Portas “humilde” recusa assumir meta dos dois dígitos
Pouco depois de ter começado a percorrer as ruas da baixa de Faro, Portas parece ter ganho o dia de campanha: num café encontrou uma militante do PSD que disse ir votar CDS-PP no domingo. Deu-lhe uma caneta, autografou um panfleto, e parou para ouvir a explicação. “Não gosto de quem está à frente do PSD”, disse a nova eleitora centrista. Apesar do incentivo, o líder centrista não quis assumir a meta eleitoral dos dois dígitos e pediu humildade. Logo de manhã, ainda antes de sair à rua no centro de Faro, no final de uma visita à Cooperativa Agrícola de Citricultores do Algarve, Portas recusou traduzir o objectivo ... (etc.)

Portas “humilde” recusa assumir meta dos dois dígitos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.2
DATA: 2009-09-25 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20090925020500/http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1402268
TEXTO: Pouco depois de ter começado a percorrer as ruas da baixa de Faro, Portas parece ter ganho o dia de campanha: num café encontrou uma militante do PSD que disse ir votar CDS-PP no domingo. Deu-lhe uma caneta, autografou um panfleto, e parou para ouvir a explicação. “Não gosto de quem está à frente do PSD”, disse a nova eleitora centrista. Apesar do incentivo, o líder centrista não quis assumir a meta eleitoral dos dois dígitos e pediu humildade. Logo de manhã, ainda antes de sair à rua no centro de Faro, no final de uma visita à Cooperativa Agrícola de Citricultores do Algarve, Portas recusou traduzir o objectivo do resultado eleitoral em números. “Acho que se deve ser humilde, o povo é que sabe. O apelo que eu faço é que quem concorda connosco venha daí”, disse. Já no número de deputados que pode vir a eleger, Portas mostra-se mais ambicioso: “Com um pouco mais de votação, o CDS pode eleger um quinto deputado por Lisboa, um segundo por Aveiro, um terceiro por Braga, e um por Faro e Coimbra”. Simbólico também das acções de rua que tem feito desde Julho foi o reencontro numa esplanada com quatro mulheres farenses que Portas reconheceu e até apontou a mesa onde se encontravam sentadas na outra visita. Com passo acelerado, o líder centrista baralha os percursos já traçados pelos dirigentes locais. “Assim falamos com mais gente”, disse, indicando o caminho a seguir, e sem se furtar a falar em espanhol ou inglês com os turistas que encontra. À tarde, o CDS-PP escolheu o ponto turístico da Herdade da Malhadinha Nova (cooperativa e hotel), perto de Castro Verde, para assinalar a sua única passagem pelo Alentejo em toda a campanha. E foi entre um copo de vinho e aperitivos que Portas comentou as sondagens. No caso da Intercampus, a projecção empurra o CDS para o último lugar entre as forças políticas. Mas nem isso parece desanima-lo. “Até dá o CDS a subir. A mesma empresa deu 3, 5 por cento a dois dias das eleições, nem elegíamos ninguém, agora dá mais de sete, imagine até onde vamos”, disse, desvalorizando sempre os números. “O CDS está a subir em todo o lado e – pasme-se – até nas sondagens”, acrescentou. Paulo Portas começou o dia de campanha a ser confrontado com uma notícia sobre a decisão do Tribunal Administrativo dos Açores que condenou o Estado português por omissão na fiscalização aos barcos de pesca espanhóis que entravam na zona económica exclusiva. O líder centrista rejeitou responsabilidades, lembrando que só foi ministro dos Assuntos do Mar a partir de Agosto de 2004. Desde ontem que o CDS-PP pôs a circular um SMS com um apelo directo ao voto para pôr o partido “à frente do BE e do PC”. Assinada por Paulo Portas, a mensagem escrita foi enviada para 20 mil militantes e simpatizantes e pede para se reenviar o texto a 20 pessoas.
REFERÊNCIAS:
Partidos PSD BE
A Hungria, as migrações e os direitos humanos
O posicionamento do governo húngaro face aos refugiados e os migrantes é chocante. (...)

A Hungria, as migrações e os direitos humanos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Refugiados Pontuação: 14 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O posicionamento do governo húngaro face aos refugiados e os migrantes é chocante.
TEXTO: As autoridades húngaras mostram com sobranceria a sua satisfação por serem o país liderante na rejeição dos migrantes e refugiados. Sentem-se hoje mais à vontade, porque já não estão sozinhas. São seguidas na rejeição dos migrantes pelos países de Visegrado e por outros como a Itália, neste caso de forma igualmente radical e como um ato de propaganda permanente, pela ação de Matteo Salvini. O governo húngaro sente-se assim cada vez mais confiante, como o demonstra a forma como afronta a União Europeia e os seus valores e como tem produzido legislação cada vez mais insensível aos direitos humanos. Esta atitude revela uma chocante falta de humanidade e um cinismo desconcertante no que respeita à forma como as autoridades húngaras lidam com os refugiados e os migrantes. A Hungria assume sem nenhum pejo que trocou os direitos humanos pela segurança interna, não obstante não sofrer agora qualquer pressão das correntes migratórias. Sob a autoridade do primeiro-ministro nacionalista Viktor Orbán, começaram por reprimir duramente os migrantes em 2015, quando os fluxos migratórios se intensificaram, e continuaram depois a utilizar essas imagens como forma de propaganda. Desde então, o número de refugiados autorizados a entrar nas zonas de trânsito, em média diária, reduziu-se de 20 para dez em 2016, para cinco em 2017 e apenas um desde janeiro de 2018, não por generosidade, mas mais como exemplo para que outros não tenham a ideia de querer entrar na Hungria, uma vez que, desde julho deste ano, todos os pedidos de asilo passaram a ser recusados. No entanto, apesar de não haver qualquer hipótese de migrantes/refugiados entrarem hoje na Hungria devido às vedações com arame farpado e zonas de segurança junto à fronteira com outros países, como a Sérvia e a Croácia, nem mesmo assim deixaram de voltar a prolongar até março de 2019 aquilo a que chamam "o estado de emergência devido à emigração em massa”, ironia que permite às autoridades húngaras repelir para fora das suas fronteiras os migrantes que tentam chegar ao país, sem qualquer respeito pelos princípios humanitários ou regras do direito internacional, e aprovar todo o tipo de legislação repressiva. Oficialmente, a Hungria garante que ninguém fica em detenção na zona de trânsito de Röszke, na fronteira húngara junto à Sérvia, e que os refugiados até são livres de deixar o campo se quiserem, tal como acontece com o outro campo existente, em Tompa. Porém, não foi nada disso que observou a delegação que integrei da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa que visitou Röszke no âmbito de uma campanha para acabar com a detenção de menores migrantes não acompanhados. As autoridades húngaras afirmam que na zona estão 78 refugiados, mas esse número não é fiável, como não o são outras informações fornecidas. A verdade é que aquela zona de trânsito é uma verdadeira prisão, com um ambiente opressivo, deprimente e fortemente policiado. Está totalmente fortificada e protegida com linhas duplas de arame farpado em redor de todo o campo e até em cima dos contentores onde estão algumas famílias de refugiados, confinadas a espaços entre 25 e 40 m2. Para irem de umas instalações para outras dentro do campo, só o podem fazer acompanhados pela polícia. Os menores afegãos que a delegação encontrou, dois com 14 anos e um com 16, disseram que eram tratados como animais. Um deles tinha sinais de automutilação nos braços e uma revolta incontida quando falava. Outro começou a chorar compulsivamente, dizendo que só queria um pouco de liberdade e que precisava do abraço da família. Este jovem foi separado na fronteira do irmão mais velho com quem fez a travessia e agora não sabe onde se encontra. Embora as autoridades húngaras afirmem que a média de permanência na zona de trânsito é de 46 dias, este jovem afegão já está em Röszke há seis meses. As autoridades húngaras consideram que, ao contrário do que dizem as Nações Unidas, as migrações são uma coisa má por serem uma fonte de problemas, sobretudo se os migrantes forem muçulmanos, o que facilmente evoca o eterno conflito étnico e religioso que sempre assolou a região próxima dos Balcãs. Então optam por tentar resolver cinicamente o problema à sua maneira, designadamente através de acordos com a Turquia para que fique com os migrantes porque, dizem, fica mais barato, ou apoiando a reconstrução de escolas, hospitais, orfanatos e igrejas nos países de origem da emigração, como por exemplo, na Síria. E assumem despudoradamente que estas ações fazem parte da sua postura solidária com a União Europeia, juntamente com os milhões que gastam no reforço das fronteiras externas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Já no que diz respeito às ONG que trabalhavam no domínio das migrações, pedidos de asilo e integração, o governo cortou, entretanto, todo o financiamento e foi criado um novo estatuto que passa a considerar crime qualquer tipo de apoio à imigração ilegal, por menor que seja. O posicionamento do governo húngaro é chocante, porque denota uma total indiferença perante a sorte de milhares de pessoas que fogem da guerra, da violência, da perseguição e da miséria. Muitos milhares delas são pessoas vulneráveis, como crianças e jovens não acompanhados, mulheres e idosos. Esta postura entra claramente em choque com as preocupações humanitárias que as migrações exigem e com os princípios humanistas da União Europeia à qual a Hungria aderiu em 2004. Não admira, por isso, que recentemente o Parlamento Europeu tenha aprovado de forma inédita a instauração à Hungria de um procedimento disciplinar por violação grave dos valores europeus, particularmente em domínios como as migrações e o Estado de Direito. Deputado do PSO autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave crime direitos guerra humanos violência imigração campo prisão violação mulheres perseguição ilegal
Criados para aquilo que não podem ou não querem ser
Qualquer classificação geracional uniformiza o diverso, mas ajuda a perceber o que é comum. Os que nasceram entre 1965 e 1981 viveram “uma promessa de estabilidade” e agora lidam com a incerteza, sob forte pressão para terem filhos e serem perfeitos nesse papel. Este é o segundo de cinco textos publicados ao domingo sobre as diferentes gerações. (...)

Criados para aquilo que não podem ou não querem ser
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2014-08-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Qualquer classificação geracional uniformiza o diverso, mas ajuda a perceber o que é comum. Os que nasceram entre 1965 e 1981 viveram “uma promessa de estabilidade” e agora lidam com a incerteza, sob forte pressão para terem filhos e serem perfeitos nesse papel. Este é o segundo de cinco textos publicados ao domingo sobre as diferentes gerações.
TEXTO: Silvana Mota Ribeiro conta 40 anos e namora há dez. Se usar um vestido largo, uma suspeita propaga-se no seu local de trabalho — a Universidade do Minho. Da última vez, perguntou-lhe uma sorridente funcionária: “A senhora professora está de esperanças?” Ela arregalou muito os olhos, como lhe acontece sempre que fica horrorizada com qualquer coisa: “Tenho esperança de não estar!”Portugal atingiu a mais baixa taxa de natalidade da União Europeia. É forte a pressão para ter filhos, mas aquela a que os americanos chamaram Geração X — a dos que nasceram de 1965 a 1981, ou mesmo a 82, 83, 84, conforme os estudiosos — nunca se rendeu por completo à parentalidade. Desde que os primeiros atingiram a maioridade, Portugal deixou de fazer renovação geracional. O país da infância de Silvana era outro. As crianças ficavam entregues a si próprias sem que aí se visse negligência paterna. Brincavam na rua com cordas, bolas, bicicletas e carrinhos de rolamentos. No fim do dia e no fim da semana, assistiam aos mesmos desenhos animados — a Heidi, o Marco, o Conan, o Tom Sawyer, o Calimero, o D’Artacão e os Três Moscãoteiros. Só havia RTP. Experimentaram o videoclipe. Imitaram estrelas Pop. Não era fácil chegar às alternativas. Quem podia encomendava discos e gravava cassetes aos amigos. A espera era muita. A dificuldade de acesso só ajudava a intensificar a relação com a música. Havia tempo para a idolatração. À boleia do alargamento da escolarização e das classes médias, desenvolviam-se diversas culturas juvenis. Portugal não é de inventar rótulos geracionais, prefere reproduzir os internacionais, mas tem as suas originalidades. E, há 20 anos, sem querer, o jornalista Vicente Jorge Silva cunhou esta geração. Depois de ver fotografias de estudantes do secundário a mostrar o rabo e o pénis num protesto, era Manuela Ferreira Leite ministra da Educação, assinou no PÚBLICO o editorial “geração rasca”. Naquelas imagens via um sintoma de “vazio de valores”, de “apetência alarve pela vulgaridade”. A cena que indignou Vicente Jorge Silva era um remake. Um ano antes, no Centro Cultural de Belém, quatro rapazes tinham mostrado o rabo, com a frase “não pago” pintada, ao inventor das propinas, o ministro Couto dos Santos. Havia um ambiente geral de insatisfação, recorda um desses rapazes, Luís Branco, agora com 40 anos, a editar o Esquerda. Net, site do Bloco de Esquerda. “Era o desgaste do Cavaquismo. ”Os estudantes tinham tomado a rua. Primeiro, contra a Prova Geral de Acesso ao ensino superior, um exame de língua portuguesa e de cultura geral, encarada como uma forma de favorecer as classes altas. A seguir contra as propinas, em defesa do ensino “tendencialmente gratuito”. Depois, contra as provas globais. E não faltava eco. Entre 1989 e 1993, apareceram a TSF, o PÚBLICO, a SIC e a TVI. Apregoava-se que não seria pela indústria, pela agricultura ou pela pesca que Portugal se tornaria competitivo. Havia uma crença inabalável na educação como factor de ascensão social. Entre 1984 e 1994 o número de inscritos nas universidades e politécnicos passara de 95 mil para quase 270 mil. A menos que se tivesse dinheiro, a entrada no ensino superior exigia esforço. As vagas não davam para todos. Luís Branco perdera o pai aos sete anos. Filho de uma funcionária dos correios, estudava Comunicação Social na Nova de Lisboa. As suas lutas pouco interessavam a Abel Humberto, filho de um técnico de farmácia e de uma doméstica, que aos 17 anos começara a despejar cinzeiros, a apanhar toalhas e a lavar cabeças e na altura dos protestos estudantis já ganhava “bom dinheiro” a cortar e a pentear cabelos. Eram colossais os fundos comunitários destinados a modernizar a economia. Entre 1986 e 2001, o PIB cresceu a uma taxa média anual de 3, 9% e essa abundância relativa enchia restaurantes e cabeleireiros. “Havia o hábito de ir arranjar o cabelo para o fim-de-semana”, recorda Abel, agora com 43 anos. Emigrava-se menos. E a vaga de imigração ajudava a insuflar a auto-estima nacional. “Somos a geração da esperança na bandeira azul com estrelinhas amarelas”, resume Silvana Mota Ribeiro. A televisão passava muitos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria. “E se URSS e EUA se passam? Estamos aqui no meio!” Havia muros reais e muralhas imaginárias a separar países desavindos. A CEE não era só um símbolo de consumo, também de paz, de solidariedade, de igualdade. Muitos lembrar-se-ão da queda do muro de Berlim em 1989 e da abertura de fronteiras em 1995. Quem podia, metia-se num comboio e ia ver. O InterRail, embora caro, era a opção “baixo custo”. E voltava bem a tempo de arranjar emprego. “Geração interrompida”O sociólogo João Teixeira Lopes, a celebrar 45 anos dentro de dias, usa a expressão “geração interrompida”: “Viveu uma promessa de estabilidade. Conseguiu ter pequenas margens de conforto. Foi apanhada pela crise numa idade em que, num instante, se pode tornar obsoleta, descartável. ”O tempo é de sobrecarga fiscal, cortes salariais, elevada taxa de desemprego, recuo na protecção social. “As dificuldades económicas trouxeram ao de cima dificuldades relacionais”, prossegue Teixeira Lopes. E, mesmo assim, pela primeira vez desde o 25 de Abril de 1974, o número de divórcios baixou. Muitos têm filhos e “ficam em pânico quando chega o envelope do gás ou da electricidade”. Não cresceram mentalizados para o sacrifício como os pais, amiúde focados na sobrevivência. Nem estão preparados para enfrentar a precariedade, como a geração seguinte, que nada mais conhece. “É uma luta do caraças”, suspira a técnica psicossocial Inácia Cruz, de 37 anos. “Primeiro, já temos alguma idade. Depois, mistura-se o que imaginamos com o que conseguimos. ”Trabalhou com crianças e jovens de bairros periféricos, mães adolescentes, doentes mentais, sem-abrigo e, um dia, percebeu-se desempregada, extenuada, descomprometida com a sua vida pessoal. Recompôs-se. Faz oficinas criativas, dinamiza jogos teatrais, é contadora de histórias, mas ainda não consegue viver só do seu trabalho, acha que ainda não encontrou forma de o promover, como fazem os amigos mais novos. E dá por si a viver num quarto arrendado e a socorrer-se da mãe. Inácia acredita que “é possível viver dos sonhos”, mas todos os dias sente o quanto isso custa. Gostava de perceber para onde tudo isto a leva. Por vezes, pergunta-se: “Onde estarei daqui a cinco anos? Gostava de ter um espaço para trabalhar na educação pela arte, um companheiro tranquilo no compromisso, filhos. É muito difícil…” Sem estabilidade, tudo se adia, tudo, até o amor. Tem “não relações” ou “relações não convencionais”. A forma de encarar o amor diversificou-se. Discursos tradicionais e progressistas misturam-se, sobrepõem-se, até dentro da mesma pessoa. Enquanto socióloga dos estilos de vida, Silvana Mota Ribeiro procura tendências e uma parece-lhe evidente: “Esta geração tem muito mais escolha do que a anterior”. “Quantas pessoas agora têm uma relação estável com alguém que mora noutro país?”, exemplifica. “As pessoas encontram-se voando. A relação à distância já não é um absurdo, uma coisa da emigração, do tempo em que os homens iam e as mulheres ficavam. ”Os pais de Silvana ainda a imaginaram a chegar virgem ao casamento — era isso que se esperava das raparigas —, mas ela, como muitas mulheres da idade dela, não pensa em casamento e nunca se sentiu “uma atrevida” por meter conversa com um rapaz que lhe despertasse interesse numa festa. “A minha geração desenvolveu o que era ainda um discurso em potência em meados dos anos 80. Tomou em mão o dar o primeiro passo, o primeiro beijo. ”“Não és uma mulher completa!”Vulgarizou-se o divórcio, a união de facto, a família recomposta, legalizou-se o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. E, apesar disso tudo, o “modelo ideal” resiste: um homem e uma mulher entendidos como diferentes e complementares. E, mal se casam, começa a pergunta: “Então, quando têm um filho?”A pressão não é igual para homens e para mulheres e isso, defende Silvana Mota Ribeiro, não tem só a ver com relógio biológico. Se o homem disser que um bebé é uma maçada, que prejudica a carreira, tolera-se. Se for a mulher, nem pensar. A mulher continua a ser vista como cuidadora. “Não és uma mulher completa!”, dir-lhe-ão. “E depois? Quem vai cuidar de ti quando fores velha?”Uma mulher tem de apresentar uma razão externa — é infértil, não tem companheiro, o emprego fica em risco. Não chega dizer: “Não quero. ” Silvana diz. E ao fim de tantos anos a mãe dela ainda lhe pergunta: “Mas isso é para sempre? Não pensas em ter um dia?” E ela responde-lhe: “Se calhar não. Estou bem assim. Por que hei-de mudar, se estou bem assim?” E a mãe começa a falar nas alegrias da maternidade. “Ai, o que estás a perder! Sabes lá que é ser mãe. É uma coisa superior a tudo. Vais arrepender-te. Olha que o tempo passa. Já tens 40 anos!”Fala na sua opção com cuidado, sobretudo com amigas que sabe pressionadas para serem “mães perfeitas”. Sabe que o seu discurso tende a ser mal percebido. E não quer que a vejam como carreirista, egoísta, sem amor para dar. “Quando tens um filho, nunca mais és independente”, diz. “Isto é uma coisa muito grande para perder. Tens uma criança e és responsável por ela para sempre. Nunca mais tens a tua vida só para ti. Não podes partir. Não te podes fazer ao mundo. ”A Geração X não desistiu de ter filhos. Tem cada vez menos e cada vez mais tarde. Segundo o último Inquérito à Fecundidade, a maior parte gostaria de ter duas crianças, mas acaba por ter uma. Foi-se alargando a escolarização, atrasando a entrada no mercado laboral, precarizando a relação com o trabalho e às costas da mulher continuou o grosso do trabalho doméstico. Já não é como na geração anterior, mas na maior parte das vezes ainda são elas que cozinham, limpam, tratam da roupa. Poucos homens gozam a licença de parentalidade para lá do obrigatório. O lugar dos fraldários é nas casas de banho das mulheres. Isso nunca foi um problema com que Abel se deparasse. Deixava isso aos cuidados da mãe do filho, agora com cinco anos, que só vê de 15 em 15 dias. Luís Branco, de certo modo um dos ícones da “geração rasca”, tem uma filha de nove meses e uma enteada de nove anos e não tem conta às fraldas que mudou. Compete-lhe dar banho à menina e adormecê-la todas as noites. Ele trata do jantar e da louça e a companheira trata da roupa. A mulher-a-dias trata do resto. Nem só por vontade masculina a paridade assume contornos de história de excepção. Como mostram os estudos da socióloga Margarida Mesquita, com maior frequência os homens trabalham por turnos, trabalham mais horas, têm dois trabalhos. O “novo pai” também sente culpa por ter pouco tempo para os filhos e, por vezes, só não participa mais porque a mulher não deixa. “Se um [filho] ficar doente, só confio em mim”, ri-se a dramaturga, encenadora e actriz Marta Freitas. Tem duas crianças de 11 e 9 anos. “Acho que os pais estão num desequilíbrio muito grande em relação a forma como são pais. Têm de trabalhar muito e querem muito estar presentes e acabam por interferir demais. ” Faz parte da associação de pais. Vê como alguns afrontam professores porque querem mais trabalhos de casa, menos trabalhos de casa, zero trabalhos de casa. “Acho que minha geração levou uma chicotada”, resume aquela profissional do teatro, que antes estudou psicologia clínica. “Vive uma mudança muito grande. As perturbações de ansiedade — os ansiolíticos, os antidepressivos — têm muito a ver com isso. Estávamos habituados a perceber a vida de uma forma muito linear. Não havia esta azáfama. Parece que está tudo em causa. As pessoas têm medo. Parece que virou tudo ao contrário. O que aprendeste como filha já não podes transmitir aos teus filhos porque esse mundo já não existe. ”Sem a retaguarda familiar que existia noutros tempos, pressionada para trabalhar cada vez mais horas por cada vez menos dinheiro, muitos arrastam os filhos de actividade em actividade. Nesta ânsia de querer preparar os filhos para tudo, e já com os pais a precisar de apoio, parte da Geração X vai-se esquecendo de si própria. Notícia corrigida às 15h12: quatro rapazes mostraram o rabo ao ministro Couto dos Santos, não na Universidade Nova, como inicialmente estava escrito, mas no Centro Cultural de Belém. 1. º texto desta sérieGERAÇÃO 45-64: Vinte anos para gozar a vida de reformado
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
"Rosita" e o império como objecto de desejo
Na fronteira ténue entre o espectáculo e a antropologia, a cultura popular e a cultura científica, os zoos humanos serviram diferentes discursos coloniais. Expuseram também práticas de um racismo e de um sexismo que hoje subsistem sob outros formatosOs "jardins zoológicos humanos" foram um fenómeno muito popular, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, entre 1840 e 1940. Consistiam em grupos de "selvagens" ou "nativos", como eram designados, expostos em jardins zoológicos, jardins de aclimatação, exposições universais e coloniais ou circos itinerantes. O contexto colonial europeu deste período foi especialmente... (etc.)

"Rosita" e o império como objecto de desejo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-08-27 | Jornal Público
TEXTO: Na fronteira ténue entre o espectáculo e a antropologia, a cultura popular e a cultura científica, os zoos humanos serviram diferentes discursos coloniais. Expuseram também práticas de um racismo e de um sexismo que hoje subsistem sob outros formatosOs "jardins zoológicos humanos" foram um fenómeno muito popular, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, entre 1840 e 1940. Consistiam em grupos de "selvagens" ou "nativos", como eram designados, expostos em jardins zoológicos, jardins de aclimatação, exposições universais e coloniais ou circos itinerantes. O contexto colonial europeu deste período foi especialmente propício a estes eventos e foram poucas as vozes contemporâneas que os condenaram. "Vieram à exposição mais de um milhão de portugueses. Muitos - possivelmente a maioria - vieram em ar de festa, com o mesmo espírito alegre e descuidado com que vão ao arraial e ao teatro, aos touros e ao futebol. Diziam alguns: vamos ver os pretos!" Um ano depois da primeira (e última) Exposição Colonial Portuguesa, que teve lugar no Porto em 1934, fazia-se o balanço, positivo, do evento. Um álbum comemorativo publicado em 1935 descrevia a exposição e o sucesso alcançado entre os públicos de "todas as classes". Tinham sido atraídos pelas novidades - sobretudo a encenação de uma aldeia de "indígenas guineenses" -, mas tinham acabado "comovidos" e "orgulhosos" dos feitos coloniais portugueses que ali se tornaram visíveis através das mais variadas tecnologias expositivas e visuais. O jardim do Palácio de Cristal, da mais industrial das cidades portuguesas, fora temporariamente ocupado por reproduções de monumentos de Goa e de Macau, exemplares da fauna africana, cinema com exibição de filmes sobre as colónias, desfiles militares com soldados moçambicanos, a banda militar de soldados angolanos, uma livraria destinada à venda e propaganda de livros coloniais, a mostra industrial com 600 expositores - incluindo produtos portugueses de interesse para o mercado colonial, produtos coloniais passíveis de interesse metropolitano, e muitas outras exposições, a mostrar artesanato africano ou os resultados mais recentes da colonização portuguesa, na área da educação, transportes ou medicina. Entre esta multiplicidade de exibições - em que ainda acrescia o divertimento de uma feira popular e um comboio para que o público não se cansasse da viagem entre Angola e Moçambique -, as "representações etnográficas" acabaram por ser as mais populares. Em 1933, o ministro das colónias, Armindo Monteiro, escrevera uma carta a todos os governadores das colónias portuguesas a pedir-lhes que enviassem para o Porto os "seus nativos" para serem alojados "em aldeia ou habitações típicas". Trezentos e vinte e quatro mulheres, homens e também crianças, provenientes de Cabo Verde, Guiné, Angola, Moçambique, Índia, Macau e Timor, estiveram expostos no Porto. Entre eles, o grupo de balantas da Guiné-Bissau foi o mais fotografado pela câmara oficial de Domingos Alvão. Os seus retratos foram dos mais reproduzidos nos populares postais fotográficos que se compravam como souvenirs, bem como os que mais atenção mereceram da parte da imprensa, que multiplicou os públicos da exposição com a sua cobertura exaustiva do evento. A Exposição Colonial Portuguesa de 1934 foi emblemática de uma nova fase do colonialismo português - mais centrado em África, interessado na emigração de portugueses para territórios africanos, e empenhado em afirma-se numa Europa também ela colonizadora. O modelo adoptado pela iniciativa portuense, tanto pela inspiração estética como ideológica, fora em parte o da Exposition Coloniale de Paris em 1931. Numa ilha no meio de um lago, onde uma fonte luminosa vinha dar um toque de modernidade, qual metáfora do empreendimento português em África, instalaram-se umas dezenas de guineenses, que viviam o seu quotidiano numa aldeia de palhotas, sob o olhar dos visitantes portugueses. O público da exposição podia assim ocupar, mesmo que temporariamente, o olhar e o lugar do colonizador. Um colonizador que, na segurança oferecida por um parque no centro do Porto, podia já beneficiar dos resultados das "campanhas de pacificação" em África. Mesmo a da Guiné-Bissau, uma das mais tardias. Assim designadas pelos portugueses porque visavam eliminar a resistência africana à ocupação portuguesa, estas campanhas militares não faziam, naturalmente, parte do discurso expositivo. O que se anunciava em 1934 era uma outra fase da colonização portuguesa - a ocupação dos territórios africanos por colonos portugueses. O evento, de carácter didáctico e propagandístico, procurava relembrar ao povo português que "Portugal não era um país pequeno". A dimensão, excessiva, do espaço imperial, precisava de quem o ocupasse e trabalhasse. Para que Portugal pudesse voltar a ser aquilo que já tinha sido. O tal passado que a exposição evocava de muitas formas, para aqueles que sabiam ler e para a maioria que só sabia ver. É que a ideologia das exposições deve ser analisada lado a lado com outros espaços de uma cultura visual bem circunscrita: da fotografia aos postais, dos jornais ilustrados ao cinema, dos museus de antropologia aos livros de propaganda colonial. O desejo de um impérioE como voltar a transformar o império num objecto de desejo? Como incentivar os "fortes portugueses que navegam", cantados por Camões, a voltar a partir? A exposição era ela própria uma ode às possibilidades coloniais do futuro, um balanço daquilo que se fizera recentemente, e um anúncio de um Portugal do além-mar que seria central à ideologia política e colonial do Estado Novo. As exposições de "nativos", e sobretudo de "nativas", tornaram-se o símbolo mais concreto dessa erotização de um império onde a virilidade lusa devia voltar a semear riqueza. As metáforas de género já desde há muito faziam parte da linguagem colonialista portuguesa, tal como da francesa ou britânica. Os espaços coloniais surgiam feminizados, selvagens e feitos da natureza desordenada que a masculinidade imperial europeia iria controlar. A conquista territorial era descrita com o vocabulário da conquista sexual, onde o colonizador branco masculino exercia duplamente o seu domínio sobre a mulher colonizada - domínio étnico e domínio de género iam, por isso, a par. Esta linguagem, banalizada na prolixidade da escrita produzida nos contextos imperiais europeus do século XIX, manifestara-se graças às possibilidades reprodutivas da fotografia. Inventada quase em meados de oitocentos, a tecnologia fotográfica desenvolveu-se em paralelo com a consolidação dos impérios coloniais e tornou-se um dos seus mais importantes instrumentos de propaganda colonial, juntamente com as exposições. O "objecto" mais descrito, fotografado e reproduzido na Exposição Colonial de 1934 foi uma mulher, negra e nua. A Rosa, Rosinha, ou Rosita, nome com certeza mais fácil do que o seu verdadeiro nome islâmico, era uma mulher balanta, da Guiné recentemente "portuguesa" (ver artigo de Isabel Morais no livro Gendering the Fair). Fotografada por Alvão em várias poses encenadas já pelos códigos visuais de um erotismo feminino, por vezes com os braços levantados para melhor revelar o peito, a Rosinha personificou aquilo que o império deveria ser - o lugar das mulheres disponíveis sexualmente para os homens portugueses que a exposição queria incentivar a partir. Como eram negras podiam estar nuas e podiam ser observadas num espaço familiar e domingueiro de lazer aceitável. Não transgrediam a moral vigente porque não eram brancas como as mães, mulheres e irmãs dos homens que as observavam - dos visitantes do evento aos que organizaram a exposição ou promoveram os discursos de miscigenação além-mar. Sempre implícita na ideia de miscigenação - tão implícita que nem tinha de ser afirmada - estava uma relação entre os homens colonizadores brancos e as mulheres colonizadas africanas. Nunca, naturalmente, a possibilidade - o tabu - de uma relação sexual entre uma mulher branca e um homem negro. Mais tarde, a miscigenação conheceu no "luso-tropicalismo" do antropólogo brasileiro Gilberto Freyre a mais legítima das suas teorizações. Mas já era apresentada como uma característica do colonialismo português desde que Afonso de Albuquerque promovera, na Goa do século XVI, os casamentos com mulheres hindus convertidas ao cristianismo. A ideia de miscigenaçãoComo poderão ser consideradas excepcionais todas estas políticas coloniais? Todos os impérios coloniais europeus de oitocentos legitimaram as suas empresas com a afirmação do seu "excepcionalismo" e da sua menor violência em relação às práticas coloniais dos outros. Se os portugueses alegavam a sua capacidade de mistura com os nativos (leia-se "as nativas") face a uns britânicos que faziam da separação racial uma das suas bandeiras, os últimos denunciavam a violência religiosa dos portugueses, em contraste com sua própria tolerância em relação ao hinduísmo. Ou, mais tarde, já no principio do século XX, os britânicos denunciavam as práticas de trabalho forçado nas roças de São Tomé, numa altura em que a "escravatura" supostamente já não existia. Os "outros" colonizadores eram sempre piores e por isso não mereciam as colónias que tinham. Tentar ler as políticas de mistura - e, relembramos, de mistura de homens brancos com mulheres dos territórios colonizados -, que pontuaram a colonização portuguesa, em diferentes contextos e por razões distintas, como um sinal do "não-racismo dos portugueses" é reproduzir acriticamente os próprios discursos colonizadores. E é, sobretudo, também não ter em conta a profunda desigualdade entre os géneros que, à partida, estava implícita nestas relações. Na base destas políticas de colonização e interacção com os locais estava a distinção entre, em primeiro lugar, a sexualidade masculina, livre de escolher o seu objecto de desejo, cá ou lá (embora mais lá do que cá), e onde estava implícita uma superioridade; em segundo lugar, a sexualidade feminina da mulher branca, regulada pelas prescrições legais, culturais e sociais de uma sociedade patriarcal. Em terceiro lugar, estava a sexualidade da mulher negra, uma mulher que surgia como passiva e sem poder, apresentada como disponível para o homem branco que, ao ocupar o lugar do homem negro, estava também, metafórica e literalmente, a dominá-lo. Mas o sexo não chega. E o colono português também teria de andar bem alimentado e bem vestido. Num outro pavilhão da exposição colonial, um enorme diorama com figuras de tamanho natural mostrava as mulheres negras a aprender a cozinhar e a coser sob o olhar paciente das freiras missionárias portuguesas. Expunham os progressos da evangelização portuguesa em África através do encontro de dois tipos de mulheres. Um encontro também de valores religiosos e domésticos, aqueles que as mulheres, brancas ou negras, podiam viver no império. Apesar de também ter opositores, até entre antropólogos prestigiados, a miscigenação tornou-se uma ideologia central do regime, e a Rosinha estava ali para a ilustrar: o nome português, provavelmente da conversão ao cristianismo, para a tornar mais próxima e até casadoira; o diminutivo de "inha" ou "ita" para a familiarizar; e a sua sexualização, usada e abusada no contexto expositivo, para que o império também pudesse ser imaginado como uma conquista sexual. Os homens guineenses que vieram com a Rosinha foram entrevistados. Mas as mulheres, não. Não se julgou necessário ouvir a sua voz. Vê-las era mais importante do que as ouvir. Aqui, como em muitos outros casos, "raça" e "género" não são conceitos dissociáveis. Inseparável da cor da pele era o seu género feminino, e era nessa combinação que se reificava uma dupla hierarquia - a do branco sobre o negro, a do colonizador, neste caso, português, sobre a colonizada, neste caso proveniente da Guiné-Bissau e, finalmente, a de um homem sobre uma mulher, onde o domínio patriarcal e sexual era assumido. O espaço da exposição encenava, de um modo lúdico e legítimo, o projecto colonial. Entre partir e tornar-se colono havia um oceano pelo meio. No jardim portuense, apenas um lago os separava de África. E de uma África que nada tinha de ameaçador. A colonização do corpoAs notícias de jornal e as fotografias, popularizadas em postais fotográficos, multiplicaram os discursos escritos e visuais da exposição, fazendo-a chegar também àqueles portugueses que não tinham ido ao Porto. Um livro publicado em Luanda em 1934, celebrava a província de Angola e a sua presença na 1. ª Exposição Colonial. Na página dedicada ao Banco de Angola, duas fotografias do "magnífico e luxuoso stand próprio, lindamente decorado", partilhavam a página com duas fotografias de mulheres seminuas: Uma "beleza negra da Huíla", de boca semiaberta e braços levantados como os da Rosinha, a erguer o peito desnudo, não disfarçava a sua óbvia conotação erótica; a "preta Mucancala" inscrevia-se num outro tipo de imagem, também muito popular desde a segunda metade do século XIX - a da fotografia "etnográfica", realizada ao ar livre no lugar de origem (ou, muitas vezes, nas encenações recriadas nas exposições europeias, coloniais ou universais). O texto a legendar a imagem descrevia o oposto do Portugal moderno e inovador que se queria transplantar para os trópicos: aquela "curiosa tribu" angolana era "uma das mais baixas espécies da escala da humanidade". A mulher negra desnuda - quer na sua versão "sexualizada" quer na sua versão "primitiva" - contrastava com a prosperidade e modernidade do Banco de Angola e ao mesmo tempo reificava as distinções de género tão explícitas na documentação colonial, a masculinização do colonizador, neste caso daquele que geria a riqueza da exploração colonial, e a feminização da colónia, neste caso, numa "preta" e numa "negra", sem nome e sem roupa. No contexto das discriminações raciais da Europa da década de 1930, como já no século XIX, o corpo da mulher negra podia ser exposto, legitimamente, de muitas formas, num claro contraste com o corpo nu da mulher branca, remetido para as fotografias transgressivas de uma pornografia para consumo privado masculino. O corpo nu da mulher negra estava disponível visualmente, porque imperava uma ideologia legitimada por um racismo científico que o inferiorizava, e que lhe retirava voz e poder. Os lugares desta exposição legítima do corpo eram inúmeros: nas exposições universais e coloniais, nos postais fotográficos que jogavam com a ambiguidade entre a legitimidade científica da antropologia e o erotismo; ou em imagens de jornal a ilustrar os costumes de povos "estranhos e distantes". Uma consciência crítica desenvolvida sobretudo desde os anos 1960 veio questionar a violência com que os corpos das mulheres negras foram transformados em objectos e desumanizados, ao longo da história. De Saartjie Baartman - a chamada Vénus de Hotentote que em princípios do século XIX circulava tanto nos meios científicos como nos de entretenimento, entre Londres e Paris - até às muitas mulheres e homens que, ao longo da segunda metade do século XIX, foram apresentados como "selvagens" ou "nativos" e expostos no jardim de aclimatação de Paris, nas exposições europeias ou no circo itinerante do norte-americano Barnum. Este mesmo fenómeno, central para se compreender a ideologia colonial deste período, foi desprezado pela academia durante muitos anos. Porém, desde há cerca de vinte anos que os "zoos humanos" têm sido estudados na perspectiva da história do colonialismo, racismo e cultura visual. Que continuidades e cisões subsistem, hoje, na cultura visual contemporânea que caracteriza o nosso contexto nacional? Uma muito maior consciência anti-racista - incentivada tanto pelos debates do pós-colonialismo como por políticas de direitos humanos mais democráticas - tornaria impensáveis muitos dos textos e imagens do colonialismo português dos séculos XIX e XX. No entanto, ainda subsistem entre nós muitas formas contemporâneas de racismo associado ao género. O que é que a sexualização das mulheres africanas ou brasileiras, no contexto português - no humor machista, em conversas masculinas não escritas, na formulação de estereótipos primários -, diz sobre os preconceitos enraizados de tantos portugueses? Outras perguntas são inevitáveis e também têm sido objecto de estudo nas últimas décadas. Como é que o corpo da mulher, independentemente da cor da pele - sexualizado sob um ponto de vista masculino, anónimo, e passivo -, continua a ser tão utilizado acriticamente na visualidade contemporânea? Se é certo que tais corpos já não servem para propagandear projectos coloniais, nem promessas de uma vida melhor nos grandes territórios de um país pequeno, continuam a ser usados para vender automóveis, cerveja e tudo o resto. Sobretudo, vendem a ilusão de que o desejo do olhar de um público - que se assume como sendo masculino - pode desresponsabilizar eticamente aqueles que detêm o poder sobre os discursos do visível. Investigadora do ICS-UL
REFERÊNCIAS:
Religiões Cristianismo Hinduísmo
Até que o Porno nos Separe ou o amor os junte
De um lado, a matriarca conservadora e religiosa. Do outro, o filho que é uma estrela no universo porno gay. Entre eles, um computador e uma estrada tortuosa. Até que o Porno nos Separe, de Jorge Pelicano, é um documentário pronto a derrubar preconceitos a partir da viagem emocional de uma mãe em mudança. Para ver esta sexta-feira no Caminhos do Cinema Português. (...)

Até que o Porno nos Separe ou o amor os junte
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 14 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: De um lado, a matriarca conservadora e religiosa. Do outro, o filho que é uma estrela no universo porno gay. Entre eles, um computador e uma estrada tortuosa. Até que o Porno nos Separe, de Jorge Pelicano, é um documentário pronto a derrubar preconceitos a partir da viagem emocional de uma mãe em mudança. Para ver esta sexta-feira no Caminhos do Cinema Português.
TEXTO: O cordão arco-íris atado à volta do pescoço já a denuncia. É Eulália Almeida, de 67 anos, quem nos abre a porta de sua casa para uma conversa que, ainda não sabemos, se há-de prolongar por duas horas e meia. Pelo meio, há-de chorar, sorrir, esbracejar, sobretudo comover quem a escuta. Mãe-galinha, mãe-coragem, mãe-que-faz-tudo, para não perder o filho e o mundo. Como a do fado que a dada altura trauteia no documentário que nos traz aqui. Deus ouviu a minha preceDeu-me um filho encantadorNunca o hei-de trocar pelos tesouros mais vastosAinda que tenha de andar a vida inteira em pedaços“O fado é a minha história”, confessa. E quando o realizador Jorge Pelicano a ouviu cantarolá-lo enquanto descascava batatas e brincava com o gato Kiko, pensou: “Isto é o filme”. É o documentário Até que o Porno nos Separe, que se estreia esta sexta-feira, 30 de Novembro, em Portugal, no festival Caminhos do Cinema Português (21h45, Teatro Gil Vicente, Coimbra), depois de passagens por BAFICI, na Argentina, e Jihlava, na República Checa. Em 2019 deverá chegar às salas de cinema de todo o país. Uma história de amor entre uma mãe e um filho, mas também um filme que quer aniquilar preconceitos, inspirar famílias LGBTI+, falar da Internet e das redes sociais, mostrar que as pessoas não são herméticas, alheias à mudança. Um retrato íntimo cuja conclusão, sem spoilers porque isto é a vida real, é resumida em poucas palavras pelo tal filho, o actor porno Fostter Riviera, Sydney Fernandes no passaporte: “O amor pode mudar tudo. ”Já há muito tempo que o documentarista Jorge Pelicano, autor de Ainda Há Pastores? (2006), Páre, Escute, Olhe (2009) e Pára-me de Repente o Pensamento (2014), queria fazer um trabalho sobre pais e filhos e a, por vezes, “conturbada” relação que os liga. E sempre quis perceber como é que os pais dos actores e actrizes de filmes pornográficos lidavam com uma escolha dos filhos que, provavelmente, não “iria ao encontro das expectativas” por eles criadas. Foi esse o ponto de partida. “Não queria fazer um documentário sobre bastidores da pornografia, queria chegar aos actores para depois chegar aos pais”, conta o realizador de 41 anos, ao telefone com o PÚBLICO. Assim conheceu Fostter Riviera, uma estrela internacional no universo porno gay, actor várias vezes premiado e com mais de 300 filmes no currículo. Dois dias depois de lhe dizer ao que vinha, estava frente a frente com a progenitora, Eulália Almeida, e no final dessa conversa tinha uma certeza: “Este era um filme muito difícil de fazer porque a maior parte das pessoas quer esconder, mas eles queriam contar esta história. ” Sydney, aliás, deu-lhe carta-branca. “Ele”, sublinha Jorge, “nunca esteve preocupado com o que a mãe ia dizer no filme, nunca a quis influenciar”. O documentário, de quase uma hora e meia, arranca com as janelas semicerradas do Bairro de São Tomé, no Porto, onde Eulália vive e Sydney cresceu. Um paralelismo, quem sabe, com o que vem a seguir: o arranque do Windows, um ecrã com uma fotografia no background, uma mulher que se senta, arranja o rato e o teclado e abre a janela do Facebook para percorrer mensagens no Messenger. A partir daqui, o que se vê é um filme a dois tempos: um que assenta nas comunicações digitais entre mãe e filho entre 2013 e 2017, autênticas “cartas de amor nos tempos modernos” que fizeram as vezes de guião, e outro, o tempo real, que corresponde às filmagens feitas entre 2016 e 2017 por uma pequena equipa de três pessoas a tentar ser “invisível”. É através desta linha temporal que o espectador assiste a uma mãe em, por vezes dolorosa, transformação. Há muitas Eulálias a separar a Eulália que hoje nos recebe e que, orgulhosa, sai à rua com o seu “amuleto” com as cores da bandeira LGBT ao peito (se alguém a questiona diz que o mundo não deve ser visto “a preto e branco”, antes em tons “arco-íris”) daquela que há cinco anos descobriu que o filho era homossexual e fazia filmes para adultos através de um vídeo de uma entrevista que uma amiga lhe mostrou. Um momento em que o mundo, o seu mundo, parou. “Vejo o meu Sydney a dizer que chegou a fazer um filme na VCI e as lágrimas começaram a cair pela cara abaixo”, recorda a mãe. Fostter Riviera era então um nome em ascensão na indústria. Sydney emigrara aos 23 anos para a Alemanha, atraído pelas melhores condições de trabalho que um webdesigner como ele poderia ter, mas também para seguir o seu caminho na pornografia. E a mãe era a única da família que não lhe conhecia o hobby. “Como é que se diz a uma mãe que se é actor porno?”, questiona hoje, retórico. Em Até que o Porno nos Separe vemo-los, ainda, a digerir essa realidade, com emoções à flor da pele, até ao coming out final — o dela. Uma “luta muito solitária”, nas palavras de Pelicano, em “clausura”, num “bairro com muitas janelas” onde todos se entreolham. E sobretudo travada, madrugadas adentro, ao computador, que aqui, “sinal dos tempos”, é também uma “personagem”: “É um filme sobre a relação entre a mãe e o filho e pelo meio está a Internet, que tanto os separa, como os junta. ” Entre a câmara e a protagonista está muitas vezes um ecrã e a página de Facebook do filho, cujas palavras em inglês Eulália tenta perceber com a ajuda de um dicionário — também foi com os livros que aprendeu, sozinha, a dominar o computador e a Internet; também foi com os livros que requisitava na biblioteca que começou a “aprender o que era a homossexualidade”. De um lado, uma mulher, conservadora e religiosa, devota a Santa Rita, que a vela no seu quarto. Do outro, o filho que lhe caiu nos braços aos cinco meses, fruto biológico de um irmão entretanto falecido. Pelo meio, por todo o filme, lento e denso, angústia, sufoco e um grande “amor obsessivo” (não serão todos?). Contra tudo e contra todos. Entre uma mãe que procura e um filho que não liga, mesmo no dia do aniversário. Entre uma mãe que não percebe e um filho que não explica. Entre uma mãe que, por vezes, parte ao ataque e um filho que não sabe como lhe falar. “O filho também evita a aproximação para não magoar, mas esse distanciamento acabava sempre por magoar”, comenta o realizador, que estava também interessado em apontar o foco para a “obsessão da comunicação” tão comum do mundo das redes sociais. O que é particularmente notório em Sydney, sempre online, mas sempre ausente. “Essa dualidade também me interessava”, reconhece Jorge. “Ele é muito presente na rede social, mas na sua vida pessoal procura um isolamento grande. ”Assumidamente, o filme mostra o ponto de vista da mãe, mas também vai ao encontro do filho em Berlim, onde é filmado em situações de alguma reclusão. Numa das cenas, depois de uma entrevista de emprego, o jovem surge solitário, de carapuço enfiado na cabeça, a atravessar uma rua chuvosa. Quando viu o documentário pela primeira vez, Eulália não chorou, mas aquele momento tocou-a. Percebeu, ao vê-lo, que algo não estava bem e ela nunca soubera de nada. “Entristeceu-me”, confirma. “O filme é a pura realidade da minha vida, do sofrimento que passei para que este filho não se perdesse, para que eu não perdesse esse filho, porque os filhos nunca se perdem. ”“Não é fácil abrires as portas do teu mundo”, confessa Sydney, “um mundo que escondes de tanta gente”. Porquê fazê-lo então? Vários motivos. Mostrar que a pornografia é mais do que “uma coisa obscena ou ligada à prostituição”. Contrariar a ideia que “todos os actores são pessoas sem formação”, completa Jorge, dando o exemplo do protagonista, aluno de mérito no secundário, actualmente director de produto numa empresa em Amesterdão. Remata o primeiro: “Eu tenho uma família, um emprego, uma vida normal. A pornografia é uma loucura que me deu e gosto, mas não me faz ser menos ou mais do que os outros. ” Como ele, também outros: “Gostava de mostrar às pessoas que temos uma mãe por trás, um grupo de amigos. ” Este é, nas palavras do realizador, “um filme cheio de preconceitos”, que, espera Sydney, também poderá inspirar outros filhos e outros pais de homossexuais, bissexuais, transexuais. Fora com os tabus, os silêncios, a discriminação — “é tudo”, conclui, “uma questão de vergonha e catolicismo, há que dar amor antes que seja tarde demais”. E, em última análise, também é uma carta de amor: “Será a última forma de dizer à minha mãe que a amo. ”Jorge não sabia como é que tudo ia acabar. “É o prazer de fazer documentário”, realça. Estavam sempre “na expectativa”, a realidade trocou-lhes as voltas um par de vezes, mas ofereceu-lhes um final de bandeja que o realizador filmou de lágrimas nos olhos. É um filme “que demora a ser concretizado” também porque as personagens “estão em constante transformação”. Sente que para os protagonistas a experiência foi uma “espécie de libertação”. Estão “mais aliviados” por atirarem cá para fora o que andava lá dentro a burilar, por “escancarem as janelas”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Sydney, por exemplo, viu-o 18 vezes. Mudou-o. “O filme”, admite, “fez-me abrir os olhos para a família que eu poderia ter abandonado, mas tive muita sorte por ter uma mãe de garra que não me deixou fugir”. Agora com 29 anos, está apaixonado, mais estável, mais próximo. Não tem feito tantos filmes, não se vai despedir da indústria, mas quer também apostar no seu “trabalho normal” para um dia, quem sabe, abrir a sua própria empresa de produção de aplicações móveis. Por seu turno, Eulália recusa-se a olhar para trás. “Costumo dizer que devia ter menos 30 anos, ” graceja. Deixou de ser aquela mulher “que vivia para a casa”. Fez, diz, o seu “coming out” e tornou-se uma activista de mão cheia. Corre as Marchas do Orgulho para discursar (“E eu nunca fui a nenhuma!”, surpreende-se Sydney), é uma das caras da Amplos – Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual. Tal como no pós-25 de Abril lutou pelo direito à habitação, abraçou a 100% esta causa. Por muito que o marido por vezes torça o nariz — ele não quis participar no filme (“Na pesquisa percebi que para os homens é muito mais difícil aceitar”, diz Jorge), tal como a filha do casal que, afiança a mãe, está agora arrependida. A secretária, o seu antigo “canto da dor”, onde tantas vezes chorou vigiada por Kiko, é hoje o seu “canto do do amor e da alegria”. Continua a fazer estudos de mercado, inscreveu-se num curso de inglês e num outro de Sociologia na Universidade Aberta. Agradece todos os dias a Santa Rita, gosta muito de ouvir David Guetta e já está a sonhar com o Natal e com a aletria que irá fazer para o filho, se ele vier. Uma pessoa muda ou abre uma nova janela em si mesma? Escreve Eulália, já perto do final do filme, numa mensagem que publicou no seu mural do Facebook a 13 de Março de 2017: “Andei durante vários meses a ponderar se estaria preparada para fazer uma grande loucura: escancarar o meu armário. Não há nada mais forte do que o elo entre uma mãe e um filho porque ser mãe é uma missão maravilhosa mas com muitos desafios. Pelo meu filho, redescobri-me. ”
REFERÊNCIAS:
O Algarve não é aqui
Podemos ir a pé de Alcoutim, junto a Espanha, ao cabo de São Vicente, no extremo ocidental. São trezentos quilómetros pela serra e o barrocal. Trezentos quilómetros de ar puro, ribeiros e barrancos, de aldeias abandonadas, casas em ruínas e pomares esquecidos. “Só com os caminhos e o corpo". (...)

O Algarve não é aqui
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Podemos ir a pé de Alcoutim, junto a Espanha, ao cabo de São Vicente, no extremo ocidental. São trezentos quilómetros pela serra e o barrocal. Trezentos quilómetros de ar puro, ribeiros e barrancos, de aldeias abandonadas, casas em ruínas e pomares esquecidos. “Só com os caminhos e o corpo".
TEXTO: De noite, Alcoutim é só silêncio. As ruelas brancas, de casario baixo, afluem para o rio e não se ouve uma porta, uma televisão, raramente um carro. Até que, chegados à margem do Guadiana, lá vêm os sons de um jantar em família, as vozes bem altas e animadas. E de onde vêm elas? De uma casa qualquer em Espanha. Se podemos ouvi-las com toda a distinção é porque do lado de cá não se passa nada. Ou quase nada. Está tudo mais calmo desde que a estalagem fechou, diz-nos Camané, que tem um restaurante com o seu nome. Se esta viagem deve começar em Alcoutim, então que se vá de véspera e se comece por aqui, com um belo ensopado de enguia, com poejo e pão frito em azeite. Também poderia ser javali estufado, perdiz à algarvia ou coelho frito. Os veados e javalis atravessam o rio, muitas vezes para um desfecho fatal. “A caça tem tido muita procura. Dizem que aqui há a melhor perdiz vermelha” – e Camané é um dos que gosta de lhes apontar a espingarda. Avistámos uma de manhã, quando nos pusemos a caminho, logo no início da Via Algarviana. São 8h30 quando começamos esta espécie de peregrinação, sem Deus nem promessa: trezentos quilómetros a pé, de Alcoutim ao Cabo de São Vicente, atravessando as serras do Caldeirão, Espinhaço de Cão e Monchique, numa linha quase sempre paralela ao mar. Trezentos quilómetros de sossego, vistas amplas, ar puro nos pulmões. Percorrem-se em 14 dias (só tínhamos 12, por isso saltámos duas etapas) por caminhos estreitos, às vezes íngremes, outras vezes (poucas) em asfalto, sem guia nem grupo organizado, apenas seguindo todas as indicações que estão em postes, pedras ou muros. Foi por isso uma sorte ter quase sempre a companhia da Anabela Santos, coordenadora da Almargem, associação de defesa do património ambiental do Algarve, responsável pela Via Algarviana (que foi inaugurada em 2009, tentando seguir o caminho da peregrinação de São Vicente; não se sabe quantas pessoas a fazem porque qualquer pessoa pode fazê-la autonomamente, mas o milhão e meio de euros investido já foi superado pela dinamização económica local, diz a bióloga). Sem ela mal daríamos pelas preciosas orquídeas selvagens que nos surpreendem pelo caminho, ou pelas pútegas escondidas entre as folhas. Cada etapa termina numa vila, aldeia ou monte onde se encontra alojamento, come-se, arranja-se lanche e forças para o dia seguinte. Comecemos então a caminhada, um pouco antes do ponto em que avistamos a tal perdiz. Saímos de Alcoutim com o rio à nossa direita, subindo vagarosamente, sem falta de fôlego. Do lado andaluz, um castelo velho pintado de novo, todo branco. Do lado algarvio, amendoeiras abandonadas ainda com os frutos do Outono, porque ninguém se dá ao trabalho de os apanhar – não compensa o preço, sobretudo pela concorrência da amêndoa californiana. Com as oliveiras é diferente: ainda há muita gente a fazer o seu próprio azeite. Por entre o grauvaque, que é abundante, despontam os sargaços em flor, os cardos, usados para fazer coagular o queijo fresco de cabra, as marioilas, cujas folhas felpudas eram antigamente usadas para lavar a loiça (sobretudo os alguidares da matança do porco), um serapião (orquídea selvagem quase grená, rara aqui, mas mais comum na última parte da rota). Não se chega depressa a lugar nenhum, porque essa palavra não existe quando se percorre um caminho assim. Mas ainda é de manhã quando entramos em Corte Pereiras, uma pequena aldeia onde todos têm um pequeno quintal. Cabrinhas cercadas por arame, piteiras, sobreiros. Um café à beira da estrada e pouco mais. A casa de Isabel Ferreira tem galinhas à porta para nos receber e um alpendre com um banco corrido de pedra, outro de madeira, hera a subir pelas paredes. A ceramista, de 55 anos, veio de Lisboa para aqui há 18. Não foi um feliz acaso, esta era a casa dos avós do seu marido. Apesar da tranquilidade da aldeia, “aqui também há stress, um stress interior”. Anula-o todo com os bichos e flores que cria, e que vende sobretudo a estrangeiros. “Nos últimos quatro anos desapareceu toda a gente. Agora estão a voltar aos poucos”, diz. A pequena porta que dá para o seu atelier tem mais de 100 anos. Lá dentro, o forno está ligado. Imaginamos o calor que fará no Verão: “Cinquenta e tal graus, às vezes. Não se consegue aqui estar. ”Isabel Ferreira faz brincos, ganchos e taças inspiradas nas flores das estevas. Difícil era não fazer, porque a serra está cheia delas, e nesta altura do ano estão bem floridas. Salpicam os campos de branco, como se fossem flocos de neve. De perto são pequenos ovos estrelados. Mas o melhor nem é isso, que já não é nada pouco. O melhor é o cheiro que libertam e que se cola ao nariz, enquanto atravessamos barrancos e linhas de água. Este ano choveu pouco. As ribeiras estão pouco fartas. Saltam-se de um salto. Mas a serra ainda está verde. Mais uns meses e toda esta paisagem mudará de cor. Mais uns meses e o calor tornará esta peregrinação um acto de sacrifício e dor. Os caminhantes que agora se vêem muito de vez em quando terão desaparecido quase por completo. Em tudo me parece que há emigração! Já reparaste? Os homens válidos, a rapaziada, estão na França, na Austrália, na Venezuela, no Canadá. Emigraram. Abandonaram as alfarrobeiras, as amendoeiras, as oliveiras, a sua terra (…) O sargaço, o tojo, o alecrim, o carrasco, o carapeto, o aro, todo o nosso mato se desenvolve e cresce, parecendo querer mandar dizer aos lobos que voltem…"(in Conversando a vida toda, José Cavaco Vieira: Dezembro de 1967)Em Afonso Vicente há agora seis habitantes. Já chegou a haver 400. Em frente à associação recreativa estão António Silvestre e José André. Dois dedos de conversa à espera que se abra a porta, o sol a bater quentinho na cara. Balurcos, aldeia com mais movimento, fica a 12km. Mas há 30 anos que António Silvestre não vai lá. Passa a maior parte do seu tempo aqui, onde a pessoa mais nova tem 62 anos e onde há 40 não nasce ninguém (informações recolhidas nesta varanda, à espera de um café que não vem nem virá). Não repetimos as mesmas perguntas em Corte Tabelião, uma aldeia que parece um pátio, toda virada para um larguinho, com um forno comunitário onde talvez ainda se coza o pão em ocasiões especiais. Mas o cenário é o mesmo: casas totalmente fechadas, ninguém na rua, excepto um ou dois velhotes a apanhar sol. Será sempre um pouco assim, às vezes, muito assim. Aldeias abandonadas, brancas e silenciosas, com um ou outro cão a ladrar do lado de dentro dos quintais, pouco habituados à passagem de estranhos. Aldeias a cheirar intensamente a flor de laranjeira. Atravessamos pomares de que já ninguém cuida e até tiramos um ou dois frutos das árvores para matar a fome e a sede de uma só vez. Atravessamos hortas ladeadas por valados, que aqui há muita pedra. Diz-se bom dia ou boa tarde a quem quer que se cruze no caminho. Ribeira da Foupana: deixamo-nos estar nas pedras a ouvir a água a correr. Come-se fruta e sanduíches preparadas por António Faustino, do turismo rural de Balurcos, onde ficámos na noite anterior. Os pássaros que cantem e façam a agitação que quiserem, que na próxima meia hora ninguém nos tira daqui. Quem quer molha os pés, quem quer dorme em cima das pedras, quem quer fica a observar o que nos espera do outro lado da ribeira: uma subida íngreme, com o verde-escuro a acalmar o verde mais claro das colinas, umas atrás das outras. A subida é compensada pelos campos de rosmaninho em flor, extensões sem fim de roxo vivo. Entra-se nas Furnazinhas por cima, com a aldeia aos pés. Aldeia não, monte. O senhor Manel aparece na Casa do Lavrador, de João Henriques, trazendo na mão um ramo de marioilas, que fazem também um bom chá. “Seca-se e dá para o ano inteiro. ” Depois vai buscar ramos generosos de hortelã-limão e poejo. Aqui tudo se dá. João Henriques diz que em finais dos anos 1960 toda a gente emigrou para a Alemanha, França, Suíça. O seu alojamento depende praticamente só dos caminhantes da Via Algarviana: holandeses, alemães e austríacos, sobretudo, também alguns portugueses. No ano passado terá recebido umas 200 pessoas. Fez tropa em Lourenço Marques, e lá conheceu a sua mulher. Depois foi para Angola, mas decidiu partir mesmo nas vésperas da independência, “já aquilo estava a fogo em Luanda”. Trabalhou em Faro, como técnico agrícola. “Agora voltei às raízes. ” A sala onde jantamos frango guisado era onde o avô tinha os animais; na zona onde é agora a cozinha guardavam-se as rações. O alojamento tem quatro quartos e tornou-se num negócio de família. Olívia não é da família mas quase, porque faz na Casa do Lavrador tudo o que é preciso: limpezas, jantares, pequenos-almoços… Não sai de Furnazinhas há anos, nem sabe dizer quantos. Os dois filhos é que a vêm visitar. Um deles é chef no hotel de Altura onde estudou, mas dizem que ela cozinha ainda melhor que ele. Comida da serra, claro. Quando precisa de alguma coisa que não encontre cá, o marido vai a Castro Marim, na carrinha que todas as terças-feiras vem buscar quem lá queira ir. Não há posto de saúde, mas qualquer problema aparece o INEM, e mensalmente vem uma médica que mede a tensão, receita medicamentos, faz um acompanhamento geral. E há também a carrinha que traz pão, peixe, carne e alguns artigos de mercearia. Na aldeia ainda há casas em grauvaque, a que chamam pedras vivas, ou xisto, também chamado de piçarra. Mas Joaquim, marido de Olívia, pedreiro, diz que há uns 40 anos que não se fazem assim. “Dá muito trabalho. Agora é só cal. ”A casa onde António Gomes Peres trabalha é em pedra. É cesteiro desde os 11 anos, leva 60 de profissão. Tem umas canas a um canto, um pedaço quadrado de cabedal em cima da perna para não se cortar com o vime, uma cadeira baixinha onde se senta. “Não há pontas à vista”, mostra com orgulho o cesto que está a fazer. Cada cesto leva quatro canas, cada cana leva uma hora a preparar. Um cesto com tampa, destes que está a fazer agora, é um dia e meio de trabalho. Recebe até encomendas do Japão, através do projecto TASA, que recupera o artesanato tradicional com ajuda de novos designers. Mostra um papel onde estão os exemplos de cestos que a clientela nipónica pretende. “Aquele era para ir para lá mas ficou muito barrigudinho e não passou no teste. ”António Gomes Peres saiu da aldeia para fazer a tropa em Moçambique. “Quando voltei nunca mais saí daqui. ” Quem quiser que venha ter com eleAntónio Gomes Peres saiu da aldeia para fazer a tropa em Moçambique. “Quando voltei nunca mais saí daqui. ” Quem quiser que venha ter com ele. Deu um ano de aulas em Castro Marim, mas não fez discípulos. “Aprenderam, faziam bem feito, mas ninguém continuou”. Mais sorte teve Manuel Henriques, 58 anos, que tem uma melaria umas casas adiante, onde trabalha com os seus dois filhos, David e Tiago, que depois de tirarem cursos de apicultura se dedicaram ao negócio. “Agora está na altura de tirar o pólen”, diz. A “bonança, a força das flores, já chegou, vem de leste para oeste”, explicam os homens da aldeia. E as colmeias da zona, dispersas entre os campos de rosmaninho, entram em grande actividade. Manuel Henriques tem 250 colmeias. No ano passado produziu mais de três mil quilos de mel. “Temos o melhor mel do mundo, não tenho problemas nenhuns em dizê-lo. ” Mostra os favos recheados, que podem ser mastigados directamente. Mas o seu tesouro é outro. Numa das salas da melaria está uma mesa comprida com um enorme tabuleiro cheio de pólen, retirado das estevas, e tão amarelo como o centro das flores. Outros 13 estão numa máquina feita especialmente para a secagem. “Este ano o tempo não tem ajudado: se tirar 120 quilos de pólen já é muito. ” Vende cada quilo a 12 euros. “Isto é o meu ouro”, diz orgulhoso. Entre Furnazinhas e Vaqueiros os pinheiros mansos (“projectos”, como lhes chamam por aqui, por terem sido plantados com financiamento comunitário) rivalizam com os sobreiros. O guia da Almargem indica que esta zona é sobrevoada por dezenas de espécies de aves: a toutinegra do mato, a águia d’asa redonda, o papa figos, o abelharuco. . . Mas não venham dizer a Cristina Lourenço, de 49 anos, como é tão bom ouvir o seu chilrear. “Estou farta de ouvir os pássaros cantar, quero é ouvir carros, ouvir gente. ”Temos o melhor mel do mundo, não tenho problemas nenhuns em dizê-loTrabalha no centro paroquial de Vaqueiros, que ocupa os idosos durante o dia, dá-lhes refeições, ajuda-os na higiene. “Para esta geração, o pão para a semana dá; para a minha, já não serve. Sinto necessidade de ter pessoas da minha idade com quem falar, de ir ao cinema. ” De vez em quando vai a Faro e a Tavira para mudar de ares e ver a movimentação. Vaqueiros é uma animação perto de tantas outras aldeias à volta (é a mais povoada da freguesia). Mas não chega a ter 60 habitantes. O número está constantemente desactualizado, porque os funerais são uma rotina. Cristina Lourenço não tem esperanças de que a situação se altere muito. “Acho muito difícil haver fixação aqui. Como não há postos de trabalho, também não há um supermercado, uma sapataria… Está mesmo tudo desertificado. Toda a gente tem família fora. ”Ela também chegou a ir. Faro, Lisboa. Depois voltou porque era aqui que o marido queria viver e havia financiamento para a agricultura. “Viemos um bocado iludidos. ”Na Casa de Pasto Teixeira, a dona Rita garante um ponto de encontro à aldeia. Fala com os estrangeiros por gestos e todos se entendem. “Não deixo ninguém ir embora sem comer nem dormir. ” Toma conta do alojamento da filha, que só vem aos fins-de-semana, como muitos dos que saíram. E faz as refeições para quem pernoita. Conta que a maior parte dos habitantes emigraram para França ou Alemanha (como foi o caso dela, que viveu dez anos perto de Dusseldorf). Quando voltam, vêm com a reforma e constroem uma casita. “Se for ver, a aldeia tem muita casinha nova e prédios bonitos. ” Mas “velhotes para contar histórias já há poucos”. “Têm morrido todos. ”Manuel José, 83 anos, também foi dos que regressou à terra. Foi em 1965 para a Alemanha com contrato e ordenado. Esteve lá quase 30 anos. Não veio rico. “Só tenho os caminhos e o corpo. ” Ou seja, não tem terra. Todas as manhãs anda duas horas por esses montes fora e é numa dessas caminhadas que o encontramos, com sobreiros a perder de vista. E diz quem sabe: “Este mês é o mais bonito, com as estevas e as tremocilhas amarelinhas todas em flor. ” O mês em que encontramos “a indizível verdura das folhas novas e tenras”, como no poema de Sophia de Mello Breyner. Quando entramos num café no Cachopo encontramos Manuel Vicente sentado ao balcão. Perguntamos-lhe se é ele o albardeiro. Diz que sim, mas que “burros agora não há muitos”. “Só os de duas patas. ” Mais tarde passaremos pela sua oficina: uma única divisão com uma janela para a rua, albardas e molins a um canto, uma pequena motorizada a outro. Nunca quis passar a sua arte a ninguém e agora que tem 89 anos também não vai ser diferente. “A malta nova já sabe ler. Quer é ter empregos. Eu não sei ler e o culpado fui eu. ” Em vez de ir para a escola, foi tomar conta dos porcos. Estou farta de ouvir os pássaros cantar, quero é ouvir carros, ouvir genteEle queria ser pedreiro, “mas o pedreiro ensinou” o primo mas não a ele. Aprendeu o ofício de albardeiro em Tavira. Bastou-lhe um mês para dominar com alguma mestria a técnica, e não era difícil arranjar clientes. “Ia pelos montes trabalhando. ” Mostra um molho de palha de centeio, com que se forram os molins: “É a mais resistente. Mas agora já ninguém semeia nada. ” Também já poucos burros há para dar uso às albardas. “Bestas havia por aí todos os dias. Agora há por aí alguma?” Haver até há, mas são as tais de duas patas. Por isso, a maior parte das albardas que Manuel Vicente faz (só durante a manhã, que é preciso descansar) são para decoração. Ainda há “quem venha de longe” fazer-lhe encomendas: São Brás de Alportel, Loulé, Portimão. “Aqui não gastam. ” As carneiras vêm de São Brás, em cima é pele de porco ou de javali, que antigamente lhe vendiam nos talhos. Fazia muitos molins para os cavalos da GNR, todos decorados, com espelhinhos e flores bordadas, como alguns que ainda aqui tem. Os tosquiadores ainda lhe vendem a rabada dos cavalos para terminar em beleza, com os pêlos apontados para o ar. Se tivéssemos sido rigorosos, teríamos deixado o Cachopo em direcção a Barranco do Velho, quase 30 quilómetros e oito horas de subidas e descidas em plena serra do Mú, ou do Caldeirão, como se preferir, com vales e linhas de água, com sobreiros e medronheiros, com vistas esplêndidas. Mas vamos de um salto para o Hotel Tia Bia, também ao encontro da serra, mas nos pratos que Nuno nos serve: croquetes de cabeça de javali, sopa de legumes com coentros e cogumelos, javali guisado com hortelã e funcho, com legumes assados, tarte de amêndoa. Um medronho a fechar. É ele e a mulher, Cátia, ambos de 36 anos, quem tomam conta do hotel e restaurante, mesmo à beira da estrada. A filha, Serena, está a tentar concentrar-se nos trabalhos de casa, feitos ao balcão. Não encontra a borracha, quer uma pastilha, perdeu o afia. . . Uns seis anos irrequietos, como os seis anos normalmente são. Damo-nos conta das poucas crianças que encontrámos até aqui. É Cátia quem conta que o hotel começou por ser um abrigo de montanha, com dois quartos e o único telefone das redondezas. Barranco do Velho é um local de passagem da EN2, que liga Faro a Chaves ao longo de 738 quilómetros, e durante a sua construção não havia muito mais onde ficar por estas bandas. “Este era o único ponto de paragem no meio do nada. Até ao Alentejo não voltava a haver nada assim. ” Dizem que a tia Bia, que mais tarde se ocupou do hotel e lhe deu nome, tinha muitos “amigos” entre os camionistas que aqui pernoitavam ou paravam para comer, conta Cátia a rir. “As pessoas de 80 anos ainda choram quando falam dela. ” Era uma mulher simpática, com personalidade forte. Nuno é de Barranco e quando, aos 17 anos, veio ajudar a servir à mesa ficou com a certeza que o seu futuro passava pelo lugar onde estava o seu passado. “Fui ganhar conhecimentos para o litoral, sempre com o encanto da serra”, conta. “No ano passado os donos cansaram-se disto e foi a minha oportunidade. ” Cátia, de Loulé, já estava encantada também, não teve sequer que a convencer. Ela era chefe de sala na Quinta do Lago, ele chef de cozinha. A dupla funciona na perfeição. De resto, os negócios da região são frequentemente familiares. “Decidimos subir, com armas, bagagens e uma filha. ”Aqui ainda se respeita o professor, a tradição, valoriza-se a boa educação, conta Cátia, enquanto o marido vai para a cozinha preparar o jantar. “Roupas novas? Não se sente necessidade de as comprar. Mas não prescindo da minha manicure em Salir!” Ganha-se menos dinheiro, sim, mas também se gasta menos e aproveita-se melhor o tempo. Mas nem sempre é fácil a vida na serra, comenta. “Há pouca dinâmica porque há pouca juventude. Os políticos falam na desertificação mas nada foi feito para que os jovens, que são quem tem novos projectos, voltassem à terra. Os de idade querem é estar sossegados. Há as casas do medronho, do pão, dos frutos secos, da cortiça, o moinho – estão construídos, têm tudo para se trabalhar, mas não há lá ninguém. ” Ela tem ideias sobre formas de dar a volta à questão: dinamizar as produções biológicas, aproximar as crianças “do que temos de melhor, porque a maior parte do Algarve é serrano”. “Havia um preconceito das pessoas do litoral em relação às da serra, mas não há nada de mais genuíno. ”O casal quer “pôr Barranco do Velho no mapa”. “Em qualquer sítio da serra é complicado para os turistas saberem o que se passa à volta porque ninguém fala inglês. Aqui já podem conversar um pouco mais. ” E a prova disso é a forma como serve animadamente o grupo de caminhantes estrangeiros que agora se senta para jantar. Robert Keukens é um ex-advogado holandês de 76 anos. Todas as primaveras e outonos põe-se a andar para algum lugar. Já foi de Sevilha a Santiago, de Oviedo a Santiago, e outros percursos em Espanha, França, Itália. “Caminhar é uma forma de vida”, diz. “Comecei a andar por viver numa zona linda, e ao fim de umas horas de passeio pensava 'que pena ter de voltar. Era bom continuar, um dia após o outro'. ” Ganha-se sossego e cabeça limpa. “Temos tempo de pensar quando se caminha assim. Não precisamos de nos preocupar com nada a não ser em ir de um sítio ao outro, comer, dormir. Não há mais problemas. ”Os 300 km da Via Algarviana não o assustam, nem à sua mulher Elizabeth. Está em condições de dizer: “A natureza é linda, as pessoas muito simpáticas, mas estou chocado com a pobreza. As aldeias são ruínas. Porque não há agricultura? As laranjas são muito melhores do que as da Holanda. Porque não exportam para lá? Eu sei que há aqui um problema de escala, mas parece que quem fica não tem iniciativa. ”Já passou tempo suficiente em Portugal para conseguir trocar algumas palavras em português e ler o jornal (dias depois iremos encontrá-lo em Messines à mesa de um café com o Diário de Notícias na mão). E também para comentar: “Gosto da forma portuguesa de ser educado. É incrível. No caminho não nos vêem até que chamemos por eles. E aí desfazem-se em atenções – mudam, como uma flor a desabrochar. ”Quase metade do caminho de Salir para Alte faz-se com a Rocha da Pena à direita. Não nos deixemos enganar pela palavra “Rocha” – é na verdade uma montanha com 479 metros de altura e centenas de espécies de plantas, incluindo orquídeas que não há em mais lado nenhum. Andamos e andamos e a Rocha da Pena sempre ali, imponente. “É um dos segredos de caminhar: uma aproximação lenta às paisagens que progressivamente se tornam familiares. É como o convívio regular que faz crescer a amizade. . . Quando andamos, nada se move, só imperceptivelmente as colinas se aproximam, a paisagem se transforma. Se formos de carro ou comboio, vemos a montanha a vir ter connosco. O olhar é rápido, vivo, crê ter compreendido tudo. Quando andamos, nada se desloca verdadeiramente: a presença instala-se lentamente no corpo. ” Fédéric Gros, no seu livro Marcher, une philosophie (Caminhar, uma filosofia) escreve que “a lentidão do caminhante não é exactamente o oposto da velocidade. É antes a extrema regularidade dos passos, a sua uniformidade. ”E para caminhar basta um corpo, espaço e tempo. “Caminhar não é um desporto”, é a primeira frase do livro. Não se fala em resultados, nem em números, nem em pontuações: “O caminhante dirá que caminho tomou, em que direcção se encontra a paisagem mais bela, a vista que se tem de certo promontório. ” Não precisamos de estar totalmente sozinhos, mas precisamos de silêncio. Num grupo de três ou quatro pessoas “ainda é possível andar sem falar (. . . ) Mais do que quatro, é uma colónia, um exército em marcha (…) Mais do que cinco, é impossível partilhar a solidão”. “Caminhar não é um desporto, mas uma vez que se começa, já não se consegue ficar parado. ”O Algarve não é aqui. Isto é, para os habitantes serranos, o Algarve é o que é para quase toda a gente: o litoral e as suas praias. A serra é outra coisa. Aqui diz-se “lá no Algarve”. Mesmo quando é uma questão de apenas vinte quilómetros. Há vários pontos do caminho de onde se avista ao longe o mar, de onde se avista “o Algarve”. Como por exemplo entre Barranco do Velho e Salir, uma zona de transição para o barrocal – a chamada beira-serra. A terra já é avermelhada e barrenta. Graciete Valério também não consegue ficar parada. Aos 81 anos continua a tomar conta da Casa da Mãe, um alojamento em Salir, – nasceu aqui, nesta mesma casa, que era da sua avó. É ela quem faz as compotas servidas ao pequeno-almoço, as rendas à volta dos guardanapos, as toalhas com bordados, de mesa e de mãos, os licores, os quadros com flores que tem na parede. . . Ainda tem tempo para responder a emails e navegar pelo Facebook, no iPad ou no iPhone. Não viveu sempre em Salir. Aos vinte anos, quando chamaram o marido para ajudar a construir o metropolitano de Lisboa, lá foram os dois. Ficaram 11 anos, até que a mãe lhe falou dos vizinhos que estavam todos a emigrar para França. “Aquilo entrou-me bem na ideia”, conta no espaço onde tem o seu escritório, sentada numa cadeira preta de rodas, girando de um lado para o outro. “O meu marido foi primeiro, com uma carta de chamada. Quando veio cá nas férias, eu insisti que queria ir com ele. ” E ninguém a deteve. Dividiram um quarto com outro casal, separados por uma cortina. “Em Lisboa já era diferente [de Salir], mas aquilo em Paris dava-me uma admiração: os moços aos beijinhos na rua. O meu marido dizia 'não olhes'!”A amiga trabalhava para a mulher de um ministro, que pôs um anúncio no jornal para lhe arranjar trabalho. “Nem queira saber os telegramas que recebi. Fiquei a trabalhar com a neta da Nina Ricci [a da casa de moda], a cuidar dos meninos dela. ” Tem a fotografia do mais novo, Adrien, ao lado das da sua família. “O miúdo dava ares a mim, ia na rua e pensavam que era meu filho. ” Acompanhava a família Ricci para onde quer que fosse – “Se eles iam para a Suíça eu ia, se iam para Itália, eu ia, se iam para Inglaterra, eu ia. ” A casa ficava no Quai Voltaire, em frente ao Louvre. O ex-Presidente Jacques Chirac foi lá algumas vezes jantar – “a polícia fechava a rua”. E no terceiro andar morava Rudolf Nureyev, um dos maiores bailarinos do século XX. “Às vezes, quando ele vinha da Opera, à meia-noite, dava ceias e eu ia ajudar a servir. ”Voltou de Paris para Salir quando uma das suas filhas engravidou. A vila continuava sem gente nem trabalho. Um francês sugeriu-lhe abrir o turismo. “Entrou-me aquilo bem na ideia, 'olha não está mal'. ” Dá dormida a 25 pessoas – muitas delas, caminhantes da Via Algarviana. “Não havia nada em Salir mas agora toda a gente aluga. Viram e invejaram-se. ”A saída de Salir é feita por hortas e pomares, uns abandonados, outros arranjados. Caminhamos sobre o maior aquífero do Algarve: Querença-Silves, 320 quilómetros quadrados de água debaixo do solo. Por isso tantas noras, poços, fontes, fontanários. Está tudo parado, esqueletos de uma época que já não voltará, mas podemos imaginar a actividade que já passou por estas bandas. Fazemos um pequeno desvio para Portela da Nave e visitamos o Idálio Ramos, da Queijaria Martins. Tem 34 anos e foi ele quem fez nascer o negócio. “Aos 13 anos comprei duas cabrinhas com o dinheiro que me davam… Vou trabalhando e vou construindo uma coisa que é minha, pouco a pouco. Todos os dias a gente faz coisas novas. ”Queijarias ilegais “há muitas, cada vez mais”, mas com tudo certinho só a sua, garante. Tem 150 cabras, mas isso não chega para a produção e ainda compra leite aos pastores – “mil litros por dia, quando é altura de haver muito”, como agora na Primavera. Na fábrica, os dois depósitos de refrigeração (dois cilindros enormes em inox) estão cheios de leite. Depois vai a cozer durante três horas e meia, até aos 90ºC, em banho-maria. Passa para panelas, para arrefecer. “Quando chega aos 50º juntamos o cardo, para coalhar. Depois, partimos a coalhada e tiramos o soro. Utilizamos uma parte para alimentar as porcas – tem muita proteína. ” De seguida enchem-se os moldes, um a um. “O processo é igual ao que se fazia há 40 anos, ou mais. A diferença é que aqui as panelas são maiores. ” Mas não foi imediatamente que conseguiu que os seus queijos de cabra ficassem perfeitos. “A minha avó fazia o de ovelha mas as temperaturas são diferentes. Fomos falando com as outras pessoas mais velhotas para aprender. ”Quem entrar na queijaria não reconheceria um dos grandes problemas da zona: há entre 60 e 70 óbitos por ano para entre 10 e 15 nascimentos. Ontem houve dois funerais, anteontem outros dois… Salir é uma das maiores freguesias do país em termos de área – tem 185 km quadrados, mas apenas 2765 habitantes. Aqui “somos quatro trabalhadores, só malta jovem”. Abre as portas do estábulo e lá estão as cabritas, castanhas e brancas, a comer. São floridas sevillanas porque produzem quatro vezes mais que as algarvias e são mais dóceis, explica. “As algarvias são mais stressadas. ” Quando saímos, elas parecem querer despedir-se, começam a balir alto e bom som. Idálio abre-lhes a porta e elas correm para o exterior. “É mais difícil aturar pessoas do que aturar animais. ”Retoma-se o caminho que mais adiante se torna num largo rio de brita, porque o presidente da junta quis alargar a estrada. Anabela Santos está inconformada. Nas obras, retiraram as indicações da rota, e o percurso está descaracterizado. A Via Algarviana envolve 11 concelhos e 21 freguesias. Não foi fácil pôr todos de acordo sobre o investimento que teria de ser feito, nem é fácil garantir que todos cumprem aquilo com que se comprometeram – apesar do movimento que a Via trouxe a esta parte do Algarve –, explica a coordenadora da Almargem. O processo é igual ao que se fazia há 40 anos, ou mais. A diferença é que aqui as panelas são maioresOs medronheiros pelo caminho são uma das razões por que aqui se rivaliza o medronho com Monchique. Urze, giesta, tudo é mais rasteiro deste ponto alto, onde a vista se perde na serra e faz mais frio. Por isso as plantas não crescem tanto. Atentemos à flora: orquídea testículo de cão, bufa de sogra (um fungo enorme), tremocilha (bom para dar azoto ao terreno), flor dos macaquinhos dependurados. . . Depois da descida, uma zona de floresta. Atravessa-se um barranco, depois outro. A terra já é vermelha. Passa-se a Estrada 124 e estamos dentro no barrocal. Pomares de sequeiro, com as suas oliveiras, figueiras, amendoeiras. As alfarrobeiras são centenárias, vê-se pela grossura dos troncos, com formas contorcidas. Em Cerro de Cima, Maria Guerreira está a tirar ervas das pedras junto a uma alfarrobeira que diz ter mil anos. “É do princípio do mundo. ” Tem 83 anos, toda curvada para o chão. Nos quintais há cabaças penduradas a secar. À beira da estrada, pequeninas flores azuis: “A borragem dá coragem”, diz-se. Podemos comê-las. Os valados em calcário estão bem conservados, ainda que nunca se veja ninguém a fazer a despedrega (tirar a pedra da terra para fazer os muros). Dividem os terrenos pelos montes acima, umas linhas cinzentas, como veias. Na esplanada de um café em Benafim come-se uma bifana e metemo-nos na conversa dos agricultores na mesa ao lado, que explicam: “Com a lua nova não se pode semear. Certas coisas aguilhotam [espigam]. Cebolas: chegam a um certo ponto, aquilo espiga tudo. [A melhor lua] é o minguante. Isto são os ditados antigos. ” Outro acrescenta: “A batata pode ser semeada com a lua nova, a batata pode. Mas não pode ser colhida com a lua nova porque apodrece. ‘Tá a ver?”Para entrar em Alte é preciso passar pelas Fontes Grande e Pequena, por onde agora passeiam turistas estrangeiros já com idade avançada. Escuta-se o correr da água e imagina-se a agitação que não deve ser no Verão, com as crianças e os piqueniques. Alte é quase uma metrópole no meio da serra, com lojas, igrejas, cafés (vale a pena uma paragem na bela varanda do Água Mel, onde o dono, José Canelas tenta recuperar receitas antigas – “se as pessoas não as comerem aqui, onde é que as comem?”, diz). De onde vem este nome, Alte? Quem conta é Albertina Madeira. “Havia uma senhora morgada, dona Antónia, que vivia na Quinta do Freixo. E todos os domingos ela ia ouvir missa a Santa Margarida, uma aldeia aqui da freguesia. Havia ali uma igreja, que agora está em ruínas. Ela ajudava o padre, e ele não dizia missa sem a senhora chegar. Mas num domingo, a senhora atrasou-se imenso e o padre disse a missa. E quando ela chegou aqui a altura de Alte viu muitas pessoas virem de Santa Margarida e perguntou-lhes: 'Então, de onde vêm?', 'Ah, fomos ouvir missa. Como a senhora demorasse, o padre disse a missa'. Então ela volta-se para os criados e diz: 'Alte aqui. Aqui vai ficar uma igreja e ela será sempre de uma freguesia. ' Era 'alto aqui', mas com o passar dos tempos foi deturpado e agora só se diz Alte. ”Albertina Madeira é directora do jornal Ecos da Serra, “mas sem cultura nenhuma para isso”, ressalva. Assina os seus artigos como Serranita. O jornal, com uma tiragem de mais de mil exemplares, segue para assinantes espalhados na Europa, África, América, Austrália. Há uns cinco anos, Albertina partiu o braço, não podia fazer nada, e começou a recordar as coisas de quando era pequenina. Ou seja, as coisas de há 93 anos. “Vou escrever as minhas recordações. O que existia nesta rua, as pessoas, o que faziam, essas coisas. E agora estou nas tradições de Alte: o que se fazia no Carnaval, nas Janeiras, no 1. º de Maio. ”E o que se fazia no Carnaval? “Os moços andavam à espreita das raparigas namoradeiras para as enfarinhar. Punham farinha na boca, nos cabelos, elas viam-se aflitas. Gritavam mas no fim gostavam. Eu nunca fui enfarinhada. Às vezes queimavam pimentos e punham à porta das pessoas. Entrava uma fumarada, começava-se a tossir. 'Mas quem foi, quem não foi?' As pessoas ficavam todas marafadas, e os que estavam à esquina da rua fartavam-se de rir. ”E no 1. º de Maio? “Juntavam-se as pessoas amigas e a família e iam à Fonte Grande, passavam lá o dia. Punham as toalhas no chão e os seus bolos, a galinha cerejada, o arroz tostado – que já está cozidinho, põe-se a gema por cima, pedacinhos de linguiça e vai ao forno para ficar tostadinho por cima, é tão bom. Havia as carrasquinhas, as cavacas, o pão-de-ló, e os bolos folhados que ninguém mais sabe fazer. Em São Bartolomeu de Messines fazem mas não se compara. São trabalhosos porque faz-se a massa, em dobradinhas, depois estende-se, põe-se manteiga e banha e com um pauzinho vai-se enrolando, enrolando, enrolando e tira-se [o pau] e fica um rolo compridinho. Depois com um fio – não pode ser com a faca – vai-se cortando aos pedacinhos. Põe-se no tabuleiro, vai ao forno e são passados por açúcar com um bocadinho de água. Ai, são tão bons. Quase todas as pessoas aqui de Alte faziam. Agora, só duas sabem fazer. Só em dias de festa. ”Lê o artigo que está a preparar para o Ecos sobre o 1. º de Maio: “Namorava-se, dançava-se, cantava-se e se fosse necessário dar de corpo (sabe o que é dar de corpo? É ir verter águas, ao quarto de banho), bastava subir-se ao serro da Galvana e por detrás de alguma moita ou arbusto fazia-se de retrete. Quem não fosse prevenido com um pedaço de papel ou jornal, uma pedrinha ou folha também podia fazer das vezes de papel higiénico'. Mesmo quando era proibido comemorar o 1. ºde Maio, aqui fez-se sempre e nunca ninguém nos disse nada. Passámos ilesos. ”Sai-se de Alte com o cheiro da flor de laranjeira. O céu está negro mas dizem que hoje não chove. Pássaros a cantar, galos a cantar, uma moto a passar ao longe. Algumas casas têm sapos de loiça à porta e já sabemos o que isso quer dizer – nem sempre os forasteiros são bem-vindos, sobretudo se forem de etnia cigana. Caminha-se um pouco com a auto-estrada à direita, mais adiante pela estrada fora, com carros a passar depressa. Compensa a entrada na floresta com a ribeira Meirinho ao lado. Parece Sintra, com musgo e tudo. Com a proximidade de Messines começa a aparecer o grés, que contrasta com as paredes brancas ou por caiar. A Igreja Matriz tem a sua imponência, com a sua fachada barroca e as colunas em toros torcidos. A caminhada continua. Havendo calor, será que se resiste a um mergulho na barragem do Funcho? Um espelho de água que nos traz o céu para a terra. Colinas de pinheiros mansos, rosmaninho roxo e verde nas bermas, a esteva por florir, o medronho já a enfeitar as árvores, mas à espera do Outono para ficar maduro. Na Quinta da Vinha, no concelho de Silves, não é medronho que se produz, mas vinho. José Manuel Cabrita seguiu as pisadas do pai, talvez a filha, Andreia, siga as suas, se o acordeão não lhe tocar mais alto. É ela quem nos acompanha na visita. Conta que o pai quis recuperar uma casta algarvia que estava em desuso, a Negra Mole, mas usam também a Castelão, igualmente algarvia, entre outras. A vinha da quinta tem 6, 6 hectares mas como isso não é suficiente para a produção – para além da marca Cabrita também sai daqui vinho de outros produtores – arrendam uma área igual de vinhas próximas. Quando entramos no “laboratório”, Joana Maçanita está a fazer testes. Conta que o lote de brancos de 2015, 100% Arinto, está em estágio em barrica – “é uma coisa única”. “Decidimos não misturar [com outra casta] porque tem muita componente atlântica. É um vinho muito giro. ” Ou seja, “não é entediante”. “De vez em quando aparecem estes vinhos assim. ”Aqui o clima é mais fresco do que em várias outras quintas do Algarve, e por isso fazem a colheita em Outubro, explica a enóloga. E as uvas resultam em vinhos com uma “concentração com elegância”. Os Negra Mole “são vinhos sem cor – há uvas brancas, tintas e rosadas no mesmo cacho”. Tem altos níveis de acidez e altos níveis de álcool, com textura, mas não demasiada, explica Joana Maçanita e o também enólogo Dinis Gonçalves. Depois de as vinhas serem abandonadas, na década de 1990, muitas cooperativas fecharam. E quando a vinha voltou a ser plantada apostou-se nas castas internacionais, “nobres”, “que se deram bem por aqui”, contam. Agora, está a voltar-se às origens. “Fomos pioneiros nisso de pegar na Negra Mole. ” Foi uma aposta com retorno pouco seguro: “Nos primeiros anos, vindimámos e eu nem sabia onde pôr o vinho. Em 2012 decidiu-se meter em barrica e ficou lá esquecido, ia sendo empurrado para o lado. Dois anos depois, fomos provar: parecia Pinot Noir!” Ainda antes de chegar ao mercado, parte do vinho já estava vendido. “O senhor Cabrita alugou uma vinha só de Negra Mole. Agora é deixá-lo fazer-se sozinho, intervir o mínimo e o vinho vai-se revelando. ”A maior parte das vendas dos Cabrita são para a região, entre 10% e 15% para exportar e 3% ou 4% para Lisboa. No ano passado, saíram daqui 20 mil garrafas de branco, 15 mil de rosé e 23 mil de tinto. Um dos restaurantes onde os podemos encontrar é A Charrete, em Monchique. O dono, José Pedro, fez de uma antiga mercearia um dos pontos obrigatórios num possível roteiro gastronómico da serra. Foi com 11 anos trabalhar para a loja – “nem dormi nessa noite com a excitação de ir trabalhar para a vila!”. Em 1974, conseguiu comprá-la com o dinheiro que tinha juntado para levar para a tropa. Quatro anos depois, a mercearia passou a bar, pastelaria, restaurante, “era tudo”. “Mas fui puxando para o lado da restauração”. Sempre com a preocupação de oferecer comida local: cozido de couve, feijão com arroz e castanhas, milhos com feijão, tudo a acompanhar carnes de porco e enchidos; bolo do tacho (acompanha com medronho e melosa). Só o pão, assado por uma vizinha em forno de lenha, servido com cenouras em azeite e alho, ou lombo de porco curado em banha vermelha, já justifica uma visita. A cozinheira, Graciete, está cá desde o primeiro dia. “Antigamente as papas de milho serviam para acompanhar tudo: figos, sardinhas, água mel, torresmos, toucinho, peixe frito”, conta José Pedro. “E à noite, o cozido de couves. Ou calatroia, com feijão e toucinho, e tudo o que se tivesse à mão. ” O porco era rei, mas nem sempre havia. Ainda hoje, contam-se as luas para fazer a matança: “Não pode apanhar a transição, senão estraga a carne. ‘Com lua cheia é boa matação’”. Era a verdadeira festa de família: “Umas trinta e tal pessoas para comer. No Natal ninguém fazia nada, ninguém ligava nenhuma. ”O anfitrião fala de outras tradições da mesa, como as “batatas de cu para o ar: cozidas, com azeite, alho, orégãos e sal, tudo a servir-se directamente do tacho [e daí o nome]. As papas de milho aqui são duras e antigamente todos comiam da plengana [malga que vai à mesa]. Quando se punha pratos comentava-se que era para controlar o que as pessoas comiam. ” Não caía bem, portanto. A saída de Monchique é quase impiedosa. Faz-se a subir, primeiro pela vila, depois por meio de sobreiros, quatro quilómetros sempre em esforço. A família que habita o Convento do Desterro convida sempre a entrar para pedir moeda no final. Está tudo em ruínas, uma desolação. Monchique é mais fresco que o resto do Algarve e aqui a Primavera chega mais tarde. Há ciprestes e sobreiros mas também muitos eucaliptos – às vezes vêem-se as feridas nas colinas provocadas pelo seu abate. É devagar que se chega à Fóia para termos todo o Algarve debaixo de olho: o da serra e o da costa. Com bom tempo vê-se até Sagres. Mas mais bonito ainda é o que vem depois. O som da água a correr (há minas por toda a parte), rosas albardeiras com fartura, de um rosa exuberante, e, de repente, parece até que estamos no Douro. São os socalcos da Moita, um espaço fora do tempo. Já houve famílias aqui, agora só ruínas: de casas, da escola, de estábulos. Imaginamos crianças a correr onde agora há vacas e cabras a pastar. Imaginamos homens e mulheres montados em burros, com frutas e legumes. Imaginamos os habitantes a imaginar o que se passaria para lá das montanhas. As longas descidas também não facilitam a vida do caminhante – mas antes para baixo do que para cima. É preciso cuidado com as pedras que fazem escorregar. Na história desta Via Algarviana já houve de tudo: pés partidos, desmaios, pés em bolha, divórcios, amigos para a vida. Chegamos a Marmelete e estão dois homens a carregar uma carrinha de caixa aberta. A mercadoria cheira-se à distância. São sacas de limões luminosos. Dos quintais saem limoeiros, todos enfeitados de amarelo vivo. Há quem faça este caminho em BTT, como José Galego, 37 anos, carteiro, sentado agora à mesa do restaurante da Paula, onde nos foi servida canja de galinha e galo de cebolada, e melosa para ajudar a digestão. José Galego veio com mais cinco amigos, um de Aveiro, outro da Amadora, os outros de Moura como ele. A primeira tentativa de o percorrer foi no ano passado, mas aconteceu um imprevisto: “Sou dador de medula óssea, e na primeira manhã do primeiro dia ligaram-me do IPO a dizer que tinha compatibilidade total com um bebé. Só atendi o telefone porque um colega ficou com a bicicleta avariada e teve de parar. No dia seguinte, a bicicleta avariou outra vez e eu decidi mesmo que ia embora. ” Meses depois, a sua mulher, que estava grávida, perdeu o filho. Agora, está grávida novamente. “Foi fazer um exame e ligou hoje a dizer que está tudo bem. ”A etapa entre Silves e Marmelete foi a mais dura. “Nunca pensei demorar tanto a fazer 45 quilómetros – mais de sete horas e meia. Já fiz 120 em menos tempo. Mas isto é uma questão de superação pessoal. Se não for duro não tem piada. Tem que ter sofrimento. ”A saída de Marmelete é marcada por um vasto eucaliptal. Muitas árvores foram arrancadas e há restos de troncos, ramos e folhas no chão. É lixo sem ser lixo. Abrem-se bem os pulmões para deixar entrar o ar purificado pelo eucalipto. Ao menos isso. Aqui a esteva tem o tamanho de homens altos. Ao longo da ribeira da Vagarosa o caminho continua fresco, apesar de a manhã estar a virar tarde. O sol não está tão generoso como na véspera. E os quilómetros vão passando quase sem darmos por eles. O vale está radioso, com os seus sobreiros de porte imperial, e a passarada parece concordar porque a sinfonia é constante. É a verdadeira música ambiente. Devem estar a chamar as fêmeas para acasalar e esforçam-se ao máximo para as convencer com o seu canto. A barragem da Bravura serve para um piquenique, com as fel da terra, umas flores cor-de-rosa, a pontilhar o caminho. À volta de Bensafrim a vegetação torna-se mais baixa, com aroeiras e carrascos. Mais ainda à medida que nos aproximamos de Vila do Bispo. Os sobreiros parecem não ter tido vontade de crescer. O solo começa a ficar arenoso, o mar vai aparecendo ao fundo. É bom chegar a tempo de jantar. No restaurante Mexelhão tudo sai das mãos treinadas da dona Teresa, mas a filha já está a aprender também. Somos servidos de percebes, xerém de lingueirão, cataplana de tamboril e torta de batata-doce. Falta muito pouco para chegarmos à costa, e a costa já veio ter connosco. Este é o celeiro do Algarve, diz-se. O vento molda tudo em volta: a vegetação rasteira, as árvores todas inclinadas na mesma direcção, as pernas a quererem voar. As searas ondulam, são um imenso mar verde. As colinas ficaram para trás, agora é só planície. E de repente uma longa linha recta em direcção ao mar. O horizonte fica no fim desta estrada. Uma curva no final e lá está o farol. Mas não vamos seguir pelo asfalto. Vamos fazer uma inflexão e entrar pelas dunas. Agora, junto a uma escarpa, o mar está a um salto. Tomilho de Sagres, esteva de Sagres, tudo é “de Sagres” por ser tão rente ao chão. Uma cegonha está no seu ninho num rochedo em frente. Um bando de gaivotas levanta voo. E num instante o farol está aqui. Mais um passo. Mais outro. E até poderia ser mais um quilómetro ou dois. Mas não é preciso. Já está. Ou como se diz na serra que não é Algarve, “tem avondo”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Pode muito facilmente ser confundida com uma casa normal de uma rua banal de Bensafrim. E da janela aberta até saem vozes de mulheres à conversa como numa cozinha familiar. Mas junto à campainha há uma pequena placa a dizer “fábrica”. Sara Correia, 46 anos, é a mulher das contas; a irmã, Isabel Matos, de 55, é quem põe as mãos na massa. A grande especialidade são os Dom Rodrigo: “Como nós fazemos já pouca gente faz. ” Queima-os numa frigideira de ferro para ficarem com aquela espécie de caramelizado – a mesma há 30 anos, e que nunca foi lavada. “Não se pode. ” A limpeza é feita com a calda de açúcar que, depois de atingir uma temperatura elevada, faz libertar os resíduos; tudo isso é deitado para um alguidar com água, e a frigideira fica pronta a ser novamente usada. Isabel não precisa de balança porque já tem “a medida na mão”. Espalha os fios de ovos na palma da mão, coloca um bocadinho de ovos moles com amêndoa, fecha numa bolinha, que a seguir é posta na tal calda, que às vezes tem de ser “destemperada com um bocadinho de água”, para não ficar tão forte. O lume da frigideira tem de estar bem alto. “Os famosos Dom Rodrigo do Algarve são assim e quem não fizer assim está a aldrabar. ” Mas já poucos os fazem desta maneira porque “dá muito trabalho”. Já Isabel faz 200 por hora. No Verão são 1200 por dia. “Ela é como um polvo, faz dez coisas ao mesmo tempo”, elogia a irmã. Agora acabou de recuperar uma receita antiga das queijadas de São Gonçalo. Foram três tentativas até acertar. “Nem fazemos análises ao colesterol para não nos assustarmos”, brinca Sara. As receitas são algarvias, mas as amêndoas vêm da Califórnia. “Já não há ninguém para as apanhar, está tudo ao abandono. Mas não é igual, porque a nossa tem um finzinho amargo que é logo diferente e nos doces é uma maravilha. ”Fábrica de Doces Regionais Sara Correia Rua de Sto. António, 16 Tel. : 914305812Aparecemos sem avisar em casa de Maria Nunes, tecedeira, em Monchique. Tem um enorme diospireiro à porta, e dezenas de sobreiros nas traseiras. Queixa-se que lhe falta a saúde, aos 80 anos. Mas arranja tempo para mostrar como se fia o linho e trabalha no tear. “Isto não se aprende em Coimbra, isto aprende-se mais uns com os outros. ” Já nem se lembra de quando começou a fiar e a sentar-se ao tear. “Faço desde há muito tempo. Desde os meus princípios. O meu brincar com bonecas era quase isto. Uma pessoa vai arranjando um grande caldo destes trabalhos. ” Aprendeu com a mãe, que aprendeu com as tias. Tem também duas senhoras agora a aprender com ela. “Estou muito feliz por isso porque era um sonho que eu tinha, alguém ir seguindo estas coisas que estão em dias de extinção. Se fosse muito lucrativa se calhar havia mais gente a querer aprender. Mas é mais uma questão de gosto. ”Prende o cabo da roca às calças. Enrola o fio ao fuso para mostrar como se faz. O linho parece uma madeixa de cabelo loiro, a enrolar-se à volta, como algodão doce. Junta o fio que acabou de fazer a outro já feito. “Onde é que o colei? Eu também não sei. ” Faz-se um novelo. E repete: “Isto é uma coisa que está em dias de extinção e é muito importante as pessoas conhecerem, porque daqui faz-se o pano, a toalha, o lençol. ”Vai buscar o sarilho: “Quando tiver muito fio deste vou metê-lo aqui, que é onde faço a meada. Depois é cozido, como quem coze um comer, lavado com cinza, vai a corar e fica assim com esta cor, creme. ” São os novelos que saem daqui que vão para o tear. Nem sempre trabalha em linho, às vezes usa algodão, mais barato. “Depois as pessoas não me compravam porque um estava dentro do conhecimento, outro não estava, e achava que era muito caro, porque estamos em dias de pouco dinheiro. . . Faço uns paninhos assim de linho, de tabuleiro, tenho vendido a dez euros. Mas não me paga muito, é mais o gosto de fazer aquilo. Faço os possíveis. É como se costuma dizer: ‘Onde se chega não é curto’. ”Gosta de tudo o que a serra tem para dar. “O litoral não tem a ver com a minha natureza. ” Otília Cardeira, 65 anos, é presidente da junta de freguesia do Cachopo e uma apaixonada pelo campo à sua volta. Montou um rancho, um grupo de cantares. Montou um quiosque de produtos artesanais. Montou um pequeno museu da tecelagem. É uma sala de uns 40 metros quadrados, tecto em canas e barrotes de madeira como se fazia antigamente, chão de tijoleira, teares, sacolas, alforges e cachecóis pendurados na parede, uma descrição do tratamento do linho, da planta até à peça terminada (tem um vaso à porta com alguns pés e um campo inteiro dele nas redondezas). Quando entrámos no museu, estava a trabalhar num tear, já com mais de 60 anos – o outro ao lado, com mais de 80, já está parado. “Estou no enfiamento da teia, a montar a teia. Vou fazer vários cachecóis. ” Esta é a sua terapia. “Todos os dias tenho que vir aqui fazer qualquer coisa. ” Dá formação a quem se interessar, mas poucos se interessam. “Tenho tentado passar tudo o que me ensinaram para ver se esta actividade não desaparece. Os mais jovens foram para fora. Os poucos que há eram a minha esperança. Mas fala-se tanto em apoio ao artesanato e no fim fica tudo em baldes de caldeirão. ”Ela também não nasceu ensinada. Trabalha na tecelagem desde 1986, com a Associação In Loco (de desenvolvimento local). “Para se fazer um projecto tem de haver dinheiro de lado, porque o financiamento nunca vem a horas. ” A burocracia pesa. Mesmo assim, insiste com os jovens que poderiam investir em áreas ligadas à terra. “Aqui a natureza ainda está intacta, a flora, a fauna. Temos recursos muito bons. . . Mas é preciso acordar cedo, fazer isto ou aquilo, e eles já não estão para isso. ” Estão mais virados para os computadores. “Eu também estou. Já não vivia sem isso. ” Mas há coisas que a desgostam. “A lã está a ser mal aproveitada na nossa zona. Não há quem agarre o linho, como eu agarrei: do semear até à peça. ”A escola onde Leta está a trabalhar, na Torre, próxima de Alte, é a mesma onde aprendeu a ler, escrever, fazer contas. Mas o que se passa agora na sala de aula é uma coisa bem diferente. Ao centro, há uma enorme mesa cheia de bonecos, quebra-cabeças, brincos, pulseiras, colares, tudo em madeira. Leta, ou mais formalmente, Alierte Graça, juntou-se a Ana Maria e Silvina e as três asseguram produção constante nesta oficina. Por isso lhes chamam “as moças da Torre”. A madeira dos brinquedos vem de Messines, mas para a bijuteria basta sair para o campo: ramos de urze, esteva, sobreiro, oliveira, marmelos que não chegaram a crescer, anis, laranjas, tojo, alfarrobeira… Podemos enfeitar-nos com a serra quase toda. Leta faz hoje 64 anos, mas os seus olhos azuis e pele lisa parecem desmenti-la. Só o cabelo está branco. “Eu alguma vez pintava o cabelo? Depois deixava de ser eu. ” As três mulheres contam-nos animadamente como regressaram à escola passados tantos anos. Em 1989 fizeram um curso profissional, “só para o monitor ganhar dinheiro”. “A primeira coisa foi fazer a bancada e os bancos para a gente se sentar. ” Ana Maria diz que “nunca tinha pregado um prego”. E era preciso três pessoas para fazer uma roda: uma segurava a tábua, a outra apontava a broca, a terceira puxava a manivela para baixo. “A gente fez uns comboios de encaixar e aquilo deu tanta dor de cabeça! Eram uns 15 dias sempre com o mesmo comboio. ” Agora basta um dia. No quadro de ardósia na parede estão mensagens dos visitantes, a maioria turistas estrangeiros. Há um pouco de tudo: Filipinas, Bangladesh, Madagáscar, Tanzânia, Senegal…José Salvador também é conhecido como “o homem das cadeiras de Monchique”. Os romanos é que foram os criadores destas cadeiras de tesoura, que sobreviveram até hoje. “Mas fazer o que se fazia antigamente não me diz muito. Tive que ir mais longe. ” E o que ele fez foi pôr-lhes umas costas, mais ou menos floreadas (“as costas dão um conforto”), construí-las em miniatura, ou numa versão gigante, transformá-las em mesa, ou banco, sem braços. . . “Criei trinta e tal modelos diferentes. ” Os mais especiais, ele assina. Tornou-se carpinteiro aos 13 anos e já leva 60 de ofício. “O meu pai era serrador, eu estive sempre ligado à carpintaria: oficinas, cofragens, portas”, diz. “Nasci com os dedos na madeira. ” Aos 14 ficou sem a ponta de um deles, que cortou numa serra. “A partir da década de 1960 começou-se a falar de artesanato – pensei que me havia de dedicar a este trabalho. Como as cadeiras são dobráveis, os turistas compravam-nas muito. Depois, os portugueses começaram a gostar” e os clientes aparecem agora de todo o país. O negócio já foi mais animador. “Antes eram 12 ou 13 a fazer cadeiras, agora somos dois ou três”, diz na sua oficina, enquanto encaixa a grande velocidade todas as peças que formam esta “tesoura”. “Mas ainda não deitei a toalha ao chão. ”Alcoutim: Casa dos Avós (Tel. : 967 531 064; visitaralcoutim@gmail. com) Balurcos: Casa do Vale das Hortas (Tel. : 281 547 035; 962 931 514) Furnazinhas: Casa do Lavrador (Tel. : 281 495 748 / 933 200 541 /915 929 654) Vaqueiros: Casas d’Aldeia Cachopo: Centro de Descoberta do Mundo Rural, Casas Baixas (Tel. : 289 840 860; 961 478 155) Barranco do Velho: Hotel Tia Bia, EN2 (Tel. : 289 846 425) Salir: Casa da Mãe (R. de Ameijoafra; Tel. : 289 489 179) Alte: Alte Hotel (Tel. : 289 478 523; altehotel@mail. telepac. pt) São Bartolomeu de Messines: Casa Bartholomeu (Tel. : 965 189 375/ 969 426 599; cafeacademicomessines@gmail. com) Silves: Hotel Colina dos Mouros (Tel. : 282 440 420; geralreservas@colinahotels. com) Monchique: Villa Termal das Caldas de Monchique (Tel. : 282 910 910) Marmelete: Centro de acolhimento de Marmelete (Tel. : 282 955 121 / 968 702 240; info@jf-marmelete. pt) Bensafrim: Quinta Gonçalves (Tel. : 966 672 461; geral@quintagoncalves. pt) Vila do Bispo: Hotel Mira Sagres (Tel. : 282 639 160; naturimar@gmail. com)Alcoutim: Restaurante Camané (Praça da República; Tel. : 964 108 585) Balurcos: Taberna do Ramos (EN 122 Cruzamento das 4 Estradas; Tel. : 962 803 673) Furnazinhas: Casa do Lavrador (serve jantar aos hóspedes) Vaqueiros: Casa de Pasto Teixeira Cachopo: Restaurante Charrua (Rua Padre Júlio de Oliveira, 44; Tel. : 918 465 789) Barranco do Velho: Hotel Tia Bia (EN2, Barranco do Velho; Tel. : 289 846 425) Salir: Casa da Mãe (R. de Ameijoafra; Tel. . 289 489 179; só aos hóspedes e por encomenda) Alte: Restaurante “A Cataplana” (Alte Hotel; Montinho; Tel. : 289 478 523; altehotel@mail. telepac. pt) São Bartolomeu de Messines: Restaurante Académico (Rua Cândido dos Reis, 44; Tel. : 282 339 253) Silves: Em Silves existe um grande número de restaurantes ao dispor dos visitantes. Monchique: Restaurante A Charrete (Rua Dr. Samora Gil, 30 e 34; Tel. : 282 912 142; Encerra às quartas-feiras) Marmelete: Snack-bar Restaurante Luz (Largo Coronel Artur Moreira; Tel. : 282 955 244; Aberto todos os dias) Bensafrim: Restaurante O Koala (Rua do Poço, 2; Tel. : 282 687 594; Encerrados às segundas-feiras) Vila do Bispo: Restaurante O Mexilhão (Rua 1. º de maio, 32; Tel. : 282 639 108; Aberto todos os dias)
REFERÊNCIAS:
Extremo Ocidental: Edifício em ruínas junto ao mar, com porteiro
As ruínas dos estaleiros de São Jacinto são a imagem da crise e decadência de toda a região, cuja única actividade parece ser hoje a apanha da amêijoa na ria. O saque reduziu o enorme edifício dos estaleiros a um escombro que faz lembrar uma zona de guerra. (...)

Extremo Ocidental: Edifício em ruínas junto ao mar, com porteiro
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: As ruínas dos estaleiros de São Jacinto são a imagem da crise e decadência de toda a região, cuja única actividade parece ser hoje a apanha da amêijoa na ria. O saque reduziu o enorme edifício dos estaleiros a um escombro que faz lembrar uma zona de guerra.
TEXTO: Domingos Teixeira trabalha e vive nos Estaleiros Navais de São Jacinto desde 4 de Janeiro de 1977. Regressou de Moçambique em Agosto do ano anterior e, quatro meses depois, era um dos mais de 800 operários da grande empresa fundada por Carlos Roeder. Um acidente de trabalho impediu-o de manobrar as máquinas que moldam o aço, e fizeram-no porteiro, profissão que manteve toda a vida. Ainda hoje conserva a casa que lhe foi atribuída e a guarita de porteiro, logo à entrada do gigantesco edifício estrategicamente situado entre o mar e a ria. “Nunca daqui saí. Ia para onde?”, diz Domingos, 71 anos, metendo a chave na porta para guardar uma serra eléctrica. Lá dentro vêem-se alfaias de jardinagem, ferramentas, o atrelado de uma lancha. “Sempre tive o hobby da jardinagem, que agora, que estou reformado, exerço para fora, em várias casas de pessoas conhecidas. Guardo aqui tudo, a minha vida está centralizada aqui. Nunca ninguém me incomodou”. O reconhecimento e devoção para com os Estaleiros constituem quase uma filosofia de vida para Domingos Teixeira. Foi aquela empresa, que ali começou a operar em 1940, que o recebeu no país, lhe deu trabalho, casa, assistência de saúde, instrução e formação aos três filhos. Até a filha ali fez um curso de soldadura e serralharia. Não obstante ainda lhe dever 20 mil euros em salários, a empresa continua a merecer o respeito de Domingos, não nos actos de alguns dos seus agentes, mas na sua incólume reputação de entidade superior às contingências. Domingos nunca se considerou aliás o porteiro de um edifício, de uma administração, de uma entidade patronal. Ele sempre foi o porteiro de uma ideia. De uma época feliz, de uma certa concepção de dignidade, de um sentimento de solidez e de futuro. Os portões que guardava eram dessa realidade, da actividade enérgica que nunca parava, do espírito de sacrifício e de cooperação dos trabalhadores, do fundador, Carlos Roeder, e dos seus herdeiros na propriedade e gestão da empresa, João dos Santos, Jorge Pestana, Henrique Moutela, Vale Guimarães. Abandonar o seu posto seria renegar e trair um mundo que guardou toda a vida. Como se separar-se da actividade frenética dos Estaleiros fosse pior do que morrer. E a verdade é que a actividade, essa, nunca parou. Apenas mudou em tipo, estilo, protagonistas e natureza. Em São Jacinto, as praias têm uma escala diferente de todas as outras na costa portuguesa. São imensas e vazias, prolongadas por extensões de dunas, a perder de vista. Inseridas na Reserva Natural das Dunas de São Jacinto, constituem, com os pinhais e a Ria, um universo selvagem, bravo e enigmático. Há trilhos, marcados por sinais feitos de troncos, pedaços de redes e conchas, que ligam a orla da Ria aos areais junto ao mar. Caminhos na floresta, de vinte minutos a pé, furados nos arbustos, nos troncos retorcidos e nas camadas densas e esfareladas de trufas, húmus costeiro, desfeito e queimado. Não há fronteira definida entre as dunas e a praia. A imensidão branca parece levitar numa névoa quente de reverberações azuis, que mergulha na areia e a levanta. O mar é aterrador. As ondas não correm na mesma direcção, não se alinham nem sucedem de maneira prenunciada. São anárquicas, cruzam-se e atropelam-se, rebentam umas em cima das outras. O rugido do mar não vem da superfície, não brota do que se vê, mas da profundidade. Nasce de dentro da própria areia, fazendo tudo estremecer e estalar como um vulcão de vento e espuma. Chega-se aqui por uma estrada à beira da ria, numa estreita língua de terra, desde o Furadouro. Com Vila do Conde para trás, segui por estradas locais, por Mindelo, Vila Chã, Labruge, Lavra. As praias confluem com campos de cultivo. De súbito, no meio de uma falésia, junto a Labruge, avista-se a capela de S. Paio, num campo verde junto à água. E a praia de S. Paio, um lugar de beleza única. Depois do Porto, blocos de apartamentos, prédio e moradias, entre passadiços sobre a areia. Estrada Nacional 109, semáforos, filas de trânsito, oi mar sempre perto. A partir de Ovar, a estrada nacional 327. Furadouro à direita, a Ria à esquerda, até São Jacinto. Olhando em redor, vêem-se duas autocaravanas e três ou quatro tendas. É verdade que o parque não tem restaurante, nem piscina. Mas fica num amplo pinhal, entre a ria e a praia, com um caminho directo para o mar, por entre a vegetação da Reserva Natural. Seria uma base ideal para turistas da Natureza, observadores de aves, amantes de praias selvagens, de pesca, de windsurf ou kite surf. Mas onde estão eles?Toda a região, desde o Furadouro, a língua de terra que passa pela Torreira e a praia de Monte Branco, ao longo da Ria e do canal de Ovar, até às lagunas da Gafanha da Nazaré e de Ílhavo, é de uma beleza irrepreensível. É singular e variada, amena e aprazível. Mas quase não tem turismo. Estatisticamente, aumentou o número de visitantes estrangeiros em Portugal. Mas os locais escolhidos são Lisboa, Porto, Algarve e pouco mais. O resto do país, incluindo zonas que já atraíram muito turismo, no passado, está agora quase vazio. O movimento reduz-se aos veraneantes portugueses e espanhóis de fim de semana e os emigrantes de férias. “Há muitos turistas, mas são todos low cost, não quem gastar dinheiro”, diz João Gomes, gerente do parque de campismo de São Jacinto, que tem vindo a dispensar pessoal nos últimos anos, e fecha no Inverno, ao contrário do que era habitual. “Mesmo aqui no campismo, que é mais barato, tenho visto as pessoas a perguntarem os preços na recepção e irem embora, por acharem caro”. A praia de São Jacinto, uma das mais deslumbrantes do país, está quase vazia. O bar das dunas, que tinha a concessão da praia, já não abre há dois anos. São obrigados a manter, durante a época balnear, uma certa estrutura, incluindo dois nadadores-salvadores, o que não é possível, com o actual reduzida quantidade de banhistas. “Há dois problemas: A Reserva natural, que é muito limitativa, e o ferry”, diz Raul Valentim, gerente do Ondas Bar, junto à praia de São Jacinto. “Não há estrada directa para vir da zona de Aveiro para aqui, não há uma ponte. E o ferry é caro (15 euros, ida e volta). E o último barco da noite é pouco depois das 10 horas, o que impede que alguém venha aqui jantar, com calma”. João Nabais, gerente do restaurante O Terminal, não tem nenhuma esperança de que se venha a construir uma ponte sobre a Ria. “Viria de onde? Da Gafanha, da zona de Aveiro? As autoridades da Reserva nunca o autorizariam. A ponte é um sonho que nunca se vai realizar”. O Terminal situa-se na nova zona marginal de São Jacinto, inaugurada o mês passado. É um projecto Polis Litoral, co-financiado pela União Europeia, integrado no “reordenamento e requalificação da Ria de Aveiro”, e que inclui nova pavimentação da zona ribeirinha, marina, etc. “Espero que esta estrutura venha trazer mais gente a esta zona”, diz João Nabais sem muita convicção. “Em anos anteriores, havia muitos turistas franceses. Deixou de haver, e agora estão a voltar, mas ainda poucos. O movimento aqui é apenas aos fins-de-semana. No Inverno fica tudo parado. Sobrevivemos enquanto houver a boa vontade e compreensão de alguns fornecedores, que esperam pelo Verão para serem pagos”. Não havendo ponte, que romperia o isolamento da região, o ferry deveria ser mais barato, mais moderno e mais rápido. “Era preferível um barco mais pequeno, mas que fizesse a viagem mais vezes”. São Jacinto é uma zona esquecida, diz o empresário. “Tirando a Torreira, conhecida como o Algarve do Norte, tudo o resto está morto. Esta região está muito mal trabalhada em termos de turismo. Todo o esforço de promoção se concentra na faixa entre a Costa Nova e a Figueira da Foz. Nós somos o parente pobre do turismo”. Luís Figueiredo, empresário de eventos da zona de Coimbra, ficou admirado com a ausência de estruturas hoteleiras nesta região. “Não há um hotel, um complexo de apartamentos. Nada que atraia as pessoas. Como é possível vir para aqui? Ninguém conhece esta zona. Eu próprio, que sou de Coimbra, nunca aqui tinha vindo”. Luis Figueiredo quis organizar um festival de Verão na zona de Aveiro. Contactou a Câmara Municipal, que lhe recomendou São Jacinto. E começou a trabalhar, mas não tem sido fácil. O Tugafest — o festival mais português de Portugal, vai realizar-se de 19 a 23 de Agosto, com dois palcos, Quim Barreiros, José Cid, Ana Moura, Herman José e os Xutos e Pontapés, na praia de São Jacinto. Mas só duas semanas antes a divulgação começou a ser feita. “É um festival dirigido principalmente aos emigrantes, com artistas portugueses”, diz Figueiredo. “Queremos puxar ao português, ao contrário dos outros festivais de Verão. E apostamos em ter cá umas 50 mil pessoas, atendendo a que temos em cartaz os principais nomes portugueses”. Mas admite que se tiver metade desse número de espectadores já será um êxito. As entradas no festival são pagas, e “as pessoas estão habituadas às festas organizadas e pagas pelas Câmaras, que são de graça. Quase nem consegui ter uma exposição de artesanato, porque os artesãos costumam ser subsidiados pelas Câmaras. Quando lhes disse que não vinham ganhar, recusaram o convite”. Perto da data do Tugafest, aliás, há um concerto de Tony Carreira, de entrada gratuita. “É difícil ter alguma iniciativa e organizar alguma coisa, num mundo regional subsidiodependente”. Às 7 da manhã, com a maré baixa, a Ria já está cheia de gente. Na estrada da Torreira a São Jacinto ou a da outra margem, no Cais da Bestida, podem ver-se centenas de vultos mergulhados na água até à cintura, empunhando redes e ancinhos, na apanha da amêijoa. Rui, a mulher e um filho têm a sua própria zona, não longe da ponte que faz a ligação à estrada de Estarreja. É uma área de bancos de areia e covas de lodo, que eles perscrutam com as mãos. “Nunca pensei voltar a isto. É uma vida duríssima. O meu filho ajuda-me só no Verão”, diz Rui, que trabalhava num restaurante que fechou. “Andamos aqui porque não há nenhum outro trabalho na região”. Rui e a família apanham um máximo de 10 quilos de amêijoa num dia, que vendem a 3 euros o quilo a um intermediário. São uma das muitas famílias que vêm para a Ria todos os dias das 7 da manhã até ao meio-dia, quando a maré sobe. “Eu só venho apanhar para mim, para uma caldeirada”, diz João, que está reformado e já andou nos navios do bacalhau. O seu método é o mais rudimentar: quando detecta uma quase imperceptível depressão na areia, enfia o dedo indicador e, se a sua intuição não falhou, desenterra uma amêijoa. Geralmente uma “japónica”, uma espécie com manchas na concha que surgiu nas Ria nos últimos anos. Com mais sorte, apanha uma “preta”, ou mesmo uma “rainha”, que têm mais valor comercial. Conta que os intermediários que compram toda a amêijoa a vendem para Espanha. É um negócio ilegal, tal como a apanha da amêijoa, quando não se possui uma licença específica. Todos os apanhadores de amêijoa que se vêem na Ria são ilegais. Por vezes, a Guarda surge inesperadamente, na estrada da Bestida, e leva muitos deles presos. Mas a actividade compensa, mesmo com as multas, explica João, antes de se dirigir à pressa para a sua motorizada, estacionada na estrada à beira da Ria. “Não quero conversas com eles”, diz, a fugir do grande grupo que se dirige para a margem. São ciganos, que “varrem”, em grupos de 10 ou 15 elementos, grandes extensões de Ria. Usam ancinhos, redes e outras ferramentas ilegais, e, segundo João, controlam as melhores zonas. “Hoje foi um dia normal. Apanhámos uns 30 quilos”, diz Alexandre, um jovem cigano integrado num grupo de seis, descarregando a colheita do dia nuns cabazes encaixados na traseira de uma carrinha. “Toda a nossa família vive da amêijoa. Não se fica rico, mas é o que há para fazer”. Rui, que traz da água o filho de 12 anos às cavalitas, assegura que não há na região outra fonte de rendimento além da apanha de bivalves na Ria. “Hoje em dia, posso dizer que toda a região, da Murteira a São Jacinto, vive da amêijoa”. Foi em 2006 que os Estaleiros Navais de São Jacinto, com os seus 70 mil metros quadrados, situados no braço da ria que forma o canal de São Jacinto até Ovar, com acesso directo à barra de Aveiro, fecharam definitivamente as portas. Carlos Roeder, um empresário formado em engenharia na Alemanha, criou a empresa em plena Segunda Guerra Mundial. Durante o Estado Novo, os Estaleiros tiveram de lutar muitas vezes de forma desigual, pelo favorecimento oficial, devido à tendência oposicionista do seu fundador e proprietário, Carlos Roeder. Mas a empresa impôs-se pela habilidade de manobra dos seus administradores, e pela função social que desempenhou na região, através da Fundação criada por Roeder, que financiava a Saúde, refeitórios, habitação, e os estudos dos operários e seus filhos. A empresa faliu, numa confusão de dívidas, penhoras, falcatruas. Segundo Domingos, as Finanças, para recuperarem algum dinheiro, venderam tudo o que puderam, em leilões, ao desbarato. “O sucateiro Godinho é que fez os melhores negócios. Veio cá e comprou o que pôde. Comprou uma máquina de 120 mil contos por 120 contos. E mais 43 toneladas de aço para construção de navios por 40 contos”. Depois desta fase começou o saque. Como o edifício tivesse ficado abandonado, os homens da terra vieram com carrinhas roubar o que puderam. “De início tinham cá um homem a tomar conta, mas como não lhe pagavam, ele não fazia nada”. Tal como não fazia ele, Domingos, o porteiro, que deixou roubar tudo o que foi deixado no complexo de edifícios, desde mobiliário a máquinas, materiais e documentos. “Eram pessoas conhecidas, de cá da terra, que estavam desempregadas, precisavam de dinheiro para as famílias. Levaram tudo, mas não tocaram na minha casa”. Tal como acontece com os abutres, o saque teve várias fases, consentâneas com as fases da própria crise da região. Depois dos bens mais ligeiros, começaram a chegar os camiões, para carregar aço, madeiras e pedra. “Levaram um cofre de 1500 quilos, que levantaram com uma grua para um camião”, recorda Domingos, que assistiu a tudo, à porta de casa. Quando parecia já não haver nada para levar, vieram com equipamento de demolição derrubar paredes e telhados, para vasculhar todo o interior. E para recolher telhas e pedra. Há rombos nas paredes que parecem causados por bombas. Até que ficaram apenas as vigas de ferro da estrutura do edifício. “Vieram com maçaricos e máscaras, fundiram, partiram, depois prenderam as vigas a camiões e arrastaram-nas pela estrada”. O estado de destruição e ruína em que se encontra hoje o edifício é tal, que, conta Domingos, equipas de cinema têm vindo rodar filmes de terror, e os militares da unidade de São Jacinto vêm fazer treinos com simulação de situações de guerra. Domingos, apesar de tudo, nunca saiu da sua casa. Dos estaleiros, já nada existe, além do porteiro, que é também a sua testemunha e o seu historiador. “Mas quem sabe tudo sobre os Estaleiros, porque estudou o assunto, é o senhor Libério, que já morreu, mas escreveu um livro”, recomenda Domingos. A viúva de Libério Pereira, Maria José da Cunha, de 77 anos, vive numa vivenda ali perto, com os netos, ambos desempregados. “Faz hoje um ano que ele morreu”, diz ela. O marido foi torneiro-mecânico nos Estaleiros, arte que aprendeu lá. Tinha vindo da Figueira da Foz com o pai, que veio trabalhar com os militares da Marinha. Os pais de Maria José vinham de Aradas, e tinham uma tenda de pão, que fornecia também a base militar. O avô materno viera para a região para trabalhar na safra do caranguejo, que existia na ria antes de se descobrir a amêijoa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A família trabalhou, progrediu e estudou graças aos Estaleiros de São Jacinto e à Fundação de Roeder. Em demonstração de gratidão, Libério e a mulher compuseram canções e escreveram peças de teatro, que representavam na escola local. E Libério escreveu um livro, todo em verso, sobre São Jacinto e os Estaleiros. Uma espécie de epopeia, que foi editada pela Junta de Freguesia e esgotou três edições.
REFERÊNCIAS:
Vietname: Os filhos do pó
Há 40 anos saía da antiga Saigão o último contingente militar americano. Para trás ficava um país com as marcas da guerra e muitos filhos, conhecidos como “bui doi”, “filhos do pó”. (...)

Vietname: Os filhos do pó
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há 40 anos saía da antiga Saigão o último contingente militar americano. Para trás ficava um país com as marcas da guerra e muitos filhos, conhecidos como “bui doi”, “filhos do pó”.
TEXTO: Os filhos abandonados pelos soldados americanos no Vietname cresceram com o inimigo no rosto, foram ostracizados, muitos acabaram nas ruas como sem-abrigo. Uma americana-asiática criou a Operação Reunificar e acredita que testes de ADN podem ser a última esperança para juntar pais e filhos. Mas nem todas estas histórias têm um final feliz. PUBVo Huu Nhan estava no seu barco a vender legumes no mercado flutuante no delta do rio Mekong quando o telefone tocou. A pessoa que lhe ligava dos Estados Unidos tinha uma notícia estrondosa para lhe dar: uma base de dados de ADN ligava Vo Huu Nhan a um veterano da guerra no Vietname que poderia ser o seu pai. Nhan, de 46 anos, sabia que o pai tinha sido um soldado americano, que se chamava Bob, mas pouco mais. “Estava a chorar”, lembrou-se recentemente Nhan. “Ao longo de 40 anos, não soube nada do meu pai, e estive finalmente com ele. ”Mas o caminho para a sua reconciliação não tem sido fácil. Os resultados positivos do teste de ADN desencadearam uma cadeia de acontecimentos que envolviam duas famílias separadas por 14 mil quilómetros e a doença do veterano, Robert Thedford Jr. , vice-xerife reformado do Texas, tem dificultado o processo. Quando o último contingente militar americano deixou a antiga Saigão — actual Cidade de Ho Chi Minh — entre 29 e 30 de Abril de 1975, deixou também um país com as cicatrizes da guerra, um povo sem saber do seu futuro e milhares de filhos. Estas crianças — metade negras, metade brancas — foram fruto de ligações amorosas com empregadas de bar, com “hooch” (como eram conhecidas as vietnamitas que limpavam as instalações militares americanas), com engomadeiras e com as mulheres que enchiam os sacos de areia que protegiam as bases americanas. Chegam agora à meia-idade com histórias tão intricadas como as dos dois países que lhes deram vida. Cresceram com o inimigo no rosto, foram cuspidas, ridicularizadas, sovadas. Foram abandonadas, enviadas para longe para viverem com outros membros das famílias ou vendidas como mão-de-obra barata. As famílias que ficavam com estas crianças eram muitas vezes forçadas a mantê-las escondidas e a raparem-lhes os cabelos louros ou os caracóis que as denunciavam. Algumas foram enviadas para programas de reeducação em campos de trabalho forçado ou acabaram como sem-abrigo a viver nas ruas. Eram conhecidos como “bui doi”, o que significa “filhos do pó”. Quarenta anos depois, muitos continuam no Vietname, demasiado pobres ou sem qualquer prova que lhes permita candidatarem-se ao Amerasian Homecoming Act, uma lei de 1987 que deu estatuto de imigrante americano aos filhos de soldados americanos. Agora, um grupo de americano-asiáticos (amerasian, na expressão inglesa que resulta da fusão das palavras “americano” e “asiático”) acaba de se lançar numa última tentativa para reconciliar pais e filhos com o apoio de uma nova base de dados de ADN num site de genealogia. Os que ficaram para trás têm pouquíssima informação sobre os seus pais — a maioria da documentação e das fotografias foram queimadas sob o regime comunista e as memórias foram sendo apagadas. É por isso que a única esperança está nos testes de ADN. É Primavera na Cidade de Ho Chi Minh. As árvores de alperce, símbolo do Festival de Primavera de Tet (que marca o início do calendário lunar), estão em flor. Um sem-fim de motociclos serpenteia entre o tráfego automóvel. Lojas de moda como a Gucci cintilam ao lado de cadeias de restaurantes da KFC. Pouco ou nada resta da presença americana do passado, excepção para um helicóptero enferrujado no pátio do museu dedicado à glória comunista. Mas os segredos de família estão enterrados como minas terrestres. A instrutora de Pilates de New Jersey Trista Goldberg, de 44 anos, orgulha-se de ser americano-asiática e é a fundadora da associação Operation Reunite (Operação Reunificar). Em 1974, foi adoptada por uma família americana e em 2001 descobriu a sua mãe biológica. Há duas primaveras reuniu 80 pessoas para fazerem testes de ADN numa casa na Cidade de Ho Chi Minh. Assim, Trista espera conseguir completar o processo de 400 pessoas que ainda têm pendentes as suas candidaturas a um visto americano. “Bastava uma reviravolta do destino e também eu seria uma dessas pessoas deixadas para trás”, diz. Mais de 3 mil órfãos vietnamitas foram retirados do caos que se viveu nos últimos dias da guerra. A vida mudou com a lei de 1987, que permitiu a 21 mil americano-asiáticos e mais de 55 mil membros das suas famílias ficarem nos Estados Unidos. Os “filhos do pó” tornaram-se de repente “filhos de ouro”. Houve vietnamitas com posses a comprar americano-asiáticos para logo a seguir os abandonar mal chegavam aos Estados Unidos, diz Robert S. McKelvey, antigo marine e psiquiatra infantil, autor de The Dust of Life: America’s Children Abandoned in Vietnam (numa tradução literal “Os Filhos do Pó: As Crianças da América Abandonadas no Vietname”). Foi em parte por causa de fraudes como esta que os Estados Unidos apertaram as regras de acesso à imigração e em resultado a atribuição de vistos teve uma descida drástica. No ano passado, foram atribuídos 13. Nhan viajou de casa, na província de An Giang, até à Cidade de Ho Chi Minh para a sessão de recolha de ADN organizada por Trista Goldberg. É um homem pacato, um pai de cinco filhos, com a 3. ª classe, um sorriso largo e orelhas de abano. Quando ele tinha cerca de dez anos, a mãe disse-lhe que era filho de um soldado americano. “Por que é que os miúdos passam a vida a gozar comigo? Chateiam-me tanto que às vezes fico com vontade de lhes bater”, dizia Nhan à mãe. “Ela fez uma pausa e explicou-me que eu era ‘mestiço’. Parecia triste, mas os meus avós disseram que gostavam de mim na mesma, que isso não interessava. ”Depois de feitos os testes de ADN, Nhan e os outros aguardaram para ver como esta nova tecnologia os poderia levar ao sonho americano. No Outono, Louise, a mulher de Bob Thedford, uma entusiasta de genealogia, acedeu à sua conta pessoal no site da Family Tree DNA (empresa que analisa os genes das pessoas para determinar a sua ancestralidade e que está a colaborar com o projecto de Goldberg) e teve uma grande surpresa. Havia novas informações sobre o seu marido, um link pai-filho. O filho era Nhan. Há muito que Louise suspeitava de que o marido poderia ter tido filhos nos seus tempos de soldado no Vietname, no final dos anos 1960. Pouco tempo depois de estarem casados, Louise tinha encontrado na carteira do marido a fotografia de uma mulher vietnamita. A notícia acabou por chocar mais a filha, Amanda Hazel, com 35 anos, uma assistente jurídica em Fort Worth. “Para ser honesta, devo dizer que a primeira coisa em que pensei foi: têm a certeza de que isto não é um esquema?”, recorda Hazel. Pouco tempo depois, chegaram as fotografias de Nhan. Ele era igualzinho ao avô, Robert Thedford Sr. , um veterano da Marinha que combateu na II Guerra Mundial. “És tal e qual o teu avô PawPaw Bob”, disse Bob ao filho. Thedford, o robusto vice-xerife reformado do condado de Tarrant, no Texas, conhecido como “Vermelho” por causa da cor caju dos seus cabelos, conheceu a mãe de Nhan quando estava na base aérea de Qui Nhon. Tem uma vaga memória dela e a família diz que raramente falava sobre a guerra. “Ele nunca se sentava para lamentar [a guerra]”, recorda agora o enteado, John Gaines. “Quando lhe perguntava se tinha matado alguém, ele respondia: ‘Sim, mas tens de entender que havia razões por detrás disso e que fazia parte da guerra. E não vou ficar para aqui sentado a explicar-te o que é que isso significa’. ”Enquanto Thedford ensinava a filha Hazel a andar de bicicleta e a nadar no Texas suburbano, Nhan crescia na quinta de porcos dos avós, nadava no rio e era apanhado a roubar mangas. A disparidade entre estas duas vidas continua a atormentar Thedford. Diz Gaines: “Ele continua a dizer: ‘Eu não sabia’. ” “Eu não sabia como poderia estar lá, ou teria encontrado maneira de estar. Só vos posso dizer que me surpreendeu e odeio tê-lo descoberto 45 anos depois. ”Seguiram-se várias tentativas de contacto, apesar de Nhan não falar inglês nem ter computador. Houve quem tivesse servido de intermediário para a troca de emails; houve trocas de encomendas. Nhan mandou sandálias feitas por ele e os chapéus típicos em cone de quem trabalha nos arrozais; os Thedford mandaram uma nota de 50 dólares e produtos dos Texas Rangers. Robert Thedford estava sempre a perguntar-lhe: “Precisas de alguma coisa?” Depois, houve a primeira e emotiva chamada por Skype, e os dois choraram quando se viram pela primeira vez. “Ele parecia-se comigo”, diz Nhan. “Senti que fiquei imediatamente ligado a ele. ” Mas em Agosto último, Thedford, com 67 anos e que já tinha recebido tratamento por causa de um cancro de pele, voltou a ficar doente. O cancro tinha alastrado e foi submetido a uma série de intervenções cirúrgicas, a mais recente a 3 de Abril. À medida que a família do Texas ia tratando e cuidando dele, ia também descurando a do Vietname. Recentemente, Nhan e Hazel falaram por Skype, ele num velho e poeirento computador nas traseiras da retrosaria de um amigo, na Cidade de Ho Chi Minh, ela na sua sala com os cães a correr por ali à volta. Nhan perguntou como estava o pai. “Tem passado bem. Já se consegue sentar. Estão a tratar dele. Sinto-me mal por não te ligar, mas a mãe e o pai pensam em ti e falam muitas vezes de ti. ” Enquanto estava no hospital, Thedford mostrou fotografias de Nhan às enfermeiras, dizendo: “Este é o meu filho no Vietname. ”Em Dezembro de 2013, Nhan levou os resultados dos testes de ADN ao consulado americano na Cidade de Ho Chi Minh, para que o seu processo fosse reavaliado. Não obteve qualquer resposta até agora. Um porta-voz da Secretaria de Estado diz que a legislação sobre a privacidade impede comentários sobre o caso. Hazel afirma que toda a família está empenhada em ajudar Nhan a emigrar, apesar de ela saber que a transição seria difícil. “Vai deixá-lo completamente à toa”, diz. A história deles ainda não tem um fim, assim como a guerra é uma ferida que não sarou. É uma história que continua em espiral, como a dupla hélice do ADN que os juntou. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
O poder redentor das histórias
Saímos de Desh - o primeiro solo de dança contemporânea do coreógrafo britânico de ascendência bengalesa Akram Khan (Londres, 1974) – com a convicção de termos visto, para além dele, uma multidão de personagens em cena. Magistralmente interpretado, a partir de textos da poetisa Karthika Nair, trechos dançados e, sobretudo, com a assombrosa concepção visual de Tim Yip, Khan traz-nos uma deslumbrante meditação poética sobre os conflitos interiores de um emigrante da segunda geração: a ambiguidade da pertença, a mitologia das origens, a nostalgia da infância e das histórias fantásticas dos antepassados, e os balanço... (etc.)

O poder redentor das histórias
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
TEXTO: Saímos de Desh - o primeiro solo de dança contemporânea do coreógrafo britânico de ascendência bengalesa Akram Khan (Londres, 1974) – com a convicção de termos visto, para além dele, uma multidão de personagens em cena. Magistralmente interpretado, a partir de textos da poetisa Karthika Nair, trechos dançados e, sobretudo, com a assombrosa concepção visual de Tim Yip, Khan traz-nos uma deslumbrante meditação poética sobre os conflitos interiores de um emigrante da segunda geração: a ambiguidade da pertença, a mitologia das origens, a nostalgia da infância e das histórias fantásticas dos antepassados, e os balanços da idade adulta. Discretas subidas e descidas de uma tela translúcida (sobre ela se projectarão imagens animadas), criam dimensões de espaço e tempos narrativos tão vívidos, que configuramos com nitidez pessoas, memórias e lugares ausentes de que Khan fala. Sob sonidos de tráfego, buzinadelas e vozearias cacofónicas, discernimos, nos movimentos da personagem, o transeunte no frenesi das sobrepovoadas urbes asiáticas. Inesquecível, a face que desenha a marcador na pele do próprio crânio, a convocar a figura do pai, o pequeno cozinheiro bengalês emigrante. Ao dialogar com vozes masculinas, femininas ou infantis em off, em bengali ou num inglês com sotaque, Khan reconstrói meandros emotivos das relações familiares, geracionais e da ambivalência cultural. Numa cena, agacha-se para ajudar uma menina invisível a calçar-se, e o atacador, agigantado na projecção animada, forma uma corda que o levará a outras geografias: segue num barquinho ao longo de um caudaloso curso de água ladeado de luxuriante floresta tropical; há bandos aves a esvoaçar, e o cair da noite estrelada. Cruza-se com um elefante, enfrenta um crocodilo. Uma criança a correr na selva, acossada por um tanque de guerra, ou os contornos de uma turba em protesto, aludem à guerra de libertação com o Paquistão (1971). Abate-se a chuva torrencial das monções, e pensamos num país que vive na iminência da catástrofe, o primeiro que submergirá ao aquecimento global. Khan recolhe com um simples gesto de mão este universo imaginado e regressamos ao palco. Liga a um call centre e reclama a avaria de seu gadjet; em linha, uma voz infantil com acento asiático. O seu desalento lembra-nos das multinacionais deslocalizadas no 3º mundo, do trabalho infantil, e da população subnutrida em insólita convivência com a alta tecnologia. Num belíssimo contraluz, Khan dança um trecho inspirado no kathak que aprendeu em criança, e entendemos nesta incorporação física o essencial da sua conexão à Ásia. As distorções visuais e da proporção de objectos, a dar-nos a visão infantil ou adulta destas vivências, pedem meças ao mundo surreal de Alice ou às geniais prestidigitações cénicas Robert Wilson. Desh (“pátria”, em bengalês) é a mais bem-sucedida peça de Khan, e do temário autobiográfico da sua obra. No início, emerge da escuridão, alumiado por um candeeiro, qual Diógenes contemporâneo em busca da identidade estilhaçada. O que nos vai contar é, afinal, sobre amor e sobrevivência, a urgência e fragilidade dos afectos, partilhados por milhões de emigrados. E sobre o poder redentor das histórias. Neste périplo íntimo, épico e encantatório, o alusivo prevalece sobre o explícito. Nada é gratuito nesta produção de luxo, algo refém, porventura, da sua própria exuberância. Mas a energia comunicativa faz o pleno, e figurará, decerto, entre o melhor que vimos em 2014.
REFERÊNCIAS:
O ministro da inacção
Para o ministro da cultura de Cabo Verde o mais difícil, em política, é não fazer nada. Ainda assim, Mário Lúcio Sousa continua a fazer muito mais do que apenas política. Veio a Portugal receber o prémio literário Miguel Torga. A vida dele também é um romance. (...)

O ministro da inacção
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Para o ministro da cultura de Cabo Verde o mais difícil, em política, é não fazer nada. Ainda assim, Mário Lúcio Sousa continua a fazer muito mais do que apenas política. Veio a Portugal receber o prémio literário Miguel Torga. A vida dele também é um romance.
TEXTO: Está frio em Lisboa. Mais ainda para quem chegou da Praia durante a madrugada. Antes de sairmos à rua para fazer as fotografias que acompanham esta entrevista, Mário Lúcio vai ao quarto buscar um cachecol. Branco, naturalmente. Percorremos o quarteirão em redor do hotel em busca de uma nesga de sol e de um bom ângulo, comandados pelo olhar determinado do Enric Vives-Rubio, que já sabe onde está a fotografia antes de disparar o obturador. Mário Lúcio entrega-se à pose com uma tranquilidade total. De repente, três mulheres atravessam a rua e interrompem a sessão fotográfica para fazerem uma selfie com ele. É pouco provável que saibam de quem se trata e desaparecem tão depressa como apareceram, com um brilhozinho nos olhos. Mário Lúcio mantém-se impávido e sereno. Como um modelo. Tem pinta de modelo, aliás. O “menino-prodígio” que aprendeu a “viver sem” cultiva uma atitude de desapego. Aos 51 anos, a vida insiste, no entanto, em dar-lhe prémios e cargos e alegrias. Porque é que se veste sempre de branco?A resposta que costumo dar é que não tenho outra roupa, só tenho roupa branca. E porque é que só escolhe roupa branca?Na verdade tem a ver com a preguiça. Não sou um homem preguiçoso, a não ser nas coisas supérfluas. Para evitar ter de escolher de manhã que calças combinam com a camisa e com a gravata, decidi-me por uma única cor de roupa, a mais neutra possível. Não há nisso uma razão de ordem mística?Não. Mas em Cuba uma amiga disse-me que eu tenho uma aura: “Tem a cor de Obatalá: toda branca. ”O que é Obatalá?É a deusa dos caminhos na religião iorubá. Cultivo, com muita curiosidade intelectual, esta religião. Mas a escolha da roupa não tem a ver com isso. Até porque os entendidos descobriram depois que sou filho de Iemanjá e não de Obatalá. E as cores de Iemanjá são azul e branco. Que grau de seriedade atribui a essas crenças?A mesma que atribuo à física quântica. A física quântica tem ciência por trás. Pois, e as crenças têm a religião. É preciso ver que o mundo, de forma indelével, é composto por matéria e espírito. A matéria, conseguimos dominá-la, em parte, no Ocidente. O espírito, há outros que o dominam melhor que nós. Numa cultura eurocentrista, colocamos a razão em primeiro lugar e esquecemos o espírito. Que efeito têm essas reflexões na sua vida política?Têm a ver com a transitoriedade. Quando se entra no poder público, vai-se reparando como nos vamos pervertendo se não nos fiscalizarmos. Vamo-nos esquecendo da fluidez das coisas sem a nossa intervenção. Como é que se policia para que isso não aconteça?O que me serve de policiamento é a leitura oriental, complementar, de uma razão do mundo. É dizer: “Não, não, tudo isto não passa de uma febre; ser ministro é uma febre que amanhã se cura. ”Sic transit gloria mundi. Sim. Essa transitoriedade. Ter essa ideia. Também a ideia do outro. A compreensão de que a razão não tem toda a razão. Isso, na política, não corre o risco de se tornar paralisante?O interessante é que isso não acontece. É preciso ver que a inacção é muito mais difícil do que a acção. É muito mais difícil para o ser humano ficar quieto e parado do que estar sempre a fazer qualquer coisa. Ter a paciência e o discernimento de não fazer nada é muito complicado. Mas na política a inacção não é possível. Com certeza que é possível. Oxalá todos os políticos soubessem o momento da inacção. Grandes catástrofes da humanidade têm derivado desses momentos de acção não adequada. De acção obsessiva. Do perpetuar da acção. Já teve oportunidade de promover momentos de inacção no Conselho de Ministros de Cabo Verde?Só um dia. Estávamos a discutir um assunto candente e de repente eu disse: “Está a chover. ” Nem sequer pedi a palavra ao senhor primeiro-ministro. Todo o mundo ficou espantado. Ficou tudo um momento quieto. De repente, a senhora ministra do Desenvolvimento Rural, que reza todos os dias para que chova, deu um pulo, afastou a cortina e disse: “Está a chover. ” E pronto, foi um desanuviamento importante. Talvez fosse o momento exacto da inacção, do silêncio, para depois se retomar com um pouquinho mais de discernimento. Não teme que o vejam, em termos políticos, como uma espécie de ave rara?Nunca temi. Isso não lhe retira a gravitas necessária para ser levado a sério?As pessoas que não se levam demasiado a sério têm muito discernimento. Levar-se demasiado a sério é como querer impor aos outros a nossa própria imagem. Eu levo-me muito a sério. Agora, a minha forma de me levar a sério não é a forma como os outros se levam a sério. Cada vez que exercemos a nossa diferença, estamos a permitir que os diferentes possam também exercer o seu direito na sociedade. Como é que aprendeu a não se levar demasiado a sério?Isso tem a ver com a história da minha infância. Foi criado num quartel militar. Sim, mas antes disso, nasci numa casa onde se comia quando havia. Diz-se que em casa onde não há pão todo mundo ralha e ninguém tem razão. Isso é uma interpretação muito ocidental. Na África, em casa onde não há pão todo o mundo é calmo e todo o mundo tem coração. Há uma partilha, há uma forma de se ensinar a viver sem. Aprendeu a viver sem?Evidentemente. Não só em minha casa, como na minha região e no meu país. É o país onde o quase nada é transformado em quase tudo, todos os dias. Fazíamos a sementeira, semeávamos e depois não chovia, perdia-se tudo. Os pescadores iam ao mar dois, três, quatro dias seguidos e não traziam um peixe. E sorriam. Às vezes iam e nunca mais regressavam. Conviveu com a morte desde muito pequeno?Sim. Com a morte do meu pai, da minha mãe, de três irmãos. Na altura em que o seu pai e a sua mãe morreram, já não estava a viver com eles. O meu pai morreu no dia 10 de Dezembro de 1976, e eu nessa altura já vivia no quartel. Foram os meus pais que me deixaram ir viver num quartel. É uma decisão transcendental, sem explicação. Como é que uns pais deixam um menino de dez anos sair de casa?Nunca sentiu isso como abandono?Não. Foi transcendental porque se não me tivessem deixado ir, eu não era o que sou hoje. Na altura, isso não lhe causou sofrimento?Não, eu queria. Eles conheciam-me. Na minha aldeia, eu era uma espécie rara. Era um menino-prodígio?Diziam isso. Havia muitas protecções de todos os tipos sobre o menino. Vivemos sempre com um olhar diferente sobre nós. E os meus pais não sabiam muito bem o que fazer com isso. A sua família era de gente de poucas letras. Sim. Praticamente analfabeta. Só o meu pai sabia ler e escrever. A minha mãe não sabia. O meu avô não sabia. Como é que, nesse ambiente, aprendeu a ler ainda antes de ir à escola?Aprendi a ler graças à importação das latas de banha e de azeite de Portugal. Eu e um primo que se chamava Adelino. Ele morreu nas abstracções das nossas brincadeiras. Estava distraído e apanhou com um camião na estrada, à frente da nossa casa. Não deviam passar muitos camiões na aldeia. Só havia um camião, imagine a coincidência. Nessa altura, eu já copiava os caracteres, copiava as letras e fazia palavras. Pelo gosto do desenho ou pelo significado das palavras?Pelos dois. Inventava muito o ler quando ainda não sabia ler. E às vezes acertava. É muito engraçado. Também hoje me pergunto como é que copiava Vaqueiro, V, A, Q, U, E, I, R, O, e como é que sabia que era vaqueiro. Essa frase sempre me perseguiu, era muito criança e repetia: “Vaqueiro torna tudo mais apetitoso. ” Ou a lata de banha, “Braço Forte, Lda. ” Ou: “Azeite Galo. ” Copiávamos tudo o que havia. Isso tudo no chão de terra batida. E líamos. Ali nasceu a escrita. O seu primo era mais velho?Não. Tínhamos a mesma idade. Ele também aprendeu a ler assim?Sim, também. Depois comecei a escrever cartas para as mulheres, para os emigrantes, para os rapazes na tropa, e ficava uma espécie de menino de aluguer da família. Pagavam-lhe?Pagavam com farelo, com ovo. Não era pagar, era um reconhecimento, uma oferta. Os meus pais nem pensavam nisso. Era um menino útil da comunidade. Fazia essas coisas para ajudar a comunidade. Lia cartas, escrevia cartas, traduzia. E fazia contagens. Foi por causa de um poema que foi viver para o quartel; onde é que o encontrou?O meu irmão, que era um rapaz muito inteligente — faleceu há dois anos, o nosso irmão maior —, era um homem com uma aura extraordinária, muito leve. Ele foi estudar na capital, na Cidade da Praia. Tinha um futuro brilhante à frente. E vinha de férias de vez em quando. Nós, muito meninos, revistávamos os bolsos das calças dos nossos irmãos maiores para ver se encontrávamos uma moeda, um rebuçado. E nesse dia encontrei um poema. Num papel?Num papel A4, escrito à máquina. Devia ser um panfleto qualquer. Rapidamente li o poema em crioulo. Dobrei novamente o papel e meti-o no bolso das calças do meu irmão. Nessa única leitura memorizei o poema todo. Que poema era?Era um poema chamado Cabral Ka Morri, Cabral Não Morreu, de Emanuel Braga Tavares. À noite juntei um grupo de miúdos com tambores e fomos recitar o poema na rua. Aí começou a outra reputação. A de músico?Sim. E também de ter memória. Não conhecíamos o que era recitar poemas. Contavam-se histórias, tínhamos uma síntese na cabeça e desenvolvíamos o resto. Poemas, não. E o meu irmão ficou espantado porque o poema continuava no bolso das calças. Comecei a ganhar um afecto muito grande por esse poema. Um dia fui à delegação do partido, do PAIGC, no Tarrafal. Já depois da independência?Era um pouquinho antes, estava-se num momento de preparação. E encontrei um livrinho que tinha esse poema. Levei o livro comigo e fui sentar-me à beira-mar a ler o poema. Foi ali. Passou o tempo e aconteceu que, de regresso a casa, encontrei o tal comandante militar, o Mário Elíseo, que achou aquilo estranho. Não era comum, nessa altura, um menino estar sozinho à beira-mar. Perguntou-me o que estava a fazer. “A ler um poema. ” Achou que eu estava a brincar com ele. Não o conhecia?Não, era a primeira vez que o via. Ele achou estranho, desconfiou, e disse: “Mostra onde moras. ” E encontrei os meus pais lá, à espera. Foi assim. Ele disse: “Este menino não é normal, precisa de uma educação especial. ” Os meus pais disseram: “Sim, sim, ele desde miúdo não bate bem da cabeça. ” E foi isso. Foi assim que decidiram que iria para o quartel. Nessa noite. Foi directo. Não durou nem 15 minutos. O quartel era a que distância?Fica a quatro quilómetros. Era no campo de concentração do Tarrafal. Já andava na escola?Sim, já estava na 4. ª classe. Comecei a escola em 1971, se não estou em erro. Estando a viver no quartel, continuava a ter contacto com os seus pais?Vinha todos os dias à vila, ao cinema, fazia tudo. No quartel tinha uma casa lindíssima onde morou o director do campo de concentração do Tarrafal. Tinha o meu quarto, comia junto com os oficiais. Tinha um tratamento muito protegido. Deram-me uma arma. Aos dez anos?Sim. Não foi dar para fazer uso, porque não havia uso. Também lhe deram treino militar?Não, era um menino. Divertia-me com aquilo. Mas queria fazer. Quando havia formatura, vinha todo catita, punha-me na formatura e dizia: “Sou o soldado 131. ” No quartel, havia 130 soldados. Eu gostava daquilo. Foi uma infância incrível, cheia de coisas. Ia aos acampamentos militares, à carreira de tiro. Descobria violões, violino, cavaquinho. Fazia sapatos, pintava. Estava na idade de aprender e aprendi. Tornou-se uma espécie de mascote do quartel?Com certeza. Também era muito atinado. Vinha à vila estudar, brincava com os meus colegas, fazia educação física à tarde, tocava. E à noite eles sabiam que eu estava na vila e o meu comandante mandava-me buscar. Ia dormir cedo para me levantar cedo, era disciplinado, limpava o quarto, lavava a casa de banho, tomava banho, passava a minha roupa a ferro. Sozinho. E ia buscar os meus colegas que vinham de muito mais longe. Depois, por volta das seis e trinta, encontrava-me à frente do quartel e íamos para a escola a pé. Ficava a dois quilómetros de distância. Aconteceu tudo muito naturalmente. Ao ser adoptado pelos militares, sentiu que estava a libertar-se da vida de pobreza da sua família?De certo modo, sim. Por um lado, fui parar a um sítio onde havia café, almoço, jantar e um aposento, um repouso. E ainda por cima havia uma arma para me defender. Tinha tudo. Informaram as patentes mais altas de que havia esse miúdo. Trouxeram e apresentaram logo o menino-prodígio. Então, o chefe do departamento das operações combativas, chamado Timóteo Tavares Borges, que tinha sido combatente na Guiné — era um homem negro de quase dois metros, com muito pouco sorriso, muito rígido —, tornou-se o meu encarregado de educação. Dentro do orçamento do departamento combativo, comprava-me sandálias e cadernos. Era uma alegria receber essas prendas. Era uma coisa incrível. Depois vim estudar para o liceu, na Praia. Nessa altura, já estava numa idade de atrevimentos. O meu encarregado de educação passou a ser o chefe do estado-maior. É um grande senhor e ainda nos tratamos como pai e filho. Ele teve uma coisa que os outros não tiveram: a compreensão do que um menino adolescente precisa. Ofereceu-me a primeira guitarra. Um dia levei-lhe um calhamaço de livros e disse: “Quero esses livros. ” Ele mandou pagar. Quando vi que tinha escolhido sete e só havia seis, fui dizer-lhe: “Falta um. ” Era um livro do Henry Miller. Ele disse: “Esse dou-te mais tarde. ” Era um homem muito atento. Um dia chamou-me porque eu tinha umas namoradas e as namoradas vinham buscar-me à porta do quartel. Achavam aquilo incrível mas não podiam entrar. Ele chamou-me e perguntou: “Não achas que seria melhor teres um quarto ali fora?” Eu disse: “Muito bem. ” Passou a dar-me 125 escudos e arrendei um quarto perto da Cruz Vermelha. Tinha contacto com os seus 31 irmãos?Só fomos conhecendo os irmãos a pouco e pouco. Doze eram filhos da sua mãe e do seu pai, os restantes só do seu pai. Sim. Nessa idade o meu pai nunca nos disse: “Este aqui é teu irmão. ” Era assim, não se dizia. Pelo menos na ilha de Santiago. Só os abastados é que criavam os filhos de fora junto com os filhos de dentro. Tinham um casarão, tinham um quintal e um quintalão, e aí criavam os filhos todos. A minha mãe viveu durante um tempo nessas condições porque o meu avô, António Figueiredo de Sousa, tinha também uma carrada de filhos. Ela era filha de fora?Era. Mas tinha um feitio difícil, muito geniosa, e não deu para viver lá. Regressou para viver com a minha avó. Não se deu bem. E os seus irmãos de fora?Ouvíamos falar na rua. E às vezes alguém dizia: “Aquele é teu irmão. ” “Este também é teu irmão. ” E fomos sabendo que havia cinco filhos com a Maria Tavares, dois com a Hermínia, mais três com outra senhora. Essa situação perturbava-o?Sim. Perturbava-me um pouco. Não gostava de saber na rua que tinha outros irmãos. Acho que isso acontece com todas as crianças. Mas o meu pai nunca falava disso e a minha mãe também não. E fomos sabendo assim. Ainda há pouco tempo conheci mais um irmão. Acha que ainda pode ter outros que não conhece?Acho que sim. Há menos de quatro anos fui à ilha de São Vicente visitar uma irmã minha, a primeira filha do meu pai, ainda antes do casamento com a minha mãe. E essa primeira filha mostrou-me mais dois irmãos, que só conheci nessa altura. O seu pai era remador, andava de ilha em ilha. Era. Remador de escaler. Fazia várias ilhas. Era um homem muito simpático, muito elegante. Sobretudo tinha um bom coração, como diziam. Tem traumas associados a essas relações familiares complicadas?Bem. Era uma espécie de tradição, sabíamos que quase todos os homens tinham um ou dois filhos fora do casamento. Tinha que ver com uma realidade social e económica. Havia muitas mulheres, poucos homens. Não me lembro, na vida, de ter tido um único trauma, de nada. Fui muito feliz. Fui dono, sozinho, de todo um quartel. Era Rei Artur, era todos os reis da Escócia ou da Dinamarca. É daí que vem a minha imaginação. Vivi ali pensando que era o chefe de todos os reis, de todos os mundos. Não conhecia o sofrimento associado àquele lugar, como campo de concentração. Não, naquela idade, não. Foi só felicidade. A primeira vez que vi uma guitarra foi assim um espanto, uma comunicação, uma atracção. Entrei num quarto de um dos oficiais, estava a passar a porta, entrei sem autorização, peguei no violão e comecei a tocar. A tocar, a tocar, a tocar, doidamente. À noite já tocava com os outros. Foi assim rápido, de caras. A música foi anterior à leitura, para si?No sentimento, sim. Lembro-me de tocar em cima da mala da minha avó, fazendo piano com a boca. Percutia o teclado em cima da mala. Também cantava muito sozinho. Passava muito tempo sozinho em casa. Ficava sempre ao pé da minha mãe e passava a vida a cantar. Achavam que eu era um anormal, tinham esses cuidados. Mas era muito bem-comportado, muito tímido, muito disciplinado. Lembro-me de uma cena: a minha avó deixou-me na casa de Sra. Manazinha porque foi fazer a sementeira. Levou-me para lá aí por volta das sete da manhã. Estava muito frio. Sentou-me ao lado de uma parede que era feita de tiras de carriço, de bambus finos. Quando voltou, às cinco da tarde, eu ainda lá estava, sentado na mesma posição. E ouvi a Manazinha dizer: “Nha nhinha, que menino é este?” Comi, dormi, fiquei ali na mesmíssima posição. Até hoje, eu gosto de ficar dois, três dias sentado na mesma posição, num sítio com o mínimo movimento possível, a deixar a imaginação caminhar. São viagens muito engraçadas. Nessa altura já tinha isso. Começou a escrever histórias desde cedo?Sim. Antes de ir na escola, já sabia escrever e então fazia de padre de baptizados de bonecas. Tomava notas, como era o nome da boneca, do padrinho, da madrinha, rabiscava. Depois comecei a inventar coisas. Uma das coisas que tive de enfrentar, desde cedo, foi a palavra “mentiroso”. Enquanto os meus colegas contavam factos, eu inventava factos. Tinha essa necessidade e ainda tenho, de inventar. Inventava, atribuindo coisas a si próprio?Não. Raramente. Nunca menti para me favorecer ou favorecer alguém, mas a imaginação era fora do comum. A primeira vez que me chamaram mentiroso foi quando eu dizia que contava até mil. No liceu, uma das primeiras vezes que me confrontaram com uma mentira, assim a fazer chacota de mim, foi quando disse que havia um chinês que tinha um tumor de 17 quilos na barriga. Tive de ir ao quartel buscar o livro e mostrar. O nosso mundo era muito reduzido. Não havia muita curiosidade em ler, e eu nasci com isso. A que é que atribui essa sua particularidade?Não sei. Talvez por isso eu leia muito sobre religiões. Talvez por isso acredite no transcendental. Talvez por isso acredite que há outro complemento e outra visão. O budismo acredita na reencarnação, o cristianismo acredita na ressurreição, todas as religiões têm uma componente post mortem. Sente que pode estar aí a explicação?Sinto que sou apenas um intermediário das coisas que faço. Quando componho uma música, tenho muito respeito pela forma como ela desce. Não retoco a música. Ela vem, se é feia ou bonita. O imperfeito também existe. Também não revê o que escreve?Eu escrevo de uma catadupa. Quando começo a escrever, não sei o que vou escrever e nunca faço pausa. Escrevo um livro de uma assentada. Pode demorar o que demorar. Escrevo todos os dias de oito a dez horas, e linear. O seu romance anterior não tinha sequer um único ponto final. Não. Não faço pausas, não tomo notas. E um dia digo: “Acabou-se. ” Quando acabar, não quero mais saber do livro. Depois de um tempo, faço uma releitura, até para dizer: “Quem é que escreveu isto?” Aquele espanto. Depois mando para a editora, que me dá umas orientações, porque às vezes também viajo, como se diz, e torna-se ilegível. Teve consciência, ao escrever Biografia do Língua, de estar a usar o processo narrativo das Mil e Uma Noites?Quando me vem uma história à cabeça, às vezes é só uma frase. A partir daí começo a contar a história às pessoas. Quando contei o que ia escrever à [editora e escritora] Maria do Rosário Pedreira, num jantar, ela disse-me: “Mas isso é Xerazade. ”Não tinha lido As Mil e Uma Noites?Não. De modo que fui obrigado a introduzir Xerazade no livro para dizer: “Isto não é Xerazade. ” Há dias estava a conversar com um amigo em São Vicente, gente do teatro, e disse-lhe: “A aprendizagem é uma lembrança, a gente já nasce sabendo tudo. Isto é próprio do cosmos. O universo é holográfico. Tudo o que existe no cosmos existe num fio de cabelo ou na ponta de uma unha. Tudo o que se vai sabendo vai-se acrescentando e está em nós, nós não estamos desligados de nada. ” Então acontece que essas histórias que inventamos podem correr o risco de plágio, porque já estão em nós embora sem o sabermos. Leva-se mais a sério como músico ou como escritor?Nisto de me levar a sério, só sou. É importante exercer a vida em toda a sua plenitude. O exercício de ser é que é bonito. No fundo, sou um homem apaixonado. Isso sim, é uma característica. E confesso com toda a humildade: com uma grande intuição. Isso, eu sei: tenho um saber intuitivo muito grande. Cultiva-o ou é apenas inato?O saber intuitivo não se deve cultivar, senão estraga-se. Sou um grande sonhador, acordado e a dormir, também. E sonho coisas incríveis, de um surrealismo, às vezes de uma plasticidade. . . Uma maravilha. Lembro-me todos os dias de todos os pormenores, de tudo. E não escreve isso?Comecei a escrever. Quando comecei a escrever, comecei a esquecer os sonhos. Então parei. Tenho 20 ou 30 contos que se chamam “personhagens”, sobre os meus sonhos. Deixei de escrever os meus sonhos para continuarem a ser sonhos. Os sonhos revoltaram-se contra essa apropriação que estava a fazer deles?Parece que há essa combinação. Esse tal lado que a mim me interessa muito, um lado que compõe o ser humano, que exploramos muito pouco, mas que depende muito pouco da razão. Isso já se fez em milénios passados, foi-se perdendo. Já se perdeu muito. Quando diz que se perdeu, há um lamento nessa afirmação?Sim, evidentemente. E tem a ver com um lamento da condição humana. Perdeu-se por causa do domínio de uma cultura sobre a outra. Já vivemos melhor do que hoje?Sim. O ser humano já viveu melhor e isso acontece com tudo o que existe. Há um pico e depois há a decadência. Considera que estamos num momento de decadência?Sim. Basta ver o mundo. O século XXI é um século decadente em termos da condição humana. Podemos ter Internet, ir à Lua, temos tudo isso…Temos analgésicos para a dor de dentes, por exemplo. Isso é capaz de ter melhorado um pouco as nossas vidas, não?Pode ser, e isso é bom. E tantas outras coisas. E já não temos uma esperança média de vida de apenas 25 ou 30 anos. Pois é, isso na conta racional faz todo o efeito. Na sua não faz?Não faz, enquanto não houver um complemento e um equilíbrio. Inventar analgésicos para a dor de dentes é uma coisa óptima. Não termos nenhum analgésico contra a intolerância cultural é terrível. Fazermos com que a esperança de vida aumente, mas que haja milhares de pessoas a morrer ao atravessar o mar mediterrânico, fazer com que haja armas super-sofisticadas, mas que essas mesmas armas estejam a matar centenas de milhares de pessoas todos os dias, fazer com que nunca se tenha tido tanta abundância alimentar no planeta, mas que haja tanta gente a passar fome no mundo, não faz nenhum sentido. Esse desequilíbrio tem a ver com um desenraizamento da condição humana. Quando olhamos para a relação que os índios do Peru, da Bolívia, do México tinham com a natureza antes da chegada dos espanhóis, vemos que tudo isso foi interrompido. Onde havia uns templos das deidades, dos incas, dos maias e dos aztecas, foram construídos templos católicos. A história dos incas, dos maias e dos aztecas não é propriamente um modelo daquilo que hoje designamos por direitos humanos. É evidente que todas as civilizações no seu auge também tiveram a sua parte sanguinária. Todas. Mas nunca antes tínhamos visto 40 mil pessoas morrer em dez segundos. Isso aconteceu com o lançamento das bombas atómicas. Ao mesmo tempo que utilizamos todo o nosso conhecimento para o progresso, vemos paralelamente o uso de todo esse conhecimento para a destruição e para a decadência. Sinto em si uma pontinha de nostalgia por uma espécie de paraíso perdido. Talvez. O planeta já foi melhor. O lamento não está no facto de ter havido um paraíso no passado. O paraíso e o inferno são vizinhos. Mas havia no homem uma relação com a natureza muito melhor do que há neste momento. Essa relação fazia com que o próprio progresso na antiguidade tivesse também um efeito sobre o homem na sua relação com o universo. Hoje há uma corrida para a abundância, para a acumulação. Essa corrida exige uma velocidade tal que despreza todos os outros valores. O homem que quer acumular biliões de dólares na venda do petróleo vai fazer tudo para não respeitar os acordos sobre a redução do carbono, por exemplo. Em todo o caso, sempre que é dada a uma sociedade a opção entre ter ou não ter, a escolha é ter. Depende, nem sempre é assim. Hoje em dia, quando falo de outros saberes, de outras razões, eu que me considero um homem de formação ocidental, mas que já leu e cultiva e trabalha muito a cultura oriental, é para dizer: “Atenção, há um outro mundo, há uma outra visão do mundo, é preciso complementar isso. ” Quando disseram a Siddhartha Gautama “escolha o palácio ou a vida desprendida”, ele escolheu a vida desprendida. Isso existe em várias culturas do mundo em que entre acumular, o ter, e a escolha de não ter, escolhemos o não ter. A acumulação faz mal. Existem várias culturas no mundo em que a abundância é substituída pela palavra “plenitude”. Trabalhamos para atingir a plenitude e não a abundância. Onde abunda há sempre, também, escassez. No seu caso, trabalha para escolher o quê?Trabalho para encontrar a felicidade, e encontro, todos os dias. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Tem uma ideia daquilo a que corresponde essa noção?Tenho. Se há uma coisa que dá felicidade, é o desapego. O desapego de tudo significa libertação. Pode-se ser desapegado e membro de um governo?Com certeza. Ser membro de um governo é trabalhar para os outros. Agora, querer perpetuar-se no poder é apego. Já disse há uns meses que me ia embora, já me despedi. Só vim dar essa contribuição. Vai terminar o seu mandato quando?Em Março do próximo ano. Entrei para ficar menos tempo, mas não deu para sair antes. Não tenho o desapego de tudo, ninguém tem. Quem me dera. Mas pratica-se, e ajuda. Considero-me um homem feliz porque também tenho as minhas angústias. E por saber reconhecê-las.
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