Cabo Verde: O país que tem mais gente fora do que dentro
Chamam-lhe a 11.ª ilha de Cabo Verde. A diáspora é uma das grandes fontes de receitas do país e está no imaginário colectivo, corre nas canções, na literatura, no carácter nacional. (...)

Cabo Verde: O país que tem mais gente fora do que dentro
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 11 | Sentimento 0.099
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Chamam-lhe a 11.ª ilha de Cabo Verde. A diáspora é uma das grandes fontes de receitas do país e está no imaginário colectivo, corre nas canções, na literatura, no carácter nacional.
TEXTO: O avião aterra na Praia, em Santiago, num dia cheio de nuvens cinzentas de Junho. Podia ser um aeroporto qualquer, numa cidade com terreno seco e árido, apesar da aparente ameaça de chuva que nunca cairá. Mas aqui chegam e partem milhares de cabo-verdianos migrantes, gente que saiu do país ou que nunca viveu no arquipélago e que pertence a uma diáspora maior que a população local, de cerca de 500 mil habitantes. Gente que saiu porque não há emprego, porque a seca não permite que a agricultura floresça e porque o turismo, que é o motor de crescimento do país, não é elástico. Um aeroporto é um lugar de partidas e chegadas, mas aqui em Cabo Verde é também de despedidas longas, às vezes por muito tempo, para sempre. É também o lugar onde aterram encomendas, presentes que vêm de longe, ou onde são despachados artigos da terra como grogue ou marisco. Com mais população fora do que dentro, Cabo Verde é um dos países com mais altas taxas de emigração — as estimativas apontam para um milhão na diáspora. Perguntar a um cabo-verdiano se tem alguém da família a viver fora torna-se caricato, dizem-nos: é claro que toda a gente o tem. Há inclusivamente um Ministério das Comunidades, dedicado aos emigrantes. Na Praia, em casa da mãe da antropóloga Eufémia Vicente Rocha, por exemplo, os anos “giram à volta da tia que vem de França, do tio que vem de Portugal e vai passar aqui um mês ou de outros familiares que vêm de Holanda e vêm passar quatro dias”. No prédio que a mãe construiu no bairro de Tira Chapéu, vivem Eufémia e as irmãs. Subimos as escadas até ao andar no topo onde vive a mãe e onde a família toda faz as refeições diariamente. Das janelas vêem-se os prédios em tons de terra e na cómoda, encostada à parede da entrada, dispõem-se os retratos da família em molduras de vários tamanhos. Se os pais de Eufémia Rocha não tivessem emigrado para Portugal, talvez não estivesse a ser entrevistada esta doutorada em Ciências Sociais, professora no Departamento de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Cabo Verde, onde ensina disciplinas de Antropologia e dirige o mestrado em Segurança Pública. Nos anos 1960, o pai de Eufémia emigrou para Lisboa. A mãe juntou-se na década seguinte. Mesmo não tendo gostado muito da vida de emigrante, foi isso que lhe permitiu juntar algum dinheiro para mais tarde investir. Foi em Lisboa que começou “a rabidar”, conta Eufémia numa voz muito pausada, agora noutra sala de estar. “Rabidante, ou seja, uma mulher que se insere no comércio informal e dedica-se a actividades de compra e venda intensa — rabidar é desenrascar, virar a vida. ”Em Lisboa, o pai trabalhava nas obras, a mãe era peixeira e ganhava mais. De forma que compraram uma carrinha: o pai fazia o transporte das mercadorias, “das caixas de peixe”, durante a madrugada, entre o Cais do Sodré e os outros pontos de venda. “Foi justamente os ganhos que essa vida deu que fez com que ela investisse na vida de rabidante”, agora já em Cabo Verde: foi vender no mercado de Sucupira, dos maiores na cidade, e na feira da Assomada, a segunda maior cidade de Santiago. Anos mais tarde, abriu uma loja com produtos de beleza e de higiene num pequeno centro comercial ao lado de Sucupira. Abriria depois mais três lojas: no bairro do Palmarejo, no Praia Shopping, um centro comercial junto à praia de Quebra Canela, que é uma das zonas sociais da cidade, e em Assomada. Construiu um prédio, um terreno que adquiriu em início dos anos 1990, e ainda uma casa em Assomada. Eufémia nunca recebeu bolsa para estudar, fê-lo sempre com a ajuda dos pais. “A minha mãe sempre disse [que estudar] é um investimento. Para ela, sempre foi claro que era um investimento, [queria] que os filhos tivessem uma vida distinta da dela. Nunca quis que seguíssemos as suas pegadas em termos da profissão porque passava por inúmeras humilhações que não queria que nós passássemos. ”Quando olha “para o panorama do país, do que se construiu”, Eufémia Rocha vê que foi “com o suporte desses emigrantes”, muito para além das remessas que representam 10% do produto interno bruto (PIB). Vê também que a emigração teve efeitos sociais na recomposição ao nível das famílias: “Acaba por alargar a visão que temos da família cabo-verdiana, de uma maneira que hoje não podemos falar da família mas das famílias cabo-verdianas. Há inúmeras reconfigurações familiares e essas reconfigurações são atravessadas pela emigração. ” Exemplos: o facto de os homens partirem, deixarem as suas mulheres que passam a assumir o comando da casa e mantêm a família de pé, “mas sem deixar de lado a forte conexão com o marido que está no estrangeiro”; “termos cada vez mais mulheres a emigrar” e “mulheres jovens que emigram sem estarem atreladas à figura do marido”; ou famílias em que os filhos optam por ficar no país para onde emigraram mesmo depois de os patriarcas regressarem, “como é o caso dos meus tios, em que os filhos optaram por ficar” em Inglaterra, em Portugal. Mais uma vez, Eufémia dá o exemplo da mãe, que apoia quem vier e quiser ficar, o que remete para uma concepção de família que é diferente do “modelo ocidental de família nuclear, pais e filhos”. “Aqui, toda a gente é família, mesmo quando os laços não são de sangue mas de afinidade. Muita gente pode vir e morar aqui em casa”, diz, com orgulho. Cabo Verde tem dos indicadores sociais mais positivos no contexto africano. Está no 123. º lugar entre os 187 países no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas; entre 2003 e 2008, a taxa de pobreza nacional per capita baixou de 37% para 27%, e a taxa de pobreza extrema de 21% para 12%; a taxa de literacia adulta está estimada em 87%, a taxa de mortalidade infantil caiu de 26 por 1000 nados-vivos, em 2007, para 15, em 2011 (tudo dados do Banco Mundial). Mas isto não impede que muitos cabo-verdianos cresçam a pensar no dia em que vão partir, estudar fora e viver noutro país. Os 40 anos da independência também podem ser olhados por este prisma da diáspora, uma marca fulcral da identidade cabo-verdiana. Que teve inúmeros impactos. A própria luta pela independência de Cabo Verde começou na diáspora, pela mão do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e de figuras como Amílcar Cabral ou Aristides Pereira. Parte da sua base de apoio foi assegurada pela diáspora, do Senegal à Holanda. Quando foi fundado em 1975, o Estado cabo-verdiano era pequeno, desconhecido, nascia num ambiente internacional hostil, lembra António Correia e Silva, historiador e ministro do Ensino Superior, Ciência e Inovação. Chegava à independência no auge da Guerra Fria, num período em que havia “uma disputa acérrima pela África” e no meio de uma crise provocada por uma longa seca. “Tinha de se afirmar como Estado: quatro mil quilómetros quadrados, secos, na altura com 200 mil pessoas… Era quase querer desafiar a lei da gravidade da comunidade internacional!” A diáspora serviu na altura para o país se afirmar nas várias sociedades onde estava, na Europa, nos Estados Unidos. “As contestações muitas vezes vieram da diáspora, e na própria transição para a democracia, em 1990-91, fez-se ouvir a diáspora. ”A diáspora é tão importante que o Governo criou mesmo um Ministério das Comunidades. Que serve quantas pessoas? Numa sala desse ministério, na Achada de Santo António, a ministra com a pasta, Fernanda Fernandes, explica que é difícil quantificá-la, até porque a Constituição aceita que “um descendente até neto pode ser cabo-verdiano”. Um dos impactos bem visíveis, nota, é através da educação. É rara a família que não tenha tido ajuda de quem esteja fora. De resto, é visível nas construções, na criação de empresas e de emprego, observa. Contribuiu ainda para o reforço da democracia. “A abertura de Cabo Verde ao mundo ganhou muito com a emigração. A maior abertura para a democracia terá vindo da diáspora. ”Desde o início que há este contributo: “Foi com a mobilidade, com as migrações, que se começou a construir o país. ” Por isso, a ideia da mobilidade é tão presente. Na estratégia nacional da emigração, lançada pelo governo do PAICV — Partido Africano para a Independência de Cabo Verde, sucessor do PAIGC —, o Governo definiu vários eixos: ajudar as pessoas a conhecerem melhor o país para onde querem ir e ajudar a integração dos cabo-verdianos no país em que estejam; preservar a cultura e identidade; incentivar a contribuição da diáspora no processo de desenvolvimento de Cabo Verde. “Temos uma diáspora muito bem-sucedida, bem integrada mas também temos uma diáspora cheia de problemas e portanto queremos acudir. ”No ranking dos países com emigrantes cabo-verdianos estão os EUA, Portugal (“calcula-se que haja 200 mil, incluindo os que têm nacionalidade portuguesa”, avalia a ministra), Holanda, Luxemburgo, Suíça, Suécia, Alemanha, Espanha, outros membros dos PALOP e Senegal; o Brasil, Argentina e China. Se é de Santiago, irá talvez para Portugal, França, para a Europa; se é do Fogo e Brava, escolherá os Estados Unidos — assim se desenham as linhas migratórias cabo-verdianas. Como os emigrantes votam, governar também para eles é um desafio, comenta a ministra, que viveu e se formou em Portugal. O custo de recenseamento de cabo-verdianos, da Escandinávia à China, é “extremamente oneroso”: “São milhões para pôr os cabo-verdianos a votar. ”Não há, porém, qualquer política para fazer voltar cabo-verdianos, há sim vontade de criar mecanismos para que quem regresse o faça “com sucesso” e possa vir a ser útil. Para isso, o Governo criou alguns projectos como o Diáspora Contributo. Da varanda de casa de Abraão Vicente vê-se o mar muito azul que circunda a ilha de Santiago. Estamos no meio do oceano Atlântico. Qualquer deslocação faz-se de barco ou avião. O artista plástico, sociólogo, deputado do partido da oposição Movimento para a Democracia (MpD) também já foi emigrante durante o tempo em que estudou em Portugal. “A diáspora está completamente abandonada”, defende. Porque se criaram expectativas em relação à diáspora que um país com os recursos de Cabo Verde “não tem condições para responder”. “Não é suposto ajudarmos pessoas desalojadas na Damaia a partir da cidade da Praia ou dar assistência médica a alguém em Nova Iorque”, comenta. “A diáspora não pode ser governada como se fosse uma 11. ª ilha, em que tem tanto direito como os que estão cá a políticas efectivas de governação. Isso não é possível pela dispersão, pelo diferente quadro jurídico de cada país”, analisa. “O que se podia promover mais era a circulação de pessoas. Vir a Cabo Verde ainda é extremamente caro, temos o espaço aéreo que ainda não é liberalizado, o investimento dos emigrantes ainda não é facilitado, ainda se cobram imensos juros. ”Além da questão política, que critica, Abraão Vicente lembra que a diáspora é crucial, e que “acaba por aumentar a dimensão do próprio país”. “Culturalmente, influenciou muito e de que maneira. As nossas músicas tradicionais foram todas modificadas devido à influência da diáspora. E é interessante perceber quando se vai às comunidades na diáspora que Cabo Verde continua intacto lá: na Buraca ou na Damaia, fala-se um crioulo mais profundo do que cá. ”Num auditório de um dos pólos da Universidade de Santiago, perto do Farol, Nardi Sousa, sociólogo, lembra: a dada altura, só se pensava em emigração, mesmo que fosse para viver em barracas e isso correspondesse a uma mobilidade social descendente. “Houve ganhos em termos de remessas, mas também o empobrecimento da população: famílias desfeitas, maridos que deixaram as suas mulheres com os filhos. Depois a separação e a distância criam esta ruptura, muitas crianças foram criadas pelos avós, etc. Posto isto, a diáspora tem um peso enorme e está mal aproveitada”, analisa. O sociólogo contextualiza e critica: “Na década de 1960/70 muitos portugueses foram para a construção civil em França e muitos cabo-verdianos foram substituir esta mão-de-obra em Portugal. Mesmo depois da independência o nosso Governo precisava de aliviar a pressão da população porque a economia não produzia tantos empregos. Então deixavam sair e ganhavam com as remessas dos emigrantes. Eu chamo [a isso] uma espécie de complot entre Cabo Verde e Portugal porque sabiam o que estava a acontecer e não travaram a emigração. Teve também consequências nefastas em termos do próprio investimento na agricultura, no mundo rural; hoje começamos a investir em barragens para captar as águas da chuvas para produzir no campo, mas nesse período a emigração fez com que as pessoas abandonassem a terra. ”Porém, há pontos positivos. Hoje muita gente vive em casas de parentes que estão emigrados — “em Assomada, mais de 60% das habitações são construídas pelos emigrantes, quer dizer que SE consegue melhorar o nível de vida dos familiares”, assinala. “Se não fosse o peso da diáspora, a pobreza era muito mais forte e haveria mais gente a viver em situação de miséria; no interior de Santiago isso vê-se de forma clara. ”A lógica, no entanto, é que “Cabo Verde continua a exportar pessoas e a pensar no retorno das remessas”. “A prioridade foi essa, fazer sair pessoas para aliviar a pressão humana e receber as remessas para criar a poupança interna e fazer a economia funcionar com a ajuda pública ao desenvolvimento. O país deve repensar tudo isto e sair da dependência. A ajuda tem um problema sério, um assistencialismo a longo prazo, que afecta a criatividade dos políticos e afecta também a definição de estratégias para um país se tornar o mais autónomo possível. ”Não usa o Skype, nem outra aplicação que permita fazer chamadas vídeo. Francisco Avelino Carvalho, director-geral das Comunidades, fala com a família através do Viber. “Isto é incrível”, nota ele ao olhar para o seu telemóvel que mostra para a câmara. “Eu que sou um profissional das migrações nunca tinha olhado para o meu telemóvel desta forma. ” À medida que desliza a lista telefónica, aparecem números de pessoas que estão fora. Tem um irmão que vive em Roterdão, outro em Nice, um em Lisboa, duas irmãs em Boston. A mãe partiu para Boston há pouco mais de um mês, há uma avó e duas tias nos Estados Unidos. “Portanto, sou o único da família que está cá. A parte debaixo de casa está vazia, era onde a minha mãe morava. Completamente vazia. Quando vou lá, é uma grande tristeza. ”Francisco já viveu em Lisboa, onde se formou como sociólogo, durante vários anos. Como ele, muitos regressam com formação e “novas metas a ser alcançadas”. “Há muito disto. É um efeito extraordinário, as pessoas que acreditam que é possível. ” Não sabemos se é o sociólogo, o filho e irmão de emigrantes ou o director-geral das comunidades a falar (se calhar, é tudo junto), mas é com voz segura que Francisco Carvalho diz: “A diáspora, ao longo destes 40 anos, deu um contributo extraordinário para o percurso que fizemos: através de remessas, de intercâmbio de ideias, da formatação de uma mentalidade crítica e de equilíbrio para a situação difícil de desemprego em Cabo Verde. ” Porém, defende, “há um balanço e uma justiça histórica” que ainda não foram feitas sobre o papel determinante que teve: já se criou o Ministério das Comunidades, “a resposta política mais forte que se pode dar a um problema social”, “mas ainda há todo um oceano a ser aprofundado”. Motivo para muitos partirem foi a ausência de universidades no país em Cabo Verde. Foi apenas em 2006 que nasceu a primeira universidade pública, a Universidade de Cabo Verde, depois do Instituto Piaget, privado, em 2001 — hoje há quase uma dezena de institutos de ensino superior e universidades. O ministro António Correia e Silva explica que isto tem que ver com o facto de Cabo Verde ter tido “uma preocupação muito inclusiva do desenvolvimento”. Em 1975, decidiu assim apostar na universalização do ensino básico e nesses primeiros tempos “o Governo não quis saber das falhas das universidades, mandou o pessoal formar fora”. “Quando saí daqui em 1981 havia dois liceus no arquipélago, um na Praia e outro no Mindelo. Hoje, temos 50 liceus. Houve um investimento na base e só depois o Governo encarou a ideia de universidade porque sempre viu a educação como inclusão social. Quando criámos um sistema universitário, o acesso à universidade cresceu rapidamente. Somos o país da África Subsariana com maior taxa bruta de escolarização no ensino superior — e começámos há dias. Antes da universalização do ensino básico, não era possível desenvolver políticas públicas de saúde. ”Ele próprio em tempos emigrante, António Correia da Silva defende que a diáspora “não é um excedente da nação, ela é constitutiva à nação”. “Somos um Estado cujas políticas públicas não ficam detidas nas fronteiras do seu território porque a nação é maior que o Estado. O nosso espaço nacional é maior que o nosso território de soberania. ” E conclui: “Vemos a diáspora como um reservatório de mil possibilidades que ainda não explorámos completamente. ”Cesária Évora fez com a palavra “sodade” uma música em crioulo que correu mundo. Cantou com melancolia a falta que Cabo Verde faz a quem sai do arquipélago. Como ela, há imensos músicos cabo-verdianos a cantar a diáspora. E há também muitos músicos, por exemplo, em Portugal, a reavivar a memória de personagens históricas importantes como Amílcar Cabral através do rap, lembra a filha Iva Cabral, sentada no terraço de sua casa em Terra Branca. “Cabral é muito mais estudado, admirado na diáspora do que em Cabo Verde. E em Portugal também. A diáspora pode ser muito útil culturalmente e cientificamente. Teve um grande papel e ainda pode ter um grande papel em Cabo Verde. ”Na sua concepção teórica, lembra, por outro lado, o sociólogo Redy Wilson, “Cabo Verde é uma diáspora e vive para a diáspora”. “É preciso sair para ser reconhecido em Cabo Verde. ”A 11. ª ilha, essa “nação global”, trouxe remessas económicas mas também sociais, como lhe chama o historiador, ex-ministro da Educação e ex-embaixador Corsino Tolentino. Capitalizando os vários talentos musicais cabo-verdianos espalhados pelo mundo, Lúcia Cardoso criou a Orquestra Nacional de Cabo Verde. No terraço da sua casa no Plateau, com o som de música ao fundo algures a tocar numa praça, Lúcia Cardoso explica que a diáspora alimenta o país. Há muitas áreas profissionais em que não se consegue trabalhar em Cabo Verde e essa é a principal razão para as pessoas partirem. Estamos sempre a “beber e a trazer”, mas gostaria de ver “mais da diáspora”, ou seja, mais retorno da experiência adquirida. “Cabo Verde é a diáspora. A cultura e a música têm um contributo enorme para essa identificação, porque a música conta essa história. Temos músicas muito nacionalistas. ”Lúcia decidiu trocar a sua carreira em canto lírico por as mil e uma coisas que faz agora no arquipélago. Abdicou de um sonho, agarrou outros. Lembra que um psicólogo no Brasil, onde viveu, comentou um dia que ela tinha “um patriotismo esquisito”. “Porque eu dizia que tinha muitas saudades de Cabo Verde mas não era da minha família, era mesmo das montanhas, do mar. Nós, cabo-verdianos, somos muito ligados à nossa terra. Porque há essa utopia colectiva: um país em construção em que o nosso contributo, por menor que seja, é enorme e tem um impacto enorme. Cantamos essa dor de querer ajudar Cabo Verde, de Cabo Verde não ter condições de nos aguentar a todos, de não termos recursos. Então a dor cabo-verdiana é ter de ir, ter de sair. E sempre se espera voltar, mesmo que seja depois da reforma. ”No estúdio de rádio onde faz um programa sobre África, o activista Jorge Andrade nota como em Cabo Verde nunca ninguém se lembrou de fazer um documentário sobre as despedidas no aeroporto. Em crioulo, lembra que há 20 anos a separação era como uma morte, e, embora hoje seja mais fácil a comunicação, há uma separação. Preocupa-o este vazio que a emigração deixa nas famílias. E olha para a diáspora como “o símbolo da ineficácia” de Cabo Verde em “superar a miséria”, da inabilidade de resolver as questões da independência económica. “Se tenho alguém da família fora?”, repete, estupefacto, a nossa pergunta, e depois ri. “Que pergunta a um cabo-verdiano! 99% dos familiares [de um cabo-verdiano] estão na diáspora!” Esta reportagem foi realizada em parceria comSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA PALOP
Italianos querem Nobel da Paz para ilha de Lampedusa
Os italianos, apoiados pelo governo, querem que o Prémio Nobel da Paz seja entregue a Lampedusa. A esta ilha italiana no Mediterrâneo chegam embarcações com imigrantes ilegais oriundos de África e do Médio Oriente e no seu centro de acolhimento, preparado para perto de 200 pessoas, vivem mais de 800. No mês passado, o Papa Francisco escolheu Lampedusa para fazer a primeira visita do seu pontificado, e agradeceu à população da ilha a solidariedade que tem dado aos imigrantes. Poucas semanas depois da visita do chefe da Igreja Católica, morreram mais de 200 pessoas no naufrágio de uma embarcação — a operação de res... (etc.)

Italianos querem Nobel da Paz para ilha de Lampedusa
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-10-09 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20131009160252/http://www.publico.pt/1608514
TEXTO: Os italianos, apoiados pelo governo, querem que o Prémio Nobel da Paz seja entregue a Lampedusa. A esta ilha italiana no Mediterrâneo chegam embarcações com imigrantes ilegais oriundos de África e do Médio Oriente e no seu centro de acolhimento, preparado para perto de 200 pessoas, vivem mais de 800. No mês passado, o Papa Francisco escolheu Lampedusa para fazer a primeira visita do seu pontificado, e agradeceu à população da ilha a solidariedade que tem dado aos imigrantes. Poucas semanas depois da visita do chefe da Igreja Católica, morreram mais de 200 pessoas no naufrágio de uma embarcação — a operação de resgate dos corpos ainda decorre. O vice-primeiro-ministro italiano, Angelino Alfano, disse que a União Europeia deveria apoiar a candidatura de Lampedusa, mostrando estar envolvida na resolução do problema da imigração ilegal e dos imigrantes que chegam a território europeu, seja entrando na Itália ou noutro país. "O que aconteceu vai acontecer mais vezes, não há motivo para duvidarmos de que será assim", disse Alfano, referindo-se ao naufrágio da embarcação que levava sobretudo pessoas da Eritreia e da Somália. À luz da lei, apenas os que morreram poderão permanecer no espaço europeu; os outros terão que regressar aos seus países e, além disso, está previsto que paguem multas por imigração ilegal. Nos últimos dias, a sociedade civil e os políticos têm-se mobilizado para recolher assinaturas que possam ainda pressionar o Comité Nobel que atribui o prémio — é anunciado na sexta-feira. Para o jornal L’Espresso foram enviadas mais de 20 mil assinaturas. A lista de finalistas do prémio nunca é revelada (sabe-se que a geral tinha, este ano, 259 candidaturas). Mas a imprensa internacional tem avançado que no topo está Malala Yousafzai, a rapariga paquistanesa que luta pelo direito das mulheres à educação e que foi atacada pelos taliban. Mas também se fala de Bradley Manning, o ex-analista informático do exército dos Estados Unidos que passou informações sobre operações militares americanas à Wikileaks. Segundo a comissão que apoia este soldado condenado a 35 anos de prisão, as fugas de informação permitiram saber-se que foram cometidas muitas violações dos direitos humanos e contribuíram para a retirada das tropas norte-americanas do Iraque. Menos conhecido, mas também um candidato de importância, é o ginecologista Denis Mukwege. Este médico congolês viu-se obrigado a fugir da República Democrática do Congo no final de 2012, por ter ajudado mulheres violadas e perseguidas no seu país.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos lei humanos imigração educação prisão mulheres rapariga ilegal
Realizador retira-se da competição do Queer devido a apoio da Embaixada de Israel
A curta-metragem “Covered” não passou ontem no Queer Lisboa, Festival de Cinema Gay e Lésbico, a pedido do seu realizador, o canadiano John Greyson, que apoia um grupo palestiniano de boicote a Israel e que contesta o apoio financeiro da Embaixada de Israel ao festival. A curta documental “14.3 Seconds”, do mesmo realizador, também não vai ser exibida sábado no Queer. (...)

Realizador retira-se da competição do Queer devido a apoio da Embaixada de Israel
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 9 | Sentimento -0.12
DATA: 2010-09-22 | Jornal Público
SUMÁRIO: A curta-metragem “Covered” não passou ontem no Queer Lisboa, Festival de Cinema Gay e Lésbico, a pedido do seu realizador, o canadiano John Greyson, que apoia um grupo palestiniano de boicote a Israel e que contesta o apoio financeiro da Embaixada de Israel ao festival. A curta documental “14.3 Seconds”, do mesmo realizador, também não vai ser exibida sábado no Queer.
TEXTO: O PÚBLICO confirmou junto de fonte da organização que a exibição de ambos os filmes foi cancelada a pedido do seu realizador, que já após o arranque do festival, no dia 17, tinha enviado uma carta aos organizadores sugerindo formas alternativas de financiamento que evitassem contribuições da embaixada israelita, com a qual não desejava pactuar. A organização disse ao PÚBLICO que o total do contributo da Embaixada de Israel para este festival ronda os 900 euros, que pagaram a viagem de ida de volta Telavive-Lisboa do realizador israelita Tomer Heymann e sua estadia em Portugal para apresentar o seu filme "I Shot My Love" no Queer, que é apresentado quinta-feira e sábado. Nessa carta, lê-se que "este financiamento viola o apelo de 2005 da sociedade civil palestiniana, que pede aos artistas e académicos para boicotarem o Estado israelita, em protesto contra a ocupação que prossegue". O realizador canadiano pede que seja recusado "o patrocínio da Embaixada israelita e encontrar uma fonte alternativa para pagar" as despesas logísticas em que é usada a verba da representação diplomática do Estado judaico. Na mesma missiva, o realizador, cujo filme "Fig Trees" recebeu o prémio para o melhor documentário na edição de 2009 do Queer, lembra que "isto é o que Ken Loach pediu ao Festival de Edimburgo em 2007, quando soube que eles tinham aceitado 33 libras do consulado israelita. Depois da devida ponderação, o festival concordou com ele e recusou o financiamento, encontrando outras fontes para cobrir os custos e alojar os seus realizadores israelitas". John Greyson obteve resposta do director do Queer, João Ferreira, que indicou que por motivos logísticos só poderia analisar a questão após o final do festival. “Se para vocês não é possível recusarem este financiamento da embaixada, então é com grande tristeza que tenho de retirar o filme ‘Covered’ do vosso festival”. Na sequência deste processo, Greyson decidiu retirar os seus filmes do evento. A organização do festival tem reiterado que os fundos cedidos pela Embaixada de Israel são encaminhados para fins logísticos, como o financiamento das viagens de alguns dos artistas e convidados ou impressão de materiais promocionais. No site do festival lê-se apenas: "A pedido do realizador John Greyson, no contexto do seu apoio ao PACBI (The Palestinian Campaign for the Academic Boycott of Israel), serão canceladas as curtas-metragens Covered (Terça-feira, dia 21, 22h, Sala 1) e 14. 3 Seconds (Sábado, dia 25, 21h00, Sala 1). ""Covered" é um filme documental experimental, financiado por Inglaterra e Bósnia, sobre quatro mulheres que em Setembro de 2009 organizaram em Sarajevo um festival cinema gay e lésbico cuja cerimónia de abertura foi interrompida por uma multidão de contestatários que se opunham à realização do evento durante o mês do Ramadão. "14. 3 Seconds", no mesmo formato, conta a história da destruição dos arquivos de cinema do Iraque na guerra em 2003 através dos 14. 3 segundos de filme restaurados que um jornalista conseguiu recuperar dos escombros. No Queer Lisboa em curso participam três filmes israelitas: "The Traitor", "I Shot My Love" e "Hyacinthus Lullaby"O Queer Lisboa arrancou dia 17 e prolonga-se até sábado, dia 25, em que é anunciado o palmarés do evento. Duas horas antes da sessão inaugural do Queer, na sexta-feira no Cinema São Jorge, manifestantes protestaram contra o apoio da Embaixada de Israel ao festival, mobilizados por organizações como as Panteras Rosa, Comité de Solidariedade com a Palestina, SOS Racismo ou Comité de Solidariedade com a Palestina, UMAR - União Mulheres Alternativa e Resposta ou Pobreza Zero. Notícia actualizada às 12h04
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra racismo mulheres pobreza gay
Nós com eles, em vez de “nós contra eles”
Portugal ainda não garantiu dar destaque legislativo aos crimes de ódio nem criou um sistema nacional de recolha de dados sobre este tipo de crimes assentes em discriminação. (...)

Nós com eles, em vez de “nós contra eles”
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Refugiados Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-02-22 | Jornal Público
SUMÁRIO: Portugal ainda não garantiu dar destaque legislativo aos crimes de ódio nem criou um sistema nacional de recolha de dados sobre este tipo de crimes assentes em discriminação.
TEXTO: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. ” Artigo 1º, Declaração Universal dos Direitos HumanosO ano de 2016 fechou com espanto. A estratégia cínica de manipulação da informação surtiu efeito, lançou sementes de medo, de ódio, sementes de nós ou eles e por isso tem de ser nós contra eles, porque eles são os culpados de todos os nossos problemas, teve votos, elegeu líderes. O medo é uma arma forte. Pelo medo o mundo retrai-se, odeia, culpa, fecha portas, ergue muros, limita a liberdade, acaba com o acolhimento, trata o outro como menos humano. Aos líderes eleitos, chamemos-lhe Trump, Orbán, Modi, Erdogan ou Duterte. Tantos nomes podíamos referir ainda. Todos com bandeiras anti-sistema ganharam terreno e adeptos com a retórica de encontrar culpados expiatórios para serem a razão de todos os nossos males, e conseguiram os votos de quem lhes depositou esperanças de segurança e de um mundo em ordem. Um mundo com muros que separam de nós quem precisa de nós. Já em 2017 estes líderes justificam aquilo que querem fazer, dando resposta ao anseio legítimo de segurança e de uma economia sólida com dedos apontados a supostos culpados que mais não são do que grupos de pessoas vulneráveis, de minorias sem voz, de vítimas das guerras, de vítimas da falta de igualdade, de dignidade, de vítimas da pobreza persistente e causadora de exclusão. Só há uma forma de parar esse caminho enganador, de fechamento ao que é diferente, de intolerância e de medo de quem não conheço: responder ao ódio com amor. À violência, devolver-se paz. À divisão, devolver-se acolhimento. Face à desunião, marchar-se com união. Proclamar que em vez de sermos “nós contra eles”, temos de ser nós com eles, porque é juntos que o mundo faz sentido. Em Portugal não estamos a salvo. A nossa realidade é melhor do que a de outros dos 159 países sobre os quais a Amnistia Internacional agora publica o relatório sobre o estado dos direitos humanos no mundo – e nalgumas frentes Portugal é um farol para o mundo –, mas temos caminho para fazer, temos promessas por cumprir. Portugal ainda não garantiu dar destaque legislativo aos crimes de ódio nem criou um sistema nacional de recolha de dados sobre este tipo de crimes assentes em discriminação. E não desenvolveu ainda as medidas recomendadas em 2013 pela Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância para dirimir o racismo e a discriminação. Do mesmo modo, a cultura de exclusão persiste, havendo denúncias de uso desnecessário ou excessivo da força pela polícia e de comunidades de costas voltadas à polícia, não a vendo como protectora, mas como agressora e retaliando também, seja com medo, seja a defender-se, seja com dificuldades de encontro e de conciliação. Os maus-tratos nas prisões portuguesas são também um sinal de discriminação, quando aquilo que as pessoas em reclusão perderam foi a liberdade, nada mais. Uma sentença não priva alguém da sua dignidade e as condições prisionais, a higiene e a qualidade da alimentação continuam inadequadas a essa humanidade que não pode ser negada. As más condições e os maus-tratos nas prisões não podem integrar o sistema jurídico penal, além de que retardam as funções de prevenção e ressocialização. O nosso país fez, no entanto, caminho. Em 2016, o Parlamento português reverteu o veto a uma lei que excluía a adopção a casais do mesmo sexo. Aprovou alterações que melhoraram o acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva e foi adoptada nova legislação que dá às mulheres acesso à reprodução medicamente assistida – incluindo a fertilização in vitro e outros métodos – independentemente do estado civil ou da orientação sexual. A sociedade é hoje, pela lei, mais justa e igualitária para todas as mulheres, permitindo-lhes que escolham se e quando querem ser mães. Nas disponibilidades de acolhimento de refugiados recolocados da Grécia e da Itália, Portugal tem estado na linha da frente no panorama da União Europeia – também por desmérito de muitos outros países da Europa que não estão a cumprir a sua parte na partilha de responsabilidade pela crise de refugiados. Portugal foi o quarto país que mais acolheu pelo Mecanismo de Recolocação de Urgência da UE: dos 1742 requerentes de asilo que Portugal se disponibilizou a receber no âmbito do compromisso europeu (com revisão para 1 618), chegaram ao país 781 pessoas até ao final de 2016 – 1 013 até 17 de fevereiro deste ano. Já ao abrigo do Programa de Reinstalação, foram selecionadas 90 pessoas a serem acolhidas em Portugal entre 2014 e 2016 e, dessas, 65 tinham chegado ao país até ao final do ano passado. Desde o início do Programa de Reinstalação, aliás, chegaram a Portugal 255 refugiados – só 12 durante o ano de 2016. Continuamos aquém de concretizar a promessa de acolher, proteger e oferecer paz, segurança e dignidade a milhares de pessoas, promessa que nos inspirou a acreditar em Portugal como um exemplo de humanidade. E que queremos ver cumprida. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Nunca foram governos com narrativas de exclusão a contribuir para um mundo com mais direitos humanos. A História já nos mostrou, e mais do que uma vez, as consequências da retórica tóxica e divisiva. Não queremos que se repitam. E não podemos esquecer também a outra lição que a História nos ensinou: sempre que líderes tentam dividir, demonizar e reprimir, há sempre pessoas determinadas em barrar-lhes o caminho. Não podemos ficar em silêncio, não podemos sair do caminho. Construirmos, juntos, um movimento sustentável de mudança começa com este acto simples de desafio – nunca foi tão importante erguermo-nos juntos e barrar o caminho ao ódio e ao medo. À violência, ergamos a voz da paz; ao ódio, respondamos com amor; perante a divisão, abramos os braços do acolhimento. À escuridão, acendamos-lhe uma vela.
REFERÊNCIAS:
Entidades UE
As pessoas que descobrimos em 2018 (por boas e más razões)
É inevitável: a cada ano vamos descobrindo novos protagonistas, ora por razões memoráveis (no bom sentido), ora por razões que os próprios prefeririam esquecer. Uma selecção de nomes que vão ficar colados a 2018. (...)

As pessoas que descobrimos em 2018 (por boas e más razões)
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 5.551
DATA: 2018-12-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: É inevitável: a cada ano vamos descobrindo novos protagonistas, ora por razões memoráveis (no bom sentido), ora por razões que os próprios prefeririam esquecer. Uma selecção de nomes que vão ficar colados a 2018.
TEXTO: Este ano, em Setembro, Fátima Carneiro, directora do serviço de Anatomia Patológica do Centro Hospitalar de São João, no Porto, foi eleita a patologista mais influente do mundo. A distinção foi atribuída à investigadora portuguesa pela revista científica The Pathologist, que, ao longo de dois meses, inquiriu patologistas de todo o mundo sobre quem consideravam merecedor do título. A médica portuguesa e docente da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto ficou em primeiro lugar na lista de cem posições elaborada pela revista britânica que, em 2015, já tinha atribuído a mesma distinção ao cientista Manuel Sobrinho Simões. Tal como Sobrinho Simões, Fátima Carneiro destacou-se no seu percurso profissional enquanto investigadora do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup), agora integrado no I3S (Instituto de Investigação e Inovação em Saúde). Especializou-se em cancro do estômago, tendo participado em diversas descobertas nesta área, com especial relevo para a forma hereditária do tumor gástrico. Fátima Carneiro assinou mais de 250 artigos científicos ao longo da carreira, que construiu com sucesso, mas longe da atenção mediática. Foi no final de Setembro que os holofotes se acenderam e “a patologista mais influente do mundo” foi apresentada ao país. Fátima Carneiro transformou a atenção que a deixa desconfortável numa oportunidade para reclamar mais e melhor para a patologia, “central na medicina”. Foi nessa altura que, numa entrevista ao P2, partilhou, sem vaidade, a sua determinação, dedicação e generosidade. No piso superior, no seu gabinete, Fátima Carneiro falou sobre a carreira que concilia a actividade clínica, a direcção de um serviço hospitalar, as aulas como professora catedrática e a investigação. E o resto da vida. Apesar de se perder na recordação dos tempos de menina em Angola, a conversa voltava sempre ao trabalho. “Um fervilhar diário”, assegurou a todos os que imaginam que um patologista é um médico calado e sozinho, debruçado em cima de um microscópio dia após dia. Falou-se da dureza de confirmar uma suspeita de cancro presa numa amostra minúscula de uma lâmina e da importância que o olhar de um patologista pode ter na procura de uma possível solução ou, pelo menos, explicação. Lembrou o momento em que escolheu ser patologista em vez de pediatra. Defendeu a formação médica contínua e disse que quer deixar uma marca nesse capítulo durante o mandato como presidente da Academia Nacional de Medicina de Portugal. “Obter um título [de médico] não me confere competência. Eu tenho de me actualizar”, referiu, sugerindo uma maior responsabilização das estruturas pela oferta de acções de formação pós-graduada e também a introdução de testes online de autodiagnóstico para os médicos poderem avaliar os seus conhecimentos. No final de duas horas de entrevista, regressou, apressada, para o gabinete, deixando a sensação de que a fizemos gastar muito do seu precioso tempo. No seu serviço, a patologista mais influente do mundo tinha um aluno de Medicina à espera e, em cima da secretária, estava ainda uma pequena caixa com lâminas de amostras de um tumor de uma vesícula biliar para analisar. Durante a entrevista, desabafou mais do que uma vez o incómodo com a tarefa que foi forçada a adiar: “Tenho aqui estas lâminas para fazer diagnóstico que não vou poder fazer agora. Estou a prejudicar os doentes por vossa causa. ” Andrea Cunha FreitasO major Vasco Brazão estava em missão na República Centro-Africana (RCA) quando a sua família foi surpreendida por inspectores da Polícia Judiciária (PJ) nas buscas à sua casa em Lisboa. Nessa manhã, o então director da Polícia Judiciária Militar (PJM), coronel Luís Vieira, era detido, bem como elementos da PJM, da GNR e um civil. O major e o coronel sabiam que estavam a ser investigados pela PJ há mais de um ano. Tinham recuperado o material de guerra furtado em Tancos, e isso merecera-lhes elogios das chefias militares e políticas. O próprio ministro da Defesa, à data, José Azeredo Lopes, foi felicitado pelos seus pares numa reunião da NATO. O Ministério da Defesa — que tutela a PJM — saía bem do caso depois do vexame do roubo de Tancos, noticiado pela imprensa europeia. Na torrente mediática sobre as buscas a casas e escritórios e as detenções dos suspeitos para interrogatório, na última semana de Setembro, o nome de Vasco Brazão foi o que mais vezes foi referido. No conjunto dos nove arguidos no âmbito da Operação Húbris, era o único que se encontrava fora do país, o que lhe terá dado visibilidade aos olhos da opinião pública. É, pelo menos, o que nota quem encontra uma suposta ligação entre o momento das buscas e detenções e uma alegada tentativa de descredibilizar o oficial que liderou a equipa de investigadores da PJM às duas mortes no curso 127 dos Comandos. O major estivera em Portugal de férias e poderia facilmente ter sido detido, mas a operação só foi lançada na manhã a seguir ao seu regresso à RCA, estando por isso ausente no momento das detenções. Seja como for, a semana em que os 19 militares se sentaram pela primeira vez no banco dos réus (no julgamento às circunstâncias das mortes nos Comandos) foi a mesma em que o major Vasco Brazão ficou conhecido por ser o arguido mais aguardado dos nove. Foi detido à sua chegada ao aeroporto, ouvido ao longo de mais de dez horas, em duas ocasiões, e sujeito a uma medida de coacção de obrigatoriedade de permanência na residência e impedimento de contactar com militares ou com os restantes arguidos. A investigação, que chefiou, às mortes por desidratação extrema dos dois recrutas, em Setembro de 2016, durou dez meses e culminou com aquilo que porventura poucos acreditariam ou desejariam: a acusação de oito oficiais, oito sargentos e três praças, todos militares do Exército do Regimento de Comandos, a maioria instrutores, por 539 crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física. Mais tarde, viria a receber um louvor pela “clarividência, determinação e assinalável capacidade de organização, materializada no volume e qualidade processual apresentada”. As suspeitas, no caso dos Comandos, apontavam para crimes militares e seria a PJM a investigar. O mesmo não aconteceu com o roubo em Tancos, cuja investigação foi entregue à PJ pela então procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal. A PJM, aqui também com o investigador-chefe Vasco Brazão, ficou oficialmente a colaborar com a PJ. A estratégia de defesa e a interpretação da forma como a PJM alinhou no esquema para recuperar o material de guerra são distintas quer se trate do major ou do coronel Luís Vieira, que dirigiu a PJM. Brazão admitiu ter recorrido a um informador, escudando-se no conhecimento posterior que a PJM terá dado à tutela. Vieira, que se encontra em prisão preventiva, manteve o silêncio. Os contornos pouco claros do recurso a informadores pelas polícias servem para quem, por um lado, diz não existir aqui qualquer crime, alegando ser esta uma prática frequente e necessária, e, por outro, para quem acusa, dizendo que nenhuma linha separa, neste e noutros casos, um informador de um suspeito de um crime. No recato exigido pelo segredo de justiça e na proporcional limitação de acesso ao processo, por ele imposta, a defesa tem a missão de recuperar a imagem de um “homem honrado”, como afirmou o seu advogado, Ricardo Sá Fernandes. Enquanto também porta-voz da PJM, o major tinha como objectivo projectar uma imagem da PJM como órgão de investigação criminal necessário, com uma função pouco conhecida e contestada, mas definida e justificada pelo Código de Justiça Militar. Vasco Brazão deixou a PJM, no início deste ano, para ingressar de novo no Exército e partir em missão para a RCA, onde foi chefe das operações do quartel-general de apoio à missão de manutenção de paz da União Europeia, que junta 12 Estados-membros. O major estaria numa fase da carreira em que poderia ser promovido a tenente-coronel. Agora, entre a PJM, sob tutela do Ministério da Defesa, e o Exército, dependente das Forças Armadas, quem o quererá? Ana Dias CordeiroDentro e fora da sala do hemiciclo, os deputados dos vários partidos conseguem conquistar alguma notoriedade: uns porque são líderes de bancada, outros porque são dirigentes partidários, outros ainda porque têm espaços de comentário televisivo. Há ainda os casos em que os deputados se tornam célebres por darem a cara por uma causa política ou social. Noutras situações, são as polémicas que tomam conta do seu nome (quase) desconhecido do grande eleitorado. Ainda que possa ser um fenómeno breve. Aí são notícia de telejornal e saem da sombra. Foi o que aconteceu este ano a José Silvano, Emília Cerqueira e Maria das Mercês Borges, todos deputados do PSD, que ganharam notoriedade nacional, mas não pelos melhores motivos. No caso de José Silvano, o deputado foi eleito em 2015 pelo círculo de Bragança, distrito onde foi presidente de câmara durante 12 anos. O seu nome já tinha sido notícia nacional por causa de uma coligação parlamentar (só CDS e PAN se colocaram à margem) para tentar, em segredo, alterar a lei financiamento dos partidos. José Silvano era o coordenador da bancada do PSD nessa comissão. Depois, a sua visibilidade aumentou quando foi nomeado secretário-geral do PSD, em Abril deste ano, em substituição de Feliciano Barreiras Duarte, deputado e ex-secretário de Estado que mostrou ter irregularidades no currículo académico. Mas foi o registo de uma falsa presença (e dúvidas sobre outra) numa sessão plenária da Assembleia da República que catapultou o nome de José Silvano. O Expresso noticiou, em Outubro, que o secretário-geral tinha registado com a sua palavra-passe no computador a presença numa sessão quando, na mesma tarde, estava a 400 quilómetros de distância numa iniciativa partidária. Quem teria então feito o log in no computador? O caso arrastou-se durante uma semana, uma das mais penosas desde que Rui Rio é líder do PSD. O próprio Silvano pediu, em conferência de imprensa, uma investigação do Ministério Público (o que viria a acontecer), o que pressupunha desconhecer quem teria acedido ao seu computador. Mas no dia seguinte o mistério seria desvendado, depois de o mesmo semanário ter confrontado Emília Cerqueira, a sua colega de bancada, com imagens da sessão plenária em causa que apontavam para que fosse a autora do log in. A deputada, advogada, eleita por Viana do Castelo, assumiu que entrou com a palavra-passe de José Silvano para aceder a ficheiros de que precisava. Com esse gesto assinalou (“inadvertidamente”) a presença do secretário-geral do PSD no Parlamento. Emília Cerqueira quis dar a ideia de que a troca de passwords no grupo parlamentar é banal, numa conferência de imprensa, transmitida em directo, pelas televisões. Foi essa opção que Maria Mercês Borges, deputada eleita por Setúbal, recusou ao também ser notícia por ter dado como presente (para contabilização do quórum) na votação da generalidade do Orçamento do Estado o seu colega Feliciano Barreiras Duarte, que esteve na sessão durante a manhã e saiu por causa de uma emergência familiar. Em comunicado, a deputada anunciou a demissão dos cargos que ocupava. Já Emília Cerqueira deu a cara na televisão. Visivelmente acossada pela polémica, a deputada assumiu ser natural do “Alto Minho” para deixar uma frase que escandalizaria Lisboa: “Agora toda a gente se preocupa como um bando de virgens ofendidas numa terra onde não há virgens. ” Virgem ou não, até houve quem se ofendesse nas bancadas do Parlamento, mas por pudor ficou em silêncio. Sofia RodriguesQuando o ano de 2018 começou, ainda não suspeitavam do que os 12 meses seguintes lhes iriam reservar. Mas, para todos eles, o ano que agora termina não será apenas mais um. Jovane Cabral, Gedson Fernandes e Diogo Leite confirmaram as suas qualidades como futebolistas promissores que, ainda crianças, lhes foram detectadas e conseguiram chegar ao topo. Exemplo paradigmático é o caso de Jovane Cabral. O avançado do Sporting começou o ano de 2018 no banco de suplentes da equipa secundária dos “leões”, que defrontou o Sporting de Braga B, no Minho. A mais recente estrela da formação sportinguista só entrou no relvado já na parte final da partida, substituindo o quase anónimo Budag Nasyrov. O médio azerbaijano joga agora na I Liga daquele país asiático, vestindo a camisola do FK Zira. Segundo o site Transfermarkt, especializado em avaliações dos jogadores de futebol, o passe de Nasyrov tem um valor de mercado de 125 mil euros. Já Jovane Cabral é escolha assídua na equipa principal do Sporting (jogou em 18 encontros esta temporada e marcou quatro golos) e tem um valor de mercado, segundo o referido site, de 3 milhões de euros. Percursos mais ou menos semelhantes tiveram Diogo Leite e Gedson Fernandes. Titulares, respectivamente, nas equipas de FC Porto e Benfica, que se defrontaram a 6 de Janeiro, no centro de estágios dos portistas, em Gaia, num clássico de equipas B, ambos foram subindo patamares. Diogo Leite é o mais recente herdeiro de uma linhagem de defesas-centrais formados no FC Porto, com o selo de qualidade. Bruno Alves, que aos 36 anos continua a ser chamado à selecção portuguesa, Ricardo Costa, Ricardo Carvalho, Jorge Costa ou Fernando Couto, todos eles internacionais portugueses, foram lançados muito cedo na equipa principal portista. Diogo Leite aproveitou da melhor forma a lesão do reforço Mbemba, no início da temporada, e a oportunidade perdida por Chidozie, para mostrar as suas qualidades. Estreou-se a titular na equipa principal “azul-e-branca” ao jogar uma final - a da Supertaça, ganha ao Desportivo das Aves. E só com a chegada de Militão ao Dragão, o jovem perdeu algum espaço. O FC Porto, contudo, não tem dúvidas de que Diogo Leite será uma aposta de futuro. Por isso mesmo o futebolista, de apenas 19 anos, viu o seu contrato prolongado até 2023, tendo uma cláusula de rescisão de 15 milhões de euros. Gedson Fernandes também não se amedrontou quando Rui Vitória o chamou pela primeira vez para jogar com a camisola da equipa principal do Benfica. O médio de 19 anos foi titular no jogo frente ao Fenerbahçe, a primeira mão da 3. ª pré-eliminatória da Liga dos Campeões. Desde esse jogo, foi ganhando o seu espaço e, ao contrário de Diogo Leite, nem a contratação de um reforço no defeso (Gabriel) lhe retirou espaço. Ainda sem a compleição física que o pode ajudar na posição central que costuma ocupar no relvado, Gedson vai mostrando que os 250 euros e as 25 bolas que o Benfica pagou ao Frielas para ficar com o miúdo que jogava a avançado e decidia os jogos sozinho quando tinha nove anos foram bem empregues. Dos três, foi o único que já foi chamado à selecção nacional por Fernando Santos e no dia em que soube da sua convocatória o Benfica anunciou a renovação do contrato com a sua nova coqueluche, prolongando a sua ligação ao clube até 2023 com uma cláusula de rescisão de 120 milhões de euros. A afirmação de Jovane Cabral no Sporting também é precoce. Vindo de Cabo Verde com 16 anos, fez a sua formação na academia “leonina”, em Alcochete, viveiro de inúmeros craques. Contudo, a sua chamada à equipa principal sportinguista acaba por ser feita à custa da desistência do clube — ou pelo menos do seu treinador na altura, José Peseiro — noutro rebento da formação: Matheus Pereira. Jovane fez a sua estreia com a camisola principal dos “leões” quando entrou para o lugar do seu colega de equipa a 12 de Outubro de 2017, numa partida frente ao Oleiros, da Taça de Portugal. Meses mais tarde, viu Peseiro compará-lo ao seu antigo colega em termos elogiosos. “São estes jogadores que a formação tem de ter. É este carácter que queremos. Não é os que fogem quando não são titulares. Este não foge. ”E o Sporting não quer mesmo que Jovane fuja. Por isso, tal como os seus rivais, já renovou o contrato com o cabo-verdiano, que optou por representar a selecção portuguesa em vez da insular, esticando a ligação com os “leões” até 2023 e fixando a cláusula de rescisão em 60 milhões de euros. Jorge Miguel MatiasO ano de 2018 não podia ter começado de forma mais auspiciosa para João Ribas. No dia 25 de Janeiro, o jovem adjunto que Suzanne Cotter tinha ido buscar aos Estados Unidos assumia a direcção do Museu de Serralves. Escolha unânime de um júri internacional, Ribas, então com 38 anos, tinha um currículo invulgarmente sólido, mas construído sobretudo na América, onde vivera a maior parte da sua vida, e apesar de ter assinado algumas exposições importantes nesses anos de colaboração com Cotter, como a retrospectiva de Helena Almeida, continuava a ser uma figura um pouco secreta. Mas começava o ano de 2018 num cargo que prometia dar-lhe finalmente a visibilidade que até aí lhe faltara. Prometia e deu, embora não talvez exactamente a que teria desejado. Já como director, Ribas inaugurava em Junho a exposição Zero em Comportamento, na qual é tentador entrever, retrospectivamente, um sibilino aviso à navegação. Composta de obras do acervo de Serralves, propunha-se esta “apresentar gestos de irreverência ou desobediência, quer dirigidos a instituições, como a escola ou o museu, quer a formas de repressão ou controlo”. No mês seguinte, o novo director dava ao PÚBLICO uma grande entrevista, na qual assumia que a sua geração tinha “a obrigação de repensar o museu como instituição”, tornando-o “um espaço de resistência ao mercado, mas não de exclusão”. E, num primeiro sinal de divergências internas, recusava-se a confirmar se a exposição de Joana Vasconcelos no Guggenheim de Bilbau viria mesmo para Serralves. Depois foi sempre a acelerar: em Setembro, explica ao Ípsilon que a exposição Robert Mapplethorpe: Pictures não terá “salas escondidas” e, quando esta abre com uma zona interdita a menores de 18 anos e o jornal chama a atenção para o facto, Ribas anuncia a sua demissão. É o início de uma dura polémica, que servirá também para revelar publicamente as crescentes tensões entre a administração e a equipa do museu. Ribas acusa a administração de Ana Pinho de “violação continuada” da sua autonomia, esta responde acusando-o de deslealdade e acabam a digladiar-se numa insólita audição parlamentar destinada a apurar se houvera de facto censura em Serralves. O caso começa a morrer aí e finar-se-á de vez com a mais do que provável recondução de Ana Pinho para um novo mandato. Mas quando Ribas parecia destinado, após meses de súbita e algo traumática notoriedade, a deixar a ribalta, o início de Novembro trouxe a notícia de que a candidatura que apresentou com a artista Leonor Antunes venceu o concurso da DGArtes e deverá ser a escolhida para representar Portugal na Bienal de Veneza. Para João Ribas, 2018 foi um ano de extremos. Se o seu percurso profissional um dia merecer uma retrospectiva, talvez seja mesmo avisado criar uma zona reservada para este ano hardcore. Luís Miguel QueirósAlguns brasileiros terão descoberto Jair Messias Bolsonaro em Abril de 2016, durante a votação do impeachment de Dilma Roussef, quando o ex-militar ofereceu o voto aos “militares de 64” (golpe que iniciou a ditadura), “contra o comunismo e pela memória do coronel Alberto Ustra, o pavor de Dilma Roussef”, dedicando assim a sua contribuição para derrubar a Presidente ao seu próprio torturador, símbolo da crueldade do regime que durou até 1986. Mas a maioria nunca tinha ouvido o seu nome a 23 de Julho, quando o Partido Social Liberal (PSL) o apresentou como candidato às eleições presidenciais — muitos continuavam sem o reconhecer a meio de Setembro, depois de ser alvo de um atentado, numa altura em que as sondagens antecipavam que perderia contra qualquer adversário na segunda volta. Deputado federal há 27 anos, Bolsonaro fez aprovar dois projectos de lei. Se tinha seguidores, não era pela actividade parlamentar, mas pela postura de permanente provocador convidado para programas de rádio e televisão por ser garantia de escândalo. Sem desperdiçar oportunidades para alimentar esta persona, o deputado soube fazer da crise aberta pela Operação Lava-Jato (que desde 2014 destruiu a crença dos brasileiros no poder executivo e legislativo) a sua rampa de lançamento. Mais do que votar em alguém, para muitos tornou-se fundamental votar “anti-Lula” ou anti-Partido dos Trabalhadores. Messias ou mito, como o descrevem parte dos 57, 7 milhões que o elegeram Presidente aos 63 anos, Bolsomito soube apresentar-se como parecendo sempre dizer a verdade (o antipoliticamente correcto há anos na moda entre determinada direita radical) e como um outsider. Em campanha, repetiu afirmações misóginas, homofóbicas ou racistas, entre o elogio da violência e do fascismo: prometeu acabar com “os movimentos sociais e os coitadismos”; matar, prender ou expulsar “esquerdistas, petistas e bandidos” e acabar com a lei que garante atendimento médico a vítimas de violação. Também disse que preferia ver “um filho morto do que homossexual” e que o erro da ditadura “foi torturar e não matar” os opositores. Como o mundo aprendeu com o americano Donald Trump, o filipino Rodrigo Duterte, o húngaro Viktor Orbán ou o italiano Matteo Salvini, não vale a pena esperar que haja um Bolsonaro candidato e outro Presidente. O brasileiro quer de facto diminuir a maioridade penal para 16 anos, facilitar a posse de arma, proteger ainda mais os polícias envolvidos em mortes (“bandido bom é bandido morto”), reescrever os manuais escolares para que contem “a verdadeira” história da ditadura ou acabar com o apoio às organizações de direitos humanos. Com um país polarizado como nunca e tendo juízes e militares a seu lado, agora que é “mito”, dificilmente recuará face à oposição no Congresso ou perderá a atitude autoritária. Sofia LorenaEra uma tragédia anunciada. E depressa ecoaram vozes do lado do país que só se lembra do interior quando as desgraças acontecem a pedirem que António Anselmo, o presidente da Câmara de Borba, se demitisse. Afinal, haviam sido feitos estudos e reuniões com a Direcção Regional de Energia do Alentejo (DREAL), Direcção Regional do Ambiente e Recursos Naturais do Algarve (DRARN) e câmara que alertaram para a instabilidade dos taludes das pedreiras que fizeram parte da Estrada Municipal 255 desabar e arrastar consigo cinco pessoas. Mas António Anselmo não se demitiu. “Isso é para os fracos”, disse. Durante aqueles dias, entre o colapso da estrada, a 19 de Novembro, o autarca disse-se sempre de “consciência tranquila” sobre o incidente, assumindo que “nunca na vida” tinha sido informado dos perigos daquela estrada, que a administração central passou para a autarquia em 2005. Teve sempre um discurso directo, telegráfico, por vezes distante, quando respondia às questões colocadas pelos jornalistas. Numa terra habituada aos desastres, poucas vozes se levantaram a pedir a demissão do presidente. Os borbenses vêem-no como um “bom rapaz” e reconhecem-lhe o trabalho feito ao longo destes cinco anos à frente da autarquia. Mas o trabalho de António Anselmo com os borbenses começou ainda em 2001, quando se tornou presidente das freguesias de Matriz, por um mandato, e depois de São Bartolomeu, durante dois mandatos, ambas no concelho de Borba, sempre eleito como independente em listas do Partido Socialista. Em 2013, deu o salto para a câmara. Quis candidatar-se como independente numa lista do PS, mas os socialistas viraram-lhe as costas. António Anselmo retaliou. Fundou o MUB (Movimento Unidos por Borba) e ganhou as eleições, mas sem maioria absoluta. Depois de quatro anos “muito duros”, em que encontrou a autarquia muito endividada, o que impôs a Borba ter “uma troika dentro da troika” para endireitar as contas - como disse a jornais locais -, voltou a concorrer. E ganhou com maioria absoluta. Como presidente, concentra em si os pelouros do Planeamento, Ordenamento do Território e Urbanismo, Protecção Civil, Desenvolvimento Económico, Equipamento Rural e Urbano. Por isso, aquela estrada que desapareceu estava sob a sua alçada directa. Tal como grande parte da população daquela zona, também ele está ligado ao negócio das pedreiras, o que não é incompatível com as suas funções na autarquia. É sócio de uma empresa de fabrico de artigos de mármore. Detém 50% da Carapinha & Anselmo Lda, microempresa com 19 anos e um volume de vendas de 80 mil euros. E é também vogal do conselho de administração da EDC Mármores - Empresa Gestora das Áreas de Deposição Comum dos Mármores, da qual a Câmara de Borba, e outros três municípios vizinhos, é accionista e que está em processo de insolvência. Com a cidade a fazer o seu luto, é tempo de se começarem a exigir responsabilidades. “Quando chegarem as conclusões, cá estaremos”, disse António Anselmo, dizendo-se disponível para assumir as responsabilidades, que foi sacudindo ao longo deste tempo sobre uma estrada centenária que a terra engoliu e que dificilmente voltará a existir. Cristiana Faria MoreiraNos primeiros dias de 2018, não eram muitos os portugueses que conheciam Pedro Siza Vieira, na altura já membro do Governo, mas com a discreta pasta de ministro-adjunto. Antes, tinha-se destacado como um advogado que circulava nos corredores do poder em representação da influente sociedade Linklaters, com papel decisivo em dossiers quentes como a nacionalização do Banif, a reprivatização da TAP ou a OPA da EDP, sempre do lado dos privados. Agora, que o ano caminha para os seus últimos dias, a presença regular do ministro da Economia na comunicação social já torna mais difícil que consiga escapar aos olhares indiscretos quando caminha pelas ruas à volta da Horta Seca. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A ascensão de Siza Vieira na hierarquia mediática do Governo começou com algumas polémicas, entre elas, a que levou ao pedido de escusa de participar em assuntos relacionados com a energia por ter assessorado a China Three Gorges (CTG), a dona da EDP. Pelo caminho, ainda esteve na mira das críticas por ter participado na elaboração do pacote Capitalizar, que acabou por facilitar a OPA da CTG na EDP, ou por tutelar agora o turismo, onde a sua mulher é uma figura de destaque como presidente executiva da Associação da Hotelaria de Portugal. E teve também uma ameaça de incompatibilidades a pender sobre ele, devido ao caso de uma imobiliária aberta por si na véspera de ir para o Governo. Uma questão que acabou arquivada pelo Tribunal Constitucional. Como ministro da Economia, desde Outubro, o protagonismo de Siza Vieira não tem parado de aumentar: desde os elogios das entidades patronais, aos anúncios de linhas de financiamento sectoriais, passando pelas inúmeras entrevistas sobre as oportunidades que o país está a criar, os apoios comunitários que continuam a dinamizar a economia ou a diplomacia empresarial que decidiu assumir. Siza Vieira até, no final da última semana, deu a cara pela importância de resolver a greve no Porto de Setúbal que estava a afectar a Autoeuropa, “roubando” o palco à sua colega do Mar, Ana Paula Vitorino. O advogado já não é um ministro desconhecido dos portugueses e 2018 foi o ano em que tudo mudou na vida pública de Pedro Siza Vieira. Pedro Ferreira Esteves
REFERÊNCIAS:
O mundo das vítimas e dos pobres tem direito à sua utopia
Serge Bozon põe uma professora, Isabelle Huppert, a reconstruir-se – reconstruindo, à sua maneira incendiária, uma hipótese de relação com o subúrbio, de que se aproxima através de um aluno impossível. Madame Hyde é a ficção da atracção da França branca pela França mestiça: ou seja, um filme político. (...)

O mundo das vítimas e dos pobres tem direito à sua utopia
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento -0.4
DATA: 2018-07-05 | Jornal Público
SUMÁRIO: Serge Bozon põe uma professora, Isabelle Huppert, a reconstruir-se – reconstruindo, à sua maneira incendiária, uma hipótese de relação com o subúrbio, de que se aproxima através de um aluno impossível. Madame Hyde é a ficção da atracção da França branca pela França mestiça: ou seja, um filme político.
TEXTO: Madame Hyde é um filme social rarefeito pela fábula. Uma professora que é um fracasso na escola do subúrbio, Madame Géquil (Isabelle Huppert), é torturada pelos alunos. Um dia torna-se fosforescente, transforma-se em Madame Hyde, e “toca” no insolente Malik (Adda Senani). A sua luminescência queima-o: Malik abre-se, enfim, ao conhecimento. Que não é coisa benigna: os gestos de Géquil/Hyde, por exemplo, são tanto de agressão como de transmissão. É uma comédia burlesca – metafísica, se a palavra não for pesada. Pensamos em anteriores filmes de Serge Bozon, La France (2007), em que uma mulher se faz passar por homem na frente de batalha da Primeira Guerra Mundial, ou Tip Top (2013), em que duas investigadoras da polícia investigam a propria polícia… também em Madame Hyde o olhar das personagens vagueia, pressentindo harmonias que dificilmente encontram nas suas vidas: eis a razão da atracção de uma professora branca pela França mestiça do subúrbio. Madame Hyde é também um filme melancólico. E político. É por aqui que começamos a conversa com Serge Bozon, 45 anos, homem que entusiasma a abstracção do seu discurso com uma perigosa coreografia física: um perigo à mesa, diante de chás e cervejas os gestos de transmissão podem ter o efeito de agressão. Em Madame Hyde, como em Tip Top, há o “nós” e os “outros”, uma França branca e uma França mestiça. Mas não é simples oposição; a personagem de Isabelle Huppert olha de longe para o subúrbio, para a Cité 2000, como uma “possibilidade”. . . quase utópica. Sim, completamente. Constato algo de banal, a oposição entre uma França branca e uma França colorida, entre a França das cidades e a dos subúrbios. Mas quero fazer uma ficção, não um filme social de reportagem das dificuldades reais de cada personagem. Quero inventar coisas, para que seja mais surpreendente – e, por isso, talvez mais político. Em Tip Top todos os brancos estão obcecados pelos árabes. Nas mulheres, desde logo, sexualmente: o marido da personagem de Isabelle Huppert é árabe, o marido de Sandrine Kiberlain é árabe [Huppert e Kiberlain são duas inspectoras que investigam a morte de um informador da polícia de origem argelina]. Há quem aprenda árabe para ler o Corão. Em Madame Hyde é igual. A personagem de Isabelle é um fracasso, é uma professora que não consegue ensinar, mas à noite põe-se a olhar para o subúrbio. Na sua relação com Malik, que é o pior aluno da escola, ela vai conseguir que ele se abra à Ciência. Isso na vida passa-se em várias fases, no filme está concentrado numa aula de Geometria – as coisas tornam-se mais intensas assim, mais simples e elegantes. Não é realista, mas torna a perturbação mais clara, logo a superação também é mais pura. Isto para dizer que quero tratar questões sociais como o racismo ou o subúrbio não como um assunto de vítimas, dos pobres, o que é o lugar-comum da ficção, mas para fazer esses mundos serem também portadores de utopias. Os espaços são fundamentais. É neles, no subúrbio, que tudo se desencadeia, é para eles que a personagem de Isabelle olha como possibilidade. O que atrai a ficção é esse subúrbio, onde ela acaba por ir. E é essa a transformação, ir até ao fim da sua atracção. Como quem vai atrás de uma luz, seguindo Malik. A relação do rap com o subúrbio, no filme, também é particular; é um rap que não é realista, é pop, cheio de sentimento. Não me interessava um rap que imitasse “o rap do subúrbio”, mas um rap que, sendo “contra a escola” – e o meu filme é “pela escola” –, guardasse um lado juvenil, quase elegíaco, como a pop. Para resumir: o subúrbio é não só um terreno ideal para inventar personagens que não sejam vítimas mas também um terreno em que do ponto de vista fílmico há muito a fazer. Numa conversa com o cineasta Bruno Dumont a propósito de Ma Loute (2016), filme em que utilizou vedetas e não-profissionais, ele falava do fascínio, e do medo, dos primeiros em relação aos segundos. Admitia que tinha utilizado isso como eco da luta de classes. Compreendo o que ele diz. Em Madame Hyde, à parte Isabelle Huppert, Romain Duris e José Garcia, os outros não eram actores. Nem eram amadores. Por que é que os actores têm medo? Um não-actor, como não está à vontade, pode sentir-se intimidado. E quando as pessoas são tímidas e têm de fazer alguma coisa, dá-se uma excitação e uma inquietude mais difíceis de encontrar por um actor, que está muito bem nos seus sapatinhos. Os actores podem invejar isso. Mas atenção, há uma coisa desagradável em Ma Loute: temos a impressão de que Dumont está a gozar com os actores. Disso não gosto – às vezes sente-se que goza com Juliette Binoche e que ela interpreta mal e é ridícula. No meu filme não se trata de ridicularizar Huppert através dos proletários não-actores. Como Huppert é uma actriz sempre angustiada, nunca descontraída, o que se passa entre a timidez e a reserva de um não-actor e a tensão dela é coisa do mesmo nível. Não há nada no filme contra o estatuto de star de Isabelle, o que há no filme é tudo a favor do que há de mais frágil em Isabelle. Em Tip Top ela era muito assertiva, aqui é muito frágil – nessa nova fragilidade pode haver um acordo com a fragilidade dos não-actores, não uma oposição. Numa entrevista na estreia de Elle (2016), Isabelle Huppert disse-me: “interpreto cada vez menos”. E que por isso o filme podia ser visto como um documentário de uma actriz no plateau a reagir. De acordo. Mas esse não é o meu filme. Precisamente. Quando fiz Madame Hyde já a conhecia, houve menos tensão do que em Tip Top. Em França, Isabelle é associada a papéis autoritários, o que pode ir até à violência e ao sadomasoquismo. Queria pegar nela de forma oposta, queria-a frágil, porque fracassa profissionalmente, tímida, humilhada, etc. Vai transformar-se, mas não de maneira espectacular. Não se transforma em super-professora: continua na fragilidade, e acaba por colapsar. Procurava um lugar para Isabelle em que ela fizesse gestos que não fossem os seus, em que estivesse com menos munições. No início de Tip Top, na primeira semana de rodagem, ela estava contrafeita. Dou direcções precisas. Para uma cena, disse-lhe: “Estás aqui, depois vais para a esquerda, olhas para ali, ali aproximas-te. . . ”. Ela respondeu: “Não sou uma marioneta. Tens de me deixar encontrar a forma de me movimentar no espaço, de mexer o meu corpo, e em função disso fazes a mise-en scène. ” Eu retorqui: “Não”. E “não” porque pensei na mise en scène durante quatro anos e não quero mexer nela, “não” porque pensei coisas para a personagem na cena. E “não” porque precisamente queria que ela se sentisse constrangida no jogo. Quando chegou a vez de Madame Hyde ela já sabia isso, já não houve esse problema entre nós. Filmo em 35 milímetros, não se pode ver o que se faz, não há rushes, é à antiga. Fazemos poucos takes, porque a película é cara. Trabalho com uma definição de luz para cada plano – o que significa que a cada mudança de plano tudo tem de ser mudado. Isabelle adora ensaios e eu sou contra, porque procuro preservar o mistério. Foi então preciso que Isabelle se libertasse do que tinha a ver com a imagem, com a aparência. E o que se passou é que foi ela que me deu coisas e eu reagi em função delas. Não tenho teorias nem método, foi caso a caso. Na última cena de aula, ela deu-me muito, muito. Fiquei comovido. Tinha-lhe dito: “É preciso que caias e que te levantes, que caias e que te levantes, é preciso que a personagem tente o impossível, continuar a sua aula, o que não vai conseguir” – e ela investiu isso de um desespero absoluto. Falemos de gestos. Há aquela sequência em que Malik simula o bigode de Hitler e a professora levanta a mão. Um gesto. . . . . . bizarro. Porque tanto é de agressão como parece querer transmitir algo. . . É isso mesmo. Nisso Madame Hyde é cinema mudo. Há algo, em Malik e na professora, que nos reenvia para os “monstros” de Tod Browning, para o Freaks, por exemplo. Adoro isso. Existe essa ideia de monstruosidade nas personagens: num caso é exterior, física, no caso dela é uma monstruosidade secreta. No romance [O Estranho Caso do Dr. Jeckyll e de Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson], Hyde é tudo o que Jeckyll reprime: a sexualidade, a violência. Madame Hyde não é isso. Mesmo no caso da primeira cena em que ela “mata”, é para proteger Malik. A monstruosidade no filme não serve a distinção entre Bem e Mal, espelha antes uma fragilidade. A fraqueza de Malik são as suas pernas; a de Marie Géquil é ser um fracasso como professora. Isabelle, e é por isso que adoro trabalhar com ela e que vou voltar a fazer um filme com ela, é uma actriz que tem uma forma de estilizar os gestos. Não são gestos naturais, que se diriam do quotidiano, que respiram uma evidência do quotidiano. São gestos estranhos – há sempre um lado de excentricidade, como no cinema mudo. Não sei de onde é que isso lhe vem, eu próprio me surpreendo, e é por aí que muito da personagem não passa pelo "bla bla bla" ou pelo argumento. Há coisas que Isabelle inventa sozinha. Às vezes sou eu que lhe dou o ponto de partida – esse gesto de que falou, que tem de facto tanto de agressão como de continuidade, fui eu que propus. Mas sobre o mudo, sobre essa conexão [James] Whale/Browning: é verdade, mas enveredaria mais pelo lado burlesco. Um burlesco – grande palavra agora – metafísico. Sim, menos trivial. As personagem olham sempre para longe. . . É mais sonhador. . . Há um lado melancólico no seu cinema. As personagens desejam sempre estar noutro lugar, o olhar delas vagueia com a consciência de outra dimensão, a que não se consegue chegar. . . Vejo o que quer dizer. Os meus filmes são diferentes, espero nunca repetir o mesmo, mas em cada um há o apelo de um longínquo. Há uma busca, se calhar um sentimento de perda. Estou a improvisar, porque nunca tinha pensado nisso. . . mas sim, a ideia de um exterior inacessível com uma harmonia própria que dificilmente as personagens encontram nas suas vidas. Como pegar em pleno numa “questão social”, a educação, sem a transformar na declinação dum sermão: Serge Bozon mostra. Onde é que se coloca no cinema francês, território que foi demarcado nos anos 30 pelo “realismo”?Os anos 30 e os anos 70 foram as décadas maiores do cinema francês. Porquê os anos 30? Porque, e tal como em Hollywood, onde isso era mais visível, a noção de género ainda não estava fixada, nem a gramática de cada um dos códigos, tudo se comunicava. Um mesmo filme podia ser comédia musical, filme de aventuras, filme erótico, e a alegria efusiva de tudo misturar. Pense em Steamboat Round the Bend [1935], de John Ford: é uma comédia sobre o Mississípi, é filme étnico, tudo é possível. Isso existia no cinema francês, isso existia na cabeça de alguém como Julien Duvivier [1896-1967], com um misto de excentricidade e de realismo bruto, o mundo parecendo caótico. Nos anos 70, que adoro, por razões políticas e sociais, houve a ressaca das esperanças revolucionárias, que fez com que as pessoas tivessem ficado sozinhas. Não é por acaso que Eustache, Rohmer, Godard, Rivette fazem os seus melhores filmes nessa década: estavam todos em momentos de solidão, tiveram de se voltar para si próprios para encontrarem na raiva, na solidão, os seus recursos. Pegue em Une Mulher é Uma Mulher [1961], de Godard, ou em Bando à Parte [1964], e a seguir em Número Dois [1975] – aqui já não há nada do “somos jovens e belos e andamos pelos museus, pomos música na jukebox e engatamo-nos”; há algo de mais duro. Essa dureza dá um lado mais comovente. Este é o cinema de que gosto. De qual é que venho? Tenho gostos clássicos: diria Guitry, Pagnol, Renoir, Jacques Becker, Bresson, Tati um pouco; toda a Nouvelle Vague, e toda a escola [das produções] Diagonale [Jean-Claude] Biette, [Paul] Vecchialli. . . Há cineastas recentes de quem me sinto próximo: Patricia Mazuy, Alain Guiraudie. Quando tinha 25 anos, escrevia para uma revista, La Lettre du cinéma, e tínhamos – eu, Vincent Dieutre, Pierre Léon, Axelle Ropert [a sua argumentista] – uma noção de grupo, um pouco como a Nouvelle Vague. Queríamos fazer filmes e fizemos. E dispersámo-nos. Mas ficámos marcados pela ideia de que se fazemos protótipos, ou seja filmes estilizados, é porque queremos ficar próximos de um cinema popular: a estilização não vem do cinema de arte e ensaio. O que pode haver de mais estilizado do que um peplum? Quando vemos Zombie [1948], do [Jacques] Tourneur. . . é estilizado, é fantástico sonhador, é fantástico atmosférico, mas ele fazia isso para o público mais popular. Tenho um amor enorme pelo cinema popular, sobretudo quando é mais delirante, como a série B. As cenas à noite de Madame Hyde foram feitas a pensar no giallo, no cinema de terror italiano, que tinha uma sofisticação na luz e na colocação dos actores em campo mas não era cinema de arte e ensaio. Quando alguém me diz que Madame Hyde é original, que não se sabe de onde vem, penso: é um filme sobre o subúrbio, é um filme sobre a escola que questiona o que é ensinar, é um filme em que há elementos fantásticos, e lembro-me que Brisseau fez isto, em De Bruit et de Fureur [1988], que vi em miúdo, e que era poesia em filme. . . mas aí ficamos no círculo da arte, e o meu objectivo, como em O Menino Selvagem [1970], do Truffaut, é sair do círculo da arte e mostrar o que é aprender. No caso do Truffaut é simples: é aprender a ler, a escrever e a falar. No caso de Madame Hyde tudo se passa mais tarde, trata-se de aprender a raciocinar, a argumentar, a colocar um “portanto” entre cada frase, a resolver um problema sem números, só pela reflexão. Não é trivial. La France podia ser o título dos outros filmes. As suas longas tratam do exército, da polícia, da escola. Imagino que não esteja a picar o ponto das instituições. . . [risos] Não, se não seria Frederick Wiseman. A minha co-argumentista é que tem as ideias. A minha “coisa” é a mise-en-scène, a montagem, não sou forte em argumento, Nunca sou eu a encontrar o ponto de partida, é ela. Sem ela não seria capaz de fazer filmes. Sim, leio os jornais todos os dias, leio o Libé [Libération]. Mas o meu ponto de vista é outro na questão do político e do social. Olhemos para Clint Eastwood, para um filme como Mystic River [2003], que frequentemente é pesado no seu negrume. De repente ele faz Grand Torino [2008], em que há um único branco num bairro asiático, e reaparece uma frescura que tinha perdido, que havia em A Última Canção [1982], reaparecem um humor e um sentido do presente. . . Só pelo facto de a personagem não saber quais os rituais daquela comunidade, quais as palavras a dizer. É o mesmo que faço ao misturar Isabelle Huppert e um actor que não é um actor. Engendra um prazer de cinema que não acontece quando ficamos no círculo habitual. É uma forma à parte de fazer político e social no cinema francês. Sim, seria menos à parte se estivesse em Portugal. Se pensarmos num filme como A Fábrica de Nada [Pedro Pinho, 2017], e na sua dimensão de comédia musical, mesmo que sejam três minutos num filme de três horas, ou naquilo que Miguel Gomes ensaiou em As Mil e uma Noites [2015], nas variações possíveis que não opõem cinema social a cinema popular. . . Não há um academismo no cinema português. Cada cineasta é um protótipo, isso oferece resistência à fixação de uma narrativa. . . Muito justo. Já em França há demasiados filmes demasiado parecidos. Estou isolado, sim, em todo o caso tento evitar a oposição entre arte e ensaio, entre o cinema cultural chique e o cinema comercial. Não é que os meus filmes façam milhões; falo em comercial na relação com as personagem, com a comicidade, com a ingenuidade e com os actores. Tento que os filmes saiam desse tipo de fronteiras. Até porque, se há convenções no cinema comercial, também as há no cinema de arte e ensaio. Por exemplo, há vários hoje a fazerem um sub-[Pedro] Costa. A metamorfose é central nos seus filmes. Há sempre um ser que se transforma, quase sempre uma mulher. Em que “laboratório” é que as coisas, as ideias, lhe surgem ou acontecem? Começa pela ideia de uma mulher a transformar-se?Não, depende. É a Axelle Ropert que me propõe: “Isto interessa-te?”. Escrevo sempre com a Axelle, e passa-se como se passa com Isabelle no plateau: não fico horas a falar da personagem, não atiro referências; quanto muito isso passa-se num segundo instante, ou quando o filme acaba e começo a reflectir. É só a partir da montagem que começo a ser analítico. Antes é excitação, é adrenalina. Na altura de La France eu não estava interessado no subúrbio e nas questões dos árabes, hoje estou e trata-se de encontrar uma ideia que toque nesses assuntos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para Madame Hyde, Axelle propôs-me Stevenson, nos nossos dias, no subúrbio, e com uma mulher. Foi isso que me excitou. O mesmo para Tip Top. Os policiais assentam numa rivalidade mimética entre o assassino e o polícia, em que o assassino está rodeado de mulheres e de droga e o polícia é melancólico. É um cinema de macho triste, homossexual reprimido e deprimido. Por isso a ideia em Tip Top era fazer um policial com mulheres, em que elas eram não só a polícia – logo, sem possibilidade de rivalidade mimética com o assassino – como eram a polícia da polícia, porque o trabalho delas é investigar a polícia. Sobre Madame Hyde. . . porquê uma mulher? Porque queria trabalhar com Isabelle mas também porque a transformação tornava-se mais romanesca: há uma fragilidade à partida. E porque há uma inversão: José Garcia, o marido, é o homem de casa, é ele que cozinha e que trata dela, o que dá um lado de excentricidade. Se fosse a mulher a dona-de-casa e a personagem em transformação o homem, seria uma coisa mais macho. Mas é verdade que a metamorfose estava na base de La France [uma mulher veste-se de homem e parte para a frente, na Primeira Guerra Mundial, ao encontro do marido]. Axelle propôs: “O que achas de um filme de guerra em que uma mulher se traveste?”. Nunca tinha reflectido muito nisto, e agora reparo que o meu próximo projecto é uma variação contemporânea de Don Juan, em comédia musical.
REFERÊNCIAS:
Étnia Asiático Árabes
Festival para Gente Sentada apresenta Nils Frahm e Marlon Williams em Braga
Os concertos acontecem no Theatro Circo, no GNRation e no centro da cidade de Braga. O festival, que acontece pela segunda vez, reúne vários nomes emergentes da música alternativa internacional. (...)

Festival para Gente Sentada apresenta Nils Frahm e Marlon Williams em Braga
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Animais Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os concertos acontecem no Theatro Circo, no GNRation e no centro da cidade de Braga. O festival, que acontece pela segunda vez, reúne vários nomes emergentes da música alternativa internacional.
TEXTO: O Festival para Gente Sentada regressa a Braga para a segunda edição, na sexta-feira e no sábado, com o alemão Nils Frahm, o neozelandês Marlon Williams e a sul-africana Alice Phoebe Lou como principais nomes do cartaz. Com concertos no Theatro Circo, no GNRation e no centro da cidade de Braga, o evento reúne vários nomes emergentes da música alternativa internacional, como a catalã Núria Graham, e outros valores do panorama nacional, como os Riding Pânico ou Filipe Sambado. Os dois dias arrancam no centro da cidade, pelas 19h00, com West Coast Man, projecto de Pedro Costa, na sexta-feira, e a banda lisboeta Madrepaz no sábado, com actuações na Rua do Castelo antes do jantar. Pelas 22h00 de sexta-feira, Alice Phoebe Lou apresenta ao público o blues e a fusão de estilos que caracteriza a cantautora sul-africana, com o álbum de estreia "Orbit", de 2016, a dar lugar, ainda este ano, ao próximo registo de estúdio, "Paper Castles". Lou, de 25 anos, lançou no final de 2017 o EP "Sola", além de um livro de poesia, notabilizando-se com a música "She", criada para o filme "Bombshell: The Hedy Lamarr Story", que entrou na lista final de candidatos às nomeações ao Óscar de Melhor Canção Original. Uma hora depois, segue-se Marlon Williams, neozelandês de 27 anos que participou, já este ano, no filme "Assim Nasce Uma Estrela", realizado por Bradley Cooper e a quarta versão da história, com Cooper e Lady Gaga nos principais papéis (que sucedem às 'duplas' Janet Gaynor e Fredric March, no original de William Wellman, 1937, Judy Garland e James Mason, de George Cukor, 1954, e Barbra Streisand e Kris Kristofferson, de Frank Pierson, 1976). Em Braga, Marlon Williams vai apresentar o sucessor ao álbum de estreia homónimo, de 2015, intitulado "Make Way for Love", lançado já este ano, tendo sido nomeado como Melhor Artista Masculino pelo Variety Artists Club da Nova Zelândia. À noite, o GNRation volta a acolher propostas lusas, com a dupla Medeiros/Lucas marcada para as 00:30 e Filipe Sambado pelas 02:00 da madrugada de sábado. No segundo e último dia, o palco do Theatro Circo recebe a catalã Núria Graham, a apresentar o álbum de 2017 "Does It Ring a Bell?", naquele que é já o terceiro disco da jovem cantora de 22 anos. Nils Frahm, o cabeça de cartaz do festival, sobe ao palco pelas 23:00 de sábado, mostrando "All Melody", editado este ano e apresentado cinco meses antes no Porto, no festival Primavera Sound. O compositor, produtor e intérprete de Hamburgo é reconhecido por uma abordagem pouco convencional ao piano, em que combina sonoridades clássicas e electrónicas, além de ferramentas de percussão. Ao longo da carreira, o músico de 36 anos colaborou já com músicos como Ólafur Arnalds ou Woodkid, e lançou bandas sonoras para teatro ou para cinema, a que se somam nove álbuns em nome próprio. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. IAN, o projecto da violinista russa Ianina Khmelik, da Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, abre o palco do GNRation pelas 01:30 da madrugada de domingo, trazendo o 'trip hop' e a eletrónica alternativa para o festival. Seguem-se os portugueses Riding Pânico (02h30), já depois de começar o 'dj set' do actor Nuno Lopes, noutra sala do espaço bracarense, no encerramento do evento. O festival nasceu em Santa Maria da Feira, onde se realizou até 2014, tendo passado para Braga no ano seguinte. Desde o começo, o evento já contou com nomes como Devendra Banhart, Robert Fisher, Woven Hand, Low, Tindersticks, entre outros.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave circo cantora pânico
Causa antitouradas e Educação Visual disputam reunião com Passos Coelho
Em dois meses foram criados 1008 movimentos no portal do Governo. Os sete finalistas têm duas semanas para convencer apoiantes e dia 19 esgrimem argumentos num debate. Quem ganhar reúne-se com Passos. (...)

Causa antitouradas e Educação Visual disputam reunião com Passos Coelho
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Animais Pontuação: 13 | Sentimento 0.0
DATA: 2012-03-05 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em dois meses foram criados 1008 movimentos no portal do Governo. Os sete finalistas têm duas semanas para convencer apoiantes e dia 19 esgrimem argumentos num debate. Quem ganhar reúne-se com Passos.
TEXTO: Sérgio Caetano olha para a Catalunha e fica orgulhoso por "finalmente ter sido contrariada uma tradição enraizada, mas que já não fazia sentido nos dias de hoje". É isso que tenciona argumentar perante o primeiro-ministro, se o seu movimento Abolição das Corridas de Touros for o escolhido para ter uma audiência com Pedro Passos Coelho, na sequência de um concurso que o Governo lançou no seu portal na Internet. Vai bem lançado: foi o que reuniu mais apoiantes até agora - tinha ontem à tarde 6148 seguidores. Já José Alberto Rodrigues gostaria que o executivo recuasse na intenção de acabar com a disciplina de EVT - Educação Visual e Tecnológica, e por isso criou, em nome da associação de professores desta disciplina, o movimento Em Defesa da Educação Visual e Tecnológica. A intenção do Governo é dividir os conteúdos de EVT pelas áreas curriculares de Educação Visual, Educação Tecnológica e Tecnologias da Informação e da Comunicação, e reduzir para metade o tempo semanal destas áreas. Esta solução é um "claro desinvestimento na formação artística" e "aumenta a dispersão curricular dos alunos", considera José Alberto Rodrigues, professor de 38 anos, que diz falar em nome dos 2000 membros da associação. Em Portugal há 7000 professores de EVT a exercer actualmente. Os 2700 seguidores arregimentados até aqui colocam a EVT em segundo lugar no ranking de movimentos, visto como "uma oportunidade para fazer ouvir a voz destes professores". Longe do primeiro, José Rodrigues espera, porém, uma surpresa: que o gabinete abra uma excepção às regras do concurso e que permita que o primeiro-ministro receba os dois movimentos. "Representamos as duas categorias mais populares: a defesa dos animais e a Educação", argumenta. Jornalista desempregado, morador em Castelo de Paiva, Sérgio Caetano, de 37 anos, diz que inscreveu o seu movimento antitourada como um "simples cidadão e não como activista". Não está ligado a nenhuma organizações de defesa dos animais, apenas ao ambiente através da Associação de Defesa do Vale do Paiva. Diz-se "surpreendido" pela adesão que a sua causa teve. De tal maneira que os adeptos da tourada não gostaram: o blogue Naturales - Correio da Tauromaquia Ibérica apelou aos defensores da tourada que votassem na EVT para que o antitourada não fosse recebido por Passos Coelho. Ambos realçam a inovação da iniciativa do Governo de abrir a porta a uma audiência com um movimento criado assim espontaneamente. "É importante haver uma aproximação entre o poder de decisão e as pessoas", diz Sérgio Caetano, enquanto o professor de EVT realça o "estímulo aos cidadãos para que participem efectivamente na vida pública". Mas avisam que agora a fasquia está alta. "A partir do momento em que se criam expectativas destas [o Governo] tem que compensar o cidadão. A audiência não pode ser só para ouvir, terá mesmo que tomar algumas medidas", avisa Sérgio Caetano. Mil ficaram pelo caminhoDesde 10 de Janeiro foram criados no novo portal do Governo 1008 movimentos - a larga maioria no primeiro mês. A equipa que gere esta espécie de concurso recusou 148 propostas. Muitos movimentos têm um número de seguidores residual, mas as temáticas são muito variadas. Além da educação, as áreas mais escolhidas são as da economia, finanças, política, saúde, justiça e governo. Não há, porém, movimentos sobre casamento homossexual ou racismo. Mas é possível encontrar vários movimentos em defesa da cannabis, da legalização da prostituição e do feriado no Carnaval.
REFERÊNCIAS:
Uber sexista? "A mudança não acontece sem catalisador"
Travis Kalanick, director-executivo da Uber, pede desculpa. (...)

Uber sexista? "A mudança não acontece sem catalisador"
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-02-22 | Jornal Público
SUMÁRIO: Travis Kalanick, director-executivo da Uber, pede desculpa.
TEXTO: Travis Kalanick, director executivo da Uber, pediu desculpa pela criação de uma cultura empresarial que permita que as queixas de assédio sexual de uma antiga engenheira da empresa sejam ignoradas. Numa reunião, terça-feira à tarde, o fundador da empresa respondeu às perguntas dos trabalhadores e assegurou que o caso vai ser investigado por uma equipa independente. No blog da empresa, Ariana Huffington, do Conselho de Direcção, escreveu que pode ser um ponto de viragem para as mulheres na indústria da tecnologia. Depois da publicação no blog de Susan Fowler, antiga engenheira da Uber que denunciou vários episódios de assédio sexual e sexismo, Travis Kalanick marcou uma reunião interna para discutir a questão do sexismo e pedir desculpa. Alguns trabalhadores, que preferiram manter o anonimato, descreveram a reunião como “honesta, cruel e emocional” e mostraram-se surpreendidos com a atitude de Kalanick, escreve o site The Verge. A surpresa deve-se, aparentemente, ao facto de Kalanick quase nunca se mostrar emocionado. No entanto, e de acordo com o relato da Bloomberg, o director executivo terá chegado a lacrimejar durante a reunião, pedindo desculpa pela falta de diversidade dos trabalhadores na equipa e pela falta de capacidade de dar sequência às queixas que recebe. Sobre a publicação de Fowler, Kalanick já tinha afirmado, em comunicado, que que a experiência da engenheira foi “abominável e contra tudo o que a Uber acredita e defende”. Num e-mail interno, enviado também na segunda-feira, lia-se que Eric Holder, antigo Procurador-Geral dos EUA, vai supervisionar o “inquérito independente” sobre as acusações de sexismo na empresa. A equipa que vai conduzir o inquérito vai ser constituída por Tammy Albarran, advogada na empresa de Holder, a Covington & Burling, Ariana Huffington, co-fundadora do The Huffington Post e actual membro da administração da Uber, Angela Padilla, advogada da Uber e Liane Hornsey, chefe dos Recursos Humanos da Uber. Eric Holder foi o último nome anunciado, numa altura em que as críticas à constituição da equipa se começavam a avolumar – criticava-se sobretudo o facto de ser constituída quase exclusivamente por funcionários da Uber e por uma empresa que já trabalhava para a Uber antes, o que punha em causa a independência do inquérito. Ariana Huffington, que assina uma publicação no blog da Uber, escreve que a reunião consistiu em “mais de uma hora” de discussão sobre "o papel das mulheres no local de trabalho”. “Travis falou muito honestamente sobre os erros que cometeu – e em como quer que os eventos das últimas 48 horas sirvam para construir uma Uber melhor”, lê-se. Huffington acrescenta que vê como um aspecto positivo o facto de os trabalhadores responsabilizarem os superiores por erros deste tipo, sentindo-se, também ela, responsável. “A mudança normalmente não acontece sem um catalisador. Espero que ao tirarmos tempo para perceber o que correu mal e procurarmos soluções, consigamos também contribuir para a melhoria das condições das mulheres de toda a indústria”, escreve Ariana Huffington. Não é a primeira vez que a Uber está debaixo de fogo. Em Janeiro de 2017, a hashtag #DeleteUber começou a ganhar popularidade nas redes sociais (em particular, no Twitter). Em causa, está o alegado “boicote” da empresa às manifestações contra a ordem executiva assinada por Donald Trump que impedia a entrada de cidadãos de sete países de maioria muçulmana nos EUA. Em paralelo à história de Susane Fowler, outras mulheres, antigas funcionárias da Uber, começaram, também elas, a partilhar histórias de sexismo e assédio. Aimee Lucido assina uma publicação no seu blog em que descreve a história de Fowler como “a verdade inconveniente da indústria da tecnologia”. “Eu acho que é nojento e terrível, mas não estou chocada”, avalia. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Todos sabemos que há um problema de sexismo na tecnologia, mas esquecemo-nos do quão extremo, frustrante e severo pode ser, até que acontece a alguém que conhecemos”, escreve. Aproveita, então, para narrar um episódio semelhante de assédio, que aconteceu enquanto estagiava na Google. “Em alguns níveis, conseguimos perceber que o sexismo existe. Percebemos que o racismo, a discriminação em função da idade, a homofobia, a xenofobia etc. etc. existem, mas só internalizamos quando acontece a alguém que nos é próximo”, acrescenta. Conta que o número de mulheres na Uber tem vindo a decrescer. Já Fowler tinha tocado no mesmo assunto, referindo que quando entrou na Uber as mulheres constituíam 20% da força de trabalho, mas que, quando saiu, representavam apenas 3% dos engenheiros da empresa.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Por trás de uma Mulher-Maravilha há outra mulher — e muita história
Super-heroína só conseguiu chegar ao cinema já septuagenária. Gal Gadot protagoniza o primeiro filme de super-heróis realizado por uma mulher, Patty Jenkins. (...)

Por trás de uma Mulher-Maravilha há outra mulher — e muita história
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento -0.4
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Super-heroína só conseguiu chegar ao cinema já septuagenária. Gal Gadot protagoniza o primeiro filme de super-heróis realizado por uma mulher, Patty Jenkins.
TEXTO: O primeiro filme de Patty Jenkins levou-a aos Óscares. Só 14 anos depois conseguiria fazer outra longa-metragem. Deu o Óscar a Charlize Theron com Monstro em 2003, mas nos anos seguintes só encontrou trabalho na televisão. Regressa pela porta blockbuster, grande mas mal amada entre autores e críticos, fazendo de Mulher-Maravilha o primeiro filme de super-heróis realizado por uma mulher. Gal Gadot protagoniza, muita da crítica elogia, o arquétipo da DC Comics reanalisa-se. Sem pressão: “um filme que pode determinar o destino das super-heroínas nos próximos anos” (Los Angeles Times); “Patty Jenkins conseguirá tornar o mundo dos super-heróis um lugar seguro para as realizadoras?” — o filme tornou-a “a realizadora mais importante a trabalhar hoje” (Hollywood Reporter); “pode ajudar a fechar o pay gap em Holywood” (Laura Martin, analista de média); “pode mesmo virar a maré” para a DC (Shawn Robbins, analista do BoxOffice. com). Mulher-Maravilha, que quinta-feira se estreou mundo fora, carrega vários fardos. É um filme de 150 milhões de dólares – Jenkins torna-se na segunda mulher a dirigir um filme com um orçamento superior a 100 milhões de dólares (a primeira foi, claro, Kathryn Bigelow com K-19) — depois de Monstro, que escreveu e realizou por oito milhões de dólares. Não é o primeiro filme de super-heróis (o género alfa na produção nos EUA) com uma protagonista feminina porque houve Supergirl (1984), Catwoman (2004) e Elektra (2005), três desastres que até agora eram citados como impedimento para voltar a “arriscar” em superpersonagens femininas. Mas os elencos alargados de X-Men e Os Vingadores têm mais mulheres, Scarlett Johansson, Angelina Jolie ou Milla Jovovich deram o seu contributo como heroínas de acção e os Jogos da Fome de Jennifer Lawrence provaram que uma fantasia de acção vende no feminino. O Despertar da Força e Rogue One de Star Wars continuaram nessa linha. Curiosamente, a Mulher-Maravilha estreou-se no cinema aos 75 anos, numa breve e saudada aparição em Batman v Super-Homem: O Despertar da Justiça (2016). No cinema já houve sete Super-Homem (por três actores), nove Batman (seis actores), ambos ícones da DC, e filmes vários com o Homem de Ferro ou Thor. Só em 2019 haverá uma Capitã Marvel (Brie Larson) no cinema e mais uma vez o filme de Jenkins está a ser visto como a prova dos nove do género. “O escrutínio para representar tudo o que for possível sobre 50% da população pode ser injusto”, diz Jenkins no Los Angeles Times. Anualmente, as estatísticas e os seus protagonistas têm denunciado os desequilíbrio de género, etnia e orientação sexual na indústria cinematográfica. Nos EUA em 2016 só 7% dos 250 filmes mais rentáveis foram realizados por mulheres; na última década e alargando a amostra para mil filmes, a percentagem desce para 4%. Por isso é que o facto de um blockbuster como este ser realizado por uma mulher “é extraordinário” e “um passo na direcção certa” para Stacy L. Smith, investigadora sobre diversidade em Hollywood na Universidade da Califórnia Sul, falando ao Los Angeles Times. No mundo dos comics, em que Diana, a Mulher-Maravilha, nasceu há 76 anos pelas mãos do psicólogo formado em Harvard William Moulton Marston para mostrar “o crescimento do poder das mulheres”, a personagem é também uma minoria. As personagens femininas são apenas cerca de 30% nas duas majors, a DC e a Marvel, indica um estudo do site de dados FiveThirty Eight. Mas Mulher Maravilha, o filme, não surge só de uma deriva temática pró-diversidade. “Historicamente, o público deste género é masculino — 60 a 40% — mas se se conseguir manter os homens e acrescentar um público feminino significativo, é uma dupla vitória”, admitiu o produtor Charles Roven à Hollywood Reporter. Outra coisa joga a seu favor: os fãs parecem estar calmos e felizes, ao contrário do que aconteceu com alguns indignados com Caça-Fantasmas, versão feminina, em 2016. Como a política da representação é um tema quente em Hollywood, especialmente nos últimos anos, isso tem impacto nas expectativas dos próprios estúdios. A Warner mantém as previsões baixas para o primeiro fim-de-semana da Mulher-Maravilha — entre 58 e 67 milhões de euros de receitas de bilheteira, números que outros analistas já reviram em alta. O mercado internacional pode fazer perto de 155 milhões até domingo, por exemplo. Os números de Esquadrão Suicida e Batman v Super-Homem: O Despertar da Justiça, os dois últimos filmes DC/Warner, eram muito mais optimistas (e cumpriram-se, com receitas conjuntas de 1, 4 mil milhões de euros) mas, ao contrário de Mulher-Maravilha, foram um flop crítico. Entretanto, os media e os fãs maravilham-se com o facto de Mulher-Maravilha ter atingido 94% de aprovação no agregador de críticas profissionais no Rotten Tomatoes e uma nota de 8, 5 em 10 nos votos de utilizadores do IMDB. É um momento noticioso em si, e tudo porque recentemente o vitríolo online já asfixiou a narrativa de outros filmes de grande orçamento — como os ataques racistas e sexistas às protagonistas de Caça-Fantasmas 2016 no Twitter — ou aprofundou a distância entre críticos e espectadores — como exemplifica a petição criada por fãs da DC para fechar o Rotten Tomatoes após a reacção negativa dos críticos a Esquadrão e Batman v Super-Homem. A Mulher-Maravilha é uma personagem e um arquétipo altamente escrutinável. Nos comics, combateu nazis, monstros verdes, foi estrela de televisão, uma amiga que ajudou outra com o seu distúrbio alimentar e embaixadora da paz na ONU, com ou sem fato reduzido. A comunidade gay gostava dela, muitas feministas também. Gloria Steinem pô-la na capa da revista Ms. em 1972, porque “simboliza muitos dos valores da cultura das mulheres que as feministas tentam agora introduzir no mainstream”, escreveu a autora na altura, falando em “autoconfiança”, “irmandade” e no minorar do papel da violência como resolução de conflitos. “Ícone”, resume o ilustrador George Pérez no prefácio da antologia Wonder Woman (2010). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas a certa altura também foi secretária dos outros heróis da DC, geriu uma boutique, foi relegada para papéis mais convencionais. Quando Gal Gadot foi escolhida para o papel, o seu uniforme revelador e até o facto de ter ou não pelos nas axilas foi escrutinado. Em textos sobre o filme, identifica-se a ausência de colunas — arquitectura fálica — na ilha do Paraíso de onde é oriunda Mulher-Maravilha, fala-se do sáfico, de ginocracia, explica-se porque Gadot ou Robin Wright usam compensados no filme e não calçado prático, elogia-se os sapatos rasos da protagonista na antestreia. No ano passado e na vida bem real, a personagem foi destituída do seu papel de embaixadora honorária da ONU para o empoderamento de raparigas e mulheres. Houve críticas à ONU sobre a falta de sensibilidade cultural da personagem e contra a objectificação feminina que representaria. Gal Gadot explica: “os argumentistas, a Patty e eu percebemos que a melhor forma de mostrar isso é mostrar Diana como não tendo qualquer consciência dos papéis sociais. Ela não tem fronteiras de género. Para ela, toda a gente é igual”. Patty Jenkins quer que a heroína tenha o aspecto da sua “fantasia de infância”, gira e sexy mas também “bondosa”. Para Jenkins, o escrutínio constante, as exigências do público, a indignação da Internet ou o ultraje das redes sociais não lhe permitem trabalhar. Isola-as. “Não sou só uma cineasta, sou uma mulher cineasta. É uma face de dois gumes, porque por um lado choca-me que isso seja uma raridade e estou super grata por ser a pessoa que tem a oportunidade de o fazer; mas por outro lado só cheguei aqui por não pensar de todo nisso. Cheguei aqui partindo do princípio que podia fazer o que quisesse se estivesse disposta a trabalhar o suficiente”, sublinha no Los Angeles Times. E remata, na Variety: “Uma mulher não tem de realizar um filme de mulheres e um homem não tem de realizar um filme de homens”. O que é “maravilhoso é realizar isto como uma mulher porque para mim [o filme] não é sobre ela ser uma mulher — é sobre um herói”. E a realizadora gosta de um certo tipo de herói. A sua carreira viu filmes a cair por terra, foi brevemente interrompida pela maternidade, passou muito pela televisão — o piloto da série The Killing, que lhe deu uma nomeação para os Emmy, Arrested Development, Entourage — e esteve na corrida para realizar Thor: O Mundo das Trevas (2013). A Warner começou a trabalhar em Mulher-Maravilha em 2005 e Joss Whedon (Os Vingadores da rival Marvel/Disney) e Michelle McLaren (Breaking Bad) foram considerados. Jenkins, fã da versão que Lynda Carter fora na TV nos anos 1970 e devota de Super-Homem (1978), lá convenceu o estúdio a fazer “uma história de origens muito directa, que fizesse justiça ao espírito positivo da Mulher-Maravilha, uma grande história de amor, um bom sentido de humor”, como resumiu recentemente ao New York Times. Tem uma receita simples. “Ter a quantidade certa de pop e seriedade juntas. ”
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU EUA