Somos loucos por arroz
Um português come em média 17,5 quilos de arroz num ano, mais do dobro do que qualquer outro europeu. Somos os asiáticos da Europa, dizem. Porquê? Provavelmente porque o cozinhamos de todas as maneiras e feitios. (...)

Somos loucos por arroz
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 9 | Sentimento -0.6
DATA: 2010-06-22 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um português come em média 17,5 quilos de arroz num ano, mais do dobro do que qualquer outro europeu. Somos os asiáticos da Europa, dizem. Porquê? Provavelmente porque o cozinhamos de todas as maneiras e feitios.
TEXTO: Há um pequeno atraso, é mesmo assim. A avioneta deveria ter chegado há meia hora, mas deve estar a dar conta de outro serviço nas redondezas. Laurinda e Lurdes estão de olhos postos no céu, mãos atrás das costas, ouvidos atentos. Já passa das nove da manhã e nada. Nem um motor. A não ser, claro, os dos carros que passam na estrada ali ao lado, que em poucos minutos nos põem em Benavente. Não fosse isso, e só se ouviriam pássaros. Cheira a terra húmida, cheira à chuva que vem e vai. Está tudo cinzento, céu e terra em conspiração. Os arrozais são espelhos de água do tamanho de campos de futebol, com nuvens estampadas em cima. Outros já estão com as plantas a despontar, mantos verdes onde as garças pousam e se alimentam. Ou ainda castanhos, à espera que a planta rebente. Todos parecem em suspenso, quilómetros e quilómetros sem ninguém. As aparências iludem. "Todos os dias há trabalho", dizem as duas mulheres, a perscrutar as nuvens de chumbo. "Primeiro arranjar as terras, depois mondar [arrancar as ervas daninhas], curar [tirar os bichos] e a seguir a colheita. " Parece simples, dito assim de uma assentada, mas são meses de dedicação. Dá para ver a chuva a aproximar-se com toda a definição: está a cinco metros, está a quatro, a três, dois, um, "fujam que vem aí uma barroa". Já aqui está, mas ficará por pouco tempo, deixa o cheiro a água e vai-se embora. Todos os dias há trabalho, diziam. E Lurdes explica: "Em Abril arranjam-se as lagoeiras - as terras, na nossa linguagem do campo. Até ao fim de Maio fica tudo semeado. Em Junho é a monda. A partir de Julho não é conveniente andar lá dentro para não tombar a panícula [inflorescência]. Julho e Agosto, a panícula está formada e oito dias depois é a floração. Depois é a fase láctea, o bago enche-se de líquido, líquido mesmo como leite, e começa a enrijar. Vem a fase córnea, em fins de Agosto, quando o bago está mesmo rijo. Entra na maturação em Setembro, quando está pronto a ser colhido. " A seguir elas perdem-no de vista. O grão vai ainda com casca para a fábrica. E, no Inverno, Laurinda está no laboratório, "a fazer análises de rendimento". É ela quem diz: "O arroz gosta de calor na rama e água na raiz. Este ano não está muito bom. " Água há, houve muita, o Inverno todo, o pior é o resto. Depois da chuva, ouve-se coaxar. "São os sapinhos a pedir água. Assim que sentem as costas molhadas, começam a pedir mais. " Mas não são eles o perigo dos arrozais. Há os lagostins, que "fazem buracos e furam de um canteiro para o outro e a água foge". Ouve-se a avioneta. Vem atrasada uma hora. O ciclo da vida do arroz está agora prestes a começar, nestes campos alagados. Alguém dirá "arroz não é arroz" e por isso está na altura de esclarecer: aqui, no Paul de Magos, produzem-se as variedades Ariete e Albatroz. Liderança do agulhaAtravessa-se a vala real - um caminho de água vinda do Tejo com carpas, pimpões, tainhas - que separa os canteiros. Os bandeirolas já estão a postos, walkie-talkies na mão, de bandeira branca e verde para mostrar à avioneta os limites do terreno, o ponto a partir do qual deve sobrevoar. Um, dois, três, e é agora. Cai nova chuva, desta vez de semente. "É uma barroa amarela", riem Laurinda e Lurdes. A avioneta espalha os grãos, que caem pesados na água, numa tempestade dourada. Vai e vem, dando meias voltas no céu, semeando os grãos do carolino ("é o melhor", dizem as duas). Serão 1350 quilos de sementes largadas do ar para a água (também poderia ser em terra seca, que depois é inundada). Os bandeirolas baixam os braços para um intervalo de reabastecimento. Dali a nada estarão outra vez a indicar ao piloto o local onde deve fazer a descarga, em que parte do campo - ou da "folha", como se diz aqui - os grãos ainda não caíram. As nuvens entram na competição. "A chuva está a engrossar, comprimento já ela tem", repetem as agricultoras, chapéu de palha na cabeça, galochas nos pés. Não sabemos se esta manhã alguma delas olhou para o céu para ler a meteorologia na "vaca esfolada", as nuvens avermelhadas que se juntam ao sol: "Vaca esfolada ao nascer, vai chover, vaca esfolada ao pôr, vai estar calor. "Entre uma largada e outra vinda das alturas, ficamos a saber: Lurdes "já não pode ver arroz à frente", e o que tem ao lume, à espera do meio-dia, é uma sopa-guisado com batata. Mas Laurinda come com regalo: "Adoro arroz, doce então ainda melhor. " Contribui para as estatísticas que apontam os portugueses como os maiores consumidores de arroz per capita na União Europeia: à volta de 17, 5 quilos por ano (ou seja, 175 mil toneladas), mais do dobro que os espanhóis, que vêm em segundo lugar, com sete quilos, e quatro vezes a média europeia. "Somos os asiáticos da Europa", diz Pedro Monteiro, director-geral da Associação Nacional dos Industriais de Arroz (ANIA). Não andamos a comer nem mais nem menos que antes: o consumo está estabilizado, "é um mercado maduro", liderado pelo agulha. Hoje foi uma avioneta, mas noutros casos são os tractores que semeiam os grãos. Já não é de agora, os pés das mulheres descalças a arrastarem-se pela água, como fazia a Laurinda quando era nova - agora tem 44 anos, os suficientes para filhos e netos. "Até a água cortava as pernas. E estava fria nestes dias. " Sorri outra vez. E noutros tempos também o trabalho era feito por ranchos, grupos de mulheres que plantavam o arroz (quando é plantado dá mais produção, explica), a trabalhar por ali fora, do nascer ao pôr do Sol. "A gente aqui começa cedo. Já pouca gente quer o campo. Eu já trabalhei em fábricas e antes prefiro o campo. É outra liberdade", diz. Mas não é isso que se sonha para os filhos, nem é isso que eles querem fazer. Entre os de Lurdes, 61 anos, e os de Laurinda, nenhum é agricultor, e não é só pelo trabalho que dá. "As pessoas da cidade pensam que somos estúpidos. Não queremos que os nossos filhos se sintam assim. " Estúpidos? Lurdes, sempre ao lado e sempre mais calada, desta vez tem resposta: "Eles na cidade sabem o que comem mas não sabem como é criado. " Elas poderiam explicar. São ambas de Marinhais, a poucos quilómetros deste campo de Paul de Magos, em Salvaterra de Magos, que pertence à COTArroz (Centro Operativo e Tecnológico do Arroz). Ambas têm a sua própria terra, onde cultivam batatas, cenouras, couves. . . "Saímos daqui às cinco [entram às oito da manhã] e ainda vamos para a fazenda. E depois há a lida da casa. " Não é queixume, é só para falar da vida. Agora diz a Lurdes: "Fomos criadas assim e assim nos sentimos bem. "A semente caiu na folha e daqui a oito dias começará a criar raiz. Nessa altura tira-se a água. Toda a cara morena de Laurinda sorri, boca e olhos, quando aponta em frente a lembrar como é a terra quando as nuvens não tapam o céu. "Aquela encosta, quando está sol, fica a verdejar e é linda. Para mim, é. Vale tudo para mim. " Os campos estão agora sem vivalma. Para já, o que havia a fazer foi feito. Melhorar o carolinoEntre-se numa cozinha portuguesa e o mais provável é encontrar-se no tacho arroz agulha ou carolino. Mas a história está muito longe de se resumir a isto, e se quiséssemos traçar uma árvore genealógica, a raiz teria dez mil anos e seria, pensa-se, encontrada nos Himalaias. Sabe-se que três mil anos a. C. já era cultivado na China. Agora, é o cereal mais comido no mundo inteiro, apesar de em produção estar em terceiro lugar, depois do milho e do trigo. Há dois tipos de arroz com caminhos separados, o O. sativa (asiático, mas cultivado em todo o mundo) e o O. glaberrima (africano, cultivado em pequena escala na África Ocidental). Dentro do O. sativa, há duas subespécies: o japonica e o indica. E tudo o que se dirá daqui para a frente só se refere a estas duas. A começar por isto: o famoso agulha, que começou a monopolizar os pratos portugueses, tem sangue híbrido de japonica com indica, que é cultivado em zonas mais quentes, diz a investigadora Margarida Oliveira, do Instituto de Biologia Química e Biológica da Universidade Nova de Lisboa. Por isso, em Portugal cultiva-se pouco. Cresce mais na zona do Sado. "É mais comprido, mas não absorve tanto o sabor dos alimentos como o carolino, que tem mais goma", como bom japonica que é, continua. Também é mais produtivo: 10 toneladas por ano por hectare, contra 6/7 do carolino. Mas, diz quem sabe, o que os verdadeiros apreciadores gostam mesmo é do carolino da variedade Allorio, vencedor de provas cegas. Como não é muito produtivo, os agricultores semeiam sobretudo para consumo próprio, diz a bióloga. Nos supermercados, e entre os carolinos, talvez seja mais fácil encontrar o Ariete. Quanto ao agulha, a esmagadora maioria importado, a variedade Thaibonnet é a mais usada pelos agricultores e, por ser mais barato, a que mais provavelmente virá a acompanhar o seu bife nos restaurantes (as hipóteses são muitas: o grande banco mundial de arroz, nas Filipinas, armazena cerca de 200 mil variedades). Seja como for, quase sempre as sementes usadas pelos agricultores portugueses são estrangeiras: vêm de Itália, o principal produtor da União Europeia, responsável por metade do arroz ali cultivado, com um milhão e seiscentas mil toneladas por ano, predominantemente japonica (a China é o número um mundial, com 182 milhões de toneladas). Portugal é o campeão do consumo europeu, já se sabe, mas não dá resposta às suas necessidades. Os arrozais - concentrados nos vales do Sado, Mondego, Tejo e Sorraia - ocupam mais de 26. 800 hectares (apesar de a UE só autorizar 24. 667). São produzidas 165 mil toneladas com casca, resultando em 100 mil em película, aquele que será consumido. É o terceiro produtor da UE, mas não chega senão para 60 por cento do que é preciso para satisfazer as exigências dos portugueses. Os outros 40 por cento têm de ser importados. Suriname, Tailândia, Itália. . . Já houve tempos em que a produção interna chegava e bastava. Em 1937, a colheita ultrapassou o consumo, e a criação da Estação Agronómica Nacional, em 1941, viria a trazer ainda melhores resultados, depois do melhoramento de algumas variedades. Portugal pôde até exportar algum do seu arroz. A tradição servia o carolino à mesa. Mas o arroz agulha impôs-se sobretudo pelo impacto de uma campanha publicitária, há cerca de 15, 20 anos, continua Margarida Oliveira. Agora, há que defender as variedades portuguesas de carolino, cujo consumo é o único que está a decrescer. É essa a sua "missão": melhorar o arroz, "com ferramentas comummente aceites", para não espantar os agricultores com inovações da engenharia genética. E por melhorar quer dizer-se torná-lo mais produtivo e resistente a doenças. É que tanto o Allorio como o Strella - na base das investigações da sua equipa - são plantas demasiado altas (logo, mais facilmente danificadas), com pouca produtividade e sensíveis a doenças, sobretudo ao fungo periculária. O que se pretende é que aquelas variedades ganhem o tipo de características pretendido, sem perder as outras que as tornam singulares. Cozer, insuflar, moerIntrometemo-nos na estreita cozinha de Fausto Airoldi no Spot São Luiz, em Lisboa. Antes de mais, veste a jaleca preta, que ali não se entra de qualquer maneira. Azeite no fundo de uma frigideira e alho picado. O chefe abriu o seu Risottoria del Mundo, no Funchal, onde só serve arroz, e está em posição de explicar: "É um meio para trabalhar muito bom. Dá para insuflar, moer, tudo e mais alguma coisa. "Meia dúzia de cogumelos laminados grosseiramente atirados para o azeite quente, seguidos de vinho branco e pimenta preta. Há alguma coisa que não combine com o arroz? "Que eu saiba não. " A ideia do seu restaurante na Madeira é "pegar nos arrozes do mundo com sabores do mundo". E o mundo está mesmo ao lado de papas de sarrabulho com arroz (triturado), em vez de farinha de milho. Devemos olhar para ele "como olhamos para as massas, que ligam bem com tudo. Mas cada tipo de arroz tem as suas características e nesse aspecto é mais rico". Dirá alguém que "arroz não é arroz", repetimos, e por isso na ementa pode ler-se "Arroz Vialone" por baixo de "Risotto de azeitonas com bacalhau meia cura confitado, molho de foie gras". Ou "Arroz carolino" depois de "Maçã assada recheada com espuma de arroz". Agora estamos em Lisboa, e o "ouro branco" vem mesmo já preparado do frigorífico, numa caixa de plástico. "Para um arroz mais solto, uso basmati, se for molhado malandrinho, uso carolino. O carolino como tem um grão pequeno e gomoso absorve muito bem os líquidos. Vai ficar mais saboroso. " Airoldi (mãe portuguesa, pai italiano) solta o arroz com as mãos - basmati, "cozido com alho, louro e água, sem gordura" - e pica uma mão cheia de manjericão, que junta aos cogumelos depois de duas colheres de caldo de legumes. "O arroz é como os azeites. Temos de escolher o que vai bem com as coisas, o arroz para a sua função. Temos de respeitar as suas utilizações. "O carolino já não é o que mais se consome em Portugal, mas é "um arroz muito nosso. E o que está esquecido não é o tipo de arroz, é a cozinha portuguesa". Nem todos os arrozes são iguais, até porque há aqueles "que dão mais luta, como os glutinosos. Têm de se testar bem, por causa da goma. Ficam mais empapados, têm de ser [usados] para arrozes mais moles". E é só este o mistério: "Conhecer bem o arroz e saber de quanta água precisa. O segredo está no caldo, porque o arroz agarra esse sabor todo. " Há outros factores a ter em conta, como qualquer um saberá se já tiver tentado: "O ponto de cozedura. Um risotto passado de mais é papa. "Explicações para a dianteira nas estatísticas do consumo, ele não tem - e, de resto, serão muito difíceis de encontrar. Mas o chefe avança que "temos muito receituário. Somos os únicos no mundo que comem arroz com batata frita!"Mistura-se o arroz na frigideira, lume bem alto. E poucos minutos (dois, três?) passaram desde que tudo começou nesta cozinha, sem pressas mas depressa. Excepto a viagem da frigideira ao prato, serena. "Al-roz", "orz", "orysa"Foram os mouros que trouxeram o arroz para a Península Ibérica, nos séculos VII e VIII - e isso poderia até ajudar a explicar a criação do hábito, não fossem alguns obstáculos, como o facto de a expansão da cultura só se dar no início do século XX. Mas se não dá uma pista para o vício, pelo menos aponta para a origem do nome. Arroz vem do árabe al roz, que por sua vez virá do persa orz. No Almanaque do Arroz 2010, brasileiro, podemos ler que gregos e romanos chamavam-no orysa - daí a palavra orizicultura, que hoje usamos. E que orysa tanto poderia vir do tamil (Sri Lanka) arisi, como de Orissa, a cidade indiana onde o arroz se cultivava em grandes quantidades (já o termo "carolino" virá do facto de se tratar de uma variedade semelhante à cultivada nas regiões da Carolina, nos Estados Unidos). No mesmo almanaque ficamos a saber que "houve um tempo em que partiam caravanas levando sacos de arroz ao longo das planícies centrais indianas, dos planaltos afegãos e persas até à Mesopotâmia e, de lá, até o Mediterrâneo oriental". Foi preciso esperar pelo reinado de D. Dinis (1279-1325) para que aparecessem as primeiras referências escritas à orizicultura. E, nessa altura, o arroz só era servido à mesa dos ricos. O cultivo foi incentivado no século XVIII, em terrenos pantanosos, mas à volta das suas "águas paradas" multiplicavam-se os insectos e as queixas das populações. "Em meados do século XVIII, houve um decreto-lei a proibir o cultivo do arroz por causa dos mosquitos", que causariam malária, diz a bióloga Sónia Negrão, da equipa de Margarida Oliveira. "Mas o cultivo nunca parou e com mão-de-obra escrava continuou a produzir-se, à revelia da lei. . . A produção aumentou muito a seguir à I Guerra, com a introdução de maquinaria. "A criação de regras para a preparação de terrenos destinados à orizicultura, em 1909, terá sido o tiro de partida. E é a partir daqui também que o arroz ganha um papel particularmente importante nos hábitos alimentares dos portugueses, sobretudo no Norte do país. "Como os portugueses têm uma gastronomia muito variada, aprenderam a comer arroz com tudo, como prato principal e como acompanhamento", avança Pedro Monteiro. "Fazem de mil e uma maneiras, como o bacalhau. . . Foi tão bem trabalhado que ficámos fãs do arroz. "É como o vinhoCampos de um lado, campos do outro, no meio estradas, às vezes canais que levam as águas do rio ou das barragens para as folhas. São traçados geométricos de cores alternadas. Mais verdes, mais castanhos, mais da cor do céu, é assim a lezíria ribatejana. O carro avança, arrozais a perder de vista. Mais uma vez não há trabalhadores, há garças, elegantes e brancas, há gaivotas, apesar de o mar estar longe daqui. A água chega das barragens de Montargil e Maranhão para regar a maior mancha de cultivo de arroz do país, diz António Madaleno. "São 12. 500 hectares. " Agricultor de camisa aos quadrados, sim, mas óculos escuros YSL e um Audi nas mãos. A estrada divide arrozais e leva-nos à fábrica da Orivárzea, perto de Salvaterra de Magos. António Madaleno, o seu presidente, também é empresário e explica por que deve ser mesmo assim: "Os agricultores portugueses ainda não perceberam que não basta mandar a semente à terra. Tem de haver dinâmica em termos comerciais. " A Orivárzea juntou 41 produtores, e dos seus 4500 hectares saem anualmente 30 mil toneladas: 80 por cento carolino, "porque somos teimosos", e o resto agulha. Batas, toucas, que o processo não se quer contaminado. Um enorme monte de arroz ainda com casca está encostado a uma parede, quase como uma instalação. A luz entra pelo tecto da fábrica e o arroz parece transformado em ouro. Mas o que está ali é precisamente aquele que não serve. Tiraram-se as impurezas, fez-se a calibração (o arroz é separado em função das suas dimensões) e este não passou na triagem. Ao lado, tratam-se toneladas de grão. Retira-se uma vez a casca, retira-se duas e três. O grão que entrou castanho sai agora branco transparente - o engessado, branco branco, pertence a outras qualidades, como o Arborio para o risotto, e desse não se faz aqui. Numa hora, são cinco toneladas de arroz que por aqui passam, cumprindo todo o seu percurso: chegaram dos campos e vão para as embalagens, que depois estarão à venda nos supermercados. "Vamos da semente à prateleira", exclama, juntando ao orgulho o facto de a empresa ser a única no país a fazê-lo. "Arroz não é arroz. " É António Madaleno quem o afirma. E com isto quer dizer que o arroz não é todo igual e é preciso aprender a distingui-lo. "É um produto com características próprias. Não fazemos misturas de variedades. O arroz é como o vinho, uma casta do Alentejo não é igual à do Douro. "Precisamente porque há distinções a fazer, a Orivárzea procura vários nichos: produz a semente do Ariete, em vez de a mandar vir de Itália. "É a que melhor se adapta ao clima e que se adequa à nossa gastronomia", justifica. Esta dá, assim, o arroz carolino de Indicação Geográfica Protegida, o equivalente à região demarcada dos vinhos - um campo onde não entra outro grão que não uma variedade muito específica, e portuguesa. "Estas sementes não vêm de Itália", como a maioria das que se semeiam em Portugal. E o arroz é vendido em saquinhos de meio quilo e encaminhado para mercearias chiques. Outra "jóia" da marca Bom Sucesso é o arroz perfumado - "somos os únicos a produzir arroz perfumado em Portugal" - da variedade Giano. Neste "caminho da diferenciação" como lhe chama Madaleno, também se produz arroz integral carolino, e um arroz especial para bebés, sem químicos e à venda nas farmácias numa embalagem que mais parece a de um xarope. "É este o caminho para salvar a agricultura portuguesa: grupos de agricultores para maximizar a economia, reduzir os custos, concentrar as vendas. " De resto, o arroz também já foi mais valorizado, queixa-se. "Um quilo de arroz custa o mesmo que um café. É degradante. "De olhos na panelaNão sabemos quanto João McDonald estaria disposto a pagar pelo seu vício. Mas sabemos que é mesmo uma coisa de que não abre mão. Nem o apelido (herdado de ascendentes escoceses) o empurra para os hambúrgueres com batata frita, é o próprio que graceja. Arroz é que é, e com tudo. Seria difícil saber quantos quilos este técnico de electrónica já comeu em 62 anos de vida e quantos já cozinhou. Mas será certamente um dos que engrossam largamente as estatísticas. "Sempre gostei muito. Tinha de fazer parte do dia-a-dia. Se pudesse ser às duas refeições, tanto melhor. " Pequeno-almoço é que não. Azeite no tacho e duas cebolas pequenas para um estrugido, que no Porto, onde vive, não se diz refogado. Não precisa de alho. Aprendeu tudo com a mãe. "Antigamente era muito lavado, passado por coador para tirar o pó. " Agora já não é preciso, mas nada de pressas. "O meu arroz tem de ser acompanhado, visualmente falando. "Não se medem os grãos com chávena, antes de os deitar no tacho com a cebola frita. Vai a olho, mas por agora é só um bocadinho. Já em miúdo era ele quem fazia para os amigos quando iam acampar, ou para os irmãos mais novos. A mulher queixa-se, "outra vez arroz!", mas a vida é mesmo assim. O bocadinho que pôs no tacho está a fritar e é agora novamente regado com azeite, tudo a mexer "para evitar que isto queime muito". O branco já foi translúcido, passou a branco outra vez e está agora acastanhado, "visualmente falando", lá está. "Deita-se o resto do arroz cá para dentro. " Mexe-se. Não procura receitas, é tudo uma questão de inventar, com poucos limites, a não ser um: incluir arroz. "A minha mulher diz que quando venho para a cozinha deixo tudo de pantanas. " Deita a água, mexe novamente. "Tenho de estar constantemente a observar se há água ou não, e enquanto não estiver cozido não se pára de deitar. Abafo um bocadinho [coloca a tampa] e conforme a água vai baixando ao nível do arroz vou juntando mais. " A água está a sumir-se do tacho para o bago - "agora poderia juntar bacon" - e está na hora de pôr o sal. Mexer. Abafar. A partir daqui pouco se toca no tacho. "Quando quero um arroz bem feito, tem de ser assim. " Estamos a falar com um especialista. Porque o come todos os dias, sabe bem o que diz. Nunca viveu na China, ri, mas isto vem de família. Na casa de tios e primos, como na dele, nunca faltava. A água vai-se sumindo novamente. Junta-se mais, quase com carícias da colher de pau. "Já está com um aspecto mais grosso. Tenho de provar para ver se não está cru. . . Já não sabe mal. "Só agora vai baixar o lume, para esperar que esteja no ponto. E quando esse momento chegar, acaba-se com o fogo e pega-se num jornal para embrulhar o tacho, depois num pano da cozinha para aconchegar, e será uma "sesta" de 20 minutos. Já lá vão uns bons 40, é fazer as contas. "Quantas vezes já aumentou ele de tamanho? Rende muito. " Não gosta de arroz agulha, gosta é de carolino. Aqui não tem os números do seu lado. Em Portugal, come-se mais agulha (48 por cento contra 41 do carolino), e está a aumentar o consumo de vaporizado (7 por cento) e basmati (dois por cento). João McDonald gosta de o cozinhar em parceria, ou a acompanhar quase qualquer coisa. "Arroz com bacalhau cozido é uma maravilha. Tudo regado com azeite. . . Massa não liga nada, já experimentei. Mas sou capaz de comer pizza com arroz, com peixe cozido, sardinhas assadas - vamos nisso, não há problema nenhum!"
REFERÊNCIAS:
Na vanguarda da democracia está o riso do cartoon
Os Cartoonistas – Soldados de Infantaria da Democracia, documentário de Stéphanie Valloato, faz mais do que o retrato de doze artistas espalhados pelo mundo. Problematiza, a partir de diferentes contextos políticos e históricos, o protagonismo inédito que o desenho humorístico tem vindo a ganhar desde 2005. (...)

Na vanguarda da democracia está o riso do cartoon
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.3
DATA: 2015-10-08 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os Cartoonistas – Soldados de Infantaria da Democracia, documentário de Stéphanie Valloato, faz mais do que o retrato de doze artistas espalhados pelo mundo. Problematiza, a partir de diferentes contextos políticos e históricos, o protagonismo inédito que o desenho humorístico tem vindo a ganhar desde 2005.
TEXTO: O título não deixa grandes dúvidas. Os Cartoonistas – Soldados de Infantaria da Democracia, que estreia nas salas, é um documentário que faz a defesa do desenho humorístico como uma expressão da liberdade de opinião e, por consequência, da democracia. As suas personagens sãs os cartoonistas, doze ao todo, e vêm dos EUA, França, Tunísia, Costa do Marfim, Argélia, Israel, Palestina, Rússia ou China. Um retrato global desenhado a partir de diferentes geografias, contextos culturais e históricos e que Plantu (Jean Plantureux), cartoonista do Le Monde inaugura com uma sucessão de frases: “Uma escuridão instala-se sobre o mundo e o desenho é uma boa forma de lhe escapar. A democracia é uma luta que se trava todos os dias. Nunca está ganha”. Ao telefone, de Paris, a realizadora Stéphanie Valloatto anui com um entusiasmo urgente, antes de revelar a génese do documentário. “Começou com a sugestão de um amigo, o Radu Mihaileanu. Falou-me da criação do Cartooning for Peace [associação internacional criada em 2006 por Plantu] e desafiou-me e pensar num documentário sobre o trabalho dos desenhadores humorísticos. Achei uma ideia muito bonita e avançámos”. A escolha dos autores e as filmagens não se realizariam sem obstáculos e dúvidas, apesar da ajuda preciosa da associação e de Plantu. “Demorámos a chegar aos artistas africanos, mas conseguirmos”, conta a realizadora. “Muito mais complicado foi encontrar um artista asiático. O primeiro cartoonista chinês em que pensámos não quis falar. Temia ser preso. Tivemos a sorte de encontrar o Pi San”. É por intermédio de Pi San, conhecido pelos seus desenhos animados controversos, que o artista plástico Ai Weiwei faz uma curta e inesperada aparição. Weiwei não é cartoonista, mas a repressão de que foi alvo (está proibido pelas autoridades de sair da China) não é estranha à venezuelana Rayma Suprani, ao russo Mikhail Zlatkovsky ou ao argelino Slim (Menouar Merabtene). Há nos gestos destes a apreensão das pessoas acossadas, uma resignação dolorosa, embora não deixam de falar, de mostrar os seus desenhos, de fitar a câmara. “Achei importante mostrar os seus rostos, as suas casas, os ateliês onde trabalham, a sua intimidade. Quis tirá-los das sombras, onde costumam ficar, mas eles também quiseram sair. Iluminei-os um pouco e curiosamente disseram-me que agora, sob a luz, se sentem mais protegidos”. Escrevia-se que os cartoonistas são as personagens do documentário. Acrescente-se outra. Invisível, “abstracta”, a democracia moderna vive nos desejos e na angústia dos retratados. “Sim, concordo. Quis mostrar o grau da democracia no mundo a partir dos cartoonistas, quis mostrar as dificuldades que eles enfrentam nas suas actividades. Por serem mulheres, como a Rayna ou Nadia [Khiari, criadora do gato irónico, Willis from Tunis], por causa da ascensão do fundamentalismo religioso ou da pressão dos políticos que o Plantu descreve. Creio que a actividade dos cartoonistas pode servir como barómetro da democracia, eles antecipam ameaças, assinalam sintomas”. Canários numa mina de carvãoPara Stéphanie Valloat, a metáfora bélica do título de documentário assenta bem aos cartoonistas. Estão na frente, antes dos jornalistas e outros formadores de opinião. São os primeiros a sofrer ataques e retaliações, como testemunham Slim e Baha Boukhari. O primeiro na Argélia, o segundo na Palestina, satirizaram, respectivamente o governo argelino pós-independência, e o líder do Hamas, Ismaïl Haniyeh. O desfecho? A economia dos seus desenhos foi inversamente proporcional à violência da reação do poder político: foram ameaçados e censurados. Porquê? O que torna os cartoonistas tão expostos à violência?“Nas sociedades modernas, eles acabaram por se transformar em expoentes das fronteiras da liberdade de expressão”, diz o historiador de arte dinamarquês Matthias Wivel. “São mais visíveis do que qualquer outro grupo, em parte porque a sua arte cristaliza, com uma eficácia invulgar, as questões associadas a esse tema. São como canários numa mina de carvão”. Especialista em arte do Renascimento, banda desenhada e desenho humorístico, Wivel faz no entanto uma ressalva importante. “Não acho que o cartoon seja uma arte da democracia moderna. É uma forma de sintetizar a escrita e o desenho, de tipificar a realidade. Pode ser usado com vários propósitos, inclusive anti-democráticos. Um dos exemplos mais infames desse uso esteve, por exemplo, nos cartoons anti-semitas do Der Stürmer [semanário oficial do regime nazi] ”. Mas não pode a vitalidade do cartoon andar a compasso do vigor da democracia? “Sim, admito que sim. A qualidade de uma democracia pode ser medida pela capacidade que tem em acomodar diferentes pontos de vista, incluindo os anti-democráticos”. No documentário, há um ponto de vista e pertence à sociedade dessa democracia. É ela que olha para aos cartoonistas, sem juízos prévios ou analogias forçadas. Pelas palavras e memórias dos intervenientes, o espectador sabe que se confronta com contextos e histórias distintas. “A democracia tem graus diferentes na China, na Venezuela e no Burkina-Faso. Quando falamos de democracia na da Rússia, não estamos a falar da democracia nos Estados Unidos ou em França. Cada cartoonista fala da sua sociedade, da sua cultura”, sublinha a realizadora. Essa consciência manifesta-se nas desilusões expressas por Nadia Khiria, que, depois da Revolução de Jasmim, na Tunísia, nunca imaginou usar tanto o vermelho nos seus desenhos ou na prudência corajosa de Pi Sang, que reconhece a existências de linhas que não devem ser ultrapassadas. Satirizar Vladimir Putin é, na Rússia, uma dessas linhas, como é na Venezuela caricaturar Nicolás Maduro. Quando ultrapassadas, as consequências são descritas no documentário: perseguição, proibição de desenhar, despedimentos sumários. Insultos e ameaças. A repressão é tão forte que as canetas e os lápis se tapam, nem que seja temporariamente, como conta Slim traumatizado com a violência da Guerra Civil da Argélia (1992-2002). Nas democracias ocidentais também existem limites, mas tendem a ser definidas pelas regras do próprio sistema democrático. “Nas leis que proíbem que se ridicularize o chefe de estado ou que proíbem a blasfémia, por exemplo, na Inglaterra, em relação à região anglicana, encontramos linhas vermelhas”, exemplifica João Cardoso Rosas, professor de Filosofia Política da Universidade do Minho. Já nos Estados Unidos, legislação semelhante dá lugar a pressões de caracter social, das comunidades, das associações”. “Os jornais americanos não publicaram as caricaturas de Maomé”, lembra. “E não o fizeram por causa da pressão social, porque existe um cuidado especial quando se trata de religiões. Não é propriamente uma linha vermelha legal, mas social e política. E isso existe em qualquer democracia. A democracia é feita de instuitições e de comunidades. Resta ao cartoonista adaptar-se aos contextos, caso contrário, corre o risco de não ser compreendido, de não encontrar o seu púbico. Não há liberdade absoluta, mesmo nas democracias”. Uma arte num mundo globalizadoNuma das cenas do documentário, o cartoonista americano Jeff Danziger revê um dos seus mais polémicos desenhos (Dick Cheney, ex-vice presidente dos EUA, é um dos visados) e deixa escapar que não o assinou. Medo de represálias, pressões? “Ele de facto sentiu-me incomodado com esse desenho [risos]”, revela Stéphanie Valloato. “Os Estados Unidos não são uma ditadura, mas também aí existem linhas vermelhas. Evita-se escrever sobre sexo, sobre os pobres e os ricos, sobre as minorias, sobre o poder financeiro”. Por vezes, a autocensura é um dos meios que os cartoonistas encontram de fazer à frente às pressões, de sobreviver. Retraem-se conscientes de que o estão a fazer. Ora, para Michel Kichka, cartoonista belga-israelita, descendente de sobreviventes do Holocausto, quem receia magoar os outros com o seu desenho deve procurar outra profissão. A sátira magoa e não é compatível com o politicamente correcto. “Essa é uma tendência que vai dominando na Europa e nos EUA”, acrescenta a realizadora. “A dada altura não podemos falar, não podemos ter uma opinião. Temos todos que pensar com a mesma cabeça. De tanto se defender a diferença, ataca-se a diferença de opinião. Simplesmente, não podemos dizer aquilo que pensamos. ”A outra ameaça que no filme paira sobre muitos dos cartoonistas é a do fundamentalismo religioso islâmico. Em segundo ou em primeiro plano, dito ou não dito, faz sentir a sua presença nos depoimentos dos entrevistados ou em imagens de arquivo. “É por causa das caricaturas de Maomé publicadas em 2005 num jornal dinamarquês que andamos a falar tanto de cartoonistas. Tudo começou aí”, afirma João Cardoso Rosas. “Há um contexto específico muito importante, que é o regresso da questão religiosa à Europa e a oposição entre a liberdade de expressão e uma ortodoxia religiosa. E os cartoonistas, com a sátira e a blasfémia estão no centro dessa oposição. Através do seu trabalho entram em conflito com uma sensibilidade religiosa que é a dos muçulmanos”. Stéphanie Valloato estava ciente da tensão criada por tal oposição, mas não anteviu a tragédia do dia 7 de Janeiro. “No que respeito ao massacre do Charlie Hebdo, há claramente um antes e depois. Sabíamos que os cartoonistas eram perseguidos e assassinados noutros países, mas não imaginámos que isso pudesse acontecer em Paris, no século XXI. Isso não imaginávamos, confesso” Para Matthias Wivel acresce outro factor que vem ampliar a ressonância desse conflito. É, aliás, o mesmo que permitiu o nascimento do documentário. “Vivemos num mundo globalizado em que a informação e a desinformação são transmitidas instantaneamente pelo mundo inteiro para serem interpretadas em contextos muito diversos. Isto criou uma nova situação para os cartoons satíricos que historicamente sempre foram muito dependentes de contextos locais. Veja o Charlie-Hebdo ou Jylands-Posten [o jornal dinamarquês que publicou as caricaturas de Maomé]. Não pensaram, creio eu, que os seus desenhos viessem a provocar este impacto. Os cartoonistas tornaram-se símbolos de algo que não previram e que está relacionado com a circulação rápida e livre da informação”. Sem menosprezar os efeitos da globalização, vale a pena constatar a adaptação do desenho, satírico enquanto arte e técnica, ao mundo criado pelas tecnologias de informação. A actividade de Nadia Khiaria é nesse aspecto exemplar. Foi nas redes socias que esta artista criou e divulgou Willis From Tunis, série de cartoons que acompanharam, na forma de comentários irónicos, os avanços e recuos da Revolução de Jasmin. “O desenho humorístico é muito claro, tem pouco texto. Adapta-se a todos suportes, sejam digitais ou analógicos”, diz Wivel. “Parafraseando Art Spiegelman [o autor de Maus] por vezes é mais difícil não conseguir ler um cartoon, do que lê-lo”. E ler um cartoon pode ter um efeito terapêutico, como lembram (quase) todos os retratados. Rir pode ser, no filme, um antídoto contra o absurdo, a violência, a guerra, a estupidez. Protege-nos do poder e da vaidade. É na sua expressão que os cartoons prosperam. O que poderiam fazer diante do muro da Cisjordânia, da prepotência de Putin ou de Maduro, da ambição de Zarkozy, do fanatismo religioso, senão fazer rir? “Sem o humor, o mundo tornar-se-ia insuportável. Um sítio inabitável”, conclui Stéphanie Valloato.
REFERÊNCIAS:
Violentos, os neandertais? Não mais do que nós
Para verificar se a imagem de humanos violentos que se lhes colou à pele correspondia à realidade, os neandertais foram submetidos a uma análise aos crânios. Passaram no teste da comparação com a nossa espécie naqueles tempos paleolíticos. (...)

Violentos, os neandertais? Não mais do que nós
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento -0.52
DATA: 2018-12-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Para verificar se a imagem de humanos violentos que se lhes colou à pele correspondia à realidade, os neandertais foram submetidos a uma análise aos crânios. Passaram no teste da comparação com a nossa espécie naqueles tempos paleolíticos.
TEXTO: É mais uma machadada (salvo seja) num estereótipo que dura há mais de 160 anos, desde que os primeiros ossos de um neandertal foram descobertos no vale (Tal, em alemão) de Neander, perto de Düsseldorf, Alemanha. Depois de terem sido apresentados tantas vezes como criaturas rudes, os neandertais têm vindo aos poucos a ter o seu retrato traçado mais ao encontro de como terá sido na realidade este grupo de humanos. E é neste sentido que surge uma análise de comparação de lesões no crânio em neandertais e humanos modernos (a nossa espécie) seus contemporâneos. Afinal, tanto eles e como nós tínhamos nessa altura, entre há 80 mil e 20 mil anos, o período dos fósseis analisados, níveis semelhantes de ferimentos. O que contradiz a hipótese de que os neandertais tinham um estilo de vida mais violento do que os humanos modernos, uma ideia que seria evidenciada por taxas elevadas de traumatismos ósseos. Os neandertais surgiram como um grupo de humanos há cerca de 400 mil anos na Europa e sempre viveram no continente euroasiático. Há cerca de 28 mil anos desapareceram para sempre como grupo humano, não sem antes – sabe-se agora graças ao avanço das técnicas de sequenciação genética, depois de um intenso debate científico centenário – se terem cruzado reprodutivamente com a nossa própria espécie, deixando-nos um bocadinho do seu ADN como herança genética. À Europa, a nossa espécie, saída de África, chegou há cerca de 45 mil anos. Um dos últimos locais onde os neandertais viveram foi na Península Ibérica. O seu desaparecimento continua a ser um mistério. “Viveu em grutas, cobria o corpo com peles, tinha verdadeiras estratégias de caça, inclusivamente de animais de grande porte, alimentando-se quase exclusivamente de carne, aceitava indivíduos menos capazes fisicamente no seio dos seus grupos, trabalhava a pedra de um modo eficiente e pensava na morte”, escreveu sobre o Homem de Neandertal Eugénia Cunha, antropóloga forense e especialista em evolução humana da Universidade de Coimbra, no livro de divulgação científica Como nos Tornámos Humanos, de 2010. A extinção destes seres “inegavelmente inteligentes”, estará relacionada com a nossa chegada ao Próximo Oriente e à Europa, nota Eugénia Cunha, mas o que aconteceu ao certo não está esclarecido. Para lá deste debate sobre as razões da sua extinção, a forma como os neandertais foram tantas vezes retratados nem sempre lhes foi muito lisonjeira. Eram vistos como rudes e violentos. Mas, entretanto, também já foram representados no extremo oposto – dizendo-se que, se usassem um fato, uma gravata e um chapéu, passariam despercebidos no metro de Nova Iorque. Muitas das investigações que têm surgido indicam que eram humanos sofisticados e parecidos connosco em muitos aspectos. Ninguém nega, no entanto, que há diferenças anatómicas entre os neandertais e a nossa espécie – eles com uma estatura mais atarracada e robusta, adaptada ao frio daqueles tempos, e nós mais esguios. Os neandertais, por exemplo, não tinham queixo, a testa era baixa e o seu cérebro mais volumoso do que o nosso. A ideia da sua rudeza e violência não surgiu do nada: baseou-se numa taxa invulgarmente elevada de ferimentos traumáticos descritos em fósseis de neandertais, explica um comunicado da Universidade de Tübingen (Alemanha), que conduziu agora o novo estudo, publicado esta quinta-feira na revista Nature. E a zona da cabeça e do pescoço, pensava-se, seria particularmente atingida. Por diversas razões: os neandertais teriam um comportamento social violento, os acidentes seriam comuns, uma vez que eram caçadores-recolectores em condições ambientais duras (a Europa estava então sob um manto de neve e gelo), seriam atacados por animais carnívoros como o urso-das-cavernas e, para caçarem, tinham de se aproximar muito das presas para as apunhalar e atirar lanças. “Desta forma, as taxas elevadas de ferimentos nos neandertais têm sido usadas para inferir não só que tinham estilos de vida perigosos como um comportamento violento e técnicas de caça inferiores”, refere o comunicado. “Estas interpretações têm implicações importantes para a reconstituição da paleobiologia e comportamento dos neandertais e moldaram a percepção prevalecente sobre a espécie. No entanto, baseiam-se largamente em provas empíricas, uma vez que os traumatismos entre os humanos do Paleolítico são frequentemente relatados em descrições caso a caso”, acrescentam os cientistas no artigo científico. A equipa de Katerina Harvati, da Universidade de Tübingen, foi então verificar se o estilo de vida e os comportamentos dos neandertais seriam realmente tão violentos como os descreviam. Em vez de se limitarem a analisar os traumatismos em esqueletos a nível individual, os cientistas avançaram para uma análise quantitativa a nível populacional, comparando os traumatismos cranianos entre neandertais e humanos modernos do Paleolítico Superior. Para tal, utilizaram informações sobre centenas de ossos dos dois tipos de humanos, com e sem marcas de ferimentos, publicadas na maior base de dados disponível sobre fósseis. As informações sobre 836 ossos, datados com 80 mil a 20 mil anos, são relativas a crânios de 114 neandertais e de 90 humanos modernos descobertos pela Eurásia – desde Gibraltar até ao Quirguistão, passando por Israel, Itália, França ou Espanha. De Portugal está lá informação relativa a um fragmento de um humano moderno encontrado na Gruta do Caldeirão, na zona de Tomar. Usando vários modelos estatísticos, a equipa teve em conta o sexo, a idade desse indivíduo na altura da morte, a localização geográfica onde o osso foi encontrado e o estado de conservação. “Tanto quanto é do nosso conhecimento, esta é a maior investigação a nível populacional dos traumatismos cranianos nos neandertais até agora e que usa uma amostra de comparação de humanos modernos do Paleolítico Superior como contextualização”, frisa a equipa no artigo científico. “Os nossos resultados refutam a hipótese de que os Neandertais tinham mais tendência para ferimentos na cabeça do que os humanos modernos, contrariando a percepção comum. Acreditamos por isso que os comportamentos comummente mencionados dos neandertais como estando na origem de níveis elevados de ferimentos, como comportamentos violentos e capacidades inferiores de caça, têm de ser reconsiderados”, sublinha por sua vez no comunicado Katerina Harvati. Além de níveis de ferimentos semelhantes, os cientistas constataram que os esqueletos atribuídos ao sexo masculino apresentavam mais ferimentos do que os do sexo feminino tanto entre neandertais como entre humanos modernos, um padrão observado igualmente em grupos humanos mais recentes. Como hipótese para esta constatação, a equipa aponta a divisão do trabalho entre homens e mulheres, bem como outros comportamentos e actividades relacionados com o sexo dos indivíduos. Mas, numa análise mais fina, também se encontraram diferenças. “Enquanto os neandertais e os humanos modernos do Paleolítico Superior exibiam uma prevalência global de traumatismos, descobrimos que existia uma diferença relacionada com a idade em cada uma das espécies”, explica por sua vez Judith Beier, igualmente da Universidade de Tübingen e a primeira autora do artigo científico na Nature. Também como hipótese para estas observações, a equipa adianta que os neandertais poderiam ter mais probabilidade de se ferirem quando eram novos ou de morrer depois de um ferimento do que os humanos modernos. “Este padrão relacionado com a idade é um novo resultado. Globalmente, no entanto, os nossos resultados sugerem que os estilos de vida dos neandertais não eram mais perigosos do que os dos nossos antepassados, os primeiros humanos modernos europeus”, assinala Katerina Harvati. Num comentário na revista Nature que acompanha o trabalho, Marta Mirazón Lahr considera que “o poder” desta análise reside precisamente na forma como o estudo foi concebido. “Em vez de se compararem dados de neandertais com dados mais recentes ou de populações humanas actuais, como fizeram estudos anteriores, os autores basearam as suas comparações em humanos que não só partilharam o seu ambiente com os neandertais como havia semelhanças no nível de preservação dos fósseis”, assinala aquela paleoantropóloga da Universidade de Cambridge, Reino Unido. “O estudo de Beier e dos colegas não invalida as estimativas anteriores de traumatismos entre os neandertais. Em vez disso, fornece um novo enquadramento para interpretar esses dados mostrando que o nível de traumatismos nos neandertais não era excepcionalmente elevado em relação aos primeiros humanos modernos na Eurásia”, acrescenta ainda Marta Mirazón Lahr, que dá ainda destaque às diferenças entre estes dois grupos humanos. “A descoberta de que os neandertais podem ter sofrido mais traumatismos quando eram novos do que os humanos [modernos], ou que tinham um risco maior de morte depois de um ferimento, é fascinante e pode ser uma revelação-chave sobre a razão por que é que a nossa espécie teve uma vantagem demográfica sobre os neandertais. ”Mas se este trabalho vem refutar a má fama dos neandertais, Marta Mirazón Lahr considera que ainda não é a palavra final quanto aos seus traumatismos, uma vez que só foram analisadas as lesões no crânio. “E se os neandertais acumulavam mais ferimentos no corpo do que os humanos [modernos]? Há dados que sugerem que pode ter sido esse o caso. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Independentemente do que futuros estudos venham a concluir sobre as perguntas ainda em aberto, é longo o caminho que os neandertais já fizeram até aqui para que mudássemos a percepção sobre eles. Terminamos com alguns exemplos. Se os imaginamos de cabelo e pele escuros, desenganemo-nos. Também os havia ruivos e de pele clara, como muita gente da nossa espécie oriunda do Norte da Europa, segundo revelou uma investigação, em fósseis de neandertais, de um gene responsável pela variação da cor da pele e do cabelo nos humanos (o gene MC1R, envolvido na produção de melanina). Num outro gene relacionado com a linguagem, o FOXP2, apresentavam já uma mutação, idêntica à dos humanos modernos, que lhes conferia a possibilidade de falarem. E há indícios de que enterravam os seus mortos, tal como nós, uma manifestação de pensamento simbólico. Nos últimos tempos, têm-se acumulado provas de que os neandertais manifestavam um pensamento abstracto e simbólico idêntico ao da humanidade actual – por exemplo, usavam objectos de adorno pessoal, que não tinham função prática mas sim simbólica. E, segundo uma investigação recente de pinturas rupestres em grutas espanholas, terão sido os primeiros a pintar grutas há 65 mil anos, quando a nossa espécie ainda não tinha chegado à Europa. De brutamontes a artistas, e não mais violentos do que nós nesses tempos, assim se traça um retrato mais realista dos neandertais.
REFERÊNCIAS:
Atrás dos burros selvagens da China
Partiram de Portugal para viajar quase cinco mil quilómetros, pelo coração da lendária Rota da Seda, em versão genética. Tinham em mira burros, marmotas e aves. Primeira de duas partes de uma expedição científica. (...)

Atrás dos burros selvagens da China
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento -0.15
DATA: 2010-06-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Partiram de Portugal para viajar quase cinco mil quilómetros, pelo coração da lendária Rota da Seda, em versão genética. Tinham em mira burros, marmotas e aves. Primeira de duas partes de uma expedição científica.
TEXTO: Pela mira telescópica, seis burros, alinhados lado a lado, cabeças levantadas, orelhas espetadas, olham na direcção de quem os olha ao longe. “Eia, que espectáculo! Todos a olhar para cá”, diz Albano Beja Pereira. “Oh, sim”, concorda Chen Shanyuan, quando chega a sua vez de espreitar pela mira, em cima de um tripé assente na areia. “Posso ver?”, atira Nuno Monteiro. Surgem umas orelhas com pontas pretas, crinas negras, cabeças e dorsos cremes, patas e ventres de um branco sujo, entre uma paisagem dominada pela areia pintalgada por vegetação rasteira, verde-escura. O burro selvagem da Mongólia, o Equus hemionus hemionus, esquivo à presença humana, tem o estatuto de espécie ameaçada. Parente afastado dos burros domésticos, encontra-se em bolsas fragmentadas no Irão, Índia, Turquemenistão, Mongólia e Norte de Xinjiang, a região mais a ocidente da China. E depois de Beja Pereira, Chen Shanyuan e Nuno Monteiro, também Ablimit Abdukadir se baixa para os contemplar pelo pequeno monóculo no tripé. Continuam todos virados para cá, mas os quatro cientistas que os espiam conseguem manter-se incógnitos, a um quilómetro de distância, quais David Attenborough em plena expedição atrás dos burros selvagens da Ásia. “Temos o vento contra nós, estamos na melhor situação possível”, diz Beja Pereira, 37 anos, zootécnico do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio) da Universidade do Porto, enquanto deixa para trás, junto aos dois jipes por que se reparte a expedição, os outros cientistas e toma a dianteira para se ir aproximando dos burros. Vai a pé, meio agachado, com a mochila às costas. Avança pelas franjas do deserto de Gurbantünggüt, no Norte de Xinjiang. É uma planura arenosa, mil metros acima do nível do mar, coberta aqui e ali por uma crosta de sal que estala mal se pisa. Nem um arbusto alto que faça de esconderijo e dê alguma sombra. Nem uma pinga de água, que ficou esquecida no jipe, para acalmar os efeitos dos 35 graus pelas três da tarde. Nem a sensação de isolamento associada ao deserto. Avista-se uma estrada alcatroada, a mesma utilizada minutos antes pelos jipes da equipa, que continua a ser cruzada por um constante ir e vir de camiões (tem restaurantes na berma, num deles haveria mais tarde de se pedir uma sopa de cogumelos e tofu, mais a mosca que vinha a boiar). E há um cercado, com um portão fechado a cadeado, que um guia local abre para a equipa. Os burros não correm em total liberdade pela planície do Gurbantünggüt, o segundo maior deserto da China, a seguir ao Taklamakan, no Sul de Xinjiang. O cercado, na Reserva Natural de Ungulados Selvagens de Karamaile, com 158 mil hectares, impede-os de ir para a estrada. No seu encalço, logo depois de Beja Pereira, segue Nuno Monteiro, 36 anos, biólogo do Cibio e docente de Parasitologia na Universidade O investigador Beja Pereira recolhe excrementos para análise do ADN Fernando Pessoa, no Porto. E o chinês Chen Shanyuan (ou Jay, a alcunha inglesa que adoptou para os ocidentais), de 30 anos, a viver em Portugal há algum tempo como estudante de pós-graduação de Beja Pereira. Ainda na dianteira, olhos postos no chão, o zootécnico cedo se depara com um objecto, o primeiro de todos, muito desejado pela expedição. “Tens aí luvas?”, pergunta-lhe, cá de trás, Nuno Monteiro. “Tenho”, diz Beja Pereira. O que eles viajaram até este momento chegar. Para sul, 1500 quilómetros Chegaram dez dias antes, a Ürümqi (lê-se algo como “Urumquexi”), a capital de Xinjiang, região onde a etnia uigur (muçulmana, de origem turca e minoritária na China) vive há mais de quatro mil anos e ainda é dominante entre os 20 milhões de habitantes. Esperava-os Ablimit Abdukadir, investigador do Instituto de Ecologia e Geografia de Xinjiang, membro do grupo de especialistas em felinos da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). É este uigur, 56 anos, que é o anfitrião de Beja Pereira, Nuno Monteiro e Chen Shanyuan – este da etnia han, que forma 91 por cento da população da China. Rota da Seda 2010 é o nome da expedição. A capital fica apenas 400 quilómetros a sul da reserva natural de Karamaile. Mas, agora, os seus três milhões de pessoas, estradas largas, filas e mais filas de carros, arranha-céus no centro, triciclos, bicicletas, motorizadas eléctricas, bancas de fruta, de vegetais ou de comida na rua, lojas com cartazes gigantes em mandarim e uigur, um bazar internacional, mulheres com lenços na cabeça, enfim, a azáfama de uma qualquer grande cidade, a que não falta um restaurante da Kentucky Fried Chicken, parecem um mundo distante. É que, até ao encontro com os burros selvagens da Mongólia, muitos foram os quilómetros de estrada, muitas as montanhas atravessadas, as horas no deserto, as sestas a que foi impossível resistir em longas rectas, as paragens em casas de banho improvisadas, muitos os solavancos. Mais distantes ainda parecem os acontecimentos violentos que rebentaram a 5 de Julho do ano passado: durante alguns dias, as ruas de Ürümqi foram palco de confrontos entre uigures e chineses han, que resultaram oficialmente em 197 mortos e mais de mil feridos, no envio de milhares de soldados para manter a ordem e no corte dos telefones, Internet e e-mail, só há pouco tempo restabelecidos (em 1949, Xinjiang passou a ser controlada pela recém-proclamada República Popular da China, mas mantiveram-se os movimentos independentistas e de resistência uigur). Logo à chegada, a expedição começou por arrancar em sentido oposto, para o Sul, portanto, rumo à Reserva Natural das Montanhas Arjin, a 1500 quilómetros de Ürümqi. Objectivo: ver outro burro selvagem da Ásia, o do Tibete, ou Equus kiang. Se o virmos nas fotografias, o burro selvagem do Tibete tem a cabeça e o dorso mais castanhos e peludos do que o burro da Mongólia. É o maior dos burros selvagens da Ásia, e há um mistério em relação a ele. Existem três subespécies, uma delas nas Montanhas Arjin? Ou há apenas uma espécie, com variações ecológicas? “Ninguém sabe, é um quebra-cabeças”, diz Beja Pereira. O facto de a Reserva Natural das Montanhas Arjin ser bastante fechada, em particular à entrada de estrangeiros, tem perpetuado este mistério. É para lá que a equipa se dirige primeiro. Ürümqi-Korla, primeiro dia de viagem, com a passagem por um parque de geradores eólicos, quase sem fim, ainda às portas da capital e pela imensa cordilheira Tianshan, despida de árvores, em tons de castanho, creme e amarelo. Parece talhada à faca. Eis que, no meio de nada, ao fim de 550 quilómetros, surgem os arranha-céus de Korla, uma das cidades da célebre Rota da Seda, que durante séculos ligou a Ásia ao Mediterrâneo. Korla-Qarqan, segundo dia, mais de 700 quilómetros, com travessia pela orla leste do deserto do Taklamakan em plena tempestade de areia. A realidade pelo vidro do jipe apresenta-se esbranquiçada e limitada a poucos metros, como se um nevoeiro se tivesse abatido na auto-estrada, e os grãos finíssimos entranham-se pelo nariz. Durante séculos, a Rota da Seda contornava o Taklamakan, a norte e a sul, convergindo na cidade-oásis de Kashgar. Então o deserto engolia quem se atrevesse a desafiá-lo, agora as suas reservas importantes de petróleo originaram a construção de auto-estradas que o cruzam sem temor. Nem um vislumbre dos camelos selvagens de duas bossas, cada vez mais raros, criticamente ameaçados, que ainda vivem no Taklamakan, antepassados dos camelos domésticos com o mesmo número de bossas, e que a Sociedade Zoológica de Londres inclui entre os dez mamíferos mais raros do planeta (existirão menos de mil na China e na Mongólia). E o terceiro dia, passado em Qarqan, cidade plana, 800 metros acima do nível do mar, outra importante passagem ao longo da Rota da Seda, foi para tratar da logística para a subida a quase quatro mil metros de altitude. Compraram-se agasalhos numa loja de material militar: casacos compridos verdes, gorros, luvas. Entre brincadeiras, Beja Pereira e Nuno Monteiro improvisaram poses militares, esticando os ombros e pescoços com ar imponente, que um capacete na loja atulhada ajudou a compor. Arranjam-se sacos de oxigénio, caso alguém se sinta mal nas alturas das Montanhas Arjin. Há passeios pelo bazar, com as suas bancas de vegetais, sacos de arroz, carne pendurada ao ar livre, restos de uma vaca no chão, pães nan tendidos com a forma de pizzas e colados nas paredes do forno que os coze ali mesmo, ou roupas, tudo a três passos de uma das poucas mesquitas que se encontraram pelo caminho. Sorriem-nos, querem saber de onde vêm os estranhos. As mulheres, pintadas, de saltos altos, exibem os seus lenços garridos, a maior parte mantendo a cara destapada. Os homens optam quase sempre por cobrir a cabeça, ou com bonés ou chapéus de feltro ou os tradicionais chapéus muçulmanos bordados. Há tempo para provar kebabs (espetadas de borrego) e o pollo (prato de arroz com pedaços de cenoura e um naco de borrego em cima), acompanhados pelo chá omnipresente a cada refeição. O guardião da reservaQarqan-Montanhas Arjin, quarto dia de viagem, com um novo guia nesta etapa da expedição, o uigur Tursunjan Yakub, guarda-florestal do Departamento de Florestas de Qarqan. Sem se dar por isso, a altitude vai aumentando – até que a planície de areia e pedras, cortada por uma estrada em tal estado que tudo tremelica, começa a ceder lugar à montanha. Um rio teima em ser presença constante, atravessado vezes sem conta nas curvas e contracurvas montanha acima; a três mil metros é altura de uma paragem. De um lado, tem-se a visão panorâmica das encostas Arjin acabadas de subir, rocha e terra apenas, feridas pela erosão, e do pastor com quem nos cruzámos e que aí vem, montado no seu burro doméstico, um ponto minúsculo visto daqui. Olhando para o caminho a seguir, erguem-se ao fundo os picos com neve da Montanha de Kunlun, parte do sistema montanhoso dos Himalaias, na fronteira entre Xinjiang e o Tibete. Segue-se um planalto. Casas de pastores, rebanhos de ovelhas, cavalos e camelos domésticos dispersam-se aqui e ali. Por fim, a chegada a uma estação de gestão da vida selvagem. Passaram seis horas desde a partida de Qarqan, viajaram-se apenas uns 200 quilómetros. A estação fica num terreiro ventoso e frio, a cerca de 3600 metros de altitude. Há casas de tijolo, há um entreposto comercial, há gente ora sentada à porta, ora de um lado para o outro, ora a carregar mercadorias. “Nesta montanha, e à volta, vivem 500 pastores. São nómadas”, explica Ablimit Abdukadir. “Se precisam de sal, cigarros, combustíveis, fazem as compras aqui. ” No entreposto, há uma sala com dois telefones fixos muito requisitados, sofás velhos, caixas de soro injectável, que dá para uma sala de estar, cheia de gente a entrar e sair, com tapetes nas paredes, um televisor e um reconfortante fogão a carvão. O casal uigur que gere o entreposto recebe os visitantes com pães nan e chá, e logo a expedição volta à estrada, com a intenção de acampar mais acima. É apenas preciso transpor uma cancela, uns metros à frente, que aguarda quem quer entrar na reserva natural. Numa tenda ao lado, um jovem chinês han, o guardião da reserva, quer ver, na autorização escrita dos trabalhos científicos da equipa para a região de Xinjiang, a referência específica às Montanhas Arjin. Como se as Arjin não fossem em Xinjiang. Ou, então, os estrangeiros teriam de pagar quatro mil euros. Não consta tal referência na autorização, e nem Ablimit Abdukadir nem Chen Shanyuan conseguem demover o guardião da reserva. Numa última tentativa, de volta ao entreposto, um telefonema para um dos responsáveis da área protegida também não surte efeito. O mistério dos burros selvagens nas Arjin, onde os cientistas estrangeiros não entram desde os anos 80, até porque a espécie está associada ao vizinho Tibete, uma zona politicamente conturbada, vai portanto manter-se para já. Foram 1500 quilómetros desde Ürümqi, iria iniciar-se o caminho de volta, ao cair da tarde. O saco-cama, que preenche um quarto da mala de viagem, afinal não serviu para nada. Era melhor nem pensar nos abanões no jipe até Qarqan, onde se chegaria à uma da manhã. Nem nos quilómetros até à capital (com um desvio de uns dias para procurar uma certa marmota e a ave que com ela partilha a toca, no planalto de pradarias de Bayanbulak, que ficam para a segunda parte do relato desta expedição). Atravessa-se de novo o Taklamakan, mas pelo centro, e a cordilheira Tianshan. De Ürümqi, a viagem continua para o Norte – em busca dos burros da Mongólia, e a visão, à segunda saída da capital, é a de uma sucessão de centrais térmicas e de refinarias de petróleo e gás natural, recursos em que Xinjiang é rica. “Estou desiludido”, deixa escapar Ablimit Abdukadir. “Em ciência há sempre um risco”, responde-lhe Beja Pereira. ADN a quanto obrigas Voltemos então ao momento em que Beja Pereira e os companheiros andam atrás dos burros da Mongólia – os primeiros que finalmente vêem – e estão prestes a obter o que tanto ambicionam. Excrementos. Caminhando pelo deserto, os animais juntam-se, começam a afastar-se e desaparecem. “Não dá para nos aproximarmos com tanta gente. ” Pelo terreno, Beja Pereira esborracha este e aquele dejecto com o pé, avaliando a sua frescura: “O que é que mais estraga o ADN? Os ultravioletas”, explica. “Nuno, aqui está fresco”, avisa. Através do ADN nos excrementos, Beja Pereira quer inferir o tamanho efectivo das populações de burros selvagens asiáticos – ou seja, o número de genomas únicos que se transmitem à descendência. Dois burros gémeos, por exemplo, contam como um só. Sem ter de os contar, e por meio de um método não invasivo, quer avaliar a consanguinidade dos animais e ver se todos têm igual oportunidade de se reproduzir. Quanto mais elevada for a consanguinidade, menor é a taxa de fertilidade e a viabilidade de uma população e, no final, da própria espécie. Uma auto-estrada que fragmente uma manada, deixando poucos machos de um dos lados, por exemplo, aumenta a endogamia: “Do ponto de vista do ADN, conseguimos ver se há um grupo à parte. ” Beja Pereira, que é membro do grupo de especialistas em equídeos da IUCN, tem estado a fazer este tipo de estudos para os burros selvagens africanos, criticamente ameaçados, mas faltava-lhe um termo de comparação com espécies próximas. Aliás, os burros selvagens de África (Equus africanus) valeram-lhe uma descoberta, com direito a um artigo na revista Science em 2004: anunciou que foram estes burros, e não as espécies asiáticas, a ser domesticados, há cinco ou seis mil anos. Foi o que revelaram as análises de ADN de burros selvagens africanos e de burros domésticos de 52 países, da Europa, África e Ásia. Os antepassados de todos os burros domésticos são assim os burros selvagens de África, mais concretamente duas subespécies (o burro da Núbia, região no vale do Nilo, partilhada entre o Egipto e o Sudão, e o burro da Somália). De fora da domesticação ficaram os burros selvagens da Ásia, de que a espécie da Mongólia e a do Tibete são exemplos. Nuno Monteiro quer saber quais são os parasitas e as bactérias presentes em espécies de zonas remotas como Xinjiang. “Apesar de ter havido uma ‘febre’ de explorar nichos novos, à procura de resistências a antibióticos e a antiparasitários em zonas mais remotas, ainda não se sabe muito sobre espécies emblemáticas como os burros e camelos”, explica Nuno Monteiro. “Era aqui que eles estavam”, aponta Beja Pereira para o terreno espezinhado. “Este é mesmo, mesmo fresco. ” Como bolinhos, os cientistas embrulham as amostras em papel de alumínio ou guardam-nas em tubinhos, que transportam nos bolsos e mãos enquanto cirandam por ali. Mas eles querem mais excrementos e no dia seguinte, o 11. º da expedição, vão procurar outros burros, mais a norte na Karamaile. Seguindo as indicações de outro responsável da reserva, deixam a concorrida estrada alcatrão e metem-se por caminhos de terra. Com tantos furos de petróleo pela planície e minas de carvão mineral a céu aberto, andarão os burros por aqui? Perde-se a vista neste mar de verde rasteiro e castanho, aos tombos nos jipes. Olha-se, pára-se, Beja Pereira esquadrinha a paisagem com os binóculos. Nada, apenas os vestígios que deixaram, pegadas e cocós, em redor de um charco. O silêncio é absoluto, entrecortado por uma ave distante e um telemóvel que toca. “Oláaa. Ah pois éee, hoje é o Dia da Criança”, ouve-se Beja Pereira. Quatro horas atrás dos burros, a tarde toda, mas nem vê-los. Para a manhã seguinte fica a derradeira tentativa, mais perto do local onde se viram os primeiros burros. Os contactos locais de Ablimit Abdukadir dizem que andava por ali uma manada. Será que é desta? Pelo fresco da manhã, ainda da estrada de alcatrão, vislumbra-se um burro solitário, um macho, ao fim de mais de 4500 quilómetros por Xinjiang (região que representa um sexto do território da China) e de tantas massas chinesas picantes às refeições, pequeno-almoço incluído. Um prenúncio de sucesso? “Pode estar doente, ser velho ou recém-chegado à manada”, explica Beja Pereira. Menos de meia hora de balanços pelo terreno irregular e os jipes param perto de um montículo de terra, de onde a paisagem repetitiva é perscrutada. Beja Pereira monta o tripé com a mira telescópica, Nuno Monteiro saca dos binóculos. “Estou vendo!”, diz Beja Pereira. “Um, dois, três, quatro. . . vejo cinco. ” Põe-se a caminho, em passo apressado. Os pés enfiam-se na terra. Os outros ficam no monte para lhe irem apontando a direcção dos burros, a dois quilómetros de distância, que se confundem com o terreno. “É realmente fresco”, diz dos excrementos que encontra, enquanto calça as luvas. Os burros, e afinal são muitos mais, entram por fim no campo de visão. “Estão a comer. ” Curvado, vai até outro montículo com arbustos, uns metros à frente, de onde observa e filma. “São 37. ” O resto da equipa aproxima-se a pé. “Shhhh. ” Agachados à vez, vão atrás de Beja Pereira, de monte em monte de terra. “Não nos podemos mexer agora, estão todos a olhar para cá. ” É realmente um bom dia, resume Chen Shanyuan. “Quantos machos adultos há?”, sussurra Beja Pereira para Ablimit Abdukadir. “Talvez oito. ” Quando os burros se apercebem, a cerca de 200 metros, afastam-se e mantêm sempre uma distância de segurança. Agora que foram vistos, os cientistas saem de trás dos montes de terra. Já podem vasculhar o chão à vontade. “Onde virem moscas. . . ” Segunda parte da expedição: uma história de amizade entre uma marmota e a ave que partilha com ela a toca, a 8 de JulhoO P2 viajou a convite do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do PortoNo Ano Internacional da Biodiversidade, vamos publicar quinzenalmente, e até Novembro, reportagens sobre os trabalhos que investigadores portugueses desenvolvem em Portugal e no estrangeiro na conservação da Natureza. Os conteúdos são da inteira responsabilidade do P2. A série Biodiversidade é patrocinada pelo BES.
REFERÊNCIAS:
Onde vamos em 2019? O novo ano tem o mundo à espera
É um ano de efemérides e muita história – alguma recuperada, outra recordada. Vamos à boleia dela aqui ao lado e ao outro lado do globo, a cidades medievais e futuristas, ao campo e à praia. Pela estrada fora, não importa que estradas sejam. (...)

Onde vamos em 2019? O novo ano tem o mundo à espera
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.136
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: É um ano de efemérides e muita história – alguma recuperada, outra recordada. Vamos à boleia dela aqui ao lado e ao outro lado do globo, a cidades medievais e futuristas, ao campo e à praia. Pela estrada fora, não importa que estradas sejam.
TEXTO: Há muitos países nos Estados Unidos da América e muitas mais razões para os visitar: Norte, Sul, Este, Oeste e todos os meios pelo meio. E em 2019 os EUA vão ficar ainda mais próximos de Portugal, cortesia das novas rotas da TAP. A Nova Iorque (Newark), Boston e Miami vão juntar-se três novos destinos – Washington, Chicago e São Francisco, a capital do país, a maior cidade do grande “centro” e a emblemática cidade da liberdade (e tolerância) social. Costa leste, midwest e costa oeste vão ficar à distância de um voo e, com isso, os EUA vão “encolhendo” para os viajantes portugueses, que terão mais oportunidades para explorar as diversas facetas do país. De Chicago, por exemplo, para além da vibração local e da arquitectura cada vez mais arrojada, pode partir-se na mítica rota 66, a “estrada-mãe” de Steinbeck, pelos meandros da “small town America” até ao sol californiano, às portas de Los Angeles. E se é de “estrada fora” que falamos, desde São Francisco, onde as casas vitorianas estão empoleiradas em ruas impossivelmente inclinadas olhando a famosa baía, é o Big Sur que se abre com as suas deambulações pela costa californiana. Para novamente terminar em Los Angeles, onde em 2019 abrirá “o” grande museu do cinema. De volta à costa leste, Washington D. C. , o coração político da nação, vem juntar-se aos três destinos anteriores da TAP e no ano em que o país reflecte sobre a sua fundação é a ponte perfeita para descobrir a história dos EUA. E a sua “pré-história” enquanto nação, com o primeiro passo dado no vizinho estado da Virgínia, onde em 1607 se fundou a primeira colónia inglesa. E, onde, em 1619, se desenrolaram eventos fulcrais para o que haveria de ser os EUA: a primeira assembleia legislativa no território das colónias, a chegada dos primeiros escravos africanos e do primeiro grande contingente de mulheres, a celebração do primeiro dia de Acção de Graças. 1619 é considerado um ano fulcral para o país e os seus 400 anos vão ser assinalados durante todo o ano na Virgínia, a “mãe de presidentes” (oito oriundos do estado, mais do que qualquer outro), que se estende desde a baía de Chesapeake até às Montanhas dos Apalaches – e quantos mundos cabem aqui?Em Dezembro de 2019 terão passado 20 anos desde o “regresso” de Macau à nação-mãe chinesa e o que terá mudado no território que durante quase 500 anos ficou sob administração portuguesa?Cada vez mais se afasta da matriz identitária portuguesa, vai ganhando terra ao mar, faz parte de recordes (a maior ponte marítima do mundo, que liga a região autónoma a Hong Kong) e cada vez mais se afasta do epíteto de “Las Vegas do Oriente” – não, o jogo não acabou, pelo contrário, já ultrapassou a cidade norte-americana em número de casinos e em receita, é um destino de jogo sem rival. Tudo para conferir sem perder oportunidade de assistir in loco ao despertar da China. Aqui mesmo, do lado do continente, na província de Cantão, desenvolve-se a agora chamada Greater Bay Area, no Delta do Rio das Pérolas (Macau e Hong Kong são duas das 11 cidades) a resposta chinesa a São Francisco e a Tóquio, que tem na capital homónima, Cantão, um dos principais atractivos (e uma paragem obrigatória para quem aprecia a gastronomia chinesa). E para responder a Silicon Valley, a China apresenta, também nesta zona do país, Shenzen, um pólo de vanguarda tecnológica e de design. É a capital criativa do país e apresenta-se acompanhada de uma cada vez mais vibrante vida artística reflectida nas inúmeras galerias (que vêm fazer companhia aos museus que têm aberto nos últimos anos, como a Sociedade do Design, em colaboração com o londrino Victoria & Albert Museum, ou o Museu de Arte Contemporânea), que estão a dar vida a antigos bairros industriais, juntamente com salas de concertos, cafés e restaurantes, assumindo-se como referencial de vivência cosmopolita na nova China. A primeira vista de Matera, sobretudo se for nocturna, pode ser hipnotizante: uma ravina onde se abrem “grutas” resulta quase como uma colmeia. Humana. Ou um jogo de Tetris, com as cavernas e as suas entradas indisciplinadas, a esconder casas, igrejas, até mosteiros. São as chamadas sassi (literalmente: pedras), escavadas em calcário, algumas projectando-se fora da parede rochosa, o que faz com que os telhados sejam também ruas em alguns casos. Na década de 1950, as sassi, que chegaram a ser mil e a albergar 15 mil pessoas, foram interditas, por falta de segurança e condições de vida – por esses dias, a reputação de Matera entre os italianos andava pelas ruas da amargura, sobrando histórias de coabitação entre humanos, galinhas, porcos em espaços sem água canalizada e ventilação. Recentemente, regressou-se a elas – em estilo: casas privadas, ateliers de artistas, hotéis, restaurantes que mantiveram as características originais com o conforto (e segurança) modernos. Os labirintos e becos antes imundos tornaram-se o orgulho da cidade do Sudeste de Itália, onde a ocupação humana se conta em milénios, sete, e onde o passado (os sassi, “pedras”, o conjunto do género mais extenso da Europa) exibido na garganta (Gravina) convive com a cidade mais moderna que se estende no planalto (Murgia, também nome de parque natural próximo) – Património da Humanidade e, em 2019, Capital Europeia da Cultura (CEC). Os temas que a CEC vai aprofundar, como “comunidades e disrupções”, “futuro antigo”, “reflexões e conexões”, vão traduzir-se numa série de eventos culturais e artísticos que incluem museus pop-up, instalações, concertos (nomeadamente pela vienense Vegetable Orchestra, que reúne as duas formas de expressão artística favoritas em Matera, a música e a comida – também haverá workshops, jantares temáticos e pequenos concertos com os participantes das oficinas) e espectáculos multidisciplinares com parceiros tão inesperados quanto o CERN – Quantum Danza incluirá dança, teatro e música electrónica inspirados pela física quântica. Um bom pretexto para descobrir os segredos subterrâneos da região de Basilicata (aeroporto mais perto: Bari). E não só: a catedral, por exemplo, do século XIII, é um repositório artístico de vários estilos, desde pinturas bizantinas até aos frescos do século XVII. Aldeias, vilas e cidades pitorescas, paisagem delicada debruada de castelos românticos, um litoral que parece intocado ou tocado apenas na maneira exacta para compor postais. A Normandia é uma das regiões mais cénicas de França. Vêmo-lo nas pequenas cidades portuárias, como Honfleur, casas esguias coloridas, como narcisos no Sena a fazer-se estuário, ou Cherbourg, com ou sem guarda-chuva sempre romântica; e nas grandes, como Le Havre, que depois da devastação da II Guerra Mundial se reconstruiu em ousadia de concreto. Desfrutamos dela tanto na capital, Rouen, cidade à escala humana e charme iniludível, como nas pequenas aldeias, como Giverny, musa mais constante de Claude Monet, que aqui viveu durante décadas e imortalizou em centenas de obras (a casa, o jardim e o lago, ainda com nenúfares, estão abertos). Vivêmo-la junto ao mar em elegância na famosa (e sempre cinematográfica) Deauville e em discrição natural em Etretat. Percorremo-la no passado, no medieval Monte de Saint Michel, finalmente “devolvido” à água (e à irreprimível aura de mistério). Há, contudo, história mais recente a repousar na Normandia e história que mudou o curso da história mundial recente. O Dia D, o dia do desembarque da Normandia, e a Batalha da Normandia, que se seguiu, foram o volte-face final da II Guerra Mundial: em 2019 celebra-se o 75. º aniversário desse momento em que os aliados “ganharam” a guerra e todo o mundo vai convergir para as praias da Normandia onde o desembarque decorreu (e que são candidatas a Património Mundial da UNESCO) e que passaram a representar os ideais de paz, liberdade e, sobretudo, de reconciliação. É nesse espírito que se assinalará o dia 6 de Junho, a data exacta do desembarque, e todo o Verão se viverá sob esses auspícios na Normandia, uma espécie de museu a céu aberto da II Guerra Mundial. É a segunda maior cidade da Sérvia, mas Novi Sad permanece praticamente escondida, na sombra de Belgrado, como um segredo bem guardado. Parece, contudo, estar a chegar o tempo de mudança e é Novi Sad quem o reclama: em 2019 será a Capital Europeia da Juventude, uma espécie de preparação para 2021, quando será Capital Europeia da Cultura. Uma e outra combinam bem com a imagem de Novi Sad como “casa” de um dos principais festivais de música da Europa, o Exit, que em 2017 atraiu 200 mil visitantes durante os seus quatro dias de duração, passados entre o rock mais ou menos alternativo, a electrónica, o metal e punk e a “música do mundo”. Quatro estilos, quatro palcos espalhados pela cidade, o principal na fortaleza Petrovaradin, que é o cartão-de-visita da cidade – tem a alcunha de “a Gibraltar do Danúbio”, estando altaneira sobre o grande rio que aqui em Novi Sad se faz bailarino, desenhando um “s”. E também se faz porto de lazer para os cruzeiros que atravessam a Europa (e a sua história) embalada pelas águas do rio que raramente é azul. É na órbita da fortaleza, que também se situa o bairro histórico de Stari Grad (“cidade velha”), com concentração de museus, monumentos, cafés, restaurantes e lojas num perímetro desenhado por igrejas (e uma sinagoga) – é aqui que melhor flui a continuidade histórica desta cidade também conhecida como a “Atenas sérvia”. Na “cidade velha” houve o primeiro assentamento de eslavos, Baksa (século XIII), que passou para o domínio húngaro, depois otomano, depois austríaco até à sua incorporação no recém-criado Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, em 1918 (depois Jugoslávia): ao longo de todos estes séculos, a população eslava foi sempre a maioria, mas várias nacionalidades definiram a cidade, ou não estivesse Novi Sad numa encruzilhada com a Hungria, Croácia e Roménia. A atravessar uma onda de revitalização com a renovação de várias fachadas e edifícios históricos (quase todos do século XIX em ponte com a arquitectura realista soviética do século XX, sobretudo residencial), é uma antiga zona industrial que concentra a nova onda de energia criativa. É conhecido por “bairro chinês” mas não se espere a típica chinatown: as antigas fábricas estão a ser tomadas por teatros, galerias de arte, salas de concertos e clubes e a afirmar-se como um destino “alternativo”. A capital do Panamá, a Cidade do Panamá, está de parabéns em 2019 e a promessa de festa é irrecusável. São 500 anos que se celebram na cidade que até é mais conhecida pelos arranha-céus e pelas compras que proporciona (é conhecido na vizinhança pelos preços baixos) do que pela sua vetustez. E isto no país cujo nome é mais associado à monumental obra de engenharia moderna que é o canal homónimo (recentemente renovado), ou até ao chapéu que lhe roubou o nome (embora seja de origem equatoriana), do que propriamente pela sua história e personalidade. E o Panamá, verdadeira encruzilhada do continente americano, ponte entre o Atlântico e o Pacífico, onde a América Central dá lugar à América do Sul, é muito mais do que um istmo e canal – não deve muito ao tamanho, mas compensa a escassez territorial com uma impressionante variedade natural e cultural. Do mar das Caraíbas ao oceano Pacífico, as praias de areia branca proporcionam snorkeling entre corais ou ondas dignas de surfar, avistamento de baleias e natação sincronizada – com tartarugas; as florestas tropicais são ponto de encontro com povos indígenas, palco de desportos de aventura com mais ou menos adrenalina e santuários de biodiversidade, os seus cumes de brumas intensas oferecem paisagens de mundos perdidos – diríamos que é mais ou menos a Costa Rica, sem a projecção internacional. E, depois, a capital aniversariante, hesitante entre uma espécie de Dubai, ou Miami, como tantos sublinham, e o tal passado que foi recentemente recuperado. Agora, o casco viejo apresenta-se de cara lavada (e colorida), o mar ficou mais próximo com a Cinta Costera e o Mercado de Mariscos continua uma tentação. Enhorabuena!, Panamá!Há cidades que parecem poder arrumar-se perfeitamente na categoria de capital cultural e Plovdiv é uma delas. A segunda maior cidade da Bulgária é um daqueles locais de “reunião” de várias civilizações e se é pouco conhecida pode ser que o ano como Capital Europeia da Cultura ajude a mudar o cenário. É uma das mais antigas urbes europeias continuamente habitadas – e, coincidência, estende-se por sete colinas: por lá passaram romanos, bizantinos, otomanos. A pegada destes impérios está bem impressa na sua arquitectura, com vestígios romanos a espreitar por toda a cidade e a imporem-se no coliseu, um dos maiores encontrados (apenas em 1972) e aonde voltaram os espectáculos; as casas, ou melhor, mansões, que pintam a cidade velha de vários tons até podem ser do século XIX e do período chamado de “revivalismo nacional”, mas mantêm, por exemplo, as características varandas otomanas. Aliás, caminhar pelas ruas empedradas da cidade velha é baloiçar entre o Oriente e o Ocidente, o que até é apropriado para uma cidade que se situa bem no centro da Bulgária. E longe das multidões da capital Sofia e do litoral, a cidade que em 1999 recebeu o Mês da Cultura vai agora ser anfitriã de 12 meses de eventos culturais (mais de 500), alguns idealizados de raiz, outros, já habituais, a ganharem nova dimensão. Há vários pretextos para viajar até à Polónia em 2019. Efemérides, como os 80 anos da invasão alemã e do início da II Guerra Mundial e eventos, como Capital Europeia da Gastronomia, em Cracóvia, à cabeça, embora tanto a história como a gastronomia sejam sempre prato do dia em qualquer visita à Polónia. O século XX deixou marcas intensas no país e podemos dizer que a invasão nazi é o grande ponto de charneira, não só para o que se passou durante a II Guerra Mundial (os campos de extermínio construídos em território polaco, a Insurreição e a consequente destruição de Varsóvia, os milhões de mortos polacos), como para as décadas posteriores, na órbita da URSS – o Turismo da Polónia está apostado em atrair os amantes da história e o próximo ano é um pretexto incontornável. Talvez a gastronomia não seja o motivo mais evidente de orgulho entre os polacos (muitos surpreendidos com a distinção de Cracóvia) mas talvez isso mude. Afinal, o renascimento de um certo sentido de identidade nacional também tem passado pela recuperação de pratos tradicionais – não é o caso dos pieroggi ou da sopa zurek (dentro do pão ou em prato): serão os mais destacados representantes destes, indispensáveis em qualquer restaurante. O que se pode esperar, pela nossa experiência em Cracóvia, é, então, a tradição polaca com roupagens modernas ou revisitada em fusões mais ou menos surpreendentes, que dão novas imagens aos pratos “da avó”. Tudo isto na “cidade eterna” polaca – pelo número de igrejas (e clero abundante) e pela resistência aos contratempos da história: a cidade velha de Cracóvia é uma máquina do tempo. Da Idade Média até hoje, continua a ser o verdadeiro centro da cidade, a “baixa” com várias “baixas” dentro – os habitantes vivem-na quotidianamente e os turistas fazem como eles. O seu nome apenas já evoca o exotismo das aventuras longínquas do tempo em que as viagens eram o caminho. Samarcanda é paragem mítica da igualmente mítica Rota da Seda, mais do que um percurso comercial, um mapa de encontros de povos e culturas. E se entre a Europa e a Ásia vários trajectos se desenharam, uma coisa foi certa: Samarcanda sempre foi uma encruzilhada entre os continentes e disso a cidade uzbeque tem testemunhos que sobejam. É preciso, porém, não desanimar perante a vista da cidade mais moderna (assinatura da Rússia czarista e da URSS) e persistir até chegar, descascar as camadas. A arquitectura medieval do centro histórico até pode parecer humilde, mas na Praça Registan explodem os azulejos esmaltados (em majólica) adornados de dourados e caligrafia nos edifícios religiosos, sobretudo nas três madrassas imponentes dos séculos XIV e XVI, e de repente o tempo volta para trás e esperamos ver novamente as caravanas carregados de maravilhas dignas da caverna de Ali Babá atravessando altas montanhas e desertos áridos. À falta de tesouros dourados, as lojas de artesanato começam a enxamear a segunda cidade do Uzbequistão, outrora capital de um império vasto, que se estendia por grande parte da Ásia e que faz de Samarcanda, a par com Bucara, dois importantes centros da cultura tajique-persa (Bucara recebe, aliás, anualmente, o Festival de Seda e Especiarias). O antigo oásis continua a ter artesãos da cerâmica, tapeçaria, bordados, cunhagens – mas agora não chegamos de camelo ou a cavalo. E Samarcanda pode já não ser a encruzilhada de culturas de outros tempos, mas continua a ser um belo sonho de viajante. A República de Singapura pode ter pouco mais de meio século, mas em 2019 a cidade-estado vai celebrar o seu bicentenário. Foi em 1819 que Sir Stamford Raffles estabeleceu na ilha (que havia sido saqueada por portugueses uns séculos antes) um entreposto comercial do império britânico e este é o momento que Singapura reconhece como o nascimento da cidade moderna que só se tornaria independente em 1965. No próximo ano, a cidade futurística vai, então, celebrar e reflectir sobre o seu passado – em grande estilo: por exemplo, a história andará pelas ruas em grandes projecções-instalações multimédia para proporcionar experiências imersivas. Não passará incólume o aniversário redondo, pois se algo 2018 nos mostrou sobre Singapura é que, quando quer, festeja como ninguém (veja-se o filme Crazy Rich Asians, que até já tem direito a roteiro na cidade). Algo que já tem andado na mira de viajantes, que começam a deixar de ver a cidade como uma boa plataforma-giratória para viagens pela Ásia – e até começam a ver para além dos arranha-céus extravagantes que oferecem mil e um prazeres (não só compras, mas piscinas infinitas penduradas entre vegetação, por exemplo). É que além do brilho emanado pelo aço e vidro, Singapura retém um certo charme colonial britânico, o bairro chinês é uma vertigem, as compras são uma fé (das marcas mais exclusivas às locais) e o verde imiscui-se por todo o lado – a luxuriante vegetação até está a ganhar terreno, em jardins e parques que vão do futurista Gardens by the Bay ao histórico Parque de Fort Canning, sem esquecer o ícone que são os Jardins Botânicos. À mesa, Singapura é um caleidoscópio de sabores – e preços: os restaurantes estrelas Michelin e centenas de bancas competem entre si (há uma banca em Chinatown que tem estrela – dizem que é a refeição “estrelada” mais barata do mundo) e a noite espraia-se dos bares de cocktails mais elegantes até aos clubes de mais puro rock (com tudo o que é dançável pelo meio). Não é o acontecimento do século, mas quase: acontece, no máximo, cinco vezes em cada cem anos, a Fête des Vignerons. E 2019 é uma dessas cinco vezes, a primeira do terceiro milénio (a última festa aconteceu em 1999). É em Vevey que os suíços celebram a vitivinicultura, as suas tradições e, claro, o vinho da região mais representativa num país que não é especialmente conhecido por ele, Lavaux, famosa pelos vinhos brancos secos produzidos a partir da casta Chasselas. O que começou em 1797 como uma simples festa das vindimas cresceu e é agora uma celebração que dura três semanas (no próximo ano, de 20 de Julho a 11 de Agosto) e já mereceu o reconhecimento da UNESCO como Património Cultural Imaterial da Humanidade. O tiro de partida em 2019 vai ser dado numa cerimónia extravagante, ao estilo da abertura dos Jogos Olímpicos (o coreógrafo dos últimos jogos de Inverno, em Sochi, já foi recrutado). Depois, os espectáculos e apresentações vínicas prosseguirão na praça do mercado nas margens do lago Léman e no centro da cidade – sem esquecer as visitas aos vinhedos, afinal o motivo de tudo: um comboio sai todas as horas para percorrer as vinhas, dispostas em socalcos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. É o clássico dos clássicos das viagens, mas o turismo tem andado de costas voltadas para o Egipto, consequência da situação política instável. Nos anos mais recentes, os viajantes têm regressado e em 2019 espera-se que venham em força. O engodo é quase irrecusável: no início do ano vai abrir o gigantesco (quase 500 mil metros quadrados) Grande Museu Egípcio, com vista privilegiada para as pirâmides (e esfinge) de Gizé. Vai ser o maior museu do mundo dedicado a uma única civilização, que é também uma das que mais alimenta a imaginação mundial. E, no novo museu, serão 50 mil os artefactos em exposição, incluindo o tesouro de Tutankhamon, o rei-menino cujo túmulo foi descoberto intacto no Vale dos Reis: será a primeira vez que as cinco mil peças serão mostradas juntas, compondo a visão de “coisas maravilhosas” que Howard Carter anunciou em 1922. E porquê ficar pelo museu, quando o mais impressionante do Antigo Egipto está à distância de um cruzeiro pelo vale do Nilo? Há-os para várias bolsas e, entre Luxor e Assuão (ou vice-versa), pode entrar no verdadeiro túmulo de Tutankhamon e de outros faraós, conhecer templos impressionantes, desfrutar de pores do sol inigualáveis e da hospitalidade e alegria do país. Mas o Egipto não é apenas faraónico: a capital, o Cairo, é um grande bazar da história – há de tudo, para todos, numa mistura alucinante.
REFERÊNCIAS:
Dança contemporânea, amor e rock and roll
Longe vão os tempos em que Wim Vandekeybus tinha uma aura de radicalidade: Speak Low if You Speak Love tem tudo para agradar a um público generalizado. (...)

Dança contemporânea, amor e rock and roll
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.333
DATA: 2017-02-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Longe vão os tempos em que Wim Vandekeybus tinha uma aura de radicalidade: Speak Low if You Speak Love tem tudo para agradar a um público generalizado.
TEXTO: Não é uma ópera ou um musical, nem um concerto rock ou uma peça de dança-teatro. Speak Low if You Speak Love é um pouco de tudo isso, e aí reside a sua força mas também parte da sua vulnerabilidade, apesar da conhecida vocação do coreógrafo Wim Vandekeybus (Bélgica, 1963) para a transdisciplinaridade. Em cena, interagem um grupo rock (bateria, guitarras eléctricas e órgão) dirigido ao vivo por Mauro Pawlowsky (da banda dEUS), cúmplice artístico do coreógrafo, a cantora de jazz sul-africana Tutu Puoane e oito virtuosíssimos jovens bailarinos: exímios na técnica clássica e contemporânea, saltam como molas, rodopiam como piões e voam no ar em barrel jumps, com o mesmo à vontade com que dominam o sapateado, disparam um arco, lançam cordas ou canas de pesca, e executam acrobáticas contorções de malabaristas circenses. Ingredientes suficientes para manter olhos e ouvidos atentos durante os 105 minutos da peça, envolta num imponente aparato cénico: sofisticados efeitos de luz, recaindo sobre sedosos véus translúcidos que circundam o palco, jogam com a visibilidade da banda musical; em contraponto, uma luxuriante selva de bambus, um simulacro de natureza. Coreografia: Wim VandekeybusQue tema servem estes epopeicos dispositivos? O amor, seus labirintos, pulsões, ardis e desenganos. Wandekeybus foi buscar o título da obra a um standard jazz, Speak low, eternizado pela inigualável Billie Holiday, depois de Kurt Weil o ter composto para o musical da Broadway One Touch of Venus (1943), inspirado numa discreta fala de uma peça de Shakespeare. Sob um contínuo som cavo, um sussurro indecifrável. Um homem de face coberta por uma malha fina arremessa um laço sobre o público; um casal de escasso figurino negro e rosto igualmente oculto, a lembrar pinturas de Magritte, entrega-se a um dueto de intensos embates. Imagens de fuga e predação, das teias da líbido, da proverbial cegueira amorosa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O mistério inicial deriva, porém, numa sucessão de quadros onde personagens vão reaparecendo, num registo mais travesso e humorístico: as suas relações são insaciáveis e pueris, obsessivas e caprichosas, sedutoras e dissimuladas, volúveis e gananciosas, e raramente harmónicas. Nesta amálgama entrevêem-se figuras da mitologia clássica (Orfeu e Eurídice, Romeu e Julieta, a silhueta de Cupido) ou viking que coexistem com namoricos em desfiles de majoretes ou entre eufóricos bombos em festa popular. São mil e uma pistas, algumas acertam no alvo e muitas ficam pela superfície, sem encontrar nexos que as justifiquem ou tornem legíveis. Wandekeybus parece ter explorado mais os arquétipos (ou lugares-comuns?) da vertigem passional do que a pesquisa introspectiva com os intérpretes; o que falta à espessura dramática foi transferido para o impacto visual e sonoro e para a destreza dos corpos. A certa altura um homem tenta repetidamente vestir os calções a uma mulher, divertida citação da dramática cena do abraço inconclusivo de Café Müller (Pina Bausch, 1978), e ocorre-nos o quanto depende da profundidade dos matizes emocionais a demonstração de que comédia e tragédia são irmãs. Longe vão os tempos em que a linguagem de Wandekeybus, ícone da “vaga flamenga” da nova dança belga dos anos 80 (com Jan Fabre, Anne Teresa de Keersmaeker ou Alain Platel), se revestia da aura da radicalidade. Speak Low If You Speak Love tem tudo para agradar a um público alargado.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave mulher negro homem cantora
A terra de Vazante não é para velhos
Daniela Thomas traz a Berlim uma tragédia em câmara-lenta dos tempos da escravatura do Brasil, inspirada por histórias da sua família. (...)

A terra de Vazante não é para velhos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.1
DATA: 2017-02-15 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20170215070109/http://publico.pt/1761688
SUMÁRIO: Daniela Thomas traz a Berlim uma tragédia em câmara-lenta dos tempos da escravatura do Brasil, inspirada por histórias da sua família.
TEXTO: No princípio era uma imagem – ou antes, imagens soltas, que Daniela Thomas criou na sua mente a partir das histórias que o pai contava de um antepassado que nunca usava sapatos, e que casara aos 45 anos com uma menina de 12 a quem trazia bonecas das suas viagens. Mas eram também as imagens das gravuras de época, do princípio do século XIX, e foi para dar vida a essas imagens que Thomas, parceira regular de Walter Salles (com quem co-dirigiu Terra Estrangeira, 96, e Linha de Passe, 08), foi buscar o grande director de fotografia peruano Inti Briones, e foi rodar a preto e branco, em exteriores de Minas Gerais, uma história dos tempos da escravatura, uma espécie de amour fou enlouquecido pelo isolamento da selva e pela desgraça. Não sabíamos muito bem o que esperar de Vazante (Panorama), primeira longa “a solo” de Thomas, co-produzida com Portugal através da Ukbar Filmes de Pandora da Cunha Telles e com o português Adriano Carvalho no principal papel masculino – o de António, um “tropeiro” que a morte da mulher ao dar à luz um bebé que também não sobrevive, em 1821 (último ano do Brasil enquanto colónia portuguesa) lança para o desespero. Não sabíamos muito bem o que esperar, mas não esperávamos isto: uma tragédia em câmara lenta, infiltrada pela letargia tropical da selva, um filme que ultrapassa as suas limitações através do transe quase opiáceo em que coloca o espectador. As tais imagens que inspiraram Daniela Thomas, disse a realizadora na conferência de imprensa de Berlim, estão todas no filme – a boneca embrulhada em serapilheira, os pés descalços que não gostam de usar sapatos, o casamento entre um homem feito que a desgraça deixou viúvo e uma menina que ainda nem menstruou, sobrinha mais nova da esposa defunta. E as gravuras também: os escravos africanos cuja língua ninguém consegue compreender e cujo chefe – o griot maliano Toumani Kouyaté – se recusa a quebrar perante o “senhor”, a cozinheira e governanta negra que domina a casa senhorial com mão de ferro, a escrava que serve de amante do patrão e que lhe dá bastardos. São todas recriadas com mestria pela câmara de Inti Briones, capaz de lhes dar ao mesmo tempo um recorte rochoso, telúrico, esmagador e uma tonalidade humana, digna, nobre. O verismo de Vazante, no entanto, não vem só daí; vem também do que Daniela Thomas definiu, na conferência de imprensa, como um “laboratório da vida”. A realizadora, que se formou em História, trabalhou com uma historiadora especializada no período em que tudo se passa, e rodou em locais onde existiram realmente fazendas, recorrendo aos descendentes dos escravos fugitivos como consultores e artesãos responsáveis pela recriação dos cenários e guarda-roupa, como figurantes, como secundários. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Isso ajuda em grande parte a perceber a sensação de hipnose que Vazante cria – de não estarmos apenas a assistir a uma ficção histórica, mas de a estarmos a viver, tal é o sortilégio criado pelo ritmo inflexível da montagem, pela força das imagens, pelo trabalho de som do português Vasco Pimentel. Não há música ao longo das duas horas de Vazante, apenas um constante marulhar de pássaros, galhos, ribeiros, animais, pessoas, vento, chuva, tempo que está sempre presente e se torna opressivo, quase ensurdecedor – e, de repente, percebemos que a loucura está sempre a um passo de vir ao de cima neste ermo perdido nos confins do Brasil, longe de tudo, ao sabor dos elementos e dos instintos e dos desejos. Acima de tudo, há duas coisas em que Daniela Thomas aposta, que criam o contraste onde tudo se joga: os rostos e as paisagens. Os rostos de gente que sobrevive como pode numa terra que não foi feita para eles; as paisagens cuja beleza esconde também um desafio à sua capacidade de sobrevivência, uma terra que, literalmente, não é para quem quer, mas para quem resiste. Essa noção muito precisa do que Daniela Thomas quer fazer e a teimosia com que o leva a cabo, contra tudo e contra todos, é o que ganha Vazante e compensa as suas relativas fraquezas – como um argumento talvez demasiado frágil para sustentar a aposta formal, como personagens cujo mistério parece por vezes ser uma solução para compensar a sua dimensão arquetípica. Não é forçosamente um problema – as tragédias baseiam-se nos arquétipos – mas sente-se que Thomas não teve mão por inteiro para compensar um ou outro convencionalismo de narrativa, ou o escorregão pontual num certo lirismo Malickiano. Chega, e sobra, para abrir com força uma forte presença brasileira em Berlim que vai ter um outro filme de época, Joaquim, a encerrar a competição oficial.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte mulher ajuda homem espécie casamento negra escravatura
O devir-negro do mundo
O cientista político Achille Mbembe propõe reconciliar os múltiplos rostos da Humanidade. (...)

O devir-negro do mundo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.141
DATA: 2015-04-29 | Jornal Público
SUMÁRIO: O cientista político Achille Mbembe propõe reconciliar os múltiplos rostos da Humanidade.
TEXTO: É sobretudo na edição de ensaios que a Antígona tem vindo a mostrar uma atenção profunda e exigente às transformações que certas forças vão impondo ao mundo. A cada ameaça ou tendência nefasta, parece responder com um livro: “Aqui está. Podem ler. ” Crítica da Razão Negra, de Achille Mbembe, é uma obra que exemplifica muito bem esse “cuidado” pedagógico, não paternalista, desta editora refractária. As crianças, as mulheres e os homens que desaparecem no Mediterrâneo, o recrudescimento do racismo na Europa e nos EUA, a mercantilização da vida que a marcha do capitalismo vai instalando são “realidades” que abrem, continuamente, as suas páginas. Como o autor sublinha, Crítica da Razão Negra não é uma história das ideias, nem um exercício de sociologia histórica. Consiste, antes, numa “sequência” de ensaios curtos que vão construindo uma crítica política da raça, do racismo e do colonialismo. Formado em História e Ciência Política, Mbembe problematiza o pensamento de vários autores europeus para lembrar a indiferença geral do Iluminismo ao tráfico atlântico de escravos ou a dos governos e intelectuais europeus à violência do potentado colonial. A sua denúncia, embora subtil e elegante, nunca deixa de ser assertiva. A colonização e o euro-centrismo são objectos de uma crítica histórica contundente, e sempre actualizada, tal como o próprio conceito de raça, numa passagem notável: “A força da raça deriva precisamente do facto de, na consciência racista, a aparência ser a verdadeira realidade das coisas. Por outras palavras, a aparência não é contrário da ‘realidade’. ”Para a fabricação deste conceito e para o seu aviltamento, argumenta Achille Mbembe, a Europa mobilizou duas noções de “África” e “Negro” que coisificaram homens e comunidades, colocando o Negro numa zona de indiferenciação entre homem e animal. É nessa herança terrível que o autor implica o leitor, trazendo-o para o centro de um debate com várias teorizações da emancipação negra e da crítica da raça. No capítulo final, e contra o presente, Mbembe percorre os contributos de Marcus Garvey, Aimé Césaire, Frantz Fanon e Nelson Mandela. O do autor de Os Condenados da Terra surge como o mais delicado e glosado. Não será despropositado dizer que a posição de Achile Mbembe sobre o uso da violência na teoria de Fanon surge ambígua. Sem a subscrever de modo absoluto, Mbembe afirma que no mundo actual, com os seus muros, enclaves e fronteiras, “o grande apelo de Fanon para o declosão do mundo não pode deixar de ter eco”. Eis uma intuição que apetece contrariar com uma frase de Hannah Arendt (também ela citada ao longo do livro): “A prática da violência, como toda a acção, transforma o mundo, mas a transformação que mais provavelmente obterá terá por resultado um mundo mais violento. ”Felizmente, em Crítica de Razão Negra não faltam outros caminhos. Logo a seguir, no texto sobre Mandela, Mbembe evoca as coisas fundamentais que aquele encontrou na prisão, “aquilo que jaz no silêncio e nos pormenores”: “Tudo lhe falará de novo: a formiga que corre não se sabe para onde, a semente escondida que morre, depois ergue-se, criando a ilusão de um jardim no meio do betão, do cinzento dos miradouros e das pesadas portas metálicas que se fecham com grande estrondo na sua prisão. ” Mas “como passar do estatuto do ‘sem parte’ ao de ter ‘direitos’? Como participar na estrutura deste mundo e na sua divisão por todos”? A estas perguntas, feitas pelo autor, o ensinamento de Mandela — estar preso, sem ser escravo de ninguém — oferece uma resposta que pode “reconciliar os múltiplos rostos da Humanidade”, em solidariedade com a própria Humanidade. A reconciliação não será fácil. Na introdução, escrita em 2013, Mbembe lembra que a violência do capitalismo — de que o tráfico atlântico de escravo e a colonização dos séculos XIX e XX foram momentos históricos — está afligir a própria Europa, estendendo os seus processos de abstracção e classificação a outros homens. Assim, a palavra “negro” deixará de significar apenas o homem de tez escura, mas todos os outros. Toda a Humanidade subalterna correrá o risco de se tornar negra. A este processo, Mmebme chama um devir-negro do mundo. E a sua ameaça é tanto mais aterradora quanto outras desigualdades vão sendo engendradas.
REFERÊNCIAS:
Quando os loucos sonham uma vila para a literatura
Há cinco anos, a conversão de uma igreja em livraria provocou a transformação de Óbidos numa vila literária. Em antecipação do Dia Mundial do Livro, que se celebra segunda-feira, regressamos à vila muralhada, onde o projecto se prepara para ganhar novos capítulos. (...)

Quando os loucos sonham uma vila para a literatura
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.6
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há cinco anos, a conversão de uma igreja em livraria provocou a transformação de Óbidos numa vila literária. Em antecipação do Dia Mundial do Livro, que se celebra segunda-feira, regressamos à vila muralhada, onde o projecto se prepara para ganhar novos capítulos.
TEXTO: No coro de uma igreja agora devota ao culto da literatura, saem poemas rendilhados das mãos de Natália Santos. Curvada sobre o rebolo, de manta nos joelhos, Natália dança os bilros num S tranquilo, letra que em breve se juntará a outros abecedários e bijuterias, num mostruário que tem tanto de renda quanto de poesia. Afinal, ela é “a poeta rendeira”, diz com orgulho. Ainda menina, a mãe ensinou-lhe a técnica dos bilros na pequena aldeia de Peniche onde nasceu. Mas há muito que o mundo de Natália, de 71 anos, é feito de versos populares. Escreve quase todos os dias, compulsivamente há cerca de 30 anos. “Às vezes até adormeço com o papel na mão”, sorri docemente no alto da sua varanda sobre uma nave de livros. “Este cantinho parece feito para mim. ”Há cerca de um ano e meio que Natália ocupa os dias no coro da antiga igreja de Santiago, transformada em livraria há precisamente cinco anos. Dali vê turistas e bibliófilos deambularem pelo ondulado das estantes, ainda perplexos com o passe mágico de subir a escadaria íngreme de uma igreja e entrar numa livraria. Ao fundo, os retábulos coloridos do altar-mor parecem abençoar o novo culto. Igreja de uso da família real quando esta ficava em Óbidos, Santiago acolhe agora a “rainha da poesia”. “De muitos países cá passam/ Pessoas que me abraçam/ Neste coro abençoado. / Sou muito admirada/ Quando estou a rendilhar/ Até param para ver/ Ao verem a renda crescer/ Com os bilros a saltitar”, declama Natália do púlpito, entre as muitas quadras acumuladas sobre a mesa e os expositores. “Sempre que compram alguma coisa faço um poema-relâmpago sobre a peça que levam”, revela. Foi aqui, na igreja-livraria incrustada na muralha, que se escreveu a primeira página de um sonho singular e inesperado: transformar uma vila histórica no coração da literatura em Portugal. “Costumo dizer que Óbidos Vila Literária nasce do impulso de um louco, secundado por outros loucos”, conta Celeste Afonso, na altura vereadora da cultura em Óbidos e hoje directora-executiva do projecto municipal Óbidos Cidade Criativa da Literatura. O louco de quem se fala é José Pinho. O fundador e administrador da Ler Devagar que, ao aceitar o desafio de gerir a nova livraria, alargou-o a uma ambição muito maior: não ter apenas um espaço mas onze, assim como vários festivais e uma agenda literária constante ao longo do ano. “Ele percebeu que uma livraria não faria ninguém deslocar-se a Óbidos. Tínhamos de construir uma cidade do livro”, resume Celeste. Uma visão que tem tanto de utópico quanto de loucura, se lembrarmos que “Óbidos não tinha qualquer tradição ligada à literatura”. Sobre ela não se escreveram grandes obras nem foi berço de escritores incontornáveis da praça portuguesa, salvo Armando da Silva Carvalho, poeta nascido na freguesia de Olho Marinho, e breves referências pela pena de José Saramago, Camilo Pessanha ou Ruy Belo. Mas Óbidos queria “reinventar-se”. Queria deixar de ser a vila postal do turismo de massas, “que passa mas não fica”. E a literatura é espaço de descoberta demorada, dos livros para a poesia das ruas e das gentes. Para a concretização do sonho, primeiro converteram-se em livrarias especializadas vários recantos de espaços municipais já abertos ao público, entre antigas lojas de museus, galerias e mercados. Depois, criaram o primeiro grande festival literário em Portugal, o Folio, e agora um segundo evento dedicado à literatura e à viagem (ver caixa). Em 2015, a classificação de Óbidos como Cidade Criativa da UNESCO, na área da literatura, trouxe “legitimação” ao projecto. “De repente, Óbidos é efectivamente uma vila literária, tanto que a UNESCO a reconhece como tal”, admite Celeste Afonso. “Somos a cidade mais pequena da rede, mas a que mais apresenta projectos e efectiva ideias”, diz com orgulho. O projecto prepara-se agora para crescer e fazer do próprio conceito um acervo mais rico e diversificado. Com várias novidades a caminho. Começamos o passeio literário guiado por Celeste Afonso no Espaço Ó, entre o parque de autocarros e a Porta da Vila. O edifício municipal acolhe iniciativas de “activação e desenvolvimento comunitário”, entre uma sala para eventos, ateliers de artesãos e projectos gastronómicos. Miguel Sousa acaba de entrar para a Casa do Forno com a sua Taberna Pasto da Vila, inspirada numa decoração oitocentista e nas velhas receitas das avós. Ali vende os queijos e os enchidos que produz numa quinta na Usseira, mais o pão e os bolos acabados de sair do forno a lenha e diferentes pratos caseiros servidos em loiça de barro. Durante dois anos, o projecto familiar vai ganhar aqui forma para depois escalar para outro lugar na vila. Em frente, encontramos a Livraria da Adega encerrada, por isso não conseguimos espreitar o interior. É um dos nove espaços geridos pela Ler Devagar, mas, ao contrário das duas livrarias principais, de momento abre apenas de quinta a domingo. Em breve poderá sofrer remodelações. É que o armazém ao lado deverá receber até ao final do mês uma tipografia tradicional e ter “todo um projecto ligado à impressão”, feita artesanalmente com caracteres móveis, juntamente com uma colecção de livros raros e antigos. “É muito importante para diversificar [o conceito]. A partir daqui, queremos que haja todo um cluster ligado ao livro e à literatura”, afirma Celeste Afonso. O projecto pensado para o espaço já existe em Lisboa e deverá mudar-se integralmente para Óbidos, mas não podemos levantar mais o véu. Antes de continuarmos o passeio, espreitamos o jardim das traseiras do Espaço Ó — “se há sítio onde gosto de ficar a ler um livro é aqui, debaixo daquela nogueira”, conta Celeste — e seguimos em direcção à via principal da vila muralhada, compacta de turistas, bancas e souvenirs. Mesmo à entrada da Rua Direita, Celeste aponta para uma instalação artística inspirada nas Cidades Invisíveis, de Italo Calvino — a primeira arte urbana autorizada nas paredes da vila. Soldadinhos, apitos e patos de borracha espalham-se por espaços de luz e sombra para formar “cidades impossíveis”. Mais à frente, entramos na Livraria do Mercado, onde livros usados, publicações de pequenas editoras portuguesas e fundos de colecções arrumam-se em caixas de fruta até ao tecto, juntamente com as hortaliças e os outros produtos agrícolas do mercado biológico, que já se organizava anteriormente neste espaço. “As caixas eram da família do actual presidente da câmara”, revela Celeste Afonso. Depois da Livraria Santiago, que tinha sido feita com o apoio de fundos comunitários, todos os outros espaços foram erguidos com “orçamentos reduzidíssimos”, muita entreajuda e criatividade. O balcão à nossa frente, por exemplo, é “feito com andaimes das obras”, indica Tânia Norte, uma das responsáveis pela Livraria do Mercado. Aqui o conceito passa pela sustentabilidade e respeito pela natureza, mas também há o objectivo de “desmistificar a ideia do livro usado”, de mostrar que “o interior vale o mesmo”. Há pouco tempo, uma turista francesa encontrou aqui um livro infantil que tinha lido em criança numa biblioteca e que nunca lhe tinha saído da memória. “É muito gratificante, temos obras que já não são fáceis de encontrar”, conta Tânia. Actualmente, a Livraria do Mercado é provavelmente a mais fotografada e reconhecida pelo grande público. Celeste garante que rivaliza internacionalmente com a imagem da Porta da Vila. “Muitos turistas entravam desprevenidos e depois ficavam deslumbrados. Hoje em dia, alguns já vêm de propósito”, compara Tânia. Para Celeste, aos poucos começa a sentir-se a presença de um outro tipo de turista na vila, que “vem para descobrir, deixar-se estar e se perder”. “Isso é uma coisa nova em Óbidos. ”À data do passeio, a antiga Galeria do Pelourinho ainda se encontrava despida, pronta a acolher mais uma novidade. É aqui que vai instalar-se a nova Casa José Saramago, com inauguração marcada para segunda-feira, data em que se celebra o Dia Mundial do Livro. O espaço está a ser idealizado por Sérgio Letria, curador e membro da direcção da Fundação Saramago. Por isso, Celeste ainda não conhecia todos os pormenores. O objectivo é que as diferentes áreas, que se estendem por dois pisos, sejam “multifuncionais” e que o legado do escritor português esteja presente “sem se impor completamente”, revela. Com a nova Casa José Saramago, o projecto Óbidos Cidade Criativa da Literatura ganha igualmente uma sede aberta ao público. Um rosto visível e inequívoco. Além dos escritórios, o edifício vai integrar uma galeria com exposições temporárias, um espaço auditório (onde “pode haver conferências, palestras, lançamento de livros ou mesmo pequenos concertos”), um espaço de biblioteca e leitura, com as obras traduzidas em todas as línguas do Prémio Nobel português (atribuído há precisamente 20 anos), uma loja, uma cafetaria com esplanada e um pequeno jardim, e um espaço informativo dedicado às cidades criativas da UNESCO e às casas-museu do país. “O nosso objectivo é que a partir de Óbidos se possa encontrar informação sobre todas as outras casas-museu e fundações — que temos tantas e tão interessantes — e criar novas dinâmicas e projectos comuns”, adianta Celeste. A ideia de criar uma Casa José Saramago em Óbidos vem germinando desde o início. Quando poucos acreditavam que a loucura teria sucesso, “a Pilar [del Río] e a fundação entenderam, desde o primeiro momento, o que estávamos a dizer”, recorda a responsável. Entraram para o grupo a que Celeste chama “os amigos de Óbidos”, os “cúmplices de um sonho”. Desde o primeiro Folio que Saramago esteve presente na programação. E foi no último festival, no início de Outubro, que a ideia começou a ganhar corpo, membros, cabeça. “Estava a decorrer uma conversa na igreja da Misericórdia e eu e a Pilar saímos, sentámo-nos ali numas escadas e começámos a discutir a Casa José Saramago”, conta. “Um fotógrafo passou e registou o momento. Estamos completamente a construir o futuro ali numa escadinha”, sorri. Celeste chama-lhe a “rua dos artistas”, ainda que as fachadas da Coronel Pacheco não transpareçam a razão da designação ao primeiro encontro. É preciso saber-se ao que se vai, pelo menos por enquanto. Num recanto da rua há uma joalharia a nascer. Daqui a um mês já deverá ter uma vidraça aberta aos turistas, com uma porta de acesso para quem quiser entrar e conhecer as histórias, o trabalho e as técnicas usadas por Rodolfo e Márcia nas pequenas peças de adorno, “algumas ligadas à tradição de Óbidos, outras trabalhos de autor”. Um pouco mais à frente, é preciso subir uma viela para encontrar a Luthier, atelier de instrumentos musicais de Luís Eusébio, hoje de porta fisicamente encerrada por causa da chuva. Desde que se mudou das Caldas da Rainha para aqui, já construiu 13 instrumentos, de violas a guitarras portuguesas. “O Orlando Trindade [também construtor de instrumentos de cordas] sabia que eu era modelista de cerâmica e músico e em 2009 lançou-me o desafio de construir um instrumento”, recorda Luís Eusébio. “Construi um bandolim e ele ampliou o desafio: ‘Agora faz um violino, que é mais complicado’”, ri-se. Entretanto fez uma guitarra para a filha, outra para o Japão, segue em breve mais uma para Angola. E o ceramista transformou-se em construtor de instrumentos. É sobre o atelier de Rodolfo e Márcia que fica a Residência Josefa de Óbidos, a primeira residência literária da vila. A escritora Begoña Callejón chegou há uma semana e meia e durante um mês é aqui que vai morar e trabalhar. “Vim com a ideia de escrever um poemário, que está quase terminado, e iniciei uma novela curta”, revela. As ruas empedradas da vila recordam-lhe uma zona de Granada, onde vive. “E gostei muito das casinhas pequenas, brancas. É muito acolhedor. ” O dia-a-dia da escritora espanhola ganhou entretanto um novo ritual. “Gosto muito de caminhar porque me ajuda a escrever. Então levanto-me muito cedo de manhã, tomo o pequeno-almoço, vou passear, sempre por uma rua ou sítio diferente, e depois fico o resto do dia a escrever”, enumera. “Como não temos propriamente uma herança literária em Óbidos, temos de criá-la. E as residências vêm muito nesse sentido”, admite Celeste Afonso. Apesar de os escritores não chegarem com qualquer obrigação de escrever sobre Óbidos, Celeste acredita que se a vila é “o lugar onde estão a criar, ela acaba por estar na obra”. Além da Josefa de Óbidos, destinada à literatura, há duas residências artísticas a serem concluídas na mesma rua. E vão nascer mais duas no início do próximo ano. A única actualmente em funcionamento, diz Celeste, “nunca está vazia”. São cada vez mais os escritores, realizadores, pintores e escultores a pedir para ficar na vila durante algum tempo a trabalhar. “Estava nos planos haver residências literárias, mas Óbidos enquanto laboratório de criação surge com o que foi sendo a demanda do mundo cultural. ”A 11 de Janeiro do próximo ano deverá nascer a Casa Ruy Belo e, a 28 de Março, a Casa Armando da Silva Carvalho abre portas em Olho Marinho. A família do poeta de Rio Maior está a inventariar todo o espólio, que recheará a nova residência literária. “Vai ter a biblioteca e os bens pessoais do dia-a-dia de Ruy Belo”, revela a responsável. No entanto, os dois edifícios não serão casas-museu. “Têm de ser vividas e vivíveis enquanto residências artísticas”. Vão receber novos escritores, que no ambiente do quotidiano dos autores que dão nome às casas, vão criar novas obras. E quando não estiverem ocupadas, vai ser possível visitar cada divisão dos edifícios. Já a biblioteca permanecerá aberta ao público, para consulta dos livros, desde que combinada previamente a visita. Num edifício colado à Porta da Vila, do lado de fora da muralha, nasceu em 2016 a Silvercoast Volunteers, uma associação de apoio social criada por um grupo de estrangeiros a viver na região. “O objectivo é encorajar a integração na comunidade portuguesa. Como têm sido tão acolhedores, queríamos dar algo em troca”, contam Bernadette e Christopher West, casal britânico a viver na freguesia da Usseira. Além de actividades pontuais em lares ou de apoio na reabilitação dos edifícios históricos — “este Verão vamos andar de pincel na mão a tentar caiar as casas”, riem-se —, o grupo tem dois espaços habitualmente abertos ao público (dependendo da disponibilidade dos associados, todos voluntários). No rés-do-chão do edifício, esconde-se uma pequena loja de artesanato composta por duas salas, uma com peças produzidas por designers locais, outra com criações feitas nos lares da região. No primeiro andar, fica a biblioteca, com prateleiras feitas em tijolo e traves de madeira. “Temos livros e DVD predominantemente em inglês, mas também em francês, sueco, holandês”, enumeram. “Muitas pessoas mudaram-se para cá e trazem muitos livros que depois acabam por doar-nos. ” Em pouco tempo, acumularam várias obras em duplicado e o espaço começa a ser pequeno para tanto livro. Alguns seguem para as escolas do concelho, outros vão entrar num próximo projecto. “Estamos a pensar invadir a vila com livros em várias línguas, não para serem comprados mas para que qualquer pessoa possa levar ou ficar a ler”, desvenda Celeste. Uma espécie de babel literária perdida pelo traçado labiríntico de Óbidos. Por vezes, a literatura surpreende-nos nos lugares mais inusitados. Numa igreja, na banca de legumes junto à paragem de autocarros ou numa antiga venda centenária ali perto. Na fachada, lê-se “a loja do Américo” rabiscado a negro. Lá dentro, os velhos armários enchem-se de loiças e bibelots de cerâmica em exposição. O balcão cobre-se de revistas e jornais, a maioria da terra. O que à primeira vista pode não passar de uma velha papelaria de bairro revela-se muito mais à medida que Luís Cajão nos mostra os cantos à casa. A surpresa tem efeitomatrioska. Abrimos a primeira porta e descobre-se uma taberna à antiga, preservada como museu. Mais uma porta e surge uma livraria erótica. Outra divisão e chega-se à sala de estar e adega com centenas de garrafas e uma mesa comprida. “Aqui não há patines”, resume o anfitrião. O objectivo é preservar a “identidade inicial” da loja histórica, na família desde meados do século XIX. Há muito que se tornou um “espaço dos amigos dos amigos”. Das mulheres que vinham comprar de tudo e ficavam de conversa ao balcão, aos homens que se juntavam para um copo na taberna. Os tempos são outros, mas o espírito de tertúlia manteve-se, agora na área mais privada da casa, onde muitas vezes assomam artistas e figuras de proa da região. Durante o Folio, no entanto, todas as divisões estão abertas ao público 24 horas por dia. E tudo começou logo na primeira edição. Em 2015, estava o festival a arrancar quando Mário Zambujal entrou na loja pela primeira vez. “Fomos até lá abaixo e ele diz: ‘Este é o meu sítio. Posso ficar aqui a dormir? E trazer os meus amigos?’”, recorda Luís Cajão. É desse episódio que nasce O Sítio dos Bons Malandros, inspirado na obra do escritor, com uma livraria erótica que continua a “brincadeira do bom malandro”. “Quisemos fazer uma livraria efectivamente erótica. Não queríamos que fosse vulgar, até porque pela diversidade de livrarias na vila tem lógica cada uma ter a sua especificidade. ”No bar Arco da Cadeia, escondido no centro da vila, não há livrarias nem bibliotecas, mas as tertúlias de poesia decorrem todos os meses para “dar voz às vozes” de Óbidos. Na verdade, Eurico Santos quer homenagear a vila onde nasceu, trazendo para o bar de inspiração medieval tudo aquilo que ajude a contar as histórias e a essência da vida entre as muralhas. “Brincava muitas vezes aqui na rua com amigos e recordo-me das pessoas mais antigas contarem histórias da prisão, umas imaginárias, outras talvez reais, que me ficaram na memória para sempre”, recorda. Dos tempos de miúdo manteve-se também a imagem das velhas tabernas. “Eram espaços escuros de terra batida, com as pipas de vinho e aquele cheiro característico, mas onde muitas vezes via pessoas a cantar, a declamar. Havia a partilha de conhecimento. ”É essa partilha, espontânea e descontraída, que o actor Pedro Giestas tenta trazer para o Cubo dos Poetas Nossos, projecto que começou por correr todo o concelho e agora assume as tertúlias mensais da “Anatomia da Identidade”, no Arco da Cadeia. De entre os participantes, Eurico destaca Abílio Silva, poeta local, hoje com 90 anos. “Além de ter um conhecimento muito vasto e de consumir muitos livros, ele passou algum tempo em Angola, então tem feito uma partilha connosco de autores africanos que não conhecíamos e também dos seus escritos”, descreve o empresário. “Traz sátiras muito engraçadas, algumas escritas há 50 anos mas ainda muito actuais, que acabam por nos deixar a pensar. ”Para Eurico Santos, no entanto, a verdadeira poesia de Óbidos está lá fora, no coração das vielas. “Até tem mais encanto ao pôr do sol e à noite, quando fica desprovida de pessoas e quase se consegue sonhar e entrar na época medieval, só com os barulhos, as luzes, os formatos das casas. ” Antes de partimos para descobrir o encanto do entardecer, Eurico deixa-nos uma última dica: o miradouro tem “uma vista lindíssima” sobre Óbidos. Fica a meio da vila, no topo da encosta, junto a uma das saídas da muralha. “Se passar por essa porta tem uma vista soberba sobre a várzea da rainha, que se estende até à lagoa. ” Imagine onde escolhemos assistir ao desmaiar do dia entre o canto dos pássaros. Se andarmos às arrecuas na linha do tempo, quase podemos dizer que foi aqui que indirectamente tudo começou. Numa antiga escola primária transformada em livraria infantil há uma década, localizada no lugar de Casais Brancos, a uma subida íngreme de distância da vila. É que falta uma personagem essencial a esta história: Mafalda Milhões, a livreira ilustradora d’O Bichinho de Conto. Foi ela que sugeriu a José Pinho visitar a Livraria Santiago, quando ela ainda não era mais do que uma prateleira solitária no interior de uma igreja. Mafalda vinha de Bolonha, onde tinha estado na Feira Internacional do Livro Ilustrado, José de uma viagem a Zagreb. “Já nos conhecíamos de outras andanças e encontrámo-nos no avião. Viemos o voo todo a falar e eu sempre a insistir para ele ir a Óbidos”, recorda Mafalda. “Tenho a ideia de que não foi fácil convencê-lo, mas também não deve ter sido muito difícil porque passado uma semana ou duas ele estava aqui. ” Quando o assunto é livros, quem os ama vai. O desfecho da história já o conhecemos. A livraria e editora O Bichinho de Conto nasceu na Fábrica da Pólvora, em Barcarena, há 15 anos. “Fomos com uma proposta artística, em que o livreiro era um criador, um sedutor para os outros objectos de criação”, conta Mafalda. Era a primeira livraria especializada em literatura infantil e álbum ilustrado do país. Mas a vontade de dar uma melhor qualidade de vida à família provocou a mudança de localização. Decidiram que a nova casa dos livros tinha de ser “num sítio onde se tivesse brincado muito, tivesse um castelo, de onde se visse o mar e tivesse uma árvore com uma copa do tamanho da livraria”. Depois de visitarem muitas vilas com castelos, Mafalda e a família chegaram a Óbidos, mais tarde à escola primária de Casais Brancos. “Não era o que vínhamos à procura, mas para mim faz todo o sentido, porque fui criada numa escola deste género em Trás-os-Montes. A minha mãe e as minhas tias-avós eram todas professoras. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O Bichinho de Conto, que se assume como “uma livraria urbana em espaço rural”, faz desde sempre parte da rede de livrarias da Óbidos Vila Literária e Mafalda participa activamente no projecto. É uma das curadoras do Folio. “O que a gente quer é que isto não seja uma coisa que acontece só uma vez, mas que este entusiasmo, este respiro que se vive todos os dias neste território, seja vivido por todas as pessoas que entram na vila ao longo do ano”, comenta Mafalda. Tal como defende Celeste, falta agora envolver mais a comunidade local. E ter uma agenda cultural permanente. “Se Óbidos se converte num projecto nacional, com um interesse estruturado, em que as pessoas sabem que se quiserem encontrar um livro ele está aqui, então acho que vale a pena continuarmos esta maluqueira. ” Para Mafalda, cinco anos são apenas o início para um projecto desta envergadura. E ela está de bem com isso. “Não queremos que a experiência seja rápida, queremos que ela perdure na memória. E isso leva tempo a entranhar na pele. ” Segunda-feira inicia-se mais um capítulo. De outros tantos que estão por vir. Depois do primeiro ensaio com uma edição zero em 2017, o Latitudes prepara-se para arrancar oficialmente no próximo fim-de-semana, com quatro dias dedicados à literatura e aos viajantes. O objectivo é partir do livro para celebrar a viagem num sentido mais amplo, enquanto registo e partilha de novas experiências, encontros e sentires através da escrita, do desenho, da fotografia, da música. E criar mais um festival literário, depois do Folio, que ajude a cimentar junto do grande público o reconhecimento de Óbidos enquanto vila literária, com uma agenda constante ao longo do ano. Apesar de não se dedicar a um tema por edição, este ano o Latitudes “centra-se na circum-navegação”, propondo-se dar o “pontapé de saída” para as comemorações dos 500 anos da rota de Fernão de Magalhães, que se assinalará um pouco por todo o mundo em 2019. Da programação destaca-se, por isso, a conversa “Fernão de Magalhães – Do Atlântico ao Pacífico”, protagonizada por José Manuel Marques e Gérman Guerrero, embaixador do Chile em Portugal, e a apresentação de dois projectos cinematográficos dedicados à temática, que deverão chegar aos cinemas no próximo ano. O programa contempla ainda duas exposições, mesas redondas com viajantes, apresentação de livros, concertos, workshops, oficinas e conferências. Fecha com uma apresentação performativa do livro Silêncio, com João Francisco Vilhena, Mega Ferreira e Pedro Oliveira.
REFERÊNCIAS:
Entidades UNESCO
Negócio de telecomunicações militares na sombra da Bolsa portuguesa
A venda sigilosa a Angola de um sistema de comunicações encriptado foi financiada pelo BES, no que se pode tornar no último acto público conhecido de Ricardo Salgado. E revelado pelo P2 na semana em que o banqueiro é suspeito de corromper José Sócrates, que em Luanda validou o negócio de 113 milhões (...)

Negócio de telecomunicações militares na sombra da Bolsa portuguesa
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.1
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A venda sigilosa a Angola de um sistema de comunicações encriptado foi financiada pelo BES, no que se pode tornar no último acto público conhecido de Ricardo Salgado. E revelado pelo P2 na semana em que o banqueiro é suspeito de corromper José Sócrates, que em Luanda validou o negócio de 113 milhões
TEXTO: Quando em causa estão negócios militares em Estados emergentes, existe grande secretismo e um elevado grau de informalidade — os entendimentos são verbais, os suportes escritos escasseiam. E, se se movimentam muitos milhões, a par da competitividade forjam-se solidariedades e, talvez por isso, raramente se declaram as hostilidades. Já as traições não são toleradas. E, se há uma zanga marginal, ela ganha proporções atómicas. Foi o que aconteceu nesta história, na qual o P2 vai revelar a venda de um sistema encriptado de telecomunicações de dados de voz, de origem portuguesa, aos serviços secretos angolanos (Serviço de Inteligência e Segurança do Estado-SISE). Uma operação pontuada por incidentes que lembram os tempos da Guerra Fria e estimada globalmente em 113 milhões de euros, dos quais 60 milhões já foram pagos— a transacção, financiada pelo ex-Banco Espírito Santo, ainda se encontra em curso. No centro está a sociedade All2it, detida pela Reditus, uma grande tecnológica cotada no PSI20, na qual o Millennium bcp possui 18%, e presidida por Miguel Pais do Amaral, o principal accionista, com 25, 6%. Pais do Amaral, conde de Alferrarede, é também dono da editora Leya e está à frente da gestão não executiva da Media Capital, proprietária da TVI. Esta é uma história da qual não se saem bem as relações europeias e africanas e na qual um erro pode desencadear uma guerra feroz. E que Pais do Amaral resume deste modo: “uma loucura total” e “uma grande infelicidade. ” Pais do Amaral é ainda o homem que um inspector do Estado angolano considera a imagem “do oficial e cavalheiro”, de “educação esmerada”. O inspector em questão é o ex-comando português Ângelo Gonçalves, também ele protagonista nos eventos. A história arranca em 2003, com empresas geridas pelos dirigentes do PSD Ângelo Correia e Pedro Passos Coelho, vendidas a meio do trajecto, em 2007, à Reditus, também cheia de gente conhecida. Não é só Pais do Amaral que lá está, é o advogado Fernando Fonseca Santos, accionista (5, 3%) e mandatário nacional oficial de Marcelo Rebelo de Sousa à Presidência da República; é o advogado Diogo Lacerda Machado, homem de confiança e a arma secreta do primeiro-ministro, António Costa; e José Lemos, o ex-presidente da Bolsa de Valores de Lisboa e ex-deputado do PS, agora à frente da consultora ClearWater. Esta história, que se revelará embaraçosa para todos os intervenientes, uniu Lisboa, Luanda, Maputo e Brasília. E juntou condes e gestores, pesqueiros e marisqueiros. E também generais e almirantes. E “espiões”, comissionistas e ex-governantes. E pistolas em cima da mesa, em sentido literal do termo. O que aqui está em causa é uma certa forma de fazer negócios: com investidores que montam as suas empresas com elevados custos sempre à espera das receitas que estão para vir. E será também a história de empresários que ignoram os perigos da proximidade de certos grupos que defendem interesses obscuros — o que explica os episódios que se desencadeiam a par da transacção, com nomes que coincidem. Um deles é António Maria de Mello Menezes, conde de Sabugosa e embaixador da Ordem de Malta em Angola, e, até 2014, vice-presidente da Reditus, da qual foi afastado. O gestor, que foi um dos pivôs da venda do sistema de comunicações encriptadas ao Exército angolano, está hoje no epicentro do fogo cruzado entre os comissionistas daquele negócio e os seus promotores, que o acusam de falhar os pagamentos combinados. Mello é presença assídua em eventos da alta sociedade portuguesa e entrou neste negócio a convite de Paolo Bennati, um italiano armador de pesca de marisco em Moçambique e na Tanzânia, onde reside, que também o acusa de traição. Em 2016, o Tribunal da Comarca de Lisboa condenou o conde a pagar-lhe 2, 866 milhões de euros e este recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. Depois de um período de silêncio, directamente ou através de círculos próximos, os vários intervenientes aceitaram prestar esclarecimentos. António Mello começou por se mostrar disponível, mas foi adiando sucessivamente os encontros — o que não impediu o P2 de fazer contactos na sua esfera. O ponto de partida para esta investigação foi um telefonema de um desconhecido, seguido de uma conversa num bar de hotel, num domingo à tarde. O tema ficou então registado numa nota de rodapé de um caderno de apontamentos e é um dos casos em que pensamos duas vezes antes de iniciar uma investigação. Mas, quando se acede a depoimentos credíveis escritos e orais ou a gravações confidenciais, deixa de haver caminho de recuo. E há testemunhos e factos, entretanto provados em tribunal, que nos contam o que se passou. Para enquadrar o contexto em termos geopolíticos, o P2 recorreu às análises do embaixador António Monteiro e do gestor Luís Todo Bom, com experiência alargada da realidade africana, mas sem qualquer ligação aos eventos que se vão narrar. António Monteiro está hoje à frente da administração não executiva do BCP, detido em 16% pela petrolífera Sonangol, mas chefiou, em 1991, a missão portuguesa que acompanhou a primeira tentativa de promover a paz em Angola. Já Todo Bom é docente universitário e preside à Angopartners. Nasceram ambos em Angola, origem que assumem. No final da guerra civil, Angola é um país em ruínas, sem dinheiro, sem acesso a crédito, com as principais vias de comunicação destruídas. “Era muito difícil descobrir algo que valesse a pena comprar. Pura e simplesmente não havia. E as pessoas viviam assustadas, fechadas em casa, com recolheres obrigatórios, tiroteios, angustiadas com o dia seguinte. Não sabiam se ia haver ataques ou tensões sociais”, evoca António Monteiro. “Foram décadas em que as pessoas não tinham praticamente nada. E, de repente, abriu-se um mundo ao consumo, que para muitos angolanos se vai traduzir numa vida melhor. ”A 4 de Abril de 2002, MPLA e UNITA assinam o Memorando de Entendimento de Luena e o quadro altera-se substancialmente, pois já é possível circular em todo o território. Com um senão: as estradas, os caminhos-de-ferro e os aeroportos estão destruídos. O Presidente, José Eduardo dos Santos, pode agora afectar à construção de infra-estruturas as receitas da exploração dos recursos energéticos, até aí concentradas no esforço militar. Luís Todo Bom destaca outros desafios. Um deles é “organizar o Estado embrionário, unificar o território e unir a população”. E há mais. Com a paz “há que integrar as tropas derrotadas, o que não se verificou no Sudão e em Moçambique, com as repercussões conhecidas”. Redimensionar e modernizar as Forças Armadas são também prioridades. “Ao assumir-se como potência regional de uma área instável, a África Austral, Angola necessita de um exército apetrechado para intervir em zonas limites e actuar no âmbito da Organização da Unidade Africana”, sublinha Todo Bom. É assim que após 27 anos de conflito armado se começa a desenrolar uma história no maior dos sigilos. No último trimestre de 2002, ainda se festeja a paz, e já o Serviço de Inteligência e Segurança do Estado-SISE promove a aquisição de um sistema exclusivo de comunicações para equipar a rede de quartéis das Forças Armadas angolanas. Em Brasília, há quem tome boa nota deste plano ambicioso, que vai exigir um investimento de muitos milhões. Ângelo Gonçalves, à data dos factos, opera na esfera da embaixada angolana no Brasil, começa a desenvolver contactos junto de empresas locais com experiência no sector da vigilância. E que possam garantir o financiamento do BNDES — o banco estatal brasileiro viria a ser apanhado nos casos “mensalão’”e Lava-Jato. Ângelo Gonçalves apresenta-se ao P2 com três origens — angolana, portuguesa e brasileira — e não é uma figura comum. Pertence ao grupo de 40 comandos portugueses, alguns nascidos em Angola, que após a independência, a 11 de Agosto de 1975, se foi oferecer ao MPLA para executar operações especiais. Seguiu-se a carreira de inspector “espião”. Não é também um “espião” qualquer: fala sempre muito, e muito depressa. E o vocabulário é inventivo. Aceder a informação confidencial pode revelar-se uma arma poderosa — isto é, quando nada transpira para fora. O inspector Gonçalves observa que em Luanda “corre mais depressa um muxinque [fofoca] do que um telefonema ou um fax”. E as suas movimentações depressa se tornam um segredo de Polichinelo. O primeiro a ouvi-lo foi Paolo Bennati, da boca de um militar angolano a colaborar com o Exército moçambicano e que, em Maputo, deixa escapar a “indiscrição”: em Luanda ultima-se um negócio milionário de fornecimento de equipamento de telecomunicações protegidas. Em África, Bennati explora uma frota de barcos de pesca, tem hotéis e outros interesses. “[É] um salteador da arca perdida com gosto em procurar negócios, em vasculhar uma agulha no palheiro. É o que o mantém activo”, como nos conta o seu amigo português, David Fernandes, industrial de pescado fresco, sediado no Algarve. A cena que se segue ajuda a compreender, entre outras coisas, o quadro em que começou, nos anos 90, uma longa amizade, que David Fernandes hoje recorda: “Um dia o dr. º Chaves de Almeida [ex-director, em Lisboa, da Organização Internacional de Polícia Criminal-Interpol], meu colega de faculdade, ligou-me a dizer que o Paolo era amigo pessoal do director-geral da Interpol, um lorde inglês, e que lhe fora apresentado num congresso da Interpol. E andava à procura de alguém sério para ser o seu distribuidor em Portugal. Declinei, pois trabalho com peixe fresco. ”Paolo Bennati reconhece que participou em iniciativas pontuais da polícia internacional, mas nunca pertenceu à Interpol. O armador divide a sua residência entre Dar es Salaam, a capital da Tanzânia, e Trento, no Norte de Itália. É nesta última morada que se encontra no final de 2002 e onde começa a ponderar levar uma proposta às Forças Armadas angolanas — o que justifica um telefonema para o amigo Fernandes: “Conheces um engenheiro de telecomunicações?”Nas férias e fins-de-semana, Fernandes priva com o conde de Sabugosa, que ao serviço da PT/Marconi montara as primeiras torres de telecomunicações em Angola. É, pois, o nome de António Mello que de imediato lhe vem à cabeça. Fernandes revive a conversa que os dois tiveram: “Conheço um italiano que tem em perspectiva a venda de equipamento de telecomunicações às FA de Angola e quero saber se estás interessado. E o António reagiu: ‘Interessadíssimo. É a minha área, é o que sei fazer. ’”Avisado, Benatti prontifica-se a partir de imediato para Portugal. Como David Fernandes tem viagem marcada para Barcelona, o encontro entre os três dar-se-ia no aeroporto de El-Prat, onde chegam com 30 minutos de diferença. Fernandes e Mello partem de Lisboa, Bennati de Roma. O italiano, familiarizado com a maneira de ser dos africanos, antevê riscos subjacentes ao negócio. E durante a conversa deixa claro: “Não posso dizer que vá dar certo, mas acho que há condições. Temos de ir ao Brasil e a Luanda, pagar hotéis, refeições, comissões. ” E outros extras. Assim que se desvia para fazer um telefonema, Mello questiona Fernandes: “Qual é o grau de confiança que tens no Bennati e qual o nível de informação que ele tem do negócio?” O amigo responde: “É grande. ”As dúvidas são recíprocas. E, quando Mello se afasta, Fernandes é novamente interpelado, agora por Bennati: “Quem garante a idoneidade do Mello?” O pesqueiro é categórico: “Sou eu. O António é uma pessoa séria, confio nele a 100%, não só pela relação de amizade, também pelos princípios em que foi educado, os mesmos que eu. E talvez mais até, pois tem uma linhagem nobiliárquica, é conde de Sabugosa, que faz questão de afirmar. É um empreendedor. ”E, assim, antes de regressarem — Bennati a Itália, Mello a Lisboa — os dois fecharam um acordo verbal paritário, a ajustar às circunstâncias. António Mello está à frente de uma pequena tecnológica, a All2it. E, perante a hipótese de se envolver numa megaoperação, equaciona uma coligação com a Tecnidata, da Fomentinvest, a holding chefiada por Ângelo Correia e que tem como accionistas cinco bancos — BES, BCP, CGD, Banif e Banco Africano de Investimento — e o grupo IP-Ilídio Pinho. Na administração da Fomentinvest está Pedro Passos Coelho. Em Março de 2003, António Mello, então com 44 anos, encaminha-se para a Fomentinvest. Espera-o o social-democrata Ângelo Correia, com livre-trânsito em Luanda. Isto porque, na qualidade de ministro do Interior, apostara no MPLA como o vencedor. “O Mello pediu-me para lhe abrir portas em Luanda e o ajudar a expor as linhas gerais do projecto que a All2it queria vender às Forças Armadas”, confirma ao P2 Ângelo Correia. “Já me esqueci de muita coisa”, acrescenta. A chegada ao negócio do ex-ministro do Interior é relatada por Bennati, numa conversa que tem com David Fernandes: “Conseguimos uma pessoa importante. O Ângelo Correia conhece bem o Mello. ” E o amigo descreve como reagiu: “Olha, Paolo, uma coisa te digo: é das pessoas mais prestigiadas e, sendo do PSD, com a maior abertura com todos os partidos. Para o eng. º Ângelo Correia aparecer, deve ter um relatório e démarches feitas que te vão dar segurança. ”É neste momento que entra na história outra figura, Serafim Afonso, o delator de João Caldeira, o ex-contabilista da Expo98 apanhado a desviar 2, 5 milhões de euros do cofre da sociedade pública para investir numa empresa de barcos de pesca na Tanzânia, a Dica, de que era, aliás, sócio. Na altura, Serafim Afonso trabalhava em África no sector da pesca do camarão. Se Serafim trata Ângelo Correia por “padrinho”, o ex-comando Ângelo Gonçalves tem pelo dirigente do PSD “grande consideração”: “Quando era ministro do Interior, eu e o Serafim desenvolvemos trabalhos relevantes para ele e que ajudaram às relações de Portugal e de Angola. ” Ao P2 Ângelo Correia, então com 58 anos, admite conhecer melhor Serafim do que Ângelo Gonçalves. E, na qualidade de ex-governante, regista na memória os dois “ligados à Intendência Geral dos Abastecimentos Alimentares”, agora ASAE. Empenhando-se pessoalmente, o ex-ministro mostra que o assunto é sério. E todos querem prosseguir para chegar com sucesso ao negócio de “implementação de soluções de centro de dados de uma plataforma de software”. Receando que uma empresa brasileira se preparava para fechar o acordo com Luanda, o pesqueiro Serafim Afonso, o industrial de marisco Paolo Bennati e o conde de Sabugosa, António Mello, embarcam para Brasília. É nesta viagem que surge um primeiro momento de tensão entre Bennati e Mello. O italiano narra: “[Mello] arranjou dois bilhetes em executiva, para ele e para mim, e meteu o Serafim em turística. Considerei isso um desrespeito e disse-lhe: ‘Se o Serafim vai connosco, vai em executiva. ’”Em Brasília, o inspector Ângelo Gonçalves faz diligências: “Tinha boas credenciais do Serafim e o Ângelo Correia confirmara a idoneidade do Mello, mas nunca ouvira falar do Bennati. ” Mas veio a saber “que era amigo do ex-vice presidente mundial da Interpol Romeo Tuma, um senador respeitável, que [Gonçalves] também conhecia”. Tuma foi acusado de ter prestado ajuda na ocultação de cadáveres de militantes políticos assassinados durante os tempos da ditadura brasileira. Ao aterrarem no Aeroporto Juscelino Kubitschek, Serafim, Bennati e Mello têm à sua espera Gonçalves: “A proposta que traziam fazia sentido e sondei Luanda: Portugal ou o Brasil?” Em Lisboa está o ex-ministro do Interior a credibilizar a transacção, e, quando propõem levar Ângelo Correia a Angola, o inspector Gonçalves entusiasma-se: “Ângelo Correia é carismático, conhece o métier e, para mim, era óbvio que ia ajudar a obstruir a empresa brasileira. ”Em Angola, a conexão entre política, militares e economia é crua e directa. E os oficiais reservistas, saídos do Exército regular, estão agora em todo o lado. O embaixador António Monteiro evidencia que “o Sudão do Sul fez uma independência saudada por todos, mas hoje está na situação em que está porque se esqueceram de que havia dois exércitos diferentes, e, sem enquadrar o lado perdedor, ou dar-lhe uma ocupação, caiu no vazio”. Por sua vez, Luís Todo Bom explica: “As elites angolanas ou estavam na área militar ou na esfera política do MPLA, e é natural que se tenha procurado construir a partir delas uma classe empresarial nacional, associando-os aos grandes projectos públicos. ”Passado um tempo, em Luanda, onde vive parte do ano e tem negócios, Ângelo Gonçalves “providencia” apoios ao mais alto nível para avançar com o fornecimento ao Estado-Maior do Exército de uma rede segura de infra-estruturas de comunicação e transmissão de dados de voz. A 1 de Julho de 2003, Ângelo Correia, António Mello, Serafim Afonso e Ângelo Gonçalves são esperados, na Rua Ho Chi Minh, no Bairro Alvalade, por Fraga da Costa, empresário da área da desminagem, e pelo coronel Arsénio Manuel. Nem todos se conhecem. “Mas o Ângelo Correia é eloquente e o ambiente depressa se descontrai, enquanto se contam episódios de outros tempos”, opina Ângelo Gonçalves, que faz as apresentações e se retira, deixando Serafim Afonso a representá-lo. Juntos vão subscrever o memorando de entendimento que vai sustentar o negócio de 113 milhões a executar em três fases, uma delas ainda em curso. Por deferência, convidam Ângelo Correia a encabeçar a lista com os nomes que assinam o protocolo, facto que o ex-ministro admite poder ter ocorrido. Seguem-se as rubricas de António Mello, de Serafim Afonso e de Ângelo Gonçalves. E as dos angolanos Arsénio Manuel e Fraga da Costa, que o certificam a título pessoal e em representação do ex-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas Agostinho Nelumba, do embaixador e almirante Feliciano dos Santos, do general Pena da Silva, do ex-vice-ministro das Finanças Arlindo Praia Sikato, do comandante da Polícia Geral Ambrósio Freire dos Santos, do inspector-geral do Estado Joaquim Mande. Como este último grupo não está presente na reunião não se sabe até que ponto todos se vinculam ao projecto. No entender de Gonçalves, os signatários do documento “são gente de grande calibre que dava a garantia da lisura do processo”. Mas todos estão ali para colocar por escrito o direito a reclamarem uma parcela dos lucros, na qualidade de comissionistas e de garantes das autorizações necessárias — o que se compreende, porque em certos meios cobrar percentagens em negócios faz parte do dia-a-dia, de manhã à noite. O texto do acordo é curto: a All2it SA ou outra entidade por ela indicada assumirá entre 70% e 80% da firma Dinovang Holding, a constituir. Este é o veículo que irá juntar os vários interesses, das empresas (All2it/Tecnidata) e dos comissionistas. E os detalhes estão mesmo nos anexos. Os três angolanos — Fraga, Serafim e Gonçalves - querem “receber 4% do bolo total”, mas “de forma legal”. Os portugueses, os generais e os almirantes tinham “uma combinação à parte”, afiança Gonçalves. A partir dali o ex-inspector refere que “a máquina empresarial começou a trabalhar ao mais alto nível”. E Ângelo Correia e António Mello, em nome da All2it, são vistos a entrar no Estado-Maior General das Forças Armadas em Luanda, onde vão apresentar soluções de telecomunicações informáticas. De volta à capital portuguesa, mostram-se confiantes. A par e passo, Mello e Bennati reafirmam a aposta em partilhar os lucros do negócio militar que, na óptica do italiano, consagra a sua entrada na All2it. E até passam a escrito um protocolo em termos que não são claros, especialmente quanto à titularidade do parceiro do armador de marisco: se é a All2it ou o seu presidente a título particular. “Sempre que falava sobre concretizar o acordo, o Mello mudava de assunto e dizia que tinha um sócio a dificultar a minha entrada na All2it, mas não dizia quem era”, explica Bennati, que só mais tarde soube que o tal “sócio” era a Fomentinvest. Por seu turno, Ângelo Correia garante que Mello nunca mencionou haver um italiano no negócio, cuja presença apenas chegará ao seu conhecimento anos depois. Até lá, o ex-ministro é visto a viajar entre Lisboa e Luanda, onde retorna a 5 de Agosto de 2003. Nesse dia, o Jornal de Angola fotografa-o ao lado de António de Mello: “Um grupo de empresários portugueses chefiado pelo ex-ministro do Interior está em Luanda. ” E reproduz declarações de Ângelo Correia: “Viemos cá com a missão de observação e de análise, e temos um projecto imobiliário [que não é detalhado] que, não sendo directamwente a nossa vocação, tem coisas úteis. ” Intenção que Mello corrobora veementemente. Diz até que Angola está em “boas condições” para se tornar “um país desenvolvido”. A data de 5 de Dezembro de 2004 é um momento importante para esta história. É quando, em Luanda, o Conselho de Ministros anuncia a criação da central de compras das Forças Armadas, que designa Simportex e que vai estar no centro da operação luso-angolana - o veículo que, tempos depois, a oposição a José Eduardo dos Santos vai declarar como o pólo de atracção de interesses privados e políticos que corrói por dentro o país. Enquanto em Luanda se fecha a operação, em Lisboa, a 14 de Julho de 2005, assiste-se à materialização da parceria entre a Tecnidata e a All2it, que se fundem — a nova empresa vale 38, 3 milhões. Entre os accionistas estão a Fomentinvest e a All2it, cada uma com 24, 5%. A Dinovang fica sob o controlo da All2it/Tecnidata, em cuja gestão Passos Coelho se mantém até 2007, se bem que uma fonte da empresa clarifique: “O Pedro tem a característica de ser administrador e de andar a leste de tudo. É um dom. ”O ex-primeiro-ministro confirma ao P2 que foi “administrador não executivo da All2it e da Tecnidata, em representação da Fomentinvest”, razão pela qual “nunca” interveio “directamente em nenhuma das operações comerciais”, nem “recebeu” ou “encaixou” prémios “ou quaisquer valores referentes a negócios realizados”. Acontece que o BES se estava a tornar um núcleo de influência a muitos níveis. E todos querem ser amigos do muito poderoso Ricardo Salgado. E a partir daqui António Mello, no quadro da sua actividade, aparece várias vezes no BES para se financiar. Estávamos a três anos de a crise rebentar e de a situação ficar fora de controlo. Para muitos investidores, é a partir desta época de acesso ao crédito fácil e de pouca exigência que a bola de neve começou a rolar. Por esta altura, David Fernandes foi jantar a casa de Mello, onde se encontrava Bennati, e lembra-se de ouvir o anfitrião comentar que estava “pouco crédulo” com o desenlace do contrato militar, “mas o Paolo, por oposição, via uma luz ao fundo do túnel”. É, de facto, o espírito optimista que leva o italiano a continuar a responder às chamadas do português para pagar viagens e hotéis, charutos e outros extras. Para um técnico da tecnológica, “o dossier [dotar a rede angolana de quartéis de um sistema de comunicação protegido] era complexo, exigiu muitas reuniões, destacamento de quadros, tratamento de dados confidenciais. Não foi fácil”. Era todo um país por mapear. No final de 2005, o PIB angolano dispara para quase 20%, o que se revelará uma armadilha. Ao depender do petróleo como única fonte de receitas, a economia não se diversifica, o que leva Luís Todo Bom a observar: “Qual é o processo normal de desenvolvimento de um país? Criam-se infra-estruturas, depois uma comunidade empresarial, porque é esta que gera riqueza, que depois deve ser distribuída. Angola tem um problema de criação de riqueza, porque não produz nada. ”Finalmente, a 10 de Março de 2006, é assinada a primeira fase do contrato de “Compra e Venda de Equipamento e Serviços de Comunicação de Voz e Dados” do comando das Forças Armadas. A cerimónia é precedida de uma hesitação quanto à titularidade do vendedor: é a All2it, a fornecedora, ou a Dinovang, a promotora? Dúvidas que mostram o grau de ambiguidade da negociação, que se resolvem a favor da All2it. A Simportex liberta uma primeira tranche, de apenas 6 milhões, para equipar os 12 quartéis de Luanda. Mas o investimento total previsto será de 113 milhões, a pagar à medida que o trabalho seja efectuado e com o BES a financiar as Forças Armadas angolanas. Estão previstas mais duas fases: uma de 44 milhões, outra de 63 milhões. E é esta última que falta executar. Em países com uma cultura de negócios informal, como Angola, um acordo não pode falhar. Seguindo o memorando de 1 de Julho de 2003, os três comissionistas — Ângelo Gonçalves, Serafim Afonso e Fraga da Costa — reclamam 180 mil euros, cerca de 4% da primeira factura de 6 milhões. Enquanto presidente da All2it, Mello não leva a sério os interlocutores e hesita em adiantar a totalidade do valor. Ainda que o nome do italiano não conste dos documentos da transacção de comunicações militares, pois continua fora do capital da All2it, os comissionistas vêem-no como sócio de António Mello. E pedem-lhe que intervenha a seu favor, o que o italiano vai fazer: “António, para tudo correr bem, tens de cumprir o acordo com o Ângelo [Gonçalves], o Serafim e o Fraga. ” E assim acontece. De todos os que ali estão, o que mais traquejo parece ter é o ex-inspector Ângelo Gonçalves. É quem conta: “Assim que recebi na minha conta os 60 mil dólares [a sua parte dos 180 mil], solicitei a Mello que enviasse comprovativo para o Banco do Brasil de que a verba tinha partido da All2it. ” Enfatiza: “Quis tudo documentado, pois o fisco passou a ser minha testemunha. ”A 8 de Abril de 2006, Ricardo Salgado é um dos banqueiros que partem com o então primeiro-ministro José Sócrates em visita oficial a Angola, um país que cresce a 16% ao ano. E surge a credibilizar o negócio entre a All2it/Tecnidata e o Exército. O Jornal de Angola dá conta que, por decisão de Sócrates, “a Dinovang, empresa de direito angolano, controlada pela Tecnidata”, vai ser “a primeira beneficiária” de uma linha de crédito aberta pela Companhia de Seguro de Créditos (Cosec). Clarifica que a Dinovang ganhou o concurso para instalar uma rede de telecomunicações (voz e dados) para as Forças Armadas angolanas. Nesta fase, não era só Bennati que reclamava de Mello pagamentos em atraso. É que, às vezes, quem ao princípio dá a mão acaba esquecido. Em Lisboa, o ex-ministro Ângelo Correia desabafa: “Fomos úteis para ajudar a abrir portas, fazer apresentações, dar prestígio, um ar sério e honesto. ” Mas isto foi até 2006. “[A partir de 2007] o Mello nunca mais disse nada e soube que andava a fazer negócios em Angola na área da construção”, nota o ex-ministro. A porta estava já a entreabrir-se para a entrada de Miguel Pais do Amaral. A 2 de Fevereiro de 2007, a Simportex e a All2it concretizam a segunda fase do contrato de telecomunicações militares, que se alargará à rede de quartéis de todo o país. Aos 44 milhões prometidos à All2it/Tecnidata deverá somar-se uma renda anual à volta de um milhão de euros por serviços de manutenção do equipamento. A parceria com Mello está a deixar de funcionar. E os comissionistas não recebem nada, o que vai dar origem a um grande problema para o português. Até mais do que isso. É que o italiano Bennati exige agora partilha de lucros de 14 milhões, mas a All2it mostra-se disposta a desembolsar somente 200 mil euros. Não é fácil definir com exactidão o momento em que todos assumem que se desentendem. Pode dizer-se, no entanto, que por estes dias já o italiano se munira de um dossier contra Mello - datas de encontros, teor das conversas com os generais, faxes, emails, mensagens, movimentos, comissões pagas. E lança um aviso à navegação: “Se isto vier a lume [à comunicação social], o negócio pode cair. ” Também o confidencia a David Fernandes, durante um almoço: “Estou em rota de colisão com o teu amigo, pois temos um contrato de 50/50 que ele não reconhece. No início, disse-me para ficar descansado que tratava de tudo, mas agora reclama. ” Lamenta o italiano: “O Mello não me respeita, não está a ser correcto. ”Ao ter validado perante Bennati a idoneidade do conde de Sabugosa, o industrial do pescado fresco torna-se “actor” da história. No dia seguinte, ruma a Miraflores, onde está sediada a All2it. É recebido friamente. Fernandes conta a versão: “Inquiri-o sobre o que o estava a impedir de fazer contas com o Paolo. E, sem me desmentir, o António afirmou que o assunto não me dizia respeito. Pediu-me para não o voltar a contactar. ”Antes de sair, Fernandes lembra-se da cena: “Olhei-o nos olhos: ‘A nossa amizade acaba aqui. E não voltarei a falar contigo. Tenho pena de te conhecer e de ter avalizado a tua honestidade. Fica bem, passa bem. ’”O que David Fernandes nessa altura não sabe ainda é que António Mello anda há vários meses a conversar com o muito influente Miguel Pais do Amaral, ex-corretor da Bolsa de Valores de Nova Iorque e homem com livre-trânsito em 73 administrações de empresas. Têm vários traços a ligá-los: ambos são engenheiros; também Mello se declara de linhagens aristocráticas, tendo as famílias conexões antigas; ambos não hesitam entrar em mercados de risco para aceder a negócios lucrativos. Escusado será dizer que, ao ouvir o conde de Sabugosa confidenciar que a All2it/Tecnidata está envolvida numa grande transacção em Angola, Pais do Amaral mostra interesse. E é assim que, a 2 de Maio de 2007, e a escassos dias de correr no circuito automobilístico 24 Horas Le Mans, o presidente da holding ASM Quifel, anuncia a aquisição de 47, 2% da Tecnidata, que controla a All2it e a Dinovang. O que Pais do Amaral não sabia é que a atmosfera em torno do grupo que acaba de adquirir está prestes a descontrolar-se. Mas não o deixam na ignorância por muito tempo. Mal chegou aos ouvidos do armador de marisco Bennati que Mello tem novo parceiro na Tecnidata, o italiano telefona ao amigo David Fernandes: “Sabes quem é o Pais do Amaral?” Responde o industrial da pesca: “Claro! Foi meu colega no São João de Brito. Fica descansado que vou entrar em contacto com ele. ” É o que faz. “Sou amigo do engenheiro Pais do Amaral, com quem já não falo há dois ou três anos, mas gostaria de lhe dar uma palavra”, expõe Fernandes à secretária do investidor, que está novamente de partida, desta vez para férias. Fernandes insiste: “Peço-lhe que o informe de que o assunto é urgente. ” Pais do Amaral atende-o: “Olha, preciso de me encontrar contigo e não te tomo mais que minutos. Tu vais de férias e a situação é explosiva e como teu amigo sinto-me na obrigação de te alertar para o que se está a passar com o contrato da All2it com as Forças Armadas angolanas. ”A luz vermelha acende-se. Pais do Amaral, que já estava a tratar da terceira fase do projecto de telecomunicações militares, orçado em 60 milhões, combina um encontro. Frente a frente, o industrial do pescado interroga-o: “Já ouviste falar do Paolo Bennati?” Pais do Amaral andava às escuras. E Fernandes participa-lhe que “Bennati e António estão desavindos e o tema vai chegar aos jornais”. Com os ficheiros informáticos à solta, o presidente da Quifel faz uma pausa na agenda de Verão para ouvir o que tem a dizer o italiano, que, nessa mesma noite, apanha o avião que aterra na Portela. Quando, na manhã do dia seguinte, entra no gabinete da Quifel, o armador Bennati faz-se acompanhar de David Fernandes. Leva na mão um grande dossier que começa a folhear: folha um, folha dois, folha três. Ao perceber que está perante uma caixa negra, Pais do Amaral observa: “Foi a primeira vez que soube de si [Bennati] e entendo a sua indignação, [mas] não posso fazer nada, pois não negociei consigo. ” Contudo, dispõe de meios “para levar o António a fazer um acordo para que tudo se resolva”. Mais coisa, menos coisa a conversa termina ali. Antes de sair, Bennati informa-o que tem a receber 14 milhões da All2it. Uma hora mais tarde, o telemóvel de Fernandes cintila. Do outro lado, Pais do Amaral transmite: “Já falei com o António e ele vai resolver o problema com o teu amigo. O meu advogado vai acompanhar as negociações. Eu estou cá para servir de árbitro. ” Um árbitro de cacete na mão pode ser interventivo - leia-se por cacete o advogado José Archer. Dias depois, Mello pede a Pais do Amaral que se desloque à All2it para falar com o seu advogado, Miguel Esperança Pina. Este apresenta uma nova versão dos factos: o acordo com Bennati é de discutível legalidade e, como jurista, pensa que o italiano só tem direito a receber lucros da primeira fase, assinada em 2006. Durante a reunião, Esperança Pina defende ainda que os termos do protocolo só vinculam a All2it/Tecnidata, e não o seu cliente, António Mello. E é precisamente o que Pais do Amaral não quer ouvir. O investidor mostra-se impávido, mas está preocupado, pois compreende que o contrato de telecomunicações militar corre riscos. No final de 2007 há sinais de que está a caminho uma grande crise financeira, com bancos a falirem na Grã-Bretanha e nos EUA, e fundos de investimento a declararem insolvência. O cenário é de prudência. Apenas para alguns. Há quem tome posições accionistas, como, por exemplo, Pais do Amaral, agora no itinerário da Reditus. A 18 de Setembro de 2007, o agora presidente da Tecnidata adquire 10% da tecnológica, cotada no PSI20. E presidida por Frederico Moreira Rato, que tinha a seu lado, na mesa da assembleia geral, um advogado hoje muito conhecido, Diogo Lacerda Machado, o “grande amigo” e consultor de António Costa. “Vou uma vez por ano à Reditus, de onde nunca recebi um tostão. E não faço ideia dos seus negócios e actividades”, comenta ao P2 Lacerda Machado. Recorda ainda que António Mello e Pais do Amaral não aparecem nas reuniões, “fazem-se representar”. A entrada de rompante de Pais do Amaral, aos 54 anos, na Reditus levanta desconfianças. Não tinha a reputação de Moreira Rato, de 58 anos, como conta um ex-quadro: “[Moreira Rato] era um patrão à moda antiga, falava com toda a gente, estava sempre preocupado. ” Tinha, talvez, a escola do ex-presidente do BCP Jorge Jardim Gonçalves, seu grande amigo, ironiza o mesmo colaborador. “Estava sempre a fazer perguntas: ‘Como está a sua mãezinha?’ ‘Já tomou o antibiótico?’”A 2 de Janeiro de 2008, após sugestão de Pais do Amaral, Moreira Rato desafia os accionistas da Tecnidata “a venderem o controlo” à Reditus. Pais do Amaral, com 47, 2%, responde: “Tenho muito interesse. ” Com o aumento da sua presença accionista, à Reditus chega José Lemos, ex-deputado do PS, na qual teve responsabilidade na gestão de património, para ocupar cargos sociais em comissões estratégicas e de avaliações. (Em 2010, Lemos virá a intermediar a polémica venda do Finibanco ao Montepio. )A 18 de Maio de 2008 as cotações nas bolsas internacionais estão em declínio e a crise está instalada. Em Setembro, o Lehman Brothers entra em colapso e mostra que os mercados nem sempre se auto-regulam ou operam com ética. E raramente funcionam na base da boa vontade. Os reguladores falham também. Mas nem todos os investidores desanimam com o novo cenário que se adivinha. Pais do Amaral propõe-se “construir um campeão português das tecnologias” e assume 10% da Nova Base. Mas já não terá fôlego para tanto - há falta de liquidez, os bancos não estão disponíveis para financiar investidores em processos de consolidação empresarial. Nada que o pareça preocupar quando posa sorridente ao volante do seu Lola B05/40, o carro que vai pilotar nos testes que antecedem a corrida 24 Horas de Le Mans. Na grelha de partida não imagina ainda o quanto a situação se irá complicar e como será protagonista de uma história que, anos mais tarde, classificará como “muito triste”, “uma loucura total”, “uma grande infelicidade”. Depois de a 20 de Outubro de 2008 ter adquirido 130 mil acções da Reditus, Mello aparece com 10%. E é visto como um submarino pilotado por Pais do Amaral. O BES continuava a ser o seu financiador — a dívida irá totalizar cerca de 6 milhões, sobre os quais o banco não solicitou garantias reais, apenas as acções da tecnológica serviram de aval. Na altura, valiam cerca de 8 milhões de euros. Um quadro da tecnológica recorda: “Percebemos que o Pais do Amaral estava a ganhar peso e havia rumores de que tinha negócios com o António, seu aliado que, na altura, era olhado como estando à frente de uma empresa de sucesso, a All2it. ” “[Semanas depois] fomos informados de que a All2it tinha um contrato com as Forças Armadas angolanas classificado de muito bom e de altamente reservado, mas desconhecíamos a existência de um sócio-fantasma e de divergências já com advogados metidos ao barulho. ” Até aí nada de novo. O que nenhum deles imagina, nem mesmo Pais do Amaral, é que em paralelo há outro diferendo prestes a espoletar, e este com protagonistas de maior risco: os três comissionistas. Aproxima-se a assinatura da terceira fase de fornecimento do material de comunicações codificadas ao Exército angolano. Estão em causa 62, 700 milhões de euros. Tudo se acelera. Para ajudar a mediar a divergência entre Mello e o armador italiano, é chamado Luís Chorão. Este jurista do Banco de Portugal e ex-sócio do advogado de Bennati, é familiar de Maria João Baía, a designer de jóias casada com Mello. Depois de o advogado de Mello, Miguel Esperança Pina, já ter baixado o pedido de indemnização de 14 milhões para 7, 5 milhões, Chorão reduz de novo a verba, agora para 4 milhões. A quantia que Mello aceita ser a sua dívida. No final de 2008, todos concordam que é tempo de virar a página. Bennati tem tudo e não tem nada. Dispõe de um acordo legítimo, mas que não é reconhecido pelo parceiro, pois não foi oficializado, o que o coloca fora do contrato de telecomunicações luso-angolano. E o italiano reavalia a sua estratégia de negociação. Aparece um plano B. A 9 de Janeiro de 2009, Bennati desinteressa-se da venda de tecnologia informática e entende-se com António Mello em moldes distintos — lê-se no “Contrato de Transacção” que o italiano renuncia a eventuais lucros provenientes daquele negócio a troco de receber logo 1, 5 milhões de euros para fazer face aos adiantamentos realizados entre 2003 e 2007. Está agora na calha uma parceria imobiliária e o conde de Sabugosa compromete-se a pagar a Bennati mais 2, 5 milhões de euros que serão provenientes da promoção imobiliária no contexto do programa Um Milhão de Casas para Angola. Este plano, que José Eduardo dos Santos virá a classificar como “o de maior impacto social na legislatura”, é inspirado num outro, Minha Casa, Minha Vida, lançado pelo então Presidente do Brasil, Lula da Silva, para apoiar famílias de baixos rendimentos. A construção imobiliária terá de ser concretizada nos dois anos seguintes, findos os quais cessará a obrigação de Mello de a executar. Caso se prove que o gestor não foi diligente, Bennati terá direito a reclamar os 2, 5 milhões. Será Luís Chorão o garante de que desta vez não haverá incumprimento. Se correr mal, terá de emitir um parecer. O armador de marisco reconhece que não é o ideal, apenas o possível. Mas volta a pôr as fichas todas no entendimento errado, na medida em que qualquer investimento pode ou não ter êxito. E, sem sucesso, aventura-se a não receber 2, 5 milhões. Para acautelar que as duas sociedades da Reditus, a All2it e a Tecnidata, não serão envolvidas, Pais do Amaral coloca o seu advogado José Archer a rever os termos do protocolo entre Bennati e Mello, ainda que o documento não lhe diga respeito. Mas não vai conseguir evitar os perigos, pois abre-se aqui um outro capítulo que, doravante, seguirá em paralelo à transacção de telecomunicações luso-angolana. A 21 de Janeiro de 2009, António Mello está na sede da Simportex em Luanda para rubricar, em nome da All2it, a terceira fase da aplicação de soluções do centro de dados e de uma plataforma de software que inclui agora a rede de quartéis das 18 províncias angolanas. É neste momento que o guião da história se desvia novamente para o desacordo entre António Mello e Paolo Bennati - o italiano conserva na sua esfera o dossier com os dados sigilosos recolhidos contra o parceiro, a que o advogado Esperança Pina pretende aceder. E, a 10 de Fevereiro de 2009, cumpre-se a cláusula do “Contrato de Transacção” que Esperança Pina mais reclama: o advogado de Bennati, Francisco Lino, deposita à frente de Chorão a “sebenta” e o armador de marisco obriga-se a não dar cópia a terceiros. A quebra de compromisso vincula-o a pagar a Mello os mesmos 2, 5 milhões que exige. O que até 26 de Março de 2009 parecia ser um mar de rosas está a deixar de o ser. Perante Chorão e Lino, Mello apresenta-se pessimista. De “forma genérica”, alega que a situação económica em Angola, decorrente da queda da cotação do petróleo, se deteriora e há sinais de contracção imobiliária. E aconselha a esperar “mais dois ou três meses para contactar as donas portuguesas das propriedades” dos bairros de Miramar e Alvalade, onde projectam construir ao abrigo do programa estatal Um Milhão de Casas para Angola. A tese será contrariada, em 2013, quando o caso chega ao tribunal, com um especialista a declarar que, em 2009 e 2011, não se perspectivava “nada de negro” no sector que era uma “boa fonte de oportunidade”. A 30 de Abril, Mello propõe ao italiano uma solução alternativa à construção em Luanda: a compra de casas pré-fabricadas de origem portuguesa, com recurso a uma linha de crédito do ICEP. E recomenda a venda de pelo menos 10 mil vivendas. A ideia justifica prospecções junto da indústria portuguesa de pré-fabricados para saber quais os materiais disponíveis e o que poderia ser exportado, mas concluem que não há condições para prosseguir. A 18 de Março de 2010, na Rua da Missão, em Luanda — onde funcionam as sociedades da Reditus — a Dinovang e a All2it —, é hasteado o estandarte da Ordem de Malta. Indigitado embaixador em Angola da organização humanitária, o conde de Sabugosa apresenta credenciais ao Presidente, Eduardo dos Santos, com quem é, aliás, fotografado a erguer um cálice de vinho do Porto. E passa a dispor de passaporte diplomático. Daqui em diante sucedem-se incidentes que põem em evidência uma certa promiscuidade entre o grupo português e o que é do foro da Ordem de Malta. “Víamos o Mello nas estradas de Luanda no seu automóvel com a bandeirinha da Ordem de Malta a abanar”, refere Gonçalves. Mas a viatura é da Reditus, o que espanta alguns passageiros-convidados. Entretanto, a menos de 20 dias do acordo ser dado por extinto, Bennati agenda nova reunião, mas o novo embaixador da Ordem de Malta mostra-se indisponível. Depois das últimas tentativas para receber os 2, 5 milhões, Bennati declara-se em guerra. Para contornar o cerco, em Março de 2011 António Mello sugere projectos alternativos. Um deles é fornecer bens alimentares ao Estado angolano, no valor de 300 milhões de euros. De pronto, Bennati recusa: “Não sou nenhum merceeiro. ” Outro é lançar um projecto no Norte de Angola, no Soyo, em 160 hectares com frente para o mar. Francisco Lino considera-o nova deriva e objecta. Mello contrapõe que Bennati está a ser evasivo. Em Outubro, com o acordo a patinar, são pedidos pareceres: Lino responde perante Bennati, e Chorão por delegação de Mello. E as razões para o insucesso não são consonantes. Luís Chorão reporta uma alteração das circunstâncias macroeconómicas para Mello não cumprir o combinado, mas Bennati não aceita e alega que o estiveram a entreter nos últimos dois anos. E, antes do final do ano, o jurista mediador dá por concluído o seu trabalho. Termina aqui qualquer hipótese de consenso. O acordo fica dois anos a marcar passo. Os tempos pós-crise estão a ser difíceis para todos. Os bancos, antes generosos, apertam as exigências aos endividados. Muitas vezes os ricos esquecem-se que não são assim tão ricos, pois acumularam dívidas. E, como muitos outros investidores, António Mello está prestes a entrar em dificuldades como provam documentos bancários. E os compromissos junto do BES ficam a descoberto, por falta de garantias reais que o banco não solicitou. Em Angola, o conde de Sabugosa ainda tem mais problemas. Em Luanda há rumores de que António Mello alterou a estrutura societária da Dinovang sem informar os três comissionistas, Gonçalves, Serafim e Fraga, que se consideram também donos da empresa. “Viemos a saber que fomos excluídos e que a Dinovang passou a ser detida só pelo Mello e pelo Rui Gomes [assessor do conselho de ministros de Angola], que se pode ter envolvido inadvertidamente”, lastima Ângelo Gonçalves. O afastamento é levado a mal pelos comissionistas, que andam há vários meses no trilho de António Mello e conhecem muita coisa: os bancos com que trabalha, os movimentos financeiros, os seus extras, com quem priva. Conhecer muitos segredos tranquiliza-os e serve para atearem a fogueira. E certo dia sentam-se os três no hall do Hotel Trópico, em Luanda, à espera que Mello apareça. Quem assiste recorda um diálogo intenso: “Um lavar de roupa suja, com mulheres metidas ao barulho. ” A conversa é desarticulada e incendiária e, de repente, aparece uma pistola em cima da mesa, mas Ângelo Gonçalves pediu calma, pois tem o objectivo traçado: receber as comissões. O instinto básico terá levado o conde de Sabugosa a contemporizar. E, pouco antes de se despedirem, deixa em jeito de confidência um comentário que surpreende e instala a dúvida: “Já vos devia ter pago, em vez de ter pago ao Bennati 1, 5 milhões. ” A revelação leva Ângelo Gonçalves a ir ter com o italiano, de quem fica a saber que tinha sido “celebrado um novo acordo confidencial, mas que Mello ainda não lhe pagara a dívida”. O armador de marisco não está, aliás, esperançado. Bennati conta que, quando o seu advogado foi procurar as duas proprietárias portuguesas dos terrenos nos bairros de Miramar e de Alvalade, estas lhe disseram que, depois de sondadas por Mello e de terem mostrado interesse em vender, “dependendo do valor e das condições”, Mello não as terá voltado a contactar; logo deram-no “por desinteressado. ” O episódio vai constar dos processos judiciais. No começo de 2013, na Reditus, o conflito de bastidores entre o seu vice-presidente e Bennati não é conhecido. Mas está prestes a entrar numa nova fase, depois de Mello ter recusado uma arbitragem sugerida pelo italiano, que, a 17 de Maio de 2013, recorre aos tribunais para reclamar os 2, 5 milhões, acrescidos de juros de 365. 753 mil euros. Mello contrapõe com um pedido de igual valor por Bennati ter quebrado o compromisso de confidencialidade ao falar do tema com os comissionistas. E entra-se numa saga judicial, ainda sem fim à vista, que acabará a expor um negócio que se pretendia de âmbito reservado. Finalmente, a 2 de Julho, quatro anos depois da terceira, e última, fase da transacção ter sido assinada — mas nunca formalizada —, chegam dois depósitos à conta da Reditus no banco BAI Europa, no valor global de 9, 4 milhões de euros, a título de sinal. A verba saiu de uma conta da central de compras angolana no Banco de Poupança e Crédito. Mas a Simportex ficou ainda a dever 53, 295 milhões, que prevê liquidar com financiamento do BES, ao abrigo da linha de cobertura de risco da Cosec (que assegura 85% do valor total, o que justifica os 9, 4 milhões). O pagamento está à espera de uma ordem do Ministério das Finanças de Angola, que, por seu turno, aguarda autorização do Governo. A dita vem a 15 de Agosto do próprio José Eduardo dos Santos, mas os 53, 295 milhões esgotam-se noutras prioridades, e não chegam à Reditus. Todavia, a expectativa é que, mais tarde ou mais cedo, a verba seja depositada. Enquanto o dinheiro não chega, a Reditus adquire a Ogimatech Portugal, que presta serviços à petrolífera estatal Sonangol, para substituir a All2it como prestadora de serviços às Forças Armadas angolanas. E daí resulta uma renda de quase um milhão de euros. António Mello está prestes a ficar isolado. De Angola partem mensagens para Pais do Amaral de que o seu vice-presidente “não é um bom interlocutor”. Para se inteirar, Pais do Amaral envia o administrador da Reditus Fernando Fonseca Santos a Luanda. Nascido em África, este gestor e advogado tem acesso a círculos da casa civil presidencial. Na opinião de Amaral, o advogado — que foi mandatário de Rebelo de Sousa nas presidenciais — “procura sempre seguir o caminho certo, mesmo que demore mais tempo”. No regresso a Lisboa, Fonseca Santos informa-o de que as autoridades de Luanda achariam prudente retirar Mello do comando das operações, pois este ter-se-ia rodeado de uma clique. “António Mello é um homem de negócios igual a tantos outros, e, não sendo má pessoa, deslumbrou-se a meio da década”, comenta um quadro da empresa portuguesa. E acrescenta: “E organizou a sua vida pessoal à espera das receitas dos negócios em que se meteu. Deixou-se enrolar naqueles meandros em Angola. ”O jogo da sobrevivência leva, muitas vezes, a comportamentos de cada vez maior risco, e, perante o seu afastamento, Mello surge a tomar iniciativas que geram ainda mais ruído. A 12 de Fevereiro de 2014 faz-se luz sobre o que se pode estar a passar na capital angolana: o Cartório Notarial do Guiché Único da Empresa regista uma nova sociedade, a All2it Limitada. Um dos sócios é Rui Gomes (80%), já aqui mencionado. Em Lisboa, o caso não passa despercebido na Reditus. A 21 de Março, a jurista Cristina Pinheiro lê no Diário da República de Angola o anúncio da criação de uma empresa gémea da portuguesa All2it SA. Os receios, já muito vincados, de que esteja a ser preparado um golpe contra os interesses da Reditus saem reforçados a 14 de Abril. É quando a Simportex recebe uma missiva enviada por Mello a requerer que o contrato de comunicações codificadas de cariz militar seja transferido da All2it SA (da Reditus) para a nova All2it Lda, que pretende ser ressarcida em dólares. A Simportex terá de pagar 62, 7 milhões, que é acima do valor acordado, de 53, 295 milhões. Na carta, António Mello pede ainda mais: quer que a central de compras do Estado angolano se lhe dirija na qualidade de presidente da All2it e de “senhor embaixador António Maria de Melo”. Esta iniciativa traduz uma evidente confusão de cargos, sem relação entre si, o que leva os angolanos a confrontarem Pais do Amaral, que decide afastar o vice-presidente. E toma outra resolução: anula todas as comunicações até aí feitas por António Mello, por falta de poderes de representação. A 21 de Maio, a Reditus participa por escrito à Simportex que Fonseca Santos passa a ser o seu único delegado. E, nesta fase, não é apenas a Reditus que se posiciona no teatro de guerra. O gestor tem sobre a cabeça mais duas espadas afiadas: a de Bennati, que em tribunal pede 2, 5 milhões, e a dos três comissionistas que desde 2007 se declaram credores de 1, 2 milhões. Todos batalham para ferir a credibilidade de António Mello, que está sob fogo cruzado. E a situação só tende a piorar. Ângelo Gonçalves tem a filosofia de investigação de que o seu inimigo “acaba por cair de maduro” nas suas mãos. E comenta: “Temos de mexer no vespeiro. ”A oportunidade chega a 30 de Maio, quando Mello toma uma iniciativa estridente. Ângelo Gonçalves está em Brasília, quando recebe um telefonema cujo teor retém: “O Mello mostrou-se disponível para nos pagar [aos três comissionistas] a dívida de 1, 2 milhões, mas queria que Angola considerasse o Fonseca Santos persona non grata. ”Sem o interlocutor o saber, o inspector está a gravar a conversa. Evoca que ficou surpreendido quando ouviu o pedido: “Assim que o Fonseca Santos aterrar em Luanda, tira-lhe os dados do computador referentes às negociações com a Simportex e envia-mos. ” Responde Gonçalves: “Como é que queres que eu trate do assunto em Luanda, se estou em Brasília?” Trinta minutos mais tarde, o inspector angolano tem na sua conta bancária uma transferência no valor do bilhete de avião. Uma versão sem contraditório, pois Mello não se quis explicar, apesar das insistências semanais do P2 ao longo dos últimos meses. Fontes próximas defendem a ideia de que “não terá sido exactamente como relata Gonçalves”, mas admitem que o material de que este dispõe é explosivo. Ao final dessa sexta-feira 30 de Maio, mais precisamente às 22:24:53, chega à caixa de correio de Gonçalves uma mensagem do endereço electrónico “miguelantunes1955”: “Amigo, Este homem está a boicotar o meu (nosso) trabalho de há muitos anos em Angola. Tens de o chatear na chegada a Luanda e durante a sua estadia. ” Em anexo está a cópia do passaporte de Fernando Fonseca Santos. Ângelo Gonçalves conta que, não tendo tempo para apanhar o avião para Luanda, telefonou “para o colega brigadeiro Pedro Mateus” para liderar as movimentações. Ao P2 este inspector confirmou os episódios que se seguem, reportados aos Serviços de Inteligência e Segurança do Estado (SISE). Ao embarcar na quarta-feira 3 de Junho no Airbus da TAP que o vai levar até Luanda, Fonseca Santos não imagina o esquema mirabolante que se prepara numa sala lateral do Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro. À saída do avião há filas com mais de 100 pessoas à espera de passar a alfândega. No meio está o administrador da Reditus, a quem um segurança aponta um gabinete para entrar. Em ambiente reservado confrontam-no: “Sabe quem nós somos? Somos dos serviços secretos. ” O inspector Pedro Mateus entregou um telemóvel a Fonseca Santos, então com 65 anos, para que ouvisse o que, do outro lado da linha, Ângelo Gonçalves, até aí um desconhecido, tinha a dizer. Hoje, Gonçalves jura: “Tudo se passou como deve ser. Como o dr. º Fonseca Santos tem alguma idade, não o quisemos assustar. ” Não queriam, mas assustaram. Porque lhe perguntam: “Tem o seu computador por perto?” Sim, tem. “Então ouça: pediram-me para o intimidar, tirar os dados do risco rígido e do seu telemóvel. E dizer-lhe que o estamos a investigar. E quem me encarregou de o fazer foi o eng. º Mello, que quer obter da Reditus informação sobre a última fase do projecto das Forças Armadas. ”Com medo de que o disfarce da detenção fosse descoberto, Pedro Mateus recorda que manteve Fonseca Santos algum tempo perto de si. Depois, um segurança driblou as muitas pessoas ainda à espera para passar a alfândega e levou o gestor até à rua, evitando que este voltasse para o fim da fila. Fora do aeroporto, a única certeza de Fonseca Santos talvez seja, precisamente, a falta de certeza. Horas depois, Gonçalves sugere a Fonseca Santos que se juntem daí a dias em Lisboa. A 10 de Junho, Dia de Portugal, uma terça-feira, Bennati compra um bilhete de avião para chegar a horas a Lisboa. Na quarta-feira 11 de Junho, longe dos holofotes, no Hotel Sheraton, o inspector conhece o presidente da Reditus, de quem só ouvira falar. E os seus modos sofisticados impressionam o ex-comando, que não se cansa de lhe realçar as qualidades “magníficas”: “Um oficial e cavalheiro, de educação esmerada. ”Na presença de Pais do Amaral, de David Fernandes, de Bennati e de Fonseca Santos, o inspector Gonçalves telefona ao conde de Sabugosa: “Tenho os dados retirados ao dr. º Fonseca Santos para te entregar. ”Se há dúvidas sobre a profundidade das divergências, elas vão desaparecer no dia seguinte, num encontro que os volta a juntar, no antigo Hotel Le Méridien, agora Tiara. Na tarde de 12 de Junho, a vida profissional do vice-presidente da Reditus sofre a reviravolta. Ao hall do Méridien comparecem Pais do Amaral, David Fernandes, Bennati, Serafim e Fonseca Santos, que observam um dos episódios menos edificantes de toda esta história. No bar do hotel, Gonçalves estende a Mello um envelope com várias disquetes vazias e depois representa o papel de capitão. E dá ordem de comando: “Levante-se: vesti a farda duas vezes sempre com dignidade. . . ” Quem assistiu retém ainda hoje um repertório infindável de impropérios, alguns indecifráveis. Face a esta situação complicada, Pais do Amaral mantém a calma, mas, quando se preparava para deixar o hotel, o conde de Sabugosa dirigiu-se-lhe. Hoje, o conde de Alferrarede admite que terá dito qualquer coisa do género: “Ao que tu chegaste António! É inadmissível. ”A 13 de Junho, depois de receber um cartão-de-visita com a morada da Quifel, Gonçalves dirige-se à Rua Duarte Pacheco: “A sala estava cheia e o eng. º Amaral pediu-me que me levantasse e relatasse os motivos que me tinham trazido a Lisboa. No final todos agradeceram. ”As cenas são o coroar de um braço-de-ferro que correu nos bastidores e que torna irreversível o afastamento de Mello da gestão da Reditus, na qual se vive um pequeno turbilhão. Quando, às 15h00 de 19 de Junho de 2014, se inicia a assembleia geral da tecnológica para nomear os novos órgãos sociais, quem entra na sala é Esperança Pina, ali a representar o cliente, António Mello. No ambiente crispado, Mello ainda recebe um voto de louvor por integrar a gestão que cessa funções. A cena repete-se em Miraflores, na reunião magna da All2it. A Reditus não tem outro remédio se não exibir publicamente os factos. E, a 3 de Julho de 2014, publica em edital no Jornal de Angola que António Mello deixou de integrar os órgãos sociais da Reditus e da All2it. A 4 de Julho, a Reditus faz chegar uma carta ao embaixador da Ordem de Malta em Angola, António Mello. Solicita que abandone as instalações da empresa “com a máxima brevidade” e que deixe de usar as mesmas como centro das suas actividades enquanto representante da Ordem de Malta. Mais, exige a devolução da viatura que usa ao serviço da Ordem de Malta, cujo estandarte está hasteado no edifício da Reditus. Tudo é tornado público e reportado a pedido de Pais do Amaral no Jornal de Angola. Contactado pelo P2, o embaixador da organização em Portugal, Miguel Polignac de Barros, declinou comentar os factos pois são entidades independentes. Por seu turno, a Reditus justificou a dureza das suas resoluções e a visibilidade que lhes deu “pela alegada prática de eventuais factos que poderiam prejudicar seriamente” os seus “interesses” em Angola. Com o trabalho da terceira fase do investimento de comunicações militares (sinalizado em Junho de 2013, com o pagamento de 9, 2 milhões) parado, a Reditus continua sem facturar os 53 milhões que faltam dos 113 milhões combinados. Dez dias mais tarde, a 14 de Julho, a empresa sugere às autoridades angolanas que ampliem o âmbito técnico do projecto, ou seja, que se passe da vertente de software para uma de infra-estruturas tecnológicas — construção de centros e de equipamento de comunicações de voz e dados. A 13 de Agosto, em Luanda, nas instalações da Reditus na Rua da Missão estão Fonseca Santos, Gonçalves, Serafim, Fraga e o general Fernando Eduardo, chefe do SISE. Fonseca Santos entrega aos restantes uma polémica carta de três páginas e sinete. Trata-se de “um termo de compromisso” que “confirma” a “assunção de obrigação” de pagar aos comissionistas “1, 2 milhões de euros, 400 mil euros” a cada, pelo trabalho de intermediação. Mas a verba só será libertada depois de concluído o negócio já em novos termos. O documento, na posse do P2, está devidamente carimbado, mas a gestão da Reditus diz que não a vincula e não lhe “reconhece legalidade”, pois necessita das rubricas de dois executivos: Santana Ramos e Hélder Pereira. E não as tem. Tempo depois, em nome da All2it SA, Fonseca Santos dirige-se por escrito ao chefe das secretas angolanas, Fernando Eduardo, a quem expõe as razões “dos atrasos técnicos” na execução da última fase da operação. E imputa as dificuldades ao aparecimento da “All2it Lda, de direito angolano, e denominação social quase idêntica à All2it SA”, que pertence à Reditus, a titular do contrato. Na missiva, declara-se “convicto” de que “António Mello e pessoas estranhas” à Reditus e à All2itSA “colaboraram” em “condutas moral e juridicamente reprováveis”, ao criarem uma empresa-sombra. O P2 também tem esta carta, que a Reditus dá como “válida”. A par desta troca de missivas, na capital angolana circula agora que a Reditus é uma caixa postal. Tanto bruá levanta suspeitas e em Luanda arranca-se com um inquérito oficial para avaliar o grau de execução da segunda fase do fornecimento ao Exército de um sistema de comunicações protegidas. É quando, a 15 de Abril de 2015, desembarca no aeroporto da Portela uma comitiva do Estado angolano. Nome de código: Reditus. E as portas da empresa portuguesa abrem-se em Lisboa aos delegados do Ministério da Defesa de Angola. “Houve, de facto, em 2015, uma auditoria técnica de confirmação ao auto de recepção definitivo de um projecto anterior [que] confirmou integralmente a completa execução e entrega da obra pela All2it, assim como a adequada e completa recepção da obra por parte da Simportex”, reconhece a Reditus, em declarações ao P2. E, por fim, a 11 de Junho de 2015, a Simportex concretiza uma nova encomenda. O projecto está “em fase final de aceitação pelo Ministério da Defesa de Angola”, avança a Reditus. Uma década passou ao longo da qual a Simportex pagou, em duas tranches, cerca de 60 milhões à All2it e à Tecnidata - isto antes de entrarem no universo da Reditus. Esta, por enquanto, só encaixou 9, 2 milhões. Resta saber se com a saída de José Eduardo dos Santos da Presidência da República os compromissos da Simportex vão prevalecer. A 7 de Abril de 2016, depois de Bennati e Mello dirimirem argumentos em tribunal, o juiz absolve-os de litigância de má-fé. Mas condena o gestor a “pagar” ao italiano os 2, 8 milhões de euros (incluindo juros) que este exige. Esperança Pina recorre e apresenta como caução os 6% que o seu cliente possui na Reditus. Mas as acções só valem agora 500 mil euros e estão penhoradas ao Novo Banco, que reclama seis milhões. “Todos dizem que o António é o mau da fita, mas do que sei só ele está em má situação: sem fundos e acumula dívidas”, destacou ao P2 fonte próxima da sua defesa: “E meteu muito dinheiro na Reditus. ”A 9 de Agosto, a pedido de Bennati os bens do adversário são penhorados e Esperança Pina prepara-se para recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça. Os próximos tempos vão dizer o que pensam os juízes. Esta é mais uma história em que as versões dos acontecimentos nem sempre coincidem completamente. Mas os documentos, os depoimentos, as gravações contam-nos o que se passou. Treze anos depois de se terem juntado para entrar no negócio militar de telecomunicações encriptadas, cada um dos protagonistas seguiu um percurso diferente. E todos se declaram articulados contra António Mello. E, de tudo o que é dito sobre o temperamento deste gestor, o que menos gera controvérsia é o optimismo e a resiliência. Podem ser, simultaneamente, virtudes e defeitos, porque nem sempre o caminho é para a frente. No mínimo, conclui-se que houve ausência de farol e pouca clarividência. Hoje, todos se mostram exaustos com as rivalidades, as traições e as ambições extremas. E constrangidos com os incidentes que protagonizaram. Episódios de intriga política e de falta de grandeza. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Angola está no centro da crónica dos factos. E percebe-se porquê. José Eduardo dos Santos conservou intacto e coeso um enorme território, mas vai sair da presidência sem cumprir o desígnio de estadista: o desenvolvimento. Deixou-se aprisionar por uma corte de adeptos e não aproveitou os anos de forte crescimento para dotar o país de instituições abertas e transparentes. Em Angola, chovem casos de corrupção, de promiscuidade nos negócios (alguns envolvendo empresas portuguesas), de despotismo — casos que têm sido amplamente divulgados pela comunicação social. E, como esta investigação ajuda a provar, é uma economia montada no tráfico de influências remunerado. “Quando chego a Angola, sei que não tenho protecção diplomática. Não arrisco. E há portugueses que confundem a informalidade com o não cumprimento das regras sociais e culturais”, defende Luís Todo Bom. E ilustra: “No exercício das funções, os ministros são formais, andam de fato escuro e gravata, mas há empresários portugueses que se dirigem a eles em mangas de camisa. ”As relações entre Portugal e Angola não escapam a crises políticas. É o que o embaixador António Monteiro, presidente não executivo do BCP, designa por “elementos de tensão”. E prefere olhar para a big picture: “Impressiona-me positivamente a influência que Angola tem em Portugal na música, nas artes, na cultura. ” Conclui: “Portugal e Angola sempre atravessaram momentos difíceis e souberam preservar uma relação única. É um entrosamento de família. ” Às vezes, também é assim que funciona o xadrez financeiro e diplomático.
REFERÊNCIAS: