciência de que seria uma proposta para a vida. “É a minha prenda para ti”, disse o tenente à minha mãe. “Não a quero”, respondeu-lhe a minha mãe, sabendo que não lhe restava alternativa. Tom partiu para lutar contra os japoneses. Para trás, ficavam a minha mãe e Lola, numa decrépita casa de província. Era Lola quem a alimentava e a vestia. Quando iam ao mercado, era Lola quem carregava o guarda-sol para a proteger do calor. À noite, depois de todas as outras tarefas da casa — alimentar os cães, varrer o chão, dobrar a roupa que tinha lavado à mão no rio Camiling —, Lola sentava-se à beira da cama da minha mãe e abanava-a com um leque até que ela caísse no sono. Um dia, durante a guerra, o tenente Tom foi de visita a casa e apanhou a minha mãe numa mentira insignificante, qualquer coisa relacionada com um rapaz com quem não era suposto ela falar. Furioso, ordenou-lhe que se levantasse e se inclinasse sobre o tampo da mesa. A minha mãe encolheu-se a um canto com Lola. Depois, com a voz trémula, indicou que seria Lola a ficar com o castigo que lhe cabia. Lola suplicou-lhe com o olhar que não o fizesse, mas sem dizer uma palavra inclinou-se e agarrou-se à mesa. Tom tirou o cinto e chicoteou-a 12 vezes, frisando cada uma das chicotadas com uma palavra. Tu. Não. Me. Mentes. Tu. Não. Me. Mentes. Tu. Não. Me. Mentes. De Lola não se ouviu um único som. Anos mais tarde, quando ouvi a minha mãe recontar esta história, quase se pressentia no seu tom de voz um certo deslumbramento pela coragem de tamanha indecência, como se nos dissesse: “Acreditam que fiz aquilo?” Quando conversei com Lola sobre o episódio, ela pediu-me que lhe contasse a versão da “Mãe”. Ouviu-me atentamente, sempre cabisbaixa, e no fim, com um olhar profundamente triste, disse apenas: “Sim. Foi assim que aconteceu. ”Em 1950, sete anos mais tarde, a minha mãe casou-se com o meu pai e mudaram-se para Manila, levando Lola com eles. Há muito que o tenente Tom vivia assombrado por demónios e, em 1951, deu-lhes um fim enfiando uma bala calibre 32 na têmpora. A minha mãe quase nunca tocava no assunto. Era, como ele, um pouco temperamental — autoritária, distante, secretamente frágil. E levou a peito o que o pai lhe ensinou, sobretudo qual o lugar de uma senhora e mãe de família: “És tu quem dá ordens. Tens de manter os teus criados no lugar, para o bem deles e para o da casa. Eles podem chorar e queixar-se, mas as suas almas vão agradecer-te. Vão adorar-te por os ajudares a ser o que Deus teria desejado. ”Em 1951, nasceu o meu irmão Arthur. Eu vim depois, seguido de mais três irmãos. Os meus pais esperavam que Lola fosse tão dedicada às crianças como lhes era a eles. Enquanto Lola tomava conta de nós, os nossos pais puderam fazer os seus cursos na universidade — ainda que para se juntarem às fileiras de quem tem um canudo mas continua no desemprego. Até que surgiu uma oportunidade: o meu pai seria analista comercial nos serviços consulares filipinos na América. O salário era medíocre, mas a América era o país que preenchia os sonhos de infância dos meus pais, onde tudo aquilo que desejavam poderia tornar-se realidade. O meu pai podia trazer a sua família e uma empregada. Assumindo que ambos iam ter de trabalhar, precisavam de Lola para tomar conta de nós e da casa. Quando a minha mãe contou a Lola a novidade, ela não se mostrou nada entusiasmada. O que deixou a minha mãe furiosa. Anos mais tarde, foi Lola que me contou que tinha ficado aterrorizada. “Era demasiado longe. ” “Talvez a tua mãe e o teu pai nem me deixem nunca mais ir a casa”, receava já na altura. O que acabou por convencer Lola foi o meu pai ter-lhe prometido de que na América tudo seria diferente. Tanto ele como a minha mãe prometeram-lhe que, mal pudessem, começariam a dar-lhe uma “mesada”. Lola poderia então enviar dinheiro para os seus pais e para todos os familiares da aldeia. Os pais de Lola viviam num casebre com chão de terra. Lola poderia construir-lhes uma casa de cimento, poderia mudar-lhes a vida para sempre. Imagina. Aterrámos em Los Angeles a 12 de Maio, ano de 1964. Todos os nossos pertences enfiados em caixas de cartão atadas com corda. Por essa altura, Lola já estava com a minha mãe há 21 anos. Para mim, ela fazia mais o lugar de mãe do que a minha própria mãe — ou do que o meu pai. Era o rosto que via pela manhã e o último antes de adormecer. Quando comecei a esboçar palavras, balbuciei o seu nome (que de início pronunciava como “oh-ah”) muito antes de aprender a dizer “mãe” ou “pai”. Recusava-me a adormecer a não ser que fosse ao colo de Lola — ou pelo menos a saber que a tinha por perto. Estava com quatro anos quando cheguei aos Estados Unidos — demasiado novo para questionar o lugar de Lola na família. Mas crescer nesta outra costa fez-me ver, e aos meus irmãos, o mundo de uma forma muito diferente. Saltar por cima de todo um oceano foi sinónimo de saltar para um estado de consciencialização que a minha mãe e o meu pai não conseguiam, ou não queriam, suportar. Lola nunca recebeu a mesada prometida. Durante uns tempos, logo no início da nossa nova vida na América, ainda foi perguntando aos nossos pais pelo dinheiro. A mãe dela tinha adoecido (com aquilo que mais tarde vim a saber ser disenteria) e a família não tinha como comprar os medicamentos necessários. “Pwede ba?”, perguntava aos meus pais. “É possível?” A minha mãe suspirava. E o meu pai atirava-lhe, em filipino: “Como podes sequer perguntar? Vês os problemas que temos. Não tens vergonha?”Os meus pais pediram um empréstimo para ir para os Estados Unidos (e endividaram-se ainda mais para ficar). O meu pai foi transferido do Consulado-Geral das Filipinas em Los Angeles para o departamento consular em Seattle. Recebia 5600 dólares (6276 euros) por ano. Viu-se forçado a arranjar um segundo emprego a limpar caravanas e um terceiro como cobrador. A minha mãe trabalhava como técnica em vários laboratórios médicos. Raramente os víamos e quando isso acontecia estavam os dois exaustos e sempre irritadiços. A minha mãe chegava a casa e repreendia Lola por não ter limpado o suficiente ou por se esquecer de levar o correio para dentro. “Não te tinha dito que queria as cartas aqui quando chegasse?”, perguntava em filipino, a voz carregada de veneno. “Não é difícil! Até um idiota se lembraria. ” A seguir, era a vez do nosso pai. E, sempre que ele levantava a voz, todos nós nos encolhíamos. Por vezes, os meus pais uniam-se nas críticas a Lola até ela rebentar em choro, quase como se fosse esse o objectivo deles. Eram situações que me deixavam muito confuso: ora os meus pais, que adorávamos, tão bons para mim e para os meus irmãos, que nos davam tanto carinho. . . por que tratavam Lola com tanto desprezo? Só por volta dos meus 11 ou 12 anos tomei consciência da situação em que Lola se encontrava. Por essa altura, já Arthur, oito anos mais velho que eu, não tolerava o que se passava em casa. Foi ele quem me fez ver que Lola era uma escrava. Antes, eu pensava apenas que Lola era o elemento mais desafortunado da família. Claro que odiava quando os meus pais lhe gritavam, mas nunca me passara pela cabeça que eles, e toda aquela situação em que vivíamos, podiam ser uma imoralidade. Vês mais alguém ser tratado da forma como ela o é?”, perguntava-me Arthur. “Conheces mais alguém que viva como ela vive?”“Vês mais alguém ser tratado da forma como ela o é?”, perguntava-me Arthur. “Conheces mais alguém que viva como ela vive?” Resumiu-me assim a realidade: pura e simplesmente, Lola não era paga pelo trabalho que tinha connosco. Trabalhava arduamente todos os dias; era repreendida por ficar demasiado tempo sentada ou por adormecer demasiado cedo; era atacada por responder; usava roupas em segunda mão; comia as sobras sozinha na cozinha; raramente saía de casa; não tinha quaisquer passatempos ou amigos fora da família; não tinha um quarto só para ela (por todas as casas por onde passámos, restava-lhe apenas ficar num sofá, a um canto no quarto das minhas irmãs, ou na área de arrumos; na verdade, dormia normalmente em cima de pilhas de roupa por engomar). E para esta vida não conseguíamos de facto encontrar qualquer paralelismo possível — a não ser o papel de escravos nas séries que víamos na televisão ou nos filmes. Lembro-me de O Homem Que Matou Liberty Valance, um filme de cowboys em que John Wayne interpretava o papel de Tom Doniphon, o dono de um rancho que passava a vida a gritar e dar ordens a Pompey, a quem chamava “o meu rapaz”. “Apanha-o, Pompey. Pompey, vai chamar o doutor. Mãos à obra, Pompey!” Obediente e dócil, Pompey dirigia-se ao mestre como “Senhor Tom”. Para mim, aquilo era uma relação muito complexa: Tom tanto proibia Pompey de ir à escola como o levava a um saloon “só para brancos”; vivia entre a adoração e o temor. Lembro-me que perto do fim do filme, Pompey tentava salvar o seu mestre de um incêndio, e ficou mesmo de luto quando ele morreu. Tudo isto era periférico à história principal do confronto entre Tom e o mau da fita, Liberty Valance, mas eu não conseguia não olhar para Pompey. Lembro-me de pensar: o Pompey é a Lola, a Lola é o Pompey. Uma noite, o meu pai chegou a casa e descobriu que a minha irmã Ling, que tinha na altura nove anos, não tinha jantado. Gritou com Lola por ser preguiçosa e não fazer o seu dever. “Eu tentei dar-lhe o jantar”, balbuciou Lola, enquanto o pai ralhava. Aquela aparência frágil de Lola só lhe acicatava a fúria e foi quando lhe deu um valente soco mesmo por debaixo do ombro. Lola fugiu a correr da sala, mas eu conseguia ouvir os seus gemidos de dores, um som gutural que mais parecia um animal. “A Ling disse que não tinha fome”, meti-me eu. Os meus pais olharam para mim, surpresos. Comecei a sentir aquela comichão na cara que normalmente precedia as lágrimas, mas não, desta vez não ia chorar. Os olhos da minha mãe transmitiam algo que nunca antes tinha presenciado: seria inveja?Uma vez, adoeci durante muito tempo e fiquei demasiado fraco para comer - Lola mastigava a comida por mim e dava-me pedacinho a pedacinho à boca. “Estás a defender a tua Lola?”, perguntou-me o meu pai. “É isso?”“A Ling disse que não tinha fome”, sussurrei. Tinha 13 anos e era a primeira vez que me via a defender a mulher que passava os dias a tomar conta de mim. A mulher que me embalava com músicas filipinas até eu adormecer, e que me vestia, me dava de comer, me levava para a escola pela manhã e me ia buscar pela tarde. Uma vez, adoeci durante muito tempo e fiquei demasiado fraco para comer - Lola mastigava a comida por mim e dava-me pedacinho a pedacinho à boca. Houve um Verão em que tive de ficar com gesso nas duas pernas, por causa de problemas nas articulações, e Lola lavava-me com um pano, dava-me os medicamentos a meio da noite e ajudou-me durante a reabilitação. Foram meses de rabujice, mas ela nunca se queixou, nunca perdeu a paciência. Nunca. Ouvi-la agora a gemer enchia-me de raiva. Nas Filipinas, os meus pais não sentiam necessidade de esconder a forma como tratavam Lola. Chegados aos Estados Unidos, tratavam-na ainda pior, mas procuravam escondê-lo. Se tínhamos visitas, esforçavam-se por ignorá-la; se alguém lhes perguntava alguma coisa, apressavam-se a mentir ou mudavam de assunto. Durante o tempo em que vivemos a norte de Seattle, dávamo-nos muitos com os Missler, uma família de oito que vivia do outro lado da rua. Foram eles que nos fizeram descobrir a mostarda, que nos levaram pela primeira vez à pesca de salmão, com quem aprendemos a cortar a relva. Víamos juntos os jogos de futebol americano na televisão e berrávamos em insultos aos jogadores. Durante os jogos, quem aparecia para nos dar comida e servir era Lola, claro. Os meus pais sorriam, agradeciam-lhe e ela desaparecia. “Quem é aquela senhora na cozinha?”, perguntou uma vez Jim, o patriarca dos Missler. “Uma pessoa da família”, respondeu-lhe o meu pai. “É muito tímida. ”Billy Missler, o meu melhor amigo, não foi na conversa. Passava demasiado tempo connosco, às vezes fins-de-semana inteiros. Aqui e ali, foi-se inteirando do nosso segredo. Uma vez, quando ouviu a minha mãe aos gritos na cozinha, foi espreitar o que se passava e viu Lola a tremer a um canto. Eu entrei uns segundos depois. O olhar do Billy era uma mistura de embaraço e perplexidade. “O que foi aquilo?” Ignorei, disse-lhe que esquecesse. Acho que o Billy tinha pena da Lola. Adorava a comida dela, fazia-a rir como ninguém. Sempre que ele ficava para dormir lá em casa, Lola fazia-lhe o prato filipino preferido, beef tapa com arroz branco. Cozinhar era a única eloquência de Lola, a forma como expressava se estava tão-somente a não nos deixar morrer à fome ou se queria mesmo dizer que gostava muito de nós. Uma vez disse a Billy que Lola era uma tia de uma parte mais afastada da família. “Da primeira vez que nos vimos, disseste que era a tua avó. ”“Bem, ela é um pouco das duas”, e deixei ficar um tom misterioso no ar. “Porque é que ela está sempre a trabalhar?”“Ela gosta de trabalhar. ”“Os teus pais, por que é que lhe gritam?”“Já não ouve muito bem. ”Admitir a verdade tinha como consequência a exposição da família, de todos nós. Passámos a primeira década nos Estados Unidos a aprender a cultura e os costumes e a tentar encaixar. Ter uma escrava não se enquadrava. Ter uma escrava levantava-me enormes dúvidas quanto ao tipo de pessoas que éramos, quanto ao sítio de onde vínhamos. Se merecíamos ser aceites. Tinha vergonha de tudo, incluindo da minha cumplicidade. Não me alimentava com a comida que ela nos cozinhava? Não me vestia com as roupas que ela lavava, passava e pendurava no armário? Mas perdê-la teria sido devastador. Havia mais uma razão para tanto secretismo: os documentos de Lola tinham expirado em 1969, cinco anos depois de termos chegado aos EUA. Ela tinha entrado com um passaporte especial, providenciado pelo trabalho do meu pai. Depois de vários desentendimentos com os seus superiores, o meu pai demitiu-se do consulado e declarou que pretendia permanecer no país. Arranjou um visto permanente de residente para ele e para a família, mas Lola não era elegível. O meu pai deveria mandá-la de volta para as Filipinas. A mãe de Lola, Fermina, morrera em 1973. O pai, Hilario, em 1979. De ambas as vezes, Lola tentou desesperadamente ir a casa. De ambas as vezes, os meus pais pediram “desculpa” mas alegaram que não havia dinheiro e que as crianças precisavam dela. Também eles tinham medo, admitiram-me mais tarde. Se as autoridades descobrissem a situação em que Lola se encontrava — e não haja dúvidas de que descobririam mal ela tentasse sair do país —, os meus pais ficariam num grande sarilho, se calhar até ameaçados de deportação. Não podiam arriscar. O estatuto legal de Lola passou a ser o que os filipinos chamam tago nang tago, ou TNT — “em fuga”. Lola foi considerada TNT por 20 anos. Quando os pais dela morreram, Lola passou meses sorumbática, silenciosa. A demissão do meu pai deu início a um período turbulento. Havia ainda menos dinheiro a entrar e os meus pais discutiam imenso. Fizeram-nos mudar de casa vezes sem conta, de Seattle para Honolulu, de volta a Seattle, para o sul de Bronx e finalmente para a cidade de Umatilla, no Oregon, com uma população de 750 pessoas. Durante estas andanças, a minha mãe trabalhava muitas vezes em turnos de 24h como médica assistente e o meu pai desaparecia durante dias para fazer trabalhos que, viemos a descobrir mais tarde, não passavam de engates a mulheres e sabe-se lá que mais. Uma vez, chegou a casa e disse-nos que tinha perdido a nossa carrinha nova a jogar blackjack. O estatuto legal de Lola passou a ser o que os filipinos chamam tago nang tago, ou TNT — “em fuga”. Lola foi considerada TNT por 20 anos. Durante dias a fio, Lola era a única adulta que tínhamos em casa. Ficou a saber mais sobre as nossas vidas do que alguma vez os pais viriam a saber. Trazíamos amigos para casa e ela ouvia-nos a falar sobre a escola, raparigas, rapazes e tudo quanto nos ia pela cabeça. Só pelas conversas a que assistia, era capaz de enumerar todos os primeiros nomes das raparigas por quem tive paixonetas até ao secundário. Quando eu tinha 15 anos, o meu pai deixou-nos de vez. Na altura nem quis acreditar no que nos estava a acontecer, que ele nos abandonava a todos, a nós, as crianças, e à minha mãe depois de 25 anos de casados. Só no ano seguinte é que a minha mãe viria a acabar a especialidade em Medicina Interna, que não era propriamente lucrativa. O meu pai não contribuía com pensão de alimentos e, por isso, dinheiro era sempre um problema. Durante o dia a minha mãe conseguia controlar-se minimamente para manter alguma sanidade mental e trabalhar, mas à noite sucumbia à autocomiseração e ao desespero. A sua principal fonte de apoio durante todo este tempo: Lola. Quando a minha mãe se chateava com ela por coisas sem importância, Lola extremava os cuidados, cozinhava-lhe os seus pratos preferidos, arrumava-lhe o quarto com cuidados extras. À noite, na cozinha, ia dar com elas a contar histórias sobre o meu pai, por vezes riam-se, outras enraiveciam-se com as suas maluquices. Quase nem davam por nós, crianças, a entrar e a sair. Uma noite, ouvi a minha mãe a chorar e corri para a sala. Estava desolada nos braços de Lola, que lhe falava carinhosamente, da mesma forma que fazia comigo e com os meus irmãos quando éramos pequenos. Fiquei a observá-las durante uns momentos e depois regressei ao meu quarto, com medo pelo sofrimento que a minha mãe estaria a passar e pasmado com a Lola. O “Doods” trauteava. Eu tinha adormecido por breves minutos e acordei ao som da sua cantarolice bem-disposta. “Mais duas horas”, disse-me. Verifiquei se a caixa de plástico ainda estava no saco ao meu lado no assento e contemplei a estrada que tinha pela frente. A auto-estrada MacArthur. Espreitei o relógio. “Já tinha dito ‘duas horas’ há duas horas”, retorqui. “Doods” continuou a trautear. Ele ignorava o propósito da minha viagem e isso era um alívio. Já tinha diálogos internos suficientes a correrem-me nas veias. Não era melhor do que os meus pais. Podia ter feito mais para libertar Lola. Podia ter melhorado a sua vida. Por que não o fiz? Se calhar, até podia ter denunciado os meus pais. Claro que teria destruído a família no ápice de um segundo. Assim, mantendo como mantivemos eu os meus irmãos tudo escondido dentro de nós, a nossa família foi-se desfazendo aos poucos. Eu e “Doods” tínhamos pela frente uma paisagem maravilhosa. Não a beleza típica que é vendida nos folhetos das agências de viagem mas um país autêntico, vivo — e extraordinariamente desafogado por comparação com o ambiente urbano. De um lado e outro da auto-estrada, correm em paralelo montanhas, as Zambales para oeste; a Cordilheira de Sierra Madre para este. De cume em cume, de este a oeste, consegue-se ver toda a paleta de verdes até quase ao preto. “Doods” apontou para uma linha sombria à distância. O vulcão Pinatubo. Já aqui tinha vindo, em 1991, para escrever sobre os rescaldos da erupção, a segunda maior do século XX. Mantos de lava chamados lahars continuaram, por mais de uma década, soterrando aldeias antigas, preenchendo rios e vales e acabando com ecossistemas inteiros. Os lahars chegaram aos contrafortes da província de Tarlac, onde os pais de Lola tinham passado a vida inteira e onde a minha mãe e o meu pai outrora viveram juntos. Tanta da história da nossa família fora perdida em guerras e cheias e agora partes ficavam soterradas sob seis metros de lama. Aqui, convive-se diariamente com cataclismos. Tufões assassinos que atacam várias vezes ao ano. Insurgências sem fim de bandidos. Montanhas adormecidas que um dia decidem acordar. As Filipinas não são como a China ou o Brasil, cuja dimensão consegue absorver os episódios traumáticos. Esta é uma nação de rochas espalhadas pelo oceano. Quando acontece algum desastre, vai-se ao fundo. Depois volta-se à superfície, a vida continua e é possível contemplar o cenário que desfilava perante mim e “Doods”. O simples facto de ainda ali estar é já por si maravilhoso. Uns anos depois de os meus pais se separarem, a minha mãe voltou a casar e exigiu a fidelidade de Lola ao seu novo marido. Ivan era um emigrante croata que lhe tinha sido apresentado por um amigo. Nunca acabou a escolaridade obrigatória, já tinha sido casado quatro vezes, era um jogador compulsivo cujas ambições não aspiravam além de ser sustentado (pela minha mãe) e servido (pela Lola). Ivan fazia sobressair em Lola um lado que eu lhe desconhecia. Desde o primeiro dia que o casamento dele com a minha mãe se revelou muito instável e o dinheiro, ou o mau uso que ele fazia do dinheiro da minha mãe, era o principal problema. Uma vez, durante uma discussão na qual a minha mãe estava a chorar e o Ivan a gritar, Lola meteu-se entre os dois. Virou-se para ele e disse o seu nome de uma forma tão assertiva que ele pestanejou e sentou-se. Eu e a minha irmã Inday ficámos estarrecidos. Ivan, que era homem para uns 113 kg e tinha um tom de barítono que fazia estremecer as paredes, tinha sido metido na ordem com uma única palavra de Lola. Voltei a ver isto acontecer umas quantas vezes, se bem que na maior parte do tempo ela o servisse sem o questionar, como era vontade da minha mãe. Passei um mau bocado por assistir à vassalagem a que Lola se prestava, sobretudo perante alguém como Ivan. Mas o que me virou contra a minha mãe foi, afinal, algo muito mais comezinho. No final dos anos 1970, os dentes de Lola começaram a cair. "É o que acontece quando não se escovam os dentes como deve ser”, disse-lhe a minha mãe. Ela ficava furiosa de cada vez que Lola adoecia. Não queria ter de assumir que teria despesas médicas para pagar nem o quanto isso lhe perturbava a rotina. Acusava-a de ser uma fingida, de não saber cuidar de si. No final dos anos 1970, os dentes de Lola começaram a cair. Lembro-me que durante meses Lola se tinha queixado de dores na boca. “É o que acontece quando não se escovam os dentes como deve ser”, disse-lhe a minha mãe. Eu respondi que Lola precisava de ir a um dentista, que era uma mulher que já ia nos seus 50 e nunca tinha ido a uma consulta. Estava na universidade, à distância de uma hora de casa, mas sempre que lá ia lembrava a minha mãe desta urgência. Passou-se um ano, passaram-se dois. Todos os dias Lola tomava uma aspirina para aguentar as dores e a boca dela parecia um Stonehenge a colapsar. Uma noite, depois de a ver mastigar um bocado de pão com o lado da boca em que ainda tinha uns molares, perdi as estribeiras. Foi uma noite de discussão acesa entre mim e a minha mãe, cada um a esgrimir argumentos. Dizia que estava exausta por ter de trabalhar tanto para suportar toda a gente; farta por todos os seus filhos serem os primeiros a tomar as dores de Lola; se então não queríamos ser nós a ficar com Lola, uma vez que ela própria nem nunca a quis aceitar; como era possível ter dado à luz um arrogante, hipócrita, falso filho como eu. . . Deixei-a falar. Só depois lhe atirei que sim, ela devia saber melhor do que eu o que era ser impostor; que a sua vida tinha sido uma farsa; que se parasse um minuto que fosse com a autocomiseração rapidamente se aperceberia de que Lola mal conseguia alimentar-se porque todos os dentes lhe apodreciam na boca; que pelo menos uma vez na vida podia olhar para Lola como um ser humano ao invés da escrava que manteve toda a vida para a servir. “Uma escrava”, anuiu a minha mãe. “Uma escrava?”A noite terminou quando me disse que eu nunca iria entender a relação que tinha com Lola. Nunca. Ainda hoje, anos e anos depois, sinto um murro no estômago quando me lembro daquele tom cheio de raiva. Odiar a nossa mãe é uma coisa medonha. Foi o que me aconteceu naquela noite. Pelo olhar dela, percebi que era recíproco. Aquela guerra entre nós serviu para agigantar os receios da minha mãe de que Lola lhe tinha roubado os filhos. E não tardou a fazê-la pagar por isso. Tornou-se ainda mais dura. Atormentava-a dizendo-lhe: “Espero que estejas feliz agora que voltaste os teus meninos contra mim. ” Espumava sempre que ajudávamos Lola com a lida da casa. Sarcástica, dizia-lhe: “Acho melhor ires para a cama. Tens trabalhado tanto. Os teus meninos andam preocupados contigo. ” Depois, agarrava em Lola e enfiava-a num dos quartos até ela sair de lá com os olhos marejados. Por que é que ainda ficas aqui?, perguntávamos-lhe. “E quem é que vai cozinhar”, uma pergunta que eu tomava por outra "Quem é que vai tomar conta de nós? Da vossa mãe?"Foi Lola quem nos suplicou para pararmos de a tentar ajudar. Por que é que ainda ficas aqui?, perguntávamos-lhe. “E quem é que vai cozinhar”, uma pergunta que eu tomava por outra “Quem é que vai fazer tudo e mais alguma coisa?” Quem é que vai tomar conta de nós? Da vossa mãe?Houve um dia que Lola também disse: “E para onde iria eu?” Isto tocou-me fundo. A vinda para a América tinha sido um impulso maluco e antes de o diabo esfregar um olho já uma década se havia passado. Aliás, já quase duas. O cabelo de Lola estava a ficar esbranquiçado. Ela sabia que os familiares lá na aldeia natal se deveriam interrogar sobre que raio lhe teria acontecido e sobre as razões pelas quais ela acabou por nunca cumprir a promessa. Porque tinha vergonha de voltar. Lola não tinha qualquer amigo na América. Não saía muito à rua. Os aparelhos de telefone faziam-lhe confusão. Tudo quanto fosse mecânico ou tivesse um teclado era suficiente para a deixar em pânico — uma ATM, uma máquina de venda de refrigerantes, um intercomunicador. Se alguém falava demasiado depressa, quedava-se muda — o seu inglês mal amanhado causava a mesma sensação nos outros. Não era capaz de marcar uma consulta, de tratar de uma viagem, de preencher um formulário, de encomendar uma refeição. Arranjei-lhe um cartão de débito associado à minha conta e ensinei-a a usá-lo no multibanco. Conseguiu à primeira, mas atrapalhou-se quando foi tentar de novo e nunca mais lhe pegou. Mantinha o cartão apenas porque o considerava um presente que eu lhe tinha dado. Também tentei ensiná-la a conduzir. Acenou logo que não queria, nem pensar. Mas fi-la sentar-se no banco de condutor, os dois mortos de riso, e passei 20 minutos a mostrar-lhe todos os botões do tablier. Os olhos dela reviravam entre o divertido e o estarrecido. Quando liguei a ignição e o painel de instrumentos se iluminou, desapareceu aterrada para dentro de casa. Ainda tentei mais umas quantas vezes. Pensei sempre que se a ensinasse a conduzir podia mudar-lhe a vida. Seria capaz de passear mais. Seria até capaz de fugir dali para fora caso a situação com a minha mãe se deteriorasse de vez. De quatro faixas de rodagem passámos a duas, a gravilha veio substituir o cimento. Os motociclos atravessavam-se à frente dos carros, búfalos cruzavam-se connosco sob o peso dos fardos de bambu. De vez em quando, um cão ou uma cabra atreviam-se a atravessar-se no caminho, escapando por uma unha negra a estatelarem-se contra o pára-choques. O nosso destino era a aldeia de Mayantoc, que tentei escrutinar no mapa. Olhando para fora via pequeníssimas figuras, sempre dobradas. Pessoas no cultivo do arroz, mantendo uma tradição de séculos. Devíamos estar a chegar. Dei umas pancadinhas na caixa de plástico barata a pensar se ao menos não deveria ter investido numa urna a sério, feita de louça ou de mogno. O que poderiam pensar os familiares de Lola? Não que sobrassem muitos, é um facto. Apenas uma irmã, a Georgina, com 98 anos, se mantinha na região, e pelo que eu sabia já tinha muitas falhas de memória. Diziam-me alguns familiares que mal Georgina ouvia o nome de Lola rompia em choro, mas segundos depois nem sabia apontar a razão do seu choro. Tinha-me mantido em contacto com uma das sobrinhas de Lola. Era ela que tinha planeado o que iria acontecer mal eu chegasse: seria recebido com uma discreta cerimónia, seguir-se-ia um momento de oração findo o qual as cinzas desceriam à terra no cemitério de Mayantoc. Lola tinha morrido cinco anos antes, mas eu sabia que na verdade não me tinha despedido dela. Ainda sentia uma profunda tristeza por a ter perdido, como se ela tivesse morrido na véspera, e esse sentimento era mais forte do que a vergonha que também sentia pela forma como Lola tinha sido tratada pela minha família ou mesmo a ansiedade que me batia no coração só de pensar como seria recebido pelos familiares dela. “Doods” virou para noroeste na auto-estrada Romulo, na aldeia de Camiling, guinou à esquerda — era a terra natal do tenente Tom e da minha mãe. Duas faixas de rodagem confluíram numa só e a gravilha deu lugar a terra batida. O caminho seguia o curso do rio Camiling. De um lado, víamos aglomerações de casas em bambu, ao fundo, montanhas verdejantes. Estávamos quase. No funeral da minha mãe, coube-me o elogio fúnebre. Só disse a verdade. Que ela tinha sido corajosa e animada de boa vontade, que algumas opções podiam não ter sido as melhores, mas era o que estava ao seu alcance; que tinha um ar radiante sempre que estava feliz, que adorava os filhos e, já nos anos 1980 e 90, conseguira dar-nos uma base permanente, em Salem, no Oregon, a casa que não tínhamos tido. Que gostaria que ainda tivéssemos, todos nós, a oportunidade para nos despedirmos dela uma última vez. Que a amávamos. Não mencionei Lola. Nos últimos anos de vida da minha mãe, evitava trazer Lola para dentro das nossas conversas. Saber manter os laços filiais e já agora alguma sanidade mental implicava proceder de forma quase cirúrgica. Sobretudo quando a saúde da minha mãe se começou a deteriorar: diabetes, cancro na mama, leucemia mielóide aguda, um cancro galopante nas células sanguíneas e na medula óssea. Depois daquela nossa grande discussão, eu evitava ir a casa. Aos 23 anos, mudei-me para Seattle. Sempre que ia de visita, apercebia-me de que algo estava a mudar. A minha mãe continuava a mesma, claro, mas talvez já não tão implacável. Providenciou uma prótese dentária para Lola e arranjou-lhe um quarto. Quando eu e os meus irmãos combinámos que tudo faríamos para mudar o estatuto TNT de Lola, a nossa mãe mostrou-se cooperante. A reforma da Lei da Imigração sancionada por Ronald Reagan em 1986 deu a amnistia a milhões de imigrantes ilegais. O processo para legalizar Lola foi longo, mas em 1998 ela era finalmente uma cidadã americana, precisamente quatro meses antes de a nossa mãe ser diagnosticada com leucemia. Restou-lhe mais um ano de vida. Durante o tempo da doença, ela e Ivan viajavam para Lincoln City, na costa do Oregon, e às vezes levavam Lola com eles. Lola deleitava-se com o oceano. Do outro lado ficavam as ilhas para onde ela um dia quereria voltar. Quando Lola sentia a minha mãe descontraída, também ela ficava feliz e esquecia-se dos anos de tormento. Fosse numa tarde que passava à beira-mar ou enfiada na cozinha, onde ela e a minha mãe desfiavam memórias dos tempos nas Filipinas. Já a mim, não me era fácil esquecer. Mas é verdade que acabei por ver a minha mãe sob outro prisma. Antes de morrer, deixou-me os seus diários, dois malões atafulhados. Ao lado dela, à espera que adormecessse, ia folheando aqueles cadernos e vislumbrando pedaços de uma vida que eu próprio durante anos me tinha recusado a ver. Conseguiu ir para Medicina numa altura em que poucas mulheres o faziam. Na América, batalhou para ser reconhecida como mulher e como médica imigrante. Ao longo de duas décadas, trabalhou no Fairview Training Center, em Salem, uma instituição para deficientes mentais e motores. Ironia: até na sua vida profissional parecia haver uma queda para os mais frágeis da sociedade. Era uma pessoa respeitada e adorada no centro. Algumas das suas amigas mais íntimas eram colegas de trabalho. Quando estavam juntas, faziam coisas típicas de mulher — iam para as lojas comprar sapatos, organizavam festas em traje a rigor nas casas umas das outras, trocavam entre si prendas completamente patetas e inúteis como sabonetes em forma de pénis e calendários com homens seminus. Era um regabofe total. Ao ver aqueles álbuns de fotografia, percebi também que a minha mãe tinha uma identidade própria, uma vida à parte da da família ou da de Lola. A nossa mãe era profícua e prolixa sobre cada um dos filhos — cadernos cheios com referências ao que tinha sentido ou pensado num determinado dia, se tinha ficado orgulhosa, carinhosa, furiosa. Também mantinha cadernos e cadernos sobre os maridos, procurando encaixar figuras tão complexas na sua própria narrativa. Todos nós cabíamos nas suas memórias. Lola era acidental. E quando aparecia era como se fosse uma personagem que pertencia a outra história. “Esta manhã, Lola levou o meu muito querido Alex à sua nova escola. Espero que muito rapidamente consiga fazer amigos para não se sentir tão frustrado por termos mudado de novo de casa. ” É bem capaz de haver mais umas duas páginas sobre mim mas nada sobre Lola. Na véspera de a minha mãe morrer, um padre católico veio a nossa casa para lhe dar a extrema-unção. Lola sentou-se de um lado da cama a segurar numa caneca com palhinha pronta a levar aos lábios da minha mãe. Tinha-se tornado uma pessoa que lhe era muito dedicada, extremamente amável. Poderia ter-se vingado, poderia ter-se aproveitado da fragilidade da minha mãe. Fez precisamente o oposto. O padre perguntou à minha mãe se havia alguma coisa que merecesse o seu perdão, ou alguém a quem quisesse perdoar; se havia alguma coisa sobre a qual quisesse ser perdoada. A minha mãe passou os olhos pelo quarto e nada disse. A seguir, levantou a mão e sem mesmo olhar para Lola pousou-lha na cabeça. Não disse uma palavra. Lola estava com 75 anos quando passou a viver comigo. Eu era casado, pai de duas meninas e vivia numa simpática e confortável casa rodeada de verde. No segundo piso, a vista alcançava o estreito de Puget (enseada na costa noroeste dos Estados Unidos à beira do Pacífico). Lola tinha o seu quarto e toda a liberdade para fazer o que bem lhe apetecesse: dormir, ver telenovelas ou simplesmente passar os dias sem fazer nada. Pela primeira vez em toda a sua vida, podia relaxar e ser livre. Devia ter-me apercebido de que não iria ser fácil. Tinha apagado da memória todas as pequeninas coisas que Lola fazia que me punham doido. Como estar sempre a alertar-me para vestir uma camisola para não ficar engripado (eu já ia nos meus 40 e muitos). Ou passar a vida a tecer comentários sobre o meu pai e o Ivan: o meu pai porque era um preguiçoso, o Ivan porque era um parasita. Esses pormenores aprendi a ignorar, a não valorizar. Mas tornava-se quase impossível lidar com a sua obsessão pela reciclagem. Não era capaz de deitar nada para o lixo. Até ia vasculhar no caixote para ver se tínhamos deitado fora alguma coisa que ainda pudesse ser aproveitada. Usava vezes sem conta o mesmo papel de cozinha até se lhe desfazer entre os dedos (claro que todos nós evitávamos aproximar-nos daquilo). A cozinha ficava atafulhada com sacos de plástico de mercearias, recipientes de iogurte, frascos de geleia. Lixo por todo o lado — não há outra palavra para definir o acumular de tanta porcaria. Lola continuava a fazer-nos o pequeno-almoço, mesmo sabendo que com��amos apenas uma banana ou uma barrita de cereais enquanto corríamos porta fora. Fazia-nos a cama e tratava da nossa roupa. Limpava a casa. Cheguei a dar comigo a dizer-lhe, a princípio de uma forma doce: “Lola, nós tratamos disso. Faz parte das tarefas das miúdas. ” Ela aquiescia, mas continuava a fazer tudo. Depois de vários meses, e já irritado por a ver comer de pé na cozinha, fi-la sentar-se e ouvir-me. “Eu não sou como o meu pai. Tu não és a nossa escrava”, e debitei-lhe o rol de coisas que eram na verdade trabalho de serviçal. Olhou-me estupefacta. Respirei fundo, agarrei naquele rosto frágil entre as minhas mãos e dei-lhe um beijo na testa. “Esta é a nossa casa agora. Não estás aqui para ser a nossa empregada. Podes relaxar, por favor?”“Está bem”, respondeu-me. E voltou às limpezas. Já nem tudo é o mesmo”, dizia Lola enquanto percorria as redondezas de Mayantoc. “Queres voltar para o teu jardim?”, perguntei. “Sim. Vamos para casa. ”Pura e simplesmente, Lola não sabia ser de outra forma ou pensar que lhe poderia caber outro lugar no mundo que não aquele que conheceu toda uma vida. Às tantas, era eu próprio quem deveria estar a aproveitar o conselho e relaxar. Se ela queria fazer o jantar, deixá-la. A mim caber-me-ia agradecer e lavar a loiça. E lembrar-me a toda a hora que tinha de a deixar ser quem ela era. Uma noite, quando cheguei a casa, dei com Lola a fazer palavras cruzadas, os pés reclinados, a televisão ligada, uma chávena de chá ao lado. Deitou-me um olhar carinhoso e continuou a resolver as palavras cruzadas. Pensei: estamos a fazer progressos. Lola passava as tardes a semear no quintal das traseiras — conseguiu ter o seu jardim repleto de rosas, tulipas e algumas espécies de orquídeas. Dava longos passeios pelas redondezas. Chegada aos 80, as artrites obrigaram-na a socorrer-se de uma bengala. Na cozinha, tinha-se tornado uma espécie de chef que só cozinhava quando bem lhe apetecia. Fazia pratos sumptuosos e deleitava-se a ver-nos deleitados na degustação. Quando me aproximava da soleira da porta do seu quarto, percebia que ela tinha em repeat a mesma cassete de música folk filipina. Eu e a minha mulher pagávamos-lhe 200 dólares por semana [aproximadamente 180 euros], que ela mandava quase todo para os familiares. Uma tarde fui dar com ela no quintal a olhar embevecida para um cartão postal com a fotografia da sua aldeia natal que alguém lhe tinha enviado. “Lola, estás com vontade de ir para casa?” Ela revirou a fotografia, esfregou delicadamente o dedo numa inscrição que vinha no cartão e deteve-se num pormenor. “Sim”, respondeu-me. Quando fez 83 anos, paguei-lhe a viagem de volta. Eu próprio seguiria um mês depois para a trazer — se ela assim o quisesse. Nem eu nem ela alguma vez confessámos que esta viagem tinha uma intenção por detrás: perceber se a “casa”, para onde desejou toda a vida voltar, ainda era a sua “casa”. Foi Lola sozinha que encontrou a resposta. “Já nem tudo é o mesmo”, dizia-me enquanto percorríamos as redondezas de Mayantoc. As velhas quintas tinham desaparecido. A casa dela também. Os pais e a maioria dos seus irmãos tinham morrido. Os que restavam das suas amizades da infância eram uns estranhos. Era bom revê-los, mas nada era de facto o mesmo. A sua vontade seria passar aqui os últimos anos da sua vida, mas isso era algo para o qual não estava ainda preparada. “Queres voltar para o teu jardim?”, perguntei. “Sim. Vamos para casa. ”Lola era de uma dedicação extrema às minhas filhas, tal como tinha sido para mim e para os meus irmãos quando éramos crianças. Quando as miúdas regressavam a casa depois da escola, ficava a ouvir as histórias que elas tinham para contar e alimentava-as. Ao contrário da minha mulher — e, sobretudo, de mim — adorava cada minuto de compromissos sociais exigidos pela escola, cada performance e apresentação — aliás, era a primeira a sentar-se nos lugares dianteiros e guardava o programa dos espectáculos como uma lembrança preciosa para o futuro. Era fácil fazê-la feliz. Uma viagem de férias connosco deixava-a tão satisfeita quanto uma ida ao mercado no final da rua. “Olha só para aqueles zucchinis!”, e parecia uma criança num campo de férias. Todas as manhãs, a primeira coisa que fazia era levantar as persianas da casa e em cada janela demorar-se a contemplar a paisagem lá fora. Aprendeu a ler sozinha, o que só por si já é um acontecimento extraordinário. Ao longo dos anos, e sem que percebêssemos como, ela lá conseguiu desembaraçar-se a ler cartas. Fazia aqueles puzzles em que é preciso descortinar palavras no meio de um amontoado de letras e tinha uma imensidão desses livrinhos de exercícios no quarto, muitas e muitas palavras rodeadas a lápis de carvão. Todos os dias via os telejornais e tentava perceber palavras que lhe fossem familiares. Depois, pegava num jornal e via se conseguia identificar as mesmíssimas palavras. Acabou por conseguir ler um jornal de fio a pavio. O meu pai costumava dizer que ela era uma mulher simplória. Questiono-me ainda hoje onde poderia Lola ter chegado se aos oito anos, em vez de andar nos campos de arroz, tivesse aprendido a ler e a escrever. Todos os dias via os telejornais e tentava perceber palavras que lhe fossem familiares. Depois, pegava num jornal e via se conseguia identificar as mesmíssimas palavras. Acabou por conseguir ler um jornal de fio a pavioNos 12 anos em que viveu connosco, fiz-lhe muitas perguntas para tentar compor uma narrativa da sua vida. Ela achava isto estranhíssimo e antes de aceder a responder-me, mal eu começava no meu rol inquisitorial, interrogava-me: “Porquê, para que queres saber sobre a minha infância ou sobre a maneira como conheci o tenente Tom?”Ainda tentei, sem sucesso, que fosse a minha irmã Ling a fazer-lhe perguntas sobre a sua vida amorosa. Num belo dia, enquanto eu e Lola arrumávamos as mercearias acabadas de comprar, perguntei-lhe: “Lola, alguma vez estiveste numa situação mais romântica?” Ela sorriu e contou-me sobre a altura da sua vida em que quase chegou a ter um romance. Estava por volta dos seus 15 anos e havia um bonito rapaz, de nome Pedro, que vivia numa quinta nas redondezas. Durante meses, os dois estiveram lado a lado a apanhar arroz. Lola lembra-se do dia em que deixou cair o seu bolo — uma espécie de faca afiada como um pequeno sabre —, que ele se apressou a apanha e entregar. “Gostei dele”, confessou-me. Silêncio. “E o que aconteceu a seguir?”“Foi-se embora”“E?”“É o fim da história. ”Quase me oiço a mim próprio a perguntar: “Lola, alguma vez tiveste sexo?”“Não”, respondeu-me. Ela não estava, de todo, habituada a esta invasão da sua vida privada. “Katulong lang ako”, diria. “Sou apenas a criada. ” Falava por monossílabos e chegar a alguma conclusão na mais banal das histórias era passar por um interrogatório de mais de 20 perguntas que poderia durar dias, semanas. Aquilo que fui aprendendo: que ela ainda sentia raiva por a minha mãe a ter feito passar por tamanhas crueldades ao longo de tanto tempo (e contudo sentia umas saudades incríveis dela); que em miúda chegou a sentir-se tão só que se refugiava no choro; que durante anos sonhou em ter um homem — algo que, lembro agora, concluí quando a vi agarrada a uma almofada durante a noite — mas depois de estar tão perto dos casamentos da minha mãe pensava que afinal era uma bênção estar sozinha. Se havia alguém de quem ela não tinha saudade alguma, era daqueles dois homens. Sim, talvez a sua vida tivesse sido melhor se tivesse permanecido em Mayantoc e se tivesse casado para ter uma família como aconteceu com os seus irmãos. E daí, talvez tudo tivesse sido muito pior. Francisca e Zepriana, duas das irmãas mais novas de Lola, morreram logo após terem adoecido. Claudio, um dos irmãos, foi morto. Perguntava-me Lola: “Aonde é que nos leva estarmos agora a pensar nisso?” “Bahala na”, aconteça o que tiver de acontecer, era o seu mantra. Aquilo que acabou por lhe acontecer a ela foi uma outra espécie de família. Uma família na qual teve oito filhos: a minha mãe, eu e os meus quatro irmãos, e agora ainda duas filhas (as minhas). E estes oito, dizia ela, chegaram e sobraram para lhe encher a vida. E nenhum de nós estava preparado para que morresse. Tão cedo. Começou a ter um ataque cardíaco enquanto nos cozinhava o jantar. Lembro-me de que fiquei meio atarantado, sem saber o que fazer. Umas horas mais tarde, já no hospital, ainda atordoado, já ela tinha partido. Eram 22h56. Ela e a minha mãe morreram na mesma data, 7 de Novembro, 12 anos a separá-las. Lola chegou aos 86 anos. Lembro-me de a ver na maca. Lembro-me de pensar que os médicos que se lhe abeiravam não tinham a mais pálida ideia do que tinha sido a vida daquela mulher morena num corpo de criança. Não sabia o que era egoísmo ou ambição. Foi o seu altruísmo que conquistou o nosso amor, a nossa lealdade e dedicação. Na minha imensa família, Lola alcançou um lugar sagrado. Levei meses no sótão, à volta das suas caixas de recordações. Encontrei receitas culinárias que remontavam aos anos 1970, quando ainda nem adivinhava que algum dia seria capaz de as ler. Álbuns de fotografias com retratos da minha mãe. Prémios e galardões escolares meus e dos meus irmãos e que ela literalmente salvou do lixo. Numa dessas minhas investidas nocturnas no sótão, afundei-me em lágrimas quando descobri uma pilha de artigos de jornal, todos com o papel amarelecido, que já nem me lembrava de ter escrito. Na altura, sei que Lola não os conseguia ler, mas guardou-os para um qualquer futuro. A carrinha de “Doods” estacionou à beira de uma casa em betão que se distinguia das outras, na sua maioria em bambu e prensado de madeira. À volta, campos de arroz a perder de vista. Antes ainda de me apear, já as pessoas abriam as portas de casa. “Por aqui”, indicou-me uma voz doce que me levou até à entrada da casa. Na minha peugada estavam para cima de 20 pessoas, novos e velhos, sobretudo velhos. Franqueada a porta, percebo que os bancos corridos e as cadeiras foram dispostos junto às paredes para me deixarem o centro da sala. Permaneci de pé enquanto aguardava pelo anfitrião. Era uma sala escura e minúscula. Todos me deitavam um olhar expectante. “Onde está a Lola?”, ouvi perguntar numa sala contígua. No minuto seguinte, entrou uma mulher de meia-idade enfiada num vestido de trazer por casa e um sorriso nos lábios. Era Ebia, a sobrinha de Lola. Estávamos em sua casa. Ela abraçou-me e repetiu: “Onde está a Lola?” Tirei o saco que trazia ao ombro e entreguei-lho. Enquanto me olhava nos olhos, sempre a sorrir, agarrou no saco, acariciou-o e foi-se sentar num banco de madeira. Tirou a caixa de dentro do saco, virou-a e revirou-a. “Onde está a Lola?”, perguntou de novo num tom suave. Neste lado do mundo, as pessoas não costumam ver os seus entes queridos feitos em cinzas. Creio que Ebia não sabia bem o que a esperava. Colocou a caixa no colo, reclinou-se e apoiou a testa. Pelo som que fazia, parecia estar a rir-se de felicidade. Estava a chorar. Os ombros estremeciam-lhe e depois saiu-lhe de dentro um som quase animalesco, o mesmo tipo de som que me lembro um dia de ter ouvido em Lola. Não sabia que poderia haver quem sentisse tanto a falta de Lola, se calhar foi por isso que me demorei a vir entregar as suas cinzas. Não estava à espera de assistir a este luto. Antes de conseguir confortar Ebia, uma mulher saiu da cozinha e apertou-a entre os braços e também começou num lamento profundo. A seguir, todo o quarto — os mais velhos, um deles cego, outros sem dentição — irrompeu nesse som interminável, todos choravam sem pudor, sem nada a esconder. Tudo isto demorou uns dez minutos e deixou-me de tal forma emocionado que nem me apercebi de que também eu chorava. Os soluços foram enfraquecendo até o silêncio se apoderar de novo do quarto. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ebia fungou e anunciou que era altura de se comer alguma coisa. Todos se dirigiram para a cozinha, com os olhos inchados mas quase como se se sentissem mais leves e dispostos a conversar. Deitei um último olhar ao saco onde lhe carreguei as cinzas e tive a certeza de que fiz bem por trazer Lola de volta ao lugar onde nasceu. Exclusivo PÚBLICO/ The AtlanticNotas finais sobre esta reportagem e o seu autor: Alex Tizon morreu em Março de causas naturais, durante o sono. Tinha 57 anos. Quando a revista The Atlantic, fundada em 1857 por abolicionistas da escravatura, soube da sua morte, tinha já decidido fazer capa com a história pessoal deste jornalista premiado com um Pulitzer e autor de Big Little Man: In Search of My Asian Self. Com a ajuda da mulher, Melissa, ultimaram a publicação. Como diz Melissa, citada na Nota da Direcção que acompanhou o artigo, “esta foi a sua última história, que andou a tentar escrever durante cinco ou seis anos”. A seguir à publicação, a revista recebeu inúmeros comentários, textos, emails, cartas e mantém uma linha aberta para feedback dos leitores.
REFERÊNCIAS:
Universidades capturadas? (I)
A missão da Universidade na construção da cidadania e antecipação do futuro da sociedade está hoje sob ameaça. (...)

Universidades capturadas? (I)
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: A missão da Universidade na construção da cidadania e antecipação do futuro da sociedade está hoje sob ameaça.
TEXTO: Ao longo da história, e sobretudo com a chegada do Iluminismo, as instituições de ensino superior foram fundamentais nas suas funções formativa, civilizacional e legitimadora do poder das elites. Mas, para além da sua ação institucional, as universidades geraram no seu seio correntes de pensamento científico, filosófico, cultural e político que em diversos momentos se erigiram nas principais forças propulsoras de modernidade, de inovação e de progresso. Embora por vezes cunhadas de “torres de marfim”, conservadoras e resistentes aos ventos de mudança, nelas floresceram diversos ambientes informais e boémios onde se forjaram correntes de pensamento alternativo, revertidas em múltiplos movimentos literários, culturais e políticos, tantas vezes em rutura com o poder instituído. Essa missão da Universidade na construção da cidadania e antecipação do futuro da sociedade está hoje sob ameaça. Em Portugal, os debates sobre o ensino superior público nas últimas duas décadas giraram à volta da autonomia e da sustentabilidade financeiras das universidades. A redução progressiva da fatia do financiamento público, mesmo em instituições que têm assegurado autonomamente parcelas substanciais do seu orçamento, tem tido como consequência um esforço acrescido das equipas reitorais para imporem uma gestão espartana de recursos, a expensas não só da eficácia dos serviços, mas também de prioridades estratégicas outras. Exemplos disso são o campo científico, a ação social, residências e infra-estruturas, a aposta noutras modalidades de transferência de conhecimento ou a prioridade a uma maior articulação entre a inovação tecnológica e o tecido empresarial do país. Por isso, as nossas universidades, guiadas pelo enquadramento jurídico vigente nos últimos dez anos e tolhidas pelos cortes orçamentais, pouco puderam fazer para fortalecer uma mais efetiva ligação à sociedade (e ao mercado de trabalho), como previa o modelo de Bolonha e o RJIES aprovado em 2007. Embora estando ainda longe da média dos países da UE ou mesmo da OCDE no que toca ao volume da população ativa com formação superior, são conhecidos os enormes progressos nesse campo ao longo das últimas décadas. Basta lembrar que a população portuguesa (com mais de 15 anos) com frequência do ensino superior evoluiu de 8% para 18% entre 1998 e 2017; o total de alunos a frequentar o ensino universitário passou de 50 mil em finais da década de 1970 para 362 mil em 2017; e, em proporção semelhante, aumentaram os estabelecimentos de ensino superior, o número de cursos oferecidos e ainda mais o número de portugueses com diplomas de pós-graduação, nomeadamente os doutoramentos concluídos por ano, que se situam hoje acima dos 3000 (relatório Pordata, 2018). É claro que a redução da taxa de natalidade em Portugal está já a refletir--se na retração da população universitária (prevê-se que o número de jovens com 18 anos em 2030 seja cerca de cerca de 1/3 dos de 2017), apesar de essa redução ser mitigada pela presença crescente de estudantes internacionais nas nossas universidades. Por outro lado, importa atender não apenas aos indicadores do ensino superior e da produção científica, mas sobretudo à capacidade de a sociedade e a economia portuguesas absorverem e potenciarem todo o conhecimento e qualificação gerados pelo sistema de ensino superior. Nesse capítulo, porém, parece estar a ocorrer um duplo mecanismo que tende a neutralizar o que, à partida, seriam os benefícios derivados do impacto do ensino superior na sociedade. O primeiro refere-se à presença de diplomados no mercado de emprego. Em Portugal, a população empregada com frequência universitária passou de cerca de 15% em 2008 para mais de 25% em 2017; e considerando apenas a faixa etária dos 19-29 anos, segundo a OCDE (Education at a Glance, 2018) tínhamos, em 2017, 43% das raparigas e 26% dos rapazes a frequentar o ensino superior, o que deixa antever um potencial de crescimento ainda maior nos próximos anos. Ora, se é verdade que tais indicadores são boas notícias para a nossa economia, também sabemos que a absorção de quadros qualificados pelo tecido empresarial português é não só muito limitada, como tem decorrido no contexto de crise e num quadro de mudanças (“reforma laboral”. . . ) tendente a favorecer a flexibilidade e a compressão salarial, nomeadamente nos níveis intermédios e mesmo nos quadros superiores. O nosso tecido empresarial está longe de saber aproveitar os recursos que tem ao seu dispor, não obstante o discurso eufórico em torno das startups e da Web Summit. É a essa luz que podem interpretar-se resultados de um relatório recente (do Observatório sobre Crises e Alternativas, do CES) que revelam uma estagnação do salário médio em Portugal nas últimas duas décadas. Só se compreende que os salários estejam hoje, a valores reais, ao nível de 1998, apesar da progressão do salário mínimo, se considerarmos que a renovação de quadros e profissões qualificadas se baseia, em larga medida, no dumping social e na cultura do burnout no mundo dos experts das grandes organizações. E, assim, a produtividade sobe, o desemprego diminui, mas os salários dos trabalhadores portugueses permanecem “congelados”. Para agravar tal cenário basta lembrar o caudal de emigrantes qualificados que as universidades e institutos superiores continuam a alimentar, fornecendo mão-de-obra qualificada que lá fora sabem rentabilizar, à custa dos recursos do Estado português. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Outro fator relaciona-se com a função de “ascensor social”, isto é, até que ponto a universidade é ou não capaz de realizar a sua missão de canal de mobilidade social ascendente, um aspeto que no caso de Portugal parece longe de cumprir-se, uma vez que, como se vê, os outputs do ensino superior estão longe de ser plenamente incrustados na economia. Um relatório recente conduzido pela OCDE (A Broken Social Elevator?, 2018) veio confirmar o que outros estudos portugueses há muito mostraram, ou seja, que a educação e a condição socioeconómica da família — em especial nos extremos da pirâmide social — são determinantes sobretudo na reprodução do estatuto e das oportunidades para as gerações seguintes, enquanto os diplomas académicos só muito escassamente cumprem o papel de ascensão. O referido estudo revelou que 58% dos pais portugueses consideraram que os seus filhos não atingirão o seu nível de status e conforto, e será necessário esperar cinco gerações para que tal possa vir a ocorrer. Em critérios específicos como a ocupação e a educação a “imobilidade” é a tendência mais forte. No primeiro caso, os filhos de trabalhadores manuais têm 55% de probabilidades de se tornarem também trabalhadores manuais, enquanto no topo um filho de gestor tem cerca de 69% de probabilidade de vir a conseguir um cargo dirigente. E no critério da “mobilidade educativa” o nosso país revela-se dos menos eficazes em promover a ascensão social num leque de 30 países da OCDE. Há uma “base pegajosa” e um “topo seletivo” que acionam poderosos condutores socioeconómicos capazes de neutralizar os fluxos “meritocráticos” que o ensino superior era suposto estimular. Sem dúvida que o aumento da oferta e do número de jovens com formação superior foram desafios necessários e os avanços nessa matéria são inquestionáveis. Mas o papel das universidades portuguesas na definição e implementação de um programa de desenvolvimento sustentável para o país viu-se cada vez mais confinado. Condicionado por opções políticas discutíveis e pelo poder crescente do novo paradigma económico neoliberal, que, de resto, ditou as novas orientações de governos e das instituições europeias para o ensino superior. O modelo de Bolonha é apenas um exemplo. Tendo em conta o nosso enquadramento na UE, era inevitável um novo formato para o ensino superior, perante um ensino que inevitavelmente teria de crescer e, como consequência, tornar-se mais acessível — no ingresso e na conclusão — a grandes massas de estudantes. O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
REFERÊNCIAS:
Entidades UE OCDE
Herman Shine, o homem que cantava nos telhados de Auschwitz foi dos poucos a conseguir fugir
Herman Shine poderia não ter sobrevivido se o seu melhor amigo o tivesse deixado para trás. Uma "dúzia de milagres" fizeram o resto. A amizade entre os dois homens deu um documentário, mas a sua fuga do mais mortal dos campos de concentração nazis parece ficção. Shine morreu em Junho aos 95 anos. (...)

Herman Shine, o homem que cantava nos telhados de Auschwitz foi dos poucos a conseguir fugir
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.2
DATA: 2018-12-09 | Jornal Público
SUMÁRIO: Herman Shine poderia não ter sobrevivido se o seu melhor amigo o tivesse deixado para trás. Uma "dúzia de milagres" fizeram o resto. A amizade entre os dois homens deu um documentário, mas a sua fuga do mais mortal dos campos de concentração nazis parece ficção. Shine morreu em Junho aos 95 anos.
TEXTO: Com tudo o que se sabe hoje, passados mais de 70 anos, sobre a Segunda Guerra Mundial e os horrores dos campos de concentração — mesmo que possa haver ainda muito por revelar — é difícil imaginar alguém a conseguir fugir de Auschwitz, a mais poderosa das máquinas de extermínio nazis. Só cerca de 200 pessoas tiveram sucesso na fuga durante o conflito - e uma delas foi Herman “Menne” Shine, um judeu alemão de ascendência polaca que ali chegou em 1942 e que sobreviveu graças à sua astúcia e coragem. Das pelo menos 1, 3 milhões de pessoas deportadas para este complexo no Sul da Polónia ocupada pelos alemães (três pólos principais e dezenas de subcampos), 1, 1 milhões terão ali morrido. Herman “Menne” Shine foi um dos 200 que tiveram sucesso na fuga durante a guerra, que sobreviveu graças “a uma dúzia de milagres” - e ao seu melhor amigo, disse ao jornal San Francisco Chronicle em 2009. Morreu a 23 de Junho, aos 95 anos, na sua casa em San Mateo, na Califórnia. Lê-se o obituário que esta terça-feira lhe dedica o diário norte-americano The New York Times ou o que sobre ele escreveu o californiano San Francisco Chronicle e a tendência é para romancear a sua vida – e esta fuga com contornos de filme de aventuras a que não falta, sequer, um grande amor. Para sobreviver, Herman Shine teve de confiar em estranhos, de se esconder num celeiro durante quatro meses sem nunca poder tomar banho e até de se fazer passar por um oficial nazi. Para ele, que foi forçado a trabalhar na construção dos campos de concentração de Sachsenhausen, na Alemanha, para onde foi levado com o amigo de infância Max Drimmer, em 1939, e de Auschwitz, de onde fugiu em 1944, e que viria a refazer a sua vida nos Estados Unidos, onde se estabeleceu em 1947. No novo país mudou o nome de Mendel Scheingesicht para Herman Shine, mas os tempos “terrivelmente difíceis” da guerra mantiveram-se bem vivos na memória. Num depoimento que gravou em 2014 para o projecto We Remember Holocaust, destinado a recolher testemunhos de sobreviventes judeus da Segunda Guerra, hoje disponível no YouTube, descreve as circunstâncias em que foi arrastado ainda adolescente da sua casa em Berlim e a tortura e o isolamento dos primeiros meses de Inverno em Sachsenhausen. Fala do dia em que viu pela primeira vez aquela que viria a ser sua mulher durante 74 anos, Marianne Schlesinger, e descreve os contornos da fuga que Max lhe propôs, quando se tornou claro que a morte não estava longe. “Percebemos, a certa altura, que a única maneira de sairmos dali era através da chaminé”, diz, referindo-se às câmaras de gás e aos fornos de Birkenau (o campo II de Auschwitz, onde os prisioneiros eram mortos). “Menne” chegou, aliás, a estar numa fila deste campo de extermínio, conta no mesmo depoimento. Só foi salvo porque resolveu atravessar a rua para ajudar uma mulher que acabara de passar de bicicleta e que caíra porque a sua saia ficara presa nos raios de uma das rodas. “Eu não sabia, mas era a mulher do comandante máximo do campo. ”Quando deixou a fila para a ir ajudar, guardas armados seguiram-no dispostos a disparar. A mulher achou que aquela demonstração de força, para além de desnecessária, a punha em risco e mandou chamar o marido, que não gostou de ver um dos melhores trabalhadores do campo na fila dos que em breve seriam gaseados e o mandou de volta para o seu barracão. É que anos antes, logo na chegada a Sachsenhausen, intuindo que isso o ajudaria a sobreviver, Herman Shine decidira mentir, dizendo aos alemães que trabalhava na construção civil, em particular nas coberturas. Afecto às equipas de obra, acabou por aprender a fazer telhados e em pouco tempo liderava outros prisioneiros como ele, tornando-se mão-de-obra valiosa para os alemães. Não tinha tratamento preferencial, mas ia sobrevivendo. Enviados para Auschwitz em 1942 mais tarde, “Menne” e Max foram separados à chegada. Max teria morrido se não tivesse conseguido entrar às escondidas na fila onde estava o amigo. Acabaram os dois em Monowitz (Auschwitz III), onde “Menne” trabalharia a construir telhados. Faria o mesmo no campo satélite de Gleiwitz, onde reparou num grupo de bonitas raparigas que se ocupava da limpeza e do qual fazia parte a sua Marianne. Usavam a estrela de David, contou ainda em 2014, mas era-lhes permitido entrar e sair do campo porque eram de famílias mistas (só um dos pais era judeu) e, por isso, só meias-judias. “Vinham duas ou três vezes por semana, sem dias fixos”, recorda Herman Shine no seu testemunho, acrescentando que, sempre que sabia que estariam lá no dia seguinte, voltava para trabalhar no telhado mais próximo, mesmo que já não houvesse nada para fazer. “Trabalhava sempre no mesmo barracão, que já estava pronto há muito tempo, para a poder ver. ” E quando ela chegava, estava muitas vezes a cantar. “Menne” e Marianne começaram a trocar bilhetes e, quando ele lhe disse que em breve poderiam ter as câmaras de gás como destino, ela deu-lhe a morada da sua casa, onde podia encontrar ajuda se alguma vez dali saísse. Józef Wrona, um civil polaco que trabalhava nos campos a contrato, dissera a Max Drimmer, de quem se tornara amigo, que ouvira uns oficiais das SS falar da necessidade de matar todos os judeus que trabalhassem em Monowitz e oferecera-lhe ajuda. “Consigo tirar-te daqui”, disse-lhe. Sem querer deixar o amigo para trás, Max perguntou-lhe se poderia incluir “Menne” no seu plano de fuga. Durante a breve pausa para o almoço, descreve o diário The New York Times, os dois amigos refugiaram-se num espaço de construção exíguo, dissimulado por materiais de isolamento, que Wrona tinha criado dentro de Monowitz e ali ficaram. Mais tarde, saíram deste esconderijo usando roupas iguais às dos operários externos e dirigiram-se para a vedação de arame farpado do campo, onde o polaco os fez sair no meio dos outros. Fizeram os quase seis quilómetros que os separavam da casa de Wrona, em cujo celeiro ficariam escondidos durante quatro meses. O amigo levava-lhes comida e fazia chegar as cartas de Max à namorada, Herta Zowe. Foi por causa de uma delas — Herta foi revistada por soldados na rua — que a polícia secreta alemã chegou a revistar a casa do polaco. “De onde estávamos ouvíamos as pessoas a falar”, disse Shine ao projecto We Remember Holocaust, falando do dia em que Wrona recebeu a visita intimidante da Gestapo, com os seus cães, procurando os dois homens. “Ele podia ter dito que estávamos ali e não o fez. Com isso arriscou a sua vida e a da sua família. ”Depois deste episódio, os dois homens tiveram de deixar a casa de Wrona e “Menne” lembrou-se da morada de Marianne. Mas o caminho-de-ferro ficava a quase 100 quilómetros e os dois homens não podiam andar tanto, em tempo de guerra, sem documentos. “Max chamou-me louco, mas não tínhamos outra escolha. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Acabaram por chegar à casa daquela que viria a ser sua mulher. A família escondeu-os até que um milionário alemão não-alinhado com os nazis aceitou dar-lhes abrigo. Ficaram sob sua protecção até que os aliados derrotaram a Alemanha em 1945. Herman “Menne” Shine e Max Drimmer casaram com as suas namoradas no ano seguinte numa cerimónia conjunta. Em 1947 emigraram para os Estados Unidos, de acordo com a Jewish Telegraphic Agency. A amizade entre os dois homens, que se manteve até à morte de Drimmer, em 2012, deu origem a um documentário de 2001 que viria a ser actualizado em 2015 – Escape from Auschwitz: Portrait of a Friendship. Max trabalhou como canalizador e padeiro, “Menne” fundou uma empresa de construção que, sem surpresa, se especializou em telhados. Escreve o San Francisco Chronicle que era um homem de negócios de sucesso até se retirar, em 1979. A partir daí, passou a ter mais tempo para a sua Marianne e para o bridge. Não dispensava uma boa partida.
REFERÊNCIAS:
Étnia Judeu
Steven Seagal nomeado enviado especial da Rússia nos EUA
O actor norte-americano, que tem nacionalidade russa desde 2016 e é um assumido apoiante de Vladimir Putin, deverá “facilitar as relações” entre os dois países no campo “humanitário”. (...)

Steven Seagal nomeado enviado especial da Rússia nos EUA
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.178
DATA: 2018-08-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: O actor norte-americano, que tem nacionalidade russa desde 2016 e é um assumido apoiante de Vladimir Putin, deverá “facilitar as relações” entre os dois países no campo “humanitário”.
TEXTO: Steven Seagal, actor de filmes de acção, guitarrista e instrutor de artes marciais, é o novo representante especial da diplomacia russa para as relações com os Estados Unidos “no campo humanitário”, anunciou este sábado o ministério russo dos Negócios Estrangeiros, precisando que a sua missão incluirá ainda a cooperação cultural e artística e a promoção do intercâmbio de jovens entre os dois países. Assumido admirador de Vladimir Putin, a quem elogiou publicamente como “um dos grandes líderes mundiais vivos”, o actor, neto de judeus russos que emigraram para a América, viu ser-lhe atribuída a nacionalidade russa em Novembro de 2016. O apoio de Seagal a Putin, de quem se tornou amigo pessoal, engloba algumas das iniciativas mais polémicas da política externa russa, como a anexação da Crimeia em 2014, que considerou “muito sensata”. Em 2017, alegando razões de segurança nacional, o governo ucraniano informou que o actor estava proibido de entrar no país por um período de cinco anos. No seu próprio país, Steven Seagal tem sido um entusiástico defensor de Donald Trump. Quando o novo presidente ganhou as eleições, publicou imediatamente um tweet a felicitá-lo e a acrescentar que estava “ansioso para ajudar a América a recuperar a sua grandeza”. Esta sua nomeação ao serviço da diplomacia de Putin ocorre num momento em que as investigações do procurador Robert Mueller às alegadas interferências russas nas eleições presidenciais americanas começam a chegar aos círculos mais próximos de Trump. Também produtor e realizador, Seagal, que começou a sua carreira como instrutor de artes marciais, estreou-se como actor em 1988 em Nico – À Margem da Lei, de Andrew Davis, e ganhou notoriedade em 1992 pelo seu papel em A Força em Alerta, do mesmo realizador, onde contracenava com Tommy Lee Jones. Nomeado crónico aos prémios Golden Raspberry (uma paródia dos Óscares) na categoria de pior actor, acabou por nunca ganhar nenhum, mas foi-lhe atribuído o prémio de pior realizador pelo filme Em Terra Selvagem, de 1994. Especialista em papéis de justiceiro solitário, colabora desde 2013 com a empresa russa de armamento ORSIS, que já anunciou o desenvolvimento de uma linha de fuzis que será baptizada com o nome do actor. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Além do seu percurso no cinema, Seagal é também um músico com dois álbuns editados e tem participado em iniciativas de defesa do ambiente e dos direitos dos animais. Budista e apoiante do actual Dalai Lama, foi já acusado de ter subornado o lama Penor Rinpoche, actual representante máximo de uma das mais importantes linhagens do budismo tibetano, para que este o declarasse a reincarnação de um venerado mestre do século XVII. Steven Seagal foi também uma das primeiras estrelas de Hollywood a ser visada por denúncias de assédio sexual na sequência das acusações contra o produtor Harvey Weinstein. Em Novembro de 2017, a actriz Portia de Rossi, cônjuge de Ellen DeGeneres, acusou o actor de a ter assediado durante a audição para um filme. “A minha audição final para um filme de Steven Seagal teve lugar no seu escritório. Ele disse-me quão importante era haver química fora do ecrã e fez-me sentar enquanto abria o fecho das suas calças de cabedal. Fugi e chamei a minha agente, que, imperturbável, respondeu: ‘Bem, não sabia se ele fazia o teu género’”, escreveu a actriz num tweet que DeGeneres depois divulgaria junto dos seus 75 milhões de seguidores. Outras mulheres que acusaram Seagal de comportamentos impróprios foram Juliana Margulies, da série The Good Wife, a modelo Jenny McCarthy e a actriz inglesa e bond girl Rachel Grant, tendo esta última afirmado que o actor a atacara em 2002 num quarto de hotel em Sófia, na Bulgária, onde fora participar numa audição para o filme Liberdade Perdida (2003).
REFERÊNCIAS:
Religiões Budismo
Fronteira, qual fronteira? Damian acorda em Espanha e trabalha em Portugal
A linha que divide os territórios de Portugal e Espanha é a fronteira mais antiga da Europa, mas nunca como hoje ela foi transformada numa linha imaginária para as populações transfronteiriças. (...)

Fronteira, qual fronteira? Damian acorda em Espanha e trabalha em Portugal
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-06-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: A linha que divide os territórios de Portugal e Espanha é a fronteira mais antiga da Europa, mas nunca como hoje ela foi transformada numa linha imaginária para as populações transfronteiriças.
TEXTO: “Os portugueses dão-me muito trabalho”, diz, a sorrir, Damian Gonzalez. É trabalho no bom sentido. Gonzalez, espanhol, de 54 anos, continua a viver na sua terra, Rosal de la Frontera, a cerca de cinco quilómetros de Vila Verde de Ficalho, mas foi um dos primeiros empresários do país vizinho a procurar, em 1996, trabalho em Vila Nova de S. Bento, quando a abertura da fronteira já se tornara uma realidade. Para ele, não era uma terra estranha. Aprendera a conhecê-la contrabandeando toucinho de Espanha para Portugal que o consumia em grandes quantidades. Na volta, levava para o seu país café. Foi desta forma “sempre com o coração aos saltos” que encontrou razões para gostar dos portugueses. Em 1995, o acordo de Schengen entra em vigor em sete países: Alemanha, Bélgica, Espanha, França, Luxemburgo, Países Baixos e Portugal. A partir daquele ano, os viajantes de todas as nacionalidades passaram a poder deslocar-se entre todos estes países sem controlo de passaportes nas fronteiras. O que começou por ser estranho, sobretudo para as populações da raia alentejana que aprenderam a cruzá-la durante séculos com o contrabando às costas ou dissimulado. Hoje está profundamente entranhado o hábito de circular sem barreiras ou constrangimentos. Como se não houvesse países. Damian Gonzalez dedicou-se à transformação de carne de porco alentejano (presuntos, paletas, paios, paiolas, chouriças). Em 2006, ergueu de raiz a sua própria fábrica em Vila Nova de S. Bento. O negócio cresce “devagarinho” mas de forma segura. Começou com 21 pessoas. Agora já dá trabalho a 70, 50 portugueses e 20 espanhóis e cerca de 90% são mulheres. “Vim para Portugal porque, em primeiro lugar, gostava de Portugal e aqui encontrei uma região muito boa para criar porco alentejano. E gostei tanto das pessoas que já estou aqui há 23 anos”, explica ao PÚBLICO, enquanto mostra o espaço onde cria em simultâneo 1500 porcos de raça alentejana na “finca (herdade)” coberta de azinheiras saudáveis, onde se produz a bolota que torna a carne deste tipo de suínos aconselhada por nutricionistas pelo seu baixo teor de gorduras polinsaturadas. Diz que não lhe foi difícil instalar o negócio em Portugal. “Quando cheguei, a Câmara de Serpa deu-me muitas facilidades para abrir a minha empresa em Vila Nova de S. Bento”, freguesia que fica a apenas 15 quilómetros de Rosal de la Frontera. “Disponibilizou-me terreno por um valor muito baixo com a condição de criar postos de trabalho para naturais da terra”. No princípio, sentiu alguns problemas de adaptação dos trabalhadores portugueses ao método de trabalho que procurou aplicar. Em Portugal, o salário da mão-de-obra era muito baixo, tal como o ritmo de trabalho. “Se quiserem ganhar mais têm de produzir como em Espanha, dizia-lhes. Hoje aqui trabalha-se a um ritmo muito bom. Hoje há um equilíbrio maior que não tem nada a ver com o que passava há 20 anos”, acentua. Sai de casa todas as manhãs às 5h30/6h00 e ruma a Portugal. “Se fechassem a fronteira a minha vida seria bastante mais complicada”, observa Damian Gonzalez. “Só o facto de podermos passar ao longo das 24 horas de cada dia, de um lado para o outro, sem restrições e sem controlo burocrático, é uma enorme vantagem. De outra forma ficávamos retidos na nossa terra”, acrescenta. O contrabando voltava a ser a enxada de trabalho, das populações da raia. As regiões transfronteiriças são, com algumas excepções, espaços rurais e agrícolas marginais, onde aconteceram raras mudanças estruturais e produtivas e insuficiente diversificação de actividades e fontes de rendimento. A livre circulação de fronteiras a que se seguiu a construção da barragem do Alqueva abriu as portas ao investimento espanhol. Damian Gonzalez refere que “muitos vieram para o Alentejo, por ter melhores condições de negócio que não tinham em Espanha” pesem embora as queixas sobre a complexidade burocrática que atrasa a materialização de projectos. Seja como for, o Anuário Agrícola de Alqueva, relativo a 2018, revela o peso do investimento espanhol que é de 7% no milho, na produção frutícola já chega aos 21%, enquanto o olival tem vindo a registar uma quebra acentuada para se situar nos 35% da área plantada, e no amendoal cobre 69% da área coberta por esta cultura que está em crescimento acelerado. “Em Espanha sinto-me em Portugal”Damian Gonzalez é um dos muitos trabalhadores que todos os dias atravessam a fronteira para exercer a sua actividade. Trabalha noutro país sem ser propriamente um deslocado uma vez que a distância é curta, o que lhe permite manter residência em Espanha. Em toda a Europa, os trabalhadores deslocados são cerca de 1, 8 milhões de pessoas. Em 2017 foram de Portugal para Espanha 9. 038 trabalhadores, o 5º país na preferência dos portugueses que continua a ser liderado pela Inglaterra com 22. 622 portugueses. Em sentido inverso o nosso país acolheu 84 mil trabalhadores residentes estrangeiros em 2017. Mas há portugueses que atravessam a fronteira todos os dias. E, perante esta realidade, imaginar o regresso de uma fronteira física que impusesse a obrigatoriedade de apresentar passaporte, parar para que os carros fossem revistados como antigamente, antes de Portugal entrar na União Europeia, causaria muitos constrangimentos. O que é leva um jovem de 37 anos “bom rapaz, nascido e criado em Vila Verde de Ficalho” a optar por trabalhar no Rosal de la Frontera? “Gosto muito de Espanha, onde estou como em minha casa”, justifica Carlos Alberto Veredas que desenvolve a sua actividade profissional na comercialização de carnes na região de Andaluzia, sobretudo em Huelva, Sevilha e também em parte do Algarve. Sai de casa todos os dias cerca das 7h00 e regressa por vezes às 22h00. “Somos um povo fronteiriço e, logo em criança, aprendi a língua espanhola que hoje falo muito bem”, sublinha Carlos Veredas. Apesar dos seus 37 anos, ainda se recorda das fronteiras (portuguesa e espanhola) que obrigavam as pessoas a longas horas de espera, quando o seu propósito era apenas comprar alimentos no Rosal, ou frequentar uma festa ou uma romaria na povoação espanhola. “E tínhamos medo do que comprávamos”, frisa o jovem. Nunca sabiam se o que levavam era passível de “apreensão, multa ou até prisão, para além do dinheiro que se gastava nas compras”, recorda. Comparativamente, os anos de convívio diário com o povo do Rosal onde trabalha “é o mesmo que viver em Portugal”. A realidade vivida diz-lhe que “são pessoas espectaculares. Estou como se estivesse em casa”. É um sentimento comum a todos os povos que são vizinhos na fronteira, que perceberam as vantagens que a livre circulação trouxe para as suas vidas. Damian pode investir em Portugal e Carlos pode trabalhar em Espanha. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Também há desvantagens e o jovem de Ficalho não as escamoteia. “Temos o tráfico de droga e de pessoas que está muito facilitado porque ninguém controla”, critica, comparando a realidade das últimas duas décadas com a que vivia quando as fronteiras eram controladas. Havia um horário de passagem que no verão era das 8h00 às 24h e no inverno até às 22h00. Após o encerramento, já não se podia passar. O Relatório da Emigração de 2017, elaborado pelo Observatório da Emigração, regista uma continuada tendência na entrada de portugueses em Espanha que está a crescer sustentadamente desde 2014. Em 2017, chegaram mais cerca de nove mil portugueses, que faz do país vizinho o quinto que mais merece a preferência dos portugueses. No total, há quase 100 mil portugueses a viver em Espanha onde se encontram 1, 4 milhões de trabalhadores estrangeiros. Na Alemanha residem 3, 4 milhões de emigrantes e no Reino Unido 2, 6 milhões. A circulação de pessoas na União Europeia está a enfrentar um período conturbado, sendo cada vez mais frequentes os apelos ao fecho de fronteiras. Carlos Veredas estranharia que a voltassem a fechar. “Habituamo-nos de tal maneira a tê-la aberta que já faz parte do nosso modo de estar”, observa. “Já imaginou a imposição de um horário para abertura e fecho da fronteira, quando, no meu caso, por vezes, saio para o Rosal às 5h00? Não o poderia fazer”.
REFERÊNCIAS:
No Doclisboa, o passado (não) foi lá atrás
Histórias e tradições, da Argentina à Suíça, de Portugal ao Brasil, em alguns dos filmes mais merecedores de atenção no concurso do festival lisboeta. (...)

No Doclisboa, o passado (não) foi lá atrás
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.12
DATA: 2018-10-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: Histórias e tradições, da Argentina à Suíça, de Portugal ao Brasil, em alguns dos filmes mais merecedores de atenção no concurso do festival lisboeta.
TEXTO: Algures nas Pampas argentinas, há um povoado esquecido do qual apenas restam uma estação de comboios, reconvertida em alojamento local, e objectos resgatados à terra como fósseis de outras eras – pedaços de pratos, copos, taças. Não são achados de uma qualquer cultura indígena milenar, porque as culturas indígenas milenares não tinham frascos de medicamentos; são o que ficou de Mariano Miró, uma pequena aldeia estabelecida por imigrantes italianos que rumaram às Pampas para desbravar e semear terras virgens, e que desapareceu ao fim de mais ou menos dez anos, por volta de 1910. A lição de Miró. Las huellas del olvido, uma das mais fascinantes propostas do concurso internacional do Doclisboa 2018 (Culturgest, quarta-feira, dia 24, às 19h; e sexta-feira, dia 26, às 14h), é muito simples: não vale a pena ter ilusões, o tempo encarregar-se-á de transformar em pó tudo aquilo em que acreditamos. A argentina Franca González, natural da região, decidiu-se a trazer à luz a breve história de Mariano Miró. O seu filme é uma investigação arqueológica da história das Pampas, com a diferença de que não estamos aqui a buscar fósseis de outros séculos mas sim a resolver o quebra-cabeças de uma aldeia que se ergueu, desabrochou e morreu faz agora cem anos. Miró é uma história da conquista do Oeste compactada em apenas dez anos – os imigrantes piemonteses como pioneiros desbravadores do Oeste Selvagem, lutando por uma vida melhor num local inóspito, sucumbindo à pressão dos latifundiários e dos barões das terras que acabam por expulsá-los e por tornar Miró numa aldeia-fantasma. Ao mesmo tempo, é um relato de imigração, das desigualdades sociais no início do século XX, do estatuto de segunda classe dos imigrantes gringos. Miró tem um problema, que é querer meter muita coisa num só filme sem ter tempo para isso; mas faz muito com o que tem, e fá-lo dentro de uma lógica mais ou menos tradicional do documentário, com inteligência e desenvoltura. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Se Miró fala do que foi e já não é, a curta que lhe serve de complemento (nas mesmas sessões), a brasileira Maré, fala do que foi e ainda é: no caso, uma comunidade quilombala do Recôncavo da Bahia, onde Amaranta César, professora de cinema, encena a história de duas meninas da aldeia que vão pelo manguezal apanhando marisco e acabam apanhadas pelo encher da maré. Patrícia e Diguinha deviam estar na escola, porque a mãe lhes quer dar armas para sobreviverem sem terem de se “humilhar em casa de mulher branca”, mas a atracção da lama é irresistível. O resultado remete-nos para o cinema de Gabriel Mascaro ou para o excelente Cocote, de Nelson Arias, no modo como o registo documental das tradições e canções quilombalas e a ficção inspirada pela realidade se cruzam e contaminam para criar um olhar bruto e puro sobre a tradição e a ancestralidade. Duas outras propostas portuguesas percorrem também os caminhos da história. Na curta Vacas e Rainhas (São Jorge, quarta-feira, dia 24, às 18h45; e Culturgest, sábado, dia 26, às 16h15), Laura Marques regista a sua experiência como pastora de vacas nos Alpes suíços, inscrita numa tradição de longa data que vê os criadores locais elegerem anualmente a “rainha das vacas”. O prazer do filme está no modo como a própria realizadora está ao mesmo tempo dentro e fora dela, através de um olhar e de uma câmara que registam, com humor e bonomia, a sua própria aprendizagem de uma tradição que só de fora parece estranha. E Terra, da dupla Hiroatsu Suzuki e Rossana Torres (Culturgest, quarta-feira, dia 24, às 21h30; e São Jorge, sexta-feira, dia 26, às 14h), é um belo objecto contemplativo sobre o quotidiano de um carvoeiro alentejano que ainda produz carvão de forma tradicional em fornos artesanais, espécie de formigueiros gigantes que soltam nuvens de fumo enquanto a madeira no seu interior arde. Nada parece acontecer, porque tudo se passa no interior dos fornos; resta-nos observar pacientemente a natureza do vale do Guadiana, os caçadores que vão passando, as nuvens de fumo que saem hipnoticamente dos fornos, tudo enquadrado e filmado com uma cativante plasticidade zen. Terra tem uma enorme mais-valia, que é a capacidade de usar apenas a sua imagem para contar uma história: tudo o que é preciso saber sobre a vida do carvoeiro está aqui, sem precisar de palavras, e o filme explica-a com infinita elegância. O passado continua presente.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave escola imigração cultura mulher rainha comunidade espécie