Uma canção esmagadora para dançar o amor
Wim Vandekeybus despede-se de Speak Low if You Speak Love com quatro datas em Portugal. Última visita à sua “pequena ópera em movimento” em torno de um amor feito de todas as possibilidades. (...)

Uma canção esmagadora para dançar o amor
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2017-02-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: Wim Vandekeybus despede-se de Speak Low if You Speak Love com quatro datas em Portugal. Última visita à sua “pequena ópera em movimento” em torno de um amor feito de todas as possibilidades.
TEXTO: Rodney Hatch, um vulgar barbeiro, compra um anel de noivado para a sua namorada e resolve colocá-lo no dedo de uma estátua de Vénus. A deusa do amor, enganada pelo gesto, desce do pedestal e resolve investir todo o seu manancial de sedução na conquista de Hatch. Há-de segui-lo depois por Nova Iorque nessa obsessão de atrair o barbeiro com o seu magnetismo sobrehumano. E como cartada mais irresistível, faz uso do seu mais ardiloso recurso: canta-lhe a mais esmagadora das canções — Speak low. Composto por Kurt Weill para esse musical da Broadway, One Touch of Venus, estreado em 1943, o tema havia de ser popularizado pelas vozes de Lotte Lenya ou Nat King Cole, mas nenhuma interpretação excederia a versão de Billie Holiday, capaz de dobrar qualquer Rodney Hatch e soar ao próprio sopro divino de Vénus. O título da canção de Weill, com letra de Ogden Nash, seria extraído de uma fala de escassa importância da peça de Shakespeare Much Ado About Nothing. Coreografia:Wim Vandekeybus Teatro Viriato, Viseu, Quarta, 15 de Fevereiro de 2017 às 21h30 Centro Cultural Vila Flor, Guimarães, Sábado, 11 de Fevereiro de 2017 às 21h30 Teatro Municipal Joaquim Benite, Almada, Sexta, 24 de Fevereiro de 2017 às 21hWim Vandekeybus gosta da falta de peso que a frase isolada assume na trama teatral, assumindo-se cativado por uma “leveza do amor” que quis transportar para a coreografia Speak Low if You Speak Love, coreografia de 2015 cuja carreira internacional termina este mês em Portugal — 11 de Fevereiro no GUIdance (Guimarães), 15 em Viseu, 17 em Coimbra e 24 em Almada. “Temos de ver o amor aos poucos, não como o tema principal mas como sendo inerente a outros temas”, diz o coreógrafo belga ao Ípsilon. Quando fala noutros temas está, na verdade, a referir-se a todas as temáticas possíveis, do nascimento à morte, da dádiva ao assassínio. É como uma ideia maior do que todas as outras, que as infecta indiscriminadamente até ao osso e que não necessita, portanto, de reclamar o centro. Está por todo o lado. E é isso que acontece em cada segundo de Speak Low if You Speak Love. O amor é um pouco de todas as possibilidades, manifesta-se sob todas as formas, assume-se ternurento, violento, incondicional ou manipulador. É tão responsável por acelerações ansiosas dos batimentos cardíacos e de bocas secas de palavras quanto causador de náuseas e ferimentos irreparáveis. A Vandekeybus tanto interessa uma noção conceptual do amor herdada da Grécia Antiga quanto a memória ou recordação de um acontecimento que pode ter não mais do que uma semana na mais anónima e frívola vida contemporânea. Sem uma narrativa arrumada e desenhada para desembainhar uma história de amor, Speak Low faz-se de milhentos amores fragmentados, disparados nas mais variadas direcções e não se deixa aprisionar por qualquer dever de coerência. “Agora talvez me apanhe a mim mesmo a pensar que posso ter lidado mais com a ideia de paixão do que propriamente de amor”, reconhece Vandekeybus. Isso acontece, suspeita, porque a juventude dos intérpretes o conduziu ao arrebatamento, à fisicalidade e a uma sensualidade que, arriscar, poderá estar ligada a um prazer de satisfação mais imediata. Conta o presente, menos o futuro. Mas Speak Low é também palco para o coreógrafo colocar em cena as suas próprias interrogações sobre a ubiquidade amorosa e o porquê de surgir, por vezes, nas situações mais caricatas. “Na cena do viking”, exemplifica, “temos essa pessoa que adora lutar e que achamos que não se ocupa do amor. No entanto, tem a estátua de uma mulher na proa do seu barco. Há também uma religiosa que recusa todas as formas carnais de amor na Terra, mas vive numa relação directa com Deus. Por causa disso, fica intrigada com as outras formas de amor, e ao ceder à curiosidade tem obrigatoriamente de se confessar. Quis olhar para estas figuras para pensar no amor, mas acho também que chegámos a algo em que a tentação e a sedução serão, porventura, mais interessantes e estimulantes do que a sua concretização. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Wim Vandekeybus não está exactamente preocupado em ser fiel a uma definição de amor — é uma forma de retribuir à infidelidade que coloniza de forma alarve esse estado emocional. Até porque, “o amor está muitas vezes mais ocupado a esconder do que a revelar”, diz. Por isso mesmo, nos primeiros 15 a 20 minutos de Speak Low o coreógrafo nega um rosto aos seus bailarinos, ocultando-o atrás de máscaras. Quer também ele esconder, evitar o contacto visual, roubar uma identidade específica e, tal como fará mais tarde, ao enfiar homens e mulheres em palco com idênticos vestidos vermelhos, advoga a igualdade ao mesmo tempo que lembra o quanto há nessa defesa de valores um mandamento bíblico ditado pelo amor. “Temos de respeitar os outros seres humanos, não podemos matar o próximo”, reforça. “O problema é que os grandes políticos, como Trump, fazem o contrário de tudo isso e confundem o mundo inteiro acerca dos valores essenciais que deviam ser claros para todos e estão hoje em perigo. ”O que Vandekeybus quer exercitar em Speak Low é, portanto, aquilo que entende ser uma qualidade característica do teatro e da dança e que passa por simular ou sugerir a empatia. “Quando o público compreende algo, pode sentir-se espelhado naquilo que acontece em palco e sentir essa ligação. ” A empatia fica também a cargo da música, arma de sedução de Vénus que o coreógrafo aqui entrega tanto aos trechos criados e dirigidos por Mauro Pawlowski, membro dos dEUS e seu colaborador habitual, quanto aos fragmentos cantados pela sul-africana Tutu Puoane, que Vandekeybus queria ouvir a “segredar o amor aos nossos ouvidos”. A importância fundamental da música faz com que o belga defina Speak Low como “algo entre uma pequena ópera ou um concerto tomados pelo movimento, e um teatro subterrâneo, sem palavras que não sejam cantadas”. Speak Low foi crescendo durante as filmagens da primeira longa-metragem de Vandekeybus, Galloping Mind, rodada na Hungria e na Roménia. No final, ao voltar para Bruxelas enfiou a cabeça em livros e filmes que ajudassem a estabelecer as fronteiras para uma peça fervida durante meio ano, enquanto se alimentava de reflexões sobre “a memória histórica, a religião, as crenças, a fé, a traição e mesmo a ficção científica”. É possível que tenha sido nesse processo que começou a fantasiar com Mockumentary of a Contemporary Saviour, peça para quatro actores e três bailarinos apontada à ficção científica que estreará em Abril. No palco dessa nova peça. Vandekeybus colocará um mundo num amanhã distante, sem países e em que as personagens vivem esterilmente numa safe house. É um modo de perguntar em voz alta se qualquer “salvador” fará a escolha acertada ao tentar evitar a extinção da humanidade e se é sequer justo colocar aos ombros de um homem essa missão. É possível que o amor, sempre o amor, não chegue para tanto.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte homens humanos mulher homem igualdade mulheres extinção assassínio infidelidade
Buraka Som Sistema: dez anos da história mais surpreendente da música portuguesa
Foi nos primeiros meses de 2006 que começaram a ensaiar os primeiros passos ao vivo. Muitas voltas ao mundo depois, fomos encontrá-los em Londres numa das datas da que poderá vir a ser a sua última digressão. Nunca existiu outro grupo português da música popular com tanta visibilidade internacional. (...)

Buraka Som Sistema: dez anos da história mais surpreendente da música portuguesa
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.366
DATA: 2016-06-06 | Jornal Público
SUMÁRIO: Foi nos primeiros meses de 2006 que começaram a ensaiar os primeiros passos ao vivo. Muitas voltas ao mundo depois, fomos encontrá-los em Londres numa das datas da que poderá vir a ser a sua última digressão. Nunca existiu outro grupo português da música popular com tanta visibilidade internacional.
TEXTO: E num ápice passaram dez anos. Foi nos primeiros meses de 2006 que os Buraka Som Sistema começaram a ensaiar os seus primeiros passos ao vivo, no pequeno clube Mercado em Lisboa. Muitas voltas ao mundo depois, num movimento contínuo que os transformou na banda com mais impacto internacional de sempre da pop portuguesa, fomos encontrá-los em Londres no último sábado, numa das datas daquela que poderá vir a ser a sua última digressão, antes da paragem por tempo indeterminado, anunciada o ano passado. É isso. A série de concertos em que celebram dez anos, que teve início a 5 de Fevereiro em Bogotá, na Colômbia, e que terminará a 1 de Julho na Torre de Belém de Lisboa, poderá ser a última em que os veremos em palco. “Fico triste por acabarem, até porque já os vi aqui em Londres três vezes e foi sempre excepcional, sendo ao mesmo tempo motivo de orgulho e uma forma de mostrar que existe em Portugal mais do que fado”, diz-nos Hernâni Matos, 33 anos, a viver na capital inglesa há oito, a poucos minutos do grupo entrar em palco na lotada sala Electric Brixton. “Compreendo que desejem parar, foram muitos anos em trânsito e cada um deve ter outras ideias em mente”, lança Raquel Braça, que acompanha Hernâni. “Se acredito que vão acabar? Nem pensar!”, ri-se Andy Duggan, o agente internacional do grupo. “Dois anos depois vão regressar, é inevitável, olhe à volta, têm uma sólida base de admiradores”, afirma, fixando as cerca de 2 mil pessoas que enchem a sala. “15% talvez sejam portugueses que habitam aqui, mas 85% são ingleses, ou franceses, ou espanhóis, ou italianos que os querem ver e isso é incrível! Se pensarmos que, ontem, tocaram em Paris, e antes, em Amesterdão ou Berlim, também com lotações esgotadas, dá que pensar. Porquê terminar?”Eles falam de parar para respirar, depois de dez anos intensos. Só vale a pena voltarem a gravar se existirem novas ideias com validade. Argumentam que um ciclo se fecha e outro se abre, com novas formas de comunicar, para lá dos Buraka. Mas isso será mais tarde. Para já, a seguir à Europa, em Abril, seguir-se-ão três datas nos EUA (Los Angeles, São Francisco e Nova Iorque) e provavelmente outros concertos serão adicionados, antes do adeus, em Lisboa, numa digressão iniciada com três datas na Colômbia, depois de ali já terem actuado, em 2010, num festival para 100 mil pessoas. “Em toda a América do Sul acabamos por sentir que existe uma forma de consumir a nossa música muito eufórica”, diz-nos João Barbosa (Branko), durante a tarde, numa das pausas do ensaio de som. “Na Cidade do México também sentimos isso. Parece existir um entendimento da música mais directo, quase como se fôssemos uma banda de lá. ”“Acabamos por tocar nas mesmas referências que eles, porque ao contrário do que talvez se possa imaginar, são muitos atentos, estreitando laços com o resto do mundo, através do YouTube ou Facebook”, completa Kalaf Epalanga. “Estão longe apenas em termos geográficos. Uma noite saí em Medellín e pude constatar que lá se ouve o mesmo som que em qualquer clube europeu. ”Londres, um papel centralConvém, desde já, desfazer equívocos. O campeonato dos Buraka não é o dos Coldplay, U2 ou Beyoncé. O seu feito não se pode medir a partir daí. Mas pode aquilatar-se a partir de uma outra medida simples. Nunca existiu nenhum outro grupo português da música popular com tanta visibilidade internacional como eles, tocando em salas de prestígio (do Fabric de Londres à Bowery Ballroom de Nova Iorque) ou em grande festivais (Coachella nos EUA, Roskilde na Dinamarca ou Montreux na Suíça), sendo alvo da atenção dos media especializados (da Pitchfork à The Fader) ou da mais influente generalista (New York Times, L. A Times, Le Monde, The Guardian, El País ou CNN). Com excepção dos afluentes conectados com o fado – dos Madredeus a Ana Moura, passando por Amália – nunca um projecto iniciado aqui tinha levado o nome de Portugal tão longe, aproveitando um ambiente comunicacional novo e utilizando as ferramentas digitais de ligação global. Numa recente ida ao festival Eurosonic de Groningen, Holanda, a maior montra da indústria da música europeia, em qualquer conversa sobre Portugal havia nomes referenciados: Paus, Batida, Legendary Tigerman, Dead Combo, Moonspell, Mariza ou Ana Moura. Mas só um gerava o pleno em todas as conversas: Buraka Som Sistema. E os membros do grupo têm noção desse efeito? “Sim”, responde Kalaf, dando um exemplo: “no outro dia estava nos BAFTA, nos prémios britânicos de cinema, e uma jornalista inglesa de cinema perguntou-me o que fazia. Respondi-lhe que fazia música electrónica com sensibilidade africana a partir de Lisboa e ela, de imediato, percebeu que eu estava a falar dos Buraka. ”Na criação de toda essa dinâmica, Londres teve um papel central. Foi por isso especial a noite do Electric Brixton. Não foi apenas mais um concerto dos Buraka. Foi uma ocasião para celebrar o grupo, mas também toda a sua rede de cumplicidades, com prestações da dinamarquesa de origem indiana Alo Wala, sessões DJ de Branko, Rastronaut e do inglês Poté, e também a transmissão do documentário sobre o grupo, Off The Beaten Track (2013). Mas, claro, como é evidente, o momento alto foi a hora e meia de concerto do grupo. Entraram primeiro João e Rui Pité (DJ Riot), impondo o ambiente e o ritmo, com bateria, teclados e programações a fazerem subir a temperatura, antes de surgirem Kalaf, Andro Carvalho (Conductor) e Blaya, para as palavras, os incitamentos e a movimentação vertiginosa em palco, seguindo um alinhamento que contempla os seus dez anos de vida. “Tentámos fazer um alinhamento que passasse por todos os álbuns”, revela João. “Sempre que lançávamos um álbum novo tentávamos que os concertos fossem mais focados nele durante o ano e meio seguinte, mas neste caso acabamos por ir a todos os discos. ” Para além disso, existe outra diferença, em relação a digressões anteriores: “Retirámos por completo o vídeo porque já existia imensa informação em palco, com cinco pessoas a tocar, a cantar e a saltar”, salienta Kalaf. “Era como se o vídeo lutasse connosco por protagonismo. Não fazia sentido. Agora temos só alguns elementos cénicos. ”Realmente não é preciso mais do que os membros do grupo e a sua música para a euforia se instalar. Temas como Yah!, Sound of kuduro, Kalemba (Wegue wegue), Hangover (bababa), (We stay) Up all night, Soopid ou Van Damme são recebidos em êxtase, com a adrenalina a subir sempre que João e Rui aumentam a intensidade sonora e Blaya, Conductor e Kalaf se desdobram em interpelações e movimentos de dança. O som é apoteótico, sujo e distorcido, sem preocupações de domesticação, abrindo-se à desordem do mundo, celebrando-o, reflectindo o estilhaçar de expressões musicais urbanas das mais diversas partes do globo, expostas numa sonoridade física, pulsante e colorida. Há um apelo tão primitivo como radicalmente contemporâneo na sala: uma espécie de irremediável catarse colectiva. Hoje os Buraka são uma máquina que nunca falha. Onde quer que vão já se sabe que a celebração mais livre está garantida. Há quadros cénicos que nunca desaparecem, como quando pedem à assistência para se sentar e depois saltar em uníssono, ou quando o palco é invadido por raparigas das primeiras filas para aflição dos seguranças. No final pedem ao público para com eles tirarem uma foto com as duas mãos abertas a sinalizarem dez anos. Ao longo dos tempos, por esse mundo fora, foram ganhando de tal forma a reputação de criarem um ambiente eufórico que mesmo grupos de grande impacto mediático se recusavam a tocar a seguir a eles, receando não conseguir criar o mesmo tipo de empatia. “Essa fama ganha-se na estrada”, lembra Kalaf, “e são esse tipo de coisas que vão solidificando o que vai sendo feito. ”A segunda ida do grupo a Londres, em 2007, quando ali actuaram no clube Fabric, como na altura testemunhámos, foi um dos momentos fulcrais do seu percurso. “Londres foi uma ponte importante”, concorda João. “Foi aqui que, estrategicamente, estabelecemos management e agenciamento o que tornou mais fácil a ligação com o resto do mundo. E depois desse concerto do Fabric criou-se um interesse à nossa volta que foi benéfico e que fez com que regressássemos mais vezes para concertos em locais inusitados, festas em espaços industriais e coisas assim, e foi nesses sítios que essa ligação muito particular com Londres se estabeleceu. ”“É a segunda vez que os vejo e não creio que existam muitos projectos assim, que consigam fazer este tipo de festa”, diz-nos Debora Winger, largo sorriso e ainda a suar no final do espectáculo, poucos segundos depois de ter tirado uma foto ao lado de Kalaf e Conductor que, no final, se misturam com o público. This is Lisbon soundMas em 2005, há onze anos, o grupo tinha mais dúvidas do que certezas acerca do rumo a seguir. Um ano antes, no contexto da editora Enchufada, Rui parecia mais vocacionado para o drum & bass e João e Kalaf haviam lançado o projecto 1-Uik Project, algures entre o pós-hip-hop e o jazz, parecendo focalizados nessa aventura. A partir de determinado momento parecia que iria ser essa a aposta e um segundo álbum dos 1-Uik Project chegou a ser gravado, mas nunca lançado. Em 2005, Conductor, do grupo angolano de hip-hop Conjunto Ngonguenha, era presença habitual no espaço da Enchufada, em Campo de Ourique. Era ele que trazia novidades do kuduro e acabou por introduzir a cantora Petty, de 15 anos. Estavam lançadas as bases para a ideia Buraka. Em Junho de 2005, no final de uma sessão DJ no Sónar de Barcelona, João surpreendeu os presentes pondo a tocar, no final, a faixa Yah!, enquanto Kalaf gritava ao microfone “this is Lisbon sound!”, perante a primeira reacção entusiasta de uma assistência multinacional. Três meses depois, na Casa da Música do Porto, numa noite da Enchufada, o nome Buraka Som Sistema nasceu. Alguém disse que estavam a trazer o som da Buraca para ali e a ideia pegou. Foi assim que a Buraca, freguesia da Amadora, onde João e Rui se haviam conhecido na escola local, haveria de dar origem ao nome. A partir de determinada altura, em 2005, era nítido que tinham de optar: ou apostar nos 1-Uik Project, que tinham acabado de gravar, ou focarem-se nos Buraka, com todas as incertezas inerentes ao facto de ser uma sonoridade que se situava num limbo, não totalmente aceite e compreendida pelos novas gerações de portugueses de ascendência africana, mais conectados com a cultura hip-hop, nem consumida pelos portugueses enquanto todo, quando não olhada mesmo com indiferença e preconceito. Não espanta que – nos primeiros anos e ainda hoje, na verdade – sempre que se falava deles existiam hesitações na forma de os nomear: portugueses, angolanos, africanos, luso-angolanos, lisboetas, lusófonos? E a música que praticavam conduzia ao mesmo tipo de interrogações: lisboeta, portuguesa, luso-angolana, afro-portuguesa? Raramente era mencionado de forma clara que estávamos perante um grupo português e que aquilo que faziam é música popular portuguesa. Claro que essa conflitualidade identitária era também transportada no seio do próprio grupo. Hoje talvez mais pacificada. Mas há dez anos o próprio colectivo parecia não saber bem onde se situar. Era evidente que parecia existir um ambiente internacional propício, com o eclodir de M. I. A. e Diplo e a legitimação de linguagens urbanas até aí desacreditadas, como o baile funk brasileiro ou o dancehall jamaicano. Mas as dúvidas eram muitas. “Nesse processo de decisão existiram opiniões importantes que auscultámos, como a tua”, diz às tantas João, aludindo a conversas nessa ocasião, mas houve elementos mais aleatórios tidos em conta. “O disco dos 1-Uik ficou num computador que se estragou e outra coisa importante foi o Kalaf aparecer um dia com um livro de I Ching e termos perdido uma tarde a consultar o oráculo para decidir que disco haveria de sair e ganhou Buraka!”, Kalaf ri-se: “É verdade, mas no fundo já tínhamos decidido. O oráculo fez-nos ver o que queríamos ver. ”As primeiras reacções que o projecto desencadeou foram importantes. Mas a grande prova surgiu com as primeiras apresentações em palco, no clube Mercado, em Lisboa. Sem disco lançado, com meia dúzia de temas criados, começavam a ganhar alento, tendo sido pela primeira vez capa deste suplemento em Junho de 2006. Percebia-se que tinham tudo para dar certo e nesse ano acabaram por lançar o single Yah! e um mini-álbum, premonitoriamente chamado From Buraka To the World, onde aproveitavam a singularidade do kuduro, para a fazer coabitar com traços de grime, baile funk ou dancehall. A partir do início de 2007 as solicitações para espectáculos sucederam-se (Londres, Estocolmo ou Amesterdão) e os ecos na imprensa mundial (I-D, Dazed and Confused, Fact ou The Fader) sentiram-se. Chamam-lhes “kings of neo-kuduro”, explicitando que tinham capacidade para conduzir multidões à loucura. Como consequência, uma das mais importantes empresas de agenciamento inglesas, a Primary (Daft Punk, Oasis ou Peter Gabril), assina um contrato com eles. “A primeira vez que os vi fiquei rendido, naquela linha com pontos de contacto com os Spank Rock, mas a Belinda da Primary também os viu e acabou por ganhar a competição à primeira e ficar com eles”, ri-se o agente Andy Duggan, recordando as primeiras impressões. Ele que é também agente dos Django Django ou Santigold, não tem dúvidas que os Buraka são um dos grupos com quem mais gosta de trabalhar. “Podem ser postos em novas situações, porque existe a certeza de que vão dar conta do recado. Têm disponibilidade, talento e energia. Nunca lançarão discos para venderem milhões, mas a sua música conecta realmente com as audiências de uma forma que é muito rara de ver por aí. E isso é incrível. ”Para que algumas portas se abrissem foram essenciais as amizades geradas com figuras como o americano Diplo (Major Lazer), na altura cúmplice de M. I. A. e mentor da editora Mad Decent, ou os ingleses Sinden e Switch. “Sem dúvida”, concorda João, recordando que Diplo depois de os ver no festival Hype. Tejo, em Lisboa, “não se calou enquanto não conseguiu que os responsáveis pelo Fabric em Londres organizassem uma noite. ”A meio de 2007 confrontaram-se com um problema maior. A jovem Petty, que ao vivo era o grande foco das atenções, estudava (tinha então 16 anos) e não os podia acompanhar na maior parte das deslocações. Resolvem prescindir dos seus serviços, apresentando-se no Verão de 2007 em alguns dos maiores festivais da Europa (do inglês Glastonbury, ao dinamarquês Roskilde, passando pelo Exit da Sérvia) já sem ela. Existiu quem temesse que poderia ser o fim do projecto, mas não. “Nunca fomos um grupo clássico, até porque existiram sempre muitos convidados vocais nos álbuns”, lembra Kalaf. “Nesse sentido fomos ganhando consistência em movimento. A ambição foi-se solidificando à medida que se superaram dúvidas e se foi conquistando um espaço que não existia. Nos éramos um Ovni a competir nos palcos destinados à pop. Fomo-nos construindo pelo caminho. ” E João completa: “A Petty fez parte desse caminho, mas mais importante do que a superação da sua saída, foi o momento da sua descoberta, quando gravámos o Yah!, com aquela sua energia em bruto. ”Em 2008 a máquina funcionou a todo o vapor e para isso muito contribui o lançamento viral do tema Sound of kuduro, com participação vocal de M. I. A. , naquela que foi a primeira amostra do álbum Black Diamond. O sucesso dos Buraka é indissociável do momento comunicacional desse período com ferramentas como o MySpace ou o YouTube a potenciarem a comunicação directa com o público, nomeadamente através dos vídeos. E nesse campo o de Sound of kuduro foi impactante, com imagens captadas aquando de uma visita a Luanda. Foi aliás o vídeo que contribuiu para convencer M. I. A. , que estava relutante com o resultado final da canção. “Lembro-me de lhe enviar o tema e de ter sentido que ela não tinha amado o que ouvia”, diz João, “mas depois de ter visto o vídeo ficou rendida e foi aí que ela autorizou por fim o lançamento do single com a participação dela. ”Na digressão que se seguiria ao lançamento do álbum optam por introduzir um baterista e um percussionista, forma da sonoridade do grupo ganhar mais corpo ao vivo, e de os projectar nos festivais. “Quando fomos convidados para actuar no palco principal do Sudoeste, e depois no Alive! ou no Rock In Rio, resolvemos contratar o percussionista Mick Trovoada e o Fred Ferreira [Orelha Negra, Banda do Mar] para a bateria”, recorda João, “porque parecia-nos importante acrescentar elementos à música e do ponto de vista cénico, pelo menos nos palcos de grandes dimensões, era importante tê-los preenchidos. ”Entre 2006 e 2008 haviam tocado por toda a Europa, dos clubes mais selectos aos grandes festivais. Também já haviam actuado no Japão, Austrália e EUA, mas foi em Abril de 2009 que realizaram a primeira digressão consistente pelo território ianque, já depois de Black Diamond ali ter sido lançado. Quando o disco saiu o interesse no Ocidente sobre sonoridades africanizadas estava no auge. Não era já só nos universos conotados com as músicas urbanas. Também do rock alternativo (Vampire Weekend, Dirty Projectors) sopravam ventos africanos. E eles, de forma indirecta, beneficiaram disso. Nos EUA, seja pela actuação no californiano festival Coachella, ou na Bowery Ballroom de Nova Iorque, conseguem enorme visibilidade, com o New York Times ou o Los Angeles Times a destacar a sua prestação. Pela primeira vez um grupo português do universo pop tinha impacto nos EUA e era referenciado pelos media do mercado mais apetecido do mundo, o que não significa necessariamente conquistar um território muito difícil. “O burburinho que se gerou não passou para outro nível – apesar de já termos feito mais duas digressões nos EUA – porque há distanciamento em relação aos artistas europeus”, defende João. “Trabalhar para os EUA implicava montar lá uma estratégia. Foi uma escolha consciente não perder esse tempo. Estávamos a construir uma coisa mais consistente na Europa. ” Há também razões de contexto, assinala Kalaf: “Ao longo destes dez anos a América também mudou a sua relação com a música de dança. Quando estávamos a entrar aconteceu o boom dos franceses – a Ed Banger e os Justice, por exemplo – e havia uma frente europeia a levar informação que não existia lá. Com os anos isso foi-se alterando. Dito isto, existem formas de contornar os obstáculos, dependendo das prioridades que se estabelecem. Agora é evidente que o Coachella deu-nos respostas importantes. Deu-nos a certeza que conseguíamos estar àquele nível e que o caminho que tínhamos escolhido fazia sentido. ”Entre 2009 e 2010 esse itinerário levou-os, novamente, da mais escondida terra de Portugal até palcos na Europa, EUA, Japão, Austrália ou Angola. No final de 2009 aconteceu até uma surpresa. Os espanhóis renderam-se a Kalemba (Wegue wegue) e durante várias semanas a canção não saiu do 1ºlugar dos singles mais ouvidos. “Esse facto serviu, acima de tudo, para tomarmos consciência do que estava a acontecer, porque no meio dos acontecimentos é fácil não ter distanciamento”, afirma João, enquanto Kalaf olha para o assunto de outro prisma. “Os espectáculos em Portugal sempre correram bem, mas o sucesso fora de portas ajudou a solidificar o que acontecia também em Portugal, ao nível dos media e do tempo de antena, embora o nosso campo de acção sempre tivesse passado por canais como o YouTube, que permitem um acesso directo ao público. ”Em 2011 lançam o álbum Komba e há dois anos saiu o último Buraka, ao mesmo tempo que a figura de Blaya foi ganhando destaque, e eles se continuaram a afirmar como grupo português, mas com uma carreira acima de tudo internacional, movendo-se entre aviões, aeroportos e hotéis. Hoje, quando olham para trás, reconhecem que talvez não tenham ido ainda mais longe porque estiveram quase sempre relativamente sós. Ou por outra, foram obrigados a construir as suas próprias afinidades. “Durante estes dez anos, éramos os únicos na sala do lugar de onde vínhamos”, diz Kalaf. “Tivemos sempre que nos associar a movimentações que estavam a acontecer ou prestes a ocorrer. Quando aconteceu a invasão francesa da Ed Banger encontrámos ali uma comunhão e deixámo-nos ir por arrasto. Depois estivemos também com os americanos por causa do Diplo e da Mad Decent e com os ingleses fomos a reboque do dubstep. Enfim, não me queixo e aprendi muito. Fui vivendo o sonho que alguns acalentam, mas é importante ter a noção que só se vai lá fazendo parte de uma equipa. ”Quem diz uma equipa, diz uma família, uma vaga de acontecimentos, uma tribo, ou pelo menos sensibilidades partilhadas. “Isso foi uma das coisas que mais impacto teve em mim”, confessa João. “De repente estás num grande evento, com músicos e agentes de todo o mundo, é hora de jantar, e vês-te de tabuleiro não mão sem saber bem para onde ir. Dás-te conta que não pertences a nenhum lugar. Olhas à volta e percebes que existe uma mesa de ingleses, onde está desde a Annie Mac da BBC Radio 1 ao Skream, e uma outra de franceses, e é verdade que somos amigos de todos, mas no momento da verdade sabemos que nem sempre fazemos parte das opções. ”E o que é o momento da verdade? “Vou dar um exemplo”, expõe João: “quando o Kalemba estava a ter impacto em todo o lado, a Annie Mac podia ter apostado no tema, até porque sabíamos que gostava dele. Ela tinha esse poder. E essa pode ser a diferença entre ter sucesso em alguns países e ter um êxito mundial. Essa decisão não aconteceu porque não tínhamos ninguém influente a jogar na nossa equipa. E isso, pelo menos a este nível, acaba por ser determinante. ”É essa consciência de que nenhum caminho se faz de forma isolada que levou o grupo desde sempre a apostar noutros projectos, no contexto da Enchufada, e em noites onde fosse possível criar um ambiente colectivo propício, como as Hard Ass no Lux. Em parte é isso que parece que vai ocupar alguns dos membros do grupo no pós-1 de Julho. Depois de dez anos de aprendizagem, querem abrir portas a outros com o que conheceram. “Fechar este ciclo e abrir outro, tem também a ver com essa consciência de que existem milhares de formas de entretenimento para serem ainda exploradas e queremos continuar a plantar sementes por aí”, diz João. “Há outras formas de chegar às pessoas, para lá dos Buraka, e cada um de nós vai continuar a querer fazê-lo”, conclui Kalaf. O último concerto da digressão será na Torre de Belém, no contexto das festas da cidade de Lisboa, mas não foi essa a primeira opção. “Imaginámos o último concerto no estádio do Estrela da Amadora, ou no parque central da cidade, pelo simbolismo”, revela João, “mas depois focámo-nos na Torre de Belém, porque é uma área que permite juntar todas as pessoas que nos foram acompanhando ao longo dos anos. ” A ideia é que aquilo que vai acontecer este ano, se venha a repetir por muitos. “Trata-se de terminar um ciclo e começar outro, onde vamos tentar fazer com que Lisboa seja a capital da electrónica globalizada um dia por ano. Queremos que seja o embrião de um evento anual onde se celebra o espírito que os Buraka carregaram ao longo destes anos. ”E que espírito é esse? Por momentos regressamos ao Mercado em 2006, onde de um palco improvisado se distinguem cinco vultos, enquanto um ritmo sintético desvairado zurze nas paredes, volteia-se e aloja-se no corpo, que parece dançar sozinho, imerso no colectivo. Na Electric Brixton de 2016 essa inspiração ainda lá está. Agora o som é melhor, a encenação mais vincada, mas o sentimento de surpresa, para quem sente aquela música pela primeira vez é o mesmo, descobrindo que no Portugal pós-colonial também há música radiante, maliciosa e dançável, síntese de referências que convergem aqui.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
No ano das decapitações, morreram 66 jornalistas em todo o mundo
Raptos de jornalistas subiram em 2014, mas houve menos mortes, revela relatório anual dos Repórteres Sem Fronteiras. (...)

No ano das decapitações, morreram 66 jornalistas em todo o mundo
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-01-09 | Jornal Público
SUMÁRIO: Raptos de jornalistas subiram em 2014, mas houve menos mortes, revela relatório anual dos Repórteres Sem Fronteiras.
TEXTO: Foram mortos 66 jornalistas no último ano, sobretudo na Síria, onde uma guerra civil persiste e um grupo terrorista impôs uma “ditadura brutal sobre as notícias e a informação”. Os dados revelados esta terça-feira pelos Repórteres Sem Fronteiras (RSF) mostram ainda que houve mais raptos de jornalistas em 2014, engrossando o número de reféns por todo o mundo. Em comparação com o ano anterior, em que morreram 71, em 2014 até foram assassinados menos profissionais de informação. Porém, as decapitações dos norte-americanos James Foley e Steven Sotloff às mãos dos jihadistas do autoproclamado Estado Islâmico chocaram o mundo. “Raramente os jornalistas foram mortos com um tal propósito de propaganda”, nota a organização não-governamental. Foi na Síria – tal como no ano passado – que mais jornalistas foram mortos, com 15 casos. Mas, ao contrário de 2013, este ano viu o recrudescimento e a emergência de novos conflitos. Foi o caso da Palestina, onde morreram sete jornalistas, e da Ucrânia, onde seis perderam a vida durante a cobertura da guerra civil no Leste do país. Os autores do relatório anual dos RSF notam ainda que foram mortos menos jornalistas em países em paz, como o México, a Índia ou o Paquistão, mas que foram mortas seis mulheres jornalistas, o dobro face a 2013, em países como o Iraque, o Egipto ou a República Centro-Africana. Se as mortes de jornalistas desceram, os raptos, por outro lado, subiram no último ano. Em todo o mundo foram, ou continuaram, raptados 119 profissionais dos media, uma subida de mais de 30% em relação a 2013, em que se registaram 87 raptos. Na Ucrânia foram raptados 33 jornalistas, sobretudo nas áreas do Leste afectadas pelo conflito armado entre o Exército e as milícias pró-russas. Com 29, a Líbia, onde o vazio do poder deu origem a lutas entre vários grupos locais, é outro dos principais focos de raptos. O Leste do país é definido pela organização como uma região onde “é necessária muita coragem para andar com uma câmara ou uma carteira profissional”. São sobretudo os jornalistas locais que sofrem as consequências do seu trabalho, representando 90% das vítimas de raptos. Actualmente há 40 jornalistas reféns de grupos armados e três jornalistas-cidadãos, 22 dos quais na Síria. Vários países do planeta continuam a funcionar como autênticas “prisões para jornalistas”. No total, são 178 os jornalistas presos por causa da sua actividade, em países como a China (29), a Eritreia (28) e o Irão (19). Nas prisões estão também 178 jornalistas-cidadãos. As detenções de jornalistas sofreram um ligeiro aumento, com 853 prisões durante este ano. É na Ucrânia que estas detenções foram mais comuns (47), sobretudo por causa dos checkpoints nas áreas de combate, controlados tanto pelas forças governamentais como pelos rebeldes, onde os jornalistas são detidos “com mão pesada e libertados horas depois sem que lhes seja dada qualquer explicação pela sua prisão”. No Egipto, o regime do Presidente, Abdel Fattah al-Sisi, deteve 46 jornalistas com “pretextos tais como serem simpatizantes da Irmandade Muçulmana, colocarem em perigo a unidade nacional ou por incitarem à violência ou aos protestos”. A perseguição de regimes autoritários fez disparar o número de profissionais que abandonaram os seus países. Foram 139 os jornalistas que este ano fugiram à repressão nos seus países, o dobro daqueles que o tinham feito no ano anterior. A degradação da situação da Líbia está a fazer do país um local onde é cada vez mais perigoso ser jornalista e foi de lá que fugiu o maior número de profissionais (43), seguido da Síria (37) e da Etiópia (31), onde foi lançada uma perseguição aos media privados.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra violência prisão mulheres perseguição
Prémio Nobel da Paz é para "todas as crianças sem voz"
A mais jovem galardoada com a distinção está empenhada em continuar com a sua missão. (...)

Prémio Nobel da Paz é para "todas as crianças sem voz"
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-04-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: A mais jovem galardoada com a distinção está empenhada em continuar com a sua missão.
TEXTO: Malala Yousufzai estava numa aula de Química quando soube que tinha sido distinguida com o Prémio Nobel da Paz. Sentiu-se honrada por receber uma distinção que diz não merecer. Decidiu assistir a todas as aulas que tinha esta sexta-feira e só depois deixou o liceu Edgbaston, em Inglaterra. Na reacção ao prémio mostrou firmeza nos seus objectivos e prometeu que a sua luta pelo direito das crianças à educação não irá esmorecer. “Sinto-me honrada por ter sido escolhida como Prémio Nobel da Paz. Sinto-me honrada com este precioso prémio. E estou orgulhosa por ser a primeira paquistanesa e a primeira jovem a conseguir este prémio. É uma grande honra para mim”, começou por dizer a jovem de 17 anos numa conferência de imprensa em Birmingham, onde vive com a família desde que deixou o Paquistão. Malala sublinhou que este prémio é “para todas as crianças sem voz”, “para lhes dar coragem”. A paquistanesa, que queria ser médica e agora quer ser uma “boa política”, voltou a mostrar a sua faceta de oradora eloquente e desembaraçada quando lembrou que o prémio não era só seu mas também do indiano Kailash Satyarthi. “Estou muito contente por partilhar este prémio com uma pessoa da Índia. Com alguém com um grande caminho pelos direitos das crianças e contra a escravatura infantil. Inspira-me. Estou muito contente por haver tantas pessoas que caminham pelos direitos das crianças e que não estou sozinha”. A activista aproveitou o facto de ser paquistanesa e Satyarthi indiano para falar da tensão que ainda ensombra os dois países. “Um acredita no hinduísmo e outro acredita fortemente no islão. Isso envia uma mensagem às pessoas, uma mensagem de amor entre o Paquistão e a Índia e entre as diferentes religiões. Não interessa a cor da pele, a língua que falamos, a religião em que que acreditamos, devemos considerar-nos todos seres humanos e devemos respeitar-nos e lutar pelos direitos das crianças, das mulheres e de todos os seres humanos”. A jovem disse ter-se comprometido com Satyarthi, com quem falou ao telefone, a apelarem aos respectivos primeiros-ministros Narendra Modi, da Índia, e Nawaz Sharif, do Paquistão, para que estejam presentes na cerimónia de entrega do Prémio Nobel da Paz, em Oslo, a 10 de Dezembro. Malala e Satyarthi pretendem “caminhar juntos para que todas as crianças tenham educação”. “Vamos tentar estabelecer ligações fortes entre o Paquistão e a Índia”. Num agradecimento à família, Malala falou do pai e da importância de a ter deixado “voar” para atingir os seus objectivos. O Prémio Nobel que acaba de receber é tido como um encorajamento para continuar a sua campanha em defesa do direito das crianças à educação e da igualdade entre homens e mulheres. “Às vezes é muito difícil expressar os nossos sentimentos, mas senti-me muito honrada, mais poderosa e corajosa. Este prémio é mais que um pedaço de metal, é um encorajamento para continuar, para acreditar em mim, e saber que há mais pessoas que me apoiam nesta campanha”. Antes de dar por terminado o encontro com os jornalistas, Malala dirigiu-se em urdu aos paquistaneses que hoje celebram a distinção da jovem.
REFERÊNCIAS:
Religiões Hinduísmo
A música portuguesa discutida à mesa
Uma nova geração assume que "faz esta coisa que é música portuguesa". Reconcilia-se com o passado, afirma sem complexos a sua criatividade a partir do quotidiano. Tem sido um bom ano, criativamente, afectivamente. Oiçamo-los aqui, em conversa. Oiçamos a sua música no Vodafone MexeFest: Capicua, DJ Marfox, Ana Cláudia, Éme, Tomás Wallenstein. (...)

A música portuguesa discutida à mesa
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma nova geração assume que "faz esta coisa que é música portuguesa". Reconcilia-se com o passado, afirma sem complexos a sua criatividade a partir do quotidiano. Tem sido um bom ano, criativamente, afectivamente. Oiçamo-los aqui, em conversa. Oiçamos a sua música no Vodafone MexeFest: Capicua, DJ Marfox, Ana Cláudia, Éme, Tomás Wallenstein.
TEXTO: Tem sido um excelente ano para a música feita em Portugal. Pelo menos, na óptica do consumidor. Têm sido lançados bons álbuns. Parece existir uma renovação geracional. Velhos estigmas acerca do que é português parecem ter sido ultrapassados. Há uma outra dinâmica, fruto de peculiaridades locais e do contexto global. Um mar de rosas? Longe disso. Vive-se, do ponto de vista de modelo económico e das novas formas de operar, um período de conflituosa transição. Mas parece existir realmente, da parte do público, um reencontro com a música que vai sendo feita aqui, principalmente ao vivo. E isso também se reflecte no cartaz de alguns festivais. É o caso do Vodafone MexeFest, que acontece esta sexta e sábado, em Lisboa. Alguns dos projectos internacionais que mais despertam atenção lançaram bons álbuns este ano (cSt. Vincent, Perfume Genius, Tune-Yards, Adult Jazz, Kindness, JJ, Sharon Van Hetten ou Wild Beasts), mas o contingente português não lhe fica atrás. Existem consagrados como os Clã ou Branko dos Buraka Som Sistema e da editora Enchufada que vai reunir à sua volta os peruanos Dengue Dengue Dengue. Há também nomes firmados como NBC ou Capicua. E uma série de figuras que têm dado que falar nos últimos tempos como Sensible Soccers, Ana Cláudia, DJ Marfox, Nigga Fox, Duquesa, Éme, MGDRV, Modernos, Salto, Niagara, Rocky Marsiano ou Throes + Shine, todos eles reflectindo uma multiplicidade de caminhos possíveis, do rock às electrónicas, da nova música afro-portuguesa ao hip-hop. Os nomes reunidos são por si só ilustrativos da diversidade da cena portuguesa actual. Mas alargando o foco descobrimos o hip-hop inimitável de Halloween, retrato pungente de uma realidade que o país não vê em horário nobre, ou o roque popular de uns Diabo na Cruz, que cruzam com mestria lendas e histórias de ontem e o pulsar de hoje. Estes lançaram álbum este ano, o mesmo ocorrendo, por exemplo, com Tigerman, Dead Combo, Paus, Gala Drop, D’ Alva ou Rita Redshoes. Vemos como a editora Discotexas, de Moullinex e Xinobi, demonstra ser global (na música criada e no alcance que aquela atinge), ou como a promotora e editora Lovers & Lollypops, cria uma rede internacional de que o festival Milhões de Festa é mostruário, enquanto, no resto do ano, se torna catalisadora de vitalidade, através dos Black Bombaim, Jibóia, Throes + The Shine ou Duquesa, este o nome assumido a solo pelo vocalista dos Glockenwise. Junte-se-lhes outras estruturas independentes, como a Pataca Discos, editora de Real Combo Lisbonense, Bruno Pernadas ou You Can't Win Charlie Brown, recordemos a PAD, em cujo catálogo se incluem os peixe:avião, os Dear Telephone ou os Sensible Soccers, ou o intricado e diversificado mundo da música de dança povoado por nomes tão diferentes como IVVVO, Marie Dior, Rap/Rap/Rap, Miguel Torga ou Tiago, e o complexo mapa desta diversidade começa a ganhar contornos nítidos. Momento de vitalidadeE estamos a nomear apenas uma pequena parcela. Nenhum destes músicos enriqueceu, com as cifras macroeconómicas de outros tempos a darem lugar a uma nova objectividade. Mas há um ajuste com a realidade, com gente com ideias a criar espaço para fazer aquilo de que mais gosta: música. Mas será que esta percepção de vitalidade é também experimentada pelos próprios? Foi isso que quisemos perceber, reunindo alguns daqueles que vão estar no Vodafone Mexefest. “Sem dúvida que estamos a viver um momento de vitalidade”, concorda Marlon Silva, ou seja Marfox, DJ e produtor que tem estado em destaque no contexto da editora Príncipe (Nigga Fox, Maboku) e não só, tendo actuado por todo o mundo nos últimos meses e editado na americana Lit City Trax, contribuindo para a visibilidade de linguagens híbridas como o kuduro ou afro-house. “Estamos a olhar mais para dentro, devido à crise, e por causa do acesso à informação”, diz. “Hoje é possível fazer música no quarto e distribui-la e existem mais pessoas a fazê-la. E não só em Lisboa, porque esta música viaja e está a ganhar espaço internacionalmente”. Na visão de Ana Cláudia, cantora de formação jazz e com passado ligado às músicas de raiz portuguesa (integrou as Tucanas), não é apenas na música que se verifica esse reencontro com o que é português. “É transversal a todas as áreas, esse olhar mais para dentro”, reflecte, “porque também queremos, cada vez mais, comida ou fruta portuguesa, por exemplo”. Recentemente, lançou o primeiro álbum em nome próprio, Outono, onde a sensibilidade da cantautora se cruza com uma componente electrónica feita de melancolias. Olhando para o panorama musical que a rodeia, comenta que sente existir um assumir do país que somos, com todas as suas fragilidades e potencialidades. “É um país pequenino, tem defeitos, mas é preciso assumir que fazemos esta coisa que é música portuguesa”, diz, enunciando que não vale a pena copiar modelos exteriores, como o R&B americano. Quando muito pode-se criar R&B com influências portuguesas. Tomás Wallenstein, dos Capitão Fausto e dos Modernos, recorda que essa reconciliação é um processo, não aconteceu de geração espontânea, evocando o desempenho de editoras como a Amor Fúria ou a Flor Caveira que “tiveram um papel importante na mudança de mentalidades, cantando e operando em português”. Para ele e para os Capitão Fausto, o encontro com a atitude criativa emanada daquelas editoras, onde descobrimos Tiago Guillul, B Fachada ou Samuel Úria, foi determinante. Encaminhou-os na procura de uma linguagem própria a partir dos seus fascínios, um vasto caldeirão musical, típico da sua geração, onde se incluem incontornáveis como Bob Dylan ou os Beatles, heróis do progressivo como os Gentle Giant, figuras como Syd Barrett, a geração do rock psicadélico britânico e americano dos anos 1960 ou bandas mais recentes como Radiohead ou mais novas ainda como os Tame Impala. Em Gazela e no mais recente Pesar o Sol, os dois álbuns editados pelos Capitão Fausto, que lhes garantiram lugar de destaque, mostram o que frutificou desse encontro: um rock psicadélico expansivo, mas com uma aguda noção de canção, que, para utilizar uma expressão que ouviremos pelo menos um par de vezes ao longo da mesa redonda, “só poderia ter sido feita aqui” – e, de facto, uma canção de rock chamada A célebre batalha de Formariz – aldeia nas proximidades de Paredes de Coura – só poderia ter nascido em Portugal. Mas não são os Capitão Fausto que veremos no Vodafone Mexefest. No festival, marcarão presença Os Modernos, que se apresentaram este ano com o EP #1. Os Modernos, ou seja, Tomás Wallenstein, Salvador Seabra e Manuel Palha, três dos cinco Capitão Fausto (os outros dois, Domingos Coimbra e Francisco Ferreira, lideram outra banda paralela, os Bispo). Há 15 anos o mais provável era que nem Os Modernos nem os Bispo tivessem tido oportunidade de nascer, expõe Wallenstein, pela pressão das estruturas editoriais convencionais, que não desejariam o desviar de atenções da banda principal. Hoje, alia-se a tendência natural dos membros da banda para uma certa hiperactividade, com a facilidade de transformar novas ideias em realidade acessível a todos. Os Modernos, uma versão mais crua e directa dos Capitão Fausto, são resultado desse contexto. Descobrindo, quase por impulso, algo novo para mostrar, guardá-lo na gaveta não é uma hipótese aceitável. “Há mais tugas a fazer música fixe hoje”, reconhece João Marcelo, ou seja Éme, da editora Cafetra, embora alertando para o outro lado da questão. “Mas a maior parte das pessoas chega ao fim do mês e não tem dinheiro. Tudo isto pode ser passageiro. Posso estar agora a dedicar a minha vida à música e para o ano já não acontecer. ” A consciência dessa precaridade não surge como queixume. É a verificação de uma realidade, a única que, enquanto músico, conheceu a sua geração. Uma veracidade que, de resto, não tem servido de travão à criação. E ele constitui um exemplo disso. Conhecemo-lo enquanto elemento da Cafetra, grupo de amigos tornado editora, de onde têm emergido bandas como as Pega Monstro, Passos em Volta, Putas Bêbadas ou Iguanas, diferentes entre si, mas nascidas de uma mesma vontade: a de criar, explorar, divulgar, de uma forma independente e com o desejo de fazer da música uma representação, entre o literal e o abstracto, de um microcosmos particular – a realidade que lhes é mais próxima nas vivências do quotidiano e o olhar que, através dele, constroem sobre um mundo globalizado. Éme, já vocalista dos Passos em Volta, estreou-se a solo com Gancia, sucedido já este ano pelo álbum Último Siso, produzido por B Fachada, e confirmação entusiasmante da promessa aberta pelo primeiro EP. É difícil não concordar com ele quando aponta a incerteza como uma realidade dos músicos da sua geração. Não é apenas na música, claro. Mas dir-se-ia que a música viveu dois abalos em simultâneo, com a transição do modelo de negócio a juntar-se à crise globalizada. Tomás Wallenstein é daqueles que acredita que, em alguns casos, a crise acabou por servir de catalisadora – “a solução para quem quer estabilidade não é outra senão trabalhar e estar constantemente a pensar em soluções novas” –, enquanto Ana Matos, ou seja Capicua, que se impôs definitiva e transversalmente este ano com Sereia Louca, para além do território do hip-hop, prefere reflectir num reequilíbrio trazido pela mudança. “Há 30 anos para furar era preciso uma editora e gravar num estúdio caríssimo. Hoje mesmo que já não possamos viver da música como nos anos 1990, todos fazemos o que gostamos. Apesar das dificuldades, é mais fácil fazer música. Qualquer pessoa pode ter uma placa de som e gravar em casa num programa qualquer. Nesse aspecto, somos uma geração privilegiada. O facto de a crise nos ter tirado a esperança de estabilidade profissional acabou por nos tornar mais corajosos. Antes acabavas de estudar, ias arranjar um emprego e tinhas a perspectiva de ficar lá para sempre. Hoje não a temos. E isso torna-nos mais desprendidos. Para se ser precário, assume-se que, então, mais vale fazer-se o que se gosta realmente. ”Um nome os une, ZecaOlhando para o panorama musical português, e abordando em particular a sua geração mais recente, constata-se que, mais que uma reconciliação com uma qualquer ideia elevada de música portuguesa, assiste-se a uma manifestação de identidade vincada. Não se notam vestígios de tentativa de recuperação de um outro tempo, antes a simples afirmação, descomplexada e sem programa definido, de uma criatividade em que local e global afluem em simultâneo. Daí, por exemplo, que o passado da música portuguesa não surja como modelo ou validação. Ana Cláudia tem em Sérgio Godinho uma influência “para todo o sempre”. Tomás Wallenstein diz gostar dos Sétima Legião, de algumas coisas dos Heróis do Mar, do Sérgio Godinho ou de José Mário Branco. “Mas acabo por não me alargar muito”, concede. Capicua teve como referência os cantautores que ouvia na infância através dos pais e as bandas do Porto, como Dealema, Mind da Gap ou Matozoo, com que descobriu o hip-hop nos anos 1990. Marfox, por sua vez, cresceu distante de tudo isso: eram a kizomba, o kuduro, o funáná e, depois, o hip-hop, que lhe foram moldando o ouvido. Apenas um nome os reúne a todos, José Afonso – e até DJ Marfox, que não cresceu a ouvi-lo, já o incluiu agora nas suas sessões. “70% do que ouço é Zeca. Os outros 30% divido-os por artistas americanos”, diz Éme. “Ouço o Variações, gosto muito de algumas coisas do Zé Mário [Branco], mas o que move é mesmo o Zeca. A convivência com o passado da música portuguesa não é fácil. Não consigo encontrar grandes lições para mim da maioria da música do passado”. As lições tem-nas agora, dadas por quem está a seu lado. “A maior influência são os meus amigos, o pessoal da Cafetra. É isso que me faz voltar a casa para trabalhar todos os dias. Depois, também fui conhecendo outra malta, como o Fachada, que foi importante. O Elvis para mim é uma foto. Os Beatles são uma foto, muito bonita, mas uma foto. Adoro a música, mas é mais fácil ver Humanidade em pessoas que conheço. E isso é presente, não é passado. ”A barreira psicológica que parecia separar o público da criação musical portuguesa mais contemporânea esvaiu-se nos últimos anos e isso pressente-se nos espectáculos ao vivo. Talvez seja como diz Éme: “hoje em dia as pessoas podem ouvir tudo em casa, tudo lhes está acessível, e por isso preferem ir, por exemplo, ao MusicBox ver o Marfox, porque é único e irrepetível”. Na actualidade as receitas geradas pelas vendas de discos, físicas ou digitais, principalmente quando se está numa fase emergente da carreira, são residuais. Restam os espectáculos ao vivo. Mas também aí não é fácil. “Se fizer contas ao dinheiro que ganhei com os discos de Capitão Fausto é ridículo”, concorda Tomás Wallestein, “e realmente algum dinheiro que se ganha é dos concertos. ”Todos eles se queixam de que é relativamente fácil tentarem aproveitar-se da sua paixão, tendo sido por vezes aliciados a tocar à borla em locais onde toda a gente é paga (do porteiro ao bengaleiro) menos eles. “Quando fazia parte do circuito da ‘noite africana’ o segurança da porta fazia mais dinheiro do que eu, que estava a pôr música para 500 pessoas. Hoje vivo das minhas sessões DJ, algo que não conseguia nesse circuito”, conta Marfox. “Por vezes ganha-se à percentagem da bilheteira, dividindo com o técnico de som, e no fim das contas chegamos à conclusão de que pagámos para tocar, porque há sempre despesas”, lembra Ana Claudia. Éme reforça: “Já toquei em concertos em que ganhava 60 euros e depois tinha que pagar 70 ao técnico de som. ”Capicua, com um trajecto mais consolidado, tem uma visão crítica de quem se predispõe a tocar à borla: “desvalorizam o seu próprio trabalho e dos colegas. Isso abre espaço para o ‘se não queres tu, vem outro’, o que acaba por ser desleal. Os músicos falam pouco disto entre si e existe pouca solidariedade nesse aspecto”. “A única forma de contornar isso é ser-se insubstituível”, argumenta Tomás Wallenstein. “É mostrar que aquilo que fazes mais ninguém faz. Esse respeito procura-se. ”Uma das saídas para essa instabilidade passa por procurar novos espaços de divulgação e de exposição, por exemplo longe dos grandes centros de Lisboa e Porto. “A minha experiência do último ano mostra-me que fora de Lisboa existe cada vez mais gente a mexer-se” afirma Tomás, que é menos crente na possibilidade de internacionalização. “Não se deve pensar muito nisso. Se acontecer tanto melhor, mas quem passa o tempo a pensar demasiado nisso, começando a criar para ‘bater lá fora’, por norma é o fim da coisa. ”Capicua tem uma visão ampla do país. “Há outros circuitos e outros públicos, para além de Lisboa e Porto. Os Dealema, por exemplo, têm um circuito regional e de festas em escolas do secundário, que as pessoas não imaginam, porque não tem repercussão mediática. A nossa representação da realidade é mais centralizada que a realidade em si”, diz, falando do Algarve ou de zonas do Norte, como Viana do Castelo, como redutos onde se consome avidamente rap em português. Dos cinco é Marfox quem tem actuado com regularidade fora do país. Ainda há semanas tocou no MoMA de Nova Iorque e tem mais datas no exterior do que em Portugal – “somos 10 milhões, mas o mundo são quantos?”, interroga, rindo-se. Os restantes não encaram a internacionalização como prioridade, associando-a ainda ao fado ou ao contexto pós-Buraka, apesar de alguns exemplos relevantes – de Legendary Tigerman aos Paus – de que é possível tocar no exterior com regularidade. “Faço canções em português, é música daqui, do local onde vivo e da vida que levo, nesse sentido pensar na exportação só vai trazer contratempos”, afirma Éme, enquanto Capicua acentua que “as bandas portuguesas têm de ter qualquer coisa de diferenciador para se destacarem” na imensidão de música. “Mas é claro que gostava de tocar lá fora. Fui este ano ao Brasil e adorei, mas também gosto de ir tocar a Viana numa sexta, estar no Algarve no sábado e domingo estar no Porto, em casa. Para mim é qualidade de vida. ”A língua pode ser um obstáculo, mas não tem de o ser e Marfox recorda o fenómeno do brasileiro Michel Teló. “Estive em Berlim ou na Suíça e toda a gente cantava aquilo, mesmo não percebendo a letra. A Cesária Évora cantava em crioulo e isso não era um obstáculo. O Bonga vai à Rússia e canta em português. Os russos percebem-no? Não. Mas percebem a vida que está em palco. Entendem a interacção, aquela linguagem. O mesmo acontece com os Buraka. As pessoas cantam, puxam por eles, a interacção existe, para além da língua. ”Ninguém é castrador em relação à língua. O gesto artístico deve ser livre. Mas todos concordam que as possibilidades da comunicação fluir aumentam em português. “A minha relação com a música surge através da palavra, mas a questão não é se é em português ou inglês. A criação artística tem três pilares: a estética, a técnica e por fim a ética, a responsabilidade enquanto artista de te posicionares. Eu acredito em música assim. Cresci a ouvir os cantautores de Abril e para mim a música, a língua e o discurso estão articulados. Mas cada um é livre de ter a relação que quer com a sua música. ”Sobre o que cada um quer ver e ouvir no Vodafone Mexefest é que não existe consenso. Tomás Wallenstein está curioso com as espanholas Deers ou com St. Vincent, Ana Cláudia está mais focada nos Clã e Marfox lembra que esteve há pouco na Noruega com os peruanos Dengue Dengue Dengue. No fim da conversa, em jeito de provocação, alguém pede para que se imaginem daí a dez anos. “Nunca meto a fasquia muito elevada”, começa por dizer Marfox, “mas parece-me que Lisboa vai começar a entrar a sério no circuito de música electrónica e não só. Há cada vez mais gente a fazer música aqui e a procura pela cidade aumenta – pelo clima, comida, proximidade da praia, mas também pela música. Acredito que esta geração de artistas vai ter um papel importante nos próximos anos. ”Tomás Wallenstein diz saber a estratégica a aplicar nos próximos anos – “trabalhar, trabalhar sempre” – embora não saiba que resultado obterá, enquanto Capicua se revela hesitante. “Não tenho aquela coisa de desejar fazer isto o resto da minha vida. Vamos a ver. Desde que me deixem escrever posso ser feliz de outras maneiras. ”Já Ana Claudia é mais inflexível. “Não consigo fazer outra coisa, portanto, dê por onde der, quero fazer música o resto da minha vida. ” De todos Éme é o que começou há menos tempo. “Comecei a fazer isto mais a sério há apenas cinco meses”, ri-se ele, “portanto o único plano que tenho, que nem sequer é um plano, é mais uma esperança, é saber parar quando me sentir obsoleto. Mas enquanto sentir que vale a pena, ir fazendo sempre. ”
REFERÊNCIAS:
Do troll aos vídeos de gatinhos: bem-vindos ao folclore 2.0
Folclore? Não tem de ser uma coisa do passado. Em nenhum outro lugar ele está tão vivo e próspero como na Internet. (...)

Do troll aos vídeos de gatinhos: bem-vindos ao folclore 2.0
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.8
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Folclore? Não tem de ser uma coisa do passado. Em nenhum outro lugar ele está tão vivo e próspero como na Internet.
TEXTO: O folclore tem má reputação em Portugal. “Ninguém gosta da palavra por causa da sua conotação com o Estado Novo, o salazarismo”, diz Anabela Pereira Gonçalves, do Instituto de Estudos de Literatura Tradicional (IELT), da Universidade Nova de Lisboa. A inclusão da palavra no título do congresso internacional sobre estudos folcloristas que decorreu há uma semana em Lisboa pode ser visto como um acto de emancipação: O Povo Somos Nós: Repensar o Folclore no Século XXI. Em vez de “cultura popular”, “tradição” ou outro sinónimo furtivo, os organizadores do IELT decidiram lidar com “a pedra no sapato” (a expressão é de Anabela Pereira Gonçalves). Durante três dias, dezenas de antropólogos e investigadores de ciências sociais e humanas apresentaram conferências sobre danças tradicionais, artesanato e provérbios. O galo de Barcelos fez uma aparição – na sua versão actual, pop, para consumo de turistas. Um galês trouxe um fado de Carminho e perguntou: “Isto é folclore?” Um português trouxe Quim Barreiros e a plateia riu-se, sem contestar. Tudo isso seria mais ou menos de esperar num encontro sobre folclore. Até que, uma manhã, um viking começou a falar de trolls – essas criaturas frequentemente anónimas que insistem em infernizar a Internet e as redes sociais com comentários ofensivos – e disse: isto também é folclore. Tok Thompson, antropólogo e professor na University of Southern California, em Los Angeles, não parece estar preocupado com a perda de tradições ou questões de autenticidade que habitualmente ocupam os folcloristas. Ele defende que o folclore não tem de ser forçosamente rural e antigo, nem tão-pouco circunscrito à identidade de um grupo geograficamente definido. E que ele está mais presente na nossa vida contemporânea do que imaginamos. “Para mim, folclore é simplesmente aquilo que nos é transmitido por outras pessoas, e não por livros ou instituições”, explicou o conferencista americano (um ramo norueguês na genealogia familiar fá-lo parecer escandinavo). Um folclorista tenta perceber porque somos atraídos por vídeos de gatinhos no YouTube ou porque é que a operação plástica de Renée Zellweger é um tema irresistível. Todos os grupos têm o seu próprio folclore: mulheres, advogados, médicos, skaters, racistas, judeus, etc. E em nenhum outro lugar ele está tão vivo e próspero como na Internet, simplesmente porque a Internet se tornou o espelho predominante da nossa cultura. Não há limites para a quantidade e os géneros de folclore na Internet. Exemplos: memes, mashups, grande parte do que aparece nos nossos murais do Facebook, até a Wikipédia. O troll é um caso particularmente eloquente porque mostra até que ponto o folclore mais antigo não só resiste como se adapta à era da Internet. Os trolls eram outrora criaturas imaginárias da mitologia escandinava que viviam à margem da sociedade, escondidos em bosques, na montanha ou debaixo da ponte, e que destruíam propriedades alheias. Hoje, os trolls são os ogres da Internet, demonstrando o mesmo tipo de comportamento anti-social e disruptivo. Há centenas de cartoons, anedotas e provérbios a circular na Internet que retratam os trolls modernos como se fossem as figuras mitológicas dos contos escandinavos – feios, desagradáveis, pouco inteligentes. Basta pesquisar “Internet trolls” no Google. Bem-vindos ao folclore 2. 0. Folclore vs. literaturaApesar de se manter interessado em coisas “antigas” como as tradições celtas ou tribos índias do Alasca, Tok Thompson acredita que o futuro do folclore está na Internet. As suas aulas são cada vez mais disputadas por estudantes interessados. “Tornou-se mais fácil explicar aos meus alunos o que é o folclore. Em dez anos noto uma grande diferença. Há dez anos era mais complicado explicar a noção de autoria colectiva. Agora eles percebem isso imediatamente. Porque faz parte do seu mundo. Vejo muitos alunos frustrados porque outros departamentos, como o de literatura, não reconhecem esse tipo de criação como sendo válido. Porque é ‘derivativo’, dizem. É o tipo de insulto que o departamento de literatura pode atribuir aos mashups [composições feitas a partir da mistura de várias canções pré-gravadas]. Mas, para os estudantes, eles são uma expressão da sua identidade. Muito do meu trabalho hoje em dia é simplesmente manter-me actualizado em relação aos meus alunos”, diz Thompson. De certa forma, folclore é o contrário da literatura: é intrinsecamente mutável e diverso, ao passo que um texto assinado é fixo. “O problema da literatura de autor é que só nos dá a perspectiva de uma pessoa. Com o folclore tem-se a perspectiva de um grupo. Isso interessa-me – parece-me mais representativo daquilo que as pessoas pensam”, explica Thompson ao PÚBLICO.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave cultura social consumo mulheres
O flagelo do crime institucionalizado
Na última década, o “crime institucionalizado” vitaminou-se tremendamente no Brasil. (...)

O flagelo do crime institucionalizado
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Na última década, o “crime institucionalizado” vitaminou-se tremendamente no Brasil.
TEXTO: A sociedade brasileira vem assistindo nos últimos anos, talvez ainda sem entender bem suas reais dimensões, ao surgimento e o fortalecimento de mais uma praga — quase — endêmica do nosso país; digo “quase” pois alguns países africanos também a experimentam. Trata-se do que podemos denominar de “crime institucionalizado”. Tal fenômeno, que adquiriu contornos marcantes que o diferenciam conceitualmente do crime organizado convencional, merece urgente atenção não apenas das autoridades policiais, do ministério público e do judiciário, mas, sobretudo, da imprensa e da sociedade como um todo, pois seu fortalecimento e sedimentação tem a capacidade de minar de forma devastadora as possibilidades de desenvolvimento nacional. Vale dizer, grosso modo, que o “crime institucionalizado” estaria para o crime organizado assim como a motocicleta está para o velocípede. Ao contrário do crime organizado, agora neste contexto rebaixado à delinquência juvenil, o “crime institucionalizado” não lança mão de atividades escancaradamente ilegais, como o tráfico de drogas, de armas, a prostituição, o jogo ilegal e etc. Este novo e poderoso flagelo utiliza-se apenas da plataforma oficial, dos governos das três esferas, do estamento público, dos ministérios da república, da política partidária e das regras eleitorais para prospectar e desviar fortunas do erário público. Todo o seu faturamento tem origem nos contratos de serviços e obras, nas concorrências públicas, nos repasses para programas de governo, principalmente para ONGs e OSCIPs. Trata-se, desta feita, de atividade infinitamente mais lucrativa e segura do que qualquer negócio ilegal convencional colocado em prática por organizações tipo máfia. Em suma, enquanto o crime organizado viceja aproveitando-se da letargia e da omissão de alguns homens públicos, o “crime institucionalizado” é fruto da própria ação estruturada e pensada de um grupo de homens e mulheres que comandam determinado setor, empresa ou unidade do poder público. Outra diferença marcante é que, enquanto o crime organizado coopta, ou, quando muito, infiltra um agente aqui e acolá, na polícia ou numa determinada repartição, o “crime institucionalizado” indica e nomeia, com a devida publicação em diários oficiais, dezenas de autoridades que servem aos seus propósitos tanto na empreitada criminosa propriamente dita, como na tomada de medidas garantidoras da impunidade do grupo e da salvaguarda do butim, nos três poderes da república. Mais um nuance importante é que o “crime institucionalizado”, com seus exércitos de nomeados em cargos e funções estratégicas, com vista a garantir alguns aspectos vitais da atividade, isto é, para institucionalizar a própria moenda criminosa, estaria, desgraçadamente, lançando mão da elaboração e promulgação de normas administrativas, e até de leis, que facilitem sua consecução. Eles têm a faca, o queijo e, é claro, a boca faminta, ao seu inteiro dispor. Na última década, o “crime institucionalizado” vitaminou-se tremendamente, aproveitando-se dos seguidos recordes de arrecadação tributária. Com o ingresso de dezenas de milhões de pessoas na classe média e o consequente aumento do consumo, os cofres públicos abarrotaram-se de dinheiro. São exatamente essas divisas, oriundas do alquebrado contribuinte brasileiro, que vem alimentando o “crime institucionalizado”. Uma de suas consequências práticas mais nefastas é a existência de centenas de concorrências públicas viciadas pelas fraudes do “crime institucionalizado” — há quem diga, inclusive, ser difícil encontrar, nos dias de hoje, uma única licitação que não seja “arrumada”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Contudo, ainda mais desoladora é a possibilidade da existência de grandes e vultosos projetos sendo aprovados com o único e exclusivo intento de desviar verbas públicas. É de fato o pior dos mundos, onde a corrupção estaria no nascedouro das iniciativas. Não seria mais o caso do estádio de futebol superfaturado, mas o caso do estádio de futebol que nem deveria ter sido construído, isto é, a corrupção de raiz. Não é, como dizem por aí, “o malfeito”, mas o que nem deveria ter sido feito. Esta situação tem saída, por mais difícil e desfavorável que possa parecer. E a solução passa necessariamente pela total e completa blindagem política de todos os órgãos que compõem a persecução criminal, sem prejuízos de outras medidas de proteção às instituições do estado brasileiro, mormente as agências controladoras, nas três esferas políticas. O quadro aponta para a necessidade da edificação de uma estrutura policial, altamente preparada e fortalecida, que faça frente a tais dragões, e com capacidade de investigar aqueles que nomearam seus próprios chefes.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONGs
As noites de Kinshasa
Uma corrida através de Kinshasa, entre a urgência do quotidiano e a sensualidade das noites de música e álcool. (...)

As noites de Kinshasa
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma corrida através de Kinshasa, entre a urgência do quotidiano e a sensualidade das noites de música e álcool.
TEXTO: A vida não é doce em Kinshasa, uma das cidades mais pobres e mais violentas do mundo, mas mesmo em Kinshasa é possível inventar uma certa douceur de vivre. O filme de Alain Gomis, realizador franco-senegalês, talvez tenha aí a sua principal virtude: constrói Félicité como uma perspectiva sobre o quotidiano da capital do Congo (ex-Zaire), que sem iludir a dureza das condições desse quotidiano evita ser uma simples “demonstração” através da maneira como se coloca perto das personagens e lhes inventa (ou mostra como elas inventam) uma sensualidade que transcende espaços e tempos. É o que acontece, sobretudo, nas cenas em que a protagonista Félicité canta ou ouve música ao vivo em bares de Kinshasa, e o filme fica embebido duma atmosfera encantatória e quase musical, tanto quanto os presentes se embebem em cervejas e outros álcoois, e os corpos de todos se embebem dum suor que parece que absorve as cores circundantes, os verdes e os vermelhos das paredes e dos tectos (conhecemos a director de fotografia, Céline Bozon, dos filmes em que trabalhou com o irmão Serge: é uma extraordinária operadora). Realização:Alain Gomis Actor(es):Véro Tshanda Beya Mputu, Gaetan Claudia, Papi Mpaka, Nadine Ndebode 26 de Maio de 2017 a 29 de Maio de 2017Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Estes momentos, que por vezes funcionam como um interrupção da intriga para ficar apenas um prazer mais ou menos ambíguo e mais ou menos ébrio, são a relativa concepção para o estilo realista meramente funcional com que Gomis explana a sua principal linha narrativa: uma mulher (a cantora protagonista) que corre Kinshasa em encontros e desencontros para conseguir desencantar o dinheiro necessário para pagar uma operação ao filho adolescente, que acabou de sofrer um acidente de motorizada. Este roteiro acaba por ser exposto de forma mais convencional, como um panorama para a “vida normal” de Kinshasa. Aqui, entre os “esquemas” e a corrupção, desenha-se o tema fundamental do filme (o dinheiro, que, se não traz a felicidade, Félicité acaba por trazer), também uma questão na relação da protagonista com o rapaz que passa dias a tentar arranjar-lhe o frigorífico (e no calor de Kinshasa um frigorífico avariado é quase tão dramático como um filho no hospital). Na sua demanda ditada pela força do instinto maternal, Félicité (a actriz Véro Beya Mputu é óptima) quase faz pensar numa Anna Magnani africana. Mas o filme está longe de ser um Kinshasa, Cidade Aberta ou um Mamma Kinshasa, ficando-se por uma menoridade sóbria mas convencional (à excepção dos momentos que referimos a abrir o texto), ainda assim suficiente para justificar uma espreitadela.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave filho mulher adolescente cantora
As imagens da dor humana não sobrevivem num mar de consumo
Nas Carpintarias de São Lázaro, em Lisboa, Alfredo Jaar oferece uma experiência de fotografia que salva a memória do sofrimento humano. Contra o esquecimento, o desperdício e a descontextualização das imagens. (...)

As imagens da dor humana não sobrevivem num mar de consumo
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nas Carpintarias de São Lázaro, em Lisboa, Alfredo Jaar oferece uma experiência de fotografia que salva a memória do sofrimento humano. Contra o esquecimento, o desperdício e a descontextualização das imagens.
TEXTO: A luz torna-se tão intensa que consome a imagem. Instala-se mesmo um desconforto físico, próximo da cegueira, que só ao fim de alguns segundos, no exterior da sala, desaparecerá. Qualquer coisa da própria imagem, no entanto, parece permanecer no espírito daquele que a viu. Shadows, de Alfredo Jaar (Santiago do Chile, 1956), existe muito para lá do espaço físico que a contém, no interior das Carpintarias de São Lázaro (Lisboa), até 3 de Setembro. É como se resistisse a abandonar o espectador, na expectativa de que ele possa voltar a ver e a ver melhor. Este tem sido, há várias décadas, um dos principais objectivos do artista chileno, radicado em Nova Iorque: proporcionar uma aproximação reflexiva e solitária às imagens fotográficas, especialmente àqueles que fixaram a dor, o sofrimento e o trauma de homens e mulheres. Foi assim na instalação Faces (1982), com os rostos de chilenos assassinados pelo regime de Augusto Pinochet, no projecto Let There Be Light sobre o genocídio do Ruanda (1994-1997) ou com The Sound of Silence (1995), elegia conceptual dedicada ao fotógrafo sul-africano Kevin Carter. Educa-se a ler e a escrever, mas não a ler as imagens. Esse é um grande problema, pois as imagens ensinam-nos a ver o mundo, comunicam-nos ideias sobre o mundo. Por isso, encaro o meu trabalho como indissociável de uma política das imagensVolte-se à imagem que a luz consumiu. Foi realizada em 1978 pelo fotojornalista holandês Koen Wessing (1942-2011), na Nicarágua, durante a revolução sandinista, e capta a agonia de duas mulheres no preciso momento em que souberam do assassinato do pai. Eis a cena que o espectador vê, antes de a escuridão engolir a sala e os dois corpos se transformarem em contornos iluminados, e logo a seguir, em luz. Shadows faz parte de uma trilogia, cujo primeiro momento corresponde a The Sound of Silence, instalação na qual Alfredo Jaar concebeu uma outra experiência da famosa e controversa fotografia do sul-africano Kevin Carter (1960-1994): a da criança sudanesa, subnutrida, cuja morte um abutre parece aguardar. ”Quando fiz esse trabalho, utilizei muito texto. É um filme que dura oito minutos, com muito texto, muitas palavras”, explica. “Só por uma fração de segundos mostro a fotografia. Em Shadows não há texto. Utilizei a estrutura inspirado numa obra do próprio Koen Wessing”. Artista(s):Alfredo Jaar Carpintaria de São Lázaro - Centro de Criação e Artes Contemporâneas, Lisboa, Quarta a Sábado, de 20 de Maio de 2017 a 3 de Setembro de 2017 das 15h às 19hEm 1973, o fotojornalista holandês estava no Chile quando se deu o golpe militar e durante duas semanas fez aquilo que o seu trabalho e a humanidade lhe exigiam. Fotografar, fotografar até ao fim dos rolos, os terríveis acontecimentos que se desenrolavam à sua volta. De regresso a Amsterdão, fez um pequeno livro, Chile Setembro 1973, sem uma única palavra. “Contou a história do Chile desse mês, apenas com imagens. Decidi, então, fazer a exposição com a mesma estrutura para explicar a imagem que ele realizou na Nicarágua em 1978”. Para além da fotografia principal, Alfredo Jaar escolheu mais seis imagens a partir das provas de contacto do fotojornalista. Três das cenas que ocorreram antes, e outras três das cenas que ocorreram depois. “A fotografia de Wessing sempre me fascinou. Mostrava a expressão da dor numa coreografia da morte. Os gestos daqueles corpos revelavam todas as emoções, todos os sentimentos que uma notícia como aquela pode provocar num ser humano. E decidi criar uma mise-en-scène para comunicar a fotografia ao público”. Num só gesto, Alfredo Jaar homenageava a actividade do fotojornalista e lembrava aos espectadores a força que as imagens ainda conservam. Este pendor pedagógico do seu trabalho, que alguns poderão considerar condescendente, ganha outro significado no contexto actual da circulação de imagens. “É um fenómeno inédito. Os novos media, as novas tecnologias, as redes sociais criaram uma saturação extraordinária. Nunca a sociedade esteve exposta a tantas imagens e, ao mesmo tempo, e isto é um paradoxo, nunca houve tanto controlo por parte dos governos e das grandes empresas. Recebemos as imagens sem aviso prévio e sem misericórdia”. Para Alfredo Jaar, cada imagem contém uma concepção do mundo, corresponde a um manifesto ideológico que vende produtos ou ideias. Daí a urgência em fornecer aos espectadores ferramentas que lhes permitam interpretar e pensá-las criticamente. “Educa-se a ler e a escrever, mas não a ler as imagens. Esse é um grande problema, pois as imagens ensinam-nos a ver o mundo, comunicam-nos ideias sobre o mundo. Por isso, encaro o meu trabalho como indissociável de uma política das imagens. Quero dar espaço e tempo aos espectadores para que compreendam a força de cada imagem”. Ver imagens fotográficas no âmbito do trabalho de Alfredo Jaar, implica a existência de certas condições. Há um contexto prévio, uma metodologia, que, mais ou menos escondida numa instalação como Shadows, se impõem ao espectador. “Crio uma mise-en-scène para que o espectador capte mais intensa e lentamente a imagem. Quero informar e quero comover, se quiser, busco um equilíbrio muito difícil entre a informação e a poesia. A imagem tem que informar com síntese, mas tem que emocionar, iluminar. Essa é a função da arte. Quando se consegue as duas coisas, a experiência é sublime. Mas a maioria tende a falhar. Quando são muito informativas, a informação esconde o lado poético, quando são muito poéticas, é porque a beleza esconde a parte do conteúdo. Procuro sempre alcançar um equilíbrio”. Alfredo Jaar permanece um adepto do fotojornalismo, da sua história e dos seus protagonistas. O seu olhar em torno das obras de Koen Wessing (a propósito, uma das suas fotografias, também da Nicarágua, é comentada por Roland Barthes em A Câmara Clara) ou de Kevin Carter nada tem de paternalista. Quando se apropria das fotografia destes profissionais, tem como fim não engrandecê-las, mas resgatá-las do esquecimento que as ameaça, trazê-las para o domínio de uma experiência menos mundana ou imediata. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Hoje, contudo, essa transposição parece mais complexa: “Quando Keil Wessing foi à Nicarágua fotografar o regime de [Anastacio] Somoza tinha dois rolos, 72 fotos. Hoje os jornalistas fazem 500 fotos de uma cena com a ilusão de que vão captar um momento muito especial. Nos anos 70, 80, havia um respeito pelo material, pela foto, pelo momento decisivo de que Henri Cartier-Bresson falava, pelo captar desse momento humano. A tecnologia fez desaparecer esse sentimento, a máquina afastou essa necessidade. Fazes uma reportagem e no laboratório encontras 1500 fotos. O Wessing soube o que era esse momento, teve um contacto real com as vítimas, com a realidade. Penso que a idade ouro do fotojornalismo já passou”. A opinião do artista pode soar polémica ou até refutável, mas os argumento que a sustentam merecem consideração: “As novas tecnologias criaram ferramentas que já não necessitam desse contacto humano. Agora existem lentes com uma tal capacidade de focagem que os jornalistas não necessitam de estar perto das pessoas. Podem estar muito longe. Esse é um dos efeitos do digital. Por outro lado, podemos guardar 50 gigabytes de fotos. Já não há limite, não há filme, nada nos impede de acumular fotografias e mais fotografias. É nesse sentido que afirmo que não há respeito pela fotografia”. Entretanto, as imagens não cessam de circular, num movimento ininterrupto, imparável. O que pode fazer um leitor de jornais ou um espectador de telejornais face a esse fenómeno? Alfredo Jaar reconhece a complexidade do presente, a impossibilidade de obtermos informação apenas de um meio de comunicação social, o facto da descontextualização da imagens se realizar a um ritmo mais rápido. O que fazer, como pensar? Um ponto de fuga pode estar no repto que a necessidade de compreensão faz a todos os espectadores: “Quero dar sentido às imagens. Tenho essa necessidade. Por isso preciso de as entender, e para as entender preciso de as investigar. Preciso de ver como se apresentam sob diferentes pontos de vista, sejam sociais, culturais ou ideológicos. E só depois chegar à soma de todas essas representações ou pontos de vista, traduzo ou concebo uma ideia do que pretendem transmitir. Mas vivemos uma fase muito difícil e o espectador comum está completamente desorientado. Os meios de comunicação já não vendem apenas notícias mas também espectáculo e publicidade que se confunde com notícias. Como resiste uma imagem de dor num mar de consumo? Não sobrevive. A não ser que uma tomada de consciência sobre a força das imagens se torne mais generalizada. "
REFERÊNCIAS:
Partidos BE
As descobertas de Oluale Kossola
Muito tempo depois, uma mulher tocou à porta da casa que Cudjo Lewis construíra. Ouvira falar dele e queria registar a sua história. Ele contou-a desde o início. (...)

As descobertas de Oluale Kossola
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Muito tempo depois, uma mulher tocou à porta da casa que Cudjo Lewis construíra. Ouvira falar dele e queria registar a sua história. Ele contou-a desde o início.
TEXTO: Ordenaram-lhe que se despisse. Disseram-lhe que lá para onde ia — lá para onde o levavam e que ele, se nem sabia de que porto partia, menos sabia a que terra haveria de chegar — havia muita roupa adequada à sua nova vida. Assim chegou, nu, depois da viagem terrível, porque a sede e a fome eram muitas, depois da viagem assustadora, porque toda aquela água, água a toda a volta, um oceano, portanto, era coisa que nunca vira, poderoso ao ponto de rodear o barco e de o manipular até não se perceber onde era o céu e onde era o mar. Longuíssimos dias viajou com os amigos, os que vinham de antes e os que passaram a sê-lo por partilharem a mesma língua e o mesmo espaço exíguo. Não lhe deram a roupa prometida quando desembarcou. Nunca se sentira tão envergonhado, tão humilhado. Nu desceu do barco para ver dedos apontados e vozes erguerem-se com espanto e escárnio — “selvagem”, chamaram-lhe. Tudo podia ter sido diferente. Teria sido diferente se ele tivesse ficado em terra em vez de chamar os seus segundos captores, que quase se esqueciam dele no meio da fuga apressada aos que primeiro o capturaram — mas os seus amigos estavam a ser levados e ele estava em terra desconhecida, sozinho e assustado. Teria sido diferente se a sua cidade não tivesse sido atacada à traição enquanto todos dormiam, triste madrugada aquela em que viu cabeças decepadas, corpos cortados com catanas ou crivados de balas, em que se viu e viu os seus agrilhoados e o seu rei decapitado por recusar a submissão. Mas não foi diferente. Foi como havia sido com tantos e tantas ao longo de tantos, demasiados, anos. Obrigaram-no então a descer e ouviu rostos diferentes exclamarem numa língua estranha: “Selvagens!” Viu como aqueles que lhe chamavam selvagem eram eles mesmos selvagens destituídos de honra, fazendo estalar chicotes nas costas de todos, e os homens aguentavam, mas não aguentaram quando o chicote tocou a pele de uma das mulheres. Lembra-se de explodirem nesse momento, de imobilizarem o selvagem, de lhe roubarem o chicote, de estalarem o chicote nas suas costas. Lembra-se dessa pequena vitória. Cudjo Lewis, foi esse o nome que ganhou naquela terra. Nela trabalhou de sol a sol durante vários anos, alombando com as mercadorias que os barcos levavam pelos rios por toda a extensão daquele território desconhecido. Trabalhou enquanto chegavam aos seus ouvidos histórias de uma guerra feroz, uma guerra que, dizia-se, um dos lados combatia para libertá-lo a ele e a todos os que haviam sofrido o mesmo destino. Muito tempo depois, uma mulher tocou à porta da casa que Cudjo Lewis construíra. Ouvira falar dele e queria registar a sua história. Ele contou-a desde o início. As correrias e as escaladas às palmeiras, as preparações para se tornar soldado, a guerra traiçoeira em que não teve tempo para ser soldado, apenas cativo. As barracas em que mantiveram os prisioneiros até chegarem estrangeiros que os viram, um a um, escolhendo quem levariam para longe, sobre o mar. Contou-lhe da viagem e da sede insuportável que sentiu, do trabalho de sol a sol, dos soldados que acenaram do outro lado do rio, anunciando-lhes que eram livres. Contou como ele e os seus planearam trabalhar para pagar uma viagem de barco de volta a casa, como perceberam que nunca conseguiriam reunir dinheiro suficiente para o fazer. Como decidiram, então, fazer daquele pedaço de terra estranha o seu lar. Escolheram como líder um dos nobres da nação que atacara a cidade de Cudjo, ele próprio tornado cativo. Quando o homem que os obrigara a trabalhar gratuitamente durante anos se recusou a ceder-lhes um terreno para se instalarem, trabalharam até reunirem dinheiro para o comprarem. Nesse terreno construíram casas, construíram uma escola e uma igreja. Chamaram a uma dessas casas “Casa Grande” — deixaram-na vazia: seria para qualquer família que passasse por dificuldades e precisasse de um tecto. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A escritora ouviu e registou tudo. Ouviu Cudjo Lewis falar da mulher que viera parar àquela terra da mesma forma que ele, e dos seis filhos que ali tiveram. Ouviu Cudjo Lewis dizer-lhe o nome com que nascera, Oluale Kossola, na esperança de que o seu relato chegasse a casa e alguém lá se lembrasse dele ainda. Ouviu Oluale confessar-lhe que desejava morrer a sonhar com a mãe que nunca mais vira desde o dia em que foi acordado pelo ataque da nação vizinha, manchada na honra e manchada de sangue, mas enriquecida pela venda dos seres humanos que capturava a outros humanos que os levavam mar fora. Conta-se que Timothy Meaher, de Mobile, Alabama, tinha decidido comprar escravos por causa de uma aposta, pondo assim em marcha toda a engrenagem que alcançou a costa africana a milhares de quilómetros de distância. Apostou que conseguiria contornar a proibição de tráfico humano inscrita em lei e trazer uns quantos seres humanos de África para escravizar nos Estados Unidos. Meaher ganhou a aposta. Já Oluale Kossola, nascido no que é hoje o Benim, ganhou as suas descobertas. Quando Zora Neale Hurston o entrevistou para criar Barracoon, obra cuja edição foi recusada no seu tempo e que surge agora, por fim, cinco décadas após a morte da sua autora, estávamos em 1930. Em 1930 nascia a minha avó. O meu avô era uma criança de cinco anos. A vida de Oluale Kossola, o último sobrevivente do último barco negreiro, não foi há muito tempo. Foi ontem. Corrijo: é hoje.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte homens guerra lei escola humanos ataque mulher fome homem criança mulheres