Morreu Celeste Rodrigues, a fadista que foi muito mais do que a irmã de Amália
Irmã mais nova de Amália Rodrigues, iniciou a sua carreira, sempre autónoma, há 73 anos. Tinha 95 anos e nos últimos tempos tornara-se uma das preferências de Madonna. O velório é esta quinta-feira no Pátio da Galé, a partir das 19h, seguindo o funeral sexta-feira, às 14h30, para o Cemitério dos Prazeres. (...)

Morreu Celeste Rodrigues, a fadista que foi muito mais do que a irmã de Amália
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Irmã mais nova de Amália Rodrigues, iniciou a sua carreira, sempre autónoma, há 73 anos. Tinha 95 anos e nos últimos tempos tornara-se uma das preferências de Madonna. O velório é esta quinta-feira no Pátio da Galé, a partir das 19h, seguindo o funeral sexta-feira, às 14h30, para o Cemitério dos Prazeres.
TEXTO: Foi o neto, Diogo Varela Silva, quem primeiro anunciou a morte da fadista Celeste Rodrigues, esta quarta-feira, aos 95 anos, confirmando depois a notícia à agência Lusa: “É com um enorme peso no coração que vos dou a notícia da partida da minha Celestinha, da nossa Celeste. Hoje deixou uma vida plena do que quis e sonhou. Amou muito e foi amada, mas, acima de tudo, foi a pedra basilar da nossa família, da minha mãe, da minha tia, dos meus irmãos, sobrinhos e filhos, somos todos orgulhosamente fruto do ser humano extraordinário que ela foi”, escreveu na rede social Facebook. O corpo da fadista será velado esta quinta-feira, a partir das 19h, no Pátio da Galé, em Lisboa (entrada pela Praça do Comércio), e o funeral sairá na sexta-feira, às 14h30, para o Cemitério dos Prazeres, onde Celeste Rodrigues será sepultada no Talhão dos Artistas. Nascida no Fundão, em 14 de Março de 1923, de onde saiu para Lisboa com apenas cinco anos, a irmã de Amália Rodrigues iniciou a carreira há 73 anos, ao aceitar o convite feito pelo empresário José Miguel (1908-1972), detentor de vários teatros e casas de fado, entre os quais o Café Casablanca. Mas foi a cantar canções tradicionais da Beira, ensinadas pela mãe, e os fados ouvidos na rua “aos ceguinhos”, como contava em 2014 numa entrevista ao PÚBLICO, que começou por ganhar uma voz que ficaria para sempre associada à linhagem do fado castiço. Da infância pobre que viveu na Beira Baixa retinha sobretudo a força da mãe e a presença musical do pai, “que tocava muito bem”, lembrava na mesma entrevista: “A pobreza: nem dávamos por isso. A minha mãe ia ao campo, buscar qualquer coisa para fazer uma refeição, espargos, míscaros. Aquela fome, fome, fome, nunca passámos. Podíamos não ter os bifes, essas coisas de que as pessoas precisam também. Mas não dávamos por essa necessidade. ”A voz da mãe – e não a da irmã, Amália, três anos mais velha, e também para Celeste referência até hoje inultrapassável da canção de Lisboa – era, dizia, a mais bonita que ouviu na vida. Mas foi obscurecida pela sombra da irmã que se fez fadista, sem ressentimento algum: “Nunca se meteu na minha carreira artística, felizmente. Se não, eu tinha desistido. Canto à minha maneira, canto as minhas cantiguinhas. Como eu sinto. Nunca a imitei. Tentei fugir à maneira de ela cantar (. . . ). Há tantos alfaiates. Eu não tinha de ser como ela. ”Casada, aos 30 anos, com o actor Varela Silva, abriu com ele uma casa de fados, A Viela, que viria a fechar ao fim de quatro anos, ingressando então Celeste Rodrigues no elenco da casa de fados de Argentina Santos, A Parreirinha de Alfama. Nos anos 1950, e já conhecida a nível internacional, actuou em diversos países: Espanha, Brasil, Estados Unidos e no continente africano. Gravou, ao longo da sua carreira, cerca de 60 discos, o mais recente dos quais Fado Celeste, em 2007. Colaborou, com entusiasmo, em vários projectos musicais, do fado à pop. Do seu repertório constam, entre outros temas, A lenda das algas e o Fado das queixas. Apesar da longa carreira, nunca deixou de se sentir tímida em cima do palco (“Fecho os olhos e pronto. Não quero luz na cara”). E nem a confessa admiração de Madonna na sua nova fase lisboeta (a cantora norte-americana fez questão de tê-la consigo em Nova Iorque na passagem de ano) lhe tirava os pés do chão: “Parece que estou a fazer propaganda de mim própria e eu não gosto disso, nunca precisei disso, não preciso de nenhuma fama, eu gosto de cantar e é isso que quero, cantar. Ela foi simpática em gostar da minha voz e é só isso”, respondia em Maio ao Diário de Notícias, nas vésperas de um dos seus últimos concertos, no Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa. No concerto do Tivoli, na noite de 11 de Maio deste ano, Celeste Rodrigues celebrou 73 anos de carreira e 95 de vida, como já antes celebrara no São Luiz, em 21 de Dezembro de 2010, os seus já então respeitáveis 65 anos de carreira, numa demonstração de ímpar longevidade entre as vozes do fado. No Tivoli estiveram com ela os músicos Pedro de Castro, André Ramos, Francisco Gaspar e o seu bisneto Gaspar Varela, um jovem guitarrista, bem como vários fadistas (Teresinha Landeiro, Duarte, Hélder Moutinho, Fábia Rebordão, Jorge Fernando e Kátia Guerreiro). Um deles, Jorge Fernando, recorda-a agora deste modo: “Eu era muito chegado à Celeste, por via da Fábia [Rebordão, também fadista], estávamos durante a semana vários dias juntos. E sempre me fascinou nela a inteligência, a verdade, a lucidez, o canto, a vontade de viver. Ela, com 95 anos, tinha uma agenda de concertos e já queria repetir para o ano o concerto que deu no Tivoli em Maio. Foi convidada e íamos repeti-lo em Paris. ”Essa actividade, diz Jorge Fernando, é uma grande lição: “Para mim e para todas as gerações. Este é um momento muito triste para todos nós, porque sempre foi uma senhora pautada pelo rigor, pelo respeito, pela tolerância. Resta realçar que ela teve a vida que quis, foi feliz como quis, não teve grandes males a assolarem-lhe a porta. Deixa-nos saudades a todos. ” Quanto ao lugar de Celeste Rodrigues no fado, Jorge tem esta opinião: “Sempre achei que ela esteve entre as melhores. A Madonna apaixonou-se por ela, o Egberto Gismonti, um dia quando estávamos a ouvir música no meu carro, perguntou-me ao ouvi-la: ‘Quem é? Que bem canta!’ Mas talvez parecesse pouco para o talento que ela tem. ”Hélder Moutinho, outro dos fadistas que estiveram no Tivoli naquela noite, tem de Celeste as melhores memórias: “No início da minha carreira, eu quis deixar de cantar. Trabalhava com ela na Taverna do Embuçado e despedi-me, desmotivado e zangado com os fados. E a Celeste, durante um mês, insistiu comigo que eu não podia deixar de cantar. Disse-me que eu não podia deixar o fado, porque o fado precisava de mim. ”Esta atitude para com os fadistas mais novos era uma constante na sua vida, diz Hélder: “A Celeste é provavelmente a pessoa da geração mais antiga que mais apoiou e incentivou a nova geração em relação ao fado. Não havia ninguém da nova geração que não a tratasse por avó e a acarinhasse. Era a pessoa mais querida da velha geração, ela e o Joel Pina [histórico viola de fado e professor, com 98 anos, no activo], que ainda está cá connosco. Vai-nos fazer muita falta. ”Rui Vieira Nery, musicólogo e estudioso do fado, corrobora esta opinião: “Muitos fadistas mais jovens pediam-lhe conselho e confiavam nos conselhos dela. Ela funcionava um bocadinho como uma matriarca respeitada pela tribo do fado, porque era uma pessoa carinhosa e sábia. Era uma voz que os jovens fadistas ouviam com respeito. ” Já em relação ao seu papel no fado, diz que o facto de ser irmã de Amália a prejudicou. “Se fosse uma fadista completamente independente, sem ligações familiares a um grande nome, acho que teria tido oportunidades que não teve, porque as pessoas automaticamente a arrumavam na prateleira de irmã da Amália. ”Mas o mérito de Celeste Rodrigues acabou por ser reconhecido nos últimos anos, diz Rui Vieira Nery. “Ela era uma mulher com uma personalidade artística muito forte, uma capacidade dramática muito intensa, que teve a ‘infelicidade’ de ser irmã da Amália e de isso ter desviado a atenção do público, durante muitos anos, do talento especial e próprio que ela tinha. No fundo, foi já nos últimos 20 anos, depois da morte da Amália, que as pessoas de repente olharam para a Celeste como uma personalidade autónoma, sem a sombra do nome e da fama da irmã. E ganhou, no fim da vida, um reconhecimento que tardava. ”O encenador Ricardo Pais, que se lembra bem de ouvir Celeste Rodrigues ao vivo na década de 60 na Parreirinha de Alfama, de Argentina Santos, dirigiu-a já nesses últimos 20 anos de vida em Cabelo Branco É Saudade, espectáculo que se estreou no Teatro Nacional de São João, no Porto, em 2005. Na altura com 82 anos, era a mais velha de um elenco de quatro cantores (com Argentina, Alcindo de Carvalho e Ricardo Ribeiro) dessa produção que pretendia colocar sob os holofotes o universo singular das velhas casas de fado e os intérpretes de excepção que nelas se podem encontrar, tantas vezes tão injustamente esquecidos ou relegados para um plano secundário. “Ouvi-a nos anos 60 e o seu timbre era completamente diferente, claro, mas uma coisa mantinha-se até hoje – uma espantosa técnica no uso da voz”, garante o encenador. Uma técnica a que recorreu ao longo da vida para ir ultrapassando as fragilidades que a idade lhe impunha. “O Cabelo Branco É Saudade foi o seu comeback e, para parte do público, a parte mais jovem, foi até uma revelação”, acrescenta, recordando a recepção especialmente carinhosa que a fadista teve nalguns palcos da digressão internacional do espectáculo, em cidades como Paris, Nápoles ou Frankfurt. “Era uma pessoa extraordinária, culta, que pintava e tinha uma grande facilidade com as línguas. Era óptimo trabalhar com ela, um prazer. ” Durante a preparação de Cabelo Branco É Saudade, que teve direcção musical de Diogo Clemente, a única coisa a que Celeste Rodrigues resistiu foi a cantar Meu corpo, um tema com letra de José Carlos Ary dos Santos e música de Fernando Tordo, composto para Beatriz da Conceição. “Dizia que era demasiado erótico para alguém com a idade dela, mas acabou por cantar. Convenci-a num elevador, mas para isso até tive de cantar uma parte do fado”, conta. Para o encenador, Celeste Rodrigues sempre soube lidar com o facto de ser irmã de Amália Rodrigues e acabou por construir “uma carreira fantástica” e singular, original. “Era, definitivamente, pelo menos tão única como ela [Amália]. ”Com um “reportório irrepreensível”, de “imenso bom gosto”, Celeste Rodrigues tinha outra particularidade que, segundo Pais, era evidente – “uma crença espantosa, profunda, no fado como género e como forma de vida”. Também o cineasta Bruno de Almeida, que nos 90 anos da fadista lhe fez uma homenagem em vídeo em que ela aparece a cantar, como não podia deixar de ser, rodeada de talentos do fado que a têm como referência – uns consagrados mas muitos mais novos do que ela, outros ainda jovens promessas –, garante que não há ninguém comparável a Celeste Rodrigues. A voz, a maneira como cantava (de cabeça para trás, muito direita), o reportório que escolhia, mas sobretudo a sua personalidade, que a levou a lidar de “forma muito inteligente” com o facto de ser irmã de Amália, asseguraram-lhe uma “carreira muito própria, bonita”. “A Celeste percebeu desde muito cedo que a irmã era um génio, mas nem por isso deixou de fazer o que ela mais queria – cantar”, diz o realizador, que conheceu as duas quando era ainda criança e que desde aí e até à morte da fadista teve sempre uma “relação muito especial” com Amália. “Conheci a Celeste ainda criança na casa da irmã, porque eram muito chegadas, muito amigas, mas só me aproximei mais dela depois de a Amália morrer”, continua. Segundo Bruno de Almeida, estas duas irmãs muito diferentes tinham em comum uma intuição e uma inteligência fora do normal. “A interpretação da Celeste era mais contida, talvez por causa da timidez. Ela foi sempre uma artista – uma pessoa – de grande honestidade. Teve um percurso sólido, vertical, que foi feito à margem da irmã, com as suas próprias escolhas e sem qualquer mágoa. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Conta o realizador que era impossível jantar com Celeste Rodrigues sem a ouvir cantar – “Começava a bater na mesa, com aquela cadência das canções da Beira Baixa que ela gostava de cantar” – e a contar histórias sobre as gentes do fado ou sobre como nos anos 40 e 50 comprava poemas avulso aos autores que andavam pelos cafés do Chiado para poder interpretar temas diferentes dos outros. “A Celeste era uma bíblia do fado, que cantava de uma forma muito interior, muito dela. ”A fadista integrou o elenco do seu último filme, Cabaret Maxime (já nos anos 90 entrara em Xavier, de Manuel Mozos) e, sem esforço, diz o cineasta, fez com que todo o elenco se apaixonasse por ela. “Uma noite com a Celeste era uma lição de vida. Durante a rodagem chegámos a jantar às 5h da manhã, porque ela tinha a energia de uma mulher com 20 anos. Era muito particular. ” E, para ilustrar o que diz, pergunta quem se não ela é que aos 90 anos deixa de fumar três maços por dia, porque finalmente decidiu acatar os conselhos do médico. “Aos 94/95 a Celeste era capaz de se meter sozinha num táxi de madrugada para ir cantar ao Luso, de onde saía depois para acabar na Mesa de Frades. Que outra pessoa faz isto?” com LusaNotícia actualizada às 19h21, acrescentando data e local do velório e do funeral de Celeste Rodrigues
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
Raül Refree, um artesão sem pressa
Conhecido pelas suas colaborações com Sílvia Pérez Cruz e Rosalía, Räul Refree trabalhou com Luísa Sobral em Rosa. Um produtor que gosta de trabalhar sem pressa, prestes a estrear-se no universo do fado. (...)

Raül Refree, um artesão sem pressa
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Conhecido pelas suas colaborações com Sílvia Pérez Cruz e Rosalía, Räul Refree trabalhou com Luísa Sobral em Rosa. Um produtor que gosta de trabalhar sem pressa, prestes a estrear-se no universo do fado.
TEXTO: Quando acontece não ter de imaginar-se dentro da cabeça de outro músico, tentando descodificar os seus desejos musicais e percebendo como dar-lhes uma tradução que não lhes traia as intenções, Raül Fernández Miró – mais conhecido como Raül Refree – não sabe, por vezes, a que soa a sua música. Ligado inicialmente aos projectos da editora indie Acuarela, Refree começou a assumir um lugar preponderante na música espanhola sobretudo desde que iniciou a sua parceria com a cantora Sílvia Pérez Cruz (com quem gravou dois álbuns, 11 de Novembre e Granada, depois de terem já colaborado quando Pérez Cruz integrava o grupo Las Migas), mas também com a cantaora de flamenco Rocío Márquez, com a rapper Mala Rodríguez, com o histórico do rock basco Fermin Muguruza ou até com o guitarrista dos Sonic Youth Lee Ranaldo. Os géneros que tem abordado, quase sempre a partir de um lugar de exploração que se inicia na guitarra acústica, têm-no colocado com tanta frequência ao serviço da música dos outros que, reconhece ao Ípsilon, assumir a sua voz nos intervalos desses trabalhos pode afigurar-se um problema. “Às vezes tenho inveja das pessoas que têm um perfil muito claro e que são algo de muito concreto”, confessa. “Aquelas pessoas que mesmo quando fazem muitas coisas distintas têm sempre a certeza de qual é o seu caminho. ” Não é esse o seu caso. Mas também por isso, por sempre ter querido ser muitas coisas e acreditar que existem muitos Raül dentro de si, a ideia de migrar repetidamente para outros territórios musicais sempre o seduziu. “Estar em tantas frentes pode mesmo fazer com que me perca”, adianta. “Acaba por ser muito divertido porque desfruto muito ao aprender e provar coisas novas, arriscando saltar para o vazio, mas quando estou só e me pergunto quem sou, o que quero dizer e fazer, por vezes tenho dificuldade em encontrar qual é o meu discurso porque, afinal, os meus discursos são muitos. ” Uma escutadela de La Otra Mitad, disco a solo que acaba de lançar, em que a guitarra partilha o protagonismo com gravações de rua, pode dar uma pequena ideia. A haver um discurso a que possa chamar seu, arrisca que possa ser a visão musical que é comum a tudo quanto faz, seja um disco de guitarra solo, de improvisação ou uma orquestração contemporânea, seja um álbum de autoria alheia ao qual empresta a sua sensibilidade e que tanto pode rondar o flamenco quanto o hip-hop ou o rock mais vanguardista. Essa visão corresponde a uma linha que, entende Raül, une todos os discos em que trabalha, mesmo que para poder ser observada tenha de se olhar a sua discografia a partir de uma macroescala. “Mas, para mim”, concretiza, “há uma linha muito clara entre Granada e Los Ángeles. ” Os dois exemplos vêm de dois álbuns que Raül partilhou com Sílvia Pérez Cruz e Rosalía, as duas cantoras que mais contribuíram para a sua fama de produtor. São também os dois casos em que Raül, habituado a pensar a sua vida musical projecto a projecto, se envolveu a ponto de acompanhá-las em palco e se envolver a fundo no processo criativo – o primeiro é assinado pelos dois, o segundo foi creditado apenas a Rosalía porque Raül terá preferido que o foco recaísse sobre “uma artista jovem, com uma energia muito forte”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Embora não descarte voltar a trabalhar com as duas no futuro, Refree gosta de trabalhar com muita gente variada e diz alimentar-se dessas relações intensas e concentradas no tempo. “A verdade é que, seja virtude ou defeito, tenho a necessidade de ir mudando, aborreço-me rapidamente”, diz. “Nunca me senti cómodo com a ideia de dedicar a minha vida a um só projecto ou a uma só pessoa. ” Ainda assim, tenta que cada uma destas relações seja tão prolongada quanto possível. Quer isso dizer que Raül se vê como um produtor desfasado da aceleração temporal com que a música é hoje produzida e disponibilizada. “Agora, no mundo da música mais mainstream ou mais jovem, grava-se uma tema, filma-se um vídeo, consome-se e morre ao fim de pouco tempo”, descreve. “Vivemos numa época que tudo acontece muito rápido e em que a música se está a converter em algo menos repousado. ” A sua abordagem, pelo contrário, pede-lhe o tempo para escutar a música do artista com quem vai gravar, conhecer a pessoa para lá das canções, perceber bem quem tem pela frente e para onde essa pessoa pretende ir. Dai que se defina como “um artesão” que gosta de “trabalhar muito lentamente, com o tempo necessário para cada disco”. Foi também assim com Rosa, álbum de Luísa Sobral que lhe tomou boa parte de 2018 – e assim deverá ser quando, em Janeiro, regressar a Portugal para começar a trabalhar no terceiro álbum da fadista Carolina (as “visitas de estudo” a casas de fados já tiveram lugar, de maneira a Raül ambientar-se o mais possível a um género musical que o atrai imenso). Com Luísa, foram várias as viagens de Barcelona para Lisboa, e vice-versa, muitos os telefonemas e os emails trocados, até o tom justo de Rosa finalmente ter florescido. O único senão é mesmo quando a calma de Raül se cruza com o tempo distendido africano. A sua colaboração com o senegalês Cheikh Lô, anunciada há muito, espera ainda uma conclusão. “O relógio em África funciona de outra maneira”, suspira. Até para quem gosta de uma produção repousada há limites.
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
50 anos a ligar quem veio antes a quem virá depois
Em comemoração do 50º aniversário que se celebra em 2019, a ECM reúne, numa edição de luxo, 18 CD do obrigatório Art Ensemble of Chicago e de projectos dos seus membros. Um olhar para o passado de um grupo que quis sempre caminhar para o futuro. (...)

50 anos a ligar quem veio antes a quem virá depois
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.125
DATA: 2018-12-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em comemoração do 50º aniversário que se celebra em 2019, a ECM reúne, numa edição de luxo, 18 CD do obrigatório Art Ensemble of Chicago e de projectos dos seus membros. Um olhar para o passado de um grupo que quis sempre caminhar para o futuro.
TEXTO: “O Art Ensemble of Chicago e a ECM Records ambos celebram o seu 50º aniversário em 2019. Tem sido extraordinário partilharmos juntos esta viagem. ” As palavras do saxofonista Roscoe Mitchell dão as boas-vindas à luxuosa caixa com que a editora alemã comemora o trajecto de uma das formações mais vitais à história do jazz contemporâneo. Mesmo que a celebração tenha sido antecipada uns meses para capitalizar as vendas natalícias (mais generosas para um objecto como este, composto por 18 CD da história da banda e de vários projectos dos seus membros, acrescidos de um generoso livro que documenta o trabalho gráfico e reúne vários depoimentos), é impossível não curvar os lábios num sorriso que reconhece na curta mensagem de Mitchell a história de um colectivo que sempre baralhou as coordenadas temporais. Autoria: Art Ensemble of Chicago ECM; distri. DistriJazzE baralhou-as de acordo com um lema que proclamava: “great black music, ancient to the future”. Em conversa telefónica com o Ípsilon, Roscoe Mitchell, 78 anos, confirma esse motor para a actividade do Art Ensemble of Chicago (AEC): “Isso significava que ligávamos a música que viera antes de nós àquela que viria depois de nós. Era isso que nos interessava fazer. ” Daí que, desde a edição de Tutankhamun, em 1969, se tenha tornado um cliché dizer que a bordo do AEC o futuro era antecipado. Como se o futuro, lá à frente, fosse puxado até esbarrar com estrondo no presente, eliminando o caminho necessário para chegar de um a outro. Daí que, uma vez mais, trazer o 50º aniversário para o ano que precede matemática e oficialmente as comemorações possa entender-se como apenas mais uma maneira de nos lembrarmos de que amanhã sempre foi longe de mais para esta gente. A história oficial do AEC começa em 1969, com uma viagem a Paris que, num só movimento, matou o Roscoe Mitchell Sextet e deu à luz o novo colectivo. Foi uma questão de justiça. O sexteto juntou-se para a primeira gravação capitaneada por Mitchell logo após conhecer e reconhecer um espelho de brilhantismo no trompetista Lester Bowie. A fortíssima ligação entre os dois havia de germinar a partir desse primeiro álbum de Mitchell, Sound (1966), que reunia já as participações, entre outros, de Bowie e Malachi Favors (contrabaixo), três dos quatro fundadores do AEC. Foram estes, acrescidos do também saxofonista Joseph Jarman (que, em 1967, integrara já o Roscoe Mitchell Art Ensemble), que se enfiaram num avião a caminho de Paris. “Na altura”, diz Roscoe ao Ípsilon, “ensaiávamos cinco dias por semana, das 9 às 5. Estávamos juntos como uma família. Aliás, o Lester Bowie vendeu todos os seus pertences para podermos levar a banda para a Europa em 69. ”Foi esse espírito colectivo, na verdade, a determinar a mudança da designação para aquela que ficou gravada a ouro na História do jazz. “Toda a gente estava a dar ao grupo 100% do seu tempo e do seu empenho”, recorda o saxofonista. “E foi então que decidimos tornar-nos um grupo cooperativo. ” A férrea disciplina que então aplicavam aos ensaios reflectia a certeza do som que pretendiam explorar e desenvolver. “Tínhamos uma ideia clara de que queríamos fazer algo particular e por isso é que trabalhávamos de tanto e de forma tão árdua”, diz o músico. “Queríamos dedicar-nos à imparável perseguição da música – que ainda não terminou, ainda a continuamos. ”Na fase parisiense, que inclui uma temporada de um mês no Théâtre Lucernaire, em Montparnasse, os quatro põem em prática essa visão muito particular de aliar o free jazz à música escrita contemporânea, atravessada ainda por todo o tipo de detritos de músicas africanas e com recurso a uma miríade de instrumentos – só nessa primeira digressão europeia diz-se que terão sido utilizadas cinco centenas. O largo escopo da sua visão musical havia de ficar também registado ao acompanharem a cantora Brigitte Fontaine e o percussionista Areski Belkacem no álbum Comme à la Radio. A liderança de Roscoe Mitchell dissolve-se na prática mas também na nova designação do grupo, ao mesmo tempo que a cidade de Chicago é atirada para a linha da frente nessa estada em Paris. E é justo que assim seja, porque o AEC é um produto muito concreto da comunidade de músicos que se foi juntando em torno da Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM), organização nascida a partir da Experimental Band do pianista Muhal Richard Abrams, cujo propósito era já o de encontrar um ponto de tangência entre a música escrita e o jazz vanguardista. A AACM, fundada em Chicago em 1962, tornou-se então um ponto de encontro obrigatório para músicos históricos como Abrams, Anthony Braxton, Jack DeJohnette ou Henry Threadgill colocarem em prática uma exploração das suas ideias musicais, incentivando os músicos de jazz locais a descobrirem ali a sua voz e a não negociarem a sua originalidade. “Aquilo que fizemos foi olharmos bem para a música que existia à nossa volta, para a música de alguns dos nossos grandes mestres e que não queríamos para nós – porque queríamos controlar melhor os nossos destinos”, explica-nos Roscoe Mitchell. Tomeka Reid, violoncelista chamada pelo saxofonista para a actual formação do AEC, aproximou-se do saxofonista igualmente através da sua entrada para a AACM, levada pela mão da flautista Nicole Mitchell. “Senti-me logo atraída por ideais como manifestarmos a nossa vida através da música, montarmos os nossos concertos, encontrarmos a nossa voz, formarmos os nossos grupos e sermos autodeterminados”, explica ao Ípsilon. Essa busca incondicional por uma voz própria e ilimitada seria defendida por todos quantos gravit(av)am em torno da AACM, mas teve no Art Ensemble of Chicago a sua expressão colectiva mais consistente. Tal consistência ganhou uma densidade maior e imediata com a integração, em 1970, do percussionista Famoudou Don Moye, descoberto no lendário período parisiense, passando o AEC a fixar-se enquanto quinteto. É essa formação que a História recordará e que foi sendo registada por uma série de editoras ávidas de se associar a uma música de enorme porosidade estilística e desejo de expansão permanente. Steve Lake, da ECM, escreve no livro que acompanha a caixa The Art Ensemble of Chicago and Associated Ensembles que os sets do AEC dessa fase podiam consistir em “meditações ancestrais salpicadas pelo som de gongos e arriscadas improvisações colectivas, vibrantes coros percussivos, marchas paródicas, pós-bop incendiário, silêncios vertiginosos, paráfrases clássicas, invocações de orações, vestígios de blues de Chicago, country blues e velhas canções folk, funk rústico e colagens sonoras radicalmente urbanas com impacientes campainhas de bicicleta e sirenes”, tudo a sublinhar o tal lema de viagem do passado para o futuro que Malachi Favors anexou ao slogan Great Black Music. É tudo isto, num avançado estádio de evolução, que encontramos no primeiro dos álbuns que o AEC gravou para a editora alemã. Nice Guys (1979) é um perfeito exemplar do depuramento que a música do grupo alcançou. Foi o disco com que o pianista Craig Taborn descobriu o AEC, de acordo com o texto que se lê na edição comemorativa, dizendo-se maravilhado com a revelação, aos 12 anos, de que “o propósito de um ensemble tanto poderia ser contorcer-se até desaparecer numa paisagem quanto saltar de dentro de uma”. É essa dinâmica dificilmente replicável de uma colectivo em que as vozes individuais têm direito a espaço próprio que é quase palpável em Nice Guys, mas também em Full Force, Urban Bushmen e The Third Decade, os álbuns que compõem o conteúdo inicial desta edição e que documentam a soberba primeira metade da década de 1980 na vida do AEC – junta-se-lhes Tribute to Lester (2003) e um espantoso conjunto de álbuns de Mitchell, Bowie, DeJohnette, Evan Parker e Leo SmithSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Esses registos iniciais exploram de forma lapidar a relação com o silêncio que sempre foi uma das marcas mais notáveis na música do AEC. “Isso veio do meu álbum Sound”, argumenta Roscoe Mitchell na conversa com o Ípsilon. “Sou um estudioso dos opostos – se há silêncio, há ruído; se há suavidade, há explosão. E claro que é preciso estudarmos esses opostos para termos uma percepção clara daquilo que acontece no meio. ” O compromisso com o estudo é algo que Mitchell nunca deixou cair e que mantém presente na vida actual do AEC. Mesmo após a morte de Lester Bowie, em 1999, e de Malachi Favors, em 2004, o saxofonista continuou sempre a empurrar o grupo na direcção do futuro, respeitando o pacto de sangue que garante que “mesmo se o AEC se limitar a ser uma pessoa, então será essa pessoa o AEC”. Tomeka Reid, que integra a mais recente formação do AEC, encontrou-se um par de vezes com Roscoe Mitchell em 2008 e 2009. Em 2014, numa passagem pela Califórnia com o seu trio de cordas The Here and Now, puxou os outros dois pelo braço para irem procurar o saxofonista na Mills College. “Fomos ter com ele, oferecemos-lhe o nosso CD, levámo-lo a almoçar, falámos sobre música e passámos algum tempo juntos”, recorda. Passado um ano, Roscoe chamou-a para se juntar a Junius Paul, Vincent Davis e ele próprio num quarteto que homenagearia o saxofonista Fred Anderson. A experiência foi tão impressionante que Roscoe chamou o Here and Now para integrar a formação alargada que leva agora para a estrada o espectáculo de aniversário, mas convocou também Reid para a versão em sexteto que hoje responde pelo nome AEC e se apresenta ao lado de Mitchell e de Don Moye. De cada vez que sobe a palco com o AEC, admite Tomeka, não se esquece do legado que carrega consigo. Mas sabe também que os olhos e os ouvidos de Roscoe Mitchell estão ocupados em perscrutar o futuro. E é por isso que, mesmo no 50º aniversário, o AEC não se apresenta em concerto recuperando o reportório antigo. Para isso, existem os discos. Não dá para reclamar liberdade e exploração sem ter o desconhecido por destino.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte comunidade estudo cantora perseguição
Uma Casa Comum para uma memória partilhada
Com mais de 2,2 milhões de objectos digitais, o arquivo da FMS é hoje tão importante para a história da oposição ao Estado Novo como para salvaguardar a memória das lutas de libertação das ex-colónias. (...)

Uma Casa Comum para uma memória partilhada
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.3
DATA: 2018-12-13 | Jornal Público
SUMÁRIO: Com mais de 2,2 milhões de objectos digitais, o arquivo da FMS é hoje tão importante para a história da oposição ao Estado Novo como para salvaguardar a memória das lutas de libertação das ex-colónias.
TEXTO: O arquivo da Fundação Mário Soares (FMS) arrancou em 1996, quando o líder socialista terminou o seu segundo mandato na Presidência da República, e o objectivo inicial era digitalizar e disponibilizar na Internet o gigantesco acervo documental reunido por Mário Soares (só fotografias, são mais de cem mil), testemunho do seu extenso e notável percurso político, iniciado ainda nos anos 40. Mas atrás do arquivo de Soares vieram outros, muitos outros, e a FMS tem hoje à sua guarda um vasto conjunto de fundos documentais, alguns tão obviamente relevantes para a historiografia portuguesa como os de Afonso Costa ou Bernardino Machado, ou tão incontornáveis para a memória das lutas de libertação das ex-colónias como o Arquivo da Resistência Timorense ou os arquivos de Mário Pinto de Andrade (1928-1990), fundador e presidente do MPLA, que mais tarde se oporia a Agostinho Neto, e de Amílcar Cabral (1924-1973), fundador do PAIGC, cujos papéis foram resgatados in extremis de um edifício bombardeado e saqueado. Ao todo são mais de 200 arquivos, que ocupam cerca de 2, 5 km lineares e cobrem praticamente todo o século XX em Portugal e nos países de língua portuguesa, com um foco evidente, mas não exclusivo, na oposição ao Estado Novo e no combate ao colonialismo. E não menos significativa do que a sua dimensão física, é a componente digital deste arquivo. A FMS apostou, desde o início, em digitalizar e disponibilizar na Internet, tão rapidamente quanto possível, os materiais que ia recebendo, uma estratégia absolutamente pioneira nesses meados dos anos 90, e cujos reconhecidos bons resultados ajudam decerto a explicar – a par do prestígio, das relações pessoais e do empenho do próprio Mário Soares –, que tanta gente tenha tomado a iniciativa de confiar os seus papéis à fundação. Somando as digitalizações de documentos textuais às fotografias, registos sonoros e vídeos, os arquivos da FMS reúnem hoje mais de 2, 2 milhões de objectos digitais. Só as mais de 30 mil edições do Diário de Lisboa, integralmente digitalizado a partir de uma colecção completa oferecida pela família Ruella Ramos, e pesquisável através de um interface especificamente criado para o efeito, somam cerca de 700 mil páginas. Mas se o DL é um caso à parte pela sua extensão, abarcando um período que vai de 1921 a 1990, o arquivo e biblioteca da FMS conserva um grande número de edições completas de periódicos legais e clandestinos. A diversidade dos fundos, o facto de muitos deles, como o do próprio Soares, abarcarem diferentes períodos, e a natureza também muito variada dos cruzamentos que estabelecem entre si, torna difícil distribuir estes arquivos por gavetas minimamente estanques, sejam elas geográficas, cronológicas ou temáticas. Vários têm ainda origem em figuras da I República, mas que em muitos casos vieram também a ser opositores do Estado Novo, como os já referidos Bernardino Machado e Afonso Costa. O arquivo do escritor e ex-Presidente da República Manuel Teixeira Gomes, o de Rodrigo José Rodrigues, ministro do Interior de Afonso Costa, com documentação importante para a história do Partido Democrático, ou ainda a extensa colecção iconográfica de propaganda republicana que a FMS adquiriu a António Pedro Vicente são outros arquivos relevantes para a história da I República. Os arquivos do médico, artista plástico e antifascista Abel Salazar, do matemático e militante comunista Bento Jesus Caraça, dirigente do Movimento de Unidade Democrática (MUD) e criador do pioneiro projecto de divulgação científica e cultural que foi a Biblioteca Cosmos, do anarco-sindicalista António Gato Pinto, que esteve 13 anos preso no Tarrafal, de Manuel Maria Sarmento Rodrigues, ministro das Colónias de Salazar, ou ainda de Carlos Antunes e Isabel do Carmo, um conjunto que inclui documentos relativos à fundação em Paris das Brigadas Revolucionárias, são alguns exemplos que ilustram bem a diversidade da documentação confiada à FMS, que está longe de se resumir à mais directa família política de Soares e abarca múltiplas proveniências políticas e ideológicas. Para a história das primeiras décadas de oposição ao Estado Novo, um dos conjuntos mais relevantes é o arquivo Ricon Peres/Listas do MUD, que permitiu digitalizar e disponibilizar online todas as listas do movimento, apreendidas pela PIDE, e identificar os seus mais de 57 mil subscritores. Os arquivos de fundadores do PS constituem também um conjunto significativo, que inclui os de Francisco Ramos da Costa, Joaquim Catanho de Menezes, Mário e Beatriz Cal Brandão, António Reis, Mário Sottomayor Cardia, Francisco Marcelo Curto – ministro do Trabalho no I Governo Constitucional –, ou ainda de Jorge Campinos e Alberto Arons de Carvalho, mais centrados nos anos 60 e 70. Na impossibilidade de os listar todos, refiram-se ainda, sem nenhuma ordem especial, os fundos documentais do escritor e artista plástico Manuel Mendes, com um vastíssimo conjunto epistolográfico e uma importante colecção de fotografias, de Mário Neves, primeiro embaixador português na URSS, de João Bénard da Costa (mais sobre a revista O Tempo e o Modo e o movimento oposicionista católico do que acerca da Cinemateca e da sua paixão pelo cinema), de João Soares Louro – um arquivo importante para a história da censura e que inclui ainda um núcleo de documentos sobre o assalto ao Santa Maria, chefiado por Henrique Galvão – , de Kalidás Barreto, fundador da CGTP-IN, do editor antifascista Francisco Lyon de Castro, criador da Europa-América, do historiador Fernando Rosas, fundador do BE, que inclui documentação produzida pelo MRPP, de que foi um dos fundadores em 1970, ou do dramaturgo e crítico de teatro Luiz Francisco Rebello, presidente histórico da Sociedade Portuguesa de Autores, cujos papéis depositados na FMS tratam essencialmente da sua actividade como defensor de presos políticos nos tribunais plenários. Há também vários arquivos que se centram no movimento estudantil de oposição à ditadura e nas sucessivas crises académicas, e outros que vão acolhendo materiais relativos a determinadas organizações políticas e outras instituições, como o MUD Juvenil, o Movimento das Forças Armadas (MFA), o PCTP-MRPP, a União de Mulheres Alternativa e Resposta ou o Museu Maçónico. Alguns são arquivos de grande dimensão, que podem ter dezenas de milhares de documentos, outros resumem-se a um só item, como o de Aquilino Ribeiro Machado. Filho do romancista Aquilino Ribeiro e neto de Bernardino Machado, a FMS deve-lhe o depósito de uma parte substancial do espólio do avô, mas em nome próprio depositou apenas um documento: nada menos do que o manuscrito original do testamento de Manuel Buíça, redigido em 1908, nas vésperas do Regicídio. Também o jornalista Carlos Albino e o realizador de televisão Manuel Tomás entregaram apenas um objecto, mas de grande importância simbólica: a gravação integral da canção Grândola Vila Morena, de José Afonso, tal como foi transmitida na Rádio Renascença no dia 25 de Abril de 1974, como senha que assinalava o início das operações militares que iriam derrubar a ditadura. O 25 de Abril está também presente nos principais arquivos fotográficos conservados na FMS, como os de Alfredo Cunha, Luís Vasconcelos, Carlos Gil ou o do arquitecto e fotógrafo Mário Varela Gomes. E deixou-se para o fim um eixo que se foi tornando cada vez mais central na actividade da FMS: a cooperação com os países de língua portuguesa, e em particular com as antigas colónias africanas e com Timor. Uma vertente que não se esgota na recepção, tratamento e disponibilização de documentos, mas que envolveu verdadeiras acções de salvamento de materiais em risco iminente de se perderem, ambiciosos projectos museológicos, exposições partilhadas e um nível de cooperação com os diferentes países cujo ritmo e intensidade deveria servir de exemplo ao Estado português. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para divulgar a documentação proveniente desses países e cruzá-la com os arquivos portugueses, a Fundação Mário Soares lançou a Casa Comum, um projecto concebido e coordenado por Alfredo Caldeira, que se pretende constituir como uma comunidade de arquivos de língua portuguesa, e que é já hoje um espaço de investigação incontornável, referido em centenas de teses académicas e pelo qual passaram, em 2017, cerca de 600 mil utilizadores, com um tempo médio de permanência acima dos sete minutos. A par do arquivo de Mário Pinto de Andrade, de que já estão disponíveis à consulta mais de quatro mil documentos – incluindo uma notável foto histórica em que o fundador do MPLA aparece ao lado de um Nelson Mandela que iria em breve ser detido e só recuperaria a liberdade quase 28 anos depois –, e do arquivo de Amílcar Cabral, central para a história do PAIGC e das lutas de libertação da Guiné e de Cabo Verde, e cujos 10. 000 documentos estão já integralmente tratados, outro arquivo fundamental é o da resistência timorense, um caso muito particular, já que se compõe neste momento de 150 fundos documentais que foram sendo entregues em diferentes momentos pela população do país, em resposta a um apelo dos líderes da resistência. O tratamento de um arquivo tão complexo é necessariamente moroso, mas há já mais de 16 mil documentos abertos à consulta no portal Casa Comum. A par destes grandes arquivos, aos quais se pode somar o Arquivo Histórico de S. Tomé e Príncipe, que a FMS tem também ajudado a digitalizar e disponibilizar online, tratando os documentos no local, muitos outros fundos são relevantes para a história das ex-colónias, como o do médico Arménio Ferreira, representante de Agostinho Neto em Portugal, o do político e escritor Viriato da Cruz, outro fundador do MPLA que se opôs a Agostinho Neto e se exilou em Pequim, onde veio a morrer na miséria, ou, ainda o arquivo da fotógrafa americana Ingeborg Lippman, que cobriu a guerra civil angolana, ou o do diplomata finlandês Mikko Pyhälä, que no final de 1970 visitou como estudante os territórios libertados pelo PAIGC e fotografou a luta de libertação da Guiné.
REFERÊNCIAS:
#Elesim
A duas semanas da segunda volta das eleições presidenciais, o que no Brasil há de melhor tem de passar da fase #elenão para o tempo do #elesim. (...)

#Elesim
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: A duas semanas da segunda volta das eleições presidenciais, o que no Brasil há de melhor tem de passar da fase #elenão para o tempo do #elesim.
TEXTO: Julgo que ao longo dos quase 30 anos da minha vida cívica e política nunca tinha sido apodado de comunista, vermelho ou apoiante do regime cubano. Pelo contrário, nos últimos anos os apodos que me atribuíram com mais frequência e ligeireza foram de natureza oposta. Esse tipo de rotulagens, apresentadas em tom pretensamente calunioso, nunca me causou qualquer tipo de perturbação. Contudo, as reacções suscitadas pelo artigo que aqui publiquei na semana passada (“Um Canalha à Porta do Planalto”) foram de tal ordem violentas que me impeliram a investigar, ainda que de forma ligeira, a natureza da discussão em curso no complexo mundo das redes sociais brasileiras. O espectáculo que se me deparou releva do domínio da demência. Não estamos apenas diante da pavorosa preponderância das famigeradas fake news, que tanto relevo tiveram nas recentes eleições presidenciais norte-americanas. Estamos perante uma realidade muito mais tenebrosa, onde o delírio de acusações infames convive com a apologia de desvairadas soluções políticas, económicas e sociais. No Brasil estamos a assistir ao trágico desaparecimento do modelo moderno de um espaço público assente no primado da discussão racional, substituído por redes semi-privadas de exaltação e exploração dos instintos e dos afectos mais primários que existem no ser humano. O campo da argumentação finou-se, dando lugar a um palco de proclamações extremistas, dogmáticas e avessas a qualquer tipo de racionalidade dialógica. Bolsonaro é simultaneamente um autor menor e um produto maior desta angustiante situação. Em muito pouco tempo, uma figura política irrelevante e praticamente marginal deu lugar a um potencial Presidente da República. Para isso contribuiu fortemente o mundo sórdido das redes sociais que acabei de descrever. Claro que isso não explica tudo. Bolsonaro só alcançou o inimaginável patamar em que hoje se encontra porque grande parte da direita social e política brasileira se revelou pouco comprometida com o modelo democrático. As redes sociais espelham de modo cristalino o carácter atávico das elites económicas e sociais daquele país. Essa é, talvez, a grande desilusão que o Brasil projecta presentemente no exterior. Era e é sabido que uma das questões mais complexas que afectava a sociedade brasileira residia na dificuldade de articular o respeito pelas regras fundadoras e enquadradoras de uma democracia política liberal com um nível de democracia económica social e cultural capaz de proporcionar a plena integração das massas populares na vida pública nacional. Sabia-se isso, mas julgava-se que o problema estaria razoavelmente superado ao fim de três décadas de democracia. Infelizmente não está. O peso da tradição escravocrata, a permanência de um recalcamento mnésico em relação ao genocídio das populações indígenas, o lastro de processos de assimilação migratória pouco edificantes, parecem continuar a impedir o Brasil de olhar para o seu próprio futuro. De uma certa forma, o Brasil actual parece permanecer mais próximo do Brasil ancestral do que da maior parte dos países europeus. Ali, as elites económicas, sociais e culturais continuam a cultivar um distanciamento obsceno em relação aos sectores mais populares, arrastando consigo toda uma classe média bastante insegura, que vive obcecada com a salvaguarda de um estatuto social capaz de a diferenciar do imenso mundo da pobreza que pulula por todo o país. Sob a fantasia, amplamente propalada, de uma exemplar miscigenação étnica, subsiste uma sociedade profundamente racista. Não será mesmo exagerado afirmar que uma parte significativa desta sociedade permanece num estado pré-democrático, aceitando como naturais diferenças e hierarquias social e culturalmente construídas. Por isso mesmo, um país fervilhante no plano artístico, científico e cultural é também um país onde as classes dominantes manifestam comportamentos de um ridículo atroz e de um egoísmo repugnante. Basta cruzarmo-nos com alguns dos representantes dessas classes privilegiadas em qualquer aeroporto europeu ou norte-americano para imediatamente percebermos o grau de egoísmo e de frivolidade de que dão provas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O povo brasileiro, criativo, imaginativo, dotado de um extraordinário sentido de humor, é afinal de contas muito mais interessante do que as suas atávicas elites. Dir-se-á que é esse mesmo povo que se prepara para eleger Bolsonaro para a Presidência da República. É verdade; o que nos remete para uma questão que tem acompanhado a história contemporânea da América Latina: como conceber um verdadeiro regime democrático pluralista, assente num Estado de Direito, num contexto socio-económico caracterizado pela prevalência de um sistema oligárquico rentista e de um grau de desigualdade de rendimentos económicos e de estatutos sociais incompatível com os valores da modernidade política ocidental? Sob a liderança de Fernando Henrique Cardoso, primeiro, e de Lula e Dilma Rousseff, depois, o Brasil estava a percorrer o caminho certo no sentido da superação desse trágico problema. Com maior ou menor dificuldade, com maior ou menor acerto, esse caminho ia produzindo resultados visíveis; por responsabilidades diversas, foi interrompido; importa, neste momento histórico, impedir a sua total anulação: ainda é possível salvar o Brasil, país do futuro. A duas semanas da segunda volta das eleições presidenciais, o que no Brasil há de melhor tem de passar da fase #elenão para o tempo do #elesim. Está provado que nada se ganha pela negativa, pela simples invocação dos demónios, pela desconstrução dos perigos, por mais reais que eles sejam. O #elenão foi um extraordinário grito de revolta de milhares de mulheres incomodadas e assustadas com o criminoso discurso do candidato da extrema-direita. Agora é preciso ir mais longe. Haddad já demonstrou ter qualidades de inteligência, seriedade e serenidade suficientes para que em torno da sua figura se possa constituir um grande movimento de esperança e de confiança no destino da imensa nação brasileira. O mundo, por estes dias, está de olhos postos no Brasil. E se nesse olhar há preocupação, há também confiança. Nos próximos quinze dias, #elesim vai ser o grande slogan mobilizador de todas as consciências democráticas espalhadas por esse mundo fora.
REFERÊNCIAS:
Um general também se comove
Parece que nasceu militar, de tal modo se lhe colou a farda. Depois comove-se a falar do amor pelo país ou a recordar uma cena de África, e não estamos preparados para ver um general chorar. Entrevista de Anabela Mota Ribeiro. (...)

Um general também se comove
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.050
DATA: 2018-11-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Parece que nasceu militar, de tal modo se lhe colou a farda. Depois comove-se a falar do amor pelo país ou a recordar uma cena de África, e não estamos preparados para ver um general chorar. Entrevista de Anabela Mota Ribeiro.
TEXTO: O que é um militar? Pode ser que isto não seja (só) o lado insólito que promove a leitura integral da entrevista. Pode ser que isto indicie a complexidade de uma vidaJosé Loureiro dos Santos. Percurso militar de excepção. Nasceu numa aldeia do Douro em 1936. Era para ser caixeiro. Foi quase tudo na estrutura do exército. Começou por fazer o curso de Estado-Maior. Fez o curso de Comando e Estado-Maior do Exército Brasileiro (equivalente ao doutoramento). Foi general de quatro estrelas em 1991. Pediu a exoneração do cargo de chefe do Estado-Maior do Exército em 1993 (a história é contada nas próximas páginas). Reformou-se em 1998. Fez duas comissões em África (Angola, 1962/65, e Cabo Verde, 1972/74), foi ministro da Defesa (entre 1978 e 1980), professor no Instituto dos Altos Estudos Militares e no Instituto de Defesa Nacional. Tem publicada uma obra extensa sobre Defesa, Estratégia e Segurança. A lista de condecorações impressiona. Vive numa casa modesta e arrumadíssima nos arredores de Lisboa. No bairro, vai ao café e é “o sr. general”. Divorciou-se há dez anos. Tem três filhos e vários netos. Nenhum é militar. É um grande leitor de História. Deu boa parte dos livros para a sua aldeia. Não pensa na morte. Ri bastante. Vamos ao jovem homem que era em 1953, quando ingressou no exército. . . Chamava-se Escola do Exército. Agora chama-se Academia Militar. Também já se chamou Escola de Guerra. A escola foi fundada por um dos grandes heróis militares que temos, o Sá da Bandeira. Segundo Oliveira Martins, era o único político honesto daquela altura. Por isso não saiu de marquês, não foi a duque, nem foi marechal, foi general. Quem era antes de ser o militar que conhecemos?Sempre quis ser militar, sempre. Porque o meu pai era da Guarda Republicana. Comandava o posto em Vila Pouca de Aguiar. A nossa casa era junto ao quartel, havia mesmo uma porta directa. Ficava deslumbrado quando lá ia o oficial passar ronda. Via a preocupação daquela gente, de estar alinhada, tudo composto. “Vem cá o nosso capitão!” Olhava para eles e pensava: “Vou ser militar. ” O meu pai não tinha posses. Tinha umas terras. Umas leiras? Era assim que se dizia naquela região?Era. A minha aldeia era Vilela do Douro, concelho de Sabrosa. O meu pai falou com um senhor que tinha uma loja de tecidos, o sr. Gomes da Costa. Estou a ver o sítio da loja. Para me ter lá, como caixeiro. Quando estava prestes a acabar a quarta classe, o meu professor foi falar com o meu pai. “Tem de pôr o rapaz a estudar. ”O seu pai sabia ler e escrever?Sabia. Aprendeu sozinho, a guardar gado. Era muito inteligente. Está ali a fotografia dele. A minha mãe também sabia ler e escrever. No princípio sabia mais do que ele. Era de Matosinhos, e no litoral havia outro desenvolvimento. Conheceram-se quando ele estava a fazer a tropa. Fim dos anos [19]20. Com que idade foi de Vilela para Vila Pouca?Primeiro passei por Santa Marta de Penaguião, onde o meu pai foi comandante. Depois foi transferido para Vila Pouca de Aguiar. Eu tinha sete anos feitos em Setembro, mudámo-nos em Fevereiro de 43. Fui para a escola. Usavam-se umas sacolas de pano. Fez-me uma pequena prova e disse: “Já sabes muito, vais para a segunda classe. ” Ganhei um ano. Tinha aprendido como?[Nos meses em que estive] na escola em Santa Marta de Penaguião. Em Vila Pouca não havia liceu. Tínhamos de ir para Vila Real, para uma pensão. O professor tanto insistiu que o meu pai falou com uma tia, irmã da minha mãe, que vivia no Porto — se eu podia ir para lá. Enfim, ele mandaria de vez em quando uns garrafões. De vinho, de azeite?Azeite, que era o mais precioso. Portanto, vivi sete anos no Porto, em casa da minha tia Albertina. Mesmo um guarda não tinha dinheiro suficiente para mandar o filho estudar. Dá bem ideia de como ganhavam pouco os guardas e de como a educação era inacessível a uma boa parte da população. Só os privilegiados é que estudavam. Considero-me um privilegiado. De acordo com o padrão da época, eu era para não estudar. Nem eu pensava nisso. Foram estas as circunstâncias. A partir do 3. º, 4. º ano comecei a dar explicaçõezitas. Tive isenção de propinas e bolsas — e sempre com a ideia de ser militar. Era também um fascínio pela autoridade e pelo formalismo da autoridade?Talvez. Vivi rodeado da disciplina, da autoridade, da necessidade de cumprir as missões. Como é que o seu pai exercia a autoridade? Com o olhar, com palavras?Era natural nele. Tive uma relação muito, muito boa com o meu pai. Era muito aprumado, correcto. Na vila, era o senhor comandante, o senhor juiz e o senhor professor. Mesmo assim, não pertencia aos estratos superiores. Recordo-me que quando fiz o 7. º ano do liceu um juiz desembargador, Gonçalves Pereira, chamou-me: “Quando quiseres, podes ir ao clube. ” Era o clube da elite. Fui promovido ao primeiro estrato. Quando fez o 7. º ano, obteve a melhor classificação no país. Tive um prémio e uns dinheiritos, que me fizeram muito jeito. Nunca viu o seu pai descomposto?Não. Andava sempre fardado. Só me lembro de o ver à paisana depois de se reformar. Nem em casa. Tinha umas fardas de cotim, no Verão eram leves. Podiam usar camisa. Mas nunca arregaçava as mangas. Sem fazer esforço. Foi assim que fez em casa, com os seus filhos?Não. A partir de certa altura, deixou de ser comum os militares andarem fardados na rua. Muitos tinham a farda no quartel. Eu punha-me à vontade: chegava a casa, tirava o casaco, a gravata e calçava umas pantufas. O que é que seria se, de repente, aparecesse o general em pantufas? Brincávamos com isso durante as fotografias. Do ponto de vista da imagem, da percepção pública, ela seria alterada?Não. Também depende de quem é. E da idade. Em Portugal, essa ideia de uma autoridade longínqua desapareceu. Os meios de informação tornaram o Presidente da República, os líderes, mais próximos. Quase que estamos todos os dias com eles na televisão. Naquela altura, não era assim. Um general era uma coisa rara. Se vir um militar na rua, num evento, se não estiver fardado, como é que percebe, na linguagem corporal, que é um militar? Reconhece à légua um militar?Reconheço. Não sei dizer muito bem. Julgo que é o aprumo, a postura. Comedida, não se salientando de uma forma histriónica. A imagem que tenho, minha e dos meus camaradas, é essa: de calma, contenção e determinação. Habituamo-nos, desde cadetes. Levávamos uma vida duríssima. Como era?De manhã tínhamos duas horas de Educação Física. Esgrima ou equitação. Mens sana in corpore sano. Depois comíamos qualquer coisa. Havia duas cantinas, a dos cadetes e a dos soldados. Corríamos para a dos soldados porque lá é que havia boas sandes de atum. Depois, aulas teóricas. E estudávamos, tarde e noite. A classificação dos cadetes era feita em três grupos: teóricas, parte física e comportamento militar. No meu caso, tinha muito boas notas nas teóricas e tinhas boas ou boas mais nas restantes. A determinação, é possível apurá-la? Temos a ideia de que ou nasce com a pessoa ou não nasce. Claro que há alguma coisa que temos, mas ela precisa de ser explorada e educada. As coisas nascem em bruto. Um indivíduo que tem a determinação em bruto é um indivíduo que faz disparates. Criamos também na vida militar outro valor inestimável: a camaradagem. Já se referiu aos seus camaradas. Foi essa a expressão que usou. Camaradas são aqueles por quem somos capazes de arriscar a vida. Isso acontece em combate. O serviço militar obrigatório (insurgi-me contra o fim, tenho defendido que regresse) dava esse valor. As aulas, os exercícios, as referências históricas dão-nos um modelo que tentamos atingir. Quais são as grandes virtudes militares? Temperança, à cabeça? Não usou essa palavra, mas ela atravessa muito do que diz. Temperança. Lealdade. Coragem. Espírito de sacrifício. Camaradagem. São virtudes cívicas levadas ao seu limite máximo. Quando esteve em África, o ambiente era explosivo. Tinha a noção de que, das suas decisões, dependia a vida de uma comunidade. Como é que se lida com a responsabilidade? Como é que se tem coragem? Como é que se controla o medo?Julgo que o mais importante é o exemplo. É o comandante mostrar aos seus subordinados que é capaz de correr o mesmo risco. Se não for assim, é mais difícil que o subordinado esteja disponível para fazer determinadas coisas. Pode gerar insubordinação?Insubordinação nunca tive nenhuma. Mas pode haver. Esteve em Angola (1962/65) e Cabo Verde (1972/74). Conte uma história que o tenha marcado. Fui para Cabo Verde como chefe do Estado-Maior do Comando Militar. Setembro de 1972. Frequentei em 1971 o Curso de Comando e Estado-Maior do Exército no Brasil. Regressei, fui colocado como professor e depois fui nomeado para Cabo Verde. A capital era Praia e o comando militar era no Mindelo. Era uma vida relativamente calma. Estavam lá a minha mulher e os meus filhos. Aliás, os meus filhos frequentaram lá o liceu e o mais novo a escola primária. Têm muitos amigos cabo-verdianos, e eu também. As coisas correram bem até que comecei a aperceber-me das movimentações. . . Como?De vez em quando vinham camaradas a Lisboa. Eu conhecia parte dos oficiais que estiveram metidos no 25 de Abril. A situação era insustentável. Primeiro, não tínhamos capacidade para continuar a combater em três frentes, em situações, como era o caso da Guiné, em que o inimigo estava mais bem armado do que nós. Depois, não era o meu caso, fiz só duas comissões, havia camaradas a fazer quatro e cinco. Em 1968, 1970, 1972, passou a haver uma osmose entre os oficiais jovens do quadro permanente e oficiais milicianos que tinham saído das universidades — onde se estava em plena insurreição académica. [Essa insurreição] era inoculada nos jovens [militares]. Falavam à sua frente?Em Cabo Verde, era major. Sempre gostei de falar com os meus oficiais e muitas vezes diziam-me. “O que é que o meu major pensa?” Eu, há muito tempo que lia, tinha pensamento político próprio. Com cuidado, mas exprimia o meu pensamento. Tínhamos de caminhar para uma democracia, não podíamos continuar assim. Isso era dito à boca pequena?Não, não. Era dito na sala de oficiais. Tinham confiança em mim e eu dava-lhes confiança. Isto é, mostrava que era possível falarmos disto. E que era bom falarmos disto. Como foram recebidas as notícias da revolução?Quando ouvimos na rádio que estava a haver [uma revolução] (e só soubemos quando tomou posse a Junta de Salvação Nacional), imediatamente fiz uma reunião de oficiais e sargentos do meu quartel. Disse (ainda me lembro das palavras): “Finalmente, podemos andar de cabeça erguida. ” O comandante não estava, estava noutra ilha. “Sr. almirante, temos de mandar uma mensagem para Lisboa a dizer que as Forças Armadas de Cabo Verde apoiam a Junta de Salvação Nacional. ” Ele torceu-se todo. Já tínhamos falado sobre este assunto; tinha esperança nuns generais que conhecia. “Sr. major, porque é que vamos mandar mensagem? Ainda não sabemos muito bem [o que é aquilo]. ” “Exactamente por isso. Não sabemos se a Junta está com dificuldades ou não. Se mandarmos uma mensagem a dizer que estamos com a Junta, podem usar isso. ” “Mas nós temos aqui meia dúzia de soldados. . . ” “Isso ninguém sabe, e não interessa. Isto é uma questão política. Conhece os oficiais da Marinha que estão na Junta? Qual é a sua opinião? Eu conheço os da Força Aérea e do Exército, e também tenho boa impressão. Têm muito prestígio. ” “Então está bem. ”O que é que queria dizer quando falou de estar de cabeça erguida?Os militares estavam, digamos assim, a defender a ditadura. Quando foram os 40 anos do 25 de Abril, escrevi que a instituição militar criou, manteve e destruiu a ditadura. Foi tudo obra de militares. Tínhamos a noção de que, se os militares se juntassem, acabava a ditadura, e isso estava ligado ao acabar com a guerra. Podíamos ser acusados pela população de ser os culpados da situação que o país atravessava. Porque sustentavam a ditadura. Porque apoiávamos a ditadura. Sempre houve em Portugal, desde as revoltas liberais, este princípio que não vai desaparecer tão cedo: as grandes reviravoltas políticas são feitas por militares. Vou pela rua, agora, com os problemas todos que a gente tem, e [perguntam]: “Quando é que mudam isto?” Os militares, especialmente em períodos difíceis e de acabrunhamento, são vistos como tábua de salvação. Se não agem, são os culpados. Quando disse essa frase, estava plenamente consciente do que dizia. A partir dali, ninguém nos podia acusar de manter uma guerra inútil e uma ditadura. Voltemos atrás, ao seu casamentos e aos seus filhos. Falamos de virtudes militares, de contenção, de disciplina, mas todos temos excessos — nem que seja o excesso amoroso. A minha mulher é da Beira Baixa. É minha ex-mulher, porque estou divorciado há uns dez anos. Eu era já cadete. Ela tinha um tio em Vila Pouca de Aguiar. Na rua central, tinha uma loja que vendia fazendas e também vinho. Eu e uns rapazes passeávamos e ela e a irmã estavam à janela. Depois houve um baile no clube. Dancei com ela várias vezes. Começou ali. Casámos quando eu era tenente. Tinha 22, 23 anos. Que sonhos é que tinha?Bem, não sei. A minha preocupação era cumprir os meus deveres militares. E saber. Sempre tive muitos livros. Quando vim de Angola, fui colocado em Elvas. Foi dos anos mais produtivos da minha vida. Li as Grandes Correntes da História Universal do Jacques Pirenne, a História do Mattoso (são uns 12 volumes!). Consultei muito a biblioteca que tinha muitas coisas da biblioteca de Olivença. Porque gostava. Gostava de aprender. (O ano passado mandei para a minha terra quatro mil livros. Mais de metade da minha biblioteca. Organizou-se um centro de estudos de Segurança e Defesa de Trás-os-Montes e Alto Douro, que patrocinei. )Qual é que costuma ser o excesso, a perdição dos militares?O grande problema dos militares a partir de certa altura é que não sabem fazer mais nada. É gravíssimo, sobretudo quando se passa à reserva. Se não tem um hobby, se não se interessa por outras coisas, há muitos desastres. Há camaradas que avariam, passam a embebedar-se. . . Sentem um vazio na vida. Outros, não, dedicam-se a novas coisas, a escrever, a pintar, à música. O contacto com a morte, e com a ideia de morte, como numa guerra, deixa sequelas sérias?Sim. Mas muitas vezes a coisa banaliza-se. Não no momento em que há problemas, em que a pessoa fica tensa. No normal, não pensa nisso. Habitua-se. Habitua-se a que, de vez em quando, pode ter de fazer coisas em que arrisca a vida. Uma pessoa vai no avião, em viaturas, com escolta, sujeita a uma emboscada. . . não vai a pensar nisso. Há pessoas que exageram. Exageram no cuidado ou no risco que correm?Exageram no sentido em que não têm medo nenhum. O Spínola era um homem muito corajoso, muito corajoso. Às vezes, era corajoso demais. Isto é, havia momentos inadequados em que usava a coragem. Arriscando a sua vida. A vida do comandante. Todas as vidas são importantes, mas para a estrutura militar [a de um comandante] vale mais. Na Guiné, num teatro de operações muito activo, desembarcava em helicóptero quando estavam operações a decorrer. Nunca estive na Guiné. A minha história com ele é em Angola. Conte. Fui a Nóqui ver uma unidade antiaérea, uns radares. O coronel Spínola acompanhou-me. O aeroporto estava a 20 ou 25 quilómetros do rio Zaire. Ia-se por uma estrada, subindo, subindo, subindo, para o planalto onde estava o aeroporto. Essa estrada corria a 50 metros da fronteira com o Zaire. Quando desembarcámos no aeroporto, estava o comandante do batalhão (de lá) à nossa espera, e tinha uma escolta para o caso de haver um ataque. Metemo-nos no jipe. Militares à frente, fomos até Nóqui. Fizemos o que tínhamos a fazer. No regresso, o comandante do batalhão não pôde ir e pediu [desculpa] ao Spínola por não poder acompanhá-lo. Que é que se passou? Esta cena, que mostra a coragem de um homem e uma certa fanfarronice que pode ser prejudicial. Diz ao motorista do jipe: “Passa lá para trás. ” Pôs-se a conduzir. Eu sento-me ao lado dele. Sem capota. A escolta começa a andar e ele começa a ultrapassar as viaturas todas. Acelera e ficámos sozinhos. É claro que não eu disse nada, mas fiquei a pensar: “Se por acaso está alguém a ver-nos passar, é um mimo. Caça-nos à mão. ”Não lhe passaria pela cabeça dizer alguma coisa?Não. Era a noção da hierarquia?Exactamente. Ele era o comandante. A minha ideia foi: “O nosso tenente-coronel (era então tenente-coronel) está a arriscar. Talvez um pouco exageradamente. Eu não faria o mesmo. Mas tenho de correr o mesmo risco. Não posso dizer ‘não’ ao tenente-coronel. ”Teve medo? Em que circunstâncias se lembra de ter tido medo?Sinceramente, não me lembro de uma altura em que tenha tido [segundos de pausa] um medo especial. Às vezes havia uma emboscada, tomávamos as posições, deitávamo-nos. Mas depois aquilo era tudo tiros pelo ar. Muitas vezes, o inimigo não era muito certeiro. Especialmente em Angola. Angola foi um teatro de operações em que ganhámos militarmente a guerra. Quando estive lá, combatia-se no Norte. Sou da fase da transição. A guerrilha começou a mudar para Leste porque no Norte estava praticamente vencida. O comandante-chefe era o general Costa Gomes. Durante a guerra, foi o único comandante-chefe que obteve uma vitória militar completa. As guerras subversivas são muito difíceis de ganhar. Ganham-se com a população, com o apoio da população. Para isso, é preciso ter força para impedir que o adversário — o guerrilheiro — não coaja a população. Isso deu-se em Angola. Na Guiné, não. A situação, na fase final, estava muito má. Em Moçambique também estava a piorar. Há quem discuta se a solução que foi adoptada pelas forças do 25 de Abril foi boa ou má. Qual é a sua opinião?Relativamente a Cabo Verde, fiquei admirado. Porque, quando se dá o 25 de Abril, procurava instruções de cá e ninguém me dava instruções. Cabo Verde não tinha importância. A certa altura vim cá: “O que é que faço?” O Spínola recebeu-me. Eu era major. Disse-lhe que o almirante se tinha vindo embora, que não aguentava aquilo. Houve manifestações, mortes. Ficaram todos à nora. “Vai voltar e é o delegado da Junta de Salvação Nacional, encarregado do Governo e comandante-chefe. ” Deve ter sido em Maio de 74. Mas logo a seguir à revolução, fui a todas as ilhas dizer que finalmente os portugueses estavam em democracia e que eles, cabo-verdianos, iam ter a oportunidade de se pronunciar sobre o que queriam ser. Se queriam continuar ligados a Portugal, se queriam ser independentes. Convenci-me de que era possível haver eleições em Cabo Verde. A ideia inicial era essa. A certa altura, o pessoal do PAIGC [Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde] de Cabo Verde começou a afluir a Cabo Verde. Falei com Melo Antunes. Um parêntesis para falar dele. Éramos muito amigos. Foi meu colega de curso. Eu era cadete e não ligava à política. Ele já estava na política. Não estudava nada! Perguntava-me o que ia sair nos exames, estudava durante a noite e safava-se. Era muito inteligente. Falei com ele. “Como é isto? Ando a dizer que vai haver eleições e vocês estão a negociar com o PAIGC?” Explicou-me que não tinham outra solução. “Eles ameaçam não parar a guerra na Guiné se não for [independência para] Guiné e Cabo Verde. ” Não tínhamos condições. Quando se dá o 25 de Abril, os militares portugueses abateram armas. Abateram armas?É. Deixaram de ter vontade de combater, de arriscar. Acharam que não valia a pena, que o assunto estava resolvido. E que a solução era que os que lutavam contra eles fossem independentes. Julgo que a grande ligação que existe entre as forças armadas portuguesas e as forças militares dos vários países que se tornaram independentes passa por aí. [breve interrupção] Ah!, gato! O gato quer entrar, mas não deixo. Vai às plantas. Como é que se chama o gato?Che Guevara. [riso]Tem admiração por Che Guevara?Tenho. Trato-o por gato, porque não há cá mais nenhum. Que militares mais admirou?Napoleão. Foi um grande general e político, tinha uma estratégia total. Admirei muito Eisenhower. Júlio César, é claro. Quando viu uma estátua de Alexandre, o Grande, começou a chorar: “Já tenho não sei quantos anos e não fiz nada. Alexandre, com não sei quantos anos, conquistou o mundo. ” Também foi um grande general, Alexandre. Tinha génio militar. O que é, numa linha, um grande general? É o que comanda, o que tem o ímpeto de fazer, de conquistar, o que encontra soluções?O meu modelo de general é o indivíduo que é capaz de comandar bem as forças que estão à sua responsabilidade tanto em tempo de paz como em tempo de guerra. Um bom general define-se muito em tempo de paz. Por exemplo, o general Spínola tinha aquele panache, o monóculo. O general Costa Gomes era uma pessoa discreta. Mas, a meu ver, como general, foi mais completo. Excelente operacional. Muito fino, apercebia-se com facilidade das relações de força entre grupos. Trabalhou de perto com ele?Já o conhecia, mas fiquei com grande admiração por ele quando vim de Cabo Verde. Pediram-me para ser o secretário permanente do Conselho da Revolução. Houve um período em que tinha dois encontros por semana com Costa Gomes. Um para fazer a acta e outro para preparar a ordem de trabalhos para a reunião seguinte. No Che Guevara, admirava o idealismo?Admirava a determinação. Tinha um objectivo e foi capaz de morrer por ele. Era uma determinação ligada a um ideal. A um ideal que é discutível. Mas tinha a determinação que o levou a arriscar a vida, e isso é notável. Uma vez ouvi de uma revolucionária: “Não há heróis, há caminhos e escolhas irreversíveis. ” Concorda?É um pouco isso. São escolhas. Depois há maior ou menor persistência ou determinação na tentativa de as concretizar. Era um militar heterodoxo, médico de formação. Sim, sim. Não foi um militar de carreira, mas foi um combatente. Há pessoas que arrastam multidões para combater por uma ideia ou um país. Então a nossa Maria da Fonte? Assumiu a liderança de uma revolta, uma mulher, que não teve preparação militar. Quando começou a subir na estrutura militar, a ambição, qual era?Durante muito tempo não pensei nisso. Ia subindo. Vim de Angola e fui para Elvas. Sabia o que me ia acontecer: ao fim de um ano, voltava para Angola ou Guiné ou Moçambique, e depois para cá. Pensei: “Não vou aguentar esta vida. Tenho uma de duas escolhas. Ou vou tirar um curso de Direito e saio do Exército, ou tiro o curso do Estado-Maior. ” Meti dois requerimentos. A primeira resposta que veio foi a do curso do Estado-Maior. Quando pensou que não aguentaria aquela vida, estava a pensar em quê?Comissões. A família cá. Tudo isso. Insónias?Sim, sim. A insatisfação dos militares (em especial dos capitães) não era só por estar na guerra. Era porque isso significava estar longe dos filhos. Os filhos não os conheciam!, praticamente. E estar também a arriscar a vida. E isto nunca mais acabava. Escrevia cartas, quando estava em África?Quando estive em Angola, escrevia cartas aos meus pais. Para o meu pai. Não contava coisas militares. Só algumas coisas importantes e que ele gostava de saber. Sei lá. “Acabei de fazer o meu quartel. ”Tinha grande orgulho em si?Muito, muito. Não assisti, mas contaram-me. Recebi o prémio de aluno mais bem classificado do liceu. Estava já a frequentar a escola do exército. Pedi ao meu pai que fosse receber o prémio por mim. Foi uma coisa! Uma grande comoção. Ele não tinha a idade que eu agora tenho. . . Mas à medida que uma pessoa envelhece, vamo-nos emocionando, comovendo com muito mais facilidade. Eu agora tenho uma enorme dificuldade em assistir a juramentos de bandeira. Porque se comove?Muito. Já se comoveu várias vezes ao longo da entrevista. Quase sempre teve que ver com recordações de família ou de momentos marcantes e de reconhecimento da sua vida. Também quando falou de dar a vida por um camarada. A partir de que momento se permitiu comover-se?Tive sempre momentos em que me emocionei. Mas este mais à-vontade que tenho em emocionar-me foi depois de me reformar. Primeiro, há o ditado que diz que um homem não chora. Depois, não estamos à espera de ver um general chorar. [gargalhada] É verdade. Há generais mais velhos do que eu que são naturalmente convidados para as cerimónias militares e que não vão porque se emocionam. Qualquer coisa lhes cai da sua imagem pública por se comoverem ou chorarem em público?Não, acho que não. Mas há militares que não gostam de ser vistos assim. Em que circunstância não parece mal um militar chorar em público?Acho que não parece mal, por exemplo, nas cerimónias militares de grande comoção, como o juramento de bandeira. É vulgar ver muita gente na tribuna com lágrimas nos olhos. Traduz o nosso amor pelo país. Outra situação: quando falamos sobre pessoas que conhecemos no passado e que já morreram. Há meses tive um choque enorme. Morreu um camarada do meu curso, o general Espírito Santo. Estava sentado no sofá, na casa da filha, nos anos de um neto. Estava a falar e apagou-se. Quando me disseram, irrompi em soluços. Foi meu colega desde liceu. Também era uma pessoa de origens humildes. Vai fazer 79 anos este ano. . . Faço a 28 de Agosto, segundo a minha mãe diz. Só que o registo está no dia 2 de Setembro. Foi para não pagar a multa. Era um estratagema comum. Era. Atrasavam-se [a registar]. Nasci numa aldeia. No outro dia, fui lá. Tem agora casa bonitas. A minha prima vive na casa onde nasci, melhorou-a muito. Era uma casa de rés-do-chão, de pedra de xisto e chão de xisto. “Anda cá ver a casa onde nasceste. ”Tem pensado na morte? Os amigos vão partindo. Não penso na minha morte. Mas vejo os amigos partir e tenho consciência de que mais cedo ou mais tarde posso morrer, e com facilidade. Houve uma altura em que. . . não digo que pensasse que ia morrer, mas havia uma grande probabilidade de morrer. E não me preocupei. Esteve doente?Estive. Há uns três, quatro anos. Tenho muitos problemas de pulmões, fumei muito. Apareceu-me um nódulo e tive de fazer uma biopsia. Fui para o hospital militar. Por azar meteu ar nos pulmões. Para tirar, atingiram-me uma artéria e tive uma hemorragia. Depois deu-me um enfarte. É crente?Fui, quando era mais jovem. Hoje sou agnóstico. Olhei para a morte possível. Inclusive fiz um testamento. Mas sem preocupação. Para mim, foi uma prova. Eu tinha medo de ter medo da morte. Quais foram as grandes derrotas da sua vida?[silêncio] Acho que não tive grandes derrotas. Tudo o que fiz foi por vontade própria e por iniciativa minha. Vou dar-lhe um exemplo. Como sabe, fui chefe do Estado-Maior do Exército e pedi a exoneração. Saí porque o Governo fez uma lei que eu considerava iníqua. Tratava os militares como cobaias, colocando-os uma situação de menoridade relativamente aos outros funcionários públicos. Procurei evitar que isso acontecesse. Penso que consegui convencer o ministro da Defesa, Fernando Nogueira, ainda que nunca mo tenha dito claramente. Era o primeiro-ministro, por trás dele, que estava contra. Cavaco Silva. Era. Foi a Conselho Superior de Defesa Nacional. Expus as razões por que achava que não devia ser assim. Fiquei muito triste porque os meus camaradas dos outros ramos não me apoiaram. Calaram-se. Mas as coisas são como são. O Presidente da República era o Mário Soares. Já tinha o diploma legal para promulgar. Vira-se para o Cavaco: “Parece-me que o senhor general tem razão. . . ” O Cavaco, com aquela cara de Cavaco, diz: “Foi tudo muito bem estudado e não estou disposto a fazer nenhuma alteração. ” Nessa altura [1993], saí. Saiu porquê, especificamente?Claro que saí com tristeza. Mas não podia, perante os meus subordinados, ficar. É a tal questão do exemplo. Iriam dizer: “Mas este tipo tem a lata de aceitar uma coisa que nos prejudica a todos?” Eventualmente, não mo diriam na cara. Mas pensá-lo-iam. E eu perderia a face. Como foi recebido entre pares o seu pedido de exoneração?Não o fiz com essa intenção, mas isto, no mundo militar, reforçou o meu prestígio. Não somos imunes a isso. Tive a coragem de defender os meus pontos de vista e de, uma vez que não os alcancei, sair. Para mostrar aos meus subordinados que estava com eles. Eu tinha 56 anos. Portanto, tinha mais nove anos à minha frente. Eu ia, de certeza, ser CEMGFA (chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas). Nem que fosse pelo tempo [de serviço]. Mas achei — acho — que não pode ser assim. Sabe dizer o que fez de si um militar de excepção?Não sei se sou um militar de excepção! Não sei, não sei. Em 1977, fui graduado para reorganizar as Forças Armadas. O general Eanes disse-me: “Não tenho tempo. Tu é que sabes disso. ”Os generais tratam-se todos por tu? Não estamos à espera de ouvir Eanes dizer: “Tu vais. . . ” ou o Melo Antunes a dizer: “O que é que sai no teste amanhã?”[riso] Entre nós. . . Fomos todos cadetes. Disse ao Eanes: “Vai ser doloroso. Têm de me prometer que os chefes do Estado-Maior dos ramos me dão as condições para fazer a reorganização. ” É claro que ao fim de algum tempo as condições falhavam. Especialmente no Exército. Fazer uma reestruturação que mandasse muita gente embora era impossível. Eu não tinha condições, mas havia razões para não as ter. Razões políticas. Ao fim de três meses, fui falar com o Eanes. “Não posso continuar. ” “Mas fica. ” Voltei ao fim de mais três meses. “Está provado que não há condições. ” “Fica. Preciso de uma pessoa de confiança para tomar conta das Forças Armadas. Estou muito assoberbado com os problemas da presidência da República. ” “Não aceito ser general graduado mais tempo. Aceitei para uma função e pronto. ” Fui embora. Mas não me senti derrotado. Sente que teve de provar muito mais por ter origens humildes?Nunca senti. Fez menção a uma estratificação social que existe em Portugal (“Agora já podes ir ao clube”). Talvez já tenha sido mais vincada. Como é que não era sentida nas Forças Armadas?Podemos dizer que a estratificação social na estrutura militar é entre o corpo de generais, o corpo de oficiais, os sargentos e as praças. No interior [da estrutura]. Quando é que voltou à sua aldeia já com estatuto de vencedor?[riso] Era ministro da Defesa. Foi em Vila Real [a celebração] do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades. Foi ministro em 1978, 79 e 80. Exactamente. Souberam. “Tem de ir lá à aldeia. ” Não queira saber o que me fizeram. Quando chego, eram foguetes por todo o lado! Entrámos na escola. Estava uma mesa enorme cheia de iguarias. “Sirva-se. ” E ninguém se aproximava. “Isto é para todos, não consigo comer isto tudo”, disse. Foi um dia inesquecível. Bons tempos. Não tenho maus tempos para recordar. Acho que não tenho maus tempos. Já viu que fortuna uma pessoa não ter maus tempos para recordar. . . É verdade. Mesmo as coisas más que me aconteceram, pela forma como reagi, transformaram-se em coisas boas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O seu filho é militar?Não, é médico. As filhas, uma é matemática e a outra é médica. Tenho netos. O mais novo tem 19 anos. Nenhum quis ser militar. Bem procurei. . . [riso] São todos bons rapazes e boas raparigas. Loureiro dos Santos, militar?, e está tudo dito?Não sei. Sempre procurei ser um bom militar, comportar-me como um bom líder militar, mas nunca deixei de ler. Basicamente, História. PUB
REFERÊNCIAS:
Forças governamentais massacram centenas de civis, segundo a ONU
Os crimes ocorreram em aldeias que se encontram, alegadamente, dominadas pela oposição política daquele país. (...)

Forças governamentais massacram centenas de civis, segundo a ONU
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-09 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os crimes ocorreram em aldeias que se encontram, alegadamente, dominadas pela oposição política daquele país.
TEXTO: Cerca de 232 civis foram mortos e 120 mulheres e raparigas foram violadas, entre os meses de Abril e Maio, por forças militares governamentais do Sudão do Sul e milícias alinhadas. A informação foi divulgada através de um relatório das Nações Unidas (ONU). Até ao momento, o governo do Sudão do Sul ainda não se pronunciou sobre os dados da ONU. Os crimes ocorreram em aldeias cominadas pela oposição. A ONU já apontou três comandantes do Exército do Sudão do Sul como principais responsáveis pelos crimes, garantindo que podem vir a ser acusados por crimes de guerra. Contudo, as Nações Unidas relatam que as forças rebeldes também levaram a cabo ataques contra populações civis. Segundo o relatório, os ataques às aldeias são de uma natureza brutalmente devastadora, vitimando desde mulheres, idosos, deficientes físicos e mentais. O alto comissário dos Direitos Humanos da ONU pede à comunidade internacional que não deixe ficar impunes os responsáveis por estes crimes. "Os perpetradores não podem escapar impunes", afirmou Zeid Ra'ad al-Hussein. O alto-comissário propõe a criação de um tribunal internacional para que estes massacres sejam julgados. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. As Nações Unidas já prometeram o envio de 150 capacetes-azuis para o estado de Unity, no norte do país. Esta região tem sido a mais castigada pelos confrontos entre rebeldes e forças do governo. Uma resolução para o conflito entre a oposição e o governo afigura-se cada vez mais difícil. Os rebeldes rejeitaram, na segunda-feira, um acordo de paz, que passava por reintegrar o líder da oposição Riek Machar no executivo sudanês como vice-presidente. Machar lidera uma rebelião anti-governamental, depois de ter sido demitido do cargo de vice-presidente em 2013, na sequência de uma luta pelo poder entre o Machar e o Presidente Salva Kiir. O confronto deixou um rasto sangrento neste jovem país africano (formado em 2012), contabilizando, desde do inicio do conflito, 300 mil mortos e três milhões de deslocados.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU
Os pecados de Portugal em África foram todo um tema em Guadalajara
Lídia Jorge, Isabela Figueiredo e Dulce Maria Cardoso levaram à maior feira do livro de um continente com um negro historial de colonização relatos da difícil relação de um país com as suas ex-colónias. Uma das sessões acabou em lágrimas. (...)

Os pecados de Portugal em África foram todo um tema em Guadalajara
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.2
DATA: 2018-12-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Lídia Jorge, Isabela Figueiredo e Dulce Maria Cardoso levaram à maior feira do livro de um continente com um negro historial de colonização relatos da difícil relação de um país com as suas ex-colónias. Uma das sessões acabou em lágrimas.
TEXTO: Três escritoras, três mulheres que viveram em África no tempo em que Portugal não era "um país pequeno" e estendia o seu império colonial pelo mundo, passaram pela Feira Internacional do Livro (FIL) de Guadalajara, no México, para mostrar que esse tópico difícil e ainda em ferida é bem mais do que apenas "um subtema da cultura portuguesa", como notou Pedro Serra, o professor de literatura da Universidade de Salamanca que tentou moderar a conversa cheia de remissões para Moçambique entre Lídia Jorge e Isabela Figueiredo. Antes, já a Angola de Dulce Maria Cardoso, que em 2012 expiou a sua experiência como colona e como retornada em O Retorno, tinha entrado em cena nesta que é a maior feira do livro do espaço latino-americano, e em que Portugal encerra este domingo a sua participação como país-tema. Apesar de terem escrito, com algumas décadas de diferença, dois livros praticamente contíguos sobre a experiência portuguesa de colonização e de descolonização de Moçambique (A Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge, saiu em 1988; o Caderno de Memórias Coloniais de Isabela Figueiredo foi publicado pela primeira vez em 2009 e reeditado seis anos depois), era a primeira vez que as duas autoras se juntavam para falar das suas obras. O resultado foi um diálogo emotivo que poderia ter acontecido em Lisboa, atendendo a que o violento historial de colonização do México nunca se intrometeu na conversa. Ou talvez não. Estarem a milhares quilómetros de distância de Portugal poderá ter ajudado a que falassem do país de outra maneira. A sessão acabou com ambas de lágrimas nos olhos. Sem perguntas, quer dos portugueses presentes na plateia, convidados do evento, quer do público mexicano. Dias antes, também Dulce Maria Cardoso contara aos visitantes da feira que viveu em África, “num típico bairro de colonos portugueses”. Foi assim que lhes apresentou O Retorno, romance “sobre o fim do império português” e o consequente regresso à metrópole de meio milhão de pessoas: “Éramos os restos do império português e ninguém gosta muito de restos. "“Somos três mulheres com três visões diferentes, de facto”, concorda Lídia Jorge quando mais tarde lhe pedimos para reflectir sobre a proximidade entre estas três obras. “O meu livro, A Costa dos Murmúrios, fala de uma culpa, da minha culpa. O livro da Isabela Figueiredo, através da figura do seu pai, culpa os colonos, culpa os brancos, culpa-nos. E a Dulce Maria Cardoso, em O Retorno, dá conta do seu grande ressentimento contra os portugueses concretos que não souberam acolher os que chegaram, o que vê como uma traição. ”Unidos por esse "sentimento profundo de culpabilização", os três livros são para Lídia Jorge “actos de contrição” dos pecados dos portugueses, que “se safaram” deixando para trás os muitos mortos da Guerra Colonial que até hoje "não sabemos sequer honrar". De resto, a escritora sente a pressão de "todo um movimento, sobretudo universitário, que quer à viva força que expiemos essa culpa, que quer à viva força dizer que fomos racistas, que fomos esclavagistas": "A minha perspectiva é que temos o direito de sair da história dos nossos pais. De dizer: ‘Eu não fiz isso e estou aqui para reconhecer o que eles fizeram, mas também para inaugurar um novo momento histórico’. Não quero que permanentemente olhem para mim como se fosse uma agente dessa situação. Respeitem-me como pessoa fora disso. Tenho esse direito. "A Costa dos Murmúrios, O Retorno e Caderno de Memórias Coloniais são, diz a escritora ao PÚBLICO, "livros de urgência". A que junta Esse Cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida, editado em 2015. Acha “muitíssimo curioso” que sejam as mulheres a fazer essa revisão e a mostrar como uma herança colectiva ecoa na intimidade de cada ser humano. E também vai ser uma mulher, Margarida Cardoso, a realizadora que já transpôs para o cinema o romance de Lídia Jorge, a fazer a adaptação a filme de Caderno de Memórias Coloniais. Mas na sessão em Guadalajara também se abordou a discussão sobre o futuro Museu das Descobertas (ou da Descoberta) que decorre em Portugal. “Há quem diga que a criação desse museu é um sinal de que continuamos a ter uma memória colonial, viva e activa, que é a última forma de fazer colonialismo. Então para que servem os nossos livros? Para que serve A Costa dos Murmúrios? Serve para revisitar o momento de onde, sem nacionalidade, eu falei das vítimas e dos carrascos, dos que queriam continuar um monopólio injusto numa terra que não lhes pertencia. Serve para os africanos saberem que temos um sentimento de culpa e que ele não envergonha, pelo contrário. Esse livro, como todos os outros, diz que precisamos de falar do que aconteceu, dos sentimentos que estão vivos, para podermos passar a uma outra página”, argumentou Lídia Jorge. Sentada ao seu lado, Isabela Figueiredo, que nasceu em Moçambique, em 1963, também defendeu que “um museu do passado não ofende ninguém”. Para a autora – que, comparou Pedro Serra, fez algo parecido com o que Lídia Jorge fizera 20 anos antes, mas inaugurando “uma nova etapa”, em que “quem fala da memória são os retornados”, com uma “linguagem completamente diferente” –, Portugal é como "um idoso que já viveu muitos anos" e “carrega muitas culpas”, mas também “muitas vitórias e muitas maravilhas”. “É natural que países com uma longa história tenham este passado tão carregado. E eu gosto muito de ser uma peça de museu de carne. É aquilo que me sinto todos os dias, uma peça do museu colonial. Nasci em Lourenço Marques e até aos 13 anos o meu pai sempre me disse: ‘Tu não és portuguesa, tu és moçambicana’. Havia uma forma de viver aquela ideia de se ser moçambicano branco de que as pessoas como o meu pai se orgulhavam. ”Quando foi obrigada a sair de Moçambique, devido à independência do país e à violência que esta acarretou, sentiu-se perdida. Não sabia de onde era. Nem o que era. Nem o que andava a fazer no mundo. “Tenho andado a minha vida inteira a tentar encontrar-me. Mas eu tenho de ter um lugar, tenho de ter pátria. Tenho de aceitar Portugal com as suas contradições, tal como ele é. Tal como tive de aceitar o meu pai, tal como ele era, um homem racista com o qual eu não concordava. Tinha um lado sombrio e um lado luminoso, como Portugal, onde o passado colonial não está resolvido. ”Em Portugal, contou ainda a escritora, é constantemente interpelada por pessoas que não nasceram em África mas que herdaram toda uma linguagem e uma cultura africanas porque os seus pais vieram de lá. “Têm os mesmos problemas identitários que eu tenho, embora nunca tenham pisado África, o que é interessante. ”Ouvir a fala de Isabela Figueiredo despertou em Lídia Jorge uma memória, ela que teve “uma experiência de guerra particular”, porque foi para Portugal acompanhando o marido, oficial da Força Aérea Portuguesa. “Eu sabia dos crimes que se praticavam contra os nativos, e também vi muitos portugueses jovens mortos, estive no meio do problema. Quando regressei a Portugal achei que nunca escreveria sobre uma coisa que me fez sofrer tanto. ” Mas à medida que o tempo passava foi percebendo que o país queria esquecer. “Não queria falar. Da Guerra Colonial, dos estropiados, dos homens que tinham pesadelos de noite, que batiam nas mulheres, nos filhos, gente enferma mentalmente, que não era capaz de falar da sua experiência, que odiava África e a gente de África. Tudo isso existia, escondido, dentro de casa. ”Escreveu A Costa dos Múrmúrios quando compreendeu que “as palavras começaram a ser esquecidas”, e que só a última parte da memória ia ficar, como um murmúrio. Para testemunhar que os portugueses que comiam gambas nos hotéis e aqueles a quem eles chamavam “selvagens”, porque comiam gafanhotos assados ao ar livre e dançavam ao redor de uma fogueira, eram “duas culturas que estavam diante uma da outra e não se compreendiam”: “Éramos irmãos e não o sabíamos. Éramos vítimas do poder político de Portugal”, explicou a autora, que em Moçambique se sentia como uma espia, ela que era feminista, que se tinha formado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que tinha estudado e compreendido os poetas. Nesse teatro de guerra, percebeu que afinal a mulher não seria o futuro do homem, pelo contrário, pois havia mulheres que queriam que os seus maridos viessem do campo com muitos mortos, para serem condecorados. “Isso foi para mim uma experiência tremenda, porque compreendi que éramos todos o mesmo género humano. ”Nessa época de menina, Isabela Figueiredo fazia perguntas sobre a guerra e respondiam-lhe que era uma coisa lá longe que não lhes dizia respeito. Os militares chegavam a Lourenço Marques e desapareciam rapidamente, distribuídos pelos quartéis. “É muito curioso ouvi-la falar disto, Lídia, porque eu estava lá e não sabia o que acontecia. Choca-me ouvir a sua narrativa assim na primeira pessoa”, disse a escritora em Guadalajara, explicitando o lugar a partir do qual viveu a opressão colonial: “Eu não tinha andado na faculdade de letras, nem tinha lido, nem tinha educação política; a minha questão era humana, era católica. A minha educação dizia que éramos todos iguais e devíamos ajudar os que precisam. Ao perceber que tudo o que se passava à minha volta era de uma enorme desigualdade, pobreza e injustiça, de falta de respeito pelo outro, pelo colonizado, pelas mulheres e pelos homens negros, isso criou em mim uma revolta. ”Isabela Figueiredo olhava para a forma como as mulheres portuguesas eram tratadas em África e não queria ter a vida da sua mãe. Mas olhava para a forma como as mulheres negras eram tratadas em África e também não queria ter a vida delas. “Na verdade não queria ter a vida de nenhuma mulher”, admitiu a escritora, que mais do que uma vez se mostrou perturbada com a narrativa da sua colega. “Mas porquê, se há mil pessoas que falam como eu?”, questionou Lídia Jorge. “O meu pai e o meu avô estiveram em Moçambique durante dez anos, também eu era uma menina. Os dois conviviam com os nativos, lembro-me bem das cartas que enviavam, eram boas pessoas mas eram colonos do seu tempo. " Numa dessas cartas, recordou, o seu avô dizia que sentia muita pena das africanas porque quando tinham filhos os peitos lhes caíam pela barriga abaixo e tinham de os carregar às costas. E lembrou a experiência de Margarida Cardoso, que também foi uma menina em Moçambique e sabia da guerra porque percebia que os camaradas do seu pai morriam: em sua casa, conta, as portas de casa estavam sempre encerradas para que não se visse a realidade. Nesta primeira conversa entre ambas, Lídia Jorge quis dizer a Isabela Figueiredo que a história que ela contou sobre o pai em Caderno de Memórias Coloniais "é muito semelhante à história que é contada pela [escritora moçambicana] Paulina Chiziane ao contrário”: “Ela lembra sempre que o seu pai tinha um ódio enorme aos portugueses e aos brancos. Somos todos diferentes. E tu viveste tanta coisa depois, como te choca?”. “Não sei dizer porque me choca", respondeu-lhe Isabela. "Mas quando vejo na televisão ou no cinema imagens de África há um sentimento muito forte que acorda em mim. E fico perturbada. A Lídia, por aquilo que falou aqui, acordou também alguma coisa em mim. Mas falaremos sobre isto no futuro. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Quanto à necessidade de esquecer, Isabela Figueiredo explicou que quando chegou a Portugal, em 1975, realmente não queria falar de África. “Precisei de esconder que era retornada para não sofrer, só para viver, viver”, disse a escritora, que sabe porém que só se podem sarar as feridas se as expusermos ao ar. “É necessário falar, criar museus do passado, assumir o passado, tal como os alemães o fizeram: os museus estão lá, a história está lá para ser contada. Foi horrível? Foi. Mas está aqui, assumimos isto, vamos falar sobre isto. ”Continuar a escrever sobre esta experiência é, para Lídia Jorge, também absolutamente fundamental. “Ao escrevermos as nossas memórias portuguesas, estamos a ajudar a Europa a compreender os tempos presentes. É por isso um dever falarmos dos nossos pecados. ”O PÚBLICO viajou a convite do comissariado para a participação portuguesa na FIL Guadalajara 2018
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Em Lisboa, turistas ouviram residentes dizer: “A cidade é nossa!”
Centenas de pessoas vindas dos bairros históricos e das periferias desfilaram na capital pelo "direito à habitação" e o "fim da especulação". (...)

Em Lisboa, turistas ouviram residentes dizer: “A cidade é nossa!”
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: Centenas de pessoas vindas dos bairros históricos e das periferias desfilaram na capital pelo "direito à habitação" e o "fim da especulação".
TEXTO: O cortejo passa ao lado dos turistas sentados nas esplanadas do centro de Lisboa, e da fila de tuk-tuks a caminho do Rossio, onde na fachada do Teatro D. Maria II, um enorme cartaz sentencia “Há lugar para todos”. As palavras ali colocadas para uma outra manifestação, contra o racismo, serviram este sábado para dar voz ao direito à habitação e contra a especulação imobiliária. “Há lugar para todos?” A pergunta ecoou várias vezes no microfone da carrinha aberta que liderava o cortejo, antes da resposta: “Não! Só para quem tem privilégios. ”Centenas de pessoas desceram a Av. Almirante Reis, passaram pelo Martim Moniz e Rossio, seguindo depois em direcção ao Terreiro do Paço até ao Cais do Sodré. A manifestação juntou dezenas de associações e foi uma das iniciativas que entre os dias 20 e 26 juntam em Portugal associações de Espanha, França e outros países europeus. Pessoas passeavam cartazes em português ou inglês, num dos quais se lia: “Hands off our houses [Larguem as nossas casas]”. Turistas sentados em esplanadas repletas observavam. “Esta mensagem está em inglês para os turistas perceberem que talvez haja outras alternativas ao alojamento local” e que essa opção traz consequências, diz Marta Caeiro, 30 anos, que esperaria encontrar nas pessoas do seu bairro uma comunidade, uma rede social de apoio. Mas o que encontra no seu prédio e na sua rua são desconhecidos que ficam uma semana e saem para dar o lugar a outros. “Partilho a casa com amigas. Só assim é possível viver em Lisboa, mas sempre com medo de ser despejada ou confrontada com um aumento da renda”, diz. Quero Morar Aqui: clique aqui para ver a reportagem interactiva sobre Paula Magalhães e Carla Pinheiro, duas mulheres que a crise da habitação transformou em activistas“É um fenómeno global”, relativiza Chris, 52 anos, australiano de passagem. Aconteceu no centro de Sydney, acontece em Londres, expõe. Em Nova Iorque, já se estão a impor limites ao alojamento local, acrescenta a mulher Emma. “Lisboa não foge à regra. Está a acontecer como aconteceu em Barcelona”, diz Chris para quem o alojamento local é uma escolha por ser “muito mais barato do que o hotel”. Também aconteceu na Normandia, explica um casal francês que se apresenta como senhor e senhora Hamis. “Muitas pessoas enfrentaram dificuldades, porque os ingleses e outros estrangeiros vieram instalar-se e compraram casas na Normandia. Os preços aumentaram muito. Entendemos este protesto [em Lisboa] e admiramos a forma tranquila como decorre”, acrescenta o senhor Hamis sobre o que vê. Há música ao vivo e pessoas a quem o calor só torna as suas palavras de ordem soarem mais intensas e urgentes. Vêem-se cartazes com mensagens em várias línguas com “Lisboa a saque” ou “eu despejo, tu despejas, ele despeja” junto à imagem da ex-ministra e líder do CDS-PP Assunção Cristas. Repetem-se palavras de ordem: “A cidade é nossa”; “O bairro unido jamais será vencido”, numa evocação da revolução do 25 de Abril, antes de se ouvir, pelos altifalantes, que “é incrível, mas é verdade, estamos aqui para reconquistarmos os nossos direitos”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Frente ao Café Nicola, do outro lado do que antes era a Pastelaria Suíça, sobe à carrinha (transformada em palanque) Ricardina e Maria, do bairro da Torre. Pretendem juntar a voz aos residentes dos bairros pobres da periferia, “onde não há acesso a nada”, ao protesto de quem vê o seu direito a habitar em Lisboa ameaçado pelo alojamento local para turistas ou a compra de casas para venda, com margens de lucro e os preços inflacionados pela especulação. “Vivemos fora do mundo, sem acesso a água, sem acesso a nada. Unidos venceremos e a luta vai continuar. Este é o começo da luta pela habitação digna”, diz Ricardina que arranca aplausos de pessoas jovens e outras de muita idade, com um ar frágil. Não desfilam mas marcam presença, permanecendo nos bancos de rua ou em cadeiras de rodas, num protesto que também lhes pertence.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos mulher racismo comunidade social medo mulheres
Maior e mais transatlântico, este é o Guimarães Jazz versão 2018
Sem a habitual pausa de três dias, o festival arranca esta quinta-feira e estende-se até dia 17, com 13 concertos. O cartaz inclui nomes da cena de Nova Iorque, mas também dá espaço à música de Chicago, visita a Europa e investe nas residências artísticas. O contrabaixista Dave Holland, no activo há mais de 50 anos, é o primeiro a actuar. (...)

Maior e mais transatlântico, este é o Guimarães Jazz versão 2018
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.25
DATA: 2018-12-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sem a habitual pausa de três dias, o festival arranca esta quinta-feira e estende-se até dia 17, com 13 concertos. O cartaz inclui nomes da cena de Nova Iorque, mas também dá espaço à música de Chicago, visita a Europa e investe nas residências artísticas. O contrabaixista Dave Holland, no activo há mais de 50 anos, é o primeiro a actuar.
TEXTO: O Centro Cultural Vila Flor vai transformar-se no coração do jazz em Portugal a partir desta quinta-feira, quando Dave Holland, um dos contrabaixistas mais reconhecidos da segunda metade do século XX, subir ao palco, às 21h30. Com mais de 50 anos de carreira, o músico inglês, radicado em Nova Iorque, colaborou, por exemplo, com Miles Davis em dois dos seus álbuns mais experimentais – In a Silent Way (1969) e Bitches Brew (1970) – e aparecerá em Guimarães como líder do quarteto AZIZA, criado há dois anos. O concerto de abertura da 27. ª edição do Guimarães Jazz, diz ao PÚBLICO o programador Ivo Martins, vai “explorar uma matriz africana, a nível de rítmica e de sonoridade”. Depois, o festival viajará por sons de outras latitudes, até por ser mais extenso em 2018 – o habitual intervalo de três dias foi suprimido e o cartaz estende-se ininterruptamente até 17 de Novembro, com 13 concertos, mais dois do que em 2017. Os sons nova-iorquinos vão ecoar de novo em Guimarães, com actuações como a da Millennial Territory Orchestra do trompetista Steven Bernstein, em parceria com a cantora Catherine Russell, idealizada apenas para o festival, no dia 10; e do projecto UPLIFT, criado em 2016 pelo trompetista Dave Douglas como manifesto em defesa da democracia e da igualdade, no dia 15. O encerramento estará também a cargo de uma formação nascida naquela metrópole – composta por 14 músicos, a Mingus Big Band homenageia outro dos contrabaixistas mais relevantes da segunda metade do século XX, Charles Mingus, sendo liderada pela sua viúva, Sue Mingus. Esta edição do festival co-organizado pela Oficina, pela Câmara de Guimarães e pela associação Convívio distingue-se, no entanto, por abrir as portas ao jazz criado na Europa. O aumento do número de concertos, afirma Ivo Martins, foi uma oportunidade para incluir músicos obrigados a ficar de fora em anos anteriores e, simultaneamente, mostrar ao público as diferenças entre o jazz norte-americano e o europeu. “A essência do jazz norte-americano é a cultura afro-americana. Já um músico europeu vem da escola da música clássica”, realça. Para o programador, o jazz europeu tende a ser “mais racional, frio e desinserido do aspecto sociológico”, embora tais características estejam hoje “mais diluídas” face à crescente mobilidade dos artistas. A Europa pisa pela primeira vez o palco no dia 10, com o Pablo Held Trio, formação alemã cuja música assenta no bebop – estilo que apareceu nos anos 40 do século XX –, e volta a ser protagonista no dia 12, com Random/Control, projecto de um trio austríaco liderado pelo pianista David Helbock, cuja música tanto se inspira em nomes do jazz como Duke Ellington como no folclore do país alpino. Mas o Guimarães Jazz também guarda espaço para um concerto de João Barradas, acordeonista português que vai actuar ao lado do saxofonista Greg Osby, no dia 13. Programador do Guimarães Jazz desde 1996, Ivo Martins considera que a cidade está hoje mais preparada, mesmo a nível turístico, para oferecer mais concertos, sobretudo ao fim-de-semana, e atrair os amantes de jazz. “O primeiro fim-de-semana tem cinco concertos. Quem gosta de jazz desloca-se muito mais rapidamente a Guimarães para ver cinco concertos do que para ver um ou dois”, antevê. Habituado a receber artistas de Nova Iorque, o Guimarães Jazz direccionou este ano o ouvido para Chicago, cidade que acolheu muitos dos afro-americanos que, no início do século XX, migraram para o Norte dos Estados Unidos, entre os quais Louis Armstrong. “Nova Iorque é uma cidade-mundo, com todo o tipo de influências. Chicago tem uma componente afro-americana fortíssima e está menos exposta a influências exteriores”, argumenta Ivo Martins. A cidade do Midwest vai estar representada no festival pelo trompetista Marquis Hill, no dia 9, e pela mais recente formação do contrabaixista Matt Ulery, Delicate Charms. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Com cerca de 20 anos de carreira, Matt Ulery já se encontra em Guimarães e, em conversa com o PÚBLICO, descreveu a sua música como uma espécie de “jazz de câmara”, semelhante à que os “músicos clássicos tocam”. Apesar de dizer que a geografia não dita necessariamente o estilo de jazz que se toca, o músico reconhece que, neste momento, há “muita coisa a acontecer em Chicago” e que os “músicos tendem a ser influenciados por quem está em seu redor. O contrabaixista vai participar ainda em algumas das jam sessions que vão percorrer a cidade ao longo de todo o Guimarães Jazz e dirigir o habitual concerto da Big Band e Ensemble de Cordas da ESMAE, no dia 11. O festival integra ainda dois concertos criados em residência artística: a associação Porta-Jazz vai apresentar, também no dia 11, um espectáculo produzido por músicos nacionais e internacionais, em parceria com o cineasta Miguel Tavares, e a Orquestra de Guimarães vai actuar ao lado da flautista e compositora brasileira Léa Freire, no dia 14.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave escola cultura igualdade espécie cantora