A política é a casa deles
Os ideais revolucionários correm-lhes nas veias. Simbolizam a passagem de gerações do 25 de Abril. São a família Mortágua: Camilo, Mariana, Joana (...)

A política é a casa deles
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DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os ideais revolucionários correm-lhes nas veias. Simbolizam a passagem de gerações do 25 de Abril. São a família Mortágua: Camilo, Mariana, Joana
TEXTO: A política e os ideais revolucionários correm-lhes nas ?veias. Simbolizam a passagem de gerações do 25 de Abril. São a família Mortágua: Camilo, Mariana, JoanaNão há uma sem duas nem duas sem três e se um Mortágua, de nome próprio Camilo, marcou a história portuguesa antes e depois do 25 de Abril, as suas filhas, as gémeas Mariana e Joana, marcam a actualidade política. Com 28 anos, Mariana Mortágua tornou-se uma das figuras mais mediatizadas da política nacional. Foi destacada pela agência noticiosa Bloomberg como “uma estrela portuguesa” devido ao protagonismo que, com a sua preparação técnica e teórica e o seu desassombro, alcançou no inquérito parlamentar à queda do império dos Espírito Santo e é olhada como a mais-valia cujo prestígio público fez descolar o Bloco de Esquerda na Madeira. Joana é uma das principais figuras da direcção do BE, integra a sua comissão permanente, o organismo da comissão política que gere dia a dia o partido e os bastidores do grupo parlamentar. O apelido Mortágua distingue-as. Não só porque não é um apelido comum, mas porque em meios mais politizados a pergunta é constante. São o quê a Camilo Mortágua, o antifascista exilado no Brasil e em França, fundador da LUAR e que participou no Assalto ao Santa Maria, no desvio de um avião da TAP, no assalto à dependência do Banco de Portugal na Figueira da Foz e dirigiu a ocupação da herdade Torre Bela? “Ser filha de Camilo Mortágua é giro. O meu pai, independentemente do que é a sua história, é uma pessoa gira”, garante Joana, admitindo que se fosse uma pessoa de direita “teria sentido o peso do nome”, já que teria de confrontar as suas escolhas com a história do pai. Quanto aos que reagem negativamente ao apelido, Joana apenas diz: “Sempre fui imune a elas. ” E acrescenta: “Se eu não compreendesse as razões que o levaram a fazer o que fez, talvez tivesse de justificar, mas as razões políticas explicam. ” E remata afirmando que “é um orgulho, um exemplo e uma inspiração” ser filha de Camilo Mortágua. Também Mariana lida bem com o apelido. “Nunca senti peso pelo nome, gosto muito do meu nome e tenho orgulho em usá-lo, é o nome do meu pai, sinto-me tão confortável, mesmo quando olham de lado, honestamente não me incomoda”, confessa, sorrindo. “A Joana está sempre a dizer que há um Mortágua pide e um revolucionário, ainda bem que somos filhas do revolucionário. ”Aos 81 anos, Camilo Mortágua é um dos nomes ligados ao combate antifascista e depois do 25 de Abril ao PREC (Processo Revolucionário em Curso). E não hesita perante a pergunta: Valeu a pena? “Sim, isso não se discute. É evidente que valeu a pena, com erros e defeitos. A evolução humana faz-se de pessoas a ir em frente, mesmo quando não é seguro o passo que se dá. ” E sustenta que é preciso capacidade de risco, pois “é natural nos homens e até nos animais que se movimentem, a inércia é para os materiais, os seres vivos têm de se mexer”. Daí que defenda: “Mesmo acreditando que não se muda nada, há que tentar. ”Não deixa de admitir que, “na fractura que foi o 25 de Abril, muito cedo e muito rapidamente, houve demasiada gente a querer tirar proveito da consciência e dos hábitos dos portugueses”, quando “para desconstruir o que havia e construir outra sociedade não podia ser de um momento para o outro”. Mesmo assim, garante: “Há uma coisa de que me orgulho muito, não é do que fiz, mas é sobretudo da maneira como foi feito e da maneira como isso pode servir para o futuro. O que eu me orgulho é de com a idade que tenho nunca me ter corrompido. Disso eu orgulho-me. ”A pessoa sabe que não pode falar em cavar, se não plantar a semente, não nasce nada. Na cultura rural, a palavra exige o acto, enquanto a cultura urbana é mais dada ao abstractoE o que Camilo Mortágua fez não é pouco, ele é um pioneiro nos métodos de acção e luta política. Integrou o assalto ao paquete Santa Maria, liderado pelo capitão Henrique Galvão, que conheceu em Caracas. Aos 27 anos, Camilo Mortágua integrava a Junta Patriótica Portuguesa e com Galvão funda a DRIL (Direcção Revolucionária Ibérica de Libertação). Em 1959, começaram a preparar o assalto ao Santa Maria. A “Operação Dulcineia” foi o primeiro acto de pirataria moderna. O paquete tinha 350 tripulantes, 600 passageiros, foi tomado por 24 homens, que o controlaram entre 22 de Janeiro e 3 de Fevereiro de 1961, quando desembarcam no Recife. Viverá no Brasil até 1966, ano em que vai para Paris, onde um ano depois fundará a LUAR (Liga de Unidade e Acção Revolucionária), com Palma Inácio e Emídio Guerreiro. Mas logo em Novembro de 1961, mal chegara ao Brasil, vai a Marrocos onde a 10 de Novembro, com Palma Inácio, desvia o Super Constellation da TAP, do voo Casablanca-Lisboa, naquilo que é o primeiro desvio de um avião comercial de que há registo internacionalmente e que ficou para a história como a “Operação Vagô”. Sobrevoam parte do país e lançam 100 mil panfletos sobre Lisboa, Barreiro, Setúbal, Beja e Faro. Mas o pioneirismo na inovação das formas de luta política não ficou por aí. Já em Paris, Camilo Mortágua, António Barracosa e Luís Benvindo entram clandestinamente em Portugal, em Maio de 1967, e fazem o que foi o primeiro assalto a um banco por razões políticas. O objectivo era financiar a LUAR e o assalto será reivindicado por Palma Inácio e Emídio Guerreiro em Paris. Escolheram a agência do Banco de Portugal na Figueira da Foz, pois assim não roubavam o dinheiro do povo mas o do Estado fascista. Só que as notas roubadas ainda não tinham entrado em circulação e por isso a sua numeração era conhecida do Estado e o alerta que as inutilizou foi lançado. Não lhes serviu de nada. Camilo Mortágua conta que ainda chegaram com muitas a Paris, mas deixaram outras pelo caminho. Sobre a fuga que fez parcialmente a pé transportando os sacos de notas, ironiza: “Não há muita gente que tenha caído tantas vezes por terra com o peso do dinheiro sendo pobre. ”Já depois da revolução, a 23 de Abril de 1975, a população da Azambuja decide ocupar a Herdade Torre Bela, no Ribatejo, entre Alcoentre e Rio Maior, que era a maior herdade murada do país e pertencia ao Duque de Lafões, chefe da família Palmela. Os camponeses optaram por não pedir apoio ao Partido Comunista, como era hábito na época, e optaram por pedi-lo à LUAR. Assim Camilo Mortágua foi destacado para dirigir a ocupação que durou até 1978 e ficou registada pelo documentário de Thomas Harlan, editado em 1976. Na Torre Bela, Camilo Mortágua conhece Maria Inês Rodrigues, uma jovem do MRPP, 20 anos mais nova. Em 1978 vêm juntos para Lisboa e depois para Moçambique. “Fui para Moçambique em finais de 1978, passei antes pela cooperativa artística Era Nova. ” É então que Maria Inês Rodrigues apresenta o companheiro à família, gente de esquerda, politizada e com pergaminhos de oposição e próxima do PS (Maria Inês é prima direita da eurodeputada socialista Maria João Rodrigues). É rindo que Joana conta: “Adorava ter assistido ao momento em que a minha mãe apresenta o meu pai à minha avó, vindos da Torre Bela e sendo ele quem é. ”Após alguns anos como cooperantes do Ministério da Agricultura moçambicano, Camilo e Maria Inês regressam a Portugal em 1983. Estacionam “um ano e tal em Odivelas, à procura de espaço. Quem vem de África precisa de espaço”, lembra Camilo. Acabam por descobrir o sítio idealizado no Alvito (em Beja), uma pequena propriedade onde vivem há três décadas. “Começaram por viver num casão com porcos que tinha um tapume a dividir, de um lado estavam os porcos, do outro eles”, explica Joana. É no Alvito que as gémeas nascem a 24 de Julho de 1986 e lá são educadas. Camilo explica que as filhas não tiveram uma “educação exigente”, mas “houve um discurso, por volta dos seis ou sete anos”, que assentou nos seguintes princípios: “Nada é proibido, peçam informação de tudo o que quiserem que expliquemos. Não venham perguntar se podem ou não podem, a liberdade é total e a responsabilidade é total. ” E explica que nunca foram rebeldes, pois “a rebeldia é sempre uma contracção” e no caso da educação de Mariana e Joana “não houve pressão nenhuma”. Em todo o caso, “se há repressão, deve haver rebeldia”. O pai afirma ainda que elas “fizeram tudo o que quiseram dentro dos limites”. Mas reconhece que ele e Maria Inês fizeram escolhas. “Nós tivemos as opções de enquadramento, como querer educá-las aqui, andarem pela aldeia, sem nos preocuparmos. Tiveram o seu espaço para fazer as suas festas nocturnas, tiveram uma boîte aqui em casa”, relata Camilo Mortágua, que confessa: “Tivemos os medos dos pais, mas nunca foram justificados. ”A Joana está sempre a dizer que há um Mortágua pide e um revolucionário, ainda bem que somos filhas do revolucionárioTambém as gémeas falam da sua educação sem sobressaltos. “A minha mãe trabalhava em Beja e andámos num infantário lá, depois estudámos no Alvito”, lembra Mariana. Quando a escola do Alvito acabou, separaram-se. “No 10. º ano fui para Beja, queria a área Económica e Social. A Joana foi para Viana do Alentejo estudar Humanidades. A partir daí andámos sempre em escolas e universidades diferentes”, conta Mariana. Joana explica: “Chegámos ao 9. º ano em Alvito, não havia secundário. Em Viana, só havia humanidades, era mais pequeno, mais confortável. São 10-12 quilómetros, havia transporte da câmara e não era por automotora, como para Beja. ”A escola de Viana do Alentejo era uma “realidade diferente”, define Joana. “No 10. º ano, éramos 14 e no 12. º, sete ou oito, os alunos foram saindo. O ensino com turmas pequenas beneficia as pessoas se houver escolhas, não quando se deve a pessoas que saíram por fraco aproveitamento ou necessidade económica ou poucas expectativas — isso baixa a qualidade da turma, pois os alunos estão menos motivados, não puxam pelas aulas. O Alentejo está desertificado. ”Quando chegam à universidade, vivem em Lisboa, juntas “numa casa pequena no Bairro do Rêgo, que a minha mãe comprou”, prossegue Mariana, que fez Economia no ISCTE e estudou um ano em Londres, onde começou um doutoramento na School of Oriental and African Studies (SOAS) da Universidade de Londres, que largou para vir ser deputada, em 2013. Joana tirou Relações Internacionais no ISCSP e é nesta escola que logo de início, em 2004, adere ao Bloco de Esquerda. Já Mariana aderirá mais tarde, em 2009. Até lá permanece ligada à associação Acção Jovem para a Justiça e Paz, presidida por Teresa Cunha, uma associação feminista de Coimbra, que ambas integram desde cedo. “A AJP tinha ido ao Alvito fazer um workshop sobre direitos humanos, o [oposicionista à ditadura militar brasileira] Alípio de Freitas fez a ligação e nós entramos”, lembra Joana. “Gostarmos de política tem que ver com a nossa casa, com os pais e os amigos dos pais. O ambiente sempre foi muito politizado, muito activista. A lógica de partidos só conheci mais tarde”, corrobora Mariana, que confirma que “a Joana interessou-se primeiro por partidos” e cedo foi dirigente do BE, assumindo: “Ela entrou para o BE muito nova, sempre a vi com muito orgulho e aprendi muito com ela. ”A política está assim nas veias das gémeas Mortágua, que cresceram a ter discussões políticas com os pais. “Muitas vezes, sou eu e a minha irmã contra o meu pai, e a minha mãe tenta moderar”, garante Mariana, que esclarece: “A minha mãe é tão politizada quanto nós ou o meu pai. ” A importância dos pais naquilo que hoje são é determinante também para Joana: “Fomos educadas por duas pessoas com qualidades extraordinárias e duas pessoas inteligentes. Isso cria um ambiente propício à curiosidade, ao interesse”, sublinha, concretizando: “A capacidade de argumentação, aprendemo-la, tanto pelo meu pai, como pela minha mãe, à mesa do jantar, onde era proibido ver televisão e onde tínhamos de jantar sempre juntos. À mesa, o assunto, muitas vezes, era política. Eles valorizavam as nossas opiniões e faziam-nos ter opinião, estimulavam. O meu pai sempre disse que pensássemos pela nossa cabeça. ”A autonomia de ambas é uma realidade. Tanto que não se assumem como as gémeas tradicionais. “Somos muito protectoras uma da outra, mas isso não nos impediu de ter percursos diferentes, sempre próximas, mas não somos o estereótipo da relação das gémeas”, confessa Mariana, sem deixar de fazer questão de garantir: “Nasci primeiro, nasci dois minutos antes. Acho-me a mais velha porque a idade é contada a partir de quando nascemos e não com os nove meses de gestação. ” E Joana concorda. “Sempre recusámos a tese que diz que o tempo nos gémeos é ao contrário, que assenta numa suposição de que quem sai depois foi concebida primeiro. Sempre achámos isso um estereótipo. Mas a diferença é mínima, nascemos de cesariana. ” Mas ambas não negam a semelhança física, ainda que Mariana seja maior, mais alta e mais encorpada. E Joana afirma: “O mais parecido é a voz, já consegui enganar a minha mãe uma vez ao telefone. ”A não obediência ao padrão tradicional dos gémeos é também defendida por Joana. “Nunca fomos inseparáveis, melosas, nada do padrão expectável. Demo-nos como quaisquer irmãos, não há irmãos que não briguem, há sempre potencial de discussão. ” E garante que “não há diferença em ser irmã da Mariana hoje e há 25 anos quando tínhamos três anos e brincávamos no parque”. E a ligação forte entre ambas mantém-se, embora “férias em comum seja difícil, pois é difícil hoje conciliar agendas”, explica Mariana. “Mas fazemos almoços e estamos sempre a ir ao Alvito. E a levar pessoas lá a casa. ”Ninguém de uma geração que aspira ao socialismo passaria ao lado de uma experiência daquelas [Torre Bela]. Que revolucionário não sonha viver a revolução?Porém, a semelhança entre as duas dificulta a terceiros saber qual é qual. “Há uma coisa a que já me habituei, que é ser cumprimentada na rua por pessoas que não conheço. Quanto mais efusivas são no cumprimento, mais atrapalhadas ficam quando percebem que não sou a Mariana. Mas quem tem gémeos habitua-se”, diz Joana, para quem a visibilidade pública da irmã, que lhe advém de ser deputada e do desempenho que teve no inquérito parlamentar ao BES, é normal. “As pessoas têm os seus percursos e podem encarar a visibilidade do seu trabalho como consequência ou como objectivo”, defende, acrescentando: “Para a Mariana e para mim, é uma consequência. Quando o trabalho é o interesse público, a visibilidade vem. Quando se pertence a órgãos do partido, isso dá menos exposição pública. São momentos no percurso de quem tem esta vida. ”A simplicidade com que as gémeas Mortágua falam sobre si é a mesma com que o pai fala delas. “Para mim, elas são normais, a única coisa que eu sei é que elas trabalham e penso que gostam de fazer aquilo que fazem”, responde Camilo Mortágua quando confrontado com a capacidade de intervenção política das filhas. E faz questão de estabelecer, em pinceladas largas, as características que, para ele, diferenciam as duas gémeas Mortágua. “Elas são diferentes. Em linguagem antiga, eu diria que a Mariana é marrona, agarra-se aos livros, trabalha e leva isso muito a sério. Gosta dos números e da matemática”, explica, contrapondo: “A Joana gosta muito de trabalhar com as ideias e é mais intuitiva, mais espontânea, menos estruturada. Se calhar, teria reagido mais cedo antes da ditadura, teria aceitado menos a falta de liberdade. ”Protector, não deixa de manifestar a sua preocupação pelo facto de que “haja um grande desequilíbrio entre uma e outra”, pelo que defende que “é preciso estar com atenção, cuidado, não endeusar uma e vitimizar a outra. Elas são diferentes, cada uma tem os seus méritos”. Mas garante que a visibilidade das filhas é merecida: “O facto de a Mariana ser deputada não é só por si razão, nem teria, de ter visibilidade. Mas naquela área ela trabalha muito. ”Nega que elas sejam uma excepção na geração dos filhos cujos pais fizeram o 25 de Abril. Camilo Mortágua lança o desafio: “Do ponto de vista colectivo, do ponto de vista nacional, de projecto de sociedade, valia a pena saber o que aconteceu aos filhos dos homens e das mulheres que se bateram contra o fascismo. Esse é o único elo que temos entre o passado e o futuro, entre uma geração sem liberdade e uma geração que aprendeu a usá-la. ” E conclui: “Existem elas, mas não há razão nenhuma para serem só elas. Há milhares de jovens neste país, filhos de gente com história, como elas. ”Reconhece que a qualidade de Mariana e Joana tem que ver com a educação que receberam. “Eu via, reagia — e reajo, leio jornais, falava com a mãe, elas assistiam às reacções, e pouco a pouco passaram a participar da discussão. É evidente que o ambiente em que se vive tem, com certeza, influência. Depois há os amigos que vêm cá a casa, e, se havia um evento ou uma conferência, elas iam connosco. Por vezes as coisas não encaixavam bem, mas ia ficando alguma coisa. Foi um processo natural. ”Insiste na ideia de que há uma passagem geracional, uma “transição de uma sociedade para outra” e é preciso perceber “qual é o impacto disso e como é que isso se processa”. Até porque, “durante muito tempo, houve a ideia de que a juventude era uma geração rasca que estava perdida. Ainda hoje dizem que esta sociedade está parada, que não intervém. Tudo isso são clichés”. Sobre a possibilidade de as suas filhas poderem ter sido de direita, diz: “Bem, é complexo. Eu não vejo as minhas filhas serem capazes de cometer injustiças. Agora, situá-las em direita e esquerda é outra história. Eu não vou ao ponto de julgar que não há pessoas justas em todos [os espectros partidários]. Há gente naturalmente de esquerda em partidos de direita. ”Camilo Mortágua tem a sua leitura do que é ser de esquerda e aí o conceito de justiça social é determinante. “É do nosso tempo um discurso político do Governo que diz que está muito preocupado com o desemprego, mas só diz, não age. ” Há uma “incoerência entre o discurso e a acção”. Ora, o facto é que, frisa, as suas filhas “não enjeitam a acção”. E aí admite que pode haver influência da educação que tiveram e do facto de terem sido criadas no Alvito. “Tem mais que ver com a cultura de matriz rural. A pessoa sabe que não pode falar em cavar, se não plantar a semente, não nasce nada. Na cultura rural, a palavra exige o acto, enquanto a cultura urbana é mais dada ao abstracto. Isso não é evidente. ”Já sobre a visibilidade mediática das filhas, reconhece que sofre “pouco, mas a mãe sofre muito, está sempre em cuidado com elas”. Por ele, quando as vê na televisão, sente uma “enorme satisfação”. Mas insiste no desprendimento, já que diz que também sente satisfação ao “ouvir outras pessoas” e remata: “Dá-me satisfação ouvi-las não tanto por serem minhas filhas, mas por serem competentes. ”Discreto e racional, Camilo Mortágua continua: “Esta história do orgulho e da satisfação entre pais e filhos é assim. Cada um tem a sua maneira de ser e eu não sou muito de exteriorizar sentimentos, o que passa cá por dentro não necessita necessariamente de ser exteriorizado. ” E, embora não siga a par e passo as aparições televisivas das filhas, afirma: “Nesse aspecto, muito da minha relação com elas é idêntica com a que tive com um homem, que era o Zeca Afonso, quando ele aparecia na televisão. E pode classificar-se de amor pela personagem que ele era. Mas eu entendo que é preciso ser circunspecto, ser discreto, que esse orgulho que a gente sente tem de ser íntimo, mais do que exteriorizado. ”Por seu lado, as filhas não sentem necessidade nenhuma de serem comedidas nas palavras com que manifestam o que sentem por ser filhas de Camilo Mortágua. Perante a pergunta sobre se o pai é, para ela, um herói, Joana abre um sorriso e solta: “Sim!” Mariana destaca que o pai “teve uma vida muito irregular, viveu em vários países, viveu grandes momentos, eram rebeldes românticos, tinham grande generosidade”. Considera que, “em todos os processos, há uma certa dose de ingenuidade que seria impossível em grupos mais organizados, os meios eram pouco comuns, pelo grau de improviso”. Os meios pacíficos e o facto de as acções revolucionárias em que esteve envolvido nunca terem produzido vítimas é destacado por Mariana, que frisa que “o sequestro de um navio não é terrorismo”. E justifica: “O meu pai sempre disse que eram acções para chamar a atenção do estrangeiro sobre a situação de Portugal, mas com grande dose de humanismo. ” Aponta exemplos: “No assalto ao Santa Maria, à entrada houve troca de tiros e houve feridos, eles pararam num porto para deixar os feridos. Não espalharam o terror. Qual é o terrorista que sequestra um barco e leva três dias a limpá-lo para o entregar?”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Quanto à ocupação da herdade Torre Bela, Mariana é lapidar: “Tenho o maior orgulho pelo que o meu pai fez na reforma agrária. ” Lembra que a mãe conta que “era difícil gerir Torre Bela porque as pessoas eram alcoólicas, antes eram pagas em vinho, não resistiam às ordens, eram malnutridas”. E defende que é ouvindo falar sobre esses momentos que “uma pessoa percebe como o país era há 40 anos, a nível da pobreza, da desigualdade”, pelo que “é extraordinário que as pessoas se tenham conseguido organizar em torno de um projecto e conseguido algo para si”. E conclui: “Eu, como qualquer pessoa que não viveu o 25 de Abril nem o PREC, olho para aquela experiência com inveja. ”Também Joana tem na ocupação da Torre Bela uma referência. “Independentemente da participação do meu pai e da minha mãe na ocupação da Torre Bela, a Reforma Agrária faz parte do imaginário de uma geração que é a minha e que não viveu aquilo e de facto não sabe o que aconteceu. Além da importância histórica, aqueles momentos foram protagonizados por pessoas, tiveram avanços e recuos, houve dificuldades. ”Contudo, as adversidades do quotidiano de quem viveu a ocupação da Torre Bela, não alteram a simbologia daquela ocupação e Joana é peremptória a salientá-la. “Há uma geração que vive o sonho de poder viver um sonho daqueles. Um momento em que deixamos de ser uns jovens loucos e passamos a fazer parte de uma maioria. Claro que ninguém de uma geração que aspira ao socialismo, que se define como de esquerda, não desejaria e passaria ao lado de uma experiência daquelas. É uma escola. ” E pergunta: “Que revolucionário não sonha viver a revolução?
REFERÊNCIAS:
Partidos PS BE
A mulher mais interessante de quem nunca ouvimos falar
Chama-se Allee Willis, escreveu vários hits, ganhou Grammy, foi pioneira da Internet, dá festas para a society californiana e está a rodar um filme sobre Detroit, a sua cidade natal, que já tem 55 mil horas. Aos 67 anos a sua criatividade parece imparável. (...)

A mulher mais interessante de quem nunca ouvimos falar
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Chama-se Allee Willis, escreveu vários hits, ganhou Grammy, foi pioneira da Internet, dá festas para a society californiana e está a rodar um filme sobre Detroit, a sua cidade natal, que já tem 55 mil horas. Aos 67 anos a sua criatividade parece imparável.
TEXTO: Oh, meu Deeeus”, lança Allee Willis. Tem à sua frente uma visita que nunca tinha ouvido falar de Bubbles, o seu alter ego — uma artista conhecida pelo seu cabelo despenteado, por usar uma mistura de cores enjoativas e pelas suas tiradas quase ofensivas. Lily Tomlin, uma coleccionadora dedicada, chegou a dizer que ela era “a maior artista do nosso tempo ou de qualquer outro”. E Bubbles é só uma parte. A casa Willis é conhecida como o Museu do Kitsch, um palácio cor-de-rosa repleto de pentes africanos por estrear, puzzles do Barco do Amor e televisões da era espacial. No seu centro está uma compositora de 67 anos, vencedora de um Grammy, pioneira da Internet e organizadora de festas, que nos vem dar as boas-vindas à porta, com o seu cabelo encaracolado — comprido de um lado e curtinho do outro — por baixo de um boné vermelho. Actualmente, Willis está a engordar o currículo. Tem trabalhado numa música, vídeo e filme inspirados na sua cidade natal, Detroit. Chama-se The D e o processo criativo que rodeia a música tem estado livre de intermediários. Não houve sessões confortáveis em nenhum dos muitos estúdios de Los Angeles. Em vez disso, levou a sua equipa para a estrada e registou cerca de cinco mil — não é força de expressão — faixas. Desde pessoas normais a cantar em pizzarias e campos desportivos de liceu a celebridades com uma ligação à cidade, incluindo [os músicos] Maejor e Ray Parker Jr. , a juíza do Supremo Mary Wilson e [a cantora e política] Martha Reevez. Claro que é um castigo fazer as misturas. “Foi impossível ouvir as cinco mil gravações de uma só vez”, diz Willis. “Não há nenhum programa que nos permita fazer isso. ”Alguma vez pensou em gravar menos?“Olhe à sua volta”, responde. “O que é que acha? Nunca nada é de mais. ”Aí ela marca um ponto. No Museu do Kitsch, a sua casa desde 1980, o sistema habitual parece ser “mais é mais”. Mesmo que Willis se queixe do volume de gravações que ela e a equipa têm de analisar, continua a acrescentar coisas ao projecto. Dina Duarte, que costumava fazer as limpezas, é já uma antiga assistente. Tem uma Sony Handycam na mão, sempre a filmar tudo. E isso inclui um canalizador a ser chamado para um serviço ou um tratador de árvores a subir às palmeiras. Recentemente, Willis filmou os acontecimentos que rodearam a sua cirurgia para a substituição da anca — pelo menos o que conseguiu. “Estamos aqui por causa da tua saúde”, disse-lhe a sua companheira, Prudence Fenton, acabando com as filmagens do dia. “Não sou a tua cameraman. ”A sua energia infindável, o alargado círculo de amigos e a personalidade artística não evitam que haja também um toque de melancolia quando tenta explicar porque é tão obcecada em juntar tanta coisa, o tempo todo. Refere que no seu testamento exigiu que a casa fosse preservada exactamente como está actualmente, incluindo o recheio das gavetas e as taças de rebuçados que há em cada divisão. “Um dia, alguém vai dar de caras com esta tralha toda e dizer ‘oh, esta miúda tinha cabeça”, afirma. “Talvez as pessoas fiquem finalmente a saber quem eu sou. ”Tem alguma razão. Allee Willis não é um nome que toda a gente conheça. Mas o seu trabalho sim. Basta colocar o seu nome num motor de pesquisa, entrar no seu site na Internet ou ir à base de dados BMI. Como compositora de canções, tem alguns hits, desde Boogie Wonderland cantado pelos Earth, Wind & Fire, a Neutron Dance, das Pointer Sisters, ao seu último êxito, I’ll Be There For You, conhecida como a música da série Friends. Também dirigiu os seus próprios vídeos, construiu cenários para Just Say Julie, um programa da MTV, tinha uma coluna na revista Details, foi co-autora da adaptação para musical de Cor Púrpura, que esteve na Broadway entre 2005 e 2008 e que será reposto ainda este ano. E ainda há Willisville. Na década de 1990, Willis passou anos a tentar construir uma comunidade online que juntasse redes sociais e lojas online, ainda antes de aparecer o Facebook e o eBay. O chefe executivo do projecto foi Mark Cuban, empresário do entretenimento e futuro proprietário da equipa de basquetebol Dallas Mavericks. Cuban diz por email que a “criatividade [de Willis] vai além de qualquer coisa que eu alguma vez vi”. E agora The D. É a cidade onde ela cresceu. Gregory Beard, dono de um restaurante de Detroit, o chef Greg, ficou a conhecê-la depois de ela lá ter ido várias vezes. Vê a canção como uma espécie de grito de união. “Queremos que todos se juntem e que a cantem, como o We Are the World, diz. ‘We are ‘The D’. ”Claro que um grito de união precisa de um vídeo a acompanhar. E onde há vídeo há mais vídeo. Jason Ryan Yamas, um produtor de cinema independente de 29 anos, aceitou ser co-director de um documentário intitulado Allee Willis Loves Detroit. Espera ter uma montagem até ao final do ano. Tomlin, amigo de longa data e também nascido em Detroit, não fica surpreendido por Willis ter mergulhado tão fundo neste projecto. É assim que ela trabalha. Para além disso, acha que há uma relação natural entre a amiga e Detroit, uma cidade que gerou tanta criatividade, entrou em colapso e que agora está a tentar reanimar-se. “A mentalidade é não desistir, uma espécie de ficar por ali o tempo que for preciso”, diz Tomlin. “Ela encontrou um sítio onde consegue regenerar-se, onde consegue ter quase tudo como quer. Já sabíamos que Detroit era uma grande cidade, como era real e determinada, e claro que vai voltar a ser. ”Willis cresceu em Detroit, na Sorrento Sreet, como a mais nova de três irmãos. A mãe, Rose, dava aulas ao primeiro ano, fazia umas almôndegas especiais chamadas Satélites (feitas com arroz) e deixava a filha pintar com os lápis de cor. O pai, “Big Nate”, dirigia uma sucata, chamava-a Cookie Dook e adorava dançar com ela quando chegava do trabalho. Willis teve sempre uma relação com a música. Marlen Frost lembra-se de pôr The Maharajah of Magador, o singular hit de Vaughn Monroe, quando a irmã não tinha ainda dois anos. “Há uma parte em que há uma voz em falsetto e ela punha-se à frente do gira-discos a cantá-la”, diz Frost, sete anos mais velha. “Aquela vozinha aguda fininha. Eu tinha de pôr o disco umas 20 vezes por dia. ”Tudo mudou para Willis no Verão de 1964, mesmo antes do último ano de liceu. Rose ficou doente e foi para o hospital. Morreu uns dias depois com um problema cardíaco não diagnosticado. Algumas semanas mais tarde, “Big Nate” enamorou-se da mãe de uma das amigas de Allee. Basicamente deixou de aparecer em casa, até trazer a futura madrasta. Depois de Nate voltar a casar, ele e a nova mulher deitaram fora todas as fotografias e objectos da família. Willis acha que o desejo da madrasta de varrer da memória a Sorreno Street foi o que originou o seu desejo compulsivo de documentar a sua vida. “Tenho três coisas da minha infância”, diz. “Tenho um boneco Ben Casey [personagem de uma série televisiva famosa sobre médicos da década de 1960]. O meu tem um pequeno buraco no coração porque eu queria sair com uma pessoa e ele não quis sair comigo e por isso eu espetei um alfinete no boneco. Tenho a aparelhagem que estava na sala de estar. E a minha máquina de escrever, que comprei quando tinha 13 anos. Uma Royal vermelha e branca. ”Quando a família se desmoronou, Willis não se retraiu. Na Universidade do Wisconsin, onde se licenciou em Jornalismo, com uma especialização em publicidade, em 1969, os amigos recordam-na como alguém que era o centro das atenções. Foi para Nova Iorque, entrando na indústria musical como copywriter. Começou a coleccionar e a decorar o seu apartamento com mobília abandonada. “Ela sabia os horários e as rotas das carrinhas que recolhiam coisas pesadas”, recorda a amiga Connie Zalk. “Saía à meia-noite e encontrava aquelas mobílias fenomenais. ”Willis conseguiu um contrato com uma discográfica em Nova Iorque e no ano épico de 1974 estreou-se com o seu Childstar, um álbum de cantautor que se integrava no estilo de Laura Nyro, James Taylor e Carole King. Mas impôs-se e pouco tempo depois começou a escrever para outras pessoas. Muito. Na BMI. com existem 599 títulos registados com o seu nome. Venceu um Grammy pelo trabalho na banda sonora de Beverly Hills Cop, teve sucesso com o tema de Friends em 1994 e tem o seu nome em sete das nove canções do álbum I Am, de 1979, dos Earth, Wind & Fire, incluindo Boogie Wonderland, que entrou para o top 10. “A noite entra muito devagar nos corações dos homens que precisam de mais do que aquilo que conseguem ter” — o vocalista dos Earth, Wind & Fire, Philip Bailey, cantarola uma parte do hit ao telefone quando se pergunta sobre Willis. “A coisa fantástica da Allee é que ela escreve para o artista especificamente. Não faz uma coisa que serve para toda a gente. ”Num dia de semana recente, esse mundo é tradicionalmente louco. Pega num iPhone para dizer a um dos seus colaboradores que vá buscar outro disco rígido. Está a trabalhar com o colaborador musical Andrae Alexander, com uma parede de discos de ouro e platina por trás, numa das partes de The D. Vai ter com outro assistente ao outro lado da sala, que está a editar o vídeo. Também vasculha os arquivos para mostrar clips de James Brown, dos anos 1980, dela a cantar um tributo improvisado ao seu cão, Orbit, e de Tomlin a louvar Bubbles numa inauguração numa galeria de arte. Claro que, enquanto ela percorre o vídeo, Duarte vai filmando o momento, com a sua Handycam. Quanto tempo de filmagens já tem para o documentário de Detroit?55 mil horas, insiste. Quanto dinheiro já gastou no projecto?Mais de 600 mil dólares (511 mil euros). “Agora estamos também a tentar arranjar dinheiro”, diz Willis. “A mamã ficou sem dinheiro. ”A frase traz implícita uma crítica de Fenton, a sua parceira há quase 22 anos. (Claro que se conheceram numa festa de Reubens. ) “Antes era, ‘vou perder a minha casa’”, ri Fenton. “Bom, já acabou de pagar a casa. Acho que todos os amigos ouviram a conversa sobre como ela estava falida. Ela não pode estar falida. ”Fenton faz uma pausa. Depois perguntamos-lhe porque é que adora estar com Willis, ainda que a sua relação não seja convencional (não vivem juntas, só para dar um exemplo). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Tanta alma e coração”, responde. “Ela consegue partilhar as coisas mais pequeninas. A beleza de um tipo de verde ou um pequeno terreno baldio, o que quer que esteja à sua frente. Ela está tão tão presente no momento. Nada mais importa. ”
REFERÊNCIAS:
Beatriz Batarda e Margarida Cardoso: Falar de um filme para falar da vida
Yvone Kane foi rodado em 2012 e tem estreia marcada para 26 de Fevereiro. É o pretexto para falar com uma actriz e uma realizadora que têm uma relação de amizade e um entendimento profissional precioso. (...)

Beatriz Batarda e Margarida Cardoso: Falar de um filme para falar da vida
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Yvone Kane foi rodado em 2012 e tem estreia marcada para 26 de Fevereiro. É o pretexto para falar com uma actriz e uma realizadora que têm uma relação de amizade e um entendimento profissional precioso.
TEXTO: Um filme a estrear é o pretexto para falar com uma actriz e uma realizadora que têm uma relação de amizade e um entendimento profissional precioso. A história de Beatriz Batarda e Margarida Cardoso começa em 1995, ou por aí, quando Beatriz era novinha e rosnava para um cão na curta-metragem Dois Dragões. Fizeram juntas A Costa dos Murmúrios em 2004 e agora Yvone Kane. O filme, rodado em 2012, com estreia marcada para 26 de Fevereiro, transporta-nos novamente para África, tem um recorte temporal impreciso, instala-nos no território habitual dos filmes de Margarida Cardoso. Numa estranheza em relação ao lugar onde estamos. Na interrogação, na procura, na identidade, na comunicação e na impossibilidade da comunicação. Um filme a estrear é o pretexto para duas pessoas se encontrarem depois de muito tempo sem se verem, para a alegria. Beatriz Batarda sugere para local a Déjà Lu, a livraria solidária que abre no último dia de Fevereiro, na cidadela de Cascais. É uma das madrinhas da livraria. É um espaço que parece uma sala das nossas casas, com livros a serem arrumados, dois cadeirões junto à janela, um tapete de cores quentes. Não está ainda ninguém, a não ser a mentora do projecto, que trabalha na sala ao lado, e dois homens que finalizam as obras e usam a lixa sistematicamente. Portanto, casa. O encontro é aí, numa sala que parece casa. De certa maneira, falando de África, da extensão infinita, do território, de quem somos, do fio intrincado das relações, de como suturamos as nossas feridas, não saímos de casa. Da casa que é a nossa cabeça e das coisas que verdadeiramente a ocupam. Um filme a estrear é o pretexto para falarmos da vida que segue o seu curso, como um rio que tem força própria, que não há como parar. A não ser nos filmes. Onde se sustém a respiração para fazer uma introspecção necessária. Mas isto é a conversa séria da entrevista. Antes, durante as fotografias, o tom era mais brincalhão, mais leve, mais quotidiano. Quando começou a entrevista, baixou uma seriedade, uma gravidade, sobretudo em Beatriz. Foi como se entrássemos (entrassem) em cena. Era talvez uma forma de dizer que, falando de um filme, aquilo de que estamos a falar é da vida. Mais sério que isso não há. Beatriz Batarda — [em tom brincalhão] Ela não precisa de me ver. Ela lê-me. )Beatriz — O não sítio, o não pertencer a lado nenhum é o grande ponto comum entre mim e a Margarida. Tem que ver com a nossa história. No meu caso, resulta de ser de famílias misturadas, estrangeira e portuguesa. De ter tido um ensino em escolas estrangeiras. A minha cultura familiar é francófona; depois estive anos a viver em Inglaterra. Não tive propriamente um crescimento tradicional, português, católico. Nada disso. A origem é judaica. Beatriz — Não é a questão de ser bem comportada ou malcomportada. É ter crescido com a sensação — embora me sinta muito bem em Portugal — de não ser propriamente portuguesa. De ser uma estrangeira em Portugal. Reconheço isto na relação que a Margarida tem com África. Margarida — Fomos viver para África, onde estava o meu pai. Era militar da Força Aérea. Eu, a minha mãe, a minha irmã e a minha avó. Um grupo de mulheres. Começámos por ir para a Beira em 1966. A partir daí e até 1975 andámos sempre a mudar de lugar. Sempre me senti. . . não era só deslocada fisicamente, mas também nas referências culturais, em tudo. Colateralmente, sentia o vazio da minha mãe. Mais do que a ausência do meu pai. O meu pai estava muito ausente. Sentia a dificuldade da minha mãe de se ligar ao que quer que fosse. Margarida — Era a minha mãe afastada da família e não termos nenhum lugar. Nem fisicamente. Não tínhamos muitos amigos. Quando voltei para Portugal, era o PREC, as convulsões. Mesmo dentro das famílias, toda a gente passava o tempo a discutir. Senti uma grande dificuldade em reconstituir — ainda hoje — essa história. Quando pergunto aos meus pais onde é que fiz a primeira classe, sabem algumas coisas, mas não tudo. Beatriz — É um comboio que não tinhas apanhado. Margarida — Nem tudo. Sobretudo as coisas mais específicas (em que escola foi?), a minha mãe já não se lembra. Margarida — Sempre me liguei muito a esta questão identitária. Não me sinto muito portuguesa, e sinto-me muito, muito portuguesa. Beatriz — É como se estivéssemos sempre divididos, não é? E tivéssemos uma identidade própria. Margarida — Sim. Mas muita gente compreende isto. No fundo, pode vir da forma como sentimos. Em relação ao Yvone Kane, há muita gente que se revê no filme, mesmo que o filme não seja claramente isso ou só isso, por causa dessa vertente identitária. Beatriz — Quando perguntamos o que é a identidade. . . Para explicar o que quero dizer: uma mãe, de repente os filhos saem de casa, voam, e o cuidar deles é que era. A função devolve uma identidade. A nacionalidade (também) devolve uma identidade. Coisas parvas como: nunca comi bacalhau no Natal. Beatriz — O nosso Natal, ainda hoje, é: sopa de cebola com queijo gratinado e torradinhas, à francesa. O prato a seguir é de herança judaica, vem do lado asquenazi: lombos de salmão com blinis. Às vezes, fazíamosou. Beatriz — Depende. No dia-a-dia, em português. Nas ternuras ou na reprimenda, em francês. Portanto, nas coisas de intimidade, de grande intimidade, em francês. A minha avó, que era francesa, teve uma presença muito forte na minha vida. Até morrer. Quando nasci (nasci em Londres), houve um problema de saúde e tive de vir para Portugal sem a minha mãe, que ficou no hospital em Inglaterra. Fiquei aos cuidados da minha avó, vários meses. Margarida — Eu também não comia bacalhau! Em Moçambique, comia camarões e caranguejo. Não era só no Natal. Nos últimos anos em que estivemos lá, não havia mais nada. Beatriz — E galinha?Margarida — Galinha nem tanto. Beatriz — Não se resume a uma coisa culinária! [riso]Margarida — Muitas vezes me digo: sei o que é ser português. Tenho a impressão de que reconheço um português em qualquer lado. Mas tenho muitas dúvidas. Será que sei? Onde ancoro a minha identidade é nessa coisa da procura. Beatriz — Também não sei o que é ser português. Por exemplo, no Noite Escura [de João Canijo], tive um papel muito português. Mas podia não ser português. (Era Carla Boca de Aço, porque usava um aparelho nos dentes, de metal. Interpretava a filha dos proprietários de um bar de alterne. O filme partia do caso Mea Culpa. Margarida — Tivemos um encontro nessa altura, no café Monumental. Estava à espera da Beatriz e vejo uma rapariga morena, com aparelho, a rir-se muito para mim. Disfarcei imenso. [gargalhada] Não a reconheci. )Beatriz — Era um universo marginal. Agora vou fazer um papel de uma portuguesa de um bairro da Margem Sul. Estou aterrorizada. É toda uma cultura que [desconheço]. Não é por ser classe operária. Na Noite Escura, ficou desmistificado o pavor de não conseguir sair do papel da burguesa. Beatriz — Eu, foi quando comecei a representar. E a circular no meio artístico. Não havia pontes de ligação. Fui criando pontes de ligação. Com muita necessidade de me integrar, de criar referências de identificação. Passei por um período de algum pudor. . . Não era ter vergonha de ser quem era, nada disso. Mas tive muita preocupação em neutralizar o meu lado mais beto. Comecei a vestir-me de uma forma mais andrajosa. Há 20 anos era assim. Margarida — A consciência de não pertença sempre me perseguiu. E uma certa nostalgia. Comecei a ter uma consciência forte disso, não exactamente nos temas dos filmes, mas na posição em que estou a olhar para as coisas. Sentindo-me sempre um pouco de fora. Nos documentários e na ficção. Na ficção, sem querer, os personagens que crio são todos assim. São pessoas que andam à procura de alguma coisa. Ou que estão completamente perdidos num território. Muitas vezes rejeitados por um território interior e exterior. Acabam todos, também, por ter um lado etéreo. Não consigo dar uma consistência muito realista aos personagens — porque não me interessa. Beatriz — Poéticos?Margarida — Fantasmas. Porque sinto assim. Beatriz — Sente-se muito isso neste filme porque o tema é à roda do luto e da perda. O contexto é muito pantanoso. O contexto visual e o contexto emocional. N’A Costa dos Murmúrios [2004], que é inspirado no livro da Lídia Jorge mas escrito pela Margarida, as personagens são igualmente etéreas. Não as acho fantasmagóricas. Não são almas penadas. São seres elevados. São seres que não são do concreto. A Rita [minha personagem], neste filme, a frustração que se gera entre ela e o João [marido] passa por isso. Há uma ilusão de vida concreta, de vida construída, com o marido, a filha. Com a perda da miúda, essa ilusão desfaz-se. O choque da Rita é esse: é confrontar-se com a incapacidade de viver no concreto. Margarida — O personagem da Beatriz é muito difícil neste filme. É um personagem que procura, que se desloca. Um pouco como era a Evita n’ A Costa dos Murmúrios. Beatriz — Mas esse filme tinha mecanismos de acção. Este é mais depurado. Margarida — Até a geografia e o tempo eram mais concretos n’ A Costa dos Murmúrios. Este filme, Yvone Kane, não tem uma identificação territorial precisa, tem um lado espectral. . . Beatriz — Mas muito ricas. Cheias de camadas e de desencontros. E de feridas silenciosas. É um manancial. Não sei se conseguimos passar isso. . . Que eu senti, senti! [riso] Que se pensou, falou, fez escolhas nesse sentido, fez. As escolhas foram sempre a fugir das cenaças, das interjeições, a fugir disso como o diabo foge da cruz. Beatriz — Há uma evolução na cor. A Rita vai ficando cada vez mais clara. Começa por ser cinzenta e acaba de branco. Margarida — Foi uma coisa deliberada, claro. São sempre tons pastel. O não ter padrões. E roupa em várias camadas. Beatriz — Camadas a esconder o corpo e a proteger. Só há um momento em que as cores de mãe e filha se aproximam: é quando a Rita se apercebe de que a mãe está doente. Ficam as duas com tons terra. Margarida — Quando falo do vazio da minha mãe, falo de alguém que é completamente deslocada do meio, da família, e que vai parar a um sítio que não reconhece. E de eu ter vivido sempre muito próxima desse enorme desgosto. É mais essa dor que me marca, [que me transforma] numa pessoa que tem de tomar conta ou estar atenta. O personagem da Sara [a mãe], para mim: uma das coisas importantes é que houvesse um muro, que fosse uma pessoa que tivesse construído um muro contra várias coisas. É uma pessoa fria. Margarida — Já me perguntaram se eu achava que as pessoas que tinham lutado por ideologias obrigatoriamente rejeitavam a família, o lado mais íntimo. . . Acho que sim. Pelo menos no retrato que queria dar da Sara, que funciona como uma metáfora de um tempo, é assim. Era um tempo em que se acreditava. Hoje rimo-nos um bocado disso, mas se pensarmos bem essa foi a causa de muitos traumas e de coisas não tão boas. E houve um apagar [da dimensão pessoal]. A Sara fez o melhor que pôde. [para Beatriz] Como o teu personagem diz: “Não há culpa, não há nada a fazer, foi assim. ”Beatriz — Essas opções deixam sequelas. Fez-se o melhor que se pôde, mas agora é preciso viver com o que fica. Margarida — O filme é trespassado por essa ideia da não-comunicação, da dificuldade de os vários mundos se encontrarem. Isso passa-se entre os negros e os brancos, entre a mãe e a filha. Há uma enorme incompreensão e uma dificuldade em juntar coisas que não se podem juntar. Há coisas que nasceram de um tal absurdo que não se podem juntar. Nem vale a pena lutar. Não se vai reparar o que é irreparável. Margarida — É difícil, mas acho que todos vivemos assim. Temos sempre perguntas a que não conseguimos responder. A única coisa é que conseguimos disfarçar. Arranjar um outro invólucro. A Sara diz [ao motorista-ajudante]: “Nunca fui a tua casa. ” Ou seja, há mundos que não se cruzam. Ali, no universo que o filme retrata, onde a acção decorre, é tudo mais grave. Escolhi um território onde vejo isto em todo o lado. Vejo nas marcas arquitectónicas, vejo nas rachas, nas coisas em ruína. Tudo correu mal. Margarida — Há uma certa luz no fim do filme. Disseram-me que é deprimente acabar um filme com uma cena em que enterram uma piscina. Margarida — É uma forma de enterrar simbolicamente o passado. Beatriz — Esse é que é o grande milagre. Fazer um “Querido, mudei a piscina”, tapar pequenos buracos, a plástica, é a grande mentira. O final do filme é muito mais redentor por ser tão honesto. Na vida tapamos, escondemos os nossos tiros. Os tiros da parede da piscina, os nossos buracos, feridas. E vivemos com aquilo. Ou reinventamos aquele espaço para ser outra coisa. [Enterrar a piscina] é reinventar aquele espaço para ser outra coisa. Não é fingir que não aconteceu nada. É ao contrário. É reconhecer que aquele sítio não pode voltar a ser o que era. Margarida — É a mesma coisa que ter a coragem de deitar abaixo o que já não nos serve. Mas há um pormenor: o último plano do filme é a actriz sul-africana, a Susan, a dizer-te adeus. Beatriz — É um modo de dizer: até à vista. É a violência, a crueldade de constatar que aconteça o que acontecer, de facto, a vida continua. E esta violência, num filme da Margarida, é dita como se não fosse nada. Margarida — A mãe continua a ver televisão [depois da conversa mais difícil que têm]. Beatriz — Vê televisão. Não desvia os olhos. Esta subtileza, esta forma de violência. . . Margarida — Só me interesso por isso. Só consigo interessar-me por esse eco. Beatriz — É a Margarida a dizer-nos: caia o mundo, conte aqui a história mais desgraçada, e a vida segue. No filme, a Margarida desafia o tempo de um modo que a vida não permite — na extensão do luto. Os vários lutos. O luto da filha, o luto da nação, o luto da infância. . . Margarida — O luto de não pertencer. Beatriz — Desafia a vida — para que ela pare. Beatriz — [abana com a cabeça]Beatriz — Já tinha vivido perdas. Nomeadamente do meu padrasto, que é uma pessoa de quem nunca falo. Foi o que me levou a fazer o primeiro filme com a Margarida, . Ele era militar e veio de África paraplégico. A minha mãe e ele apaixonaram-se e casaram-se quando eu tinha seis anos. Aquele universo de África e da guerra colonial, os crimes de guerra, tendo ele morrido não há muitos anos, foi uma coisa que buliu muito comigo. Vi imensos documentários sobre a guerra, fizemos uma pesquisa extensa. Se calhar, também por aí a Margarida e eu criámos grande empatia. Essa perda, a perda de um ente querido, era uma coisa real e foi muito marcante. Eu tinha 20 anos. Na construção da perda da Rita, não fui nunca fazer a fantasia da perda de uma das minhas filhas. Jamais!Beatriz — Não era possível. Nem tinha qualquer interesse. Porque passava a ser a minha dor e não a dor do personagem. Para todos os efeitos, eu quero fazer o personagem que a Margarida escreveu. Criei uma fantasia paralela, a fantasia de uma perda que corresponde à perda da história, para servir a Margarida e o filme da melhor maneira possível. [pequena pausa] Queres falar sobre o que aconteceu?Margarida — Sim. Quando voltámos de África, ainda não tínhamos filmado o início do filme. É a altura em que acontece o acidente. Margarida — Voltámos e aconteceu a morte do Bernardo [Maio 2012]. Tive de esperar um bocadinho. A Beatriz não se sentia capaz de fazer a cena. Tive de adaptar. O facto de aquela cena ter agora aquela forma, e não a forma que eu tinha imaginado, tem para mim um grande significado. Margarida — Tinha coisas mais explícitas. A Beatriz ainda tentava salvar a criança. Nadava, nadava. Não conseguia agarrá-la e por fim desistia. Tomada pelo cansaço, deixava-se ir. Para mim, isso funcionava como [imagem] da culpa de quem sobrevive. Ficou assim, e é impossível distanciar o filme de tudo o que se passou, de todas as relações que tivemos, antes, depois, durante. Beatriz — Quando filmámos a Costa, eu estava já casada com o Bernardo. O Bernardo fez a música para a Costa. Foi uma coisa muito íntima e circular. Neste filme, esse círculo iria repetir-se. Margarida — Por isso optei por não ter música no Yvone Kane. Tudo o que se passou na rodagem, a forma como as coisas aparecem ali materializadas acabam por dar um tom ao filme. Está lá a nossa empatia. Um personagem como a Rita podia ser feito por ti, mas dificilmente podia ser feito — na minha cabeça — por outra pessoa. Esta relação de trabalho é particular, distinta. Margarida — Os actores moçambicanos vão bem. Beatriz — A Margarida obriga a repetir 50 vezes!Margarida — Não faço trabalho psicológico com os actores. Sou alérgica a psicologismos. Quanto mais do zero se partir, melhor. Beatriz — O psicologismo na representação é uma espécie de redução. É quando se começa a catalogar. “Ela comporta-se assim porque aconteceu assado. ” Quando o actor começa a perguntar-se: porque é que vou daqui para ali?, é uma forma de, enquanto actor, se esquecer que está a ser observado por uma câmara, por um público; por outro lado, reduz muito as possibilidades, o lado literário da representação. A Margarida às vezes cansa os actores que são mais metódicos. Cansa-os com a repetição. Margarida — Até eles desistirem! Às vezes basta diminuir a fisicalidade. Beatriz — E ficam limpos. Procura um registo depurado. Margarida — A Irene, na apresentação do filme no Brasil, disse: “Aqui está uma directora que, na cena mais emocional do filme, foi capaz de esperar uma hora e meia para que as actrizes deixassem de chorar e [fosse possível] filmar de novo”! [riso]Beatriz — Era tão difícil fazer aquilo. Acabávamos as duas em lágrimas. Estávamos a filmar há bastante tempo naquele gelo, naquela contenção emocional. Mas eu e a Irene somos as duas umas moles. Umas sentimentalonas. E ela é um doce. Filmámos aquela cena na cama em que ela se aninha na mãe, a mãe já doente. Há uma referência primeira e única à menina, que a avó nunca conheceu. A Rita pergunta: “Queres ver a fotografia?” “Não. ” Bem, só de contar já me [emociono]. Beatriz — Eram duas frases. Acabava aquilo e desabava. Ficava com a cara às manchas. Não havia maquilhagem para disfarçar. . . Margarida — Era tudo naturalista. Beatriz — E a Margarida dizia [tom manso, quase surdo]: “Outra vez. ” A Irene: “Mas como é que uma pessoa pode dizer estas coisas sem se comover?” E a Margarida: “Não comove. Repete. ”Beatriz — Não usei os meus paralelismos pessoais porque a minha relação com a minha mãe não tem nada que ver com aquilo. Beatriz — A minha mãe não é psicanalista, é terapeuta. Em relação ao filme, era tão claro para mim o que a Margarida queria daquela relação. . . O abandono em nome dos ideais. O amor altruísta da Sara que pensa: vou mandar os meus filhos para Portugal para terem uma vida melhor, mas eu não consigo sair porque já faço parte desta terra, das árvores e das raízes. Do ponto de vista de um filho, isto é um abandono. Do ponto de vista de um pai ou de uma mãe, isto é um gesto de amor. E é aí que está o desencontro. Margarida — O que se passa numa relação mãe-filha. . . Nenhuma mãe faz nada bem, tudo bem. Beatriz — Os filhos querem que elas sejam mães e as mães querem continuar a ser pessoas. As mães são mais do que mães: são pessoas. Margarida — Esta relação funciona como uma metáfora das questões relacionais. Nunca se consegue preencher aquilo que os outros querem. É impossível! E tem de se viver com isso. Beatriz — Não sei se tem que ver com a desilusão. Acho que tem que ver com a aprendizagem de aceitar que se está sempre só. Só somos adultos (e às vezes isso não acontece, na maior parte dos casos isso nunca acontece) quando se compreende isto. Queremos que os nossos pais vivam para nós. A grande descoberta, que a Sara já tinha descoberto e a Rita só faz quando volta a África, é que estamos sempre sós. Por isso é que há perdão, também, da filha em relação à mãe. Beatriz — Os de casa desmistificamos mais cedo. Margarida — O Sérgio, o personagem do jovem namorado da Yvone (que era uma heroína para quem o Estado tinha construído uma história, cristalizada), diz uma coisa à personagem da Beatriz. Ela vai à procura da verdade sobre a Yvone. Alguém lhe pergunta: “Está a escrever essa história para quem?”, e ela diz: “Para mim. ” Todo o filme é isto: uma procura que não se sabe especificamente para que é. . . Margarida — É a sobrevivência. O que o Sérgio diz: “Sabes que quando a Yvone morreu, eu atravessava um vale. E ia tão focado na minha sobrevivência que não senti um sinal, nada que me indicasse que ela estava a morrer. A vida é muito estranha, não é?”O que é estranho é que todos vivemos com esta magia da vida, com aquilo que é criado pelo amor, pela amizade, mas no momento em que o outro desaparece. . . Essa ilusão [de proximidade, de sentirmos o outro dentro de nós] não existe. Estamos fechados dentro de nós e não vamos sentir nenhum sinal. Mas não quer dizer que não seja isso que nos faz viver. Beatriz — Perguntava se o amadurecimento corresponde à aceitação do desencanto. Acho que não. O amadurecimento é perceber que não somos omnipotentes e que os verdadeiros heróis são aqueles que não são mitificados. São aqueles que são heróis e amados por serem como são. Uma coisa é mitificar as pessoas, outra é aceitar a vida como ela é. Absurda. Sem lógica. Não ficcionada. Margarida — Conhecemo-nos através de uma pessoa que já cá não está, a Rosi Burguete. Era uma produtora muito amiga da tua mãe. A Beatriz ainda era muito novinha. Estavas em Inglaterra e eu precisava de uma jovem actriz. Fizemos uma curta-metragem antes d’. Foi em 1995 ou 96. Tinhas 18 anos. Beatriz — Então ainda não tinha ido para Londres. Fui em 1997. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Margarida — Tinhas o cabelo comprido e numa das vezes, quando voltaste, estava muito curtinho. Na curta, estavas a rosnar para um cão. O cão olhava para ti e tu rosnavas!
REFERÊNCIAS:
Angola: É preciso ser herói para sobreviver nos musseques
A habitação é um problema em Angola. Sacerdote tem um projecto de música no musseque onde vive em Luanda. José Patrocínio lidera, no Lobito, a Omunga, que tem feito campanhas por causa da destruição de casas. (...)

Angola: É preciso ser herói para sobreviver nos musseques
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A habitação é um problema em Angola. Sacerdote tem um projecto de música no musseque onde vive em Luanda. José Patrocínio lidera, no Lobito, a Omunga, que tem feito campanhas por causa da destruição de casas.
TEXTO: A habitação é um problema em Angola. Sacerdote tem um projecto de música no musseque onde vive em Luanda. José Patrocínio lidera, no Lobito, a Omunga, que tem feito campanhas por causa da destruição de casas. Aos 52 anos, José Patrocínio podia ser o soba do bairro da Luz no Lobito. Vive na mesma rua desde os quatro anos, portanto já adquiriu o estatuto de líder tradicional da comunidade. Fundador da organização Omunga, tem estado à volta do problema das cheias que tomaram conta da região de Benguela em Março. À porta da sua casa o tronco de uma árvore deita-se no chão, raízes à vista a entrarem pelo passeio adentro. A moradia, um edifício do tempo colonial, é onde funciona também a sede da organização não-governamental que se dedica ao activismo de direitos humanos. Lá dentro, nas paredes, há quadros, obras de arte, máscaras africanas, artesanato e uma espécie de mural. Os escritórios da Omunga funcionam nas traseiras, Patrocínio trabalha à secretária na sala ao lado, onde está uma enorme ventoinha a afastar o calor e os mosquitos. Tem uma T-shirt a dizer “não partam a minha casa”, que serviu numa das campanhas contra as destruições de casas pelo Governo, causa que tem movido a Omunga. A ONG, criada em 2005, pertence a um grupo que tem cerca de 20 organizações e monitoriza vários aspectos dos direitos humanos em Angola. A equipa da Omunga tem cerca de dez pessoas e financiamento de instituições como a USAid, embaixadas de alguns países, a Christian Aid. Têm zero de financiamento da presidência que, aliás, acaba de publicar um decreto (ainda não promulgado), contestado por várias ONG independentes, que acusam o Governo de limitar a sua actividade — a Omunga é uma das que criticam o papel de controlo que julgam vir a ser exercido com esta alteração. Esta ONG começou por se dedicar aos meninos de rua, mas hoje a sua actividade estende-se a várias áreas e traduz-se sobretudo em advocacia, pressão e activismo: escrevem notícias, têm um ciclo de debates, fazem denúncias e ajudam a redigir cartas ou reclamações, tentam, por vários meios, dar visibilidade aos problemas das pessoas. Por exemplo, tinham um projecto de acompanhamento de crianças na escola num dos bairros da área, mas o objectivo entretanto mudou porque “o que é que interessa saber se a criança na terceira classe vai saber ler melhor se a irmã está a morrer de malária?”, explica Patrocínio. Estava programado Patrocínio guiar-nos a um dos bairros onde a Omunga está a trabalhar de perto, mas o lago que se formou com as chuvas isolou-o e impediu o acesso. Era preciso as pessoas arregaçarem as calças para conseguirem chegar à estrada. Patrocínio faz, então, uma “visita guiada” a um dos musseques da zona. O carro já atravessou um dos bairros da Catumbela (perto de Lobito), entre buracos e entre fugas aos lagos de água. A placa a dizer “Farmácia/existe uma esperança a 255 metro” podia ser a legenda para a criança, de uns cinco anos, que está agora a brincar literalmente no lixo. Veste uma T-shirt rasgada, e junto a ela estão uns porcos que se passeiam. Já na estrada a caminho de Lobito se espalhavam vários lagos provocados pelas cheias, alguns transformados em piscinas para crianças. O problema é que águas paradas têm o risco de contaminação – são uma das principais razões para a propagação de malária por causa da atracção que exercem sobre os mosquitos. Pior: ainda há provavelmente cadáveres escondidos nestes lagos, destroços das cheias que mataram quase 80 pessoas, nota José Patrocínio. O tipo de vida não é digno e tem consequência directa até no carácter, na criminalidade, na saúde pública"Dos morros caem restos de garrafas, de plásticos, de roupa. As casas estão semiconstruídas, raras são as que estão pintadas. Há imensas pedras acumuladas na estrada e muita, muita, lama. Antenas parabólicas aqui e ali, bidões de água, bidões de gasolina espalham-se, há uma ou outra árvore plantada mas é raro. A vida do bairro faz-se na rua, onde se vende de tudo, e os mercados acontecem em aterros. Um grupo de raparigas com elásticos coloridos na cabeça olha para dentro do carro, diz adeus. As mães que passam levam os seus filhos às costas, amparadas por panos, no topo da cabeça carregam cestos com quilos de fruta. As cheias estiveram nas notícias durante muitos dias, várias organizações, inclusivamente o Governo, enviaram ajuda humanitária. Mas para José Patrocínio se é certo que há muito tempo não chovia assim, também é verdade que tamanha tragédia podia ter sido evitada se os sistemas de drenagem tivessem tido manutenção, se houvesse fiscalização, programa de urbanização como deve ser e programa de emergência para resgatar as pessoas, por exemplo. A habitação é uma preocupação da Omunga porque continua a ser uma preocupação em Angola. Durante a guerra (1975-2002) deram-se enormes fluxos migratórios para as cidades, as populações fugiam do interior por questões de segurança, chegavam às cidades e ocupavam os espaços vazios. Não havia fiscalização, não havia planos de urbanização, não havia apoios, diz Patrocínio, que critica os recentes programas de construção do Governo, até por terem criado casas com um preço não compatível com o orçamento da maioria da população. Em 2008, José Eduardo dos Santos anunciou que ia construir um milhão de fogos em quatro anos — a promessa ainda não se cumpriu, os dados que existem sobre as casas já construídas são contraditórios e as atribuições de vendas e alugueres foram envoltas em polémica (num dos projectos, a zona do Kilamba, em Luanda, as casas foram anunciadas custar 60 mil dólares mas seriam postas à venda por mais do dobro). Grande parte das cidades fazem-se com os musseques, que nasceram na segunda metade do século XIX, dividindo a população branca da negra. Embora também seja um problema no Lobito, a destruição de casas em zonas de musseques é mais problemática em Luanda, explica Patrocínio. Mas mesmo assim a Omunga já está a trabalhar com alguns bairros que desconfia poderem vir a ser “partidos” um dia. A ideia é transmitir às pessoas a necessidade de mudança de modo a que possam apresentar propostas antes de verem as suas casas destruídas — no fundo, antecipar. “O nosso trabalho começou porque não se pode partir uma casa. Partir casas deve ser considerado um crime a não ser que se tenham esgotado as alternativas”, diz. “Fico sempre preocupado em relação à visão dos planos de urbanização porque se transfere o bairro pobre para outra zona em que a única coisa que melhora é a parede da casa. Mas são autênticas prisões: olha-se para aquilo e são filas de casas umas em cima das outras, muitas vezes sem arborização, não há qualquer cuidado com as condições”. 347 habitantes por quilómetro quadrado na província de Luanda, onde se concentram 27% da população total angolana estimada em 24 milhõesUma das bandeiras do Governo tem sido a requalificação dos musseques, mas isso está “em contradição com a prática”, considera. “O que está a acontecer nas requalificações é que se está a pôr infra-estruturas mas as pessoas que estavam naquele espaço perdem o direito a ele, não são elas quem beneficia da melhoria. Possivelmente, algumas delas não vão poder beneficiar porque num espaço destes estão 100 pessoas, e 80 delas estão a mais — é preciso saber quem são as 80 a mais e responder às suas necessidades. Temos que pensar como um todo: enquanto estão pessoas a sofrer ali, a minha dignidade aqui não é boa. ”Um dos grandes problemas nos musseques é o saneamento e a água. Em 2011, a 1ª Conferência Nacional sobre Saneamento, em Luanda, revelava que mais de metade da população angolana vivia sem instalações sanitárias e, entre as que as tinham, menos de metade estavam ligadas ao sistema de esgotos. “Os bairros pobres são os que mais pagam a água porque têm que comprar aos tambores, aos baldes, e de má qualidade. A água não é analisada, e é uma fonte grande de doenças”, comenta Patrocínio. Por isso as consequências de se viver em musseques são “muitas”: as taxas de mortalidade infantil são maiores, quando Angola está no topo da mortalidade infantil de crianças com menos de cinco anos, sendo a malária das principais causas, e é também a principal causa de morte do país, segundo o coordenador do Programa Nacional de Controlo da Malária, Filomeno Fortes. “Há uma questão do direito à vida, da dignidade”, continua José Patrocínio. “O tipo de vida não é digno e tem consequência directa até no carácter, na criminalidade, na saúde pública. Há estigmatização, falta de serviços e falta de ocupação. Nenhum desses bairros tem projectos de jovens, a agressividade do meio também leva a uma resposta agressiva por parte dos jovens”. Não há dados fidedignos sobre o número de habitantes nos musseques em Angola, mas José Patrocínio faz uma aproximação para os cerca de 70 a 80% da população urbana. Segundo o Censo 2014, na província de Benguela vivem 2 milhões – 16% estão na cidade do Lobito. “Há todo um jogo já de vício que leva a ter dúvidas nos dados, são manipulados com vários interesses. Os interesses são sempre na perspectiva de ter benefícios ou esconder outros problemas”, explica. “Para fazerem estas construções, as pessoas têm que ter autorização do soba – e o soba recebe dinheiro por isso. Muitas vezes, o soba não apresenta esses dados. Depois habituámo-nos a ter números a partir da emergência e os números da emergência eram para receber comida — isto fica na nossa psicose. ” A Omunga já sabe que não há números reais: dá uma margem de erro de uns 10% e não fica presa a dados exactos. Continuamos o percurso na rua que vai dar ao estádio do Académica do Lobito. Nas enxurradas, a água passou por cima das casas. Esta foi a área mais afectada. A acumulação de água continua a servir de piscina aos jovens e animais. Para chegar a Sambizanga, e ao musseque onde muita gente tem medo de entrar, é preciso atravessar enormes lagos neste final do mês de Março. Em Luanda as chuvas fizeram destroços, e uma das principais consequências é tornar a circulação de carros ainda mais lenta. Passam vários táxis colectivos apinhados, prossegue um sobe e desce de buracos. À entrada do Bairro da Lixeira está hasteada a bandeira de Angola e cartazes com o rosto de José Eduardo dos Santos e o MPLA, o partido do poder. Na rua principal, camiões tentam solucionar o problema do “rio” que separa os dois passeios. Vendedores de rua cozinham à frente das águas paradas, cheias de lixo e insectos. As ruas são estreitas, e o espaço de lazer praticamente inexistente — quem quer jogar à bola tem que o fazer num campo de basquete, minúsculo. Durante o tempo colonial, Luanda foi pensada para cerca de 250 mil pessoas, notava recentemente o ministro do Urbanismo e Habitação, José Silva, numa entrevista à rádio da ONU. Em 1975 eram 500 mil. Em 2014, o Censo revelou que são cerca de 6, 5 milhões os habitantes da província, 27% da população total angolana estimada em 24 milhões. É a província com maior densidade populacional: 347 habitantes por quilómetro quadrado. “Proporcionar as comodidades da vida na Europa à comunidade não era tarefa simples numa colónia falida e parcialmente povoada por condenados. O abastecimento de água foi, durante séculos, um problema tremendo”, lê-se em História de Angola, de Douglas Wheeler e René Pélissier. O problema mantém-se. Em casa de Sacerdote, rapper, produtor e promotor cultural, não há água canalizada. No bairro, “há água para alguns, e mesmo para quem tem, vem num mês, no outro não, nunca se sabe quando vai faltar”, diz. Do terraço onde está a pensar desenvolver um projecto de ocupação de tempos livres para jovens consegue-se ver os telhados em cima dos quais há de tudo: sapatos, antenas, restos de pacotes de sumos, roupa, fios eléctricos… Um miúdo subiu e anda a trepar de telhado em telhado como um gato. A t-shirt de Sacerdote tem “Dizkuduru” gravado a branco, um jogo entre disco duro e kuduro, o nome do seu projecto musical. Nascido em 1985, Sacerdote vive desde sempre neste bairro, um lugar no qual foi difícil crescer. Desde os 11 anos que ajudava a mãe, com quem vendia, no mercado do Roque Santeiro, água, torresmos, etc. Temia os bandidos e temia os polícias que ainda hoje são violentos com as vendedoras, acusa. Foi forçado a contribuir para “a manutenção das coisas em casa”. “É sempre aquela cena, tens que ser um artista, procurar ser um herói. Tens que procurar a alternativa de poder te actualizar e arranjar maneira de fazer alguma coisa” fora do bairro. Portanto Sacerdote é um homem forte, “forte desde puto”. Viver no musseque é ter pouco para fazer. Não há centros culturais, não há campos de futebol para os que sonham em ser futuros Mantorras, não há forma de ocupar os tempos livres num espaço disputado por tanta gente, até pela água que cai e engole tudo. Por isso Sacerdote está a lançar o projecto Ocupar para Educar, onde vai ensinar cerca de 20 crianças e jovens a tocar música e ocupá-los com outras iniciativas. “É uma maneira de reduzir o índice de criminalidade: se aprenderem a tocar, a pintar, amanhã vão dedicar-se àquilo que sabem. Na verdade o número de criminosos aumenta porque não se ocupam com nada: o puto já não estuda, nem pratica desporto, não aprende nada, então é muito difícil…”. A alcunha vem do facto de ele ser religioso, de frequentar a Igreja Maná e de escrever músicas com pendor religioso, conta, a sorrir — rir é aliás, uma característica que o define. Sacerdote diz piadas, goza até consigo próprio — ironiza sobre a sua altura quando conta que, nas poucas manifestações a que foi, a polícia não o chateou porque devia pensar que ele “era um puto”. O que o aguentou “até hoje” foi ter sido “educado com a arte”, algo que veio do pai, autor de música infantil. Apareceu a vontade de criar as suas músicas no quarto. Quando conseguiu o computador gravava com os amigos música rap e underground. Fazia cópias em CD que ia também vender para o mercado Roque Santeiro. Dava-lhe, depois, “um certo gozo ter os candongueiros a vender músicas de intervenção”, com mensagens “contra a discriminação, a violência, contra as drogas, contra a pobreza, contra a instabilidade que existe na nossa sociedade”. Conheceu outros músicos, fez contactos, produziu música sobretudo de outros até decidir centrar-se nos seus próprios projectos. Ao mesmo tempo, trabalhava como informático na polícia e nas forças armadas, “mas eram órgãos com quem não me identificava muito”. “Como artista acabo por ser um educador social. Nas minhas canções falo sobre violência contra mulheres, contra zungueiras e não só, e trabalhar para um órgão que batia nessas mulheres, que faz exactamente o contrário do que defendo fazia sentir-me mal… Saí, e tive que ir fazer um trabalho que me vingasse de mim próprio — e me fizesse pensar: ‘já paguei’. Fui trabalhar para um empresa de construção civil, saí de um sítio em que podia estar sentado num escritório para meter a mão na massa”. Quando era puto passei por muitas fases complicadas. Sempre achei que não podia sair do bairro em que cresci sem fazer alguma coisa. ”Expiou, então, a culpa, e tem agora um projecto para o bairro, a pensar na sua infância. “Quando era puto passei por muitas fases complicadas. Sempre achei que não podia sair do bairro em que cresci sem fazer alguma coisa. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Fez o curso de artes domésticas no centro social, e na altura teve uma educadora de quem foi assistente em palestras sobre planeamento familiar, etc. Por causa desse envolvimento, cresceu e aprendeu. Então isso é algo que procura hoje: gerar oportunidades aos outros. “A partir dos contactos que tenho, das pessoas que conheço, consigo gerar possibilidades em prole da comunidade. ”No Lobito e em Luanda, José Patrocínio e Sacerdote não estão à espera de apoios do Governo para exercer o seu activismo. Sacerdote explica sobre o projecto musical: “Não temos apoio nenhum. Não nos queremos comprometer com certas pessoas e depois não ser autónomos. Queremos ser independentes. ”
REFERÊNCIAS:
A gastronomia de São Tomé e Príncipe é um livro de história
Dizem que os são-tomenses gostam de comida com molho, e aqui um bom molho leva dezenas de ingredientes. A história que cada um conta ajuda a contar a história do país. (...)

A gastronomia de São Tomé e Príncipe é um livro de história
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-08-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Dizem que os são-tomenses gostam de comida com molho, e aqui um bom molho leva dezenas de ingredientes. A história que cada um conta ajuda a contar a história do país.
TEXTO: Entrada: lábios de matabalaHá curvas e contracurvas para chegar a São João dos Angolares. Passa-se por pontes sobre rios onde as crianças tomam banho e as mulheres lavam a roupa, que depois estendem para secar à beira da estrada, no chão. Nesta zona do Sul de São Tomé parece não haver um metro quadrado de terra sem vegetação. Não há verde, há muito verde. E depois chega-se à roça de João Carlos Silva (vimo-lo no programa Na Roça com os Tachos). Sentemo-nos na varanda, com vista sobre uma baía e muitas árvores em baixo. Os galos vão cantando, apesar de ser hora do almoço. Ouvir o “cozinhador” João Carlos Silva (é ele quem se define assim porque não gosta da palavra chef) é ouvir toda a roça, é ouvir todo o país, porque fala como quem cozinha um calulu, o prato tradicional de São Tomé e Príncipe (STP) que leva dezenas de folhas diferentes: junta-se um ingrediente a outro e depois outro, num guisado cheio de ligações para vários lados. A história de STP pode ser contada pelo que nos colocam em cima da mesa durante uma refeição. Começamos com um pedaço de chocolate Corallo (também iremos visitá-lo) com gengibre picado e pimenta rosa para “um spa de língua”, diz João Carlos Silva. “As mães davam cacau fresco aos filhos que tinham às costas [enquanto estavam a colhê-lo], mas eles nunca chegavam a comer o chocolate. Vocês são uns privilegiados. ” Seguem-se uns lábios crocantes de matabala frita (um tubérculo parecido com batata) com puré de mikókó e tomate recheado; banana-prata com flor do mosquito e coentros selvagens; limão filipino com peixe e cebola, maracujá e manga — e no meio do prato um pingo de fura-cueca (picante); choco com papaia verde, abacate e flor da moringa que se vê da varanda; ovas de espadarte cobertas com agrião, ananás, curcuma da roça, farofa de laranja portuguesa com farinha de mandioca de São Tomé, molho de azeitona com baunilha. . . “São Tomé e Príncipe o que é? É um entreposto de sabores”, afirma o “cozinhador”. A gastronomia é a própria síntese do processo de colonização (a ilha foi achada no século XV). Tem, assim, “duas raízes matriciais: a europeia/portuguesa e a africana, particularmente da África Central, Gabão, Benim. Mais tarde [entram] os cabo-verdianos, moçambicanos, angolanos que vieram para as roças” como contratados. “A gastronomia são-tomense é a mistura dessas gastronomias todas. ”Prato principal: feijoada da terraAlguns dias antes tínhamos entrado nos dois mercados de São Tomé, um a poucos passos do outro, separados por um terreiro de lama e rapazes montados em motos. “Se quiserem fotografar, primeiro, tem de criar afecto”, recomendam-nos — ou seja, temos de comprar qualquer coisa. Encontramos frutas: safu (da cor da beringela, oval e do tamanho de um ovo; coze-se e come-se com pão, explica Fernanda, a vendedora); maracujás do tamanho de papaias; cajamanga; fruta-pão (do tamanho de melões, substitui o pão, o arroz ou a batata); ananás; cola (castanho, do tamanho de uma ameixa e que dá energia para o dia todo), bananas. Muitas bananas — banana-pão, de casca verde, come-se frita, cozida ou assada, tal como a banana-são-tomé; banana-prata, rosada, que se come frita ou seca; banana-ouro, mais perfumada e usada em doces e compotas; banana-maçã, usada para fazer farinha…Encontramos ervas e temperos: erva mosquito (parecida com orégãos selvagens e usada no calulu), mikokó (outra que tal), mastruço, coentro à portuguesa (comprida, com sabor a coentro), ossame (um fruto que substitui a malagueta) e pau pimenta lado a lado, mússua, makéké, malaguetas de várias cores e tamanhos…Encontramos peixe: peixe voador salgado (dois dias para secar e meia hora para a dessalga), espadarte, ica, vermelho, búzios do mar e da terra. . . Não há divisão clara entre legumes e peixe, e às vezes vendem-se todos na mesma banca ou no mesmo pedaço de chão. Encontramos Inês Antónia, 60 e tal anos, há mais de 40 a vender no mercado. Já teve 13 filhos, “três estão com Deus”. Criou-os tal como foi criada: com panelas de banana, cozida com casca e tudo, e fruta-pão, “com malagueta pisada na pedra com limão e óleo de palma”, inhame, funge ou izaquente cozido com açúcar, ou sem ele. Muitas das doenças que há em São Tomé devem-se à falta de vitaminas que as cascas das frutas garantem, diz. “Os jovens já não comem a fruta cozida. Só comem arroz e esparguete. Antes não havia disto [aponta com desprezo para os caldos Knorr que tem na banca]. ”João Carlos Silva queixa-se do mesmo. “Devíamos estar a comer menos arroz. Estamos completamente dependentes da ajuda alimentar do Japão. . . É muito mais fácil e muito mais cómodo estender a mão e esperar que as coisas venham. Semear e plantar leva tempo e dá muito trabalho. ” Defende que deveria haver um plano “de grande fôlego, multidisciplinar, para ensinar as crianças em relação aos alimentos, aos ingredientes que devem ser utilizados, a produção de hortas, o aproveitamento das plantas selvagens. Algum conhecimento que existe é de pessoas com alguma idade que não estão a passar esse testemunho para os mais novos. Em cada lugarzinho, em cada rocinha, temos que nos mobilizar, olhar para o país e perguntar ‘o que podemos oferecer?’”. Não sabemos se Joaquim Vítor fez essa pergunta a si próprio, mas desconfiamos que sim. Vivia na antiga sanzala da roça Saudade, onde as famílias cresciam e o espaço encolhia. Quis passar para a casa principal, abandonada, para ter mais privacidade. E então descobriu Almada Negreiros. Ficou a saber que o artista português filho de uma são-tomense tinha nascido precisamente ali. “Fui inteirar-me de quem era o Almada. Agora o objectivo da associação é divulgar a sua obra e sensibilizar as crianças para a leitura. Vamos ter uma minibiblioteca”. Há uma pequena sala com alguns livros e quadros na parede de artistas locais. “Estamos indo fazendo. ”O resto do projecto desenrola-se no campo. Planta-se tudo o que se pode para servir no restaurante. A mãe, Luísa, é quem prepara a feijoada à moda da terra que virá acompanhada de uma Rosema, a cerveja local que não tem rótulo nem carica própria para se identificar. Luísa aprendeu com a avó a fazer a feijoada e o filho recrutou-a para aqui, onde o tacho pousa em cima de brasas, durante algumas horas. Vai até ao jardim para apanhar erva mosquito e malagueta. “Não há como não gostar da sua comida”, diz Joaquim, um dos seus nove filhos. Dos 190 mil habitantes de STP, 64% tem menos de 24 anos. Mas, segundo o Banco Mundial (BM), os jovens são os mais afectados pela pobreza em que vive 62% da população (o país ocupa o 166. º lugar entre as 189 economias que fazem parte do índice do BM). Sobretudo nas zonas urbanas, as dificuldades em encontrar emprego deixam muitos jovens sem rendimentos ao fim do mês. Não admira, por isso, que eles estejam também no centro do trabalho de João Carlos Silva. “Vivemos a gastronomia à mesa, não é? Mas podemos pegar na gastronomia para trabalhar socialmente um lugar. ” A oficina de gastronomia da Roça de São João “dá formação para a vida, porque a gastronomia é transversal: damos aqui lições de história, geografia, botânica, biologia, segurança alimentar, educação ambiental. Só depois pegamos na faca da cebola, do peixe, do tomate. ”Em todo o processo, há uma tentativa de aproximação ao que significa ser são-tomense. “A gastronomia implica plantar, semear, cuidar, cultivar. Implica conhecer as tradições. ” Mas reconhece: “O pessoal mais jovem não quer muito roçar mato, não quer muito a agricultura, prefere o comércio”. Sobremesa: izaquente de açúcarA varanda em madeira da roça São João dos Angolares está tranquila, agora que os almoços já foram todos servidos, e os sete ou oito minutos de conversa que João Carlos Silva nos tinha prometido ao início multiplicaram-se várias vezes. Uma coisa leva à outra e agora falamos de izaquente. “O izaquente tem histórias engraçadas. É um fruto enorme da floresta, não me lembro de ver alguém plantar, está aí, à mão de semear”, diz o “cozinhador”. “As senhoras deixam quase apodrecer, ficar muito maduro, a desfazer-se, para depois [extrair as sementes] secar e esmagar numa gamela com uma pedra redonda”, criando uma espécie de farinha com um alto teor calórico. Faz-se salgado ou doce. “O izaquente salgado é feito com peixe fumado, erva mosquito, ossami, pau pimenta e óleo de palma — a nossa gastronomia está grávida do óleo de palma, por influência de Angola. É acompanhado de farinha de mandioca. ” Mas se estivermos a pensar numa sobremesa, cozem-se os grãos e trituram-se, “junta-se açúcar, e há quem misture milho cozido fresco”, ou apenas canela por cima, como se fosse arroz doce. “Diz-se que muitos dos mulatos de STP foram criados à volta de izaquente. ”Como? Vários portugueses que chegavam ao arquipélago vinham sem a companhia das suas mulheres. “Algumas senhoras [são-tomenses] começavam como lavadeiras e depois lavavam tudo! Os filhos não eram registados e quando os homens partiam, de regresso a Portugal, as mamãs ficavam com os mulatinhos ao colo. ” E lá iam para o rio, com as crianças e com o izaquente, levado em cestos. “Num lado estão a lavar roupas, no outro a lavar o izaquente que depois dão aos filhos. ”São Tomé e Príncipe é um país de fundação colonial e foi adquirindo uma função específica: produzir açúcar (século XV), produzir cacau, produzir café (século XIX). Tudo com mão-de-obra vinda de vários pontos de África, em regime de escravidão formal ou efectiva. Quando a italiana Francesca Orlandi chegou ao Príncipe, em 2012, encontrou ainda marcas desses tempos. A estrutura agrícola parecia inalterada e mantinha-se “o papel do capataz, que não tem necessariamente mais conhecimentos do que a força de trabalho e de quem as pessoas têm medo”, afirma a agrónoma florestal. “Houve um abandono e uma rejeição da agricultura, porque as pessoas associam-na a um passado de escravidão, um passado que é preciso apagar da memória histórico-social. Tudo o que se vê agora que parece floresta na verdade são antigas plantações abandonadas. . . O perfil do pequeno agricultor orgulhoso da sua profissão, não existe. Faz porque lhe mandam fazer. ” Por isso, a sua prioridade foi “devolver a dignidade que se tinha perdido”. O projecto que Francesca Orlandi veio desenvolver para o grupo hoteleiro HBD, e que tem em alguns pontos a colaboração do chef português Leonardo Pereira, associa a preservação da floresta a uma produção integrada do cacau e de outras culturas agro-florestais. Passa por garantir formação, ensinando algumas técnicas que, apesar de ancestrais, estavam esquecidas. “As pessoas só colhiam e as produções não aumentavam porque nada era plantado. ” Ou seja, e ao contrário do que se pode pensar, este “não é um povo de agricultores; a agricultura aqui é de subsistência”. A formação em agro-ecologia foi feita na roça Sundy, “que foi uma das expressões máximas do seu contrário”. “Foi uma das maiores roças do Príncipe [tem actualmente 1080 hectares]. ”A conversa com Francesca Orlandi decorre na roça Paciência, no Norte da ilha, onde se desenvolve o projecto piloto para a Sundy. À direita, as sanzalas já sem telhado, mas onde ainda se pode ver pelas marcas no chão o espaço exíguo que cabia a cada família; à esquerda os secadores; em frente, a casa principal; atrás os antigos escritórios e casa dos empregados. Entre tudo isto, um terreiro com árvores amplas, relva e terra batida. Mais adiante, e fora deste quadrado, há o actual laboratório, criado para “agregar valor à produção de frescos e reduzir o desperdício”. Desenvolvem-se produtos característicos do Príncipe — como a secagem de frutas e compotas. “O caroço (que vem do carroceiro) não tinha valor comercial. Nós secamos e usamos no muesli. ” Faz-se destilação de laranja amarga, ou de lang-lang para tónicos e sabonetes. Faz-se extracção de óleo de coco a frio e ensina-se alguns produtores a fazê-lo também. “Já foram à horta?” Contornamos o edifício e encontramos o espaço onde crescem hortícolas e ervas aromáticas, seguindo os princípios da permacultura. “Este é um equivalente de um espinafre: chama-se folha de tartaruga e cresce naturalmente em qualquer tipo de contexto. Este é um amaranto, ou jimboa. ”A produção hortícola nasceu para tornar os resorts da HBD sustentáveis, reduzindo a dependência da importação. O projecto de Francesca Orlandi é amplo. “Aplicamos o conceito de bio-agro-diversidade: em vez de explorar apenas uma cultura, alterna-se áreas com outras culturas como caju, baunilha, lang-lang, pimenta. Deixa-se o sistema florestal agir. A sombra das árvores protege as plantas, que se tornam um bocadinho menos produtivas, mas necessitam de absorver menos nutrientes. E o ciclo contínuo das ramas que caem no chão, que geram substância orgânica, cria uma cadeia sustentável. ”Café com chocolateGegé Lima tem 27 anos e sabe o que tem para dar a São Tomé e Príncipe. A varanda onde agora conversamos era há décadas a do centro de tratamento do café da Roça Monte Café, no interior da ilha, e que chegou a ser o maior produtor do país, com os seus mais de oito mil hectares. Agora, a antiga fábrica de torrefacção é uma carcaça, a casa do governador foi demolida e restam ainda no chão os pedregulhos. Como fica a 670 metros de altitude, é favorável para a plantação de arábica (mas também há robusta), que gosta de zonas húmidas e altas. Apesar do abandono, cerca de 250 pequenos produtores trabalham para juntar a sua colheita numa cooperativa. “Aqui, todos trabalham no café”, diz Gegé. Vive onde antes viviam os trabalhadores, na sanzala. Estudou a fauna e a flora de São Tomé e tirou um curso de turismo. Aprendeu como se cultiva e trata o café. Sabe o que é preciso para fazer visitas guiadas aos turistas que agora visitam o que resta da roça (como o museu onde se podem ver os utensílios utilizados e algumas amostas em garrafas de vidro, com rótulos onde se pode ler: “Arábica superior corrente Tipo 6, embarcado no vapor Pátria em 12/7/70 conforme nota de embarque n. º1396. . . ”). É Gegé quem explica que, para plantar um cafeeiro, primeiro é preciso fazer um viveiro — leva 45 dias a germinar, depois, seis meses até atingir 40 centímetros; só então pode ir para a terra. Depois, a planta pode durar 50 anos. Aparece Eduardo Buku, de catana na mão, agricultor de café desde os 12 anos (tem 43). “A boa limpeza” do cafeeiro é a regra de ouro. Tem três mil pés, o que em alguns anos lhe garante 500 quilos, outros apenas 300. “Antes dava duas vezes por ano, agora só uma, não sei porquê. ” A maior parte da produção é vendida à Malongo, e essa não vai para a torrefacção, vai directamente para França. A variedade arábica de São Tomé e Príncipe é considerada das melhores do mundo. Mas a principal produção do país é o cacau, que constitui 62% das exportações, (o café não chega a 7%) e garante uma grande fatia dos postos de trabalho. Ainda assim, está longe de recuperar o título de principal produtor mundial que detinha em 1905. Vamos então visitar a roça de Claudio Corallo (ver caixa) na ilha do Príncipe, onde as primeiras árvores de cacau, trazidas do Brasil, foram plantadas por volta de 1819. Era praticamente uma selva quando Corallo lá chegou para fazer “o melhor chocolate do mundo”, porque os tempos de produção intensa já eram coisa do passado. Foi preciso desbravar e limpar. Foi preciso replantar as árvores de sombra, para que as plantas recebessem ar e a quantidade certa de luz. Se toda a ilha do Príncipe é um deslumbramento (o Sul foi classificado como reserva da Biosfera pela UNESCO), manda a prudência evitar descrever a vista desta roça para não cair em clichés. Vamos apenas dizer que estamos num plano elevado, à nossa esquerda, ao fundo, vemos morros, o mar azul e palmeiras; à direita, uma floresta mais densa. Há garças pretas a passearem-se pelo chão e muquês castanhos a sobrevoar a casa e as copas das árvores. Acácio Tiny, de 32 aos, nasceu e cresceu no Terreiro Velho, a localidade em baixo onde vivem menos de 100 habitantes. Trabalha na roça desde 1999, quando Claudio Corallo começou a sua produção de cacau — a maior da ilha inteira, mas mesmo assim insuficiente para dar resposta às necessidades, pelo que é preciso comprar a outros produtores. “A planta tem que estar sempre a ser limpa por causa dos ‘ladrões’”, os rebentos que é preciso tirar. Para além disso, há “os ratos, os macacos e os morcegos, que gostam de cacau”. O terreno é íngreme e, com a chuva que tem caído, bastante escorregadio. Não é fácil recolher os frutos das árvores — há uns quantos milhares de pés — mas Acácio vai agilmente apanhar um cacau fresco, que abre para dar a provar. Uma delícia. Não há agora muita gente a trabalhar porque a colheita, que pode ser feita no ano todo, é mais intensa entre Junho e Outubro, “se a chuva não estragar o fruto”, diz Acácio Tiny. “Agora [início de Abril] está bom porque há um pouco de chuva e um pouco de sol. Em Maio vai haver um pouco de colheita. ”É ele quem explica o processo: apanha-se o fruto, parte-se ao meio com um pau e coloca-se a polpa (também chamada de goma) e a semente em caixas de madeira para fermentar. Fica assim cerca de três semanas. Passa para os secadores, seis ou sete dias, sempre a mexer para ter a certeza de que seca uniformemente. Agora há apenas uma pequeníssima amostra de cacau (e de café) no secador. “O processo do café é igual”, diz Tony. A queda dos preços no final da década de 1990 trouxe uma crise económica profunda. No início dos anos 2000 apareceram cooperativas como a CECAB, que, ao eliminar os intermediários, permitiram aos agricultores ficar com uma fatia maior das receitas, já que não se limitavam a vender a goma, mas começaram a poder fermentar e secar o cacau em equipamentos fornecidos pelas cooperativas. E isto com selo de biológico e comércio justo. O cacau passou a render-lhes cinco vezes mais. Ainda assim. . . O Banco Mundial refere que não há nenhuma actividade económica no país “que possa servir como um motor do crescimento”. “Historicamente, a agricultura tem sido um sector com elevado desempenho, com um aumento das exportações de cacau, café e óleo de palma nos últimos anos. No entanto, isso não compensou o crescimento das importações” — há uma balança comercial negativa de mais de 118 milhões de euros. O país continua a ser altamente dependente do exterior, e o turismo, que tem vindo a crescer, ainda não responde às necessidades. Chegou a falar-se em prospecção petrolífera, mas esta não avançou. O que trava São Tomé e Príncipe?João Carlos Silva tem uma explicação que certamente será considerada polémica por alguns: “As pessoas estão retraídas, muito acomodadas. Um amigo brasileiro dizia-me: a fazer alguma coisa aqui será por inércia dos são-tomenses, será [feito por] gente de fora. Sempre foi. Há quem diga que é o destino. ”Por outro lado, ultimamente tem dado por si a desenvolver outra reflexão: “Até que ponto não estamos a ser um bocado contra-natura? Este clima é muito quente, a terra é extremamente generosa, quase que não precisamos de semear nada, apetece-nos muito fazer amor todos os dias. Se a gente se ocupa muito com as outras coisas todas, que tempo é que sobra para as coisas mais deliciosas que o ser humano tem para fazer?”José HenriquesEncontramos José Henriques no meio do que parece ser um quintal, mas que é na verdade uma plantação de pimenta. Vive na Nova Estrela, a sul da cidade de Santo António, no Príncipe. Desde 2006 que produz pimenta e o negócio não tem parado de crescer. “Prevejo entregar este ano duas toneladas, e no próximo três ou quatro”, afirma, sorridente. No seu hectare de terra crescem dois mil pés, tudo biológico. “Um pé pode durar 60 anos. ” Trouxe de outra zona da ilha alguns pés “do tempo dos colonos”. Reproduziu “com estacas e agora toda a produção vem daí”. Tal como ele, outras seis dezenas de produtores entregam a sua pimenta à cooperativa CEPIBA, que depois a envia para São Tomé e dali segue para França. Ele recebe “oito euros por quilo; a cooperativa vende aos franceses a 14, mas a CEPIBA dá material e apoio aos produtores. Se não fosse a cooperativa, não havia pimenta no Príncipe. ”Pimenta branca, rosa ou preta, tem só a ver com a fase em que o bago é apanhado. A rosa é quando está mesmo mesmo, madura. Já a preta é apanhada bem verde, explica José Henriques. “Ferve primeiro durante 15 minutos e depois leva ao secador”. PimpaTal como muitos cabo-verdianos, Pimpa veio ainda adolescente para trabalhar nas roças como contratado. A primeira vaga chegou em 1903 e a segunda nos anos 1950. Para além dos cabo-verdianos, também angolanos e moçambicanos partiram para São Tomé e Príncipe a pensar que teriam um contrato de trabalho à chegada, mas esperava-os um pesado trabalho braçal em condições desumanas. Muitos, sobretudo os cabo-verdianos, nunca conseguiram regressar ao seu país. E hoje ainda é comum encontrá-los a trabalhar na agricultura. Pimpa sabe de cor os dias de viagem que o Infante D. Henrique percorreu, mesmo antes de o apanhar em Santiago, até ao Príncipe, onde atracou. Diremos só que levou 11 dias a chegar. Depois da independência começou a fazer “capinação com a enxada”, para limpar terrenos e caminhos. Decidiu plantar ananás. “Dá qualquer coisinha. Vendo aos portugueses, aos membros do governo [de STP], mas aqui não tem saída, fica a apodrecer. ” A maior parte da tonelada e meia de ananás que produz é desperdiçada, diz, pontuando qualquer frase nossa com um delicado “exactamente”. Enquanto percorremos o terreno, vemos as plantas repletas de fruto a poucos centímetros do chão. Entramos na casa em madeira que está a construir, “porque a outra já está cansada”. Abre um ananás que corta cuidadosamente às fatias. Pousa-o em cima de uma cadeira, onde colocou um paninho. E confessa que, aos 65 anos, está como a casa, cansado e doente. “A próxima vez que vierem, já não estou. Estou a ficar transparente. ”Nhô JôFoi difícil fazê-lo dizer que tem 80 anos, mas muito fácil pô-lo a falar do seu grande orgulho: o café. Nhô Jô partiu de Santo Antão, em Cabo-Verde, em Maio de 1960. “Foi uma crise que me trouxe para cá, uma seca muito grande. ”Sempre foi agricultor. “Desde que comecei a entender o meu nome que peguei na enxada. Vinha a chuva, enxada para mim. ” No Príncipe, começou a trabalhar na roça Sundy, nas produções de cacau e café; depois na Bela Vista. Era capataz. “Eu coordenava tudo. O feitor viu que eu era bom, compreendia as coisas. ”Depois da independência, em 1975, o governo de partido único do MLSTP nacionalizou as plantações. “Não se vivia bem. Só com a democracia [1990]. A vida melhorou quando tive a minha terra. ” Atribuíram-lhe seis hectares e começou a trabalhar por sua conta. Começou por ter banana, milho, mandioca. “Mas a cultura não espera e eu comecei a ficar cansado. Plantei outras coisas para o futuro. Agora está tudo cultivado com café e palmar” — a palmeira do óleo de palma. “Fui buscar as sementes de café a São Tomé: robusta, que aqui produz muito. Também há libérica – mas não tem tanta vantagem. ”A mulher, Marcelina, que agora varre pacientemente o chão, afastando as galinhas, é quem faz a torrefacção. “Ela tem um ponto certo. ”Guia práticoComo irA TAP tem três voos semanais com escala em Acra, no Gana. Para o mês de Julho, custam a partir de 717 euros, ida e volta. Em períodos de menor procura, o preço pode descer para os 464€. Voar de São Tomé para o Príncipe custa cerca de 170 euros. Onde dormirSão ToméOmali Lodge Boutique Hotel100€ por pessoa e por noite em quarto duplo com pequeno almoço e transfer incluídos. Tel. : +239 222 2479Email:reservations@omalilodge. comwww. omalilodge. comPríncipeBom Bom175€ por pessoa e por noite em quarto duplo com pequeno-almoço e jantar. Tel. : + 239 225 11 14Email: reservations@bombomprincipe. comwww. bombomprincipe. comComer e beberSão ToméRoça São JoãoNo restaurante de João Carlos Silva, por baixo da pousada com o mesmo nome, os menus de degustação custam 15 euros sem bebidas. Dona TetéPeixe do dia grelhado, saladas de búzio ou de polvo. Com bebidas e sobremesa, o jantar fica pelos 10 euros. O restaurante fica perto da grande avenida Marginal 12 de Julho. Omali LodgeO restaurante do hotel tem uma carta renovada com o apoio do chef André Magalhães (da Taberna da Rua das Flores, em Lisboa) e executada pelo chef são-tomense Paulo Rocha Ramos. PríncipeZinhaRua Feliz, 95, Santo António. Comida caseira da Zinha que inclui molho de peixe, feijoada ou polvo. Associação Cultural Rosa PãoGerida pela Dona Rosita (rosapaoprincipe@gmail. com). Também de comida caseira, que vai de rissóis a peixe grelhado com bananaRoça SundyO hotel só estará aberto a partir de 1 de Junho mas já é possível almoçar ou jantar mediante reserva. reservations@hotelrocasundy. comO que levarUm passaporte com seis meses de validade é obrigatório, assim como repelente e dinheiro. Não há multibanco (há uma caixa, mas só para contas locais) e levantar dinheiro ao balcão pode ser impossível. A profilaxia da malária é aconselhada, apesar de esta estar quase erradicada; na consulta do viajante também se aconselham as vacinas da febre amarela e tifóide e da hepatite A. A Fugas viajou a convite da TAP e do grupo HBDSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
Quem bebe café vive mais tempo
Os benefícios foram encontrados entre consumidores de café e de descafeinado. Ou seja, o mérito não será da cafeína. Falta agora descobrir os compostos que dão ao café um comprovado efeito protector da saúde. (...)

Quem bebe café vive mais tempo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.136
DATA: 2017-07-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os benefícios foram encontrados entre consumidores de café e de descafeinado. Ou seja, o mérito não será da cafeína. Falta agora descobrir os compostos que dão ao café um comprovado efeito protector da saúde.
TEXTO: Se é daquelas pessoas que juram que não é capaz de funcionar sem café temos boas notícias para si. Esta segunda-feira foram publicados dois estudos sobre os benefícios do café e, em traços gerais, a conclusão é que quem bebe à volta de três cafés por dia vive mais tempo. Um dos trabalhos estudou a associação entre o café e a mortalidade em mais de 521 mil pessoas de dez países europeus (Portugal não está incluído), a outra investigação quis confirmar se as vantagens associadas ao consumo de café existem para todas as populações, sobretudo as “não-brancas” (japoneses americanos, afro-americanos, latinos e havaianos) que são menos estudadas. Não é a primeira vez que se publica um estudo sobre café. Longe disso. Tal como o chocolate ou o vinho (que também contam com legiões imensas de fãs), os efeitos do café têm sido alvo de várias investigações nos últimos anos. Dizem as estimativas que todos os dias se bebem mais de dois mil milhões de chávenas de café (nas suas mais diferentes formas) em todo o mundo. Números de lado, sabemos que o café é um elemento importante na nossa dieta e que, por isso, importa estudá-lo. Apesar de ser difícil isolar os seus benefícios numa dieta e estilo de vida que inclui multiplas influências, já foram divulgados vários estudos que provaram que o consumo desta bebida pode ter um efeito protector em relação a algumas patologias, desde a diabetes do tipo II a doenças cardiovasculares, Alzheimer, Parkinson e até alguns tipos de cancro. Mas, atenção, estamos ainda na fase do “pode” ter um efeito benéfico. Desta vez, meteu-se quase tudo no mesmo saco e tentou-se uma fotografia global que quis mostrar se o consumo de café está associado à mortalidade. Está. E parece ser o melhor dos casamentos contribuindo para um menor risco de morte por todas as causas. Essa é a principal conclusão de um estudo internacional, publicado na Annals of Internal Medicine e financiado pela Comissão Europeia e pela Agência Internacional para a Investigação de Cancro, que apresenta o resultado de uma análise à saúde de 521. 330 pessoas de dez países europeus (Dinamarca, França, Alemanha, Grécia, Itália, Holanda, Noruega, Espanha, Suécia e Reino Unido). É o maior estudo feito até à data sobre este tema. Os participantes fazem parte de um grande projecto europeu conhecido pela sigla EPIC (European Prospective Investigation into Cancer and Nutrition) que acompanha (ao longo dos últimos 16 anos, em média) homens e mulheres de vários países, servindo para a análise e monitorização de diversos indicadores de saúde. “Percebemos que um elevado consumo de café está associado a um menor risco de morte por qualquer causa e especificamente por doenças circulatórias e digestivas”, refere Marc Gunter, principal autor do estudo e investigador na Agência Internacional para a Investigação do Cancro, num comunicado do Imperial College de Londres. Surpreendentemente, o efeito protector também foi encontrado entre os consumidores de descafeinado. Porém, avisam os investigadores, a separação entre consumidores de cada uma das versões não é fácil de fazer, porque não foi possível excluir a hipótese de as pessoas que declararam beber descafeinado terem consumido café noutros períodos da sua vida. Além disso, há outros produtos que têm cafeína, como chá ou refrigerantes. Os autores admitem ainda que o facto de os hábitos de consumo de café terem sido avaliados uma única vez é uma limitação do estudo, mas notam que a associação do consumo de café a uma vida mais longa foi constatada em todos os países. O trabalho também teve em conta as diferentes formas que o café assume na Europa, desde o expresso italiano ao cappuccino no Reino Unido, e outros hábitos dos participantes, tais como fumar. Com a análise a biomarcadores metabólicos a um grupo mais pequeno de 14 mil pessoas foi possível ainda perceber que os consumidores de café terão um fígado mais saudável e um melhor controlo dos níveis de glucose (açúcar). “Estes resultados, juntamente com os dados de outros estudos realizados nos EUA e no Japão, dão-nos uma maior confiança para afirmar que o café pode ter efeitos benéficos na saúde”, conclui Marc Gunter. Sim, pode ter. “Tendo em conta as limitações da investigação, ainda não estamos na fase de recomendar às pessoas para beber mais ou menos café. Dito isto, os nossos resultados sugerem que um consumo moderado – até cerca de três chávenas por dia – não prejudica a sua saúde e que incorporar o café na sua dieta pode ser benéfico para a saúde”. Mas o que é que falta saber para afirmar que o café é benéfico? Falta esclarecer como é que isto acontece. Qual é o composto que o café tem que consegue alcançar este efeito protector no nosso organismo e como funciona esse mecanismo. Portugal não está respresentado neste vasto estudo, mas há várias equipas de investigação no país que já fizeram descobertas relacionadas com o café. Por exemplo, Luísa Lopes, investigadora do Insituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa, examinou a relação do café com a doença de Parkinson e demonstrou que a cafeína conseguia interferir na agregação tóxica de uma proteína que está muito associada aos doentes de Parkinson, que é a alfa-sinucleína. Ou seja, tinha um efeito protector numa doença neurodegenerativa. Para a cientista, os resultados do estudo publicado esta segunda-feira são entusiasmantes, mas não são surpreendentes. “Não me surpreende, porque já tínhamos algumas pistas de que o café era protector em várias doenças associadas ao envelhecimento da população e doenças crónicas: diabetes, doenças cardiovasculares e neurodegenerativas”, explica, deixando também a grande questão no ar: “Ainda não sabemos é porquê”. No entanto, a associação com a longevidade e o número de pessoas estudadas fazem deste estudo "um ponto de partida muito interessante para tentar saber mais”. Falta agora “dissecar” os resultados estudando pequenos grupos, comparar grupos de pessoas que bebem café com pessoas que não bebem café, identificar os compostos e mecanismos que são responsáveis por este benefício. “O que provavelmente se segue são estudos muito mais focados, em modelos animais e estudos humanos com grupos mais pequenos, para conseguir dissecar estas conclusões, dar os compostos a cada grupo e ver o que acontece”, prevê a investigadora. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas, tal como já referimos, a edição da Annals of Internal Medicine tem dois estudos sobre café. Num outro artigo, os investigadores da Universidade de Califórnia do Sul (nos EUA) tentaram perceber como o consumo desta bebida afectava a saúde em diferentes populações. O estudo (Multiethinc Cohort) acompanhou mais de 185 mil pessoas durante uma média de 16 anos. Neste grupo encontravam-se afro-americanos, nativos americanos, havaianos, japoneses americanos, latinos e brancos. Mais uma vez, os investigadores confirmaram que o consumo de café estava associado a um menor risco de morte por doença cardíaca, cancro, AVC (Acidente Vascular Cerebral), diabetes e doenças respiratórias e do fígado, mas, desta vez, também nas populações não-brancas que são menos estudadas. E, concluíram, quanto mais, melhor. Até um certo ponto, claro. “As pessoas que consomem uma chávena por dia têm menos 12% de probabilidade de morrer mais cedo quando as comparamos com as que não bebem café. A associação é ainda mais forte para os que bebem duas a três chávenas por dia, que têm uma redução na ordem dos 18%”, refere um comunicado sobre este estudo que também não encontrou diferenças entre os consumidores de café e descafeinado. O segredo do café pode até não ser a cafeína mas outros dos seus muitos e variados compostos, desde antioxidantes a vitaminas. E podemos não saber por que faz bem, mas sabemos por que sabe tão bem e é fácil perceber o fenómeno à escala mundial. Luísa Lopes admite que também é fã de café - “nunca mais de dois por dia” - e explica o seu sucesso. “É natural, é uma das bebidas psicoactivas mais populares no mundo. Tem a vantagem enorme de ter poucos efeitos secundários (eventualmente, cefaleias em caso de privação) e pode ser consumida durante muitos anos sem que o efeito se perca com o tempo e sem que o consumidor sinta a necessidade de aumentar a dose. É digestivo. É diurético. Depois tem aquele efeito de alerta que é muito rápido e é o seu principal trunfo. É quase a droga ou fármaco ideal para aumentar o desempenho cognitivo. E, ainda por cima, é barato”. Hoje, juntando estes velhos argumentos às boas notícias, o seu café vai saber ainda melhor.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
De que serve doar material escolar a Moçambique? De muito e de nada
Moçambique está em constante experimentação. Reduzir a formação dos professores é hoje aceite como uma má decisão. Há professores que mal sabem ler. Uma empresa portuguesa deu um contentor de material escolar. Foi bem vindo, mas é uma gota no oceano (...)

De que serve doar material escolar a Moçambique? De muito e de nada
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.2
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Moçambique está em constante experimentação. Reduzir a formação dos professores é hoje aceite como uma má decisão. Há professores que mal sabem ler. Uma empresa portuguesa deu um contentor de material escolar. Foi bem vindo, mas é uma gota no oceano
TEXTO: “Quem vem a pé do Norte, chega aqui e acha que isto é Paris”, diz o escritor António Cabrita, sentado na varanda do seu apartamento em Maputo, semivazio, mas cheio de livros. A frase é dita com tristeza, mas sobretudo como conselho: é preciso sair da capital para perceber o que se passa com a educação em Moçambique. Três dias a visitar escolas e a ouvir moçambicanos permitem perceber que há milhares de adolescentes acabados de chegar ao ensino primário, milhares de crianças que aos dez anos, com a 4. ª classe feita, não sabem ler nem escrever, e que um milhão não está sequer na escola. Para não falar das aulas debaixo das árvores, das escolas sobrelotadas, das “segundas turmas”, das salas com 70 alunos, da média de uma hora e 41 minutos de aulas por dia, ou da fraca formação dos professores primários: com a 10. ª classe (10. º ano português) e um ano de formação psicopedagógica, qualquer pessoa recebe uma bata branca para ensinar. Em Moçambique, isto representa progresso. Em 1975, havia 3% de pessoas alfabetizadas, durante anos o país esteve em último lugar nos índices mundiais de pobreza, após duas décadas de guerra civil os livros tornaram-se um luxo exótico, as elites políticas têm uma formação muito frágil, o Estado não dá prioridade à educação, as exigências no ensino não param de baixar. No entanto, bastaram 15 minutos no centro de Maputo a folhear exames finais do 1. º ano da faculdade — os alunos de António Cabrita — para ser evidente a dimensão do problema. Que é gigantesco, concordam professores, políticos, funcionários de organizações não governamentais, especialistas em educação, jornalistas e analistas ouvidos pelo PÚBLICO. “Os alunos chegam à universidade tão mal preparados que, no primeiro dia de aulas, peço sempre que leiam um texto em voz alta. Percebo logo os que têm dificuldade em ler qualquer coisa que não seja muito simples. Alguns parecem miúdos de sete anos. Moçambique perdeu o contacto com os livros durante 19 anos. Hoje, nas universidades, apanhamos os filhos desse vazio”, diz Cabrita, escritor português e antigo crítico do semanário Expresso que, “vítima de um erro de geografia amorosa”, se mudou para Maputo há 15 anos. Livros é coisa de que nem se fala na escola primária da aldeia de Taninga, no distrito de Manhiça, a cem quilómetros da capital. Quando se pergunta quais são os principais problemas que enfrenta, a professora Olga Ngovene, directora da escola há sete anos, não hesita. São três: dos 840 alunos, 15 turmas têm aulas debaixo das árvores; muitos dos que têm sala trabalham no chão porque as carteiras não chegam, e não há orçamento para pagar a um guarda que, à noite, impeça a defecação dentro das salas. Soa a indiscrição da professora, mas este é um problema referido com naturalidade nos jornais nacionais e nos relatórios internacionais. “Trinta e nove por cento da população ainda pratica o ‘fecalismo’ a céu aberto”, diz a UNICEF no estudo Situação das Crianças em Moçambique, de 2014. “O guarda tem de ser pago pelos pais da aldeia e é difícil convencê-los. ”O tom da professora é factual, não de lamento, e passa a resignação num ápice: “A situação é razoável. Temos de nos contentar com o que temos. É o que o Governo instituiu. ”Estamos a uma distância que se faz em apenas uma hora e meia de carro, o que, num país com quase três mil quilómetros de comprimento, faz Manhiça parecer um subúrbio de Maputo. Mas o contraste é profundo. A escola de Taninga, como a da aldeia 3 de Fevereiro e outras neste distrito, está construída em cima de solos de areia solta onde os pés se enterram, as salas têm apenas carteiras e um quadro, há três latrinas nas traseiras, um campo de ananases, outro de mandioca — e é tudo. À volta, vêem-se arrozais e campos de batata-doce, banana, caju e amendoim. As casas da aldeia têm paredes de tijolo e coberturas de colmo, outras apenas colmo, e estão construídas em pequenos núcleos de três ou quatro unidades, como se fossem minipraças. Atravessamos o caminho de areia aberto por entre a vegetação e chegamos à grande novidade desta escola: as duas salas da pré-primária, recém-construídas pela Ajuda de Desenvolvimento de Povo para Povo (ADPP, associada à Federação Humana People to People). Não há professores, nem mobiliário, apenas duas esteiras no chão e um quadro na parede. É aqui que quatro “facilitadoras” escolhidas entre as mulheres da comunidade — elas próprias com apenas a instrução primária ou nem isso — passam umas horas por dia com crianças dos três aos cinco anos. O salário mensal são 650 meticais, dez euros. Num país em permanente esforço e experimentação, esta “escolinha” faz parte do projecto-piloto da ADPP para a criação de uma rede de ensino pré-escolar comunitário aqui e no distrito vizinho de Boane. Construíram 70. Tem financiamento dos EUA e das receitas conseguidas através da venda de roupa usada — o controverso “negócio das calamidades”. Quando espreitamos pela janela e entramos, um rapaz de três anos e pouco rebenta num pranto e tenta fugir. “Nunca tinha visto um branco”, diz divertida Anabela Ganhane Joaquim, “facilitadora” e mãe de seis filhos. A sua tarefa é ensinar algumas palavras em português, língua que estas crianças nunca ouviram sequer, e regras de convivência básicas como usar as latrinas em vez do mato e ficar sentado a olhar para o quadro. “O meu português é melhor porque nasci na cidade, mas o deles não é um português seguro. ” Todos sabem que a probabilidade de ouvir “português seguro” ali é igual à de ouvir “mongol seguro” no Douro, mas Anabela Joaquim é uma aldeã que fala como se tudo fosse fácil. Mas o português não é o maior problema, segundo um especialista em educação que pediu para não ser citado. O grande desafio é fazer a transição de uma sociedade sem escrita: “Quando as crianças chegam à escola, começam a ver coisas ali escritas que elas nunca viram na vida. Numa sociedade com escrita, as crianças começam a ter contacto com a escrita aos três meses. ”Na “escolinha” de Taninga, os alunos sentam-se nas esteiras e repetem as letras em voz alta. Já aprenderam duas frases na língua oficial de Moçambique: “bom dia” e “estamos bem de saúde, obrigado!”. Tudo o resto se passa em changana, uma das 20 línguas moçambicanas e a que se fala nesta região. A “primeira sorte” de Anabela Joaquim — a sua filha mais velha — acaba de chumbar numa escola secundária de Maputo. A ideia da pré-primária é nova, mas todos acreditam que vai fazer a diferença e reduzir desistências e chumbos mais à frente. Três mulheres do Comité de Coordenação da Comunidade da aldeia, cada uma com um neto na nova creche, recebem-nos debaixo de uma sombra. Em 1975, quando Moçambique se tornou independente, já tinham 20 anos, mas nenhuma fala português. Trabalham na machamba desde sempre, explicam em changana, nunca tiveram “o privilégio de ir à escola”. Um dos netos é órfão de pai e de mãe — “ficaram muito magros e morreram”, conta uma das vizinhas. “Provavelmente sida”, diz alguém discretamente. Segundo as Nações Unidas, 13% das crianças moçambicanas perderam o pai ou a mãe por causa da sida; em 2013, Moçambique, com uma população de 28 milhões, era o 8. º país do mundo com maior prevalência de VIH; em 2014, havia 183 mil crianças com o vírus; em 2017 morreram 70 mil pessoas com sida, e hoje há dois milhões de infectados. “O meu neto chega a casa e já consegue dizer em português os nomes de objectos, animais, transportes, árvores e frutos”, diz Laurinda Pedro Matchvé, embrulhada num pano tradicional — a capulana — com um padrão de castanhas de caju. Como imaginam o futuro destas crianças? Juvêncio Psungo, no seu blaser preto, ouve as vizinhas e acrescenta: “Espero que vão para a primária, depois para o secundário e a seguir arranjem trabalho. Mas, ultimamente, eles namoram cedo, nascem bebés e estragam tudo. ”Estamos a conversar debaixo da sombra de uma creche de Manhiça, mas parece que caímos dentro do índice de um relatório da ONU sobre desenvolvimento em Moçambique. “A actividade sexual começa muito cedo e tem como resultado elevadas taxas de gravidez na adolescência”, diz a UNICEF. “O casamento prematuro é uma das principais causas de desistência escolar entre as adolescentes. ” Uma em cada duas raparigas casa-se antes dos 18 anos. Uma em cada dez casa-se antes dos 15. Em 2015, o Ministério da Saúde concluiu que 46% das adolescentes entre os 15 e os 19 anos estavam grávidas ou já eram mães. Quando regressamos a Maputo já é noite. Ainda nem digerimos o dia quando um editor de Maputo diz com secura, sabendo que a frase tem a força de uma estalada: “Isso é o Moçambique rico: na Manhiça não há fome. Se forem à Zambézia [no centro do país] ou a Cabo Delgado [extremo nordeste], aí, sim, vêem coisas diferentes. ”Não há tempo para tantos quilómetros. Desafiando as recomendações, vamos a uma escola ainda mais próxima da capital. A Escola Primária Completa de Guava, em Marracuene, é apenas a 40 quilómetros de Maputo, na zona urbana e desestruturada que cresceu nos últimos anos ao longo da Estrada Circular financiada pela China. Aqui, as crianças usam uniformes e tudo é diferente das escolas das aldeias de Manhiça — mas só à primeira vista. O chão do recreio também é de areia lassa e também há 15 turmas sem sala de aula. Quando chegam, são os próprios alunos que transportam o quadro até às traseiras, à procura da sombra de uma mangueira. Como nos distritos mais longínquos, esta escola é um espelho dos principais problemas da educação em Moçambique. O mais óbvio dos quais é tão simples quanto isto: há muitas crianças. — Quantos alunos tem a sua turma? — pergunta o PÚBLICO. — Sessenta e sete — responde a professora Maria Palvate. — Sabe o nome de todos?— Não, talvez de uns 50. . . Mas normalmente até ao fim do ano consigo saber todos. Nércia Paula Mambo, chefe do posto administrativo de Marracuene, define a escola do bairro de Guava como “média”, pois “não está nem pior nem melhor do que o conjunto” do distrito. “Há quatro salas em construção, mas ainda há 15 turmas ao ar livre e continuamos de braços dados aos doadores”, diz a líder local da Frelimo, o partido que está no poder há 43 anos. É ela quem está no primeiro lugar da fila de 77 convidados — alinhados como numa parada militar — que esperam a chegada de Raimundo Maico Diomba, o governador da província de Maputo. Hoje é dia de festa e a escola está uma confusão. O doador do dia é a Ferpinta-Moçambique — que produz materiais de aço e equipamentos agrícolas e tem operações em Maputo, Beira e Nacala. De Portugal — onde está a casa-mãe, o Grupo Ferpinta de Fernando Pinho Teixeira, dono da décima maior fortuna de Portugal — enviou um contentor com onze toneladas de bens para oferecer a cinco escolas de Marracuene — ou seja, a dez mil alunos. Chamaram ao projecto Abraço de Ferro. No bairro de Guava, a equipa faz questão de dar os materiais às crianças, uma a uma — e não à escola. Mas de manhã, às 10h30, sem que se perceba porquê, centenas de alunos começam a ir embora. Por causa do excesso de inscrições — são 4789 alunos —, a escola de Guava tem três turnos, o da manhã, o do meio e o da tarde, e os alunos só têm três horas de aulas por dia, explica a professora Delfina Jamince, 29 anos, que à tarde vende chamuças no mercado. Mal entra, de sorriso aberto, coque alto e fato impecável, o músico e apresentador de televisão Nuno Abdul é bloqueado por uma multidão de alunos que o querem cumprimentar. Uma menina comove-se, abraçando-o com muita força, como se fosse um amigo próximo. O músico nasceu em Maputo em 1987, no décimo ano da guerra civil, e só estudou no ensino público até à 2. ª classe. O pai, na altura presidente da Federação Moçambicana de Atletismo, mudou-o para uma escola privada, melhor e mais segura. Hoje com 30 anos e pai de um bebé de três, já não hesitou e pôs o filho numa creche privada. A seguir, deverá estudar em Portugal. A escola primária onde esteve até aos oito anos, no bairro do Maxaquene, “está igualzinha ao que era nos anos 1990: pouca higiene, dos professores nem falo!”. Alguém surge, com uma expressão aflita, a dizer que as crianças receberam instruções para irem para casa. Como a pequena corrupção é tão frequente quanto a grande, a regra é desconfiar. Porque estão a mandar os alunos embora? O camião com os caixotes empilhados e selados a plástico brilha, imponente, no recreio de areia. Uma autoridade local sugere que não se mexa em nada para, com calma, descarregar tudo mais tarde. A equipa distrital da educação está aqui em peso e cada um tem uma proposta diferente. Enquanto se negoceia o plano, alguém fecha o portão maior da escola e os funcionários da Ferpinta pedem às crianças para voltarem a entrar. Muitas já estão na estrada, também de areia, onde só carros com tracção às quatro rodas não se afundam. Nisto, o modelo Pedro Guedes, que com o irmão gémeo, Ricardo, e a namorada ajudou a promover o Abraço de Ferro em Portugal e voou até Moçambique para o dia da doação, sobe para o camião e começa a descarregar. É dali que saem 1734 mochilas novas e muito material para trabalhar: 30 mil tintas, cinco mil cadernos, sete mil canetas, 663 estojos, oito mil lápis de carvão, seis mil marcadores, 3144 afias, 3250 borrachas, a lista é longa. Há centenas de livros de histórias, mil brinquedos, 2160 sumos e muitas caixas com material para os professores, como pastas e arquivadores. Os manuais escolares usados do 10. º, 11. º e 12. º do ensino português serão oferecidos às bibliotecas escolares. Os materiais foram recolhidos ao longo de um ano em Lisboa, Porto, Santa Maria da Feira, Carregosa, Oliveira de Azeméis, Espinho, Lourosa, São João da Madeira e Águeda, e a operação teve como principais parceiros a Fundação do Sporting Clube de Portugal e a Turkish Airlines. Não há mochilas para todos, mas muitas crianças não precisam. Difícil é garantir que quem tem uma mochila velha — e há muitas — recebe uma nova. Há adultos que põem duas ou três de lado, sem pudor. “Também tenho filhos. . . ”, diz uma professora. As horas seguintes serão de autógrafos e atropelos, idealismo e cinismo, alegrias e decepções, selfies, suor e lágrimas. Um flashback rápido: mal chega, “sua excelência o senhor governador da província de Maputo” cumprimenta a parada de Guava e, um a um, dá 77 apertos de mão. Já estão todos sentados quando uma menina de uniforme azul sobe ao palanque para ler a mensagem dos alunos. Em português, agradece a visita de Raimundo Diomba e a ajuda dos “titios da embaixada da Irlanda”, e promete que os estudantes vão “utilizar o material com cuidado para poder beneficiar outras gerações”. O mestre-de-cerimónias ignora o erro e pede uma “forte salva de palmas” para a aluna que “leu tão bem a mensagem” e, com isso, “provou que está bem assimilada” — um estranho uso para uma palavra que ficou do tempo colonial. O dia vai ser longo, é preciso avançar. “Com a permissão de sua excelência”, António Marcos — boina preta, luvas brancas e calças brilhantes — canta dois hits e faz uma espécie de dança das tesouras sem que a areia lhe atrapalhe as pernas. A seguir o microfone passa para Salmina Alexandre, directora adjunta de Educação e Desenvolvimento Humano de Marracuene, que começa por cantarolar, em tom de balada revolucionária, “mas nunca falta. . . a educação. . . mas nunca falta. . . a educação. . . ”. O discurso é breve e fecha em tom eufórico: “E assim, [com a ajuda dos doadores estrangeiros], estão criadas as condições para promover a cultura de leitura nas nossas crianças, muito obrigada!”É provavelmente a este tipo de atitude que o arquitecto português José Forjaz, de 82 anos e em Moçambique desde 1974, se refere quando diz mais tarde, no seu atelier de Maputo, que “o hiato entre o que se queria na independência e a realidade já é claro, mas infelizmente dá-se muito a ideia de que ‘temos capacidade, não temos é experiência’”. Forjaz integrou os governos da Frelimo entre 1975 e 1985: foi conselheiro do ministro das Obras Públicas e secretário de Estado do Planeamento Físico. A seguir, “pediram-lhe” que montasse uma Faculdade de Arquitectura na Universidade Eduardo Mondlane (UEM). Foi aí que deu aulas durante duas décadas. Em 1976 — “as pessoas não acreditam, mas é verdade” — “entrava na universidade quem tivesse diferente de zero”. Passados 40 anos, “há muitas e boas excepções, mas a consciência da própria ignorância atravessa todas as universidades”. “As estatísticas emergem e o desconsolo aparece”, diz o arquitecto, autor do célebre Monumento a Samora Machel e de vários edifícios públicos. “A educação toca o fundo do barril. Em 1976 havia uma grande esperança. Hoje vemos que o Orçamento do Estado é usado para enriquecer alguns. ”O Abraço de Ferro nasceu inspirado por um projecto de Vânia Teixeira, uma jovem contabilista da Ferpinta-Moçambique que, em 2017, fez uma acção parecida, a título pessoal, para 500 alunos naquela mesma escola de Guava, contou Ricardo Ribeiro, director de operações da Ferpinta-Moçambique. Na cerimónia, quando recebeu o microfone, foi a ela que o gestor português agradeceu com especial cuidado, para além dos parceiros. Mais tarde, ao PÚBLICO, o “maestro” da operação diz que, no futuro, quer fazer acções parecidas noutras regiões de Moçambique: “Não queremos que seja uma acção solta. ” Sabe que não será o contentor doado por empresas e cidadãos que vai resolver o problema, mas não fazer nada não lhe parece boa opção. Trabalham no país, têm 130 funcionários moçambicanos, sentem “o dever de fazer”. Agora “é preciso menos barulho” pois “o papá Diomba” vai falar, pede Salmina Alexandre. O governador da Frelimo, que combateu pela independência contra o Exército português, fez um mestrado em engenharia e fala inglês, russo, maconde e suaíli, é político há décadas e abre o discurso como se estivesse num comício: “Viva a educação!” (“Viva!”, gritam as crianças). “Viva o livro!” (“Viva!”). “Viva o gosto pela leitura!” (“Viva!”). “Moçambique oi!” (“Oiii!”). “Aluno disciplinado, oi!” (“Oi!”). “Aluno que não faz barulho, oi!” (“Oi!”). Diomba cresceu em Mueda, o distrito de Cabo Delgado colado à Tanzânia que é talvez o mais pobre do país. Sabe bem que aqui — nos arredores da capital — estamos no “Moçambique rico”. Talvez por isso o tom é de optimismo exaltado. Descreve a acção da Ferpinta como “um gesto humanitário imensurável” que vai “semear em cada uma destas crianças o espírito de estudar e gostar de ler”. Mas à terceira ou quarta frase, e as televisões locais estão a filmá-lo, assume pose de campanha eleitoral pura e dura: agradece a “sua excelência Filipe Jacinto Nyusi, Presidente de Moçambique, o empenho que tem demonstrado no processo de pacificação do país”, e sublinha: é por haver “paz que estamos aqui numa festa a receber uma oferta dos nossos amigos”. Estamos a três meses do início de um ciclo eleitoral sem precedentes e todas as oportunidades são poucas. Fruto dos acordos entre Nyusi e Afonso Dhlakama — líder histórico da Renamo (maior partido da oposição) que morreu em Maio —, o Parlamento acaba de aprovar alterações à Constituição e à lei eleitoral há muito esperadas. As mudanças permitem que os governadores e os administradores distritais passem a ser eleitos e deixem de ser nomeados pelos ministros e pelo chefe de Estado, e introduzem ainda o conceito de cabeça de lista. Os efeitos vão ser sentidos nas eleições autárquicas de Outubro de 2018, nas gerais de Outubro de 2019 — que incluem presidenciais, legislativas e provinciais — e nas eleições para os administradores distritais em 2024. Analistas políticos ouvidos pelo PÚBLICO estão convencidos de que a Frelimo antecipa uma perda de poder significativa neste novo ciclo eleitoral. A confirmar-se, a vida de homens como Raimundo Diomba, nomeado pelo Presidente da República, poderá estar a caminho de uma mudança radical. Veterano, é Diomba quem corrige, com humor, a aluna que abriu a cerimónia desta manhã: “Falaram da Irlanda. Confundiram porque estão a receber muitos apoios! De facto, a Irlanda fez esse muro que está aí”, diz o governador, apontando para o fundo da escola. “Não tiveram oportunidade para agradecer na altura e aproveitaram agora! A Ferpinta não deve sentir que houve alguma exclusão!”“Sua excelência” não se alonga. “Aqueles que tiverem um lápis, que tiverem uma borracha, que tiverem um caderno não muito rasgado, mas que ainda tem papel para escrever, podem oferecer. Estão a contribuir para o engenheiro de amanhã, para o dirigente de amanhã, para o agricultor de amanhã. Moçambique oi! Presidente Nyusi oi! Muito obrigado. ” É a deixa para Caio Oliveira, jogador de hóquei em patins do Sporting e também embaixador do Abraço de Ferro, oferecer ao governador uma T-shirt oficial com os autógrafos da equipa. Com “elevada honra”, o mestre-de-cerimónias anuncia a “retirada deste local” de “sua excelência o governador de Maputo” e pede aplausos em changana. “Os alunos não podem aprender o que os professores não sabem”, diz o relatório do Banco Mundial (BM) sobre educação em Moçambique que em 2015 deu muito que falar. O retrato é “terrível, terrível, terrível”, diz Fernando Lima, publisher e colunista do semanário Savana, abanando a cabeça. O documento chama-se Indicadores de Prestação de Serviços da Educação e foi conduzido com o Consórcio de Pesquisa Económica Africana e o Banco Africano de Desenvolvimento. Envolveu 1006 professores, 1731 alunos e 200 escolas primárias moçambicanas, e amostras idênticas na Tanzânia, Quénia, Uganda, Nigéria, Senegal e Togo. Avalia tanto professores como alunos, sobretudo em relação à assiduidade e ao saber. Os piores resultados são os de Moçambique: quando os inspectores chegaram às escolas em visitas-surpresa, 45% dos professores não estavam e só 39% estavam a dar aulas (11% estavam na escola, mas fora da sala de aula; 5% na sala, mas não a ensinar). É também este estudo que conclui que os alunos têm em média 1h41m de aulas por dia. “Dos 190 dias de aulas, os alunos recebem apenas 74 dias efectivos de ensino. ”As perguntas dos exercícios para aferir o conhecimento são simples. Escolher a palavra correcta para completar a frase “. . . acordo, escovo os dentes”, sendo as três hipóteses “Que”, “Quando” e “Porque”. Outra frase é “. . . dinheiro tem?” (“Quem”, “Quanto” ou “Quantos”?). Isto a Português. Na Matemática, eram contas como 44+33; 86-58; 37x13 e 72:9. Só 65% dos professores conseguiram fazer subtracções de dois dígitos (exemplo: 86-58); e só 39% conseguiram fazer subtracções com números decimais (exemplo: 12, 15-11, 83). A pontuação média obtida pelos professores moçambicanos — que ganham cerca de nove mil meticais por mês (130 euros) — na avaliação de Português, Matemática e Pedagogia foi um embaraço nacional: 29%, o pior valor entre os seis países estudados. O Quénia, o melhor, apresentou uma pontuação de 58%. Nada disto espanta Liudmila Jeque, apresentadora do Vidas em Directo da STV, ou o músico Nuno Abdul. Os dois são “embaixadores” da doação da Ferpinta e percorremos juntos os 45 minutos de carro de Maputo até Marracuene. “Há professores que mal sabem ler e escrever”, diz a antiga modelo. Ela própria tem uma prima de 30 anos que é professora na Matola e dá erros ortográficos que a deixam perplexa. “Por causa de todos os anos que tivemos de guerra, é supernormal encontrar pessoas com 30 e 40 anos que não sabem ler nem escrever”, diz o músico. Os dois fazem parte de uma pequeníssima elite de jovens que nasceram nos anos da guerra civil, passaram pelo ensino público e acabaram no privado. Liudmila Jeque, que cresceu em Quelimane, capital da Zambézia, andou no ensino público até à 6. ª classe, mas com um truque familiar. “Todos os dias vinha da escola e o meu pai, chefe de escala nas Linhas Aéreas de Moçambique, estudava toda a tarde connosco — somos quatro irmãs. Ouvíamos os meninos a brincar na rua e nós ali a estudar. . . Mas hoje somos todas licenciadas. ” Na 7. ª classe, acabou por ir para um colégio privado chamado Escola Secundária Geral Mãe África. “Recentemente, o meu pai disse-me que me tirou do ensino público não só pela qualidade de ensino mas também porque os professores queriam dinheiro. Isto no ano 2000. A corrupção tem tomado conta do nosso ensino. ”O arquitecto José Forjaz, que conhece o país desde os anos 1950, é ainda mais duro. “As escolas primárias públicas são destrutivas e são um grande negócio. Todos sabem que há professores que violam as meninas, que há professores que não sabem fazer subtracções simples, que há professores que vendem as notas, que exigem dinheiro para passar os alunos e até para os inscrever na escola”, diz num registo sereno e seguro. “Eu vejo, todos vêem e todos são obrigados a cooperar. ” Ainda este ano, o arquitecto “cooperou” e deu dinheiro a uma senhora que conhece e a quem a escola pedira 1500 meticais (22 euros) de “refresco” para inscrever o filho numa primária da capital. “Toda a gente conhece casos iguais. ”É tal a reputação dos professores primários que na sua tese de doutoramento sobre a formação dos professores do básico, Hilária Joaquim Matavele, professora na Faculdade de Educação da UEM, escreve sobre a “vergonha” associada à profissão. “Quando saem da escola, os professores escondem a bata que vestem na escola para não serem identificados como professores”, diz um dos entrevistados para a sua investigação. É Hilária Matavele, cuja tese foi apresentada há dois anos na Universidade de Aveiro, quem sistematiza o ponto de partida do país. “Em 1966-67, na escola secundária, os negros representavam apenas 1, 1% dos alunos (Gasperini, 1989). Na mesma linha estava o ensino superior oferecido pela única instituição existente, a Universidade de Lourenço Marques, na qual em 1973 apenas 40 dos 3000 alunos eram negros (Gómez, 1999). ” A seguir à independência deu-se uma “explosão escolar”: passou-se de 671. 617 matriculados no ensino primário em 1975 para 1. 276. 500 em 1976. Em 1980 já eram 2, 3 milhões e hoje há quase um milhão de novos alunos a entrar no sistema todos os anos. A explosão demográfica é um factor decisivo. Há dez anos havia 24 milhões de habitantes, hoje há 28. Na microescala, vê-se assim: o distrito de Marracuene, que a 4 de Julho recebeu a doação de Portugal, tinha 36. 150 alunos na escola primária em 2015 e hoje tem 69. 548. Aumentar o número de professores tornou-se uma urgência. Mas para ser feito depressa, baixou-se a exigência da formação. Não era preciso ter-se uma licenciatura, depois não era preciso ter-se a 12. ª classe mais três anos de formação psicopedagógica e depois deixou de ser preciso ter-se a 10. ª classe mais três anos de formação. Há quase uma década que a regra é 10+1. “Havia muita falta de professores primários e o Governo achou que era melhor ter professores piores do que não ter professores”, diz a dinamarquesa Birgit Holm, directora executiva da ADPP Moçambique, no país desde os anos 1980. Mas não está a resultar. O debate foi aberto, em particular depois de o anterior ministro da Educação ter admitido em público o fracasso da ideia. “O próprio ministro disse que só 4, 5% das crianças da 3. ª classe fazem o que é suposto fazer”, diz Birgit Holm. Espera-se que em breve volte a ser, pelo menos, 10+3. O governador Raimundo Maico Diomba não se quer comprometer. “Vamos deixar os técnicos especialistas discutirem o assunto e depois podemos opinar”, responde ao PÚBLICO, à saída da escola de Guava. Mas se dependesse da equipa distrital de Educação de Marracuene, estava resolvido. Susana Bruno, a directora, diz que a maioria dos 989 professores do distrito só fez a 10. ª classe, mais um ano de formação, e que isso “é pouco”. E Gabriel Mandate, chefe de repartição da Educação Geral, diz que “o tempo é curto”: “Estamos a tirar da escola crianças da 10. ª classe para lhes dar formação como professores, quando elas ainda precisam de estudar. ”“Não foram só as pontes que foram destruídas nos anos da guerra”, diz António Cabrita, professor de Dramaturgia na Escola de Comunicação e Artes, um braço da UEM. “As províncias ficaram isoladas. Um livro sai aqui e não chega a Nampula”, a “capital do Norte”. “Mas também não chega a Quelimane”, mais a sul, mas a 1600 quilómetros de Maputo. “A última livraria de Nampula fechou há um ano. ”É um de muitos sinais num país que, como diz, tem uma elite que não lê e que cresceu sem livros. “Nas revistas, quando aparecem as casas dos políticos, só se vêem bibelots. Os livros têm tiragens de 200 exemplares, mesmo o Mia Couto faz tiragens de 300. ” Quando foi à Beira lançar Os Crimes Montanhosos (edições Cavalo do Mar, 2018), com poemas seus e de Mbate Pedro, venderam quatro exemplares na sessão de lançamento, e no debate na universidade, a seguir, não venderam nem um. “E 80% dos escritores moçambicanos são da Beira!” Nos quase 20 anos de guerra, “não se fizeram livros, não se importaram livros, as poucas livrarias que existiam desapareceram, e quebrou-se o circuito dos bens culturais”, diz num fôlego. “Maputo ficou numa redoma. ” Em 1975, o Instituto do Livro e do Disco fazia edições de 30 mil exemplares. “Hoje está praticamente parado e as últimas edições tinham tiragens de 200. ” A professora primária Delfina Jamince, da escola de Guava, é um bom exemplo da preocupação do escritor. Gosta “muito de ler”, sim. Por exemplo: “Livros de histórias. . . a Bíblia e livros com ensinamentos. ”Nada disto perturba Isaias Wate, um homem grande com um sorriso proporcionado à sua altura. Operacional da Ajuda de Desenvolvimento de Povo para Povo há 22 anos, é ele que nos guia pelas escolas de Manhiça. No escritório, mostra os manuais escolares que a ADPP editou em línguas locais e português, para responder à nova política do ensino bilingue. Onde muitos vêem o futuro comprometido, Wate vê sobretudo a “marcha da educação em progresso”: “Muitos professores têm a paragem do ‘chapa’ a 15 quilómetros da aldeia onde estão colocados para ensinar o ABC. Há chuva, têm dificuldades. Há vento, têm dificuldades. Nasci em 1964 na aldeia de Manjacaze, em Gaza, onde a escola era sinalizada pela árvore mais alta. Não havia mais nada. Foi debaixo dessa árvore que me tornei um cidadão activo. Há alguma dúvida? O professor é um herói nacional. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O PÚBLICO viajou a convite da Ferpinta-Moçambique
REFERÊNCIAS:
Haim e Bonga: dois sinónimos para verdade
O oitavo Rock in Rio Lisboa arrancou com os Muse enquanto cabeças de cartaz e a atraírem uma multidão para o concerto de encerramento de sábado. O final da tarde ficou a cargo de duas actuações menos concorridas mas magníficas: das californianas Haim e do angolano Bonga. (...)

Haim e Bonga: dois sinónimos para verdade
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: O oitavo Rock in Rio Lisboa arrancou com os Muse enquanto cabeças de cartaz e a atraírem uma multidão para o concerto de encerramento de sábado. O final da tarde ficou a cargo de duas actuações menos concorridas mas magníficas: das californianas Haim e do angolano Bonga.
TEXTO: Houve de tudo em anos anteriores. Houve a espantosa lição de como o rock pode ser uma força de revolução nas três horas com que Bruce Springsteen nos convenceu de que a centelha de mudança no mundo, para o tornar um lugar socialmente mais justo, pode existir tanto numa canção como em cada espectador – uma verdade inspiradora, de mangas arregaçadas, suor em bica e palavras carregadas de implicações; houve a calamitosa actuação de uma Amy Winehouse tão perdida em palco que não seriam necessários dotes sobrenaturais para ver ali um prenúncio do seu salto sem retorno para uma decadência letal, para a qual o equilíbrio era um desafio de proporções ciclópicas e ir além de balbuciar uns versos em cada canção o desafio de uma vida; houve também nomes cimeiros da pop, como Britney Spears, a apresentarem espectáculos tão artificiais que ficava a dúvida do quanto havia de verdade naquilo que víamos e, sobretudo, ouvíamos. Juntemos os extremos: a verdade e o artifício. É factual que a dimensão e contexto do Rock in Rio convidam a uma espectacularidade pouco habitual noutros palcos. Basta pensar no cenário de confetti, fitas coloridas e balões gigantes que superpovoavam o ar durante Mercy, o tema final da apresentação dos Muse (antes do encore) enquanto cabeças de cartaz da primeira noite desta edição. O aparato (e espalhafato) cénico mostrar-se-ia totalmente condizente com a natureza épica e excessiva do trio britânico capitaneado por Matt Bellamy. Daí que, por comparação, a dispensa de cenografia ou de maravilhamento pela tecnologia das Haim e de Bonga tenham soado a um tão encantador bálsamo de verdade. No caso de Danielle, Este e Alana Haim, as três irmãs californianas apresentaram em palco a esmagadora prova da fábrica de canções perfeitas que têm vindo a construir desde 2012 (tal como o haviam feito em 2014, no Primavera Sound). E num mundo pop em que muitas vezes a cirúrgica produção de estúdio equivale depois a uma flagrante demonstração em palco do grau de fabricação por detrás de cada álbum, é inspirador confirmar que nada há de postiço na sonoridade que as Haim foram buscar aos Fleetwood Mac dos anos 70 e actualizaram com uma panóplia de referências que vai das Bangles e de Prince a George Michael e Shania Twain. Enquanto o movimento de rotação do planeta pop se mostra cada vez mais permeável ao uso maciço das ferramentas tecnológicas, as Haim parecem quase um erro do sistema. São uma anomalia assente na formação clássica do rock, uma banda anacrónica em que (quase) tudo aquilo que vemos é tocado ao vivo – a excepção terá sido um bloco de cordas pré-gravadas, com as três a assumirem o grosso da instrumentação e Danielle Haim a confirmar que é não apenas uma cantora soberba como uma guitarrista (debaixo da sombra de Prince) de belíssima safra –, com um catálogo melódico imaculado e canções que se ouvem mascaradas com enganador ar de nascidas da facilidade. Passando de forma generosa pelos seus dois álbuns – Days Are Gone e Something to Tell You –, as Haim encadeiam Falling, Little of Your Love, Ready for You, Want You Back, Nothing’s Wrong, Forever, The Wire ou Right Now reforçando, tema após tema, seja ele mais country, mais r&b ou rock, o quanto são hoje das mais infalíveis e milagrosas escritoras de canções, qualquer uma das melodias a soar a um shot das melhores recordações de cada Verão passado. Num Rock in Rio que oferece a cada nova edição uma mais extensa programação paralela à música – para lá das milhentas acções de promoção dos patrocinadores, que este ano parecem ter nos pequenos sofás insufláveis de uma operadora de telemóveis a grande vencedora –, é fácil esbarrar-se num Pop District em que o público se faz fotografar ao lado de personagens anónimas de Star Wars ou junto de sósias de Marilyn Monroe e Freddie Mercury. Mas também se conclui que há espaços como o Digital Stage, pensado para agregar uma amálgama de propostas (de concertos a espectáculos de comédia) escolhidas pelo rasto de sucesso no YouTube, mas que, nalguns momentos, apenas se parece às habituais reportagens televisivas dos festivais de Verão, enchidas a despropósito com ideias tão peregrinas quanto pedir a membros do público que se beijem. Coisa deslavada quando pouco depois se assiste ao concerto magnífico de Bonga. E aquilo a que se assiste é todo um curso avançado e informal sobre sedução. Nos mais diversos sentidos. Bonga seduz a todo o instante a plateia, fala com o público como se fosse o filho de um amigo que encontrou num bar e explica-lhe como é que um homem deve convidar uma mulher para dançar, para logo em seguida detalhar a técnica apropriada para que a dança continue a galgar os degraus dessa sedução. Tudo isto nos intervalos de um reportório que se festeja a si próprio, juntando temas certeiros como Currumba, Kaombo é que pica, Galinha kassafa, Lágrima no canto do olho ou Mariquinha, interpretados com uma ginga que é impossível de recusar. Bonga actua na Rock Street, este ano com uma programação dedicada em exclusivo à música africana – antes do cantor angolano houve Kimi Djabaté e Tabanka Djaz – e fá-lo num momento em que as reedições de Angola 72 e Angola 74 lhe ofereceram uma nova vaga de interesse e um público diferente que o foi conhecendo através de programas de Júlio Isidro (que estava na assistência e Bonga não demorou a identificar). Às tantas, o cantor diz-se “psicólogo”. “Consigo ver na cara das pessoas – por isso me aldrabam pouco”, explica. E é também isso que faz connosco. Não há aldrabices em palco – vemos um homem com um reportório e uma banda admiráveis, e um modo de sedução que não consegue desligar. Numa noite em que terão passado pelo Parque da Bela Vista 71 mil pessoas, não faltou quem se dedicasse a atravessar o recinto em slide, a fazer escalada ou até a aplicar o seu tempo dentro de um Game Ring em que imperam os jogos de vídeo e que dispõe mesmo de uma bancada para assistir a momentos tão impressionantes quanto umas Slime Wars – que consistem em duelos à moda do velho faroeste, com disparadores virtuais, mas em que o perdedor tem direito a um muito real banho de slime. Sim, há uma bancada e dois animadores para isto, e miúdos que vestem fatos brancos onde podem ser atingidos por estes “disparos”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Há também fatos brancos na trupe de bailarinos que acompanha Diogo Piçarra em palco. Com ritmos mais musculados ou electrónicas mais insinuadas, o cantor português parece abordar todo o seu reportório como se fosse uma balada amorosa. Piçarra é um pinga-amor musical que apela para que todos se divirtam porque, e cita a sua própria canção (200), “a vida passa a 200”. Um espectáculo empenhado e competente que furou o seu público no momento em que homenageou Zé Pedro com uma versão de O homem do leme. No Music Valley, no extremo oposto do Palco Mundo (principal), espreitamos o funk oleado de Da Chick, que tanto evoca James Brown como os Dee-Lite, e que perante a difícil tarefa de chamar público para junto de si enquanto muitos gastavam largos minutos nas filas para o jantar, havia de dizer “Não é a Ivete, mas é o melhor que pode arranjar”. Foram, aliás, várias as alusões a Ivete Sangalo, campeã de actuações no Rock in Rio Lisboa, vindas de uma cantora a que falta encontrar uma linguagem mais característica – é tudo muito bem feito e interpretado, mas há uma identidade ainda por resolver (a sua excelente participação no espectáculo Dinamite faz acreditar que não andará longe de atingir esse patamar). Já aos Muse, no concerto que juntou a maior multidão na primeira noite, pouco falta nesse particular. Desde que arrancam com Thought contagion até à despedida com Knights of Cydonia, aquilo a que se assiste é um rock muitas vezes aparentado de metal – não faltam riffs de óbvio parentesco com Black Sabbath, Led Zeppelin ou até Metallica –, sempre a forçar o épico e o progressivo, muitas vezes a raiar uns Radiohead, outras a rasar os Queen ou até os cânticos de estádio de futebol. Nasceram para tocar nestes cenários, em que a ambição da sua música de trejeitos futuristas encontra multidões à medida da sua megalomania.
REFERÊNCIAS:
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Atentado em Cabul em resposta a filme anti-islão faz 12 mortos
Pelo menos 12 pessoas, entre as quais nove estrangeiros, morreram nesta terça-feira em Cabul, no Afeganistão, na sequência de um atentado suicida, em resposta ao filme anti-islão divulgado na semana passada. Com vídeo (...)

Atentado em Cabul em resposta a filme anti-islão faz 12 mortos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2012-09-18 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20120918151911/http://www.publico.pt/1563490
SUMÁRIO: Pelo menos 12 pessoas, entre as quais nove estrangeiros, morreram nesta terça-feira em Cabul, no Afeganistão, na sequência de um atentado suicida, em resposta ao filme anti-islão divulgado na semana passada. Com vídeo
TEXTO: O filme Innocence of Muslims foi realizado por um copta radical egípcio a viver nos Estados Unidos e tem enfurecido muçulmanos em todo o mundo, por ridicularizar o seu profeta Maomé, apresentado como um mulherengo e bandido. Gerou protestos da Nigéria à Indonésia, que se estenderam também a cidades europeias. Nalguns países, grupos de radicais salafistas atacaram mesmo as embaixadas e consulados dos Estados Unidos e de outros países ocidentais. Agora na manhã desta terça-feira o grupo que reivindicou o ataque fez explodir um autocarro que transportava turistas numa grande estrada que liga a capital afegã ao aeroporto da cidade, escreve o El País. O atentado foi perpetrado por uma mulher kamikaze, adiantou o grupo rebelde Hezb-e-Islami. Entretanto, perante a escalada da violência contra o filme, as forças militares dos Estados Unidos já anunciaram a suspensão de operações conjuntas com afegãos devido à perda de confiança depois de vários norte-americanos e outros membros da NATO terem perdido a vida em atentados e combates nos últimos dias. Um comunicado da polícia, citado pela AFP, adianta que o atentado ocorreu às 6h45 (2h15 em Lisboa) e que matou nove estrangeiros e três afegãos. Houve ainda dois polícias que ficaram feridos. “Os estrangeiros trabalhavam para uma empresa privada no aeroporto”, acrescentou a mesma fonte. O ataque aconteceu perto de uma zona onde os afegãos se reúnem para celebrações religiosas mas as autoridades garantiram que à hora do incidente nunca estão pessoas naquele local. O grupo Hezb-e-Islami, ao reivindicar o atentado, explicou que este representa uma resposta à difusão do filme norte-americano anti-islão que terá custado 5 milhões de dólares (3, 9 milhões de euros). “O atentado foi perpetrado por uma mulher chamada Fátima. Trata-se de uma medida de represálias ao insulto ao nosso profeta”, explicou Zubair Sidiqi, porta-voz do grupo, à AFP. O Hezb-e-Islami é o segundo grupo de insurreição afegã mais importante depois dos taliban. Do filme de duas horas, há excertos publicados no YouTube numa espécie de trailer em que os muçulmanos são apresentados como imorais e violentos. O profeta Maomé é ridicularizado. Aparece em diversas cenas de sexo, com mulheres e com homens, aprova o abuso sexual de crianças, aponta para um burro como “o primeiro animal muçulmano”. É ainda dito que o Corão não teve inspiração divina, que foi escrito a partir da Tora e do Novo Testamento.
REFERÊNCIAS:
Autor de filme anti-islão detido nos Estados Unidos
O autor do filme anti-islão Innocence of Muslims, um copta radical egípcio a viver dos Estados Unidos, foi detido na quinta-feira na Califórnia e acusado pelas autoridades judiciais de ter violado a liberdade condicional. (...)

Autor de filme anti-islão detido nos Estados Unidos
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DATA: 2012-09-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: O autor do filme anti-islão Innocence of Muslims, um copta radical egípcio a viver dos Estados Unidos, foi detido na quinta-feira na Califórnia e acusado pelas autoridades judiciais de ter violado a liberdade condicional.
TEXTO: Nakoula Basseley, de 55 anos, tinha sido condenado em 2010 por fraude bancária. Chegou a cumprir uma pena de prisão de 21 meses mas, entretanto, foi colocado em liberdade condicional. Estava, por isso, impedido de aceder à Internet. Depois de parte do filme que produziu ter sido colocado no canal de partilha online YouTube, as autoridades consideraram que violou a liberdade condicional em vários aspectos, explicou o tribunal federal do estado norte-americano da Califórnia. As autoridades avançaram também que Nakoula Basseley se refugiou num esconderijo, após as ameaças de morte relacionadas com o filme que produziu, mas que foi sempre seguido pela polícia. Um ministro paquistanês chegou mesmo a oferecer dinheiro a quem conseguisse matar o autor do filme. A juíza responsável pelo caso, Suzanne H. Segal, garantiu ao jornal Los Angeles Times que Nakoula representava “um certo perigo para a comunidade”. “O tribunal tem falta de confiança no réu neste momento”, acrescentou a magistrada, citada pela Reuters. O filme Innocence of Muslims tem enfurecido muçulmanos em todo o mundo, por ridicularizar o profeta Maomé, apresentado como um mulherengo e bandido. Qualquer representação visual do profeta é, de resto, considerada uma blasfémia para os muçulmanos. Innocence of Muslims gerou protestos da Nigéria à Indonésia, que se estenderam também a cidades europeias. Nalguns países, grupos de radicais salafistas atacaram mesmo as embaixadas e consulados dos Estados Unidos e de outros países ocidentais, em especial dada a proximidade da simbólica data do 11 de Setembro. Já foram registados dezenas de mortos em confrontos, que se agravaram após um jornal francês ter publicado novas caricaturas do profeta Maomé. Entre os mortos está o embaixador norte-americano em Bengasi. Do filme de duas horas, há excertos publicados no YouTube numa espécie de trailer em que os muçulmanos são apresentados como imorais e violentos. O profeta Maomé aparece em várias cenas de sexo, com mulheres e com homens, aprova o abuso sexual de crianças, aponta para um burro como “o primeiro animal muçulmano”. É ainda dito que o Corão não teve inspiração divina, que foi escrito a partir da Tora e do Novo Testamento.
REFERÊNCIAS: