O ouro de Chico no país do alecrim
Chico Buarque está em excelente forma. Comprova-o Caravanas, espectáculo que esgotou seis coliseus em Portugal e que é um belo e inspirado retrato da sua arte. (...)

O ouro de Chico no país do alecrim
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Chico Buarque está em excelente forma. Comprova-o Caravanas, espectáculo que esgotou seis coliseus em Portugal e que é um belo e inspirado retrato da sua arte.
TEXTO: Chico Buarque esgotou seis coliseus em Portugal pela fama que lhe advém da arte: é irresistível partilhar um mesmo espaço com um dos maiores criadores de canções de sempre (e não só do Brasil), canções que fazem parte de uma memória universal. Mas se os esgotou pela fama, conquistou-os pelo mérito. A concepção e concretização de Caravanas, espectáculo tão profissional quanto emocional, sem truques de atracção fácil, mereceu (e merece ainda) todos os aplausos que lhe foram concedidos, alguns acompanhados daquilo a que poderemos chamar “pateada positiva”, ou aplausos com os pés (por norma, a pateada equivaleria a uma vaia ou a um juízo depreciativo, e assim foi usada no passado muitas vezes, não raro acompanhada de um sonoro “uuuuh”). É claro que, à simples entrada em palco, já o público se mostrava rendido, cada qual a aplaudi-lo pela memória que dele guarda: antiga, recente, esporádica, obsessiva. Caravanas Lisboa, Coliseu dos Recreios Sexta-feira, 8 de Junho, às 21h30 (Esteve 2 e 3 no Coliseu do Porto e 7, 8, 9 e 10 no de Lisboa) Lotação esgotadaA isto, respondeu Chico Buarque com o presente (absorvendo nele o passado): as canções surgiram com arranjos novos, às vezes surpreendentes (como o toque de hip-hop quase no final de Partido alto), mas com o claro propósito de dar consistência e unidade sonora ao discurso temático que a partir de Caravanas ele quis construir. Quem já conhecia de antemão o alinhamento, não teve surpresas: ele foi cumprido tema a tema, com precisão lógica mas com notável empenho na interpretação, bem longe do “debitar” de canções que afecta nalguns espectáculos a empatia com o público. Aqui, pelo contrário, Chico Buarque esteve sempre próximo, numa prestação global que não teve tempos mortos e que, abrindo e fechando com o mesmo samba (Minha embaixada chegou, esse hino à alegria de Assis Valente que brilhou na voz de Carmen Miranda), soube agarrar o público a cada passo. Da memória dos anos 70 (Mambembe, Partido alto, logo no início) a Cuba (Iolanda, Casualmente), passando por pequenos ajustes de contas, amorosos e outros (Retrato em branco e preto, Desaforos, Injuriado) ou pelas utopias amorosas (A moça do sonho, Dueto). Houve espaço para a saga do malandro, em contraponto com a dos outros malandros que ainda nos atormentam (A volta do malandro, Homenagem ao malandro, seguidos no alinhamento), voltando depois aos amores (Palavra de mulher e a belíssima As vitrines). Depois vieram Jogo de bola (canção recente, paixão antiga) e Massarandupió, que Chico explicou ser o nome da praia onde a sua filha enterrou o cordão umbilical do neto Chiquinho – por sinal o mesmo Chico Brown com quem ele agora fez esta canção, numa parceria de gerações. Outros sonhos, em seguida, trouxe-nos a imagem idílica de um mundo que não há mas que ainda assim nos enternece: “Sonhei que ao meio-dia/ Havia intenso luar/ E o povo se embevecia/ Se empetecava João/ Se emperiquitava Maria/ Doentes do coração/ Dançavam na enfermaria/ E a beleza não fenecia”. Como resistir a tal imagem?Talvez pelo blues. E foi esse o tom dos temas seguintes: Blues para Bia, A história de Lily Braun, A Bela e a Fera. Depois, Todo o sentimento, a voz e piano, instalou na sala um clima de puro encantamento (até ao arrepio, “num tempo da delicadeza”), abrindo caminho à canção que desencadeou uma estúpida polémica e ali foi recebida em glória, com aplausos pelo meio, precisamente na frase que suscitou mais críticas (“Quando teu coração suplicar/ Ou quando teu capricho exigir/ Largo mulher e filhos/ E de joelhos/ Vou te seguir. ”) Chico cantou-a de pé, à beira do palco e assim ficaria por mais umas canções. A grandeza melancólica de Sabiá (parceria com Tom Jobim) abriu caminho à anunciada homenagem ao saudoso baterista Wilson das Neves, cantando Chico (que pôs um chapéu igual ao dele) Grande hotel, canção que fizeram juntos. E porque nestes tempos “qualquer desatenção pode ser a gota d’água”, ouviu-se mesmo Gota d’água e, em seguida, As caravanas (libelo musical contra o racismo aberto ou encapotado) e a mais antiga Estação derradeira, num flashback muito bem conseguido e intencional: “Rio do lado sem beira/ Cidadãos /Inteiramente loucos/ Com carradas de razão. ”O primeiro encore anunciou-se por entre gritos sincopados, vindos da plateia, de “Fora Temer!”, aos quais Chico responderia apenas com um murmúrio sorridente, enquanto dedilhava o violão (“muito bom…”). Geni e o zepelim e Futuros amantes cumpriram, e excelentemente, a função de saciar as primeiras insistências do público, mas só com novo regresso ao palco é que o espectáculo terminaria, primeiro com Para todos, depois com Tanto mar, escrita por ocasião do 25 de Abril português, e onde ele pedia, num Brasil ainda em ditadura, “algum cheirinho de alecrim. ” Um delírio. Se já antes lhe haviam dado uma rosa vermelha, aqui recebeu um molho de cravos também rubros. E Chico, que ao longo da noite foi perdendo magicamente o ligeiro grão rouco que já lhe marca a voz, mostrando-a límpida como se recomeçasse, saiu feliz. Como todos nós.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave filha mulher racismo moça
Por que se vestiu Serena Williams de super-heroína?
Ao usar uma roupa menos comum na modalidade, a atleta brincou com a situação. Um dia depois, Serena lançou uma marca em nome próprio. (...)

Por que se vestiu Serena Williams de super-heroína?
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ao usar uma roupa menos comum na modalidade, a atleta brincou com a situação. Um dia depois, Serena lançou uma marca em nome próprio.
TEXTO: Uma super-heroína da Marvel no court de ténis? Sim, foi isso mesmo que a norte-americana Serena Williams pareceu na terça-feira quando se estreou em Roland Garros, 16 meses depois de ter interrompido a sua carreira para ser mãe. Ao usar uma roupa menos comum na modalidade, a atleta brincou com a situação, mas também explicou que o fez por questões de saúde. Ausente desde que, já grávida, venceu a irmã Venus na final do Open da Austrália de 2017, Serena entrou no court com um fato negro e colante ao corpo – recordando o que estreou no Open dos EUA de 2002, então na versão com calções. Dezasseis anos depois, o corpo da tenista mudou muito, sobretudo depois do nascimento da filha Alexis Olympia, no passado dia 1 de Setembro. Na conferência de imprensa, depois de vencer no seu primeiro jogo no torneio em Paris, Serena Williams explicou que tem tido problemas com coágulos de sangue e que as calças a ajudam na circulação do sangue. Por isso substituiu a tradicional saia, muitas vezes com calções por baixo, pelo fato. “Eu chamo-lhe o meu macacão inspirado em Wakanda. É muito divertido ”, revelou, fazendo referência ao país africano inexistente, mas que é a casa do super-herói Black Panther, da Marvel Comics. "Sinto-me como uma princesa guerreira, talvez a rainha de Wakanda", continuou, depois da vitória sobre Kristyna Pliskova, acrescentando que se sente uma "super-heroína" com o fato vestido. Fora de brincadeira, Serena Williams explicou que o uso da sua roupa de heroína se prende com o nascimento da filha. Depois do parto, passou a ter coágulos e que o macacão a ajuda. Serve para que "possa jogar sem problemas", justificou. Nesta quarta-feira, a atleta publicou na sua conta de Instagram uma novidade: a criação de uma marca de roupa em nome próprio. A atleta confessa que sempre teve dois amores, o ténis e a moda, e que, por isso, chegou a jogar de maneira menos intensa para poder estudar moda, aos 18 anos. "Depois de 15 anos de falsos começos e de pessoas da moda me terem dito 'não', isso obrigou-me a trabalhar mais", confessa Serena, acrescentando que sempre acreditou em si e no seu sonho. Por isso, é com "orgulho" que lança a sua marca Serena online e dá um conselho: "Nunca pare de acreditar em si mesmo porque vale a pena. "Serena Williams aposta em peças práticas e não muito caras, os preços não ultrapassam os 215 euros porque o objectivo é que os consumidores possam "realmente parecer bem e não ter de pagar muito caro por isso", diz à Vogue. “É o que eu quero fazer. Eu quero fazer peças que as pessoas pareçam bem e não tenham preços escandalosos", acrescenta. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para já, a marca inclui lingerie, t-shirts, calças de ganga, casacos e um vestido. Nos próximos tempos serão lançadas novas peças ainda da colecção de Verão, promete. Na Vogue levanta ainda a possibilidade de a sua filha, com pouco mais de nove meses de vida, também estar a preparar o lançamento de uma colecção. "Há rumores de que ela também tem uma coleção e fará parte dela", brincaNo site da marca, a criadora explica que os seus projectos são "inspirados por mulheres fortes, sensuais, sofisticadas, atrevidas, seguras, inteligentes, estilosas, espontâneas, que estão a viver o melhor possível ou que inventam que estão – como eu". Recorde-se que a norte-americana faz parte do círculo de amigos de Meghan Markle e que marcou presença no casamento real.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Prémio alternativo ao Nobel da Literatura tem 47 candidatos para votação – e nenhum é português
Estados Unidos e Suécia são os países com mais candidatos na longlist agora divulgada. (...)

Prémio alternativo ao Nobel da Literatura tem 47 candidatos para votação – e nenhum é português
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: Estados Unidos e Suécia são os países com mais candidatos na longlist agora divulgada.
TEXTO: Já é possível votar nos candidatos ao prémio alternativo ao Nobel da Literatura: ao todo, são 47, nenhum dos quais português. A longlist está disponível no site da Nova Academia, e a votação decorre online até dia 14 de Agosto. Com base nos resultados, serão apurados três candidatos, aos quais se juntará um quarto, nomeado pelos bibliotecários suecos. Os nomes dos quatro finalistas (duas mulheres e dois homens, por determinação prévia) serão depois submetidos a um painel de jurados especializados. Os Estados Unidos e a Suécia encabeçam a lista de nomeados, com 12 autores cada. No caso dos americanos, alguns são eternos favoritos ao Nobel: Joyce Carol Oates, Marilynne Robinson, Don DeLillo, Siri Hustvedt, David Levithan, Donna Tartt, Nnedi Okorafor, Paul Auster, Thomas Pynchon, Cormac McCarthy, Meg Rosoff e Jamaica Kincaid. Pela Suécia, Sara Stridsberg, Ulf Lundell, Jonas Hassen Khemiri, Sara Paborn, Jessica Schiefauer, Agneta Pleijel, Inger Edelfeldt, Kerstin Ekman, Jenny Jägerfeld, Johannes Anyuru, Jens Ganmane e Sara Lövestam são os nomes que chegaram à longlist. Do Reino Unido, estão nomeados Zadie Smith, J. K. Rowling, Ian McEwan, Jeanette Winterson e Neil Gaiman, seguidos, de imediato, pelo Canadá, com Anne Carson, Margaret Atwood e Kim Thúy. Silvia Avallone e Elena Ferrante são as autoras eleitas de Itália. À semelhança deste país, França também conta com dois eleitos, Nina Bouraoui e Édouard Louis, a que se junta Maryse Condé, do território ultramarino da Guadalupe. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Todos os restantes países contam apenas com um autor eleito para votação: constam da lista Jón Kalman Stefánsson, da Islândia, Chimamanda Ngozi Adichie, da Nigéria, Amos Oz, de Israel, Ngugi wa Thiongo, do Quénia, Olga Tokarczuk, da Polónia, Arundhati Roy, da Índia, Haruki Murakami, do Japão, Sofi Oksanen, da Finlândia e, por último, Peter Stamm, da Suíça. Algo surpreendentemente, o nome de António Lobo Antunes, que tem figurado sucessivamente nas bolsas de apostas como favorito ao Nobel da Literatura, não está entre os 47 candidatos. A Nova Academia foi fundada este ano por várias figuras proeminentes dos meios culturais suecos, entre as quais jornalistas e autores, como forma de protesto pelo anunciado cancelamento da atribuição do Prémio Nobel em 2018. Na origem desta decisão está a perturbação causada pelo escândalo sexual envolvendo o dramaturgo e fotógrafo francês Jean-Claude Arnault, marido de um membro da Academia. Arnault é acusado de ter assediado sexualmente 18 mulheres e de ter divulgado antecipadamente, mais do que uma vez, os escritores contemplados com o prémio. O vencedor será anunciado em Outubro, como é habitual no Prémio Nobel, e a cerimónia formal para entrega do prémio terá lugar a 10 de Dezembro. A Nova Academia será dissolvida um dia depois.
REFERÊNCIAS:
Entrevista: Avé Moreno cheio de graça
Moreno Veloso nasceu na Bahia em 1972. Tem, evidentemente, um jeito baiano de ser. É um físico atómico que sabe sambar, que samba maravilhosamente. É tentador pensar que a Física era um modo de escapar da sombra “maçante” (como repete) de ser o filho de Caetano Veloso. Talvez não. Esteve em Portugal a apresentar o disco Coisa Boa, deu show, deu entrevistas, deu-se. Cheio de graça. (...)

Entrevista: Avé Moreno cheio de graça
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.35
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Moreno Veloso nasceu na Bahia em 1972. Tem, evidentemente, um jeito baiano de ser. É um físico atómico que sabe sambar, que samba maravilhosamente. É tentador pensar que a Física era um modo de escapar da sombra “maçante” (como repete) de ser o filho de Caetano Veloso. Talvez não. Esteve em Portugal a apresentar o disco Coisa Boa, deu show, deu entrevistas, deu-se. Cheio de graça.
TEXTO: Se estava cansado, não parecia. Estava cansado e não transparecia. Viajara durante a noite, começara a maratona de entrevistas de promoção. Esta foi a quarta. Uma ilha de uma hora e meia em que deu para ir à Bahia e voltar. A maratona: “A gente aprende”. Aprende a chegar ao Japão, lá do outro lado do Brasil, chegar e seguir directo para uma livraria, cantar como se não fosse nada, como se o fuso fosse o mesmo, as pessoas em roda, atentas. A gente aprende a ser artista. Claro que já nasceu artista. Culpa da Santa Cecília, do seu 22 de Novembro. Favor não repetir que filho de peixe sabe nadar. Prato riscado. Aprendeu até, e facilmente, a tocar prato e faca. Aprendeu muito em casa, é certo. Mas aprendeu muito com a sua turma, de que fala a cada som, como quem fala de uma família alargada. E aprendeu por se ouvir, a si, como quem se ouve numa sala vazia e encontra o seu idioma. Moreno Veloso: talento espalhado por aí. Por exemplo no projecto +2, na Orquestra Imperial, nos discos que produz, na escrita de canções. Agora no Coisa Boa. Esta semana, em Lisboa, foi esse aí. Deixou ver como é a educação de um príncipe. Mas somos o mesmo. Eu sou esse menino, aí. Exactamente. Aprendi a nadar nesse mar, nessa água que está na capa do disco. Nadando do colo da minha mãe para o colo do meu pai, do colo do meu pai para o colo da minha mãe. Eles dentro de água, afastando-se cada vez mais, até eu aprender. Era muito pequeno. A primeira infância foi na Bahia. Foi onde aprendi a andar, a falar, a nadar e creio que a cantar. Me lembro de meu pai me ensinando, aquela canção que gravei no[2000]. Uma canção da década de 40, eu acho. [canta] “Eu tenho uma casinha. . . fica na beira da praia. . . ” Foi a primeira música que aprendi a cantar, inteira. Meus pais fizeram até uma gravação, depois perderam-na. Eu com três anos de idade. Sou baiano de pai e mãe e nascimento. Até aos três anos e pouco, vivi na. Nasci logo que meus pais voltaram do exílio, em Londres. Eles se casaram e foram viver em São Paulo. Meu pai foi preso em São Paulo, depois foi forçado a viver em Salvador numa espécie de prisão domiciliária, depois foi exilado. Quando puderam voltar ao Brasil, voltaram a viver em Salvador. É. Mas quando tinha 18 ou 19 anos, fiz uma tentativa de viver na. Sozinho. Fiquei uns meses, uns quatro. Já estava estudando Física. A Universidade Federal da(oonde tinha Física) era defronte da casa da minha mãe. Achei que ia ser uma coisa fácil, mas não foi. Não tinha ninguém comigo. Embora tivesse a casa, como infra-estrutura, não tinha muito mais do que isso. Passei lá uns meses e foi marcante. Foi conhecer, reconhecer afora do período tão específico em que tem as festas, a festa do 2 de Fevereiro, o Carnaval. No resto do ano chove muito. É uma cidade totalmente diferente daquela que se conhece no Verão. Adorei ficar na chuvinha. Quando fomos viver para o Rio, o meu ambiente familiar, completamente baiano, era muito distinto das outras casas que eu conhecia. Das casas de colegas como o Pedro Sá [músico, co-produtor do disco], o Carlos Artur (que tirou a foto da capa deste disco). São colegas do tempo do colégio, da mesma sala. Domenico [Lancellotti], também. A comida, completamente diferente. As pessoas, o jeito das pessoas, as reacções. É um ritmo. Tem uma culinária específica, um gosto, um modo de preparar que é meio africanizado. Talvez mais africanizado que no resto do país. Com elementos europeus, também. A família do Pedro Sá é carioca. O pai era macrobiótico. O Gilberto Gil também era macrobiótico. Mas o sentar-se à mesa na casa do Gilberto Gil, que morava no Rio, naquela altura, e o sentar-se à mesa na casa dos pais do Pedro Sá, eram universos distintos. Na, a mesa é um lugar de encontro. É a hora em que a família inteira se encara, se olha. As pessoas vão conversar, trazer as notícias à tona. Para as crianças é até uma imposição. Tem que vir para a mesa, não pode trazer revistinha, não pode estar ouvindo música — para estar livre para a interacção. Se estiver a ver televisão enquanto come, não consegue interagir com as outras pessoas. Acho que havia uma distinção. Conversas de adultos, festas de adultos, eram coisa separada de brincadeira de criança. Mas tinha hora marcada em que tudo isso tinha que se juntar. Todos os dias. Ouvi uns amigos de Minas Gerais dizendo que lá as crianças nem sentavam à mesa com os adultos. Nanão é uma questão de classe social. Nas diversas famílias que conheci, e que são de classes diferentes, nunca vi essa diferença. Me lembro de Chico Buarque falando. Aliás, estava lendo o livro novo dele. Estava me divertindo tanto! Nossa, como eu gosto desse homem. Me lembro do Chico Buarque falando que a primeira vez que ele falou com o pai dele, foi uma entrevista formal, quando fez 14 anos. Antes disso, não, porque o pai não falava com criança. Era o Sérgio Buarque de Holanda. Eu ouvia o Chico falar isso e ficava assustado. Meu pai ficava assustado. Meu Deus, como é que pode? Mas nenhum de nós era filho do Sérgio Buarque de Holanda. Mas é uma outra vida. A minha primeira namorada foi a filha mais nova do Chico Buarque. Convivi dentro daquela casa durante muitos anos. Ele ainda casado com a Marieta [Severo], vivendo com as três filhas. Era totalmente diferente [da relação do Chico com o pai dele]. Parecia a estrutura lá de casa. Todos os dias tinha um encontro na mesa. Uma casa com uma pessoa só, para mim, é inconcebível. Nem dentro de um iglu! O esquimó vai ficar sozinho? Um eremita? Tudo bem, o cara vai meditar numa caverna do Himalaia. Mas em casa?, sozinho, não! Casa tem que ter uma porção de gente dentroOlha só, é assim que a gente se sente no Brasil, nos braços do Tom Jobim, nos braços do Dorival Caymmi. E não só porque sou filho do meu pai, sobrinho da minha tia: é porque sou brasileiroNa mesa se fala de tudo. Fora da mesa era mais difícil a interacção. Talvez por problemas astrológicos. [riso]Os geminianos são difíceis de capturar. A gente não entende direito onde é que eles estão. A Maria Bethânia, o Chico Buarque, o João Gilberto, o Pedro Sá, o Davi Moraes. São pessoas difíceis. Onde é que eles estão, cadê? Tenta pegar e são feitos de vento. Há um ritmo que é mais tranquilo. Na intenção de se pronunciar. No tempo de ouvir. Essa tranquilidade é marcada por um despojamento alegre. Ouve-se muita risada na rua. No Rio de Janeiro, é quase impossível. Em Minas Gerais, se ouvir uma risada pode jogar na lotaria. Isso tudo faz parte do ritmo e se ouve no ritmo musical. Se sente essa alegria na dança, nas festas. Sim, é um povo muito festeiro — porque há espaço para a alegria. Conheço gente que chega lá e fica angustiada. “A pessoa demora muito para falar. Fico cheio de paranóias esperando. Não aguento no supermercado porque o caixa demora uma hora para registrar os produtos. . . ” Sou o contrário, adoro tudo isso. Engraçado, a primeira vez que fui a África, no país do Mali, cheguei de madrugada, cidade dormindo. Fiquei hospedado na casa de uns músicos malienses. Quando acordei, ouvi muita gente dando risada, e um cheiro de uma comida. . . Fiquei uns minutos pensando: em que lugar daé que estou? Será que acordei num terreiro de candomblé que não é o Gantois? Senti que há realmente uma ligação ancestral com aquele jeito, com aquele espaço de festejo. . O Brasil, com todas as suas influências, a japonesa, holandesa, italiana, alemã. . . Tem vilarejos no Rio Grande do Sul onde falam alemão, e o português é uma terceira língua! Nesses vilarejos, ouvem música o tempo todo. Ou seja, com todas as influências, o Brasil é um país extremamente musical. Em qualquer canto, o Maranhão, o Pará, Amazónia, encontra gente ouvindo música, cantarolando, tocando, assistindo. Natem essa ligação forte com África. O tambor que bate na África mexe com o corpo da pessoa, mexe com o coração da pessoa, explicitamente. Ele está contando uma história para o seu coração. Não é simplesmente um som batucando sobre o qual pode dançar. É uma coisa mais profunda. Em África o tambor foi feito para conversar com o seu espírito. Uma reverberação subterrânea que existe. Não é uma invenção. A pulsação, os ritmos corporais, os fluxos, todos esses ritmos tendem a se acoplar e a imitar os ritmos externos que estão chegando, e os internos tendem a se acoplar com os externos. Há uma modificação mútua. É, estou evocando uma cena tribal para dizer o quão profundo é. Essa herança de cultura africana se desenvolveu imensamente, no Rio de Janeiro, em São Paulo, na, de maneiras diferentes, dando no tal de samba. O samba, o ritmo mais brasileiro, na verdade, é uma tradução de coisas africanas. A palavra “samba” tem nos Andes, na Jamaica, em todo o lugar onde teve diáspora negra. A palavra “semba” é muito próxima. É um ritmo angolano, uma roda, umbigo. No interior da Baía tem o samba de roda. No Norte chamam “umbigada”. Tem uma roda, as pessoas estão batendo palmas, cantando e tocando qualquer instrumento, e no meio da roda entra uma pessoa para dançar. Dança, dança, dança, depois dá uma umbigada — encosta a barriga na barriga de alguém, e esse alguém vai ter de ir para a roda dançar no lugar da pessoa que estava dançando. E assim vai, de umbigada em umbigada, todo o mundo participando. Vi muito isso acontecer na casa, no quintal de minha avó [Dona Canô]. Isso é formação da minha vida, da minha infância. Dança incrivelmente, não é? Como é bom a gente ter um tio desses!Essa roda foi onde aprendi a tocar prato e faca. Pretendo, não sei se vou conseguir, tocar no[dia 8, em Lisboa; a entrevista foi feita no dia 6]. Trouxe prato para tocar. Até pode. Mas é melhor que seja um prato já usado. Vai gastar um pouco. Cada prato tem um som. Tem uns de que gosto mais. Escolhi uns pratos da casa da minha mãe. Já quebrei vários. Sobraram alguns. A porcelana portuguesa é muito boa e elaborada. Pena. Porque vou passar a faca por cima! Bom. Vou olhar no meu prato, ver se é português, mas acho que é feito em Minas Gerais. Aprendi a tocar prato no quintal da minha avó, vendo as mulheres tocando. Tocava. A irmã de Nicinha, Dona Edith, era a que tocava melhor. Tinha um ritmo no pulso, um negócio diferenciado. Todo o mundo tocava meio assim, tocando. Nicinha é uma tia emprestada. Era a mais velha de todos os irmãos. Foi a minha bisavó, mãe do meu avô que pegou a menina, que estava doente. Sarampo, muito brabo. Estava morrendo. Os vizinhos não sabiam que fazer. A minha bisavó era parteira, as duas eram. E conheciam alguma coisa de Medicina. Levou a menina para casa e ficou tratando, meses e meses. Quando ficou boa, criou-se uma situação familiar, a menina ficou vivendo com meus avós. As irmãs dela viviam defronte. Com certeza. Quando falo da minha sensação de família e de casa, lembro da, de Santo Amaro. A casa é uma casa cheia de gente. Uma casa com uma pessoa só, para mim, é inconcebível. Nem dentro de um iglu! O esquimó vai ficar sozinho? Um eremita? Tudo bem, o cara vai meditar numa caverna do Himalaia. Mas em casa?, sozinho, não! Casa tem que ter uma porção de gente dentro. Aí entra o espaço interno de cada um. A pessoa tem de abrir um espaço dentro de si onde vai encontrar sua identidade, onde vai se afirmar, onde vai saber quem ela é. Essa delimitação interna é mais profunda e pessoal do que a externa. É a pessoa que está se formando [nesta delimitação] e não uma pessoa que está sendo esperada ou imaginada ou moldada à força. Sempre adorei casas cheias. Meus pais, também. A casa deles vive cheia, a minha, também. Cabe sempre mais um. Com as suas peculiaridades, a ideia da casa cheia vai-se replicando mesmo. Parte da família da minha mulher é da; casa enorme, família enorme, uns 80 primos. Um pouco. Não estava procurando, mas talvez tenha encontrado isso. Talvez tenha encontrado um pouco do Himalaia, do espaço ermitão. Aconteceu. Eu queria estar junto da, da família de lá, dos amigos de lá. Não sei. A Física é bastante eremita. Tinha facilidade na escola para a Matemática, as Ciências em geral. Facilidade que contrastava muito com a dificuldade dos meus colegas. Eu vendo que eles achavam aquilo (que eu achava tão fácil e excitante) maçante e dificílimo. Não é? [gargalhada] Veja você. Aquilo me deixava ainda com mais vontade de seguir mais adiante. Aquela excitação era, no ambiente em que eu vivia, até rara. Tenho colegas da minha sala do colégio que foram fazer Física comigo: dois. Mais tarde, três. Num colégio com 700 alunos, três é pouca gente. . . Estudar Física tem uma característica solitária, mas não era isso que eu estava buscando. O que eu estava buscando era a natural excitação em relação às ciências matemáticas. Encontrei bastante, cheguei nos meus limites e parei. Você não acredita. Ninguém ia para o científico! Até minha mãe, que tinha facilidade para Matemática, foi estudar Letras, aprender Latim. Também acho. Adoro línguas. Não estudei Latim, ficou faltando no meu repertório. Mas estudei Grego, Russo, Italiano (uma das línguas mais bonitas do mundo), Japonês. Só que a minha propulsão mais forte era para as Ciências ditas Exactas. Quando as estudamos mais, têm muito pouco de exacto. [O estudo da Física] é só a explicitação de que não se conhece nada, que quase nada pode se dizer sobre a Natureza. O pouco que se pode, com muita dificuldade se aproxima da realidade. Dentro destas dificuldades, as pessoas se engalfinham para tentar alcançar alguma luzinha. Cada uma dessas luzinhas acaba por dissolver ainda mais a certeza que se tinha. Mas em todo o período em que estive na Física dei aula de música para adolescentes. Ensinando um pouco de canto coral, ritmos, um pouquinho de instrumentos de percussão. Era base de musicalização, não era nenhum instrumento específico. Tive aulas com professores muito importantes. O Almir Chediak foi o meu primeiro professor de violão. Tornou-se um expoente no Brasil por ter publicado livros de música popular bem feitos, com muita devoção e delicadeza da parte dele. Eu tinha nove anos de idade e estudei com ele durante anos violão clássico. Já adolescente, fui estudar violoncelo com o David Chew, um inglês-alemão que vive no Brasil. Além do Jaquinho [Morelenbaum], que não foi meu professor, mas foi meu mentor. Estudar música não é exactamente um grande prazer. É muito repetitivo, mecanicamente repetitivo. Demora muito para conseguir galgar pequenos degraus. É um estudo em que dói a carne, dói a paciência, dói a esperança. Tem uma hora em que acha que nunca vai conseguir se aproximar da música ou do instrumento, tamanha é a dificuldade. Claro que há gente com muito mais facilidade. Mas mesmo o Jaquinho, que obviamente tem uma facilidade enorme: o dedo dele sangra. Sangrou muito e de vez em quando sangra ainda. Me inspirou muito, me excita até hoje. Tive a grande sorte de poder sentar na frente dele, ver tocando de perto, aprender directamente dos dedos dele algumas das suas músicas. Mas para chegar nesse estádio, já tinha passado por anos de repetição maçante. Quando você não sabe tocar um instrumento e vê alguém tocando, a primeira sensação é romântica. Nossa, como aquilo é bonito! Emociona mesmo. Quando quer se aproximar, se esquece do romantismo. Quase que não gosta mais do instrumento quando finalmente aprende a tocar. Significa ganhar intimidade suficiente para não precisar mais de tanta repetição e exercício, e ao mesmo tempo liberdade para andar por caminhos mais pessoais. Aí vem uma gratificação sem preço. Aquele esforço todo valeu a pena, lá no final. Há que ter fé! No meio, até a fé falta. É. Estava construindo meus primeiros estúdios de gravação, em parceria com o [músico e amigo da adolescência] Lucas Santtana. Comprando equipamentos, escolhendo, ligando, aprendendo a mexer. Desenhando estúdios, construindo paredes, literalmente, cuidando a acústica, os ângulos de cada parede, o material de cada parede. Eu e minha turma: a gente gosta de tocar, de aprender, gosta de música de todos os buracos do mundo, não só da música ocidental e contemporânea; mas também adora o processo de gravação, o som que têm os instrumentos, o som que tem o equipamento que grava. Viu? Não tinha muitos na faculdade, mas eu era um deles. Desde que nasci. Nasci no dia de Santa Cecília [padroeira dos músicos]. Não tenho o que fazer! O Domenico me ligava: “Cara, pode fazer o que você quiser. Não tem por onde fugir. ” Domenico dava aulas comigo. Debatemos essa questão. Eu voltava da faculdade, ele me esperando para dar aula. Mas nunca pensei em parar, fugir. Não é o nome do meu pai ou da minha tia [Maria Bethânia]. O problema é Santa Cecília, lá em Roma. [riso] Estive na igreja dela, no Trastevere. Vi a tumba. Não. Assisti à missa, superlinda, cantada. A igreja se tornou clarissa, de monjas reclusas. Um coral fabuloso. O padre era o regente. O missal era uma partitura. Santa Cecília era uma moça de Roma. Ouvia os anjos cantando e tocando. Quem chegava perto, ouvia também. A Ciência era muito demandante. Se dedicasse a minha vida inteira àquilo, já iria ficar exausto. A minha vida tinha muita coisa. Lancei o disconessa altura. Estava produzindo, tocando, cantando pelo mundo todo. Como é que ia continuar fazendo isso e trabalhar no laboratório de uma maneira honesta? Não dava mais. Fiquei com a música, que foi aquilo com que sempre fiquei. A música não é uma escolha, é uma continuação. Percebi que gosto desse ritmo que tenho dentro de mim e que reencontrei estando na. Que seria bom se conseguisse traduzir esse ritmo para o disco, para o trabalho que estava na iminência de se fazer. Acho que conseguimos isso, Pedro Sá e eu. Ficou uma sensação de espaço delicado, calmo, também com certa festa, certa graça. Bastante. Não sei se explicitamente. Qualquer espaço de pausa que haja, mesmo numa casa cheia, naturalmente traz uma reflexão que se pode dizer espiritual. Além de tradições espirituais explícitas, vindas de África. Isso, que é muito evidente na, talvez se encontre dentro desse disco. Para dar um exemplo. Há uma história de Dorival Caymmi que meu pai contava. Ele foi ter com Dorival na casa dele, uma casa de veraneio no Rio, numa praia longe. Meu pai entrou. E Dorival: “Caetano, vem cá, para te mostrar uma coisa nova que eu fiz. ” “Será que é um quadro?”, meu pai pensou; porque ele pintava. Uma música? Foi andando pelo corredor, levando-o para um quarto onde estaria essa coisa nova. Era um quarto vazio, tinha uma poltrona, um ventiladorzinho no chão, nada na parede. Dorival falou: “Olha para isso. Me sento nessa poltrona e fico só pensando em coisa boa. ”É. Mas a coisa boa de que o Dorival falava era o espaço reflexivo que chega até a ser espiritual. Em muitas tradições religiosas isso é o fundamental. O título do disco ficou ligado a essa história, mas não foi de propósito. Foi, sei lá, um acaso. Mais curioso é o facto deser um título dado pelo Tom Jobim. Estava trazendo um computador para o Rio de Janeiro vindo dos Estados Unidos, chegando no aeroporto que hoje tem o nome dele. O fiscal da alfândega falou: “Que é essa caixa, maestro?” “É minha máquina de escrever. ” “É um pouco grande para ser uma máquina de escrever, não acha?” Aí o Tom respondeu: “É porque é uma máquina de escrever música. ”O título doestá geminado com Caymmi, com Tom Jobim. Olha só, é assim que a gente se sente no Brasil, nos braços do Tom Jobim, nos braços do Dorival Caymmi. E não só porque sou filho do meu pai, sobrinho da minha tia: é porque sou brasileiro. Metaforicamente, ok. É bom chegar ao Brasil e aterrar no aeroporto António Carlos Jobim, a que todo o mundo continua a chamar Galeão. Aterramos nos braços dele. São metáforas. Não me joguei nos braços do Tom Jobim. Conheci todos eles. “Oi, como vai?” Fiquei sentadinho. Era criança. Não tenho nenhuma história para contar que nem essas do meu pai. Tem de perguntar a uma outra pessoa que esteja fora de mim. Para mim, as duas coisas sempre aconteceram. Sempre fui e sempre vou ser o filho do meu pai. E sempre fui eu, com a minha identidade. A única parte realmente maçante são os jornalistas, que me perguntam isso sucessivamente, desde que sou criança. A gente aprende a deixar para lá, a achar graça, até, a se virar — e se vira. As pessoas em geral: algumas têm curiosidade, outras não, descobreme acham engraçado. , a curiosidade é boa. Inclusive na minha carreira. Tem curiosidade em saber o que é que o filho do Sérgio Buarque de Holanda está fazendo? “Pôxa, ele escreveu um livro. ” Lê o livro e fica maravilhado. Dá graças a Deus porque teve a curiosidade de ver o que é que o filho daquele grande escritor estava escrevendo. [Chico] é um grande escritor também. Que livro bom, que livros bons. Se a pessoa não está publicando nada, essa curiosidade é mais maçante. Não tem muito o que mostrar. Usei essas palavras para dizer a minha relação com a banda +2, com os meus amigos mais íntimos que me ajudaram nesse primeiro processo de descobrir como cantar, como fazer, como fazer disco. Quando digo que fui amparado por eles, não é só a ideia de ter sido carregado. Principalmente eles foram um espelho. É uma forma de ter a certeza do que você está fazendo porque a outra pessoa está te mostrando o que você está fazendo. Sem essa certeza, é muito difícil seguir em frente. O amparo é ter esse diálogo, franco, de amigo de escola. Será que isso ‘tá legal? Gosta, não gosta? O que é que você ouve? Isso ampara o artista que está nascendo. Meus amigos não só servem de espelho como têm em si a chama artística. São compositores de mão cheia, têm a força de cativar o público. Isso pega. O fogo pega. A graça pega. Dividir o palco com o Domenico e o Kassin? As pessoas querem ver. O Domenico anda na rua e chama a atenção. O Kassin nem se fala. Não é por serem bonitos ou feios ou estranhos: é porque têm graça. No sentido de terem alguma coisa que dá vontade de parar para olhar. De alguma forma, você traz isso dentro de você, mas também vai sendo influenciado. O sorriso traz o sorriso, o choro traz o choro. Eu tinha qualquer coisa para mostrar que se sintonizava com aquilo que os meus amigos tinham. A sintonia também pode ser amparo e graça. Gal [Costa], minha madrinha. Maria da Graça. Não conheço gente jovem com esse nome. A mãe de Gal chamava ela de Gracinha. Era lindo ouvir: Gracinha!Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Era uma coisa que estava tocando na minha cabeça. Que é que era? Ah! Era aquela música do meu pai, que estava, no outro dia, com meus irmãos, tocando. O meu irmão Zeca conheceu a música por acaso, com uma outra pessoa cantando, e foi descobrir que aquela música é do nosso pai. . A minha tia Bethânia gravou, a Marina Lima gravou. [canta] “Há muitos planetas habitados. . . imensidão do céu. . . mas nada é igual a ela e eu. ”Quero dizer que adoro música. O formato canção, do ponto de vista da comunicação, com os outros seres humanos, com o mundo, comigo mesmo, é fundamental. Se não existisse a canção, não sei o que seria de mim. Juro. Talvez eu fosse até incapaz de me comunicar.
REFERÊNCIAS:
O último dia de um filme
Cartas de Guerra é um filme a uma voz, a de António Lobo Antunes nas cartas que enviou à sua mulher, Maria José, quando foi alferes em Angola. O realizador Ivo M. Ferreira construiu um guião sobre a construção de um homem num momento em que um país agoniza. (...)

O último dia de um filme
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Cartas de Guerra é um filme a uma voz, a de António Lobo Antunes nas cartas que enviou à sua mulher, Maria José, quando foi alferes em Angola. O realizador Ivo M. Ferreira construiu um guião sobre a construção de um homem num momento em que um país agoniza.
TEXTO: A primeira cena do último dia. É um sonho. Será? Uma mulher em frente a um espelho na penumbra de um quarto. Ensaia um sorriso depois de passar bâton pelos lábios. Escovou os cabelos, brincou distraída com a aliança no dedo. Olha-se. Sentada, o rosto projecta-se no tríptico de espelhos. O sorriso vai-se desfazendo. Está no sonho de António. Estará? A imagem desenha-se, aperfeiçoa-se, no último dia de filmagens do mais recente projecto de Ivo M. Ferreira, a adaptação ao cinema das cartas que o alferes António Lobo Antunes escreveu à sua mulher, Maria José, enquanto estava em comissão de serviço em Angola, entre Janeiro de 1971 e Março de 1973. Nesses 27 meses, um tempo obsessivamente contado, houve períodos de interrupção de escrita que corresponderam aos momentos em que o casal esteve junto. O silêncio é o do encontro. Na correspondência está revelado não apenas o amor entre duas pessoas separadas contra a sua vontade, mas também o desespero, a espera, a frustração, a raiva, a angústia, o medo que foram os de uma geração: aquela que combateu na Guerra Colonial. As cartas de António Lobo Antunes a Maria José foram publicadas em livro em 2005, num volume organizado pelas filhas do casal, Maria José e Joana Lobo Antunes, depois da morte da mãe e a pedido dela. Deram-lhe o título D’Este Viver aqui Neste Papel Descripto — Cartas de Guerra, frase retirada a uma carta do poeta do Orpheu, Ângelo de Lima, dirigida ao médico Miguel Bombarda. Lobo Antunes escolheu-a para nomear o primeiro romance que acabaria no entanto por ser publicado em 1979 como Memória de Elefante. “Os nossos pais conheceram-se e começaram a namorar no Verão de 1966 na Praia das Maçãs. Em 1969 o nosso Pai licenciou-se em Medicina e foi chamado para a recruta, de onde viria a partir para a Guerra Colonial. Decidiram casar-se a 8 de Agosto de 1970, a nossa Mãe ficou grávida no mês seguinte e o nosso Pai partiu para Angola a 6 de Janeiro de 1971”, lê-se no prefácio assinado pelas filhas e que serve de apresentação dos protagonistas destas cartas. Em Janeiro de 1971, António Lobo Antunes tinha 28 anos, era mais velho do que muitos dos rapazes que o acompanharam a bordo do Vera Cruz, de Lisboa até Angola. Primeiro para Gago Coutinho, depois para Ninda — ambas no Moxico — e mais tarde para Chiúme, no Malanje. São estes os lugares de onde enviou cartas até que Maria José se juntou a ele, com a filha mais velha. “Estou a lidar com um assunto muito pessoal”, diz Ivo Ferreira para situar a conversa onde ele situa o filme: na vontade de ser o mais fiel possível à personagem que foi a de António naquelas cartas e ao mesmo tempo ser capaz de um olhar novo sobre um dos episódios mais marcantes da história recente de Portugal. E a conversa começa por esse cuidado em dizer que a matéria é delicada. Em Cartas de Guerra, o espaço é o da intimidade, mas a intenção é a de contar a história de um colectivo a partir desse testemunho privado. A mulher que se olha ao espelho é aquela que António imagina à distância da sua saudade. Grávida do primeiro filho, numa casa em Lisboa. “Quantos homens e mulheres viveram este drama provocado por uma guerra que passou a ser determinante para o resto das suas vidas? Como viver depois disso?”, pergunta Ivo Ferreira na conversa com a Revista 2 no pátio da vivenda de Benfica onde António Lobo Antunes viveu com os pais e com os irmãos. Foi esse o cenário escolhido para filmar o sonho de António, que também pode ser o delírio de António, ou o desejo, no momento em que esse homem se estrutura e se constrói também como escritor, que ganha uma consciência política. “Começo a compreender que não se pode viver sem uma consciência política da vida: a minha estadia aqui tem-me aberto os olhos para muita coisa que não se pode dizer por carta. Isto é terrível — e trágico. Todos os dias me comovo e me indigno com o que vejo e com o que sei e estou sinceramente disposto a sacrificar a minha comodidade — e algo mais, se for necessário — pelo que considero importante e justo. O meu instinto conservador e comodista tem evoluído muito, e o ponteiro desloca-se, dia a dia, para a esquerda: não posso continuar a viver como o tenho feito até aqui. ” Esta confissão feita por António Lobo Antunes no dia 15 de Maio de 1971, cinco meses depois de chegar a Angola, é central no modo como Ivo Ferreira concebeu a dramaturgia deste Cartas de Guerra. Se houve muitos motivos que levaram Ivo M. Ferreira a querer adaptar o livro, o que as cartas que compõem esse livro têm enquanto capacidade de representação de um país foi determinante para a decisão do realizador. Leitura a um filhoIvo ouviu essas cartas antes de as ler. Uma noite, chegava a casa vindo de um festival de cinema no Chile e escutou a voz da mulher. Ela lia alto. Estava grávida, parecia contar uma história ao filho. “Era tudo muito bonito”, lembra Ivo. “Perguntei-lhe o que estava a ler e ela respondeu que eram as cartas que Lobo Antunes escrevera à sua mulher enquanto estava na guerra. Eu tinha esse livro, mas nunca o lera. Achei lindo aquilo. O assunto da Guerra Colonial interessava-me muito, mas nunca me passou pela cabeça pegar nele, nunca arranjei um ponto de contacto. E agora estava ali, era óbvio. ”A voz que lia era de Margarida Vila-Nova, mulher de Ivo. “Quando ouvi a Margarida, pensei também noutra coisa, no modo como as gerações contam a história aos seus filhos e como os filhos a ouvem aos seus pais. ” É algo recorrente no seu trabalho. Em Águas Mil, filme que fez o circuito nas salas de cinema em 2011, há alguém que procura a sua identidade através das memórias, daquilo que o passado lhe conta sobre si e sobre o seu país. Aqui, também António Lobo Antunes está em construção de identidade. Como homem e como escritor. Mas projecta-se antes num futuro onde encontra apenas uma certeza: a de que a guerra não irá sair de si. Fala de um “sentimento de perda irreparável” e, a 17 de Janeiro, poucos dias após ter saído de Lisboa, escreve: “Começo a pensar que o preço que se paga para poder voltar um dia aí, e viver aí, é, realmente, demasiado. Se a opção se me pusesse novamente, não sei, francamente, não sei. ” Antes, já tinha escrito: “No que penso muito é no drama que vai ser voltar a minha readaptação a uma vida normal. ”No estado de António lê-se o estado de um país. Ivo Ferreira partiu justamente dessa premissa para escrever o guião, em parceria com Edgar Medina. “Quando li o livro, achei que era aquilo. Embora não tivesse uma estrutura dramática organizada — são cartas —, pareceu-me evidente que estava perante uma história de amor fantástica e era uma forma de abordagem a esta guerra absurda. ” Mas havia uma questão, das primeiras que Ivo Ferreira teve de resolver antes de falar com os seus produtores. Estaria a dar forma a aspectos muito sensíveis para pessoas concretas: António Lobo Antunes e as filhas. “Sou amigo da Zé [Maria José, a filha mais velha] e liguei-lhe a pedir para falar com ela e com a irmã. Para mim, era claro que elas teriam de aprovar a estrutura, a minha ideia para o filme. ”Houve hesitação. “São cartas verdadeiras de pessoas verdadeiras, que são o nosso pai e a nossa mãe”, refere Joana Lobo Antunes. Ele conhecia as cartas de trás para a frente e depois de muitas conversas, aceitámos, mas queríamos ver o guião. ” Para o escrever, além do livro, Ivo e Edgar ouviram muita gente. Sobretudo ex-combatentes. “Contaram-nos histórias, mostraram fotografias que foram centrais para perceber ambientes”, salienta. E leram romances sobre o mesmo tema escritos por António Lobo Antunes. Em 2011, o guião estava pronto. “Achei que havia um grande respeito pelas vidas verdadeiras. Aquele não era um livro de ficção, mas o filme não são só as cartas. É outra coisa. É uma interpretação cinematográfica e é preciso saber fazer esse exercício”, continua Joana Lobo Antunes, salientando outra condição sem a qual o filme não teria sido feito: “Nunca teríamos concordado se o meu pai dissesse que não. ”Filmar dentro da cabeçaÉ um filme onde se está na cabeça de alguém. Interior. A conviver com imagens e fantasmas específicos e é isso que comanda a acção. Todo o filme tem essa perspectiva. Era preciso um rosto e um corpo capazes de passar essa força e mais uma vez surge a palavra “verdadeira” para descrever a intenção de ser não apenas leal, mas verosímil. “A escolha do protagonista era determinante. Tive o cuidado de ter um grupo de actores que correspondesse de algum modo à diversidade que caracterizava aquele grupo de homens”. Eram os homens que iam para a Guerra Colonial. Vinham de todo o país, tinham rostos diferentes, sotaques diferentes, energias diferentes, idades diferentes — no caso dos oficiais —, e modos muito diferentes de olhar o mundo, muitos nunca tinham saído da aldeia e eram postos a combater noutro continente. A violência que isto representa é tremenda. Eu não podia ter actores da mesma escola, nem das mesmas idades”, comenta o realizador. Quanto a António, a escolha foi para o actor Miguel Nunes — que em 2011 foi Pablo no filme Cisne, de Teresa Villaverde. “Foi um casting relativamente grande. Havia algumas questões: tinha de ter uma presença especial, mas os seus olhos teriam de ser claros, e teria de ser bonito. E havia a idade. O António Lobo Antunes tinha então 28 anos, o actor também. Mas teria de ser um actor que conseguisse perceber este mundo. O Miguel estava em Paris, veio fazer o casting, e desde então fiquei mais ou menos decidido. A Maria José seria feita pela minha mulher, quis que fosse ela, fazia sentido, e apresentei a ideia às irmãs Lobo Antunes. Era importante para elas a imagem dos pais e era importante a opinião do António”, explica Ivo M. Fernandes, antes de repetir a segunda cena de um segundo sonho com a casa grande da Travessa dos Arneiros em total silêncio, apenas a respiração de Margarida e o ranger das madeiras. “Essas duas pessoas foram bastante discutidas entre nós”, lembra Joana. “Seriam os rostos dos pais naquela idade, aqueles que as pessoas veriam como sendo eles. E era estranho e comovente ao mesmo tempo para mim ver os meus pais na altura em que me conceberam. Eu fui feita ali, em Angola, naqueles anos. Tem uma carga simbólica muito grande. ” Sabe que é uma aproximação e que é cinema, mas “é uma escolha certa”, e diz que o pai “claro que sabe da escolha”, mas não quis conhecer o Miguel Nunes. “Para ele, já foi penoso ler as cartas na altura em que foram publicadas”, conclui Joana, que se confessa expectante com o filme. “Estou muito curiosa. Sei que o Ivo tem muito cuidado, não tem interesse em que saia ao lado do que são as cartas. ”Miguel Nunes não está neste dia de filmagens. No ecrã de um computador passam-se fotos de rodagem, “uma espécie de fotonovela que o director de fotografia fez de cada cena, em cada dia”. Ivo revê o dia de sábado. Terminaram de filmar às seis da manhã e não houve tempo para rever. Fala: “No livro, conhecemos a Maria José a partir do António”, sublinha. “Há fotografias, mas é quando lemos as cartas que ela surge com outra dimensão. ” E não há uma única voz dela. As cartas que ela escreveu foram destruídas por ele, ainda em Angola. “Acho que a dada altura ele pensou que iria morrer e não quis deixar nada”, justifica o realizador, que escolheu não dar voz a Maria José. Ela aparece em cinco cenas do filme enquanto construção mental de António. “É uma espécie de ciclo que se fecha”, refere a actriz no intervalo de uma cena. “Estava a vir para aqui e a pensar no que iria ficar dela. Pensei nela quando estava a ler, há seis anos e meio, também grávida. Depois acompanhei de perto todo o processo que desencadeou o filme. Hoje é o último dia e é o ‘meu’ dia. E penso outra vez na espera, nos longos silêncios. A minha preparação para este filme tem, de facto, anos. E é também feita de silêncio. ”De um elenco de quase 50 actores, Margarida Vila-Nova é a única presente naquele dia atípico. O único também filmado no interior de uma casa, depois de um mês a filmar em Angola, no Menengue, província de Kuando Kubango, e outro mês numa Angola encenada no Campo de Tiro de Alcochete. Em Angola tiveram de construir o aquartelamento, escolher figurantes, refazer uma ponte para chegar ao lugar onde as filmagens decorreriam. No regresso a Portugal, pararam um mês antes de se instalarem em Alcochete. Saíram de lá no sábado e encontramo-los numa segunda ao fim da tarde, numa casa onde tudo está a ser escolhido antes de ir para obras. São objectos de muitas vidas. “Esta não é uma casa qualquer. Está cheia de memórias”, diz Ivo Ferreira, olhos nos caixotes pelo chão, prateleiras meio vazias, livros empilhados, louças fora dos armários, fotografias. É num dos quartos do segundo piso, decorado como nos anos 1960 ou 1970, que a cena seguinte se passa. Há uma cama e, nela, o sono agitado de uma mulher. Ivo criou a cena quando viu aquele espaço. A original não era bem assim. Foram os espelhos que a sugeriram e essa liberdade, a da possibilidade de mudar, agrada-lhe. Leu o guião com a equipa. “Faço sempre isso”, conta. E naquele dia já todos conhecem muito bem a cabeça daquele alferes que enchia aerogramas — as cartas que dispensam sobrescrito — apaixonados à mulher. João Ribeiro, o director de fotografia, fala dessa imagem que existe na cabeça de um homem e que o filme não deve trair. Coube-lhe materializá-la. “O trabalho começa sempre pela leitura do argumento, do guião, e pela construção de um álbum de influências fotográficas mais pessoais, aquilo que as cenas me sugerem, os ambientes. Podem ser influências da fotografia, da pintura, do recorte de jornal. É a partir daí que começo a conversar com o realizador e a entrar na cabeça dele, é a minha primeira preocupação. E depois sentir o que posso acrescentar. Não quero servir um filme de um ponto de vista meramente estético, ‘fazer bonito’. Isso é fácil. Quero ser esteticamente assertivo, que funcione com a dramaturgia do filme, da história que se está a contar. ” Abre o tal álbum que construiu para este filme. Há imagens de filmes de Werner Herzog, Harry Clark, Tarkovsky. E há ainda o pintor espanhol Cristóbal Toral (n. 1940). Os ambientes interiores e as cores que coloca nas telas foram os que mais inspiraram João a construir o ambiente daquele quarto onde Margarida Vila-Nova é Maria José e compõe os lençóis antes de se deitar. “Tento resistir ao realismo. Aquilo a que estamos a assistir passa-se na mente de um homem e na mente de um realizador que segue a mente desse homem e o que se está a ver não é necessariamente o que está à nossa frente. Há quase sempre qualquer coisa para lá do que se está a ver. O Miguel Nunes tem muitos planos em que aparece sozinho iluminado por um espelho. Nos outros actores a iluminação faz-se de outra maneira. A luz vem de onde a construção dramática o pede”, diz João Ribeiro. A fotonovela da acçãoPassam-se as fotos de rodagem. A luz tem pouco do cliché africano. Há pouca luz forte, há penumbra e noite, madrugadas. “Aqui foi quando António soube que a filha tinha nascido”, diz Ivo a apontar para o olhar do actor. E ali está Tchihinga, a menina de uns quatro anos que António encontra junto ao rio após a morte da mãe e leva para o quartel e de quem cuida até chegar o avô. É uma personagem muito importante. Fizemos sete horas de casting na tribo nómada, os Koisan (Sudoeste de África). Ela veio com a família toda. Havia uma cena em que lhe pedimos para fingir que dormia e adormeceu mesmo. Há coisas fantásticas. ” E há António a escrever em muitas dessas imagens. Cartas, mas também o romance que ele perseguia. Muitas das missivas a Maria José são sobre esse esforço de chegar à literatura. A 15 de Maio, o mesmo dia em que revela a sua indignação política, abre a carta com a expectativa da escrita: “… espero mandar-te, pronto, o primeiro caderno da história”. E adianta: “Eu queria que fosse uma espécie de História Natural dos Portugueses, corrosiva, sarcástica, chamativa, caricatural, cruel, terrível, uma crónica de morte lisboeta. Tenho 28 anos e não me posso dar ao luxo de continuar a escrever porcarias. ” Esta declaração programática, vista hoje, não anda longe do que foram os seus primeiros livros. A génese está ali e o realizador torna este aspecto um dos mais sublinhados no filme, a par com o desespero do tempo, o horror da guerra — “Pode-se viver em plena paz com o medo e o horror e suportá-los ambos sem dificuldades de maior. É uma questão de nos tornarmos de pedra” (20. 11. 71) —, a política, a amizade — que seria para sempre — com Ernesto Melo Antunes, aqui o capitão Ninda, a quem mostra o primeiro capítulo do romance. “Tenho aqui o primeiro capítulo do romance. Quando quiser, gostava que o lesse”, diz-lhe e seria também assim até a morte de Melo Antunes, em 1999. “Acho que para o meu pai faz sentido manter uma certa distância, ou pudor”, salienta Joana Lobo Antunes acerca de um silêncio que já vem desde a publicação das cartas. Outro silêncio é o do livro que o filme terá de conseguir dizer. Ivo M. Ferreira tem sempre presente esse não dito ou o que nunca poderá ser dito. “Há muitos silêncios”, adianta. E imagens com voz off, a de António no ritmo da sua escrita, nas palavras que escreve a Maria José. “Como vai a casa? Tenho a certeza de que vai ficar linda, palavra. E a criança quase quase. Ontem sonhei que era a cara chapada do teu pai, palavra! Fiquei aflitíssimo. Eu gostava era que fosse igual a ti que és tão bonita. Tenho sonhado imenso com esse filho, eu que nunca sonho!” (11. 5. 71) Como é que isto fica em cinema? João Ribeiro fala da escrita com imagem, da frase que um plano conta. Pode ser um homem sentado a pensar na mulher em frente ao espelho. “Tem uma frase, um ponto final quando chega ao espelho e tem várias vírgulas. A construção dos planos também tem a ver com esse lado de escrita. Filmar é escrever de alguma maneira. Os americanos falam em escrever com a luz. Acho que é mais o movimento de câmara. Vais ali, fazes uma vírgula. Um parágrafo, ou então não fazes pontuações. ”Há um homem que vai para a guerra e uma mulher que fica, há uma barriga que cresce, há um ano que passa, há o estado mental de uma personagem. “Há alguém que claramente procura um crescimento de personalidade, que se constrói de forma dramática. E há a descrença na própria vida. Há um lado coral, vindo do teatro grego, o livro reivindica o agonizar de um povo, de um país inteiro. O filme também quer fazer isso”, termina Ivo M. Ferreira. Já foi Scarlett. Tinha oito anos e repetia com a heroína de E Tudo o Vento Levou que amanhã é um novo dia. Procurava aquela emoção, aquela entrega. Puxava as VHS para trás até partir a fita. Esta é a história de uma bela actriz que não fez Shakespeare. Faz telenovela, é líder de audiência. Achei que havia um grande respeito pelas vidas verdadeiras. Aquele não era um livro de ficção, mas o filme não são só as cartas. É outra coisa. É uma interpretação cinematográfica e é preciso saber fazer esse exercício”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
O Sr. Bodyboard trouxe o Mundial à Nazaré
Nove vezes campeão mundial na prancha curta e sem quilhas, Mike Stewart passou de jovem revoltado e obcecado por ondas a figura reverenciada por todos os adeptos destes desportos. Aos 52 anos, esteve em Portugal para disputar duas etapas do Circuito Mundial. (...)

O Sr. Bodyboard trouxe o Mundial à Nazaré
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nove vezes campeão mundial na prancha curta e sem quilhas, Mike Stewart passou de jovem revoltado e obcecado por ondas a figura reverenciada por todos os adeptos destes desportos. Aos 52 anos, esteve em Portugal para disputar duas etapas do Circuito Mundial.
TEXTO: Mike Stewart é um homem contido. Mas quando a espanhola das Canárias Alexandra Rinder se sagrou campeã mundial de bodyboard pela segunda vez, aos 17 anos, e foi carregada em ombros pelo areal da Praia do Norte no dia 30 de Setembro, percebeu-se a dificuldade de Mike em conter as lágrimas. É-lhe permitida a emoção, já que é pioneiro do bodyboard, o competidor mais velho do circuito mundial e ainda o patrocinador, mentor e ídolo de Alexandra. Uma semana antes, na Praia Grande, este havaiano esguio e calvo também tinha ficado ligeiramente atrapalhado quando o brasileiro Helliton Loureiro pousou a prancha e as barbatanas na areia e correu para o abraçar antes de se atirar às ondas precisamente para competir numa eliminatória com o veterano. “Todos nós que andamos no circuito sentimos um enorme carinho e admiração pelo Mike”, explica com largo sorriso Hermano Castro, outro brasileiro do circuito da Associação Profissional de Bodyboarders (APB) e grande amigo de Helliton. “Sentimos o maior respeito pelo ‘Tio Mike’ e temos uma dívida de gratidão por tudo o que ele fez pelo nosso desporto. Vê-lo competir ao mais alto nível com 52 anos é qualquer coisa!”, acrescentou. Para Tanner McDaniel, um havaiano como Stewart e a mais jovem aposta de uma longa linha de talentos patrocinados pelo “Sr. Bodyboard”, Mike Stewart é “um mentor e o melhor professor do mundo”. Em 2012, Tanner tornou-se o mais jovem atleta a concorrer no Pipeline Pro, a etapa rainha do Circuito Mundial, e recorda como o episódio “mais marcante” da sua vida a primeira vez que surfou Pipeline com “ondas de 14 pés”, cerca de quatro metros: “Ele [Stewart] ensinou-me tudo, onde passar a rebentação, onde apanhar as ondas, como surfar ali. E, a dada altura, apanhou uma e deixou-me ali sozinho. Nunca remei tão depressa na minha vida”, confessa, numa gargalhada. Mike Stewart nasceu em 1964 na ilha de Oahu, terra natal do Presidente dos EUA, Barack Obama, e palco do ataque japonês à base de Pearl Harbor que empurrou os americanos para a Segunda Guerra Mundial. “Sou havaiano tal como o meu pai”, afirma com orgulho à Revista 2. Um orgulho que carrega algumas cicatrizes dos episódios de racismo que viveu por ser um havaiano louro, marcado com a carga genética daqueles que os nativos de origem polinésia chamavam pejorativamente Haole. “É um termo que tem muitas interpretações, mas que pode ser traduzido como ‘aquele que não respira’, o que, dizem os locais, tem que ver com o facto de os primeiros homens brancos a chegar às ilhas do Havai susterem a respiração quando eram abraçados. Era um insulto sério”, explica Stewart. Moldado pela hostilidade e pelo divórcio dos seus pais quando tinha apenas cinco anos, o filho do meio de uma prole de três cedo se refugiou no escape mais óbvio para quem cresceu no arquipélago famoso por ter dado ao mundo o surf. “Como todos os havaianos, passávamos os tempos livres a surfar, fosse em pé, deitados ou sem prancha a fazer bodysurf. O meu pai era surfista e shaper, construía as suas próprias pranchas, por isso, naturalmente, experimentei o surf. Detestei. As ondas de que gostava eram rápidas e rasas e não conseguia colocar-me em pé a tempo, caía e levava com a prancha dura na cabeça”, conta. E rapidamente começou a fazer bodyboard, versão moderna do paipo — a prancha havaiana de madeira em que o surfista seguia deitado estava prestes a ser reinventada por Tom Morey, um ex-engenheiro aeronáutico apaixonado pelo surf e que estava a criar novas pranchas com materiais sintéticos. “O meu pai deu-me uma. Na altura era um kit que se tinha de montar e era uma coisa macia, flexível e ideal para as ondas tubulares que eu gostava. ” O destino haveria de colocar Mike Stewart e Tom Morey na mesma ilha. “Aos 14 anos, mudei-me para a Big Island [principal ilha do arquipélago do Havai]. Foi uma altura difícil da minha vida. Eu e os meus irmãos não estávamos a dar-nos bem na escola. Em Oahu frequentávamos um colégio algo elitista, o Punahou, onde também estudava Obama, com quem não me relacionava porque já ia uns anos à minha frente. A minha mãe estava sozinha e trabalhava muitas horas para nos sustentar”, relata-nos agora Mike Stewart. O único escape era o mar. Mas até isso era um problema: “Vivíamos num vale longe do oceano e era complicado lá chegar, mas passava todos os momentos que podia nas ondas. ” Lembra-se até de pedir à mãe, como presente de aniversário, que o levasse à praia e o deixasse surfar umas horas antes de seguir para a escola. Foi por causa da mudança para Big Island que conheceu Tom Morey, a quem chama “genial” e que adoptou quase como um segundo pai. “Soube que ele também lá morava e fui oferecer-me para trabalhar no que ele quisesse. Felizmente aceitou. ” Começou por limpar a oficina e fez de tudo na pequena empresa de Morey. “Tom é um tipo incrível e pensou em coisas anos à frente do seu tempo. Eu varria o chão da oficina e arrumava a cave onde ele guardava projectos abortados. Muitas vezes, agarrava neles e levava-os para casa para estudar e tentar completá-los. Pequenas coisas como fundos de prancha. Sempre fui um engenhocas que desmontava televisões e todo o tipo de aparelhos para saber como funcionavam, acho que é uma coisa de família, o meu pai era mecânico nos tempos livres e o meu avô foi engenheiro para a Lockheed [fabricante de aviões]. ”Stewart estreou-se na competição, em 1979, na Praia de Magic Sands, na Big Island. Mas não começou pelo bodyboard, onde se viria a consagrar, antes pelo bodysurf, uma modalidade em que se surfa apenas com o corpo e o auxílio, facultativo, de barbatanas ou outros pequenos acessórios. Mike conta: “Entrei num campeonato e fui segundo classificado. Acho que foi aí que lhe ganhei o gosto. . . ” O gosto valeu-lhe 15 triunfos no Pipeline Bodysurf Classic, o evento mais prestigiado do bodysurf. “Nas competições encontrei tipos de outras ilhas, com mais experiência. Eu tinha desenvolvido o meu estilo a emular [imitar]o que se fazia numa prancha de surf, eles já faziam manobras como os ‘360’, uma rotação básica que qualquer miúdo com meses de bodyboard já faz, mas que, na altura, era bastante avançado. Adaptei-me, evoluí. E comecei a ganhar. Estabeleci um recorde ao chegar a todas as finais de campeonato durante três anos. ”Mike evoluía no bodyboard e a própria modalidade também: quando surgiu o circuito mundial, em 1995, o bodyboard já era um sucesso comercial e Tom Morey via o seu sonho de democratizar o surf no bom caminho. Mais do que isso, tinha-se tornado um fenómeno de massas. Ninguém percebeu que este sucesso era, também, o princípio do desastre. Nazaré no mapa mundial das ondas grandesEm finais dos anos 1970, Tom Morey vendeu a sua invenção à Kransco, um grupo especulador que via naquela prancha uma forma de ganhar dinheiro fácil. Em 1994, a Kransco foi comprada pela Mattel, o gigante fabricante de brinquedos que quintuplicava em receitas toda a indústria do surf mas não tinha a sensibilidade para perceber a cultura dos desportos de ondas. “Trataram o bodyboard como se fosse o novo frisbee ou um qualquer brinquedo de praia”, lamenta Stewart, que passou a ser patrocinado pela Mattel nesse ano. “Ganhava cerca de 350 mil dólares ao ano e tinha acabado de assinar um contrato de cinco anos quando eles quiseram cessar o vínculo unilateralmente porque queriam deixar o negócio [do bodyboard]. Só me restava arranjar um advogado e ir para a guerra. ” Ele próprio acabou como a única vítima. Recorda: “Tinha um advogado de topo. Quer dizer, o tipo desmarcava reuniões com o Arnold Schwarzenegger! Era um tubarão dos grandes, mas acabou por me tramar. Levou-me milhares de dólares em honorários e, quando percebeu que eu não tinha mais dinheiro para lhe pagar, fez um acordo. Eu aceitei porque era jovem, ignorante e queria sair daquilo tudo. Foi um erro. Feitas as contas, após despesas, fiquei praticamente falido. ”Mas desse momento consegue retirar uma lição de vida pela positiva: “Fui obrigado a fazer um downgrade material e um upgrade espiritual. Percebi que as coisas realmente importantes da vida não se compram” (e Stewart ainda conseguiu montar a empresa Science Bodyboards e mais duas, de acessórios, Gyroll e Viper, que são prestigiadas marcas no mundo do bodyboard). “A Mattel distribuiu milhões de pranchas em grandes armazéns dos EUA com margens que as lojas de surf, com volume de vendas muitíssimo inferior, não podiam suportar e contribuiu para acicatar a hostilidade da indústria de surf e dos surfistas, que, aliás, nunca viram o bodyboard com bons olhos”, explica Stewart. O nove vezes campeão do Mundo é, talvez, o único bodyboarder a sobreviver ao escárnio dos primos surfistas. Ao ponto de a conceituada revista Surfer ter publicado um artigo em que questionava, provocatoriamente, se Stewart seria “o melhor surfista do Mundo”. O próprio encolhe os ombros e responde com um episódio: “Um dia, organizaram um campeonato em Tavarua onde eram distinguidos os melhores tubos, em surf ou em bodyboard. Eu mostrei grande controlo nos tubos graças ao uso das barbatanas, que me permitem travar e atrasar na onda para ir mais fundo no tubo, e ganhei. Ao ver aquilo, o dono de uma das maiores multinacionais do surf perguntou ao organizador do campeonato o que é que ele queria com aquela prova, se pretendia que os surfistas ficassem mal vistos. . . ”A passagem por Portugal é habitual no roteiro do Mundial que começou em 1995. Viana do Castelo foi o palco da primeira etapa fora do Havai, logo nesse ano, e o Sintra Portugal Pro comemorou em 2015 o 20. º aniversário. Mas a passagem pela Nazaré é especial para Mike, que em 2009 esteve pela primeira vez na vila piscatória transformada em capital mundial das ondas grandes. Stewart assume que agora se interessa essencialmente por ondas “grandes” e veio competir ao conceituado Sumol Nazaré Special Edition, uma prova especial só para convidados. Competiu e ganhou. Tinha na altura 46 anos. Para Mike, foi mais um troféu; para a Nazaré, uma gigante projecção mediática e uma lição com consequências para a vila e para Portugal. Pedro Pisco, da empresa municipal Nazaré Qualifica, a entidade responsável pela gestão da Praia do Norte como destino para desportos de ondas, explica: “A ideia de trazer Mike Stewart surgiu como consequência do impacto incrível que essa prova tinha tido dois anos antes. ” Em 2007, o fotógrafo Miguel Barreira tinha vencido o World Press Photo com a imagem do nazareno Jaime Jesus a ser projectado numa onda gigante. “Era difícil bater a exposição mediática dessa foto e pensámos que trazer esta lenda dos desportos de ondas poderia ser o caminho”, justifica Pisco. E, de facto, Mike Stewart passou um mês na Nazaré e desdobrou-se em entrevistas. “O Mike transcende o bodyboard e foi entrevistado por todos os media de surf nacionais e alguns europeus, mas também por meios de comunicação generalistas. Superou mesmo o impacto do prémio do WPP. ”À parte o retorno mediático que Stewart trouxe ao campeonato e à Nazaré, houve um momento que se haveria de revelar uma espécie de epifania para os homens que organizavam o Special Edition. Pedro Pisco recorda: “Havia uma ondulação enorme e perfeita na véspera do Special Edition. Estávamos todos no farol a ver as ondas gigantes a entrar. Mike Stewart, eu, o Paulo Caldeira, produtor do evento, e os meus colegas Dino Casimiro e Paulo Salvador. E, de repente, com a maior naturalidade, o Mike disse: ‘Arranjem-me uma moto de água que eu vou lá fora ver se desço uma daquelas. ’ Lembro-me perfeitamente de que o Caldeira, ele próprio bodyboarder e antigo competidor, estava sentado numa pedra a ver o mar e ia caindo. . . De repente, estava ali um especialista do surf mundial a dizer ‘é possível surfar aquilo’. Daí a trazermos o Garrett McNamara e montarmos toda a estrutura que possibilitou quebrar recordes do mundo de ondas grandes na Praia do Norte foi um passo. ”O projecto North Canyon, de que McNamara é o rosto, teve um impacto tão grande que agora a Câmara Municipal da Nazaré procura mostrar que a Praia do Norte não são só ondas de 30 metros e que tem ondas para todos, conforme sublinha Walter Chicharro, presidente da autarquia: “A nossa aposta no Mundial de Bodyboard é uma aposta sustentada, de futuro, que pretende mostrar o quão versátil é a Praia do Norte e diversificada a sua oferta. E queremos ter aqui o Mundial por muitos e bons anos. ” Para já, essa vontade traduz-se num acordo de quatro anos entre a autarquia e a APB, assinado na última quarta-feira. Daqui a quatro anos ou mesmo uma década, onde estará Mike Stewart? Há quem aposte que ainda a competir no Circuito Mundial. Afinal, competir com os melhores bodyboarders do mundo aos 52 anos não está ao alcance de qualquer um, pelo que tudo é plausível. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas qual é o segredo do seu sucesso? Para quem privou com ele, como o seu ex-patrocinado Zsolt Lorincz, proprietário da escola de bodyboard Puremotion, de Carcavelos, parte da resposta resume-se à palavra “disciplina”: “Uma vez, durante o Sintra Portugal Pro, ele passou algumas semanas em minha casa. Todos os dias tinha a mesma rotina: acordava às seis da manhã, ia treinar, regressava a casa, alongava, ia surfar outra vez à tarde. . . E a sua alimentação era supercuidada. ”Mas o próprio Mike explica que nem sempre foi assim: “Quando fiz 40 anos, estava na pior forma que alguma vez tive na vida, e foi a minha mulher, Lisa, que é nutricionista, que me encostou à parede e me perguntou se queria mesmo engordar, envelhecer, acabar. . . Ela apresentou-me a Paul Chek, um guru do exercício de alta performance que revolucionou a minha forma de estar, física e espiritual. Hoje sigo os seus ensinamentos numa combinação com uma dieta metabólica, desenhada especificamente para a minha biologia. ”O resultado, obviamente, é bom. Mas até quando irá competir no circuito mundial ele próprio não sabe responder: “Sinto-me muito bem e sem vontade de abrandar. ”
REFERÊNCIAS:
Aprender a ser pai
Milwaukee é uma das cidades com maior segregação dos Estados Unidos, e aulas sobre parentalidade tornaram-se o antídoto preferido de Barack Obama para muitos dos problemas que os homens negros enfrentam. (...)

Aprender a ser pai
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Milwaukee é uma das cidades com maior segregação dos Estados Unidos, e aulas sobre parentalidade tornaram-se o antídoto preferido de Barack Obama para muitos dos problemas que os homens negros enfrentam.
TEXTO: “Desculpem a barulheira”, diz. “Hoje estamos os dois um bocado zangados com o mundo. ”“Sem problemas”, responde o professor. “Estou para aqui a falar sobre ser pai e você está a sê-lo. ”“Tento”, diz Paul. “Mas bolas. ”Veio a empurrar um carrinho desconjuntado através de um dos piores bairros de Milwaukee e apanhou um autocarro para atravessar a cidade, não porque quisesse ir à aula, chamada Famílias Frágeis e Parentalidade Responsável, mas porque, como todos os outros que ali estão, não via outra alternativa. Para alguns dos homens ali, a condição para poder visitar os filhos era participar nestas aulas. Paul veio sobretudo por causa dos produtos de bebé gratuitos. Ultimamente, andava a comprar uma fralda de cada vez, repetindo tanto a mesma transacção que já a chamavam Especial Papá Paul: um único cigarro e uma fralda de tamanho 3 por 75 cêntimos. Esta é uma das cidades com maior segregação dos Estados Unidos, e a aula bissemanal sobre parentalidade tornou-se o antídoto preferido do Presidente Barack Obama para muitos dos problemas que os homens negros enfrentam. A sua Administração aprovou um curso de 16 aulas e gastou mais de 500 milhões de dólares para financiar centenas de aulas destas em todo o país. Uma das maiores fatias foi para o Milauwkee Norte, onde, de acordo com as estatísticas, as crianças negras começam logo no berço a ser vítimas das desigualdades: têm três vezes mais probabilidades de morrer durante o seu primeiro ano de vida do que as crianças brancas, cinco vezes mais probabilidades de viver com apenas um dos seus pais, nove vezes mais probabilidades de ingressarem em escolas com más classificações, 15 vezes mais probabilidades de viver na pobreza, 18 vezes mais probabilidades de irem parar à prisão. “Pais fortes poderão ser o primeiro e o melhor passo para resolver os problemas destas comunidades e ajudar as nossas crianças a atingir os seus objectivos”, disse Obama no ano passado numa acção de promoção destas aulas. No primeiro dia do curso, Paul teve de escrever quais eram os seus objectivos. “Escovar todas as noites os dentes à Sapphire. ” “Ficar tranquilo. ” “Encontrar um apartamento fixo. ” “Arranjar trabalho – qualquer um. ” Agora está na 15. ª aula, quase a chegar ao fim e, apesar da linguagem esperançosa do guia do curso — “Acabar com o ciclo de pobreza intergeracional!”, “ajudar a transformar a vida do seu filho numa história de sucesso em 16 lições” —, não há muito na sua vida que tenha estabilizado. Em sete meses, mudou nove vezes de casa. Foi aceite para dois empregos, mas falhou nos testes de drogas. Há vários dias que não vê a mãe da criança, uma ex-namorada de longa data que já não vivia com eles. “A Sapphire tem saudades tuas. Vens vê-la?”, perguntou-lhe uma vez por email. O silêncio que se seguiu fê-lo pensar que a filha poderá tornar-se em mais uma dessas crianças negras cujo futuro dependerá de só um dos pais e esse pai era ele. Na primeira aula recitou 20 estratégias para gerir a raiva. Na quinta, teve de imitar métodos eficazes de disciplina: “Dizer ‘não’ com firmeza e repetir as vezes necessárias”, lia-se no livro. Agora, a professora pede aos alunos que se levantem para um exercício em grupo, por isso Paul agarra na bebé e junta-se aos colegas no centro da sala. A professora manda-o ler uma série de “declarações sobre valores”, e os alunos vão para o lado direito da sala se concordarem, para o esquerdo se discordarem e para o centro se não tiverem a certeza. “Homens e mulheres são igualmente capazes de tomar conta dos filhos”, diz a professora, e imediatamente todos os homens começam a mexer-se, metade para a direita, metade para a esquerda, chocando uns com os outros enquanto se deslocam. “Oh, bolas, não”, diz um. “Ai não que não sou capaz”, diz outro. Paul ficou sozinho no centro da sala, sem ter a certeza. “Um homem que chora facilmente é fraco”, diz a professora, e os homens giram novamente pela sala. “Não faz mal ser violento se se foi desrespeitado”, continua. “Um homem deve ser capaz de aceitar qualquer emprego para sustentar os filhos. ”500 milhões de dólares (440 milhões de euros) investiu a Administração Obama em centenas de cursos de Parentalidade por todo o paísPaul continua sozinho no meio da sala, olhando para todos a deslocarem-se, encostando a bebé ao ombro. “Vá lá, Paul, de que é que estás certo?”, pergunta a professora. “De ser honesto”, responde. “Você está a pedir-nos respostas simples de sim ou não, e eu posso achar que as duas coisas estão certas. É muito mais complicado do que você quer fazer parecer. ”Ela foi o seu primeiro filho e, quando descobriu que ia ser pai, ficou entusiasmado e assustado ao mesmo tempo. Estava desempregado, falido, solteiro e ainda sem o liceu terminado — um pai adolescente acidental, precisamente aquilo que a mãe o avisara para não ser. Durante vários meses escondeu a gravidez da mãe, escondeu-a de quase toda a gente, até que em Agosto a sua filha nasceu, com 2, 7 quilos, o cabelo desalinhado, a pele macia e resultados normais no seu primeiro check-up clínico. “Saúde: boa. ” “Etnia: negra. ” “Factores de risco: nenhum. ”A primeira crise da vida dela surgiu algumas horas depois. “Preciso de uma cadeirinha para o carro urgente”, escreveu Paul na sua página de Facebook, quando a enfermeira explicou que não poderiam sair com a bebé sem uma. Ele não tinha telefone nem computador, por isso ligou-se ao Facebook através de um tablet barato que partilhava com um amigo. “Preciso de uma agora!”, escreveu. “Estou no Hospital Sinai. Por favor, alguém me ajude ou me empreste 50 dólares. Eles vendem aqui uma. Por favor, ajudem-me!”Conseguiu que um familiar lhe emprestasse a cadeira, pediu o carro a um amigo, comprou alguns produtos de bebé e levou a bebé e a mãe para casa, um apartamento de um só quarto de um amigo dele. “Eu vou ser o melhor pai para esta menina”, escreveu na página de Facebook. E só nos meses seguintes é que percebeu o que isso implicava. “Encaixo-me em qualquer coisa e faço o que for preciso por um emprego”, escreveu em Setembro. “Entrevista de trabalho. Continuo a rezar”, em Novembro. “Mata-me estar a perder tantas coisas da vida da minha filha”, disse, em Dezembro, quando a Sapphire partiu com a mãe para casa de uns parentes no Minnesota. “Dores de cabeça do outro mundo”, escreveu em Janeiro, quando elas voltaram do Minnesota e a bebé ficou a viver com ele. “Cansado, irritado, stressado e mais”, escreveu em Fevereiro, quando a mãe começou a aparecer cada vez menos e ele a interrogar-se se deveria lutar pela guarda da criança em tribunal. “Alguém quer comprar uma PlayStation?”, lançou em Março quando ficou sem dinheiro e já tinha gasto os seus 198 dólares de cupões de alimentação. “Peço 130$ mas é negociável. Preciso de coisas de bebé. ”Agora estamos no final de Abril e ele acabou a aula de parentalidade e levou a Sapphire para casa da sua mãe no Milwaukee Norte, onde têm ficado desde há várias semanas. A mãe, Bindu, está sentada na sala a ver uma reportagem do noticiário local sobre uma família que vivia ali perto. Tinham feito um churrasco na tarde anterior e sem que ninguém reparasse uma criança de dois anos foi para a estrada e foi atropelada por uma carrinha. O motorista parou e gritou a pedir a alguém que chamasse o 112, mas, em vez disso, o tio da criança apareceu na varanda, deu um tiro na cabeça do motorista e a seguir matou o irmão de 15 anos do bebé por não ter tomado conta dele. “Uma total falta de controlo nas nossas ruas”, afirmou o presidente da câmara numa conferência de imprensa para comentar o sétimo e oitavo homicídios da semana. “Só me apetece pegar em mim e na Sapphire e escavar um buraco como o Bugs Bunny”, diz Paul quando a reportagem terminou. “Vai-te embora deste bairro”, aconselha Bindu. “É uma confusão e está cada vez pior. ”“Acredita que estou a tentar. ”“Estuda”, diz ela. “Compra um telefone. Compra um carro. Arranja um emprego. Arranja uma conta bancária. Faz um plano para a tua vida. ”“Já disse que estou a tentar. ”“Um bebé precisa de estabilidade, Paul. Não pode ser na base de um dia de cada vez durante 18 anos. Tens de lhe dar alguma coisa a que se agarrar. ”“Ok, já percebi”, diz, virando-se novamente para a televisão. Paul é o filho mais novo de Bindu, que o acha parecido com o pai: coração mole e cabeça dura, tudo boas intenções sem a capacidade de agir a seguir. Tatuou nos braços os nomes e datas de nascimento dos irmãos, como homenagem à família, mas enganou-se numa das datas. Esteve muitas vezes à beira do limite — foi suspenso da escola, mas nunca expulso, consumia marijuana mas não a vendia. E aos 19 anos tinha o que poucos homens negros do seu bairro conseguiam ter: estava entre os 42% sem registo criminal; os 35% com um diploma de liceu e os 14% dos pais que vivem com os filhos. “Um mestre em quase evitar o desastre”, diz-lhe Bindu. Dissera a mesma coisa sobre o pai, até que ele foi morto durante uma discussão, tinha então 39 anos, andava Paul no 8. º ano. A polícia não resolveu esse homicídio, nunca sequer apontou para as pistas, e as experiências de Bindu em Milauwkee dão-lhe poucas esperanças de que alguma vez o venha a fazer. Bindu trabalhou para uma organização de ajuda aos sem-abrigo, entregando água debaixo de pontes e ouvindo histórias sobre como as infra-estruturas da cidade não conseguem ajudar as minorias: escolas públicas onde bem menos de metade dos alunos não desistem antes do fim; longas listas de candidatura a habitação social; prisões com o dobro do rácio nacional de homens negros e uma disparidade de acesso à saúde tão grande que os brancos vivem quase uma década mais do que os negros. “Se és negro e queres ser saudável, não vás viver para Wisconsin”, aconselhou uma vez o vereador da saúde daquela cidade. Mas Bindu vive em Wisconsin, num dos seus piores bairros, onde a iniciativa parental de Obama foi publicitada em panfletos colocados em barbeiros, bancos alimentares e abrigos para os sem-abrigo. “Pais fortes tomam os assuntos de família em mãos”, lia-se num deles. Ainda que muita gente tenha considerado que esta era uma solução demasiado curta para um problema de racismo sistemático tão grande, Bindu achou que uma aula de parentalidade seria pelo menos um sítio seguro e construtivo. Convenceu Paul a inscrever-se e disse-lhe que poderia deixar de dormir nos sofás dos amigos e ir viver com ela, desde que cumprisse as regras: nada de vaguear pelo bairro à noite; nada de visitas da mãe da criança, em quem não confiava. “Não posso ser a tua rede de segurança para sempre”, disse-lhe. Decidira que não iria dar-lhe uma chave de casa. “Está na hora de dormir”, diz quando Sapphire se prepara para brincar na cama. “Vá lá, o pai precisa de uma folga, miúda. ” “Amanhã levantamo-nos cedo, vamos fazer com que alguma coisa aconteça. Vamos começar do zero, nós os dois. ”“Fecha os olhos”, diz, mas como Sapphire não pára de olhar para ele, fecha os seus. Na manhã seguinte ao acordar tinha uma mensagem de esperança na página de Facebook: “Pode ser que haja um trabalho. Liga se puderes”, escreveu o antigo orientador do liceu. Como Paul não tem telemóvel e não quer esperar, arranja o saco de fraldas, enrola Sapphire num cobertor e atravessa a cidade para se encontrar com ele no liceu Pulaski. Terminara o liceu no ano anterior e o director tinha escolhido o seu caso para o aclamar como uma “história de viragem”. Começara a escola meses depois da morte do pai, era um jovem que amolgava cacifos nos corredores, mas tornara-se um dos excêntricos mais populares do liceu, com as suas meias fluorescentes e cabelo despenteado. Cozinhava a comida jamaicana do pai e vendia-a no refeitório. Ganhou medalhas de honra no último semestre e um professor sugeriu que se candidatasse a uma escola de culinária ou até à faculdade. “Tu consegues”, escreveu-lhe na avaliação. Agora, Paul entra no corredor e encontra esse mesmo professor, que olha para o bebé que ele tem nos braços. “É teu?”, pergunta-lhe. “Iá”, responde Paul. “Parabéns”, diz-lhe. Muda a fralda a Sapphire, sobe as escadas e dirige-se ao gabinete do orientador. “Falou num emprego?”, pergunta Paul. O orientador explica que uma amiga está à procura de alguém para tomar conta de pessoas num lar de idosos, sem exigir experiência, e paga dez dólares à hora. “Precisam de alguém que possa começar já. ”“Eles fazem testes de droga?”, pergunta Paul, lembrando-se nos exames à urina em que falhou. “Não”, responde o orientador. Aponta para as suas tatuagens. “Talvez precises de tapar essas folhas de marijuana que tens no braço, transformá-las em corações ou coisas do género. Mas o fundamental é ligares-lhe esta noite. ”“Vou pedir um telefone emprestado”, diz Paul. “Ou talvez possas pegar no carro e ires lá ter com ela. ”“Não tenho carro, mas apanho um autocarro. ”“É bastante longe, em Waukesha. ”“O quê? O trabalho é em Waukesha?”, pergunta Paul. São três mudanças de autocarro. É um subúrbio sobretudo de brancos onde 83% das crianças vivem com ambos os pais, 90% das famílias são pelo menos de classe média, 93% dos adultos terminaram o liceu e 95% estão empregados. “O que é que eles me vão deixar fazer em Waukesha?” Ouve o orientador traçar um plano: tapar as tatuagens, conseguir o emprego, poupar dinheiro suficiente para arranjar casa perto do trabalho e ir viver para Waukesha com a Sapphire, onde ela poderá aproveitar todas as vantagens de uma América que Paul nunca conheceu, uma América a 14 quilómetros de distância. “Waukesha”, diz o orientador numa voz alta e prolongando a palavra, acenando com a cabeça. “A resposta pode estar mesmo aí. Ela vai crescer bem. Terá amigos ricos. ”“Pode ir para uma dessas creches com jardim e um grande recreio”, afirma Paul, acenando também. “Irá para a faculdade”, responde o orientador. “Vai ser médica ou coisa do género”, acrescenta Paul. Promete ao orientador que irá telefonar para conseguir o emprego e começar a atravessar a cidade. A Sapphire fica irrequieta e ele encosta-a ao peito. Ela baba-lhe o ombro mas ele não liga. “Waukesha”, repete, tentando habituar-se à ideia, porque se calhar até pode resultar. Terá conta no banco. Poupará dinheiro para voltar a estudar e exigir a guarda total de Sapphire. “Por esta pequenina aqui, eu ultrapasso tudo”, escreve no Facebook com uma foto dela. E quando chega a casa da mãe parece-lhe que é já um sítio de onde ele está prestes a sair. “Uma semana e já estou fora”, diz, conduzindo Sapphire até à porta. Puxa a maçaneta, mas ela não roda. Bate e ninguém responde. Empurra a porta com o ombro só para ter a certeza. “Bolas. Está trancada. ”Senta-se no passeio à espera que a irmã chegue com a chave. Ao fim de alguns minutos, Sapphire começa a chorar, por isso ele embrulha-a no cobertor e dá-lhe o resto do leite. Dez minutos depois, dois adolescentes passam por eles e Paul detém-nos. “Ei, dêem-me um dólar”, diz-lhes Paul. Mas os miúdos continuam a andar. Fuma um cigarro, acende outro. Aperta ainda mais o cobertor à volta de Sapphire. “Desculpa”, diz-lhe. Um vizinho vem para a rua para conversar enquanto esperam. “O que aconteceu?”, pergunta. Paul conta-lhe a ida ao liceu, o orientador, o trabalho de dez dólares à hora. “Waukesha? Iá, tu ias encaixar bem em Waukesha”, disse o vizinho, rindo-se da ideia. E algo na sua reacção faz Paul aperceber-se do ridículo que aquilo parece. Ele não tem emprego. Não tem corações nos braços ou um carro que o leve para o trabalho, ou dinheiro para alugar um apartamento nos subúrbios. Ele nem sequer tem a chave da sua própria casa. “Waukesha. Eu sei, bastante estúpido não é?”O que ele tem é uma bebé e mais aulas de parentalidade na próxima tarde, a última das 16 sessões de Obama. A professora fala das cinco fases de desenvolvimento da criança. Fala sobre tratar as mães com respeito. “Parabéns, graduado!”, lê-se no certificado com o nome de Paul impresso. Antes de sair, a professora puxa-o para o lado. “Este não é o tipo de coisa que se dá por terminada”, diz-lhe. “Isto é para conseguires autodisciplina. É a base da masculinidade. Queremos continuar a ajudar-te. ” Paul continuará a ir lá, por causa dos produtos para bebé grátis e pensando que talvez precise de ajuda. “Hoje vens?”, pergunta por email à mãe da Sapphire, a caminho de casa. Ela diz que sim. Leva Sapphire para casa, liga os desenhos animados e espera. É assim que passam a maior parte do tempo ali, da cadeira para o sofá, do sofá para outra cadeira, bebendo refrigerante e com latas de leite em pó para bebé por todo o lado. Senta Sapphire nos joelhos, balançando-a, enquanto um desenho animado sobre um carro falante dá lugar a outro de uma casa falante. “Ainda vens?”, pergunta à mãe da criança, e espera que ela responda. Coze batatas e deixa Sapphire comê-las com as mãos. Ela cospe-lhe para o ombro e ele muda de camisola. “Tããããooooo chateado”, escreve na página do Facebook. “Quem quer ir passear comigo e com Sapphire?” Até que ouve a porta da entrada abrir. É Bindu, que chega do trabalho, agarra-lhe o ombro e beija a bebé. “Telefonaste para saber do emprego em Waukesha?”, pergunta-lhe. “Ainda não. ”Troca os desenhos animados pela MTV e depois pelo American Idol. O sol já se pôs. Começa a adormecer no sofá, mas Sapphire puxa-lhe a barba. “Deixa-me dormir”, diz ele, mas agora ela está a mastigar o controlo da televisão, a puxar-lhe o braço, a exigir atenção. “O que é que queres?”, pergunta. E o que ela quer é ser pegada ao colo, depois gatinhar, depois comer, depois brincar ao esconde-esconde, depois gatinhar outra vez. “A sério?”, diz Paul, colocando-a numa cadeia de baloiço, fechando os olhos. Bindu volta para a sala e põe a mão no seu ombro. “Já telefonaste?”, pergunta-lhe. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Paul levanta-se e sai da sala, atravessa a porta e vai para o beco. “Por quanto tempo vamos ficar aqui empatados? Semanas? Anos?” Olha para a rua e vê a paragem de autocarro e por segundos interroga-se como seria se se fosse embora: em sossego, sem perguntas, sem carrinho, sem bebé. Mas mesmo daqui ele ouve a Sapphire chorar. Apaga o cigarro e volta a entrar em casa. Quando ela o vê, estende-lhe os braços. Ele tira-a da cadeira, põe-na ao colo e dá-lhe o que pode dar. “Está tudo bem”, diz. “Estou aqui. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte homens filha escola homicídio filho tribunal prisão ajuda negro homem racismo adolescente social criança género mulheres pobreza morto negra
Em busca da história não escrita da libertação de Angola
Durante mais de cinco anos uma equipa angolana percorreu o país para registar em vídeo as histórias, na primeira pessoa, de quem viveu e lutou contra o colonialismo português. (...)

Em busca da história não escrita da libertação de Angola
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Durante mais de cinco anos uma equipa angolana percorreu o país para registar em vídeo as histórias, na primeira pessoa, de quem viveu e lutou contra o colonialismo português.
TEXTO: Os angolanos Mário Bastos e Jorge Cohen têm ambos 28 anos, nasceram, portanto, no final da década de 1980. O que sabiam sobre os anos que levaram à independência do seu país, faz 40 anos a 11 de Novembro, era “nada”, bem, “quase nada”. Na escola aprendem-se umas quantas datas históricas sobre a Luta de Libertação Nacional, como é conhecido no país o período que vai de 1961 a 1975, os nomes de algumas figuras históricas e políticas, mas é sobretudo uma história institucional, muito seca, muito sem vidas. Mas como era viver sob o domínio colonial português? Como eram as vidas das pessoas? Como se fez a resistência? Como era a vida dos guerrilheiros no mato? O que comiam? O que vestiam? As respostas a estas e outras perguntas não estão em manuais escolares angolanos mas são possíveis de encontrar nas 894 horas de filmagens que resultaram das entrevistas feitas a 671 pessoas, durante os cinco anos que durou o megaprojecto documental Angola, Trilhos da Independência. Arrancou a 5 de Janeiro de 2010 pelas mãos da Associação Tchiweka de Documentação, criada em 2006 para receber o espólio documental de um dos históricos da independência de Angola e do MPLA, Lúcio Lara, filho de mãe angolana e pai português. No mato, os guerrilheiros angolanos que lutavam contra as tropas portuguesas tinham um nome de guerra, Tchiweka era o seu, é o nome da aldeia (na província do Huambo) de onde era originária a família da mãe. O objectivo principal da Tchiweka, que fica em Luanda, é a recolha, conservação e divulgação de materiais relacionados com a luta de libertação do país. Nos rés-do-chão desta vivenda de dois andares, no bairro de Alvalade, próximo de uma zona de embaixadas da capital angolana, estão catalogados milhares de documentos, entre fotografias, cartas, documentos históricos, como o manifesto original do MPLA, de 1956. Mas também panfletos de propaganda, tanto os que na época eram distribuídos pelo exército português (“Apresenta-te à tropa e serás bem tratado” ou “Onde está a independência que os vossos chefes andam a prometer desde 1961? Não acredites em tal mentira”), como pelo MPLA (“Soldado português do exército colonial. Abandona os estrangeiros. Deserta” ou “Soldado português. A guerra colonial é um crime que te obrigam a comer mas que só tu… Pagarás com a tua vida”). Há correspondência pessoal de Agostinho Neto (o primeiro Presidente angolano), há, por exemplo, um livro que reúne cartas da guerrilheira do MPLA Deolinda Rodrigues, raro por ser de uma mulher, que, em 1967, escreveu: “A cruzar o rio Luvu, surgiram dois bombardeiros tugas. (…) Seguiu-se a travessia em corda e pisei Angola depois de quase oito anos de ausência: beijei o solo. ” Acerca da repressão da PIDE sobre os angolanos, pergunta: “E tu, Deus, que tens visto tudo isso, todo esse sofrimento, podes mesmo dormir? Ficas mesmo tranquilo? Pois, estou pasmada contigo, Deus. ”Na sala de consulta da associação há uma dezena de secretárias para os leitores, que são sobretudo investigadores e estudantes. Ali está muita documentação em papel, muita história, mas, ao mesmo tempo, tão pouca. “Estamos num país africano. Onde a tradição escrita ainda não tem muita força”, diz Wanda Lara, filha de Lúcio Lara, psicóloga tornada documentarista pela história da família — “alguém tinha de o fazer”. Explica que esta é, desde logo, uma questão cultural — “a importância que se dá à escrita em África não é a mesma do que na Europa”. Não por acaso, “as primeiras perspectivas de África são de europeus”, são as que ficaram escritas, nota. Ao mesmo tempo, “em África, muita gente é analfabeta”. Depois, as próprias “condições da luta anticolonial” — feita de clandestinidade, de itinerância, de locais efémeros, alguns campos de guerrilheiros eram feitos de paus, paredes de capim, telhados de folhas, como se vêem em fotografias da época — “fizeram com que se perdessem fotos e objectos durante a guerra”. Ao mesmo tempo, à luta pela independência, veio colar-se o que Wanda Lara designa como “a segunda guerra”, ou seja, a guerra civil que, logo em 1975, começou, opondo três movimentos independentistas (MPLA, UNITA, FNLA). Aos 14 anos da luta da libertação, o país passou quase três décadas de uma guerra civil que só terminou em 2002. Neste outro conflito, ainda “mais gente perdeu objectos, documentos. As instituições perderam registos. Ficou então o país com esta parte do seu percurso histórico muito por registar”. “Temos este acervo connosco, mas muita gente teria coisas a dizer e não têm muitas coisas escritas. Há centenas de pessoas que foram presas que não tinham o hábito de escrever, os que tinham perderam. ” Uma rara excepção é o escritor Luandino Vieira, que tem vários escritos do tempo em que esteve preso no campo prisional do Tarrafal, em Cabo Verde. “Os anos estão a passar e muitas pessoas que estiveram envolvidas nunca falaram, não têm como se expressar. Sentimos essa pressão. ‘Vocês não ouviram x e y. ’ Já passaram 40 anos. As pessoas sentem necessidade de contar a sua versão do que viveram. ”Daí a necessidade de, como associação documental, se terem de lançar em novos voos, com novas ferramentas. “O multimédia permite dar importância à oralidade que em África é mais valorizada do que a escrita. ”Subamos então ao primeiro andar da associação, o estúdio onde trabalham Jorge Cohen, produtor do projecto Angola, Trilhos da Independência, e Mário Bastos, o realizador. O coordenador e mentor do projecto é Paulo Lara, general e filho de Lúcio Lara, que não poderá estar hoje para explicar o projecto. Deixou a tarefa a cargo destes dois jovens da Geração 80, o nome da produtora que trabalhou durante cinco anos no projecto que terminará este ano com um documentário que será estreado no dia em que se assinalam os 40 anos da independência, e que já tem título escolhido: Independência. O desafio é transformar quase 900 horas de filme em 1h45. Mais do que isso, o objectivo é criar um documentário destinado aos jovens da geração deles e mais jovens que desconhecem quase tudo sobre este período da história do país. Depois, espera-os o longo trabalho de organização do material que vai estar acessível ao público, ainda sem data. Mário Bastos constata que se há algumas pessoas, ex-combatentes e pessoas que viveram o período colonial, que falaram, pelo menos em família, desse tempo e do que viveram, outros nem tanto. “Muitas são memórias vividas mas não contadas. ” “Se eu contar aos meus filhos que houve pessoas que comeram lama com jindungo [malagueta], eles vão achar que é mentira”, contou à equipa o guerrilheiro Miseraque Boa dos Santos, nascido em 1945. Mas a razão porque muita dessa vivência ficou circunscrita à geração que a viveu tem, às vezes, que ver com o “não se dar importância de ter vivido um momento histórico. Foi mais uma guerra”, constata Mário Bastos. Uma das pessoas que morreram entretanto foi João Vieira Lopes, de quem foi recolhido o depoimento mais longo: 12 horas de gravação, quando a média é de duas horas, recorda o realizador Mário Bastos. Foi também, na opinião dos dois, um dos mais marcantes. Este antigo guerrilheiro fez parte da geração que, após concluir os estudos no liceu em Luanda, embarcou para Portugal para ir para a faculdade. Em Lisboa, foi presidente da Casa dos Estudantes do Império, criada para perpetuar a dimensão imperial do Portugal do Estado Novo, mas que acabou por ser um viveiro de dirigentes independentistas que chegaram ao poder nas ex-colónias. No seu testemunho, recolhido em 2010, conta como, depois do início da luta armada em Angola (a 4 de Fevereiro de 1961), foi um dos que planearam a fuga de estudantes africanos que viviam em Portugal. Falou da dificuldade “da selecção”, de escolher quem ia e quem ficava. “Uma boa parte de nós estava praticamente no último ano dos cursos superiores. . . Alguns de nós já tinham mulheres e filhos. Largar aquilo para um desconhecido. . . Era muita responsabilidade arrastarmos toda aquela gente para fora e depois o que fazer deles?” Em Junho de 1961, saem de Portugal cerca de 100 jovens das ex-colónias portuguesas, em duas acções que os levaram a atravessar o rio Minho e todo o Norte de Espanha rumo a França. Fez parte deste grupo, por exemplo, o ex-Presidente moçambicano Joaquim Chissano. O episódio ficará para a história como a “Fuga dos 100”. Às entrevistas planeadas juntavam-se muitas espontâneas, de pessoas que conheceram nas viagens e que queriam contar as suas experiências. Quando chegavam às povoações (63% das entrevistas foram fora de Luanda), a equipa convocava memórias: montavam uma tela gigante onde projectavam imagens desse tempo. Era o chamariz. Percorreram de carro mais de 20 mil quilómetros. De forma espontânea, surgiu também uma forma diferente de as pessoas darem a conhecer esse tempo: representações teatrais. “As pessoas não têm em casa fotografias desse tempo, os angolanos não tinham máquinas fotográficas. ” Nos excertos de vídeos disponíveis no site do Trilhos, é possível ver recriações de combates de homens que foram guerrilheiros, e que agora são idosos, empunhando o que parecem ser paus de vassoura, a gritar ferozmente contra um inimigo passado. Mário Bastos explica que estas representações são “a forma de as pessoas transmitirem conhecimento. Fazer peças de teatro é como ter alguém que nos mostra uma foto e diz ‘isto era assim’”. Em 671 entrevistados, mais de metade foram do MPLA, 105 foram da FNLA e 53 da UNITA. Os restantes foram de outras organizações ou pessoas independentesNesta amostra de entrevistados, estão ex-combatentes. Um, da zona do Mayombe, conta que a fome no mato os obrigava a comer até tartaruga, ou há quem descreva o andulo, vestuário feito a partir de casca de árvore, que os guerrilheiros faziam para se protegerem do frio no mato. Tendo a associação Tchiweka fortes ligações ao MPLA, o projecto conta com o apoio institucional do Governo de Angola, respondem que houve uma tentativa de recolher testemunhos das várias partes mas, revelam os números, há uma desproporção: “Em 671 entrevistados, mais de metade foram do MPLA, 105 foram da FNLA e 53 da UNITA. Os restantes foram de outras organizações ou pessoas independentes”, respondem. Também há pessoas que não combateram, mas que têm coisas a dizer sobre como era a vida na altura. A camponesa Marta Miguel, nascida em 1943, surge em vídeo a dizer como, com 15 anos, foi escolhida para trabalhar na colheita de café e como as mulheres “levavam palmatórias por não encherem um saco de café por dia”. Depois do início da luta armada, Marta acaba por seguir com o marido e os filhos para as matas para se refugiar dos ataques aéreos: “Os portugueses atacavam muitas vezes. . . Não conseguíamos acartar água, não conseguíamos arranjar comida. Muitas vezes, só conseguíamos dar cuspo aos nossos filhos. ” Soube da independência pela rádio. Ou o testemunho de um luandense que lembra a divisão urbana dentro de Luanda, com “o bairro dos indígenas”, e de como os “chauffeurs de machimbombos [autocarros] tinham de ser brancos”, nem os mulatos podiam sê-lo, ou de como alguns colonos obrigavam as mulheres a cortar as tranças por ser considerado “cabelo indígena”. E, não por acaso, o início do que vai ser o documentário, ainda temporário, arranca com imagens de camponeses nos campos a colher algodão. Em Portugal, o 15 de Março de 1961 marca o tiro de partida da guerra colonial, o momento histórico que levará Salazar a declarar “para Angola, rapidamente e em força”. Nessa data, a União das Populações de Angola (UPA) matou centenas de portugueses e africanos em fazendas no Norte de Angola. Já em Angola, a revolta da baixa de Cassange (no Norte de Angola) é considerada o momento simbólico na luta contra o colonialismo por excelência, e é o Dia dos Mártires da Repressão Colonial. Foi a 4 de Janeiro de 1961 que ocorreu um levantamento de trabalhadores da Cotonang protestando contra as condições de trabalho impostas por esta companhia algodoeira. Os protestos são reprimidos pelo exército português e resultam num massacre com centenas de mortes. O que este trabalho permitiu foi também mapear outros locais históricos não tão famosos. Nas imagens, vê-se a chegada da equipa a uma antiga base de guerrilheiros da qual só resta vegetação. Em sítios sem qualquer vestígio físico, cruzaram vários testemunhos e foi a equipa do Trilhos a registá-los em coordenadas GPS. Para chegarem a alguns deles, tiveram de percorrer a pé cerca de uma centena de quilómetros. Por exemplo, a equipa foi encontrar gravado no tronco de uma árvore um dos poucos vestígios do quartel-general criado pelo primeiro grupo organizado de guerrilha, o Destacamento Cienfuegos. Ainda se lê no tronco da arvore as letras Brnó (cidade da antiga Checoslováquia onde treinaram alguns guerrilheiros). O campo “foi destruído em 1968 depois de uma grande operação militar do exército português”, informa o projecto. Jorge Cohen nota que “as pessoas não podem preservar coisas que não conhecem. Muitos não têm vestígios, eram estruturas frágeis”. “Agora, as pessoas podem lá ir, mesmo que já não haja lá nada para ver. ” Esta geografia da independência levou-os a assinalar cerca de 80 sítios por toda a Angola, que vão “desde bases guerrilheiras, locais de encontros clandestinos, casas onde ficaram hospedadas algumas figuras depois de fugas, locais de treino militar, bases militares, prisões”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mário Bastos refere que se fala muito do campo do Tarrafal, mas que “não se fala do campo prisional de São Nicolau, localizado no Namibe”, entre o deserto e o mar, onde estiveram presos muitos angolanos, alguns durante quase todo o período de luta pela libertação. Frederico Colombo, que lá esteve entre 1966 e 1969, contou ao Trilhos que “tirar uma banana da árvore sem pedir autorização ao guarda” era uma das transgressões que no campo podia resultar “em porrada”. Outro ex-preso caminha pelo sítio onde eram as celas conhecidas como “as geleiras”, ou lembra o trabalho pesado que os presos faziam nas salinas, carregando o sal na cabeça e nas costas. Os testemunhos incluem pessoas que lutaram mas não necessariamente com armas. A resistência passou por terem estado presos às vezes dez anos, outras estiveram no exílio durante todo o período. Por isso também há testemunhos recolhidos, por exemplo, em Cuba, no Gana, em França, Cabo Verde, na Guiné-Bissau, em Portugal. Mário Bastos e Jorge Cohen defendem que “a guerra do ponto de vista português está mais feita. Esta é a perspectiva angolana”. Como olham hoje os angolanos para esta guerra e para o antigo inimigo? “Com naturalidade, não existe rancor. Fala-se desse período como Portugal colonial e não como ‘os portugueses’. Acho que há essa distância. Gostávamos muito que este documentário fosse visto em Portugal. ”
REFERÊNCIAS:
Sabem por onde vão. Pela leitura
Há 16 anos que os Caminhos de Leitura se fazem ao caminhar. Um encontro de literatura infanto-juvenil que Pombal organiza com a convicção de que se pode (e deve) ler em todo o lado. (...)

Sabem por onde vão. Pela leitura
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há 16 anos que os Caminhos de Leitura se fazem ao caminhar. Um encontro de literatura infanto-juvenil que Pombal organiza com a convicção de que se pode (e deve) ler em todo o lado.
TEXTO: Começou nesta quinta-feira o XVI Encontro de Literatura Infanto-Juvenil no Teatro-Cine de Pombal. Porque é de caminhos e percursos que se trata, o programa organiza-se em apeadeiros: da leitura, da ilustração e da memória. Também há oficinas caminhantes, para que os adultos aprendam a conquistar novos leitores. “Ano após ano, sentimos uma diversidade muito grande na edição, ilustração e texto. Conseguimos, neste momento, ter acesso a livros com elevada qualidade estética e literária. Sente-se uma preocupação no equilíbrio de imagem e de texto”, diz ao PÚBLICO Sónia Fernandes, técnica superior de animação, que faz parte da organização do encontro. A pergunta era: “Depois de tantas edições, algo mudou na leitura e na literatura infanto-juvenil?”Sónia quis dizer mais: “Há livros fantásticos, que nos transportam para outros mundos. Há mediadores fantásticos que nos levam de mãos dadas para o universo dos autores. ”Então, o que é que falta para pôr mais crianças e jovens a ler? “Falta acentuar a política de leitura a nível nacional e, a nível local, reforçar os programas já existentes. É preciso ler, ler na escola, ler na biblioteca, ler em casa, ler, ler, ler, ler em todo o lado. ” Mais: “É necessário dar a ler!”Porque acreditam nisso mesmo, convocam, há 16 anos, quem trabalha com as palavras e as imagens e que as transmitem de forma criativa às crianças e jovens, no sentido de as “viciar” nesse admirável mundo. Por isso, esta profissional ligada ao Teatro-Cine de Pombal e à câmara não tem dúvidas: “O público infantil e escolar já está conquistado, não só para os Caminhos de Leitura, mas também para os diversos programas de leitura que o município tem em prática. ”Sobre a comunidade em geral, diz: “Sentimos uma maior proximidade, sobretudo quando colocámos o festival de narração oral no jardim, um espaço público de acesso a todos. Ainda temos um longo caminho a percorrer, mas temos esperança de conseguir envolver cada vez mais a nossa comunidade. ”O Jardim da Várzea acolhe o Mercado do Livro e da Leitura, com a presença das livrarias Cabeçudos (itinerante), Gigões e Anantes e O Gato Leitor. Este também será o espaço para a memória, onde à noite (22h) decorrerá o Festival de Narração Oral, com a presença de contadores como: Ana Sofia Paiva, Pep Bruno, Benita Prieto (14 de Junho); Jorge Serafim, Quico Cadaval e José Mauro Brant (15 de Junho). No universo da ilustração, são quatro as exposições que se abrem à comunidade e aos visitantes. Duas no Teatro-Cine de Pombal: LoBOBOm, de Gémeo Luís, e Diário de Um Migrante, de Ana Sofia Gonçalves. Duas na biblioteca municipal: A Rainha das Cores, ilustração de Jutta Bauer com instalação e objectos animados de Mafalda Milhões, e Buriti Brasil, exposição de brinquedos e objectos populares vindos das águas, com coordenação de Maurício Leite. Sobre esta última, diz-se na apresentação: “Os brinquedos e objectos revelam uma parte de quem somos e como vivemos, como brincamos na Amazónia. Revelam os encantamentos do tempos dos nossos antepassados portugueses, africanos e indígenas. ” São peças construídas no âmbito do Projecto Malas de Leitura e Oficinas de Brinquedos na ilha do Bananal (Mato Grosso, Brasil). No segundo dia, às 15 horas, há uma palestra com José Mauro Brant, sobre O Livro dos Acalantos. Segue-se (às 16h30) Rita Alves, com a comunicação “Na minha escola, os muros só servem para escrever”, com moderação de Jorge Serafim. Mais tarde (18 horas), Lucas Ramada desenvolverá o tema “Más allá del libro: literaturas y ficciones digitales”, na companhia de Benita Prieto. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A encerrar, no sábado, Eduardo Marçal Grilo falará com Alberto Manguel sobre Las Lágrimas de Isaac. Para depois se desfrutar da presença da Associação Andante, em Actos de Leitura – Ordenar o Mundo. Será assim que, por estes dias, se “misturam” especialistas, autores, ilustradores e mediadores da leitura de Portugal, Brasil, Argentina, Espanha e França, para em conjunto reflectirem sobre “o papel da literatura e do livro no desenvolvimento dos mais novos”, partilhando experiências e estratégias. E divertindo-se. Porque acreditam que, mesmo exigindo esforço, a leitura é sempre uma festa.
REFERÊNCIAS:
Qualquer que tenha sido o roteiro, foi dar a Wild Beasts
Os Wild Beasts foram os mais celebrados, Perfume Genius provocou uma enchente e os Sensible Soccers provaram uma vez mais porque são uma banda especial. Histórias da despedida, sábado, do Vodafone Mexefest (...)

Qualquer que tenha sido o roteiro, foi dar a Wild Beasts
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.1
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os Wild Beasts foram os mais celebrados, Perfume Genius provocou uma enchente e os Sensible Soccers provaram uma vez mais porque são uma banda especial. Histórias da despedida, sábado, do Vodafone Mexefest
TEXTO: No fim, descendo pela rua para a qual se abre a saída lateral do Coliseu dos Recreios, uma novidade. Chuvinha irritante a molhar a multidão que avançava em passo obrigatoriamente lento (era mesmo muita gente). Os ingleses Wild Beasts tinham acabado há minutos o seu concerto, o mais celebrado e aquele que reuniu mais público na última noite do Vodafone Mexefest, sábado. Para além deles, destacou-se Perfume Genius, que provocou uma fila imensa à entrada da sala principal do São Jorge, o intimismo desassombrado de Sharon Van Etten, no Coliseu, a festa “kudurada” dos Throes + The Shine ou a intensidade da viagem proporcionada pelos Sensible Soccers. Entre a azáfama vivida na zona das Portas de Santo Antão, num eixo alargado, Avenida da Liberdade acima, até ao cinema São Jorge, ou, Avenida da Liberdade abaixo, até à estação do Rossio, mais houve para reencontrar, descobrir, dançar ou celebrar. Avenida acima e avenida abaixo, gente de olhos postos nos horários dos concertos, tentando definir um roteiro que, inevitavelmente, será várias vezes alterado ao longo da noite – porque para aquele concerto indispensável há uma fila de espera desmotivadora, porque alguém sugeriu aquela outra banda que não se deve mesmo perder e lá vamos nós à descoberta. É essa a dinâmica deste festival (deixar-se ir numa das várias correntes) e o público já está perfeitamente identificado com esse, digamos, sobressalto animado. Tem perfeita consciência que há muito para ver e tão pouco tempo, mas põe a angústia de lado. “E se fôssemos agora ao autocarro? Ainda não ouvimos a banda”, sugeria alguém, terminados os Wild Beasts, enquanto o autocarro, um dos dois que transportou o público pela avenida, passava perante o olhar curioso de alguns turistas, alertados pela chinfrineira rock’n’roll que se desenrolava lá dentro (o autocarro foi, durante toda a noite, o palco dos Zanibar Aliens). É certo, assim sendo, que saímos sempre do Vodafone Mexefest conscientes que algo se perdeu. Enquanto não desenvolvermos o dom da ubiquidade, será inevitável. Funciona portanto assim: um amigo elogia a energia do concerto dos Cloud Nothings no ginásio do Ateneu Comercial de Lisboa, nós replicamos com o óptimo concerto que os Sensible Soccers davam à mesma hora. Outro fala-nos das qualidades dos ingleses Palma Violets e da forma como subiram o volume do som para níveis quase proibitivos na Estação Ferroviária do Rossio, nós contamos que há um travo clássico de singer-songwriter americano a sobressair agora em Perfume Genius. A cada um o seu roteiro de música. Uma das qualidades de um festival como o Vodafone Mexefest não é, porém, estritamente musical. Nasce da possibilidade de, por um par de dias, termos acesso a espaços na cidade habitualmente escondidos. Foi num deles, na garagem EPAL (e é exactamente isso, uma garagem com passagem para um pátio interior), que ouvimos os Sensible Soccers. A banda de Vila do Conde e São João da Madeira, autora de 8, álbum de destaque neste ano discográfico, ultrapassou problemas técnicos – dica para bandas a lidar com questões semelhantes: quando nada parece funcionar, improvisa-se um pouco de rock tuaregue e tudo correrá pelo melhor – e transformou o espaço muito bem recheado de público entusiasta num festim de psicadelismo planante e ritmo electrónico para pista de dança mutante. Donos de uma intuição musical inspiradora, conseguem ser, à uma, cuidadosos artesãos de filigrana sonora e criadores de turbilhões sónicos envolventes – da galáxia Harmonia a nebulosas shoegaze, de viagens interestelares "floydianas" ao ataque muito físico do techno. Sofrendo por você é o título da canção mais célebre da banda. Generosos, fizeram exactamente isso. Sofreram (com os irritantes problemas técnicos) para que dançássemos depois. Nessa altura já víramos os portuenses Throes + The Shine, no Salão Nobre do Ateneu, fazer o que fazem habitualmente: guitarras eléctricas em riffs distorcidos ou possuídas por espíritos ganeses, bateria infernal e dois MCs a disparar palavras ao ritmo daquele kuduro que é muito rock’n’roll. Cenário curioso: um lustre gigante pendendo frente ao palco e o tecto muito ornamentado com querubins em baixo relevo a servir de cenário a música onde ginga africana e visceralidade punk se encontram para nosso prazer. “Pessoal, vocês vieram para o chá das cinco ou quê?”, provocará a banda. Não, o pessoal não tinha vindo para isso – como os inocentes querubins testemunhariam pouco depois. No dia em que Curtis Harding apresentou o seu Soul Power ao público português na Estação do Rossio (no seu som há mais blues e rock de garagem que soul propriamente dita; há, essencialmente, uma promessa de algo interessante, mas ainda por cumprir), as atenções centraram-se, primeiro, em Sharon Van Etten. A cantora de New Jersey, guitarra a tiracolo, encantou na penumbra em que a deixou a iluminação de palco, fazendo da tradição musical americana, estendida da folk a força expressiva de Patti Smith, com desvio para a Inglaterra de PJ Harvey, a moldura para a catarse dos mais diversos inconfessáveis – o amor, sempre o amor e a dor que o amor e a vida provocam. Acompanhada de baixo, teclas, guitarra e bateria, dedicou o concerto ao último Are We There. Surpreendeu-se com a rapariga na fila da frente com o seu nome escrito na cara (“nunca tinha visto isto”) e foi mulher bem-humorada entre canções. Quando elas se faziam ouvir, o humor, quando existia, era de outro tipo. "Everytime the sun comes up / I’m in trouble”, canta no final, na sua voz de uma eloquente expressividade dramática. Não fosse a letra e seria canção para alpendre em final de tarde bucólico. Ouvindo a letra embalados pela música, percebe-se que esta é a serenidade de quem aceitou a convulsão como uma constante do correr dos dias. E é daí que nasce a música tão terna quanto tensa de Sharon Van Etten. De certa forma, Van Etten não está tão distante quanto pensaríamos de Perfume Genius, o nome pelo qual assina o também americano Mike Hadreas. No Vodafone Mexefest, confirmou-se que é um fenómeno junto do público português. A sala Manoel de Oliveira do São Jorge transbordou para o receber, camisa de negro transparente sobre o torso, batom vermelho vivo nos lábios, botas de preto brilhante com tacão alto nos pés. Com Too Bright, o cantor de Seattle aproximou-se decisivamente das raízes da sua música – ele que fala bastante de Nina Simone e, consequentemente, da soul e do gospel dessa divina cantora. Hadreas é agora um músico mais clássico, mais próximo do formato clássico de canção. Um cantor moderno à antiga, digamos assim. Naquele que foi o último concerto da sua actual digressão, alternou. Ora se sentou ao piano (chegou a tocá-lo a quatro mãos com o seu teclista) e deixou a voz guiá-lo em tom confessional, ora se ergueu para cantar e pontuar os versos com dança ondulante. Sobressaiu no concerto, assistido por um público atento e conhecedor, a capacidade que tem, agora, de pôr a sua voz capaz de vários malabarismos ao serviço da canção. Percebemo-lo em temas dos álbuns anteriores, como Sister song, do segundo, Put Your Back N 2 It, ou Learning, da estreia homónima. No concerto, até podem surgir sintetizadores vaporosos e uma languidez que associaríamos a Sade, mas é a intimidade provocada por esta música despojada de elementos, totalmente centrada no homem exposto no centro do palco (e no coração das canções), que mais cativa o público. Curiosamente, seria a pop exuberante de Queen, de Too Bright (apontamento de piano apontando a Oriente, sobre um tapete de sintetizador), a encerrar o concerto. Se Perfume Genius provocou uma enchente no São Jorge, os Wild Beasts foram dominantes num Coliseu repleto. De certa maneira, a banda britânica é uma banda deste festival. Tinham sido surpresa no São Jorge quando da passagem anterior por Lisboa, quando o Vodafone Mexefest se chamava ainda Super Bock em Stock. No sábado, não houve espaço para surpresas. Erguem um copo de tinto para brindar ao público, atacam, já em encore, a propulsora Wanderlust – bom verso: “don’t confuse me with someone who gives a fuck” –, e o público na plateia, nos camarotes, nos balcões, solta palmas, ergue telemóveis para registar o momento, acompanha com atenção as canções a meio caminho entre o sintético 80s e a grandiloquência pop do pós Arcade Fire que se ouve em Present Tense, o último álbum. Nada efusivos em palco, sempre concentrados nas texturas sonoras criadas, são uma banda rock totalmente do seu tempo. Têm uma genealogia múltipla onde convivem Arcade Fire, Efterklang, Depeche Mode ou algo dos Radiohead. São pop melancólica com secção rítmica agitada e são synth-pop mais séria que lúdica. Não surpreendem, nem se mostram autores de canções imaculadas. São muito sérios na apresentação da síntese que atingiram e tocaram um qualquer nervo do público português, que acompanhou muito atentamente, com ocasionais demonstrações de euforia (soltem-se umas palmas a compasso), canções como Mecca ou Hooting. Se dúvidas houvesse, o concerto desfê-las. Os Wild Beasts já são da casa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Quando terminaram recordávamos ainda a aparição de Duquesa, ou seja Nuno Rodrigues, vocalista dos Glockenwise, na sala Montepio do São Jorge, onde horas antes mostrara uma vez mais ser autor de algumas das canções mais solares e cativantes que este ano nos trouxe. Quando eles terminaram, enquanto a chuva caía sobre o público que abandonava o Coliseu, essa memória esperava ainda outras para se lhes juntarem. Regressar ao Coliseu para dançar o que os peruanos Dengue Dengue Dengue ou Branko, dos Buraka Som Sistema, tinham para oferecer? Subir ao Palácio Foz para apreciar os seus belíssimos interiores ao som de Thunder & Co? Mais uma escolha. A última das muitas de que, uma vez mais, se fez o Vodafone Mexefest, este ano numa edição em que, além dos nomes aqui referidos se destacaram, sexta-feira, Kindness, St. Vincent, Capicua e Tune-Yards. Corrigido às 9h26: Sofrendo por você é o título correcto da canção dos Sensible Soccers referida
REFERÊNCIAS:
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