Há um bocadinho de Neandertal dentro de nós
O debate durou anos: o homem moderno (nós) e o Homem de Neandertal, hoje extinto, ter-se-iam cruzado e procriado juntos – ou não? Hoje a questão foi definitivamente arrumada pela genética, com a publicação na "Science" do primeiro rascunho do genoma dos Neandertais. A resposta? Sim! A criança do Lapedo teve de facto Neandertais entre os seus antepassados. (...)

Há um bocadinho de Neandertal dentro de nós
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento -0.18
DATA: 2010-05-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: O debate durou anos: o homem moderno (nós) e o Homem de Neandertal, hoje extinto, ter-se-iam cruzado e procriado juntos – ou não? Hoje a questão foi definitivamente arrumada pela genética, com a publicação na "Science" do primeiro rascunho do genoma dos Neandertais. A resposta? Sim! A criança do Lapedo teve de facto Neandertais entre os seus antepassados.
TEXTO: Há meses que nos diziam que a primeira sequenciação do genoma do Homem de Neandertal estava quase pronta. Já está. E proporcionou uma primeira grande surpresa aos próprios autores do trabalho (que, como muitos outros especialistas, não acreditavam nesta possibilidade), ao confirmar que os humanos modernos acasalaram e procriaram com Neandertais. Simplesmente, porque descobriram bocadinhos de sequências genéticas de Neandertal no nosso ADN. A equipa internacional liderada por Svante Pääbo, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva de Leipzig, na Alemanha, demorou quatro anos a ler os genes desse ser humano, extinto há cerca de 30 mil anos – uma proeza técnica que, segundo os autores, vai ao mesmo tempo permitir perceber o que é que nos distingue deles do ponto de vista evolutivo. “Há seis ou sete anos, eu pensava que a sequenciação da totalidade de um genoma antigo era algo que não iria acontecer durante a minha vida”, disse ontem Pääbo no início de uma conferência de imprensa telefónica convocada pela revista Science. O grande problema, explicou, é que “mais de 90 por cento do ADN encontrado nos fósseis provinha de bactérias ou de fungos” – ou seja, pertencia aos microrganismos que tinham contaminado os ossos após a morte dos indivíduos em questão. Para mais, os fragmentos de ADN obtidos eram extremamente curtos e tinham sofrido alterações químicas. Isto sem esquecer que a sua mera manipulação corria o risco de introduzir uma contaminação adicional, com o próprio ADN dos cientistas – o que é absolutamente indesejável quando se trata justamente de determinar se há genes de Neandertal em nós ou genes nossos neles. . . Uma grande parte do trabalho e das técnicas desenvolvidas tinha portanto como objectivo garantir a autenticidade da proveniência do ADN em estudo. Os cientistas extraíram o ADN principalmente de três fragmentos de osso fossilizado de três mulheres Neandertais, que tinham sido encontrados numa gruta na Croácia entre o fim da década de 1970 e o início da de 1980. Dois desses ossos foram datados com precisão e têm respectivamente 38 mil e 44 mil anos. A partir daí, conseguiu-se reconstituir, nesta primeira fase, cerca de 60 por cento da totalidade dos três mil milhões de pares de bases (ou “letras”) do ADN dos Neandertais. Aconteceu no Médio Oriente Os cientistas também sequenciaram cinco genomas de humanos actuais, de origem europeia, asiática e africana, para fins de comparação com o genoma fóssil – e compararam ainda esse genoma com o do chimpanzé. E descobriram que os Neandertais são, do ponto de vista genético, ligeiramente mais próximos dos humanos modernos fora de África do que dos africanos actuais. A explicação que dão para isto é que, pouco depois de terem saído de África à conquista do mundo, há uns 80 mil anos, provavelmente algures no Médio Oriente (antes de chegarem à Europa), os primeiros homens modernos cruzaram-se com os Neandertais e produziram descendência. Isso não significa que não tenha havido, mais tarde, novos encontros e novos cruzamentos, nomeadamente na Europa. Mas o “fluxo genético” agora detectado – sempre dos Neandertais para os humanos actuais e não em sentido oposto – aponta para um contacto mais precoce, logo à saída de África. A ausência de provas não significa que não tenha havido contactos ulteriores, mas simplesmente que não foi possível detectar sinais genéticos desses contactos, argumentam os cientistas. Seja como for, os seres humanos actuais, da Austrália à Europa, passando pela Ásia (mas não por África), herdaram, naquela altura, bocadinhos de sequências genéticas de Neandertal que continuam, ainda hoje, espalhadas pelo nosso ADN. Os cientistas estimam que entre um e quatro por cento do genoma dos humanos actuais provenha dos Neandertais. Num comunicado, referem mesmo que o genoma do célebre “caça-genes” norte-americano Craig Venter, recentemente publicado, contém segmentos que são mais próximos do genoma de Neandertal do que do genoma “de referência” humano, que inclui uma mistura de ADN de origem europeia e africana! “Um a quatro por cento do meu genoma é Neandertal”, salientou Pääbo na conferência de ontem. “Eles não se extinguiram totalmente, continuam a viver em nós. ” Contudo, as sequências genéticas identificadas como provenientes dos Neandertais estão distribuídas ao acaso pela molécula de ADN e não correspondem a nenhum traço identificável que alguns de nós poderíamos ter em comum com eles. Para Pääbo, “o mais fascinante” disto tudo é, porém, a possibilidade de utilizar este genoma fóssil para procurar provas da selecção “positiva” de traços genéticos, ou seja, de características genéticas que se fixaram ulteriormente nos humanos modernos porque apresentavam vantagens do ponto de vista evolutivo em termos de sobrevivência da espécie – e que nos tornam únicos e diferentes dos Neandertais. A equipa já identificou várias regiões do genoma onde isto poderá ter acontecido, que têm a ver com o desenvolvimento mental e cognitivo (há três genes que, quando mutados, estão implicados na trissomia 21, na esquizofrenia e no autismo), bem como regiões relacionadas com o metabolismo energético, com o desenvolvimento do crânio, da clavícula e da caixa torácica. Pertencemos à mesma espécie?Para Pääbo, esta pergunta não faz sentido. “É um debate estéril”, frisou. “Nunca me pronunciei sobre isto e prefiro deixar essas lutas a outros. O que interessa é que mostrámos que o cruzamento reprodutivo era biologicamente possível entre os Neandertais e nós. Eu diria que eram diferente dos humanos – mas não assim tão diferentes como isso. ”“Há mais de dez anos que as provas arqueológicas e paleontológicas de hibridação cultural e biológica entre Neandertais e homens modernos se vêm acumulando”, disse João Zilhão, arqueólogo português da Universidade de Bristol, em conversa telefónica com o PÚBLICO. Juntamente com o seu colega Erik Trinkaus, da Universidade de Washington, Zilhão descobriu em 1998, no Vale do Lapedo, perto de Leiria, o esqueleto mais completo até à data de uma criança da nossa espécie que viveu no Paleolítico Superior (há cerca de 25 mil anos). O fóssil, afirmam desde então estes cientistas, apresenta uma mistura de traços modernos e de Neandertal. Só que muitos especialistas discordavam desta interpretação – o que, para Zilhão, deixa de ser possível a partir de hoje. “Andámos a dizer isso há dez anos e têm-nos atirado à cara com os dados genéticos”, disse-nos hoje o investigador. E mostrou-se satisfeito com os novos resultados: “Era a última objecção contra o nosso modelo e isso é óptimo. Há que virar a página, o problema está resolvido. ”Mas então somos ou não da mesma espécie? “A dicotomia homem moderno/Neandertal é falsa”, responde-nos Zilhão. “É uma classificação vitoriana, do século XIX. ” O Neandertal foi o primeiro homem fóssil a ser descoberto, um ser a meio caminho entre os macacos e o homem, “e isso encaixava no paradigma da evolução [das espécies]”. Para Zilhão, esta concepção tem criado uma resistência cultural subconsciente. “Como é que um fulano tão feio pode ser igual a nós?”, ironiza. “Do ponto de vista biológico, o que é importante é que, em termos reprodutivos, o homem moderno e o homem de Neandertal funcionam como uma única comunidade. Podiam acasalar. Isso é que conta. ”É provável, entretanto, que o crescente número de pessoas que recorrem a empresas que analisam o seu genoma venham a saber em breve se são portadoras de sequências genéticas vindas dos Neandertais. Até porque o genoma fóssil já foi colocado pelos autores na Internet, numa base de dados genética de acesso livre. Interrogado pelo PÚBLICO a este propósito durante a conferência de imprensa de ontem, Pääbo riu-se: “Tenho a certeza de que algumas dessas empresas vão oferecer isso aos seus clientes. ”
REFERÊNCIAS:
A honra perdida de John Flory
Retrato verrinoso dos últimos anos do colonialismo britânico no Oriente, a partir da experiência biográfica do autor, não deixa de ser um romance. Romanesco e tudo. (...)

A honra perdida de John Flory
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-02-22 | Jornal Público
SUMÁRIO: Retrato verrinoso dos últimos anos do colonialismo britânico no Oriente, a partir da experiência biográfica do autor, não deixa de ser um romance. Romanesco e tudo.
TEXTO: Num ensaio famoso intitulado Porque Escrevo (1946), e a propósito das suas motivações literárias juvenis, George Orwell recordava: “Queria escrever enormes romances naturalistas com fins tristes, cheios de descrições pormenorizadas e de imagens cativantes, e também cheios de passagens nas quais as palavras seriam em parte usadas pelo modo como soavam. E, de facto, o primeiro romance que terminei, Burmese Days, escrito aos trinta anos mas projetado muito antes, é em grande parte esse tipo de livro. ” Justíssima autocrítica, ressalvado o facto de que, em Dias Birmaneses, não é só o fim que é triste, mas igualmente o meio e o princípio. Não faltam neste livro “imagens cativantes”. Por exemplo, a comparação de uma barulhenta e desordenada multidão a “uma cascata de missangas coloridas derramadas de um frasco”; ou a surpresa de um símile marinho convocado em plena selva: “Para onde quer que se olhasse, a vista era obstruída por inúmeras fileiras de árvores, com lianas e arbustos emaranhados em torno da base, debatendo-se como o mar em torno dos pilares de um cais. ” (p. 159) Não faltam, sobretudo, “descrições pormenorizadas”, como aquela da mercadoria com aspecto “estrangeiro, estranho e pobre” num bazar birmanês: “Havia grandes toranjas penduradas em cordéis como luas verdes, bananas vermelhas, cestos de gambas da cor do heliotrópio e do tamanho de lagostas, peixe seco e quebradiço atado em maços, malaguetas escarlates, patos abertos ao meio e curados como presunto, cocos verdes, larvas de escaravelho do rinoceronte, porções de cana-de-açúcar […]”. A enumeração, estonteante, prossegue por mais umas boas linhas e só um instantâneo a detém numa extremidade do bazar: “[…] o sol brilhava, vermelho sangue, através do guarda-sol de um sacerdote, como que pulsando através da orelha de um gigante” (p. 123). Não há, porém, exuberância descritiva que suavize o pessimismo “naturalista” que dirige a acção deste romance. Quando ainda se chamava apenas Eric Arthur Blair (1903-1950), Orwell passou quase seis anos, entre o final de 1922 e o início de 1928, na Birmânia (actual Myanmar), como agente da Polícia Imperial Indiana. Depois de um ano a aprender o ofício em Mandalay, a antiga capital, o futuro escritor observou de perto o “trabalho sujo do império” em diversas localidades, nomeadamente em Katha, que aparece transfigurada em Dias Birmaneses como Kyauktada, uma “cidade relativamente típica da Alta Birmânia”, praticamente imutável desde os tempos de Marco Polo e que assim provavelmente permaneceria, não fora a chegada do “progresso” levado pelo Império Britânico, “que se traduziu na construção de um quarteirão de tribunais, com o seu exército de litigantes gordos mas famintos, além de um hospital, uma escola e um daqueles estabelecimentos prisionais enormes e eternos que os ingleses erigiram por toda a parte, entre Gibraltar e Hong Kong” (p. 23). A ligação do autor à Índia Britânica (na qual se integrava então a Birmânia) é, porém, anterior. Recorde-se que o escritor nasceu em Motihari, na Índia, onde o pai era funcionário colonial, e a mãe havia crescido em Moulmein, cidade da Baixa Birmânia onde Orwell esteve também colocado como polícia e que recordará mais tarde com um mal-estar e uma má-consciência muito semelhantes aos padecidos pelo protagonista de Dias Birmaneses, John Flory. Os primeiros esboços do romance datam desses anos de 1920 e na edição das obras completas feita por Peter Davison, entre vários fragmentos posteriormente rejeitados, surge um paródico epitáfio do infeliz Flory: “Here lies the bones of poor John Flory; / His story was the old, old story. / Money, women, cards & gin /Were the four things that did him in. / […] / O stranger, as you voyage here / And read this welcome, shed no tear; / But take the single gift I give, / And learn from me how not to live. ” Bom resumo de um perdedor nato. Autoria:George Orwell (Trad. de Alda Rodrigues) Relógio D’Água Ler excertoSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Regressado à Europa, Orwell publica o primeiro livro em 1933, Na Penúria em Paris e em Londres (edição portuguesa na Antígona), relato das suas vagabundagens nos três anos anteriores. Dias Birmaneses sairá no ano seguinte e, tal como o primeiro, teve de vencer algumas reticências. O editor inglês terá hesitado diante do retrato virulento dos “trabalhos do Império” dado no romance e Orwell acabou por ver o livro publicado primeiro nos Estados Unidos. Não sem antes ter aceitado mudar, por exemplo, a profissão de algumas das personagens, que deixaram os quadros da administração colonial e se tornaram comerciantes madeireiros… Curiosamente, a personagem que no romance exerce o cargo mais elevado da administração britânica em Kyauktada (o comissário-adjunto Macgregor), é retratada como “bondosa” e bonacheirona, surgindo quase a uma luz positiva se comparada com a intolerância e o preconceito racista das restantes (menos Flory). A acção de Dias Birmaneses — centrada num desses “clubezinhos assombrados por Kipling”, um desses clubes reservados a europeus e que, como “em qualquer cidade da Índia”, são “o baluarte espiritual, a verdadeira sede do poder britânico” — decorre em meados dos anos 20 do século passado. A cidade fictícia, numa das margens do rio Irauádi, tinha “cerca de quatro mil habitantes, incluindo duas centenas de indianos, uma quantas dezenas de chineses e sete europeus”. O quotidiano é sufocante — literal e metaforicamente –, mesquinho, venenoso, e não há, praticamente, nenhuma personagem desenhada para nos inspirar empatia, nem do lado dos colonizadores nem do lado dos colonizados. Aliás, uma das personagens memoráveis do romance (a outra sendo Flory) chama-se U Po Kyin, um magistrado local que é o epítome de um vilão maquiavélico e corrupto. A sua amoral e perversa ambição é tão exacerbada que chega a parecer caricatural, mas é decisiva para propulsar a acção e o seu desenlace. Nascido para perder, Flory, o protagonista, é ambivalente, podendo até suscitar a nossa compaixão. O “bem-apessoado” e autocondescendente Flory detesta a medíocre companhia dos outros ingleses: “Vemos ignorantes recém-saídos da escola darem pontapés a criados de cabelo grisalho. A dada altura sentimos um ódio ardente pelos nossos próprios compatriotas e ansiamos por uma revolta nativa que afogue o Império em sangue. ” Tem como único amigo um médico indiano, coisa que os restantes europeus toleram mal. As conversas entre ambos são peculiarmente cómicas, pois o médico é remetido ao papel de elogiar e defender convictamente as virtudes imperiais contra os sarcasmos de Flory. Este acaba de descobrir que dissipou quinze anos de vida solitária na Birmânia em álcool (o “cimento do Império”), prostitutas e discussões medíocres no clube. E descobre também que já não conseguiria voltar a viver em Inglaterra. Duplamente desenraizado, põe todas as esperanças na chegada de uma jovem inglesa ida de Paris. Mas o clube britânico de Kyauktada é finalmente obrigado (conveniências que o Império tece) a admitir um “nativo”. E tudo se precipita. Retrato verrinoso, e eventualmente tendencioso, dos últimos anos do colonialismo britânico no Oriente, escrito a partir da experiência biográfica do autor, Dias Birmaneses não deixa de ser um romance. Romanesco e tudo. E até copioso.
REFERÊNCIAS:
Filha de Franco Nogueira doa espólio nunca visto por historiadores
É o maior espólio alguma vez oferecido ao arquivo do Instituto Diplomático. São milhares de documentos, talvez mais de um milhão. O PÚBLICO leu algumas centenas. (...)

Filha de Franco Nogueira doa espólio nunca visto por historiadores
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: É o maior espólio alguma vez oferecido ao arquivo do Instituto Diplomático. São milhares de documentos, talvez mais de um milhão. O PÚBLICO leu algumas centenas.
TEXTO: Rodeada por dragões chineses e cartas secretas do Estado Novo, Aida Franco Nogueira abre caminho pela sala-de-estar do apartamento onde o seu pai foi preso no Verão Quente de 1975. É preciso andar com cuidado. Os caixotes, arquivadores, sacos, pastas, malas e torres de papel cobrem tudo em todas as direcções. E as marquises estão cheias. Vinte e cinco anos depois da morte de Alberto Franco Nogueira, leal ministro e amigo de António de Oliveira Salazar, a filha decidiu doar o seu espólio ao Arquivo Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE). O gesto será formalizado na cerimónia de evocação dos 100 anos do nascimento do diplomata, hoje às 18h, na Biblioteca da Rainha, no Palácio das Necessidades. O auto de doação não é minucioso — seriam necessários anos de trabalho. Na casa do Restelo, em Lisboa, para onde a família Franco Nogueira se mudou em 1968, há centenas de milhares de documentos, talvez mais de um milhão. Todos, menos a correspondência privada (como as cartas trocadas entre Alberto e Vera Wang Franco Nogueira, a sua mulher), são património do Estado a partir de hoje e, dentro de alguns meses, estarão disponíveis para consulta pública. À excepção das pessoas a quem o próprio Franco Nogueira possa ter mostrado os seus papéis, o espólio nunca foi lido por nenhum historiador ou especialista. Há investigadores que procuram há anos documentos concretos do último chefe da diplomacia de Salazar — e rosto oficial da defesa do colonialismo na década de 1960, quando a ideia já era tida como inaceitável e anacrónica pela maioria dos Estados-membros das Nações Unidas. Aida Franco Nogueira, que trabalhou na PLMJ durante 20 anos e hoje é advogada independente e tradutora, começou há dois meses a organizar os papéis do pai. O espólio atravessa meio século e vai, pelo menos, de 1946 a 1990. “Infelizmente, o meu pai não era muito organizado. Sabia onde estava cada papelinho e notava sempre que alguém mexia em algum, nem que fosse para o endireitar. Mas cá em casa o escritório foi sempre conhecido como ‘o caos’: ‘Está no caos’, ‘aqui é o caos’. . . ”A primeira tarefa foi agrupar a documentação em grandes temas: a pilha dos papéis “secretos”, “secretíssimos” e “confidencialíssimos”, a pilha dos originais de livros publicados, a pilha dos manuscritos de livros com títulos desconhecidos, a pilha da correspondência com a família, a pilha da correspondência política, a pilha das cartas do exílio em Londres, a pilha da crise de Goa, a pilha dos recortes de imprensa, a pilha dos discursos, a pilha das Nações Unidas, a pilha das fotografias… “Não tenho um sistema. Vou vendo o que são os papéis e vou abrindo pilhas novas. Quero dar os papéis ao Arquivo Diplomático minimamente organizados. ”A tarefa é difícil por três razões. A primeira é o estilo de Franco Nogueira, que parece ter-se preocupado pouco — ou nada — com o futuro dos seus papéis. “O meu pai tinha zero de arquivista”, diz a filha. Após ler centenas de cartas e telegramas — uma ínfima parcela do espólio —, fica-se com a ideia de que os papéis são a acumulação de anos de despacho quotidiano e que não foram guardados com uma intenção ou para memória futura. Não parece, também, terem sido seleccionados para a escrita dos muitos livros que o diplomata publicou — o último em 1992, pouco antes de morrer. Mas isso só será possível confirmar com a leitura do conjunto. Franco Nogueira fala pouco neste espólio — lê sobretudo o que os outros lhe dizem. Mas há um diário inédito que começou a escrever mal chegou a Tóquio, em Janeiro de 1946, que impressionou a filha. “Tem um sentido de humor espectacular, é subtil e não tem adjectivos. Sou suspeita, sou filha e muito admiradora, mas acho magistral”, diz Aida Franco Nogueira, com o original de Diário do Japão na mão. Este Verão, quando o deu a ler à mãe, ouviu uma resposta diferente: “‘Não tem nada de político, é muito pessoal, não tem interesse nenhum’, disse a minha mãe. ” O embaixador José Freitas Ferraz, director do Instituto Diplomático, já o leu e discorda. “Tem uma prosa muito cinematográfica, muito bonita. Logo nas primeiras linhas, quando ele conta a chegada a Tóquio: salta de uma carrinha militar com duas malas na mão e é deixado sozinho numa rua. É um depoimento escrito por um diplomata que chega ao Japão a seguir ao fim da II Guerra Mundial para o seu primeiro posto no estrangeiro. O armistício tinha sido assinado há quatro meses. Tóquio está completamente destruída e, pouco a pouco, ele dá conta da reconstrução da cidade. ”O espólio inclui uma pasta de pele com o monograma dourado gravado na frente. Terá sido nela que Franco Nogueira foi levando para casa muitos dos papéis que agora vão ser doados, e que ali ficaram, talvez para ler ou responder à noite, amontoados em enormes pilhas no “escritório-caos”, e que acabariam em gavetas e, mais tarde, caixas de cartão. Não parece haver um fio condutor, nem temas ou pessoas de eleição. Há centenas de cartas de embaixadores, em diferentes postos e continentes, há cartas de ministros e pelo menos um manuscrito de Salazar (de 25 de Março de 1965), correspondência de várias personalidades da elite da época, mas também de anónimos, pessoas que escrevem a elogiar um discurso ou uma entrevista. Há cartas escritas à mão e classificadas no topo como “secretíssimo”, mas também telegramas do MNE “ostensivos” (os que podem ser vistos por qualquer diplomata). Uns são dirigidos ao “ministro”, outros ao “embaixador”, outros tratam Franco Nogueira por “tu”. Aqui e ali, há um “dear Alberto” ou “Dear Mr. President”, do período em que foi administrador da Companhia dos Caminhos de Ferro de Benguela. O segundo desafio da organização do espólio tem a ver com as mudanças de lugar. Algumas caixas vieram da casa da Avenida Infante Santo para o Restelo e todas passaram as últimas décadas na garagem de uma casa de Cascais. Foi por causa das obras nessa casa, iniciadas em Agosto, que a filha transportou tudo de volta para Lisboa, obrigando a família a decidir sobre o destino definitivo dos papéis. O terceiro tem a ver com a história profissional: “Franco Nogueira não foi só diplomata e ministro. Foi professor, foi crítico literário, foi escritor, foi biógrafo, foi pensador, foi administrador de empresas”, diz Margarida Lages, directora do Arquivo e da Biblioteca do MNE. “Vieram caixas daqui e dali, dos vários lugares onde o meu pai trabalhou e que ele ia trazendo para casa à medida que mudava de vida”, diz a filha. Por ser um acervo de várias proveniências, é aquilo a que os técnicos chamam um “arquivo plural”. Foi na Primavera, numa ida à biblioteca do MNE, que Aida Franco Nogueira decidiu doar tudo ao Estado. Estava na sala de leitura quando ouviu, mais do que uma vez, jovens diplomatas pedirem livros do pai. “‘Queria aquele livro do Franco Nogueira’, ‘Franco Nogueira aqui’, ‘Franco Nogueira ali’. . . Fiquei espantada. Percebi que era ali que os papéis do meu pai tinham de estar. Falei com a minha mãe e ela disse: ‘Se achas que sim, está bem, mas primeiro quero vê-los todos, um a um’. ” Era isso que as duas tinham começado a fazer quando, no fim de Agosto, Aida Franco Nogueira recebeu um telefonema do lar a comunicar a morte da mãe, aos 90 anos. “Morreu com os papéis no colo — literalmente. ”Nos anos 1990, no fim do seu mandato como ministro dos Negócios Estrangeiros, José Manuel Durão Barroso comprou à família os livros de Franco Nogueira, que hoje fazem parte do catálogo da biblioteca do Instituto Diplomático, instalado na parte sul do Palácio das Necessidades. A seguir, já no mandato de Jaime Gama, foram feitos armários para os arrumar e abrir à leitura pública. Há pelo menos quatro anos que o MNE demonstrou interesse em receber o que faltava — os papéis. “Franco Nogueira chegou aqui com 23 anos e saiu de cá já depois dos 50. Esta era a casa dele”, diz Freitas Ferraz. Quando poderá ser consultado? “Na Primavera já deverá haver documentos disponíveis, mas a organização final, dada a dimensão, demorará anos”, prevê Margarida Lages. “Este é — de longe — o maior arquivo pessoal que alguma vez recebemos. ”Diz-se muitas vezes que Franco Nogueira era um homem “complexo”. Foi considerado um possível sucessor de Salazar, mas sempre gerou desconfiança dentro do regime. Nacionalista conservador, defendeu a “política africana” da ditadura — o colonialismo — de forma “enérgica e obstinada” com “ardor e convicção” (Bernardo Futscher Pereira, Crepúsculo do Colonialismo – A Diplomacia do Estado Novo, Dom Quixote, 2017) e intervenções “catastrofistas” (Filipe Ribeiro de Meneses, Salazar – Uma Biografia Política, Dom Quixote, 2010). Hoje, muitos diplomatas da democracia, tanto da direita como da esquerda, o reconhecem como um grande diplomata. “Na defesa dessa política intransigente, votada ao fracasso mais tarde ou mais cedo, Franco Nogueira evidenciou dotes excepcionais”, escreve Bernardo Futscher Pereira, que é embaixador e neste momento assessor diplomático do primeiro-ministro, António Costa. “Imprimiu à acção diplomática um novo estilo, mais agressivo, mais público, mais emotivo, ao mesmo tempo que tudo fazia para semear a divisão entre os seus adversários. ” Resume o diplomata-historiador: “Colocou um brilhante tacticismo ao serviço de uma estratégia condenada. ” Mas antes faz uma confissão: “Custa a crer que, no seu íntimo, Franco Nogueira não considerasse a defesa do Ultramar uma causa perdida. A própria PIDE reportou a Salazar que o novo ministro estava ‘pessimista’. ”Ao mesmo tempo, Franco Nogueira publicara nos jornais críticas de livros de autores proibidos pela censura, tinha amigos anti-salazaristas e mantinha contactos próximos com jornalistas pouco alinhados com o regime. Além disso, foi ele que propôs — e em 1963 quase convenceu Salazar — que se fizesse um referendo à “política ultramarina” do governo, uma ideia que algumas alas do regime nunca lhe terão perdoado. Escreve Jaime Nogueira Pinto, seu amigo e, como ele, admirador de Salazar: “Para uns, [era] um tecnocrata dos Negócios Estrangeiros, um bom profissional que se limitava a executar, com brio, uma política externa em que talvez nem acreditasse muito; para outros, um convertido por Salazar aos seus pontos de vista; para alguns, um republicano patriota, com aquela costela de tradição laica e ultramarinista da I República” (O Fim do Estado Novo e o 25 de Abril, Difel, 1995). E acrescenta: “É curioso, em face do depois sucedido [oito meses de prisão durante o PREC], que Franco Nogueira era figura suspeita aos olhos da chamada ‘extrema-direita’. ”No artigo Franco Nogueira: Argumentação e Obstinação, publicado no livro Diplomacia e Política Externa, Conferências (2012-2013), Jaime Gama, que foi MNE duas vezes em governos socialistas, descreve-o assim: “Não é dedutível do pensamento de Franco Nogueira a apologia de uma ditadura como sistema político […]. Franco Nogueira não é um ideólogo de extrema-direita, não é um paladino do totalitarismo com ideal salvífico, é um nacionalista pragmático e um céptico com convicções. ”Na casa do Restelo há uma carta “pessoal e urgente” de Norberto Lopes, director do Diário de Lisboa, que, incrédulo, envia ao ministro a cópia do “comentário mutilado” pela censura. De uma coluna de jornal com 70 linhas, só 20 tinham sobrevivido ao lápis azul. “Confesso-lhe que tive de abrir mais os olhos e limpar as lentes dos óculos para acreditar. Não lhe parece que há nesta atitude da censura um exagero e uma incompreensão inexplicáveis?”Na sala-de-estar dos pais — cheia de fotografias da família, mas só uma de Salazar —, Aida Franco Nogueira procura um metro quadrado livre no chão. Sentadas no meio das caixas, é aqui que lemos centenas de papéis durante alguns dias, horas seguidas, de manhã à noite. Às de José Azeredo Perdigão, primeiro presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, segue-se uma carta de Luís Pinto Coelho, que parte nesse dia para o Brasil “tentar fazer vida nova”. Depois surge um “relato secreto” de uma conversa com o embaixador dos EUA em Portugal, Burke Elbrick; uma nota simpática de Lord Colyton; ofícios da PIDE; relatórios (de 20 e 30 páginas) de Jorge Jardim — o homem-de-mão e agente especial de Salazar para África que respondia directamente ao ditador — contando a visita ao Malawi “da Sra. Rebello de Sousa”, mulher do governador de Moçambique, Baltazar Rebello de Sousa, pais do actual Presidente da República. A carta seguinte começa com um “my dear Alberto” — é o embaixador britânico a despedir-se. Muitas são pedidos para promoção, mudança de posto ou aumentos no salário, ou pedidos de trabalho para o marido ou um filho. Lemos uma autorização para a família Franco Nogueira usar a piscina do forte de São Julião da Barra e logo a seguir o pedido de um embaixador que precisa de adido militar “autêntico”. Há relatos de “conversas confidenciais” com estudantes do MPLA em Washington e um telegrama secreto cor-de-rosa (original, portanto) da delegação portuguesa junto da NATO. Há segredos que expiraram há anos e protagonistas com títulos que já não existem, como o rei de Barotseland. Mas também há documentos recentes, como as cartas de 1992 para angariar fundos para a compra de documentos e objectos “pertencentes ao Doutor Oliveira Salazar” e sobre os quais Franco Nogueira escreve a Pedro Queiroz Pereira (que lhe dá um milhão de escudos) e a José Blanco, administrador da Gulbenkian (que delicadamente lhe diz não). Há uma acta da reunião do Grupo de Reflexão Estratégica do Ministério da Defesa do qual Franco Nogueira tomou parte em 1990 e, no extremo oposto, quatro longos telegramas confidenciais de Tóquio de 1947, 1948 e 1949 (estes, sim, políticos). Há cartas sobre a Base das Lajes e sobre o mau estar com o Vaticano a seguir à visita do Papa a Bombaim após a queda de Goa (“não sei ainda ao certo qual é a verdadeira opinião do governo sobre eventual visita do Papa” a Portugal, queixa-se o embaixador de Portugal junto da Santa Sé) — a carta é de Março de 1966 e chega a Franco Nogueira com um cartão manuscrito de Salazar de Junho de 1966 dizendo que se esqueceu de a reenviar… Há o relato de uma conversa sobre Moçambique “com o homem que costuma falar com o R. de Sousa”; uma carta “confidencial” de Franco Nogueira para Salazar; um rascunho manuscrito em inglês sobre o convite ao Presidente da Indonésia, Sukarno, e as “friendly ties” que uniam os dois países; um telegrama sobre o padre incómodo que criticava as acções militares dos portugueses contra os civis em Moçambique e a quem era “preciso chamar a atenção”; uma carta a dar “contidos pêsames” pela morte da mãe; outra sobre a partida dos “elementos da ‘Operação Gralha’ para Moçambique” e a forma de lhes “entregar o restante da gratificação”. Por esta altura, o espanhol Miguel Loria conta ao ministro que está há 55 dias em África “como combinado” e vai tentar fazer em Angola e Moçambique “as reportagens que interessam” — o dinheiro e o tempo que ambos calcularam parecem correctos. Sobre algumas cartas, é conhecido o fim da história. Noutros casos não. Há cartas enigmáticas sobre o “programa de envio material especial”, um aerograma “muito secreto” sobre uma reunião com um dirigente do Ordine Nuovo, da extrema-direita fascista italiana, dois relatórios de reuniões do grupo Bilderberg, em 1968 e 1972, nas quais Franco Nogueira foi orador. Em 1965, José Maria d’Eça de Queiroz escreve-lhe da Praia da Granja e envia contas do SNI e 30 anos depois escreve-lhe a amiga “Pequenina” (Luiza Manoel de Vilhena, condessa da Azarujinha), a elogiar “o meu querido Salazar”. Há cartas de amigos mais novos, como André Gonçalves Pereira e Jaime Nogueira Pinto, de quem se manteve próximo até ao fim. E uma carta de 1967, “secretíssima”, de 23 páginas, na qual Leonardo Mathias relata um encontro tido em Madrid com um líder africano e “François (Ernesto)”, um antigo paraquedista “formado em todas as técnicas da guerra subversiva”. No fim, faz um P. S. misterioso para o ministro: “O seu telegrama n. º 9 foi destruído. Desta carta, escrita pelo meu punho, faço fotocópia para arquivar no cofre da Embaixada. ”Num sofá há uma caixa com dezenas de manuscritos de possíveis livros que Franco Nogueira quereria publicar ou que, pelo menos, têm títulos que não correspondem a livros lançados no mercado. Quase todos têm uma capa desenhada pelo próprio, que experimentava sempre soluções de “paginação”. Alguns têm títulos parecidos com livros que o ex-ministro de Salazar publicou, outros são diferentes de tudo o que se conhece. É nesta pilha que está o manuscrito de Debate Antigo, de 1966. “Não sei se é um estudo prévio de Debate Singular, que o meu pai publicou em 1970. Tenho de cruzar os dois textos. ” O mesmo se passa com Salazar, estudo biográfico. Pode ser um estudo biográfico inédito ou um esboço de um dos seis volumes da biografia do antigo Presidente do Conselho que Franco Nogueira publicou nos anos 1980, durante o exílio em Londres, e que ainda são uma fonte dos investigadores. Do outro lado da sala, está um grande caixote de cartão com milhares de fotocópias de documentos de Salazar que, segundo a filha, o pai usou para escrever a biografia do ditador. “Os originais estiveram aqui muitos anos, mas foram todos devolvidos à Torre do Tombo. ”De regresso à zona da lareira, Aida Franco Nogueira explica: “Nesta caixa, pus os manuscritos de livros que são esboços de livros publicados ou outra coisa. São mais de 50. ” É aqui que está No Caminho de Bizâncio, com notas para o prefácio e um desenho de uma capa com dois títulos: Estrada de Bizâncio e No Caminho de Bizâncio. “Com o desenho das estrelinhas, que ele sempre fez. Não conheço nenhum livro com este título, apenas um capítulo no Juízo Final. Ainda não sei o que é. ” Alguns capítulos remetem para livros conhecidos (como Os 250 anos do MNE), mas outros nem por isso (As armas nucleares). Ao fundo, numa das marquises, estão os originais manuscritos dos seis volumes da biografia de Salazar. No lado oposto da sala, na outra marquise, estão três grandes caixotes e vários sacos cheios de papéis que a filha ainda nem abriu. “O meu pai dizia sempre: para a menina só há preto ou branco, mas olhe que o cinzento também é cor”, diz Aida Franco Nogueira, tentando descrever o pai. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Hoje, na cerimónia de evocação, essa tarefa caberá a Luísa Black, professora e antiga assistente de Franco Nogueira na universidade, a Carlos Gaspar, investigador do IPRI e antigo assessor político no Palácio de Belém, e a Marcelo Mathias, embaixador reformado, cujo pai, do círculo próximo de Salazar, propôs o nome de Franco Nogueira para lhe suceder como ministro. Augusto Santos Silva, actual chefe da diplomacia portuguesa, não estará na cerimónia. Nota: corrigida referência à reunião com um dirigente do Ordine Nuovo, partido da extrema-direita fascista italiana.
REFERÊNCIAS:
Avistada anémona gigante na noite de Sines
Final da 15. ª edição do Festival Músicas do Mundo, em Sines, com um ovni japonês chamado Shibusa Shirazu Orchestra e um explosivo concerto de encerramento de Femi Kuti. Uma prateada anémona gigante, a tomar os céus de Sines, conduzida do palco do castelo até ao centro do recinto como se de um papagaio de papel se tratasse, seria um momento recordista de bizarria para o Festival Músicas do Mundo em qualquer outro concerto. Mas não no caso do colectivo japonês Shibusa Shirazu Orchestra. Na verdade, custa até juntar as sílabas con-cer-to para designar o que os 26 japoneses levaram para palco: um surreal espectáculo... (etc.)

Avistada anémona gigante na noite de Sines
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-07-30 | Jornal Público
TEXTO: Final da 15. ª edição do Festival Músicas do Mundo, em Sines, com um ovni japonês chamado Shibusa Shirazu Orchestra e um explosivo concerto de encerramento de Femi Kuti. Uma prateada anémona gigante, a tomar os céus de Sines, conduzida do palco do castelo até ao centro do recinto como se de um papagaio de papel se tratasse, seria um momento recordista de bizarria para o Festival Músicas do Mundo em qualquer outro concerto. Mas não no caso do colectivo japonês Shibusa Shirazu Orchestra. Na verdade, custa até juntar as sílabas con-cer-to para designar o que os 26 japoneses levaram para palco: um surreal espectáculo em que uma muito big band se fazia acompanhar por gente que parecia saída de livros de banda desenhada de toda a espécie - desde um terrorífico homem reptilário a duas pueris meninas de cores veraneantes que mais não fizeram do que gesticular com duas bananas nas mãos. Todo o excesso teatral produzido pela Shibusa Shirazu Orchestra, durante as quase duas horas registadas no cronómetro de sexta-feira, era acompanhado por um jazz desabrido, uma trip jazz-rock acontecida na cabeça de Frank Zappa, uma opereta feita à imagem da televisão japonesa com lugar para fogosos e intermináveis solos de guitarra ou saxofone que repentinamente eram calados por um trecho atmosférico e de voz ameninada. Tudo com aparato circense e a ânsia de, num único sopro, querer ser tudo. O excesso era a única medida e a trupe japonesa não se coibiu de abusar dos seus meios para promover entre o público um delírio minimamente aproximado do seu. Odiado por alguns, objecto de deslumbramento visual-musical por muitos outros, só teria uma pálida comparação de estranheza na actuação dos chineses Dawanggang, já no dia seguinte. Junto à praia de Sines, ao cair da tarde de sábado, o concerto dos Dawanggang foi um conflito constante entre céu e inferno. À voz demoníaca de Song Yuzhe e às suas guitarras e banjo atacados sempre do avesso, procurando dissonâncias e não harmonias, e mesmo ao troar com voz de Tuva do intenso violinista Zeng Xiaogang, opunha-se o canto celestial e virginal da cantora Cao Yuhan. A aproximação tentada de Yuzhe a sonoridades ocidentais resultaria quase sempre num flirt envenenado, começando pela sua evocação ortodoxa para logo as corroer. Sempre que traficaram estas referências e polarizaram as vozes de Yuzhe e Yuhan, os Dawanggang andaram próximos de um combate sublime e primordial. Femi, filho de FelaNoite de sábado, encerramento dos concertos no Castelo de Sines, e prova mais inequívoca do que um exame de ADN sobre a paternidade de Femi Kuti. Femi, filho de Fela, tem o mesmo afrobeat fervente no sangue, passeia os dedos por saxofone e teclados como se tocá-los nunca lhe tenha sequer exigido uma aprendizagem. E nas palavras, incendiárias e frontalmente políticas, seguiu igualmente o rasto de Fela, advogando o não pagamento da dívida externa portuguesa - "Nunca vão pagar esta dívida, nem os vossos filhos, nem os filhos deles; o FMI tem de perdoar" -, ao mesmo tempo que defendia o não-perdão da dívida aos países africanos como forma de responsabilização e combate à corrupção. Na sua declinação punk do afrobeat, de notável crueza e frenesim, persiste este apelo à "revolução global". Esta música de libertação é um jorro de inventividade e energia que proclama isso a cada momento: o direito do indivíduo a viver sem grilhetas de qualquer espécie. Ainda que sem o vigor da anterior passagem pelo FMM (em 2004), Femi Kuti justificaria por inteiro o protagonismo de concerto final, com direito ao habitual fogo-de-artifício - os Tamikrest não convenceram totalmente no papel de representantes da música tuaregue, soando a versão menor dos Tinariwen; a rap-per Akua Naru encostou-se demasiado à participação popular para fazer vingar um concerto sem ideias musicais. Rachid Taha, por seu lado, teve uma prestação em tudo semelhante a 2007. Com um excelente álbum, Zoom, a servir de pretexto para a actuação, mergulhou no seu raï"n"roll com a mesma convicção com que deverá ter mergulhado a cabeça noutros líquidos, emergindo de uma decadência mais ou menos contínua para resgatar notáveis interpretações de Barra Barra, Rock el Casbah e Écoute Moi Camarade, sempre no arame e cujo brilho dependia realmente de caírem para o lado certo. Outro dos regressos previstos, do indiano Trilok Gurtu, acabaria por não acontecer devido a atrasos com os voos do percussionista. Com verdadeiro espanto, o duo reduzido à actuação solo do pianista arménio Tigran Hamasyan conquistaria o público com recurso a um virtuosismo de fundo clássico e barroco, ao qual Tigran juntaria, aos poucos, um experimentalismo inusitado, conseguindo efeitos fantasmagóricos com o assobio, alimentando loops de piano eléctrico, cantando colado a uma tradição vocal arménia, substituindo-se a Trilok enquanto human beatbox cuspidora de ritmos hip-hop e de simulação fiel de tablas. Do imprevisto surgiu um dos mais belos e inesperados concertos do FMM. Se Femi Kuti reforçou a condenação do FMI que Baloji verbalizara dias antes, também os Gaiteiros de Lisboa se juntaram aos protestos contra o excesso de zelo das forças de segurança. "Antes do 25 de Abril, não havia polícia à porta dos festivais a vasculhar as malas e a intimidade das pessoas. É uma coisa nojenta", atirou Carlos Guerreiro, no final de uma actuação que esteve ao nível do melhor que este colosso de recontextualização da tradição musical portuguesa alguma vez conseguiu. A revista em busca de "objectos cortantes" à entrada do castelo, na noite de sábado, levaria a filas de uma hora que impediram muitos de assistir ao concerto de Tamikrest. E também os Gaiteiros, como muitas outras formações, desejaram longa vida a um festival que se tornou arma de campanha para as próximas eleições autárquicas. Daqui por um ano, veremos se o FMM conserva a identidade que o tornou o lugar de peregrinação óptimo para quem quer descobrir músicas nunca antes ouvidas.
REFERÊNCIAS:
Entidades FMI
Reportagem: Lusofonia com sotaque da Nova Europa
São expressões da lusofonia com o sotaque da nova Europa: portugueses, leitores ao serviço do Instituto Camões, que partilham a sua língua e cultura; estrangeiros que escolhem aprender e ensinar português. Cruzam-se na Europa Central e de Leste, onde de ano para ano cresce o interesse pela Língua Portuguesa. Ontem assinalou-se o Dia Internacional da Língua Materna. Em tempo de férias os corredores da Universidade Carlos IV estão quase vazios, com excepção para duas mulheres que os percorrem com um carrinho de bebé. Partilham a mesma língua, com a sonoridade, naturalmente, separada por um oceano. Param junto ao ga... (etc.)

Reportagem: Lusofonia com sotaque da Nova Europa
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.136
DATA: 2008-02-22 | Jornal Público
TEXTO: São expressões da lusofonia com o sotaque da nova Europa: portugueses, leitores ao serviço do Instituto Camões, que partilham a sua língua e cultura; estrangeiros que escolhem aprender e ensinar português. Cruzam-se na Europa Central e de Leste, onde de ano para ano cresce o interesse pela Língua Portuguesa. Ontem assinalou-se o Dia Internacional da Língua Materna. Em tempo de férias os corredores da Universidade Carlos IV estão quase vazios, com excepção para duas mulheres que os percorrem com um carrinho de bebé. Partilham a mesma língua, com a sonoridade, naturalmente, separada por um oceano. Param junto ao gabinete 118. “Pensei que você ia gostar”, anuncia a mais nova num português açucarado que deste lado do oceano se apelidou de doce. Estão à porta do Centro de Língua Portuguesa do Instituto Camões (CLP/IC) em Praga. Joaquim Ramos, 32 anos, que agora conversa com as duas mulheres junto ao CLP/IC, é leitor de português na República Checa e responsável pelo Centro. À portuguesa de meia-idade, também professora, parece pequeno e desprestigiante o espaço concedido pela universidade para o desenvolvimento das actividades de promoção da Língua e Cultura Portuguesas na República Checa. Joaquim discorda: “Dava-me imenso jeito ter um palácio enorme onde tivesse várias salas, com cinema, teatro. Mas não tenho, tenho esta. ” Duas janelas altas, um computador com impressora, quatro mesas agrupadas em função do quadro branco onde em tempo de aulas se escrevem ditongos e explicam regras gramaticais; e livros, centenas de livros ao redor da sala. Exemplos da lusofonia de aquém e além-mar disponíveis para professores, estudantes e público interessado pela Língua Portuguesa. Ali ao lado, nas ruas do centro, milhares de turistas descobrem a mágica cidade da Boémia Central. Muitos são portugueses que têm por guia estudantes e licenciados dos cursos de Língua e Cultura Portuguesas ministrados há 15 anos na República Checa. Nos últimos anos, a Europa central e de Leste conheceu um exponencial aumento de visitantes e os guias turísticos encontram aí uma forma de sustento. “Isto é português? Uau!”Os leitores ao serviço do Instituto Camões (IC) são professores obrigatoriamente nativos de português que devem “possuir uma licenciatura, mestrado ou doutoramento, na área de Estudos Portugueses ou da Linguística Portuguesa. Se não for o caso, um currículo relevante na área do ensino do Português Língua Estrangeira é também considerado um requisito possível de se ter em conta”, explica Fernanda Barrocas do Núcleo de Apoio Pedagógico do IC. Para serem seleccionados, várias são as etapas: provas documentais e escritas, entrevista e testes psicotécnicos. Os leitores são colocados, por norma, por um período de quatro anos em cada país. Depois? “Novas experiências, novas metodologias”, resume Joaquim Ramos. Para Zuzana Chudikova, actual professora de português na Eslováquia, é fácil traçar a evolução metodológica no ensino do português desde o seu primeiro contacto com a língua em 1992. Começou como aluna na Universidade de Komenius, em Bratislava: “a engrenagem inicial foi muito difícil porque tínhamos poucos materiais e estudávamos com um livro feito na República Checa. No 2º ano, o Instituto Camões arranjou uma leitora que vinha de Viena [a pouco mais de 60 Km de Bratislava] para dar aulas e eu lembro-me que ficámos muito entusiasmados por receber e ler uma página de um jornal português. Naquela altura não havia Internet”. Hoje já há. E este é um dos meios utilizados por Zuzana e os seus colegas do Instituto de Português, criado em 2001, para promover a língua portuguesa e culturas dos países lusófonos na Eslováquia. “A nossa página está em eslovaco, porque nunca foi do nosso interesse fazer páginas sobre Portugal em inglês ou português, existem imensas. E agora há muito mais interesse pela música e cultura portuguesa e não conseguimos satisfazer todos porque não temos tempo”, queixa-se Zuzana. Cada vez mais, por todo o mundo, cresce o interesse pela cultura portuguesa. Até em locais onde, aparentemente, a brisa da sonoridade lusa não sopraria, esta acaba por marcar presença. Na Polónia, são 65 os alunos que estudam português, 320 na República Checa, 30 na Eslováquia, 70 na Hungria e 60 na Bulgária. Verdadeiro interesse ou falta de opção certo é que os números crescem de ano para ano. Zuzana Chudikova, é um exemplo. “Quando comecei a estudar português não havia informação quase nenhuma sobre a língua e, na verdade, na minha turma optámos todos por português porque naquele ano não havia espanhol”, confessa. Contudo, a primeira impressão não podia ter sido melhor, “fiquei espantada porque ouvi aquele shshsh e pensei: ‘isto é português? Uau!’”. Mas nem sempre é assim. Para Rita Rolim, leitora do IC na Polónia no passado ano lectivo, os seus alunos aprendiam português com um ‘interesse desinteressado’. “Não têm motivações profissionais mas sim culturais. Demonstram interesse não só com a língua de Portugal mas também do Brasil e de outras culturas que falam o português”. Os objectivos de Rita, 25 anos, cumprem-se neste interesse cultural dos seus alunos. Decidiu estudar português porque sempre quis mostrar a língua às pessoas, “mostrá-lo a todos, o que inclui o mundo inteiro”, conta. E foi o que aconteceu. Já esteve em Macau e na Polónia. O próximo destino é o Canadá. Se para os polacos ter uma profissão relacionada com a Língua Portuguesa não constitui uma meta a longo prazo o mesmo não se passa com os búlgaros. Na Bulgária, o mercado de tradução é muito forte e a necessidade de traduzir obras de Paulo Coelho ou telenovelas brasileiras é uma constante. Por outro lado, o turismo começa também a ser conhecido, “é uma área em expansão, fazem-se pacotes turísticos com dois ou três dias em Sófia e depois quatro ou cinco na Riviera Búlgara, que começa a ser muito falada”, constata Francisco Nazareth, leitor do IC na Bulgária. Aos 41 anos, Nazareth já foi leitor na Austrália e em Timor. Actualmente prepara-se para o segundo ano como leitor em Sófia e Veliko Târnovo, a cinco horas de comboio da capital. De calções, ténis, óculos escuros e mochila às costas confunde-se com qualquer turista que se passeie pelas ruas de Sófia. Num café em frente à Ópera, faz um pedido imperceptível para um português que não entenda búlgaro. Afinal, já teve tempo para aprender a desenrascar-se nas coisas mais básicas como pedir um café e uma água. “Sei falar o básico. Consigo adaptar-me sem grandes problemas mas a língua foi uma dificuldade. Quase ninguém usa o inglês na Bulgária e a informação não circula. Só há pouco tempo descobri que existiam duas escolas que fornecem búlgaro para estrangeiros a preços acessíveis. Na universidade os preços são uma barbaridade: cursos intensivos de búlgaro a 300 euros por semana”. Fala da Bulgária como se lá tivesse vivido desde sempre, conhece inclusive os seus meandros mais recônditos, como os altos níveis de corrupção política e financeira que obrigam as pessoas a reterem “estratégias de vida assentes em mecanismos de sobrevivência. A Bulgária está a passar por um processo quase selvagem de privatização e sente-se que algo vai mal. As condições são muito precárias, o país é pobre e o investimento público é mal dirigido”, analisa Francisco Nazareth. Tudo isto é bem visível ao nível do ensino. A sala de estudos portugueses onde Nazareth ensina está localizada não na reitoria mas a cerca de 5 km do centro da cidade. É pequena, não tem impressoras nem uma única ligação à Internet. Mas o leitor tenta contornar a falta de meios, “eu e os alunos organizámos uma festa para comprar uma impressora. A universidade não investe e também não existe uma colaboração dentro do corpo docente no sentido de fazer avançar os estudos portugueses. Muitas vezes os professores estão mais preocupados com a sua carreira do que com o ensino”. Contrapondo o desleixo de alguns professores, os alunos búlgaros são muito aplicados, têm uma cultura geral vasta e sabem, segundo Nazareth, muito mais do que os portugueses. Mas o leitor também lhes encontra alguns defeitos: “o problema é que sabem de uma maneira pouco crítica, ou seja, não estão habituados a colocar em causa o discurso oficial do professor. É muito difícil mobilizar os alunos dentro da sala de aula para serem dinâmicos. São muito envergonhados. Têm medo de errar. ” “Para um Checo é fácil aprender tudo” O sotaque constitui, para os aprendizes da língua, um dos principais entraves. Rita Rolim diz que os polacos, por exemplo, têm muitas dificuldades em lidar com a língua portuguesa a um nível vivencial. “Nem sempre conseguem captar a pronúncia, têm problemas com os ‘r’ e em distinguir o avô e a avó”, conta a leitora. Joaquim Ramos desdramatiza: “para os polacos é mais fácil porque eles têm os ditongos nasais enquanto para os checos é difícil o ‘lhe’, mas no geral conseguem”. A conclusão a que o professor chega é que “para um Checo é fácil aprender tudo. Eles estudam imenso e depois tem uma coisa muito boa que é um Inverno muito rigoroso. Não dá para ir para a ‘night’. Não têm nada que fazer, estudam”. Joaquim explica que muitos chegam a tirar dois cursos em simultâneo: “Música e Direito”, exemplifica. Joaquim Ramos conhece bem a realidade checa depois de dois anos no país. Antes de ser leitor do Instituto Camões em Praga e Brno, foi professor de português técnico – económico e jurídico – em duas universidades do sudeste da República Checa. “O Português ensina-se em seis universidades, dois liceus e uma escola profissional”, enumera de cor, “há três licenciaturas em Língua e Cultura Portuguesas e depois há cursos universitários onde os alunos compõem o seu próprio currículo, com o bloco de português inclusive”. Também este português de Viseu fez duas formações distintas. Primeiro, jurídica e que lhe permitiu ser funcionário das finanças durante alguns anos. Depois, linguística, que o trouxe até à República Checa e aos quadros do Instituto Camões. “Quando surgiu a oportunidade de concorrer ao Instituto Camões, achei que era um desafio interessante. Concorri e foi a melhor coisa que fiz, porque além de lidar com a Língua Portuguesa, o que me apaixona, ainda posso lidar com a cultura”. E ideias não lhe faltam. “Fazemos encenações nos parques de Praga, leitura de poesia em português, concertos, fins-de-semana ‘non stop’ com música portuguesa, lusófona, africana”, descreve. O objectivo é claro: “desenvolver uma série de actividades que facilitem a aprendizagem da cultura e da língua”. Joaquim acabou por ser vítima de uma dessas actividades. Acontece-lhe sair frequentemente com os seus alunos até um dos muitos cafés de Praga. Nestes espaços de tertúlia, desconhecidos dos turistas, Joaquim só tem autorização para falar em Português. “Quero às vezes praticar, mas dizem-me: ‘Não! Queremos aproveitar porque temos aqui um nativo’. Portanto não posso ir tomar uma cerveja e tentar explorar o meu checo. Ninguém quer saber disso para nada”, lamenta justificando que só sabe falar o mais básico: “Numa ida ao supermercado tenho que falar checo. É muito difícil. Para mim é a língua mais difícil do mundo. Muito mais difícil que o chinês e essas coisas. ” Uma outra ideia já em desenvolvimento é o apoio linguístico à comunidade de estudantes portugueses de medicina, em Pilsen, no Sul da República Checa. “Vamos abrir um curso de português clínico para lhes facilitar a vida. Eles aprendem em inglês e, eventualmente, em checo. Um médico chega a Portugal e uma velhinha diz andar enjoada e que tem ‘um mal macho’[um qualquer problema de saúde]. ‘O que é isso?’, pergunta. A senhora não sabe explicar de outra maneira e o médico não a percebe por não ter formação contextualizada”, explica Joaquim Ramos. E os projectos estendem-se aos outros Centros de Língua Portuguesa e leitores do Instituto Camões. Na Eslováquia, por exemplo, prepara-se o primeiro dicionário de Eslovaco-Português. Com o apoio do IC e da Fundação Gulbenkian, a equipa de dez pessoas do Instituto de Português não tem mãos a medir. “Andamos todos com dores de cabeça. Mas acho que quando acabarmos este projecto, uau!, vamos festejar todos”, exclama Zuzana Chudikova, e percebe-se o seu entusiasmo quando explica que “até agora se aprendia o português através do checo, do inglês e do francês”. Regresso a casaEnsinar português na Europa Central e de Leste não é tarefa exclusiva dos leitores do Instituto Camões. Muitas são as nacionalidades dos docentes que tentam levar a cultura e as tradições lusófonas aos quatro cantos do mundo. Ana foi aluna de Zuzana. Tem 32 anos e é eslovaca. Durante três anos estudou português na Universidade de Banska Bystrica. Teve dois professores eslovacos, um brasileiro, um angolano e um português. Na Hungria a diversidade é menor. Borbála Pálfy, uma ex-estudante de português de 25 anos, queixa-se de ter tido mais professores húngaros do que portugueses ou brasileiros, o que acabou por lhe dificultar a vida. “Quando fui para Portugal, fazer Erasmus em 2004, acho que passei dois meses sem falar nem entender nada porque estava habituada a ouvir falar os meus professores de cá”. Esquecidas no dicionário ficaram algumas das muitas palavras portuguesas que foi aprendendo durante o curso, daí a falhas gramaticais que vai deixando escapar ao longo da conversa. Não se esquece, porém, do espírito académico com que foi recebida em Coimbra e não poupa elogios: “Portugal é muito fixe, é a minha segunda casa. Não há um ano em que não vá lá passar férias”. Bárbola ouve Madredeus e vê alguns filmes portugueses. Ana gosta de fado e adora a poesia de Sophia de Mello Breyner. Zuzana cita de cor nomes como os de Cristina Branco e Mariza. Encurtam as distâncias com pequenos objectos, um CD ou um livro são o suficiente. Mas nem todos matam saudades com música e palavras. O regresso é unanimemente apontado por Rita, Joaquim e Nazareth como o fim último da sua missão de ensinar português pelo mundo. Joaquim resume o sentimento: “como um bom marinheiro que sou, de um país de marinheiros, faz sempre parte dos meus planos futuros regressar ao meu porto de abrigo. Agora quando é que não sei. ” Até lá são os voos da TAP e as novas tecnologias que o vão pondo em contacto com Portugal, “É mais ou menos fácil gerir a distância porque temos ‘Skype’, temos o ‘Messenger’ e temos voos da TAP que permitem fazer Praga-Lisboa em menos tempo do que Lisboa-Viseu se houver hora de ponta nas portagens de Alverca”.
REFERÊNCIAS:
Islândia: Na ilha do peixe de Inverno
Se não fosse a obsessão portuguesa por bacalhau, provavelmente os islandeses pouco ouviriam falar deste distante país do Sul da Europa. Mas há muitas décadas que preparam para os portugueses um peixe que eles próprios não comem. “Para nós, a palavra Portugal significava prosperidade.” (...)

Islândia: Na ilha do peixe de Inverno
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Se não fosse a obsessão portuguesa por bacalhau, provavelmente os islandeses pouco ouviriam falar deste distante país do Sul da Europa. Mas há muitas décadas que preparam para os portugueses um peixe que eles próprios não comem. “Para nós, a palavra Portugal significava prosperidade.”
TEXTO: Portugal? Ninguém sabia o que era. Para nós, era só uma palavra. ” O islandês Nils Gudmundsson nasceu em Grindavik, uma localidade a cerca de meia hora de Reiquiavique, a capital islandesa, e lembra-se bem da sua infância, há 40 anos. “Todas as famílias estavam envolvidas na indústria do bacalhau. O meu pai era pescador e a minha mãe, quando não estava a tomar conta dos filhos, trabalhava na fábrica do peixe. ” E aos fins-de-semana até as crianças vinham ajudar. “Às vezes, em dias de maior trabalho, chegavam a pedir à escola para dispensar os miúdos umas horas para eles poderem ajudar. ”O mar sempre foi a maior riqueza da Islândia. O peixe nunca falta. E a população nunca duvidou que aquele era a sua garantia de sobrevivência. Sabiam também que, lá no Sul da Europa, um país pequeno e com sol era habitado por inabaláveis comedores de bacalhau (o consumo actual é de sete quilos per capita por ano, o que se traduz em 30% do bacalhau que é pescado no mundo). Mas, por ironia do destino, esse país, que até tinha uma grande costa e muito peixe nas suas águas, não tinha bacalhau. Por isso, apesar de ser “só uma palavra”, Portugal foi sempre uma palavra boa. “As pessoas ficavam felizes, Portugal significava prosperidade. ” Ainda bem que esses estranhos portugueses gostavam tanto de bacalhau salgado — um peixe que, aliás, os islandeses não estavam autorizados a comer precisamente por ser a sua maior fonte de riqueza. Essa restrição só começou a ser levantada, gradualmente, a partir dos anos 60 do século XX. Na infância de Nils, já existiam fábricas e máquinas. “Em Grindavik, havia umas oito ou dez empresas a escalar e salgar o peixe”. Havia uma máquina para abrir o peixe, outra para lhe cortar a cabeça — como continua a fazer-se hoje. O trabalho mais duro, recorda Nils, era o da salga. “As pás eram pesadas e tínhamos de ser rápidos. ” Mas as tarefas mais árduas só duravam até final de Maio. “Depois, começava-se a preparar o empacotamento, em sacas de serapilheira, que se fazia durante o Verão. ” O peixe salgado ficava guardado em grandes armazéns e quando chegava o tempo quente era exportado para Portugal. “Os portugueses só gostam do peixe apanhado entre Janeiro e Maio, quando está grande e gordo. Chamam-lhe o peixe de Inverno. ”7Naquele tempo, mesmo entre os produtores, eram poucos os que conheciam Portugal, continua Nils. “Um dos meus familiares que era dono de uma empresa foi pela primeira vez a Portugal e ficou muito espantado por ver mulheres carregarem à cabeça sacas de 50 quilos. ” Mais tarde, o próprio Nils tornou-se negociante de bacalhau e passou muito tempo sentado à espera de papeladas na “reguladora”, como ele diz, carregando no erre. Era o tempo em que do lado islandês havia um monopólio na exportação do bacalhau (só acabou nos anos 90) e do lado português tudo tinha de passar pela Comissão Reguladora do Comércio do Bacalhau – a “rrreguladora”. No tempo livre, Nils passeava, subia ao Cristo-Rei, via Lisboa ao longe, encantava-se com o Tejo e, sobretudo, com os diferentes pratos de bacalhau que ia experimentando. Hoje, diz, tem como missão — que, admite, “não é fácil” — convencer os islandeses a comer mais bacalhau com a cura tradicional portuguesa. Como é natural, o tal peixe “proibido” nunca se tornou uma tradição no país dos fiordes, onde, quando muito, é consumido fresco, preparado pela nova geração de chefs. Mas Nils não desiste e sempre que visita Portugal regressa à Islândia com bacalhau debaixo do braço — o mesmo bacalhau que foi pescado no mar islandês, a dois passos da sua casa, mas que em Portugal passou um mínimo de seis meses no sal e foi seco de acordo com a tradição portuguesa, em que o nível de humidade tem que ser reduzido até aos 47%. O cenário da infância de Nils era em algumas coisas ainda muito semelhante e noutras já radicalmente diferente do que tinha sido Grindavik 50 anos antes. No início do século XX, a vida era ainda mais dura. Essa é uma história contada no Museu do Peixe Salgado de Grindavik, cujas paredes estão cobertas por enormes fotografias a preto e branco mostrando homens, mulheres e crianças a trabalhar ao ar livre, junto aos barcos, em precárias mesas de madeira, abrindo os peixes ao meio, escovando-os, salgando-os e empilhando-os. Nesses tempos, ainda se fazia na Islândia a secagem do peixe, por isso algumas imagens mostram um autêntico mar de peixes a secar e mulheres de lenços na cabeça e longas saias que, se não fossem as montanhas com neve ao fundo, poderiam ser da Nazaré. Mas desde o século XIX que a salga como modo de conservar foi gradualmente substituindo a secagem. O museu mostra, numa exposição com manequins, todo o processo: a mulher dobrada sobre uma mesa, escovando o bacalhau para o limpar e deixar o mais branco possível, depois a pô-lo a secar num estendal, a colocar-lhe o sal. E, no final, uma mercearia num país do Sul da Europa, igual às que encontramos em Portugal, com caixotes de madeira no exterior cheios de laranjas, tomates e cabeças de alho, e, ao lado, bacalhaus secos pendurados — um deles já na mão de uma cliente de vestido preto com pintinhas brancas e chapelinho na cabeça. Durante o século XIX, a Islândia exportava sobretudo para Espanha, em particular para a Catalunha e País Basco. Depois, outros mercados foram surgindo e ganhando importância: Itália, Portugal, Grécia. A relação com Portugal consolidou-se na década de 20. Não querendo ficar demasiado dependente do mercado espanhol, os islandeses começaram a estudar o português e a conclusão, lê-se num dos textos de apoio do museu, foi a de que Portugal “queria um peixe mais seco do que o dos espanhóis e italianos e não estava preparado para pagar por ele preços tão altos”. Em 2015, a ligação continua forte. “As relações comerciais entre Portugal e a Islândia são vitais para nós”, disse Sigurour Ingi Jóhannsson, ministro islandês das Pescas e da Agricultura, ao grupo de jornalistas portugueses que visitou o país. “O peixe é o nosso maior produto de exportação e gostaríamos de aumentar as exportações para Portugal. ” A indústria das pescas emprega 9 mil pessoas e representa 11% do PIB, mas o cluster do mar atinge os 25%, sendo o maior sector da economia, seguido pelo alumínio, 22%, e agora pelo turismo, que, com 12%, está a viver um boom em parte ajudado pela crise económica que tornou a Islândia um destino mais apetecível. E, no sector das pescas, a boa notícia é que nos últimos tempos os stocks de bacalhau, que são cuidadosamente acompanhados por cientistas, têm estado a aumentar. O ministro reconhece que a Noruega não só é um produtor maior, como tem uma estratégia de marketing mais agressiva, mas explica que o posicionamento da Islândia é outro. “Eles são um país com mais gente, que pesca mais, que tem uma boa economia de base. A nossa perspectiva é a de que temos de basear as exportações em qualidade e não em quantidade. Não penso que o preço seja um problema se nos concentrarmos na qualidade. ”Vamos sobrevoar o território deserto, coberto de belíssimas montanhas com neve, do centro da Islândia, até à costa Norte, mais precisamente à localidade de Húsavik, que os turistas conhecem pelas baleias, mas cuja população vive sobretudo da pesca. É aqui que está baseada a empresa GPG, propriedade de Gunnlaugur Karl Hreinsson, conhecido como Gulli, e que é uma das principais fornecedoras de bacalhau à portuguesa Riberalves. Viajamos com Ricardo e Bernardo Alves, os dois irmãos hoje à frente da Riberalves, criada há precisamente 30 anos pelo pai, João Alves, que começou a vida ajudando o pai dele a vender bacalhau de porta em porta na Baixa de Lisboa. Para Bernardo, que se ocupa mais da parte comercial da empresa, esta é a primeira viagem à Islândia, mas Ricardo vem aqui há 15 anos, conhece pessoalmente os produtores e preocupa-se em acompanhar directamente o processo. Desta vez vamos num dos barcos ver como se faz a pesca do bacalhau. Mas, antes disso, primeira paragem em Flatley, a maior da ilhas ocidentais da Islândia, praticamente desabitada durante o Inverno. “Estamos a norte do círculo polar árctico. Só existe uma ilha mais para norte”, diz Bjorgvin Gestsson, da empresa Finefish, intermediária entre a Riberalves e os produtores islandeses. 9Flatley é pequena, apenas dois quilómetros de comprimento e um de largura, algumas casas pintadas de cores vivas espalhadas, uma estrada de terra que parte do pequeno porto e, num ponto mais alto à direita, uma igreja cuja biblioteca albergou em tempos o Flatley Book, o maior dos manuscritos medievais islandeses com sagas dos vikings. Seguimos alguns metros pela estrada e os pássaros que sobrevoam a ilha agitam-se subitamente e lançam-se na nossa direcção, tentando bicar-nos as cabeças. São os kria, conhecidos pela agressividade, aparentemente para proteger os ninhos escondidos no chão numa ilha que não tem árvores. Também esta ilha, conta Bjorgvin, viveu no passado da indústria do peixe. “Durante dezenas de anos, as pessoas viviam aqui, sem electricidade, só para a pesca do bacalhau. Nas décadas de 50 e 60, saíram porque os invernos se tornaram demasiado rigorosos. Mas muitos bacalhaus foram produzidos nesta ilha, se calhar muitos deles para Portugal. ”Regressamos ao mar para ir até ao barco onde Thorbur Biggi, mais conhecido como “Doddi”, 43 anos, está à pesca há já algumas horas. De boné de xadrez na cabeça e camisola de lã com o padrão típico islandês, o pescador está a ter um dia tão calmo que confessa recear que os portugueses fiquem com a ideia de que a pesca na Islândia é uma coisa fácil. O facto é que, depois de um Inverno que todos descrevem como particularmente rigoroso, hoje está um dia de sol e um mar calmo. Além disso, como acontece no Verão, durante as férias escolares, “Doddi” tem a ajuda do filho mais velho. “No Inverno, venho sozinho e faço tudo sozinho”, conta. Não conseguimos imaginar como é que um homem só dá conta do recado, mas não há dúvida de que “Doddi”, filho, neto e bisneto de pescadores e que anda nesta vida desde os 16 anos, domina admiravelmente a técnica. Na pequena cabina mal cabem duas pessoas. Encaixada entre as janelas quadradas está uma antiga fotografia a preto e branco do avô. Abaixo das janelas, a mesa de madeira está toda ocupada: uma máquina para fazer café, um computador portátil e vários outros ecrãs que ajudam a navegação e indicam a “Doddi” os locais onde existe mais peixe no fundo do mar. A pesca neste barco é feita à linha, embora 46% do bacalhau capturado na Islândia seja com rede de arrasto e a linha de mão represente apenas 7%. Algumas horas antes o pescador sai para o mar para lançar a linha que, neste caso, tem 17 quilómetros de comprimento e 15 mil anzóis com isco. Depois é só vir buscar o peixe. Com a ajuda de uma roldana, a linha é recolhida e, se alguns anzóis vêm vazios, a maior parte traz pendurado um peixe, ainda a debater-se. A grande maioria são bacalhaus. “Doddi” tem apenas que, com um arpão e um gesto preciso, puxar o animal para dentro do barco (o que não é tão fácil quando os peixes são muito grandes e dão muita luta, o que geralmente não acontece com os bacalhaus). O filho trata da parte de o sangrar, o que deve ser feito logo no barco para que a carne fique branca e sem vestígios de sangue. Quando vem sozinho, “Doddi” apanha o peixe e sangra-o imediatamente, separando-os por espécies e por tamanhos. Os maiores, como o peixe-gato, debatem-se desesperadamente e tentam ainda morder os outros. Neste caso, é melhor esperar um pouco até o animal ficar cansado antes de se tentar pegar nele. O bacalhau da Islândia pescado à linha, como este, é o mais caro do mercado (cerca de 10% mais do que os outros), mas Ricardo Alves acredita que faz a diferença. “É o melhor, o mais bem tratado, com mais respeito”. Daí que, nos últimos cinco anos, a Riberalves tenha comprado 50% do bacalhau islandês que vai para Portugal, cerca de 4500 toneladas. Esta escolha, diz, justifica-se particularmente porque a empresa está a apostar cada vez mais no bacalhau demolhado ultracongelado e pronto a cozinhar, e as postas maiores, preferidas por restaurantes e consumidores, são as que vêm destes bacalhaus. “O bacalhau demolhado é o futuro”, garantem os dois irmãos. Desde que foi lançado, em 2003, não tem parado de crescer — neste momento, representa 30% das vendas em Portugal mas no Brasil já atinge os 40%. Trata-se de um bacalhau mais fácil, que poupa aos consumidores o trabalho da demolha em casa. Esta tendência para a simplificação vai continuar: o novo produto que a Riberalves está a desenvolver (a pensar sobretudo no mercado externo, Brasil, Estados Unidos, mas que será lançado também em Portugal) é o bacalhau sem pele e sem espinhas. Por isso, para acompanhar de perto o que se está a passar com a produção, é que Ricardo vem à Islândia com alguma frequência. Chegados à terra, com o peixe entregue, seguimos para a fábrica da GPG, que vende 35% da sua produção para Portugal. É aí que acontece o processo que no início do século era feito ao ar livre como mostravam as fotografias do museu de Grindavik. Hoje há máquinas para tudo, mas a mão-de-obra continua a ser essencial (e nas férias escolares são muitos os alunos que estão aqui a ajudar) para lidar com as 50 toneladas por dia que passam aqui na época alta. Cada animal é escalado, são tiradas as vísceras, a cabeça é cortada (servirá para fazer as caras de bacalhau, para Portugal) e é limpo à mão, com a ajuda de uma escova. De seguida é empilhado e salgado. Nesta fábrica são utilizados fosfatos (injectados no bacalhau tornam-no mais branco e contribuem para a retenção de água) mas não no peixe que vai para Portugal — depois de uma luta contra a legislação europeia que autoriza esta prática, Portugal conseguiu uma excepção para o bacalhau de cura tradicional portuguesa. “Os fosfatos alteram o sabor e a textura do peixe”, sublinha Ricardo Alves. “E a retenção de água dificulta muito a secagem. ” O peixe fica cerca de três semanas com sal, antes de ser colocado em contentores e enviado para Portugal. O que entrou na fábrica como um peixe inteiro perdeu entretanto 55% do seu peso. Mesmo assim, há um grande aproveitamento. Numa fábrica próxima, e com energia natural geotérmica (uma gigantesca vantagem em termos de custos), é feita a secagem de partes do peixe que são depois exportadas para a Nigéria. Bjorgvin e Gulli vão buscar alguns pedaços de peixe muito seco, já escuro, para mostrar. “As caras do bacalhau vão para Portugal, mas a parte de cima das cabeças, que lhes é retirada, é considerada uma especialidade na Nigéria, assim como a espinha e até as guelras, que eles usam nas sopas. ” Cada mercado tem as suas preferências — a Espanha prefere um bacalhau menos salgado e mais branco do que Portugal, enquanto a Itália e o Reino Unido estão a importar muitos filetes de bacalhau salgado verde (ou seja, sem a cura tradicional portuguesa). “O mercado exige cada vez mais peixe filetado e sem pele nem espinhas”, diz Gulli. Quanto a outros subprodutos do bacalhau, há empresas na Islândia que apostam na investigação para aproveitamento para cosmética ou suplementos alimentares. É o caso da Codland, uma startup cujo objectivo, explica o seu director Thomas Eiriksson, é “o aproveitamento total do bacalhau, chegando à utilização de 100% do peixe”, cuja pele é rica em colagénio e do qual podem também ser extraídas proteínas e óleo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. E assim parece continuar a confirmar-se uma frase lapidar do escritor Halldór Laxness, Nobel da Literatura islandês, hoje célebre e usada pela promoção do país: “A vida é bacalhau. ” Este peixe é tão importante para a identidade islandesa que a partir do século XV e até ao XX chegou a figurar no brasão de armas do país — não com o seu aspecto de peixe completo (que muitos portugueses ignoram qual é) mas sim escalado e salgado, em triângulo, como é conhecido em Portugal. A única coisa que não acontece (ainda) ao bacalhau na Islândia é ser comido em grandes quantidades pelos locais. Mas, se depender da vontade de Nils Gudmundsson, o islandês que vem a Portugal comprar o bacalhau de cura tradicional, um dia destes isso poderá mudar.
REFERÊNCIAS:
A guerra que não acabou com todas as guerras...
Cem anos depois, o mundo pauta-se muito mais pelos critérios imperialistas de 1914 que pelas lições de 1945. (...)

A guerra que não acabou com todas as guerras...
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-03-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: Cem anos depois, o mundo pauta-se muito mais pelos critérios imperialistas de 1914 que pelas lições de 1945.
TEXTO: Charles Sorley morreu aos 20 anos nas trincheiras, em 1915. A Grande Guerra começara havia meses e já ele pedia que “Quando, em sonhos, vires milhões de mortos sem boca / Que em pálidos batalhões partem, / Não digas as mesmas coisas bonitas que outros homens disseram já (. . . ) Não precisas de o fazer. / Não os louves. (. . . ) Nem derrames lágrimas. Os seus olhos cegos não verão as tuas lágrimas cair. / Nem fales de honra. É fácil estar morto. / Diz apenas, ‘Estão mortos’” (When you see millions of the mouthless dead). A guerra abrira um imenso buraco moral, humano e político que engoliria 9, 5 milhões de mortos, e de onde sairiam 23 milhões de mutilados; por causa dela, uma pandemia (a gripe espanhola) matou 50 a 100 milhões de pessoas. Máquina infernal de massacre de combatentes, em que o matadouro das trincheiras não teve paralelo sequer com a II Guerra Mundial, a Grande Guerra foi o primeiro “conflito no qual o ato de matar se transforma numa operação mecânica e onde a morte toma o caráter de uma experiência coletiva, anónima, inqualificável” (Enzo Traverso, 1914-1945. A guerra civil europeia, 2007). É esta sua natureza que a aproxima da experiência de Auschwitz: a eliminação industrial de uma massa de seres anónimos, arrastados quase sem resistência para a morte, uns obedecendo à ordem cega de avançar para o fogo das metralhadoras ou os gases químicos, outros para dentro de uma câmara de gás. Neste sentido, é completamente coerente que a homenagem aos combatentes Grande Guerra tenha concebido a figura do Soldado Desconhecido. E, no entanto, puro produto da era triunfal do nacionalismo, do imperialismo e do capitalismo confundido com civilização, para a guerre fraîche et joyeuse, como lhe chamaram os franceses, marcharam com aparente alegria milhões de soldados acabados de mobilizar. Uma febre patrioteira tomara conta da Europa e esmagara em poucos dias uma geração de socialistas que se comprometera a fazer Guerra à Guerra – mas que, na sua maioria, acabaria simplesmente por fazer a guerra. O verão de 1914 fica para a História como uma das melhores demonstrações da enorme capacidade socializadora do nacionalismo de Estado, descrito como consenso interclassista e como tradição, reproduzido pelos novos instrumentos de enquadramento social da modernidade: a escola, as Forças Armadas, os media. Quem partiu fê-lo em nome de uma nação que lhe tinha sido imposta como se tivesse existido desde sempre, e como se a ela devesse a vida – e esta tivesse o direito de lha reclamar de volta. E, contudo, como escrevia o soldado Wilfred Owen, morto aos 25 anos uma semana antes do fim da guerra, “Se tu pudesses ouvir, a cada golfada / o sangue que jorra dos pulmões [destruídos pelo gás], / obsceno como o cancro, amargo como quimo (. . . ) – não repetirias, meu amigo, com tanto entusiasmo / a crianças ansiosas por uma glória desesperada, / a velha Mentira: Dulce et decorum est / Pro patria mori [Como é doce e glorioso morrer pela pátria]” (Dulce et Decorum Est, 1918). Na batalha do Somme (julho-novembro de 1916) – a mais mortífera de quantas os britânicos participaram em toda a sua história: 19 mil mortos só no primeiro dia! –, os soldados cantavam já que “We’re here, because we’re here, because we’re here. . . ” (“Estamos cá, porque estamos cá, porque estamos cá”). Depois dos 320 mil mortos em Verdun, os soldados franceses atiravam-se aos “patriotas” que gritavam que “pela Pátria é preciso ir até ao fim”: “Mas nós gritamos abaixo a guerra / Aprendam-no, é o lema mais belo / Não mais canhões, nem espingardas, nem fronteiras / Abaixo a guerra e os seus carrascos!” (On les aura!, 1917). Se o Somme e Verdun são símbolos da infinita futilidade da guerra, juntemos-lhes La Lys ou A guerra que Portugal quis esquecer (Manuel Carvalho, 2015), feita em África por “comandantes cuja indiferença à sorte dos soldados era permanente, ministros que dos gabinetes de Lisboa davam ordens concretas sobre planos de ataque a decorrer em frentes imaginárias (. . . ), [a] corrupção de todos os que geriam depósitos”, ou, na memória da violência colonial, [as] “razias dos bens das populações [africanas], [a] violência sobre as mulheres ou [a] condenação de milhares de homens à condição escrava de carregadores”. Guerra de nacionalismos e de projetos imperialistas contrapostos, fechada com uma paz que guardava no ovo a serpente das novas guerras, temos muito a aprender com 1918. Cem anos depois, o mundo pauta-se muito mais pelos critérios imperialistas de 1914 que pelas lições de 1945. O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
REFERÊNCIAS:
ONU avisa para "risco real" de guerra na Costa do Marfim
O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, avisou que um regresso à guerra civil na Costa do Marfim é um "risco real" após as presidenciais em que o derrotado, o Presidente Laurent Gbagbo, reclama vitória e recusa abdicar do poder. (...)

ONU avisa para "risco real" de guerra na Costa do Marfim
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 12 | Sentimento 0.2
DATA: 2010-12-22 | Jornal Público
SUMÁRIO: O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, avisou que um regresso à guerra civil na Costa do Marfim é um "risco real" após as presidenciais em que o derrotado, o Presidente Laurent Gbagbo, reclama vitória e recusa abdicar do poder.
TEXTO: A França já aconselhou os seus 1500 cidadãos a sair do país temendo mais instabilidade, a Alemanha e Portugal também disseram os seus cidadãos que deveriam sair do país e desaconselharam viagens. A Nigéria retirou os seus diplomatas. Guillaume Soro, o primeiro-ministro designado por Alassane Ouattara, que segundo a comunidade internacional é o vencedor das eleições, afirmou à emissora francesa i-Télé que “depois de toda a pressão internacional e sanções que não tiveram efeito sobre Gbagbo, é evidente que não há outra solução que não a força”. Soro tinha antes acusado as forças de segurança leais a Gbagbo de espalharem o terror com a ajuda de mercenários da Libéria, segundo o diário britânico "The Guardian". “Contámos quase 200 mortos e mil feridos por balas, 40 desaparecidos e 732 presos”, disse Soro. “Pior, houve mulheres espancadas, despidas, atacadas e violadas”, continuou. “Quando é que a comunidade internacional se vai aperceber de que começou uma loucura assassina na Costa do Marfim?”A União Europeia ratificou entretanto as sanções contra Gbagbo e 18 colaboradores e pensa alargar em breve a lista, confirmando uma decisão que já tinha sido tomada na segunda-feira. O Banco Mundial congelou entretanto o financiamento de fundos para a Costa do Marfim, como parte da pressão internacional para que este ceda o poder ao vencedor das eleições. Num discurso feito ontem à noite na sede da ONU, em Nova Iorque, Ban Ki-moon expressou preocupação com os 10 mil capacetes azuis no país, segundo a emissora britânica BBC. O responsável acusou ainda o presidente Laurent Gbagbo, que estava no poder e reclama a vitória nas eleições de tentar ilegalmente expulsar as forças das Nações Unidas no país (Unoci). A comunidade internacional afirma que a votação foi ganha pelo seu opositor, Alassane Ouattara, que está actualmente num hotel em Abidjan protegido por 800 capacetes azuis. Os capacetes azuis, avisou Ban Ki-moon, estão a ser bloqueados por forças leais a Gbagbo. Segundo o jornalista da BBC John James, que está na capital da Costa do Marfim, as estradas que levam ao hotel foram cortadas impedindo a chegada de mantimentos para os militares da ONU. “Estou preocupado com esta perturbação na chegada de provisões para a missão e que esta ponha as nossas forças de manutenção de paz numa situação grave nos próximos dias”, acrescentou, pedindo mais apoio para a Unoci. “A comunidade internacional não pode ficar parada face a este desafio directo e inaceitável”, concluiu. Laurent Gbagbo ofereceu-se entretanto para que o resultado eleitoral fosse analisado por um “comité de avaliação” internacional que teria como missão “analisar os factos e o processo eleitoral objectivamente para resolver esta crise de modo pacífico”. Mas muitos analistas consideram este gesto apenas uma manobra para ganhar tempo, para estender o espaço de cinco anos em que conseguiu adiar eleições e manter-se no poder. Notícia actualizada às 16h05
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU
França: muçulmana proibida de ir à escola por “insistir” na sua saia comprida
Submissão ou tolerância? Diferentes noções que coexistem na ideia francesa de laicidade. Fazer respeitar a lei ou usá-la como pretexto para discriminar uma religião? O debate, já aceso e incendiado por casos e propostas políticas, vai continuar. (...)

França: muçulmana proibida de ir à escola por “insistir” na sua saia comprida
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.05
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Submissão ou tolerância? Diferentes noções que coexistem na ideia francesa de laicidade. Fazer respeitar a lei ou usá-la como pretexto para discriminar uma religião? O debate, já aceso e incendiado por casos e propostas políticas, vai continuar.
TEXTO: No Twitter, o assunto gera tanta indignação como piadas, em mensagens que brincam com o que indigna os seus autores. Com o tema “JePorteMaJupeCommeJeVeux” (Eu uso a minha saia como entender), milhares de pessoas continuam a mostrar a sua solidariedade com Sarah, a aluna muçulmana de 15 anos impedida de entrar na sua escola na região francesa de Ardenas com o pretexto de não respeitar a laicidade e a lei de 2004 que proíbe o uso de sinais religiosos ostensivos – no caso, uma saia preta e comprida. “Na verdade, esta saia não tem nada de especial”, disse a adolescente ao jornal local L’Ardennais, acrescentando que pagou dois euros pela peça de roupa numa loja indistinta. “Mas é injusto, não é uma razão válida para me impedirem de entrar”, afirma, explicando que até costuma usar calças mas “quando faz calor” prefere saias. Nas redes sociais, há quem se pergunte se “liberdade” ainda faz farte da trilogia de valores fundamentais da República da França, quem publique imagens de princesas da Disney com os seus longos vestidos ou de convidadas para “chiques recepções” no Eliseu que optaram por tailleurs constituídos por… saias compridas. Também há quem diga que não conhece franceses mas sabe o que é “o racismo”, “o ridículo” ou “a islamofobia”. Para a directora da escola de Charleville-Mézières (capital das Ardenas), Maryse Dubois, a saia de Sarah, “demasiado longa”, não respeitava a lei sobre a laicidade nas escolas, que “interdita o uso de símbolos ou roupas através dos quais os alunos manifestem ostensivamente uma pertença religiosa”. Neste caso, Dubois não teve sombra de dúvida e insiste: “A insistência nesta indumentária provocante vai impedir que seja recebida nas aulas”. Duas vezes Sarah chegou de saia à escola, a 25 quilómetros de casa, e duas vezes foi impedida de entrar. Aconteceu a 16 e a 25 de Abril. Os pais, “furiosos”, disseram ao mesmo jornal local que “não é proibido por lei usar saias compridas”. A lei de 2004 é conhecida como a “lei do lenço” e visava precisamente impedir as meninas e adolescentes muçulmanas de entrarem nas escolas de hijab (lenço islâmico). A proibição não se estende às universidades – mesmo se ultimamente tem havido professores universitários a expulsar alunas de lenço, fruto do clima de tensão e debate sobre identidade e integração que se vive há anos em França, exacerbado desde Janeiro pelo atentado contra o jornal satírico Charlie Hebdo cometido por radicais islâmicos. Nos últimos meses, a escola enquanto instituição foi designada pelo Governo de François Hollande “santuário da laicidade” e das leis da República secular, ao mesmo tempo que é pedido aos professores que sejam a linha da frente deste combate sem tréguas. Actualmente, já estão mobilizados os formadores que os vão preparar para o novo programa de educação cívica e moral, em vigor a partir do próximo ano lectivo. Sarah não está sozinha, o que é raro são estes casos chegarem às notícias. A “lei do lenço” costuma mesmo ser interpretada de forma literal e a maior parte das raparigas impedidas de aceder aos estabelecimentos de ensino por causa de outras peças de roupa são adolescentes como Sarah, que decidiram usar lenço e que, para cumprirem a lei, o retiram à porta da escola e o voltam a colocar, à saída. É isso que facilita a interpretação das suas saias, casacos ou vestidos como “sinais religiosos ostensivos” ou peças de “indumentária provocante”. Roupa mais neutraAo longo de 2014, antes do Charlie Hebdo, o Colectivo Contra a Islamofobia registou ou tentou agir em perto de 130 casos de exclusão de alunas do secundário por causa de peças de roupa, diz a ONG ao jornal Le Monde. Na verdade, todos os anos chegam à organização, em média, 100 litígios semelhantes, confirma a porta-voz Elsa Ray, ao Libération. “O que é escandaloso nestes casos é que outras alunas usam saias compridas nos mesmos estabelecimentos”, diz Ray. “Estas jovens são alvo por serem muçulmanas, identificadas como tal por usarem lenço no exterior da escola. ”Para já, a comunidade escolar apoia a directora de Charleville-Mézières. “Pedimos-lhe que passasse a apresentar-se como uma roupa mais neutra mas parece que o pai dela não deseja que a aluna volte à escola”, explicou à AFP Patrice Dutot, inspector académico das Ardenas. Sim, o pai de Sarah não está contente e quer mudar a filha de escola. Este é um episódio entre muitos de um tema que vai continuar no centro do debate político francês – o ex-Presidente da direita, Nicolas Sarkozy, propôs, por exemplo, o fim dos menus duplos, ou de substituição, para os dias em que as cantinas servem porco, carne que os muçulmanos praticantes não comem. Há escolas que já os aboliram.
REFERÊNCIAS:
Obama e Castro reúnem as Américas 50 anos depois
Líderes comemoram o aperto de mão entre os Presidentes dos EUA e Cuba, numa cimeira histórica na Cidade do Panamá. Mas o ambiente não será de concórdia, com Nicolás Maduro a exigir uma reparação pelas sanções impostas por Washington à Venezuela. (...)

Obama e Castro reúnem as Américas 50 anos depois
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Líderes comemoram o aperto de mão entre os Presidentes dos EUA e Cuba, numa cimeira histórica na Cidade do Panamá. Mas o ambiente não será de concórdia, com Nicolás Maduro a exigir uma reparação pelas sanções impostas por Washington à Venezuela.
TEXTO: A expectativa deu lugar à celebração, ainda antes do arranque dos trabalhos na Cidade do Panamá. Pela primeira vez na sua história, Cuba participa numa Cimeira das Américas, o conclave de todos os países do continente e ilhas das Caraíbas que acontece a cada três anos e pretende marcar a agenda multilateral regional – o que quer dizer que, pela primeira vez em 50 anos, o Presidente cubano vai sentar-se ao lado do Presidente dos Estados Unidos e discutir, em pé de igualdade com os restantes líderes, as matérias de interesse comum. O simbolismo desse momento histórico é difícil de desvalorizar: mais do que a confirmação da aproximação entre os dois inimigos que sobraram da Guerra Fria, trata-se do fim do isolamento e ostracismo do regime de Havana no palco internacional. A normalização diplomática, em passos graduais, foi anunciada pelos dois Presidentes de Cuba e dos EUA em Dezembro. O início do degelo foi marcado pelo levantamento de uma série de restrições às viagens e exportações para a ilha, e pelos contactos de alto nível para o restabelecimento do canal diplomático e a reabertura de embaixadas – as equipas deverão voltar a reunir-se à margem da cimeira. O próximo passo, especula a imprensa norte-americana, pode acontecer já agora, no Panamá: a Administração Obama está preparada para retirar Cuba da lista oficial de Estados que patrocinam o terrorismo, que inclui também o Irão, a Síria e o Sudão. O Presidente admitiu esta quinta-feira na Jamaica que só está à espera de receber a recomendação oficial do Departamento de Estado para formalizar essa medida, e assim levantar um dos principais obstáculos ao financiamento e desenvolvimento da actividade bancária em Cuba. O passo final será a revogação do embargo comercial a Cuba que vigora desde a década de 1960, uma derradeira medida que não depende de Obama mas antes do Congresso dos EUA. O Presidente Raúl Castro não esconde a impaciência, embora saiba que o seu país não está preparado para um fim abrupto do bloqueio. O seu Governo vem promovendo medidas de liberalização gradual de algumas actividades, mas o Estado não perdeu o controlo dos meios de produção ou de sectores fundamentais. Castro chega à Cidade do Panamá “de cabeça erguida”, numa posição reforçada pelo reconhecimento do fracasso da política norte-americana em relação a Cuba, considera o especialista da Universidade de Harvard Jorge Domínguez, entrevistado pelo El País. Ainda assim, deverá resistir a comemorações triunfalistas: fora da delegação oficial, composta pelo Presidente e seus ministros, também viajaram para a capital panamiana dissidentes políticos, autores de blogues, empresários e outros representantes da sociedade civil cubana, que tencionam chamar a atenção para o défice democrático ou situação dos direitos humanos no programa que decorre em paralelo ao da conferência dos líderes governamentais. “É preciso valorizar este instantâneo da nova Cuba”, escrevia a experiente analista Julia Sweig, do think-tank Council of Foreign Relations, aconselhando os mais cépticos a “resistir ao reflexo de fazer pouco caso da representação cubana” como sendo uma encenação, “de algum modo traçada e controlada” pelo regime. “Cuba está a mudar e a abrir-se ao mundo, levando em conta as suas próprias políticas e prerrogativas domésticas – como todos os outros países presentes”, comparava. Na quinta-feira, os detractores do regime castrista que participavam num evento com o Presidente do Panamá, Juan Carlos Varela, e o antigo Presidente dos EUA, Bill Clinton, foram vaiados por apoiantes do Governo de Cuba, com gritos de “imperialistas” e “mercenários”. Alguns elementos da delegação cubana abandonaram o local, explicando que jamais aceitariam “dividir o mesmo palco com grupos pagos pelos EUA para desestabilizar o Governo de Cuba”, disse Ariana Guerra Hernandez, porta-voz de um grupo de estudantes universitários. O incidente veio expôr a outra face ou a segunda “narrativa” que também faz parte da Cimeira das Américas: a da hostilidade, confronto e polarização, representada pela “tensão” entre a Venezuela e os EUA, acentuada depois das sanções de Washington a sete dirigentes venezuelanos em represália pela violação dos direitos humanos. Aliás, naquele protesto estiveram também presentes defensores de Nicolás Maduro, que contestavam a presença dos familiares dos adversários políticos do Presidente que estão detidos na Venezuela. “Fico indignada quando penso que a organização convidou pessoas que andaram a instigar a violência”, disse à AP Yendry Velazquez de Bracho, uma das manifestantes, referindo-se às mulheres de Leopoldo López, líder do partido de oposição Vontade Popular, e do alcaide metropolitano de Caracas, Antonio Ledezma.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA