Mário Macilau: o menino de rua que se tornou um fotógrafo famoso
À semelhança das crianças que fotografou para o projecto Growing in Darkness, Mário Macilau foi um menino de rua em Maputo. Hoje, a sua casa é um palco da fotografia contemporânea, na qual parece ter conseguido um lugar cativo. (...)

Mário Macilau: o menino de rua que se tornou um fotógrafo famoso
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2017-03-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: À semelhança das crianças que fotografou para o projecto Growing in Darkness, Mário Macilau foi um menino de rua em Maputo. Hoje, a sua casa é um palco da fotografia contemporânea, na qual parece ter conseguido um lugar cativo.
TEXTO: Aos oito anos de idade, em 1992, Mário Macilau já trabalhava num supermercado em Maputo, numa zona privilegiada da cidade, ajudando os clientes a transportar as suas compras e a lavar os seus automóveis. “Ser o único homem da família era assim, tinha que garantir pão na mesa”, disse ao PÚBLICO. Macilau tinha a seu cargo a subsistência da sua mãe e irmãs desde que o pai partira para a África do Sul, um ano antes, em busca de trabalho; mas não as via todos os dias. Terminado o seu turno, deixava-se ficar na companhia dos amigos, que viviam nas ruas da capital, que dormiam onde calhava e se dedicavam à pequena criminalidade como forma de subsistência. Quando a infância de Mário terminou, já tinha aprendido muito mais do que uma criança deveria saber. Esse conhecimento, no entanto, veio a revelar-se útil, anos mais tarde, no desenvolvimento do projecto fotográfico Growing in Darkness, a que se dedica ininterruptamente desde 2012. “Quando me tornei fotógrafo nunca pensei que viria a fazer um projecto sobre crianças de rua. Não havia razões suficientes para mim; o facto de ter sido [uma criança de rua] nunca implicou que tivesse de fazer algo relacionado. Mas enquanto fotografei este projecto, a minha memória reconheceu muitas coisas, tudo me foi familiar: a forma de ser e de estar, a capacidade de sonhar ser alguém, mesmo naquela circunstância. ”Quem são, afinal, estas crianças e como (sobre)vivem nas ruas de Maputo? “Em Moçambique, os rapazes e as raparigas menores de idade pertencem, muitas das vezes, à classe trabalhadora, a lares monoparentais ou a agregados cujo sustento depende das próprias crianças. As circunstâncias forçam estas crianças a sair de casa e a viver na rua. Elas transformam moradas e terrenos desocupados na sua casa e aceitam empregos que não lhes oferecem a protecção necessária e que são mal vigiados. ” “As crianças de rua estão frequentemente sujeitas a abusos, negligência, exploração ou, em casos extremos, a trabalho em fábricas e em mercados formais e informais”, explicou. Macilau entrou no espaço privado destas crianças, visitou as pontes e os prédios abandonados onde vivem e dormem. “São lugares muito escuros, húmidos e perigosos”, descreve. “Não existe água nem electricidade, nem qualquer tipo de comodidade ou apoio doméstico. São lugares eternamente provisórios. ”O estabelecimento de uma relação de confiança com estas crianças foi fulcral no desenvolvimento do projecto. Passaram-se meses entre o primeiro contacto e o primeiro disparo da câmara. “A fotografia funciona muitas vezes como uma barreira mental e emocional [entre o fotógrafo e o retratado]. Segurar uma câmara pode criar uma fronteira entre os corações humanos e é por isso que primeiro fotografo com a mente. ” Foi por insistência das próprias crianças que começou a fotografar, uma vez que com o avançar do tempo começaram a sentir-se desmerecedoras das fotografias de Macilau – que viam como um fotógrafo famoso – e a fazer pressão para a sua validação enquanto tema fotográfico. “Foi a partir desta posição de amizade que pude captar a sua existência: a adversidade dos ambientes que frequentam, a resistência dos seus corpos (possivelmente condenados a uma morte prematura) e a resiliência com que enfrentam as privações. ”O abuso de droga aparece, neste contexto, como um escape da dura realidade em que estão imersas. “As crianças refugiam-se no uso de drogas altamente prejudiciais e viciantes e ficam num estado de saúde debilitado, subnutrido”, explica Macilau, via email. “Alguns dos riscos que enfrentam incluem doenças, lesões corporais resultantes de acidentes rodoviários, lutas de rua, assédio por parte de extorsionários e da polícia, exploração sexual por pedófilos e proxenetas, exposição ao abuso de substâncias e a doenças sexualmente transmissíveis. ” São os inalantes e os solventes – entre eles o rugby, uma cola à base de tolueno – as drogas preferenciais dos meninos de rua de Maputo. O xarope para a tosse e a marijuana são também drogas de uso comum – sendo que a última é fumada em grupo apenas em ocasiões especiais, dado o elevado preço de venda do produto. “Algumas destas crianças chegam a consumir drogas três vezes ao dia. ” A violência e a pequena criminalidade fazem parte do seu quotidiano. Nas ruas de Maputo, a sobrevivência é lei. “É importante entender que estas crianças não são diferentes das que temos em casa. O seu código de comportamento depende sobretudo da observação do comportamento de outros”, adultos e crianças, “nos espaços que frequentam. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Existe no coração de Macilau um conflito entre a culpa e a necessidade de intervir sobre a realidade que documenta. “Focar no consumo de drogas, na pobreza e nas suas actividades laborais não foi a minha intenção. Foi, sim, a de revelar a sua verdadeira identidade, aquela que vive escondida. O meu trabalho representa uma tentativa de lhes dar uma voz, um palco: de iluminar as suas vidas frágeis e fugazes e de lhes proporcionar um espaço de libertação, onde podem compor a sua imagem e reflectir sobre si próprias. ”Embora não frequentasse a escola, Mário conta que durante a adolescência lia com regularidade e se envolvia, como voluntário, em actividades promovidas por organizações não-governamentais de Maputo. Foi assim que aprendeu a falar inglês – uma ferramenta que se tornou essencial no desenvolvimento da sua carreira. Apenas um ano após a sua profissionalização, em 2009, Mário seria finalista do concurso Fotógrafo do Ano da UNICEF e veria o seu trabalho exposto na África do Sul e no Zimbabué. No ano seguinte, o seu trabalho viajou pela Nigéria, Bélgica e Espanha. Em 2011, a distinção no prémio BES Photo fez com que a sua obra integrasse o espólio do Museu Colecção Berardo e, no mesmo ano, somou exposições em Lisboa, Londres, Nova Iorque e Berlim. Em 2012, a exposição do seu trabalho no festival Les Rencontres d’Arles, em França, consagrou a sua presença no palco da fotografa mundial. “É bom lembrar que o que é uma desvantagem hoje pode ser uma vantagem no futuro – e vice-versa. Eu sou uma pessoa que não vive agarrada ao passado, o que de certa forma é bom; afinal foi assim que alcancei a minha liberdade. Sou uma pessoa muito persistente e por isso sofro muito no presente. Sei que este é o momento em que tenho de cumprir a minha parte. Com isto eu quero dizer que fui menino de rua durante muitos anos, sofri muito, tive escola em atraso – ou melhor, não estudei – mas isso serve-me como lição de vida. Eu percorri muitos caminhos, tropecei muitas vezes, todos meus amigos de rua morreram devido a problemas de saúde, mas eu estou aqui, seguindo em frente. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte lei escola humanos violência homem consumo criança sexual pobreza abuso assédio
Bem-vindo, Homo naledi!
O género humano acolheu, nesta quinta-feira, um novo membro, baptizado Homo naledi e cuja descoberta vem complicar ainda mais um pouco a nossa árvore genealógica evolutiva. (...)

Bem-vindo, Homo naledi!
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 1.0
DATA: 2015-09-15 | Jornal Público
SUMÁRIO: O género humano acolheu, nesta quinta-feira, um novo membro, baptizado Homo naledi e cuja descoberta vem complicar ainda mais um pouco a nossa árvore genealógica evolutiva.
TEXTO: Uma equipa internacional de cientistas anunciou esta quinta-feira, em conferência de imprensa, a descoberta de uma nova espécie de humanos antigos numa gruta na África do Sul. Os seus resultados foram publicados em dois artigos separados na revista online de acesso livre eLife. A nova espécie foi baptizada Homo naledi do nome da gruta, Dinaledi – que em sotho, uma das 11 línguas oficiais da África do Sul, significa “as estrelas”. Situada a uns 40 quilómetros de Joanesburgo, a gruta faz parte do local arqueológico conhecido como "Berço da Humanidade", que a UNESCO classificou como património mundial devido à riqueza de depósitos com fósseis que alberga nas suas inúmeras grutas. Os 1550 fósseis agora analisados, que são sobretudo ossos mas também dentes, foram recolhidos durante duas expedições à gruta, respectivamente em Novembro de 2013 e Março de 2014. Quatro dezenas de cientistas, liderados por Lee Berger, paleoantropólogo da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, participaram no empreendimento. Desde 2008 que Berger começou a realizar uma prospecção minuciosa do Berço da Humanidade. E em 2010, já descobrira aliás uma nova espécie de australopiteco, o Australopithecus sediba. Não admira portanto que a actual descoberta tenha agora feito exclamar a Eric Delson, do Museu Americano de História Natural de Nova Iorque, citado pelo New York Times: “Berger does it again!” (algo como “Berger volta a marcar!”)Os ossos provêm de pelo menos 15 indivíduos e “representam a maior colecção de restos de hominíneos jamais descoberta no continente africano”, lê-se num comunicado da Universidade do Colorado (EUA), que também participou no trabalho. “Astronautas subterrâneas”O novo “homem das estrelas” merece duplamente a sua alcunha. É que, para aceder à câmara da gruta onde se encontravam a ossadas fósseis – a “câmara das estrelas” – foi precisa a ajuda de seis autênticas “astronautas subterrâneas”, lê-se ainda no mesmo comunicado. Seis jovens mulheres que desceram pela única via de acesso existente: uma fissura vertical, longa de 12 metros, cuja largura é por vezes da ordem dos 20 centímetros!“A câmara que contém os fósseis está a uns 30 metros de profundidade e a cerca de 80 metros de distância, em linha recta, da entrada actual mais próxima da câmara”, lê-se num dos artigos publicados na eLife, que descreve a descoberta focando-se no contexto geológico e nas condições de fossilização das ossadas. “Na gruta, encontrámos adultos e crianças que pertencem ao género Homo, mas que são muito diferentes dos humanos modernos”, disse por seu lado o co-autor Charles Musiba durante a conferência de imprensa que decorreu em Maropeng, o centro oficial de acolhimento dos visitantes ao Berço da Humanidade. “Eram muito pequenos e tinham o cérebro do tamanho do dos chimpanzés. ” Outro elemento da equipa, John Hawks, da Universidade do Wisconsin (EUA), acrescentou: “Tinham o cérebro do tamanho de uma laranja e um corpo muito esbelto. ” Na idade adulta, mediam em média um metro e meio de altura e pesavam 45 quilos. “O minúsculo cérebro e a forma do corpo de Homo naledi são mais próximos do grupo pré-humano dos australopitecos do que de nós”, fez notar Chris Stringer, do Museu de História Natural de Londres e autor de um artigo, na mesma revista, que comenta os resultados. “Mas as mãos, os pulsos e os pés são muito semelhantes aos do homem moderno. ”Caley Orr, também da Universidade do Colorado e co-autor do artigo dedicado aos resultados da análise dos fósseis propriamente ditos, esteve a cargo do estudo das mãos e deu mais pormenores: “A mão tem características de tipo humano que lhe permitiam manipular objectos, mas ao mesmo tempo tem os dedos curvos, bem adaptados para trepar às árvores. ”As mãos de Homo naledi “levam a crer que tinha a capacidade de usar ferramentas”, os seus dedos eram muito curvos e, ao mesmo tempo, é “praticamente impossível distinguir os seus pés dos do homem moderno”, acrescentam em comunicado conjunto a Universidade de Witwatersrand, a Sociedade National Geographic (co-financiadora do projecto) e o Ministério sul-africano da Ciência. “Os seus pés e as suas pernas compridas permitem pensar que era capaz de caminhar durante muito tempo. ”Contudo, a posição exacta da nova espécie na árvore genealógica da evolução humana permanece desconhecida, bem como a idade dos fósseis.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
O lado B da História rock
Greil Marcus viaja numa máquina do tempo avariada, saltando de época para época ao sabor de dez canções pouco óbvias (...)

O lado B da História rock
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-04-29 | Jornal Público
SUMÁRIO: Greil Marcus viaja numa máquina do tempo avariada, saltando de época para época ao sabor de dez canções pouco óbvias
TEXTO: No primeiro capítulo de The History of Rock’n’Roll in Ten Songs, Greil Marcus enumera exaustivamente os nomes constantes do Rock and Roll Hall of Fame — Chuck Berry, James Brown, Ray Charles, Sam Cooke e um imenso etc. —, aflorando brevemente a narrativa oficial (cristalizada, museológica) da História do rock, a qual não voltará a tocar nas restantes páginas do livro. Quem conhece a obra do crítico e ensaísta norte-americano não se espantará. Sempre lhe interessaram mais outras histórias, as obscuras, as lendas, o mito, as associações estranhíssimas entre acontecimentos e conceitos aparentemente distantes, a ficção pura e dura. Em Lipstick Traces (editado em Portugal pela Frenesi como Marcas de Baton), chegava ao punk através de uma seita herética do século XVI, do dadaísmo e do movimento letrista (precursor do situacionismo). Uma História secreta do século XX (era o subtítulo desse livro) que provavelmente só existirá na sua cabeça. Da mesma forma, esta História do rock, não sendo propriamente secreta, é extremamente pessoal, a começar na escolha das canções que a compõem. Os pouco conhecidos Flamin’ Groovies dificilmente serão mais do que uma nota de rodapé (se tanto) em qualquer outra história da música. No entanto, abrem The History of Rock’n’Roll (estruturado como um álbum, até tem um interlúdio instrumental) com Shake some action, que Marcus considera demonstrativa da capacidade de o rock ser inventado a qualquer momento, em qualquer lugar. Inventado e não reinventado, ressalve-se. Para o autor, a ordem cronológica das coisas merece tanta estima como a rigidez das histórias oficiais. O presente e o passado (e, presume-se, o futuro) como que existem ao mesmo tempo, o punk desagua na folk e o rock resulta na country e nos blues. A voz de Amy Winehouse pode influenciar a escrita de To know him is to love him por Phil Spector 40 anos antes. As datas que acompanham cada capítulo-canção (a assinalar versões, reinterpretações, interpretações diferentes) tanto andam para a frente como para trás; o livro é como uma máquina do tempo avariada, saltando de época para época sem outra razão que não a vontade de Greil Marcus, uma espécie de vidente que só adivinha o que já aconteceu. No entanto, se sabe tanto como nós, vê mais além, sobretudo por não se deixar restringir pelos factos. Quando se atira a Transmission, dos Joy Division, opta não por descrever as imagens da primeira prestação da banda no programa de Tony Wilson (onde, aliás, tocaramShadowplay) mas a versão cinematográfica desse mesmo evento em Control, de Anton Corbijn. Ou seja, algo que realmente não aconteceu ou, pelo menos, não aconteceu assim e, portanto, só existe na ficção. Vai mais longe: pega no actor Sam Riley, para sempre contaminado por Ian Curtis, e encontra na sua filmografia Crime e Pecado, de Rowan Joffe, a mais recente adaptação do Brighton Rock de Graham Greene. No filme, passado nos anos 60, Riley interpreta Pinkie, um criminoso que tem de casar com uma rapariga para esta não o denunciar à polícia. A dada altura, ela pede-lhe que lhe grave um disco (numa daquelas cabines da época). Ela assente mas, em vez de dizer que a ama, enuncia todos os seus defeitos, acabando por afirmar que a detesta. “It comes off the screen as the first punk single”, escreve Marcus, já incapaz de distinguir a realidade da ficção, para deleite do leitor. Noutro capítulo, formula uma biografia imaginária de Robert Johnson caso aquele não tivesse morrido a 16 de agosto de 1938 (a mesma data da morte de Elvis, daí a 39 anos) em que este encontra Easy Rawlins (detective privado criado por Walter Mosley e interpretado por Denzel Washington em Um Demónio Vestido de Azul) e produz um álbum dos N. W. A. The History of Rock’n’Roll reúne alguns textos antigos de Marcus para revistas e edições de DVD (o documentário de Martin Scorsese sobre Robert Johnson, por exemplo) e outros escritos propositadamente para esta edição, apanhando às vezes ideias de artigos já existentes. O tema de um dos mais interessantes é Guitar drag, um disco que o autor comprou meio ao acaso e só veio a saber mais tarde tratar-se da “banda sonora” para um vídeo do artista visual Christian Marclay. Em Guitar drag, Marclay substituiu o corpo de James Byrd, um negro linchado por dois supremacistas brancos no fim dos anos 90, por uma guitarra presa a uma carrinha e arrastada pela ruas do Texas onde o homem morrera. A música é o barulho da guitarra a arranhar o alcatrão, o unsinging das baladas ao herói John Henry, de todos os direitos conquistados pelos afro-americanos, ou como o presente pode desfazer o passado e o futuro. Para um autor tão dado a escrever e a reescrever narrativas, é curioso que Greil Marcus ligue tão pouco às letras das canções, preferindo imaginar o que está por trás de uma linha de baixo, de uma inflexão da voz, de um tique na cara da cantora. É uma escrita parcial, absolutamente subjectiva, maravilhadamente especulativa, indiferente a qualquer preocupação jornalística/académica e, ainda assim, cria uma História mais verdadeira do que a de qualquer museu de cera oficial.
REFERÊNCIAS:
Houellebecq imagina a França governada por um muçulmano
Depois de O Mapa e o Território (2010), o mais polémico ficcionista francês regressa no dia 7 de Janeiro com o romance Soumission, no qual antecipa a vitória de um partido muçulmano nas eleições presidenciais francesas de 2022. (...)

Houellebecq imagina a França governada por um muçulmano
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-04-29 | Jornal Público
SUMÁRIO: Depois de O Mapa e o Território (2010), o mais polémico ficcionista francês regressa no dia 7 de Janeiro com o romance Soumission, no qual antecipa a vitória de um partido muçulmano nas eleições presidenciais francesas de 2022.
TEXTO: Soumission, o próximo romance de Michel Houellebecq, com saída anunciada para o dia 7 de Janeiro, está já a causar polémica em França. Parece, de resto, ter sido concebido com essa intenção. O ponto de partida do livro é a eleição em França, em 2022, de um presidente da República muçulmano, eleito por uma coligação que inclui os socialistas e os centristas da UMP, menos receosos do candidato da (imaginária) Fraternidade Muçulmana do que de uma eventual vitória da extrema-direita populista da Frente Nacional. Ficiconista, poeta, ensaísta, realizador, argumentista, Houellebecq é um dos mais traduzidos autores franceses contemporâneos, e também um dos mais controversos. Muitos o acusam, de resto, de lançar provocações – quer de viva voz, quer através das suas personagens – com o calculado propósito de alimentar controvérsias que chamem a atenção para os seus livros e para si próprio. Depois de o seu premiado segundo romance, As Partículas Elementares (1998), ter desancado a a geração que fez o Maio de 68, Houellebecq propõe agora uma espécie de romance de antecipação social, imaginando a sociedade francesa a submeter-se – o título do livro evoca um dos sentidos da palavra Islão, traduzível por “submissão” ou “obediência” – a um poder de inspiração muçulmana. Alguns críticos já leram a obra, e sínteses do respectivo enredo têm surgido em diversas publicações ao longo dos últimos dias. A acção decorre em 2022, quando chega ao fim o segundo mandato do presidente François Hollande. Se parece um pouco forçado imaginar-se o PS francês a aliar-se à UMP de Sarkozy para eleger como sucessor de De Gaulle ou Mitterrand um certo Mohammed Ben Abbes, candidato de um partido de muçulmanos franceses, a própria sugestão de que Hollande irá ser reeleito não é provavelmente a menos inverosímil das profecias deste livro. Houellebecq imagina Hollande a perder na primeira volta tanto para o candidato da Frente Nacional (FN) como para o representante da Fraternidade Muçulmana, que acabará por bater na segunda volta, com apoios que vão da esquerda ao centro-direita, o seu rival da FN. Entre outras acusações, Houllebecq tem sido rotulado de xenófobo e racista. E se é admissível que algumas destas críticas decorram de interpretações demasiado literais de passagens dos seus livros, já a sua antipatia pelo Islão tem sido confirmada em várias ocasiões, como numa entrevista que deu em 2001 à revista Lire, na qual afirma que “o Islão é a mais estúpida das religiões”. Houellebecq foi então processado por insultar os muçulmanos e por incitar ao ódio racial, mas acabou absolvido. O escritor afirmou em tribunal que não desprezava os muçulmanos, mas apenas a sua religião, porque, argumentou, tal como o cristianismo e o judaísmo, se baseia em “textos de ódio”. No entanto, na entrevista à Lire, distinguiu a “beleza” da Bíblia, defendendo que “o imenso talento literário dos judeus” os tornava merecedores de que muito lhes fosse perdoado. Houellebecq começou por publicar livros de poemas, estreou-se relativamente tarde como romancista e costuma precisar de quatro ou cinco anos para escrever cada romance. O último que publicou, O Mapa e o Território, em que ele próprio é uma das personagens centrais, saiu já em 2010, cinco anos após o anterior, A Possibilidade de Uma Ilha (2005). Como os romances anteriores, Soumission, cujo narrador é um professor de literatura que recorre frequentemente aos serviços de prostitutas e que se sente atraído por mulheres consideravelmente mais novas do que ele, vai provavelmente provocar polémica e vender-se bastante bem. A ministra francesa da Cultura, Fleur Pellerin, já anunciou que tenciona ler o livro, lembrando que Houellebecq foi sempre “um romancista provocador”, com “um sentido de humor estranho”.
REFERÊNCIAS:
Religiões Cristianismo Judaísmo
Mário Wilson, o adeus do capitão consensual
Foi jogador, treinador e seleccionador, deixando a sua marca por onde passou, mas era a sua personalidade ímpar que cativou todos os que o conheceram. (...)

Mário Wilson, o adeus do capitão consensual
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Foi jogador, treinador e seleccionador, deixando a sua marca por onde passou, mas era a sua personalidade ímpar que cativou todos os que o conheceram.
TEXTO: Neto de um americano e de uma princesa moçambicana, Mário Wilson nasceu para o futebol de pé descalço nas ruas da colonial Lourenço Marques (actual Maputo). Os seus dotes trouxeram-no para Lisboa, primeiro para o Sporting, mas foi na Académica que viveu os melhores anos da sua carreira e ali seria imortalizado com o epíteto de “Velho Capitão”. Pendurou as chuteiras para assumir o papel de treinador, orientando o Benfica, o seu outro grande amor, a par da “Briosa”, e da selecção nacional, mas conheceu muitos outros bancos técnicos. Foi íntimo de Agostinho Neto, Marcelino dos Santos, Daniel Chipenda e apoiante de primeira hora dos movimentos independentistas africanos. Morreu nesta segunda-feira aos 86 anos, na sequência de uma pneumonia. As reacções à sua morte tiveram um denominador comum: admiração. Durou cerca de um mês a viagem que trouxe Mário Wilson de Moçambique para Lisboa. A bordo do Mouzinho de Albuquerque, o jovem de 19 anos, deixava para trás o Desportivo de Lourenço Marques, filial do Benfica, para alinhar ao serviço dos “leões”. Um passo de gigante para o neto do comerciante Henry Wilson, que um dia também cruzou o oceano para encontrar no Catembe o amor da sua vida, no rosto da filha de um dos primeiros régulos (chefes tribais) da região. O jovem Wilson iria também entrar na aristocracia sportinguista, onde teria a missão de suceder ao “rei” Peyroteu, o mais brilhante dos “cinco violinos”. Não se vai demorar muito tempo com o “leão” ao peito. Apenas duas épocas. Mas deixa a sua marca. Será o melhor marcador da equipa na temporada de estreia (1949-50) e o segundo goleador do campeonato; ajudará à conquista do campeonato no ano seguinte. No Sporting será também adaptado a defesa central, posição onde se irá fixar e que iria solidificar na Académica numa longa relação de 12 anos como jogador. Em Coimbra, irá igualmente despertar para a política, inspirado pelo ambiente subversivo contra o regime ditatorial que se respira na cidade estudantil. Partilhará a mesma República com Almeida Santos, o já falecido ex-presidente da Assembleia da República, mas também priva com grandes figuras dos movimentos independentistas das antigas colónias africanas portuguesas, como já havia acontecido na capital, onde aprofundou uma íntima amizade com Agostinho Neto, com quem partilha casa. Encerra a carreira nos relvados na temporada de 1962-63, permanecendo ligado à Académica, como técnico-adjunto, nomeadamente de José Maria Pedroto, com quem tem uma relação conflituosa, substituindo-o no cargo de treinador principal em 1964. Vai viver momentos de glória à frente da “Briosa”, com quem se sagra vice-campeão nacional na época de 1966-67, algo inédito na história do clube. António Simões, antiga glória benfiquista, recorda-se bem desses anos extraordinários. “Presente, e regalo foi defrontar e assistir àquela Académica. Os meninos de Mário Wilson. O futebol moderno adiantado no tempo. O pequeno Barcelona daquela época. O famoso “tiki-taka” de agora, muito anos antes, treinado e praticado, por ideia criada e enfatizada do nosso Sr. Mário Wilson”, contou ao PÚBLICO: “A cultura dessa abordagem, o atrevimento de a assumir, a confiança de bem-fazer, dentro e fora de portas, levou e arrastou gente estudante e licenciada por todo o pais, e até fora dele, a marcar presença de capa e batina, alegre e vaidosa, da sua graça, orgulhosa dos seus representantes. ”O Benfica, o outro grande amor confesso de Mário Wilson, surge no percurso do técnico em 1975, aos 46 anos. Ao serviço das “águias” será o primeiro treinador português a ser campeão, logo na época de estreia. Irá regressar inúmeras vezes ao banco “encarnado”, como “bombeiro de serviço”, conquistando a Taça de Portugal em 1979-80 e 1995-96. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Entre os inúmeros jogadores que lançou estão Álvaro Magalhães e Pedro Henriques. Duas gerações diferentes de futebolistas, mas o mesmo carinho pelo “mister Wilson”. “Conheci-o com 19 anos na Académica e foi ele que me ensinou valores como educação, disciplina e equilíbrio. Fora de campo era um amigo. Foi o melhor treinador que tive em termos humanos”, lembra o agora também treinador Álvaro Magalhães. “Era um homem com um discurso empolgante, tanto nas galas como nos treinos”, garante Pedro Henriques, agora comentador desportivo: “Nos anos em que o Benfica atravessava períodos de crise, só ele nos fazia ficar contentes. Era uma maravilha. ”
REFERÊNCIAS:
Morreu Guy Hamilton, realizador de Goldfinger e três outros Bond
Um dos autores que mais filmes 007 realizou, Hamilton morreu aos 93 anos depois de uma carreira em que dirigiu Sean Connery, Roger Moore, Peter Ustinov ou Harrison Ford e em que começou como assistente de Carol Reed e John Huston. (...)

Morreu Guy Hamilton, realizador de Goldfinger e três outros Bond
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.12
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um dos autores que mais filmes 007 realizou, Hamilton morreu aos 93 anos depois de uma carreira em que dirigiu Sean Connery, Roger Moore, Peter Ustinov ou Harrison Ford e em que começou como assistente de Carol Reed e John Huston.
TEXTO: O realizador britânico Guy Hamilton, responsável por quatro filmes da série dedicada ao agente secreto James Bond, morreu esta quarta-feira aos 93 anos em Maiorca. Hamilton, cuja carreira também passou pela obra de Agatha Christie e que chegou a ser duplo de Orson Welles enquanto actor, realizou alguns dos filmes mais importantes da saga 007, na sua era de ouro das décadas de 1960 e 70. Primeiro foi Goldfinger, em 1964, depois 007 – Os Diamantes São Eternos (1971), ambos com o Bond original, Sean Connery; seguir-se-iam 007 –Vive e Deixa Morrer (1973) e 007 – O Homem da Pistola Dourada (1974), já com Roger Moore. A transição de Connery para O Santo Roger Moore foi supervisionada por ele, como detalha a BBC, que o cita sobre a sua chegada ao franchise, no início dos anos 60: “Tinha uma ideia muito nítida do que gostaria de fazer e de como gostaria de fazê-lo e foi uma experiência muito feliz”, disse sobre o convite feito pelo seu amigo, o produtor Cubby Broccoli. Guy Hamilton está entre os realizadores que mais filmes do franchise 007 realizaram, a par de John Glen e Terence Young. Para Hamilton, não havia uma fórmula e o trabalho, muito trabalho, era o segredo do seu sucesso. A sua estreia fez-se com o título para sempre ligado à música de Shirley Bassey e à Bond Girl Pussy Galore; encerrou o capítulo Bond com Christopher Lee como Scaramanga, um dos seus mais emblemáticos vilões. Pelo meio, ajudou não só na passagem dos estilos de Connery e Moore, mas também a definir parte do imaginário Bond, formada pelos objectos, símbolos e locais que perfazem esse seu universo – nomeadamente as Bond Girls como acessórios. “Estávamos a criar um mundo de sonhos, a definir o que era ‘bondiano’”, disse, citado pelo diário britânico Telegraph. Era preciso “um couro como o de um rinoceronte” para lidar com as pressões e a carga de fazer um Bond movie, cita-o ainda o Telegraph, tendo como termo de comparação o seu início de carreira, em França, onde passou parte da juventude e onde se estreou nos bastidores do cinema. Depois passou pela Marinha e, já depois da Segunda Guerra Mundial, foi assistente de realização de Carol Reed – que considerava o seu pai cinematográfico – em três filmes, incluindo o importante O Terceiro Homem (no qual foi duplo de Welles), e de John Huston em A Rainha Africana. Queria lançar-se em nome próprio o quanto antes e o seu primeiro filme foi The Ringer, em 1952; uma década depois era-lhe oferecido o primeiro Bond, Dr. No, que acabaria por ir para Young. Dois anos depois, faria Goldfinger, um título sonante numa carreira que também passou por Miss Marple e Poirot, personagens detectivescas de Agatha Christie, nos filmes The Mirror Crack’d (1980) e Evil Under the Sun (1982), com Peter Ustinov, bem como por Force 10 from Navarone (1978), com Harrison Ford, ou Battle of Britain (1969), com Michael Caine. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Incredibly, incredibly saddened to hear the wonderful director Guy Hamilton has gone to the great cutting room in the sky. 2016 is horrid. Filho de um diplomata, nasceu em Paris em 1922 e casou-se duas vezes. Vivia na ilha espanhola de Maiorca e está a ser lembrado como um “maravilhoso realizador” que “foi para a grande sala de montagem no céu”, como escreveu no Twitter Roger Moore.
REFERÊNCIAS:
Morreu Harper Lee, a autora de Mataram a Cotovia
Harper Lee vivia uma velhice discreta num lar de Monroeville, a sua terra natal, mas voltara à ribalta em 2015 com a descoberta e a publicação de Vai e Põe Uma Sentinela. (...)

Morreu Harper Lee, a autora de Mataram a Cotovia
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Harper Lee vivia uma velhice discreta num lar de Monroeville, a sua terra natal, mas voltara à ribalta em 2015 com a descoberta e a publicação de Vai e Põe Uma Sentinela.
TEXTO: A romancista Harper Lee, autora de um livro que se tornaria quase instantaneamente um clássico da literatura americana, To Kill a Mockingbird (Mataram a Cotovia na mais recente edição da Relógio D’Água), publicado em 1960, morreu esta sexta-feira na sua terra natal, Monroeville, no Alabama, onde vivia num lar desde que sofrera, em 2007, um acidente vascular cerebral. Extremamente reservada – as suas aparições públicas eram raras e não dava entrevistas desde os anos 60 –, Harper Lee voltara às páginas dos jornais em 2015 com a notícia de que fora descoberto o manuscrito de uma alegada sequela de Mataram a Cotovia, que viria a ser publicada nesse mesmo ano com o título Go Set a Watchman (Vai e Põe Uma Sentinela, na edição da Presença). Apresentado como uma continuação do romance de 1960, mas escrito antes, o livro retoma boa parte das personagens de Mataram a Cotovia, mas o enredo passa-se 20 anos depois. Nem o acordo da autora quanto à publicação de Vai e Põe Uma Sentinela, nem o exacto estatuto desse livro estão ainda cabalmente esclarecidos, mas parece provável que o manuscrito fosse apenas uma versão inicial de Mataram a Cotovia, e não um verdadeiro (e deveras tardio) segundo livro, que excluiria Harper Lee desse escasso número de escritores célebres que escreveram um único livro, entre os quais se contam a Emily Brontë de O Monte dos Vendavais ou a Margaret Mitchell de E Tudo o Vento Levou. Nelle Harper Lee nasceu no dia 28 de Abril de 1926 em Monroeville, uma pequena cidade de 6. 500 habitantes, onde se tornaria, na infância, a melhor amiga de um rapaz que para ali fora morar aos quatro anos, após o divórcio dos pais, e que o mundo viria a conhecer como Truman Capote. É Lee quem servirá de inspiração a Capote para a Idabel do seu romance de estreia, Outras Vozes, Outros Lugares. E Capote, por seu turno, transformar-se-á no pequeno Dill, o vizinho e amigo da protagonista de Mataram a Cotovia. Nelle, nome que lhe foi dado pelo insólito motivo de ser o nome de uma avó, Ellen, escrito ao contrário, era a mais nova de quatro irmãs, filhas de um advogado, Amasa Coleman Lee, que no início da sua carreira defendera dois negros acusados de terem morto um comerciante branco (acabariam ambos enforcados). É tido como certo que Harper Lee se inspirou pelo menos parcialmente no seu pai para compor o Atticus Finch de Mataram a Cotovia, o advogado, viúvo, que mora numa pequena terra do Sul dos Estados Unidos, nos anos 30, e que ensina os seus dois filhos – a narradora do livro, Jean Louise, vulgo “Scout”, e o seu irmão Jem – a não se deixarem influenciar pelo preconceito, e que não hesitará em afrontar ele próprio o racismo dos amigos e vizinhos ao aceitar defender um jovem negro acusado de violar uma rapariga branca. Um presente de NatalMataram a Cotovia, que ganhou o prémio Pulitzer em 1961, vendeu até hoje mais de 30 milhões de exemplares, está traduzido em mais de 40 línguas, e foi adaptado ao cinema logo em 1962, num excelente filme de Robert Mulligan, com Gregory Peck no papel do advogado, interpretação que lhe valeu um Óscar. A própria Lee dirá que achou o filme “uma das melhores adaptações de um livro alguma vez feitas”. Harper Lee começara a interessar-se por literatura ainda no liceu de Monroe. Terminados os estudos liceais, frequentou durante vários anos a Universidade de Alabama, estudando Direito, mas, quando estava prestes a concluir a licenciatura, decidiu partir para Nova Iorque e tentar uma carreira literária. Arranjou emprego como escriturária, tratando de reservas em companhias de aviação, e ia escrevendo nos tempos livres. Em 1959, a escritora acompanhou o seu amigo Truman Capote ao Kansas, como sua assistente na investigação que viria a dar origem a In Cold Blood (A Sangue Frio), o livro em que Capote relata o brutal homicídio de uma família, e que só viria a ser publicado em 1966, quando Harper Lee era já uma estrela literária, depois do sucesso instantâneo do seu romance de estreia. Esta fase do relacionamento entre ambos é descrita no filme Capote, de Bennett Miller, com Philip Seymour Hoffman no papel do romancista e Catherine Keener no de Harper Lee. É ao seu amigo de infância que Lee deve o conhecimento do músico, escritor e produtor teatral Michael Brown e da mulher deste, Joy, que no final de 1956 lhe deram um extraordinário presente de Natal: o dinheiro correspondente a um ano de salários, com um bilhete que dizia: “Tens um ano livre para escreveres o que te apetecer. Feliz Natal”. Lee conta a história em 1961, mas o nome dos seus beneméritos só viria a ser revelado décadas mais tarde. Não há dúvida de que a autora usou bem o tempo que lhe foi concedido, escrevendo Mataram a Cotovia, ou talvez Vai e Põe Uma Sentinela, aceitando que se trata da primeira versão do romance. Brilho em cada linhaEm 1957, Lee entregou o manuscrito a vários editoras, incluindo a então J. B. Lippincott Company, que comprou os direitos. A editora da Lippincott que tratou do livro, Therese Hohoff, contará mais tarde que “a centelha do verdadeiro escritor brilhava em cada linha”, mas que o manuscrito era mais “um conjunto de episódios” do que “um romance plenamente estruturado”. Durante três anos, a autora escreverá versões sucessivas, até chegar ao livro que milhões de pessoas irão ler nas décadas seguintes. Lee escrevia desde muito nova e já tinha publicado várias histórias em revistas quando saiu Mataram a Cotovia, mas a notoriedade que lhe trouxe o seu livro de estreia parece tê-la bloqueado. Em 1964, quando ainda dava entrevistas, garante que não esperou ter “qualquer tipo de sucesso” com Mataram a Cotovia e confessa que está a ter dificuldades em avançar com um segundo romance. Ainda escreveu alguns ensaios nos anos 60, mas o segundo livro, se como tal pode ser considerado, só surgiria 55 anos mais tarde, em 2015. Terá havido, de facto, uma tentativa de segundo romance que ficou pelo caminho, e Lee trabalharia ainda num projecto ao estilo de A Sangue Frio, sobre um assassino em série do Alabama, que também acabou por pôr de lado. Retirando-se da vida pública, acabará por regressar a Monroeville para tratar da sua irmã mais velha, Alice, que adoecera e que viria a morrer em 2014. Ela própria sofreria um acidente vascular cerebral em 2007, do qual terá conseguido recuperar razoavelmente, e vivia desde então num lar de idosos. Em Novembro de 2007, o presidente George W. Bush atribuiu-lhe a Medalha da Liberdade, a mais alta distinção civil nos Estados Unidos, e em 2010 o seu sucessor, Barack Obama, deu-lhe a Medalha Nacional das Artes, destinada a assinalar “contribuições extraordinárias” no domínio das artes. A controvérsia em torno da publicação de Vai e Põe Uma Sentinela trouxe para as páginas dos jornais muitas notícias contraditórias sobre o seu estado de saúde, com testemunhos de que estaria bem e lúcida a contrastarem com relatos de que estaria quase cega e surda e sofreria de demência. "Um farol de integridade"As reacções à morte de Harper Lee não se fizeram esperar. “O mundo perdeu uma mente brilhante e uma grande escritora”, disse, citada pela BBC, Spencer Madrie, proprietária da Ol' Curiosities and Book Shoppe, uma pequena livraria independente de Monroeville, destacando “as verdades que Harper Lee deu ao mundo, provavelmente antes de o mundo estar preparado para elas”. “Estamos agradecidos por termos tido uma ligação a uma autora que ofereceu tanto. Faltará sempre alguma coisa em Monroeville e no mundo em geral na ausência de Harper Lee. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Em comunicado, o agente da autora, Andrew Nurnberg, escreveu que o mundo perdeu “um farol de integridade”. “Ter conhecido a Nelle nestes últimos anos não foi só um prazer absoluto, mas também um privilégio extraordinário”, acrescentou ainda, contando ter estado com Lee há seis semanas. “Estava cheia de vida”, recordou, destacando a mente e a inteligência afiada da escritora, que citou então Thomas Moore. No Twitter, multiplicam-se as homenagens à escritora. “Descanse em paz, Harper Lee. A única coisa que não se submete à regra da maioria é a consciência de uma pessoa”, escreveu no Twitter o CEO da Apple, Tim Cook, citando uma conhecida frase da obra de Lee. Com Cláudia Lima Carvalho
REFERÊNCIAS:
Neste estúdio de fotografia de Bamako, África era feliz
Malick Sidibé (1935-2016) era um dos históricos da fotografia. No seu estúdio, África não era o continente da fome e da miséria - era jovem, alegre e dançava. Morreu quinta-feira, aos 80 anos. Não era à toa que lhe chamavam “O Olho de Bamako”. (...)

Neste estúdio de fotografia de Bamako, África era feliz
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.8
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Malick Sidibé (1935-2016) era um dos históricos da fotografia. No seu estúdio, África não era o continente da fome e da miséria - era jovem, alegre e dançava. Morreu quinta-feira, aos 80 anos. Não era à toa que lhe chamavam “O Olho de Bamako”.
TEXTO: António Pinto Ribeiro, programador cultural que conhece bem a arte contemporânea e a fotografia africanas, guarda na memória o dia em que esteve no estúdio de Malick Sidibé, na capital do Mali, Bamako. Havia muita gente à espera de vez para entrar naquele pequeno espaço – não mais do 12 metros quadrados – onde tudo era encenado, do tecido que se ia usar como pano de fundo, à pose que o retratado, “tratado com a maior delicadeza”, devia ensaiar. “E ele sorria, sorria muito, numa atitude contagiante”, lembra este comissário, no dia em que se noticiou que o fotógrafo maliano tinha morrido, aos 80 anos (não se sabe a data ao certo, embora o diário francês Le Monde avance quinta-feira, 14 de Abril). Foi um dos seus sobrinhos, Oumar, quem deu a notícia. Malick Sidibé aparece sempre na lista dos fotógrafos africanos históricos, com nomes como Ricardo Rangel (Moçambique), David Goldblatt (África do Sul) e Seydou Keïta (também do Mali). “Ele fez parte de uma geração que usou a fotografia para mostrar que África estava a mudar”, diz Pinto Ribeiro ao PÚBLICO. “E isto numa atitude muito séria, empenhada. Ele é um dos históricos da fotografia africana – eu diria mesmo mundial – não só pelas imagens que criou, mas pela imagem que deu do continente em que nasceu e trabalhou. ”O fotógrafo, que começa a trabalhar por conta própria no início da década de 1960, num estúdio de bairro que ainda se mantém e que fazia, numa primeira fase, fotografias tipo passe para os bilhetes de identidade, marcou decisivamente um período que coincide com o advento das independências africanas. “Ele apercebe-se, e faz por acompanhar, com grande originalidade, essa ebulição. Está perfeitamente consciente de que a sua fotografia produz uma imagem completamente diferente de África, uma imagem que se distancia daquela que, durante décadas, foi promovida pelas nações colonizadoras”, explica Pinto Ribeiro, que com o Programa Próximo Futuro, que dirigiu na Gulbenkian, tantas vezes, e sob tantas formas, reflectiu sobre a produção artística e literária contemporânea africana. Nascido em 1935 (ou 1936) em Soloba, uma aldeia hoje a 170 km da capital (na altura a região pertencia ao Sudão francês), num meio completamente rural, começou a guardar o rebanho da família aos cinco anos e, por isso, só entrou na “escola branca” aos 10. Foi aí que se destacou pelos seus dotes para o desenho, que mais tarde viriam a ser muito úteis na composição em estúdio. Depois de estudar na Escola de Artesãos Sudaneses de Bamako, para onde entrou em 1952, por indicação do governador colonial, Sidibé tornou-se aprendiz de Gérard Guillat-Guignard, que fotografava as elites locais e era conhecido pela deliciosa alcunha “Gégé la pellicule” (qualquer coisa como ‘Gégé o filme’), até criar o seu estúdio em 1962, quando o Mali se tornou independente. Foi nessa altura que começaram a chamar-lhe “O Olho de Bamako”. Tivera a sua primeira câmara seis anos antes, uma Brownie, pequena e leve, ideal para quem fotografa em bailes e outras festas, actividade a que se dedica intensamente nos anos 1960. Guillat-Guignard, dizia, não o ensinou a fotografar, mas vê-lo em acção fez com que Sidibé aprendesse muito. E fosse capaz de criar a sua própria maneira de captar a realidade, ainda que em alguns dos seus trabalhos se sinta a presença de outro grande retratista do Mali, Seydou Keïta (1921-2001). Já a trabalhar por conta própria, Sidibé rapidamente se torna uma figura popular na vida cultural do Mali. Não é de estranhar, já que se especializa em fotografar casamentos e outras festas e bailes que se prolongam pela noite dentro, muitos deles até depois do nascer do sol, nas margens do rio Níger. Neles os jovens partilhavam a música e a dança vindas dos Estados Unidos, da Europa e de Cuba. O rock e o twist, as modas de Paris. Neles se dava uma outra imagem de África – calorosa, alegre, moderna – que este maliano ajuda a moldar, a fixar. E que depois replica em estúdio, sobretudo na década seguinte, em retratos individuais e colectivos que reflectem, mais do que uma opção estética, uma posição política. Dizem críticos e comissários que uma das imagens que melhor resume a fotografia de Malick Sidibé mostra um casal a dançar numa festa de Natal (Nuit de Noel, Happy Club, 1963). Está impecavelmente vestido – ele de fato branco, ela de vestido rodado e descalça -, de olhos postos no chão, ambos com um sorriso tímido. Aquele momento antecipa, certamente, qualquer coisa (o quê deixou Sidibé à imaginação de cada um de nós). Nas suas fotografias, todas a preto e branco, há a mesma energia, a mesma cumplicidade deste casal que atravessa um período de grandes mudanças sociais e culturais. Estava a entrar-se numa nova era, diz o fotógrafo numa entrevista ao britânico The Guardian, em 2010: “A música libertou-nos. De repente os rapazes podiam aproximar-se nas raparigas e dar-lhes a mão. Antes isso não era permitido. Toda a gente queria ser fotografado a dançar juntinho. ”O seu estúdio, lembrou ainda ao diário, era um espaço descontraído, onde trabalhava muitas vezes até às seis da manhã (chegava a ampliar 400 fotografias) depois de numa noite de fim-de-semana percorrer cinco ou seis festas. “As pessoas apareciam, ficavam, comiam. Eu dormia no quarto onde revelava. Apareciam para posar nas suas Vespas, para mostrar os seus chapéus novos, as calças, as jóias, os óculos de sol. Estar bonito era tudo. Todos tinham de ter a última moda de Paris. Nós nunca tínhamos usado meias e, de repente, todos estavam orgulhosos das suas. ”A África de Sidibé, a que via ou queria ver como sendo a África das independências, era feita destes “jovens festivos, alegria, movimento e sensualidade”, sublinha António Pinto Ribeiro. Uma África em festa que fotografa tornando evidente “uma relação especial com os corpos” que vão absorvendo tudo o que chega de fora. Diz Pinto Ribeiro que, mesmo depois do reconhecimento internacional, com exposições na Fundação Cartier e no Grand Palais, em Paris, no Stedelijk de Amesterdão, ou no Museu de Arte Contemporânea de Chicago, Sidibé, que mostrou o seu trabalho também em Coimbra e Lisboa, manteve a sua rotina. Ia de manhã para o estúdio para fotografar – passava a maior parte do tempo, no entanto, a conversar com os amigos que sempre o visitavam –, ficava à espera que uma das suas mulheres lhe levasse o almoço, e continuava a trabalhar, “com muita calma”, pela tarde fora. Até poder – pouco a pouco a doença instalou-se, embora a causa de morte varie de obituário para obituário, sendo nuns a diabetes, noutros o cancro – trabalhou neste bairro popular de Bamako. “Malick Sidibé ‘sai’ duas vezes do estúdio – a primeira na década de 1960, para fotografar a tal euforia nocturna nas lambretas que cruzam a cidade; na segunda quando Obama é eleito Presidente dos Estados Unidos. São dois momentos de grande frenesim. ” E de esperança. “São dois momentos de ruptura. E ele dá-se bem nesse ambiente. Ele mesmo provoca uma ruptura quando contraria a representação da África esfomeada e doente, quando rejeita os modelos europeus, coloniais, no retrato – os que representam o modelo estático, com o corpo a três quartos”, explica Pinto Ribeiro. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No final dos anos 1990, quando começa a sua série de mulheres fotografadas de costas, “uma provocação”, volta a romper com o retrato tradicional. De recordar que é nesta década que a fotografia internacional descobre Malick Sidibé e Seydou Keïta, que era quase 15 anos mais velho. “Uma descoberta tardia, que cativa de imediato europeus e americanos. ” E que é feita a par da que acontece na cena musical, com Salif Keita e Ali Farka Touré a ganharem reconhecimento internacional. Hoje Sidibé está representado em muitas colecções privadas e públicas de prestígio, como a do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) e a do J. Paul Getty, em Los Angeles. Na lista dos prémios que recebeu merecem destaque o Hasselblad (2003) – um dos mais prestigiados do mundo, já atribuído a nomes como Henri Cartier-Bresson, Irving Penn, Robert Frank e Sophie Calle -; o do International Center of Photography (2008) o PhotoEspaña-Beaume & Mercier (2009); e um World Press Photo (2010) na secção Arte e Entretenimento por uma sessão de moda para o diário norte-americano The New York Times. Em 2007, Sidibé tornou-se o primeiro fotógrafo – e o primeiro africano – a ganhar o Leão de Ouro da Bienal de Veneza. “Nenhum outro artista africano fez mais por valorizar o estatuto da fotografia na região, contribuindo para a sua história, o seu arquivo de imagem e para dar conta das texturas e das transformações da cultura africana na segunda metade do século XX e no começo do XXI do que Malick Sidibé”, afirmou na altura o seu director artístico, Robert Storr. Para se fotografar, dizia Malick Sidibé, é preciso saber olhar, saber o que se quer e conseguir pôr as pessoas às vontade. “Sorrir está na minha natureza. Tenho sorte. ”
REFERÊNCIAS:
Fusão boa
Free combina o formalismo da partitura coreográfica com interpretações expressivas numa fusão vertiginosa que os bailarinos dominaram muito bem (...)

Fusão boa
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.7
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Free combina o formalismo da partitura coreográfica com interpretações expressivas numa fusão vertiginosa que os bailarinos dominaram muito bem
TEXTO: Para a sua última criação a Companhia Instável, sedeada no Porto e dirigida por Ana Figueira, convidou o coreógrafo sul-africano Gregory Maqoma a trabalhar com um elenco misto e caucasiano, seleccionado por audição internacional. O coreógrafo concentrou-se na ideia de que para dançar é preciso espaço e que poder atravessar esse espaço é como cruzar fronteiras: um indício de liberdade. A peça resulta de um encontro intensivo de profissionais onde o coreógrafo observa a identidade dos bailarinos expressa em muito, mas não só, pela forma como se movimentam perante algumas premissas; é ao dirigir essa matéria que o coreógrafo reflecte a sua própria identidade, física e cultural. Não é um método novo; mas é eficaz no propósito de encontro com o outro, indissociável de princípios de liderança democrática e fundado numa contemporaneidade cosmopolita de fluxos e contágios descentralizados. Em Free este método induziu uma coreografia que combina o formalismo da partitura nova (emergente do encontro), com expressivas interpretações individuais. Evidencia-se um vocabulário muito rico, não parco de referências à linguagem mais acrobática da dança contemporânea europeia que Maqoma aprendeu (onde reconhecemos Keersmaeker ou Shechter), mas também generoso em técnicas de repetição, enraizamento e fragmentação, que Maqoma detém no DNA informado por danças do seu continente, de transe e de catarse, ritual e social (e que Sanou ou Linyekula também incorporam). Acompanhando a exploração exaustiva de níveis, do chão ao ar, os corpos correm, lançam-se em voos rasantes e rebolam; os corpos ora expandem subitamente em alongamentos arriscados, com uma determinação e precisão marciais, ora contraem, com ímpetos revoltosos ou torções relaxantes. Muitas voltas e muitos saltos, em diálogos, cânones ou uníssonos, são rematados com acentuações secas dos pés contra o chão. Partes do corpo oscilam em ritmos rápidos: a cabeça desvairada, um tremor de joelhos e peitos frenéticos alternam com oscilações pélvicas e sensuais. Free é uma fusão boa e vertiginosa, que os bailarinos dominaram muito bem; incansáveis e indomáveis, mas sempre capazes de assegurar a coesão do colectivo e a atenção ao outro. Maqoma apresenta assim a dança como símbolo de liberdade de deslocação, de expressão e de comunicação. Do método criativo resultam contudo algumas fragilidades: a coreografia segue uma estrutura de alternância - o grupo, a sua subdivisão, e solos - que é previsível e tem ligações notoriamente técnicas. Inferem situações teatrais que revelam as pessoas e as histórias dos corpos que dançam: teimosamente uma moça sacode-se presa de cada lado pelos pulsos, e um rapaz partilha um passado de abandono que explica o seu isolamento; mas a articulação destas cenas no trecho coreográfico é fugaz e ambígua. O mesmo acontece com as citações a danças convívio, porventura oriundas do Soweto, do Porto ou de Moscovo, que são engraçadas mas pouco consequentes. Nesta mistura a música tem uma presença dominante. Sim, a música excita os afectos e empolga o vigor do movimento, mas impõe-se linearmente à dança e o espectro de referências desorienta: vamos de melodias arábicas a pulsações berberes, passando por dedilhados do corá, pela cítara indiana e uma guitarra eléctrica insolente. Apesar de algumas fracturas e incongruências, Free é um espectáculo enérgico e contagiante que, após a estreia no renovado e animado Rivoli, poderão ver em Aveiro dia 20 de Janeiro.
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Étnia Africano
Bob Geldof, um músico de causas, tocou por Mandela, o homem que fez do mundo “um sítio melhor”
O Nelson Mandela Music Tribute arrancou na quarta-feira em Leça da Palmeira para durante três dias celebrar o centenário de Madiba, que faleceu há cinco anos. Além do irlandês fundador da Band Aid, tocaram no primeiro dia deste evento de beneficência os Kayser Chiefs. Nesta sexta-feira, passam pelo recinto Steven Tyler e Rui Veloso. (...)

Bob Geldof, um músico de causas, tocou por Mandela, o homem que fez do mundo “um sítio melhor”
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-07-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Nelson Mandela Music Tribute arrancou na quarta-feira em Leça da Palmeira para durante três dias celebrar o centenário de Madiba, que faleceu há cinco anos. Além do irlandês fundador da Band Aid, tocaram no primeiro dia deste evento de beneficência os Kayser Chiefs. Nesta sexta-feira, passam pelo recinto Steven Tyler e Rui Veloso.
TEXTO: “Ninguém nasce a odiar o outro pela cor da pele, pela origem ou pela religião. As pessoas aprendem a odiar e, se podem aprender a odiar, também podem aprender a amar”. Esta é uma das frases de Nelson Mandela e foi em torno desta ideia que duas dezenas de bandas de vários pontos do globo se juntaram para celebrar o centésimo aniversário de um homem que passou quase trinta anos da sua vida encarcerado apenas por acreditar que no mundo há espaço suficiente para todos se poderem encontrar na diferença. Foi exactamente na data em que nasceu, a 18 de Julho, que, organizado pela Fundação Nelson Mandela, com o apoio da Câmara de Matosinhos e da Embaixada da África do Sul, arrancou o primeiro de três dias de Nelson Mandela Music Tribute, evento solidário cujas receitas revertem na totalidade para a fundação (75%) e para a Associação Portuguesa de Esclerose Lateral Amiotrófica (25%). Antes do evento orçado em 2 milhões de euros começar, a organização esperava aproximadamente 40 mil pessoas. Na abertura terão participado 12 mil. Os bilhetes diários custam 40 euros e o passe geral 100 euros. Habituado às causas, o activista Bob Geldof, amigo do Nobel da Paz, foi um dos nomes que marcou presença na iniciativa que até sexta-feira decorre na praia do Aterro, em Leça da Palmeira. No primeiro dia também tocaram Cecilia Krull, Calema, Pablo Alborán e Kaiser Chiefs. São nomes de nacionalidades e géneros musicais diferentes. Todos couberam no mesmo recinto e serviram os gostos distintos do público diverso que por lá passou. A madrilena Cecilia Krull, que recentemente ficou conhecida por assinar o tema de abertura da série Casa de Papel abriu o palco ao final da tarde. Soul a piscar o olho a um R&B com base electrónica. My life is going on valeu-lhe para conseguir a atenção ainda do pouco público que àquela hora estava frente ao palco. Tiveram de ouvir o tema em dose dupla, à segunda remixado. Além do sucesso catapultado pela série espanhola, ainda não tem material suficiente para segurar um set. Preencheu-o com mais meia dúzia de originais e recorrendo a versões. Tocou Wicked game, de Chris Isaak, e This is what it feels like, de Banks, antes de os Calema entrarem em palco para representarem a kizomba feita em São Tomé e Príncipe, numa versão mais épica e rock suportada em teclados e guitarras distorcidas. São dois irmãos as figuras de proa que conduzem as vocalizações. Durante a actuação referem Mandela como o símbolo que lhes terá proporcionado, a partir do país de origem, onde teriam “90 % de hipóteses de falhar”, conseguir ter vingado numa carreira dentro da área que escolheram. A noite caía na paisagem marcada igualmente por contrastes. Do lado esquerdo do palco vê-se o areal extenso cortado por um passadiço que segue pela marginal paralelamente ao mar. Do outro lado vêem-se os pontos luminosos e a chamas que saem das torres da refinaria da Petrogal. Temos natureza e temos paisagem industrial. Temos também o pop latino do espanhol Pablo Alborán a servir de pretexto para o público dançar, num recinto já mais composto. Homem de causas é também o activista e humanista Bob Geldof. Desde 1984, quando o irlandês fundou a Band Aid, antes do concerto de beneficência Live Aid, no ano seguinte, e de Live 8, em 2005, que abraçou causas maiores do que o universo musical, do qual se serviu para levar avante o seu plano. Entra com Redemption song, de Bob Marley, antes de revelar quais as preferências musicais de Madiba, que diz ter conhecido na Cidade do Cabo pouco depois de ter saído do cárcere. Mandela ter-lhe-á dito que no topo das suas escolhas estavam os Abba. “Como era uma pessoa muito bem-educada disse que também gostava de música irlandesa”, conta Geldof antes de soltar o folk-rock de The great song of indifference, a remeter para o seu país de origem. O activista, ocasionalmente actor — interpreta Pink no filme The Wall dos Pink Floyd —, revela sentir alguma estranheza por apenas ao fim de 40 anos de carreira, desde que fundou os Boomtown Rats, estar a tocar no Porto. “São 30 anos de solidariedade, mas são mais os de rock’n’roll”, esclarece. Naquela noite diz que se vai ouvir folk, rock e reaggae. Ouve-se um teclado Hammond e solta Systematic 6-pack seguida de Dazzled by you. Por essa altura já se percebia que não foi ali apenas marcar presença. Antes de ir embora fala da experiência que foi conhecer Mandela, de quem se tornou amigo: “Sinto-me um afortunado por ao longo da minha vida ter conhecido ídolos musicais, príncipes e papas. Mas a personalidade que mais me impressionou foi Madiba. Era um homem comum que gostava de mulheres, música, futebol e crianças, mas também era um homem que abraçava causas políticas e que agraciava tudo o que fazia. Na presença de opressores aprendia a falar a língua deles. No cativeiro adaptava-se. Era um grande homem e fez do mundo um sítio melhor. Particularmente na arquitectura do mundo actual, com Putin, Kim Jong-un, Erdogan e Trump no poder faz ainda mais sentido lembrar Mandela”. Depois destas palavras lança-se para o reggae Scream in vain. Voltou ao passado para revisitar I don’t like Mondays e Rat trap, dois clássicos dos seus Boomtown Rats. Pega no casaco, faz uma vénia e despede-se. Sem tempo para discursos foi feita a actuação dos Kaiser Chiefs, que regressam à sua “segunda casa”, como disse o vocalista Ricky Wilson. Contribuíram com o seu indie rock frenético que a plateia recebeu de bom grado. Dificilmente algo poderá correr mal quando já se tem o aval de quem pagou para os ver. Provando mais uma vez que o palco é onde os britânicos conseguem escavar o melhor das suas composições, usaram-no como montra para os vários singles coleccionados ao longo de 13 anos, desde que lançaram Employment. Arrancaram com Everyday I love you less and less e passaram por Everything is average nowadays, Modern way, Na na na na naa, Never miss a beat, The angry mob, Oh my God, I predict a riot e, claro, Ruby. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O evento termina nesta sexta-feira, dia em que tocam Steven Tyler, Nuno Bettencourt ou Rui Veloso. Nesta quinta-feira estava agendada a presença de Gabriel, o Pensador que passou a cabeça de cartaz após o cancelamento de Wicleaf Jean. Termina esta edição, mas é objectivo da organização dar continuidade ao evento. O responsável pelo Nelson Mandela Music Tribute, Telmo Fernandes, diz que a ideia é expandir para São Paulo, mantendo a linha de “não sectarismo” e dividindo a receita por outras entidades. Espera que esta seja também “a primeira de muitas” edições em Matosinhos e afirma que o objectivo é repetir já no próximo ano. A presidente da autarquia, Luísa Salgueiro, que simbolicamente ofereceu a Bob Geldof, a Cecilia Krull e a Mmamokwena Gaoretelelwe, embaixadora da África do Sul, uma garrafa de um vinho do Porto com 100 anos diz que ainda é cedo para poder garantir que se repetirá.
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