Morreu Siné, o cartoonista que ilustrou a revolução dos cravos
O desenhador francês morreu esta quinta-feira aos 87 anos. Histórico do Charlie Hebdo, tinha sido afastado do jornal em 2008 por alegado anti-semitismo. (...)

Morreu Siné, o cartoonista que ilustrou a revolução dos cravos
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: O desenhador francês morreu esta quinta-feira aos 87 anos. Histórico do Charlie Hebdo, tinha sido afastado do jornal em 2008 por alegado anti-semitismo.
TEXTO: O ilustrador e cartoonista francês Siné morreu esta quinta-feira de manhã, aos 87 anos, no hospital Bichat, em Paris, na sequência de uma intervenção cirúrgica. A sua morte foi anunciada na página de Facebook da revista humorística Siné Mensuel, o último projecto lançado por este colaborador histórico do jornal Charlie Hebdo, cuja direcção o afastou em 2008 por causa de uma crónica considerada anti-semita. Siné, nome artístico de Maurice Sinet, era “um cartoonista provocador”, que “adorava cascar nos capitalistas, nos colonialistas, nos chuis, nos militares ou nas religiões”, mas que tinha uma paixão pelo jazz e por gatos, aos quais dedica alguns “álbuns ternos”, resume o obituário que lhe consagra o jornal Libération. Menos lembrada na imprensa francesa é a sua passagem por Portugal, onde chegou logo após o 25 de Abril para assistir in loco à revolução dos cravos, tendo então assinado alguns cartoons icónicos, como o célebre desenho em que um jovem arranca a parte vermelha da bandeira portuguesa, deixando um senhor de ar sisudo apenas com o lado verde e o escudo. As suas ilustrações estão reproduzidas em várias obras, e aparecem também no documentário Cravos de Abril (1976), de Ricardo Costa. Na véspera da sua morte, o cartoonista publicou no site de Siné Mensuel uma crónica em que, com o humor de sempre, se confessava irritado com a proximidade do fim. “Devem ter reparado que desde há algum tempo não nado numa alegria de viver dionisíaca”, observava Siné aos seus leitores, explicando: “Só consigo pensar na minha morte próxima, se não iminente, e sinto-a rondar à minha volta como um porco trufeiro”. Lamentando o desgosto que iria causar aos que lhe eram próximos, Siné também não se esquece dos que não o apreciavam: “Penso em todos os cretinos que vão esfregar as mãos de contentes e irrita-me bastante morrer diante deles”. Se se cumprirem as intenções declaradas pelo cartoonista no documentário Mourir? Plutôt Crever! (2010), de Stéphane Mercurio, Siné deverá tornar-se o primeiro locatário de um talhão do cemitério de Montmarte que co-adquiriu com outros artistas para garantir que não partilhará a eternidade com vizinhos indesejáveis. Sobre uma cave com capacidade para 60 caixões, um cacto em bronze dum metro de altura que se parece manifestamente com uma mão a mostrar o dedo do meio esticado, assinala o lugar do último repouso de Siné. Na pedra tumular, lê-se “Mourir? Plutôt Crever!”, epitáfio traduzível, em versão muito livre, por “Morrer? Antes Bater a Bota”. No documentário, Siné mostra-se particularmente satisfeito por saber que a campa mais próxima é ocupada por Louise Weber, vulgo La Goulue, uma célebre dançarina de can-can conhecida como a Rainha de Montmartre. Filho de um ferreiro e de uma merceeira, Siné nasceu em 1928 num bairro popular de Paris. O seu primeiro desenho publicado apareceu na revista France-Dimanche em 1952. Três anos depois recebia o Grande Prémio do Humor Negro pela recolha Complainte sans Paroles. E a partir de 1959 começa a desenhar os famosos gatos que se tornaram a sua imagem de marca. Sempre muito interessado em usar a sua arte para intervir politicamente, trabalhou em vários jornais, incluindo L'Express, Le Monde, Libération ou L'Humanité, e fundou ele próprio diversas revistas, a começar por Siné Massacre, em 1962, da qual só saíram sete números. Em 1974 integra a equipa fundadora do Charlie Hebdo, iniciando uma colaboração de vinte anos, abruptamente interrompida em 2008, quando o então director Philippe Val o despediu, acusando-o de ter assinado uma crónica anti-semita. Em causa estava um texto em que Siné criticava o trajecto político de Jean Sarkozy, filho do então Presidente da República Nicolas Sarkozy, ironizando com a eventualidade de este se converter ao judaísmo antes de se casar com a filha do fundador da empresa multinacional de electromésticos Darty. O afastamento de Siné do Charlie Hebdo – um jornal que já então não tinha pruridos em satirizar violentamente o islamismo – provocou uma viva polémica em França, com Val a ser acusado de ter usado um pretexto para afastar um colaborador histórico da publicação com o qual nunca tivera boas relações. Val argumentou que o texto de Siné sugeria uma relação entre a conversão ao judaísmo e o sucesso social, o que considerava inaceitável. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A Liga Internacional Contra o Racismo e Anti-Semitismo (LICRA) porcessou Siné, que foi absolvido em 2009 por um tribunal que lhe reconheceu “o direito à sátira”. Em contrapartida, as Éditions Rotatives, que publicam o Charlie Hebdo, foram condenadas no final de 2010 a pagar 40 mil euros a Siné por rompimento abusivo de contrato. Recorreram da sentença e viram o Tribunal da Relação de Paris confirmar a decisão da primeira instância e aumentar a indemnização para 90 mil euros. Depois de deixar o Charlie Hebdo, Siné fundou a publicação Siné Hebdo, de vida efémera, e em 2011 lançou Siné Mensuel, que na sua página do Facebook prometia hoje “continuar o combate”.
REFERÊNCIAS:
Homofobia, fama e moda n'O Assassinato de Gianni Versace
A segunda American Crime Story é sobre o muito real Assassinato de Versace, um “génio” ou “o gajo das calças de ganga”. Série estreia-se nesta quinta-feira na Fox Life, com Penélope Cruz e Ricky Martin. (...)

Homofobia, fama e moda n'O Assassinato de Gianni Versace
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 13 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-30 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20181230200315/https://www.publico.pt/1800605
SUMÁRIO: A segunda American Crime Story é sobre o muito real Assassinato de Versace, um “génio” ou “o gajo das calças de ganga”. Série estreia-se nesta quinta-feira na Fox Life, com Penélope Cruz e Ricky Martin.
TEXTO: Em 1997, Gianni Versace era uma personalidade da moda e do mundo dos ricos e famosos. Em 2018, Gianni Versace é uma personagem da televisão sobre o mundo do crime e da fascinação dos ricos e famosos. Essa dualidade está toda na série American Crime Story: O Assassinato de Versace, uma operática construção de amor e família, barroca como a roupa de Gianni e melodramática como a Donatella de Penélope Cruz. Mas também é uma história de crime real à prova de spoilers, uma caça ao homem embebida em psicodrama e um contributo para a história televisiva da cultura gay. Gianni Versace era “um génio”, como confirmam o seu companheiro, Antonio D’Amico, interpretado por um surpreendente Ricky Martin, e a irmã e sua sucessora, Donatella, interpretada pela sua amiga na vida real Penélope Cruz. Era um símbolo da vitalidade da indústria da moda dos anos 1990, um self made man italiano que tornou uma medusa e um friso gregos nos símbolos de um império de luxo e de opulência, mas também de saúde e festa. Um dos centros gravitacionais da era das supermodelos e das novas casas de moda familiares num sistema empoeirado que via a couture dar espaço à moda rápida (e tentava absorver o despojamento da cultura que vinha das ruas), a Versace era Gianni. E Gianni era Elizabeth Hurley de vestido preso por alfinetes dourados, era a Princesa Diana, era cor. Era demais, mas com classe. Ou era “o gajo das calças de ganga”. É assim que um agente do FBI tenta explicar quem é aquela suposta celebridade que foi alvejada na cabeça à porta da sua mansão em Miami Beach, num momento que marcaria os anos 1990. Tal como a primeira American Crime Story, O Caso de O. J. , esta segunda temporada da série de antologia (em que cada temporada tem uma história autónoma das restantes) escolhe um caso charneira nestes ciclos de 20 anos de rememoração da cultura de massas contemporânea. Aqui cruza-se a moda, sim, e a forma como ela absorveu e somatizou o poder das celebridades, com a fome da fama do serial killer Andrew Cunanan (interpretado por Darren Criss, rosto conhecido de Glee e o verdadeiro protagonista da série), mas também a forma como compreender vidas, vidas homossexuais, que não eram as do mainstream hetero. “American Crime Story, no seu âmago, só funciona se se estiver a contar uma história maior sobre um mal social”, disse o produtor Ryan Murphy ao New York Times. A homofobia, como o racismo em O. J. , é o desta segunda temporada. Gianni Versace foi também, como lembravam nos seus obituários, “o primeiro dos principais designers de moda italianos a confirmar que era gay”. Em O Assassinato de Versace, a dificuldade de definir uma relação amorosa entre dois homens ou em encontrar a simples geografia quotidiana de uma comunidade por parte da polícia produz cenas que hoje surtem quase o mesmo efeito que ver um ginecologista a fumar em pleno exame a uma paciente em Mad Men. A série “usa a sua vítima para contar uma história sobre ser gay na América: o isolamento e a solidão do armário, a dor do desejo bloqueado, a necessária acumulação de mentiras e a confusão de um mundo pós-crise da sida e pré-Will and Grace em que a tolerância é nascente mas o cepticismo ainda prevalece”, escreveu Jake Nevins no Guardian. Andrew Cunanan é o homem no espelho numa série que a crítica americana recebeu, com poucas excepções, muito bem. Gianni Versace (interpretado por Edgar Ramírez) foi a sua última de cinco vítimas, uma mente descrita por Tom Rob Smith (autor de A Criança N. º 44) para a antologia de Ryan Murphy a partir do livro Vulgar Favours, da jornalista Maureen Orth, e sem a “autorização” da família Versace. “Deve ser apenas vista como uma obra de ficção” com base num livro “cheio de mexericos e especulação”, disse a família, ainda à cabeça de um império de moda de gangas, sim, mas também de perfumes, jóias e sobretudo de moda sazonalmente elogiada. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Sensacionalismo “repreensível”, dizem os Versace, apesar de Penélope Cruz ser tão amiga da inconfundível Donatella que só aceitou o papel após ter com ela conferenciado. Sendo uma série imune aos spoilers – a história está escrita a sangue e começa logo aí, com a morte de 15 de Julho de 1997 (precedendo em dois meses a de Diana de Gales), e o homicida é seguido até ao fim –, há detalhes que nunca foram confirmados pela família. Como se Cunanan e Versace se conheceram anteriormente ou qual o verdadeiro estado de saúde do designer de moda nos anos anteriores ao crime. Outros são contestados por D’Amico, que diz que nunca segurou o corpo do namorado nos braços numa das cenas mais camp, e mais noveleiras, da série. O produtor Ryan Murphy defende a sua actual detractora, Donatella Versace, como uma “heroína feminista” e frisa que a sua história “não é uma obra de ficção” – mas, claro, tem “elementos de docudrama. Não estamos a fazer um documentário”. Pela oposição da família, usam roupa Versace de arquivo, comprada ou de museus, e reproduziram alguns vestidos emblemáticos. O primeiro de dez episódios da série estreia-se nesta quinta-feira na Fox Life, às 23h10.
REFERÊNCIAS:
Homem armado ameaça comunidade imigrante da cidade sueca de Malmo
Os 30 por cento de habitantes da cidade sueca de Malmo com origem no estrangeiro parecem estar a ser o alvo de um homem armado que durante este último ano foi referenciado pela polícia. (...)

Homem armado ameaça comunidade imigrante da cidade sueca de Malmo
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 13 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-10-23 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os 30 por cento de habitantes da cidade sueca de Malmo com origem no estrangeiro parecem estar a ser o alvo de um homem armado que durante este último ano foi referenciado pela polícia.
TEXTO: As autoridades estão a investigar quem é que será o indivíduo, ou eventualmente o grupo, na origem de 18 incidentes de que foram vítimas pessoas pertencentes a minorias étnicas, as quais na Suécia tanto englobam ciganos como turcos, finlandeses, bósnios, croatas e sérvios. Existe uma tensão crescente quanto à política imigratória, num país onde um partido que é contra os estrangeiros, o Sverigedemokraterna (Democratas da Suécia), obteve o mês passado votos suficientes para entrar no Parlamento. As primeiras vítimas referenciadas, em Outubro do ano passado, foram uma mulher de 20 anos e um homem de 21 que se encontravam sentados num automóvel, não tendo ela conseguido sobreviver aos tiros que levou. Os elementos da minoria étnica da cidade de Malmo, no Sul do país, frente à Dinamarca, já foram avisados de que devem tomar precauções especiais, depois de mais duas mulheres terem sido alvejadas quinta-feira à noite quando se encontravam na cozinha. Dias antes, dois negros haviam sido atingidos a tiro nas costas quando aguardavam autocarros, em dois incidentes separados, mas que a polícia concluiu ter envolvido a mesma arma de elevado calibre. Só nesta última semana é que a polícia sueca começou a seguir a pista de grupos de extrema-direita poderem ter algo a ver com estes crimes de carácter racista que se estão a acumular. As autoridades procuram muito em especial um homem de 20 a 40 anos que testemunhas viram a fugir dos locais de alguns dos incidentes deste tipo. E Tahmoures Yassami, dirigente da Associação Irano-Sueca da cidade de Malmo, afirmou ao site de língua inglesa “The Local” que muitas famílias imigrantes se encontram aterrorizadas. Erik Ullenhag, o novo ministro da Integração, já se deslocou à cidade, tendo observado ser “ainda muito cedo para se tirarem quaisquer conclusões políticas”. Só no bairro de Rosengård, erguido nas décadas de 1960 e 1970, 86 por cento dos cerca de 22. 000 habitantes são imigrantes. E o aglomerado urbano de Malmo é o que mais estrangeiros tem, em toda a Suécia, a começar pelos naturais dos países que fizeram parte da ex-Jugoslávia e pelos iraquianos. Mas também há polacos, iranianos, libaneses, húngaros e romenos.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave mulher homem minoria mulheres racista
Comunidade cigana na Hungria abandona aldeia para fugir a milícia de extrema-direita
Os membros da comunidade cigana de Gyongyospata, na Hungria, foram forçados a abandonar as suas casas durante o fim-de-semana para evitar confrontos com um grupo de "vigilantes" de extrema-direita que provocatoriamente organizou um "campo de treinos paramilitares" naquela aldeia. (...)

Comunidade cigana na Hungria abandona aldeia para fugir a milícia de extrema-direita
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 16 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-04-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os membros da comunidade cigana de Gyongyospata, na Hungria, foram forçados a abandonar as suas casas durante o fim-de-semana para evitar confrontos com um grupo de "vigilantes" de extrema-direita que provocatoriamente organizou um "campo de treinos paramilitares" naquela aldeia.
TEXTO: A Cruz Vermelha da Hungria confirmou ter transportado 277 residentes para fora da aldeia. "Temos boas razões para ter medo. Nos últimos dois meses, Gyongyospata transformou-se num campo de batalha", disse à Associated Press o presidente do conselho Roma local, Janos Farkas. "Organizar jogos de guerra em plena época de Páscoa não lembra a ninguém", criticou. As mulheres, idosos e crianças debandaram, mas os homens ficaram para trás para defender as suas propriedades. O transporte foi organizado pela Cruz Vermelha à semelhança de uma operação humanitária. "A comunidade pediu a nossa ajuda. Essa é a nossa missão", observou o director da organização, Erik Selymes. O Governo, criticado pelo seu laxismo perante a proliferação de grupos de extrema-direita, destacou um impressionante dispositivo de segurança para a aldeia: mais de 100 de agentes, com equipamento antimotim, e apoiados por viaturas blindadas. Ao mesmo tempo, um porta-voz, Zoltan Kovacs, desdramatizou os receios expressos pela comunidade cigana, considerando que "a situação não justificava uma ordem de evacuação obrigatória". O responsável frisou que nova legislação, aprovada na véspera, conferia maiores poderes à polícia e guarda nacional para actuar contra grupos paramilitares. Sete membros da milícia Verdero (ou Força de Defesa), incluindo o seu "comandante", Tamas Eszes, foram detidos antes do início do campo de treino - ao ser transportado pela polícia, Ezses, envergando um uniforme camuflado com um antigo emblema militar alemão, botas de tropa e uma boina vermelha, deu ordem aos seus seguidores para prosseguir com as actividades planeadas. "Só queremos promover o exercício físico e manter a tradição húngara de treino físico ao estilo militar", disse o líder da milícia, numa entrevista telefónica antes da detenção. Ezses rejeitou acusações de racismo e extremismo, precisou que o seu grupo é "patriótico" e não "nacionalista" e garantiu que nada o move contra os Roma, apesar de enfatizar que a "criminalidade cigana é um problema sério que não pode ser escondido". "Mas esse não é o nosso problema", ressalvou.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens guerra campo ajuda racismo comunidade medo mulheres humanitária
Velhas e novas escravaturas
Este Senhor não quer nem escravos nem escravas, mas amigos e amigas. Porque não lhe fazer a vontade? (...)

Velhas e novas escravaturas
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.118
DATA: 2015-03-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Este Senhor não quer nem escravos nem escravas, mas amigos e amigas. Porque não lhe fazer a vontade?
TEXTO: 1. A escravatura não tem data de começo. Com a descoberta das Américas começaram a ser usadas como escravas as populações ameríndias. Depois, recorreu-se ao comércio transatlântico. Calculando que por cada escravo que chegava vivo, quatro morriam pelo caminho, o resultado são sessenta milhões de africanos, a que é preciso acrescentar ainda os destinados às colónias asiáticas de Inglaterra e de França. Somando tudo, temos, aproximadamente, noventa milhões. Como perguntava Antón de Montesinos: E estes não serão seres humanos? [1]Fr. Bartolomé de las Casas tinha razão para denunciar a destruição tanto das Índias e como a de África [2]. Marcello Caetano [3] verifica que até ao século XIX, todas as nações coloniais praticaram a escravatura. As chamadas colónias de plantação careciam de mão-de-obra adaptada às condições do meio e que só podia ser obtida mediante a compra de escravos, no continente africano. Os navios empregados no tráfico dirigiam-se aos portos de embarque, onde se encontravam estabelecidos os intermediários – os negreiros -, que geralmente obtinham as suas peças por meio de permuta feita com os régulos indígenas, visto estes disporem despoticamente da liberdade e da vida dos súbditos, além de possuírem também escravos e de poderem sempre obter mais através da rapina e da guerra com outras tribos. Morrem umas escravaturas, nascem outras. 2. O Papa, na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz, nota que hoje, na sequência duma evolução positiva da consciência humana, a escravatura foi formalmente abolida. No próprio Direito Internacional consta como norma irrevogável. Mas, apesar da comunidade internacional ter adoptado numerosos acordos para acabar com a escravatura, em todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para a combater, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, mulheres e homens, de todas as idades – são privadas de liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura. Bergoglio não esquece a teologia do Antigo (AT) e do Novo Testamento (NT) que fundamenta a defesa da pessoa, que tem valor, mas não tem preço. Mas não repousa nessa memória. Pensa nos trabalhadores e trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos mais diversos sectores, a nível formal e informal, desde o trabalho doméstico aos trabalhos agrícolas e industriais, tanto nos países em que não há legislação segundo os padrões internacionais, como naqueles em que há e não é cumprida. Não esquece as condições de vida de muitos migrantes que, ao longo do seu trajecto dramático, passam fome, são privados de liberdade, despojados dos seus bens e abusados física e sexualmente. Lembra aqueles que, chegados ao seu destino, depois duma viagem duríssima e dominada pelo medo e a insegurança, ficam detidos em condições às vezes desumanas. Recorda os que em diversas circunstâncias sociais, políticas e económicas são obrigados a passar à clandestinidade, e aqueles que, para permanecer na legalidade, aceitam viver e trabalhar em condições indignas, especialmente quando as legislações nacionais criam ou permitem uma dependência estrutural do trabalhador migrante em relação ao dador de trabalho como, por exemplo, condicionando a legalidade da estadia ao contrato de trabalho. . . Sim! O Papa pensa no "trabalho escravo". Como esquecer as pessoas obrigadas a prostituírem-se, entre as quais se contam muitos menores, as escravas e escravos sexuais; as mulheres forçadas a casar-se, quer as que são vendidas para casamento quer as que são deixadas em sucessão a um familiar por morte do marido, sem poderem recusar?Bergoglio não pode deixar de pensar nos menores e adultos, objecto de tráfico e comercialização para remoção de órgãos, para ser recrutados como soldados, para servir de pedintes, para actividades ilegais como a produção ou venda de drogas, ou para formas disfarçadas de adopção internacional. Finalmente, todos aqueles e aquelas que são raptados e mantidos em cativeiro por grupos terroristas, servindo os seus objectivos como combatentes ou, especialmente no que diz respeito às meninas e mulheres, como escravas sexuais. Muitos desaparecem - alguns são vendidos várias vezes – outros torturados, mutilados, mortos. 3. No cristianismo não pode haver senhores e escravos. Só irmãos. Jesus nem servos quer, quer amigos. Talvez não fosse má ideia acabar, de uma vez por todas, com as piedosas evocações de servas e escravas. Que se perderia com isso?
REFERÊNCIAS:
Religiões Cristianismo
Silêncio que se vai filmar o fado
Não se ouve Camané da mesma maneira depois de se ver Fado Camané. É o documentário de Bruno de Almeida sobre o cantor a tentar encontrar em estúdio a medida exacta das coisas. É só inquietação, íntima e artística. (...)

Silêncio que se vai filmar o fado
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Não se ouve Camané da mesma maneira depois de se ver Fado Camané. É o documentário de Bruno de Almeida sobre o cantor a tentar encontrar em estúdio a medida exacta das coisas. É só inquietação, íntima e artística.
TEXTO: Camané está a fumar um cigarro sozinho, à porta de um restaurante do Bairro Alto. Ele parece olhar para as pessoas que passam na rua, mais do que elas olham para ele, talvez porque não o reconheçam sem a sobriedade de crooner (fato preto, camisa branca) associada à sua imagem de fadista. Camané está de jeans e – apesar de ser noite e de ser Outubro – de t-shirt listada. A informalidade dá-lhe uma certa discrição, como se fosse um disfarce. É por isso que às vezes lhe pedem lume sem se aperceberem quem é e só quando devolvem o isqueiro é que o reconhecem. Aconteceu recentemente, num sábado à noite, na esplanada do snack-bar Galeto, em Lisboa. Um jovem luso-africano voltou para trás, para confirmar: “É o Camané, não é?”Camané aprecia esse reconhecimento, mas também lida com isso com uma certa humildade. Não é como se achasse que é um direito ou uma regalia. “Foi quando percebi que era famoso. Quando os africanos começaram a cumprimentar-me na rua. ”Há uns anos, Bruno de Almeida teve a ideia de fazer um documentário sobre Camané. O plano era filmá-lo nas casas de fado onde cresceu e cantou, os concertos, os bastidores do fado. O realizador concorreu ao financiamento do Instituto do Cinema e do Audiovisual para documentários, mas a resposta foi que Camané não era tema para uma longa-metragem. Bruno de Almeida continuou a filmar e quando o fadista começou a preparar um novo álbum ele estava lá, com a sua câmara ao ombro. Foi em 2008. Bruno de Almeida montou um pequeno filme de meia hora sobre o making of do álbum Sempre de Mim, lançado nesse ano, para uma edição especial limitada e arquivou as horas e horas de filmagens que tinha feito. Outros filmes foram aparecendo: Bobby Cassidy, documentário sobre um antigo pugilista de Nova Iorque, e Operação Outono, reconstituição histórica do assassínio de Humberto Delgado e do julgamento dos seus carrascos. No ano passado, a Cinemateca convidou-o para fazer uma projecção do filme de 30 minutos incluído na edição especial do Sempre de Mim, e o realizador lembrou-se de fazer uma nova montagem, acrescida de imagens inéditas. Acabou com uma versão de uma hora, que mostrou na Cinemateca em Novembro de 2013. “Quando vi essa versão, apercebi-me de que não precisava de filmar mais coisas. Não precisava de fazer mais entrevistas ao Camané, não precisava dele a andar pela rua nem da glória dos concertos – o que estava ali era mais interessante”, explica Bruno de Almeida. Fado Camané, o documentário que chega agora às salas de cinema, uma semana depois de ter sido mostrado no DocLisboa, também não é o filme que foi mostrado na Cinemateca, mas uma nova versão que o realizador montou sozinho e obstinadamente nos meses que se seguiram. Apesar de ter sido filmado durante as gravações de Sempre de Mim, é muito mais do que um making of de um disco. É um retrato íntimo de um artista que personifica o fado como poucos – e é espantoso como, sem quase nunca sair do espaço impessoal de um estúdio de gravação, se descobre ali vulnerabilidade e turbulência. Camané vacila, fica sem saber o que dizer, dobra o torso e afunda a cabeça entre as pernas como se ouvir-se a si próprio fosse doloroso (ele confirma: é mesmo doloroso). “O Camané é uma pessoa que vive o interior de uma forma muito intensa. E tu sentes isso no olhar”, diz Bruno de Almeida quando Camané não está por perto. “Às vezes não é tanto o que ele está a dizer; são os olhos dele, é a maneira como ele procura as coisas. ”O direito à melancoliaBruno e Camané conheceram-se em 2006, quando o realizador regressou a Lisboa depois de mais de 20 anos a viver em Nova Iorque. Um dia chegou a casa e Camané estava lá (a mãe de Bruno deu-lhe aulas de francês). Apesar de serem da mesma geração – Bruno, 49, tem mais dois anos que Camané – não estavam propriamente condenados a serem amigos. Aos 12 anos, quando Camané ouvia fado às escondidas em casa – “Eu ouvia AC/DC e Ramones alto; depois ouvia fado baixinho”, lembra –, Bruno fez uma audição para tocar com os Xutos & Pontapés. O fado representava tudo aquilo que ele era contra. “Um puto com 15 anos em 1980 não ouvia fado”, diz. “Nós assistimos a uma série de explosões. O punk, a new wave. ” Quando vai para Nova Iorque, pouco depois, torna-se guitarrista de jazz e compositor. Improvisação, experimentalismo formal e a new wave nova-iorquina estão presentes na sua produção musical dessa fase. Nas fotografias profissionais tiradas à época, Bruno parece um jovem John Lurie. Por essa altura, já Camané cantava em casas de fado. “As casas de fado foram a minha escola”, resume. Durante anos foi o único fadista jovem, da sua geração, a cantar em casas de fado, rodeado de gente mais velha. Mas ele lembra-se de quando notou que os tempos estavam a mudar. “Queres ver uma coisa?”, pergunta Camané, parando em frente do número 39 da Rua do Diário de Notícias. A ardósia pendurada à porta tem “FADO VADIO” escrito a giz. “O dono deste sítio tem mais dez anos do que eu. Conheci-o quando cantava no Mesquita [Adega Mesquita, casa de fados no Bairro Alto], tinha eu dez anos. Ele era empregado de mesa lá. Abriu este sítio pelo fado. ” O sítio é a Tasca do Chico, e, parecendo que não, já lá vão 20 anos. “A primeira vez que se ouviu fado em tascas, com malta mais nova, foi aqui”, continua Camané. “Havia rastas à porta. Pessoas que não tinham muito a ver com o meio. Gajos de outras raças. As primeiras pessoas mais novas que se viam a ouvir fado eram de uma elite. Aqui não. Passou a ser mais universal. ”Voltando ao dia em que Bruno e Camané se conheceram: “Ele já tinha ouvido falar de mim”, diz o fadista. E, voltando-se para o realizador com um sorriso: “Foi a Amália que te falou de mim. ”“É verdade”, confirma Bruno. “Nos anos 90, quando lhe perguntei quem é que devia ouvir, ela falava nele. E a Amália era muito dura nessas coisas. Só gostava de quem fosse original e tivesse uma personalidade própria. Houve ali uma passagem de testemunho. Foi feita para ele. Para um homem e não para uma mulher. ”Bruno de Almeida conheceu Amália Rodrigues em 1990, quando filmou um concerto da fadista em Nova Iorque – começou aí a sua reconciliação com o fado e a sua obsessão com a fadista. Havia uma espontaneidade e uma força emocional no canto de Amália que era o Santo Graal que todos os músicos que trabalham com improvisação procuram. “Se ouvires as 20 e tal versões do Povo Que Lavas no Rio cantadas pela Amália, não há dois ‘povo’ iguais”, nota. “Ela diz a frase conforme se sente no dia em que cantou. ”Essa descoberta do fado também coincidiu com um período de contra-ciclo, em que depois de uma década de vanguardas e experimentalismo, as pessoas em Nova Iorque começaram a voltar-se para a world music, em busca de autenticidade. “O meu montador, um americano que nunca tinha ouvido fado na vida, andava com uma boombox [radiogravador portátil de grandes dimensões, vulgarmente conhecido como “tijolo”] no metro a ouvir o Com Que Voz. Estava completamente doido. ”Bruno de Almeida acabou por fazer um filme biográfico sobre Amália Rodrigues, The Art of Amalia. Quando o filme estreou em Nova Iorque, os jornalistas americanos insistiam em perguntar-lhe: “Porque é que ela era tão triste?” O tom era de perplexidade: como é que alguém com tanto sucesso e dinheiro podia ser infeliz? O realizador tentou explicar o melhor que podia, recorrendo a uma frase da Declaração de Independência americana sobre o direito à felicidade. “Os americanos têm aquela coisa do ‘right to the pursuit of happiness’ e nós temos o ‘right to the pursuit of sadness’”, diz. O direito à tristeza, o direito ao queixume, o direito ao fado. Uma defesa de que a melancolia tem o seu mérito. “Há coisas mais dramáticas, apesar de tudo”, nota Camané. “Na ópera morrem todos no fim. E, no entanto, as pessoas saem de lá com a alma cheia. ”Na noite seguinte, Camané fez uma coisa inédita: cantou 11 fados de Amália Rodrigues numa homenagem à fadista no Museu do Fado. Ele cantou com as letras ao lado, num cavalete, acompanhado ao piano por Mário Laginha. Começou com Foi Deus. Ao quinto fado, havia várias mulheres a chorar na plateia e daí em diante o desamparo no rosto dos que o ouviam foi crescendo, como se cada pessoa estivesse sozinha. Uma mulher sentada no chão anunciou mesmo, em voz alta, numa pausa entre temas: “Já me fartei de chorar”. Camané sabe que isso acontece nos seus concertos, tanto quanto a distância e as luzes deixam ver. “Também sou daquelas pessoas que choram nos concertos. Vi uma vez um concerto do Chico [Buarque] no Canecão, em 98 ou 99, em que ele cantou as coisas que eu mais gosto. O gajo cantou super-bem, fartei-me de chorar a ouvir. ”Obstinado rigorÉ impossível voltar a ouvir Camané da mesma maneira depois de ver Fado Camané. O trabalho, a exigência, a minúcia que existe por detrás de cada interpretação é visível no documentário. Bruno de Almeida decidiu manter o filme no espaço do estúdio, “entre quatro paredes”, para melhor captar o rigor desse processo. Há em Camané a obstinação de um leão às voltas na jaula. “É como um aquário. Sentes que estás mesmo lá dentro”, diz o realizador. Bruno de Almeida pensou no direct cinema de Albert Maysles e no seu Gimme Shelter (1970) quando estava a filmar. “O Albert Maysles acha que só é documentário quando estás com uma grande angular em cima de alguém e consegues ver os poros. Tens de estar com a pessoa. ” Em Gimme Shelter – tido como "o maior filme de rock alguma vez feito" – Maysles filmou os Rolling Stones tão exaustivamente e tão perto que isso chegou a criar antagonismo: numa cena que não foi incluída no filme (e que se encontra entre os extras da edição americana da Criterion), Keith Richards perde a paciência e protesta contra o realizador porque a sua câmara está a abafar o som de uma das colunas do estúdio quando estão a tentar ouvir gravações já feitas. “Não é fácil teres alguém a filmar-te durante seis semanas. Sobretudo se estás a fazer um trabalho bastante intimista”, diz Bruno de Almeida sobre Fado Camané. Mas é muito claro para ele que “se estás a filmar alguém tens de estar do lado dela”. “O que estou à procura quando filmo o Camané é o mesmo que procuro quando estou a filmar um actor numa ficção. O que procuro é a naturalidade, a expressividade, o que acontece no momento. Por isso é que gosto muito de pedir aos actores para improvisarem. Porque é aí que descubro qualquer coisa. Eles confiam que eu não vou usar uma coisa que não é boa. Que eu estou a segurar aquela coisa e que podemos filmar tudo o que houver porque no final vou usar as partes boas. ”Fado Camané também é um documentário sobre a relação de Camané com José Mário Branco, o produtor e director artístico que o ajuda a encontrar o rigor pretendido, a medida exacta das coisas. Que essa relação espelha a dinâmica que existe entre um realizador e um actor é muito evidente no filme, mesmo antes de Camané explicitá-lo. “O que o Zé Mário faz é dirigi-lo. É exactamente o que um realizador faz com um actor. Diz: ‘Puxa tudo para baixo. ’ ‘Don’t overact. ’ O papel é esse. E o Camané gosta de ser dirigido. Ele não tem um ego em que diz: ‘Não, eu é que sei. ’ É um excelente intérprete porque se deixa conduzir. Porque ele quer ter esse espelho”, diz Bruno de Almeida. José Mário Branco é exigente e protector como um mentor. Ou um pai. “O filme é muito sobre essa relação. Essa colaboração, e a delicadeza de um em relação ao outro. . . ” Há ainda Manuela de Freitas, actriz e companheira de José Mário Branco, autora de alguns dos poemas cantados por Camané, que apesar de não estar tão presente, paira sobre o filme como uma figura de autoridade. Camané viu o filme como se estivesse de fora, como quem descobre coisas sobre si próprio que desconhecia. “Acho que aprendi um pouco mais sobre o meu trabalho com isto. Como é que sou empurrado para fazer as coisas de maneira diferente, como é que sou puxado à razão. Não tinha noção nenhuma. Eu olho para o filme e aquilo está a acontecer-me agora, que estou a fazer um disco. Cada vez que me vou encontrar com os músicos, com o produtor, as coisas estão a acontecer desta maneira. ”O novo álbum deverá estar pronto em Fevereiro. O fadista está a finalizar a escolha do reportório com José Mário Branco e Manuela de Freitas. Uma noite, depois de uma tarde de ensaios em casa de José Mário Branco, Camané começou a cantar um dos novos fados à porta de um restaurante, onde ele e Bruno de Almeida tinham acabado de jantar. O fadista procurou o poema no email do seu iPhone. Eram dez da noite, princípio da semana, e tanto o restaurante como a rua estavam vazios. Foi um preview para três pessoas, incluindo o dono do restaurante. “Cada vez que vou para um disco novo tenho sempre a sensação de que não vou conseguir. Vou sempre como se fosse a primeira vez. E vem aquele vazio, aquele medo, aquela insegurança. ”Tudo isto é fado, tudo isto é humanoNuma casa de fado, sabe-se que alguém vai cantar quando as luzes se apagam, a porta se fecha e o ar condicionado é desligado. Os portugueses não inventaram a saudade para agora vê-la submergir debaixo do rumor eléctrico de uma máquina de ar artificial. A Tasca do Chico é um cubículo com a lotação de um eléctrico, mesas rústicas corridas, estandartes clubísticos pendentes do tecto e fotografias emolduradas nas paredes de gente mais ou menos famosa que passou pelo estabelecimento ao longo dos anos (Bruno de Almeida nota, divertido, que lhe fazem lembrar certas pizzarias em Nova Iorque). Uma coluna de pedra separa o balcão da zona de mesas corridas e é aí que o fado se canta. Guitarra portuguesa e viola começam a tocar. O flash de uma câmara dispara bem na frente de quem vai cantar e ela reage, gaiata: “Iiii, ó amigo, não faça isso nunca mais. ” Bruno e Camané estão praticamente ao lado dela. E ela canta. “Eu já não sei se fiz bem ou se fiz malEm pôr um ponto final na nossa paixão ardente. . . ”Do balcão só se vê um cotovelo espetado do lado esquerdo da coluna. Mas ela vai lançando os braços para a frente enquanto canta e o balanço fá-la avançar. As suas botas pontiagudas batem na tijoleira. Os olhos estão cerrados. Numa pausa entre estrofes, Camané começa a cantar baixinho, mas suficientemente alto para que se dê por ele. Bruno achou que ele iria cantar a seguir, mas o momento desvaneceu-se tão depressa quanto esse pensamento. O fado é fortuito e é preciso aceitar isso senão fica-se condenado à frustração. Camané deixou de cantar em casas de fado depois dos 30. “As casas de fado são lugares onde as pessoas vão ouvir fado ou não vão ouvir fado. Cheguei a cantar no Senhor Vinho com quatro japoneses a dormir de boca aberta à minha frente. ” Não deixou de frequentar casas de fado, mas ouvi-lo cantar aí é uma raridade. Este ano aconteceu três vezes, uma delas na Tasca do Chico, em Maio. “E foi o recorde”, assinala. “É também a coisa de ser a uma certa hora da noite: os músicos vêm de outras casas de fado e encontram-se todos num sítio. É o prazer de fazer música pela música, não é trabalho”, explica Bruno de Almeida. “Tanto canta o Camané como a senhora do bairro”, acrescenta Camané. Lugares como a Tasca do Chico existem fora das habituais distinções entre amadores e profissionais. Na mesma noite podem cantar um homem de 90 anos, residente em Mem Martins (“Nos fados sou conhecido como o Reinado”, diz, enquanto autografa um pequeno papel com a sua fotografia semelhante a uma estampa religiosa), e Raquel Tavares, fadista com dois álbuns gravados e presença regular na televisão. É dela o cotovelo saído da coluna. Quando termina, Camané diz-lhe: “A Anita Guerreiro cantou esse fado para mim quando eu tinha dez anos. ”Duas jovens asiáticas na rua espreitam pela janela e riem-se muito. As casas de fado estão cheias de turistas porque os guias dizem-lhes que é uma experiência que não podem perder. Sem casas de fado, como é que saberiam que estavam em Lisboa?Bruno de Almeida filmou Amália sem nunca ter posto os pés numa casa de fados. Foi Camané que o levou pela primeira vez. “Porque é que gosto de casas de fado? Por causa da espontaneidade”, diz. Não tem nada a ver com a perfeição da execução. E é imprevisível. Normalmente acontece fora de horas, quando a maioria dos turistas já se foi embora e as pessoas que restam são as que querem mesmo estar ali. E sentem-se livres para serem o que são. É uma energia colectiva. “Está tudo a viver uma emoção de uma coisa que está a acontecer no momento e não de uma coisa do género ‘a música é bonita, cantou bem’. . . Sentes que estás num espaço onde tudo pode acontecer. E que é muito humano. Porque tudo o que é espontâneo é muito humano. ”Isso também é o que lhe interessa quando faz filmes e Fado Camané não é excepção. Pode dizer-se que é um documentário sobre a procura da perfeição, mas para Bruno de Almeida essa não é a questão. O que conta é o caminho, o ter tentado – um reconhecimento de que a pureza de intenção é o cúmulo da realização. Perguntamos a Camané se ver o filme é semelhante à experiência de ouvir um dos seus discos. “Não, porque se fosse um disco meu não ouvia. Não tenho paciência. Só oiço quando estou a fazer o disco e naqueles 15 dias a seguir porque tenho de ver as falhas, etc. E é extremamente doloroso ouvi-lo. Depois ainda é mais. O filme, não. Claro que estou a ver umas partes em que estou a cantar, isso é um bocado chato. Mas há partes em que estou a chegar às coisas, isso é bonito de ver. ”Camané mudou recentemente de casa e toda a sua música ficou para trás. O único disco que tem actualmente é um CD de Chet Baker, comprado há dias por cinco euros, na Fnac. “Vamos para o meu carro ouvir”, sugere. O Volkswagen está estacionado numa rua movimentada do Bairro Alto, frente a um bar. Dois homens encostados ao carro pedem desculpa e Camané responde, como se quisesse justificar a interrupção: “É só para ouvir uma música. ” O carro torna-se um submarino com uma tripulação de quatro. “Oiçam esta música”, comanda o fadista. Chet Baker canta I’ve never been in love before sobre umas notas solitárias de piano. A melancolia nunca voltará a ser tão cool. Camané não canta como o resto de nós. Ele não tenta imitar Chet Baker. Ele canta à Camané. Na rua, um rapaz encostado à parede do bar chama a atenção de uma rapariga loira para o carro. A palavra “Camané” forma-se distintamente na sua boca. Ela observa o carro, duvidosa, e volta a olhar para o rapaz. Ele confirma, acenando a cabeça. “É. ”
REFERÊNCIAS:
Como o jogo mais bonito ficou tão feio
Miguel Poiares Maduro foi presidente do Comité de Governação da FIFA, criado em 2011 para reformar e reforçar a transparência deste organismo que tutela o futebol a nível mundial. O ex-ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional entrou para a FIFA no início de 2016, no rescaldo da saída de Joseph Blatter, na sequência de vários casos de corrupção. Cerca de um ano depois, Maduro saiu afirmando que este organismo "não está preparado para um escrutínio independente". "De pouco servirá apanhar algumas maçãs podres se a árvore que as produz continuar de pé", alerta nesta reflexão. (...)

Como o jogo mais bonito ficou tão feio
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.062
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Miguel Poiares Maduro foi presidente do Comité de Governação da FIFA, criado em 2011 para reformar e reforçar a transparência deste organismo que tutela o futebol a nível mundial. O ex-ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional entrou para a FIFA no início de 2016, no rescaldo da saída de Joseph Blatter, na sequência de vários casos de corrupção. Cerca de um ano depois, Maduro saiu afirmando que este organismo "não está preparado para um escrutínio independente". "De pouco servirá apanhar algumas maçãs podres se a árvore que as produz continuar de pé", alerta nesta reflexão.
TEXTO: A semana que passou foi a mais triste da história do meu clube. É impossível descrever a vergonha e tristeza que senti com as agressões perpetradas por adeptos contra atletas e técnicos do Sporting. Nos últimos dias tive oportunidade de exprimir o que sinto sobre o que se passou. Este texto não é (apenas) sobre isso. É sobre a cultura que o promove e a abordagem pública e cívica que o tem tolerado. Esta não é a primeira vez que a violência desportiva se manifesta. Já tivemos adeptos mortos (ainda recentemente). Já tivemos invasões de estádios e centros de treino. E as ameaças a atletas e árbitros são uma constante dentro e fora dos estádios. A diferença, neste caso, é o contexto em que ocorreu e a relação estabelecida com o comportamento de um presidente. A cobertura mediática que se seguiu obrigou responsáveis desportivos e políticos a pronunciar-se: dizem-nos agora que o futebol tem um problema e esse problema chama-se “violência no desporto”. Infelizmente, no entanto, a violência é apenas a manifestação mais extrema de uma doença profunda que ocupa o “corpo” do futebol há bastante tempo. Os sintomas têm-se multiplicado. Campeonatos do mundo atribuídos através de votos comprados; jogos viciados através da compra de jogadores ou árbitros; doping organizado e, nalguns casos, promovido por Estados; evasão fiscal; lavagem de dinheiro; e até funcionários judiciais corrompidos por agentes desportivos. Estes são alguns exemplos de processos judiciais que envolvem atualmente o futebol. Dos EUA à França, passando por Portugal, organismos de investigação criminal e magistrados têm tornado público uma pequena parcela do lado sujo daquele que durante tantos anos pensámos ser o jogo mais bonito. Mas a expressão criminal é apenas o estado mais avançado da doença ética e moral que domina a cultura do futebol. A multiplicação destes casos evidencia um problema sistémico que necessita de uma resposta sistémica. Por um breve momento, depois de as investigações criminais americanas terem removido alguns dos líderes da FIFA em finais de 2015, pareceu possível que o próprio futebol encontrasse essa resposta. Fiz parte desse esforço, ao liderar o novo comité de governação da FIFA por um breve período. Tínhamos a responsabilidade de promover o processo de reforma e implementar princípios de boa governação e integridade. Sabíamos que não seria fácil mudar uma cultura profundamente enraizada e procurámos ser graduais e pedagógicos. Mas não aceitámos derrogar dos princípios cuja promoção e proteção nos tinha sido confiada e, muito menos, como nos apercebemos ser prática estabelecida no futebol, fazer uma aplicação seletiva das regras consoante quem estivesse em causa. Quer eu, quer os meus colegas já tornámos público alguns dos problemas que enfrentámos. Com a Confederação Asiática, porque não tolerámos eleições que discriminavam contra as mulheres. Com a Confederação Africana, porque fomos forçados a intervir face a fortes suspeitas de viciação eleitoral. Dois de vários exemplos possíveis ao mais alto nível. A tensão atingiu um ponto de ruptura quando o próprio presidente da FIFA procurou forçar-nos a considerar elegível para o conselho da FIFA o vice-primeiro-ministro da Rússia (recentemente considerado responsável de doping de Estado), em clara violação da regra que impõe aos dirigentes do futebol neutralidade face aos governos. Foram poucos meses, mas intensos. A conclusão a que cheguei com os meus colegas: o futebol não se reformará a si mesmo. A sucessão de casos judiciais que afectam o futebol tem levado muitos a falar da perda da sua inocência. Infelizmente, o futebol já não é inocente há muito tempo. Clubes e federações começaram como associações amadoras (gentlemen clubs na expressão inglesa original). Desde então, o futebol transformou-se numa das mais importantes atividades económicas e sociais sem que o seu modelo e cultura de governo tenham evoluído muito. É como procurar instalar um software novo num velho computador. É difícil medir com precisão o peso do futebol no PIB, mas um estudo recente indicava como sendo 3, 5% do PIB europeu. Algumas das empresas que mais têm crescido no Top 500 das maiores multinacionais são empresas desportivas. A FIFA é, ela mesma, uma enorme multinacional. A audiência de um Campeonato do Mundo ronda os 40 mil milhões de pessoas e só as receitas televisivas do mundial podem chegar aos 5 mil milhões de euros. Imagine este enorme mercado, noutro sector económico, sujeito ao monopólio de uma empresa. Junte a isso a atribuição, a essa empresa, do poder de decidir que outras empresas podem aceder e ter parcelas desse mercado, as regras a que ficam sujeitas, quem as pode dirigir, como e quando funcionam, e até os “tribunais” que decidirão os litígios que as envolvam. Inconcebível? É esse o caso do futebol. Uma das atividades de maior relevância económica e social está nas mãos de uma organização privada, praticamente isenta de escrutínio público. Isto não podia dar bom resultado. Aquilo que as autoridades judiciais têm vindo a revelar ou acontecimentos públicos como os desta semana tornam evidente que estamos perante uma cultura bem mais profunda, que não é objeto de escrutínio externo. Tal como no domínio da política, o risco é o de, em vez de discutirmos e reformarmos esta cultura, nos limitarmos a tratar estas questões como patologias criminais. Quando estes comportamentos são tão frequentes, eles não são, infelizmente, patologias. São antes reveladores da identidade do sistema. Os comportamentos criminais têm de ser tratados nos tribunais, mas, a montante desses comportamentos, está uma cultura de governo do futebol que promove e protege esses comportamentos (tornando, inclusive, mais difícil a sua investigação). Esta situação também afeta a integridade do futebol muito para lá da dimensão criminal. De pouco servirá apanhar algumas maçãs podres se a árvore que as produz continuar de pé. Na origem dos problemas do futebol está uma enorme concentração de poder sem mecanismos independentes de controlo e fiscalização. A consequência é uma cultura frequentemente autoritária, pouco transparente, permeada de conflitos de interesse e onde a aplicação das regras é seletiva, o contrário de uma comunidade de direito (onde todos devem estar sujeitos, de forma igual, às mesmas regras). Desde os clubes até à FIFA é comum a permanência no poder por períodos que fariam morrer de inveja muitos ditadores. Os últimos presidentes da FIFA exerceram o poder durante 24 anos (Havelange) e 17 anos (Blatter). Blatter só saiu quando “forçado” a tal por uma investigação criminal norte-americana. Já a investigação tinha atingido o coração da sua liderança e Blatter foi reeleito em congresso, por larga maioria. Nos nossos clubes de futebol, Jorge Nuno Pinto da Costa exerce o poder há 36 anos e Luís Filipe Vieira há 15 anos. Tivesse Bruno de Carvalho sido menos explícito nos seus instintos e poderia, provavelmente, aspirar a igual percurso. A alternância no poder é praticamente inexistente no futebol. E onde são introduzidas regras de limitação de mandatos ou estas são ignoradas ou transformadas numa rotatividade apenas aparente: sempre os mesmos alternando nas posições que ocupam ou organizando a sua própria sucessão. . . O que mais explica a consolidação do poder é a pouca representatividade e rotatividade do universo eleitoral do futebol, associada, paradoxalmente, à sua aparente fragmentação. O mundo do futebol é um clube fechado. Divide-se entre os insiders e os outsiders e ninguém “entra” sem “autorização” da casta dirigente. Ao mesmo tempo, o carácter fragmentado e difuso do poder das associações e federações (cada uma com poder igual, independentemente da sua representatividade) promove a concentração do poder e permite uma fácil captura desses diferentes agentes pela casta detentora do poder. Invocando uma representatividade da base para o topo (das associações até à FIFA passando pelas federações e confederações) o poder do futebol é, no entanto, exercido do topo para a base (através dos favores e influencia distribuída pelas autoridades do futebol ao longo da cadeia de poder). O futebol é, na prática, um cartel político. Mesmo existindo no seu seio pessoas extremamente competentes, pouco podem fazer para mudar a sua cultura de governo perante este cartel político. Vários altos dirigentes me reconheceram que nada podem fazer ou dizer sob pena de eles (e os seus países e clubes) sofrerem retaliações. Esta estrutura de poder é depois, frequentemente, reproduzida a nível nacional. Quem obtém o poder obtém o poder absoluto. Richard Pound (um dos mais respeitados dirigentes mundiais do desporto e dos poucos que promoveram a sua reforma com a criação da agência independente para o doping) defende que um dos maiores problemas na organização desportiva é a total concentração de poder no presidente. O conceito de separação de poderes é estranho ao mundo do desporto. O presidente, uma vez assumido o poder, concentra, de forma direta ou indireta, praticamente todas as funções. É assim na FIFA como é assim no Benfica, Porto ou Sporting. Vários projetos de reforma da governação desportiva têm frisado a importância de as atividades comerciais, administrativas ou de gestão estarem separadas da direção política. Isto é necessário para evitar quer o risco de conflitos de interesse na gestão e atribuição de contratos, quer a apropriação de fundos ou a sua distribuição para fins de manutenção do próprio poder. A razão pela qual os presidentes da FIFA ou confederações têm vindo a multiplicar as competições desportivas, mesmo quando desportivamente pode não fazer sentido, é porque necessitam de mais dinheiro para alimentar a clientela política (e económica) que sustenta o seu poder. Esta ausência de separação de poderes e responsabilização política é patente nos congressos da FIFA ou confederações. Não há intervenções dos delegados e muito menos vozes dissonantes. As votações são dignas da Coreia do Norte. Tão ou mais importante é a circunstância de os órgãos desportivos disciplinares, arbitrais e “judiciais” estarem na dependência do poder político do futebol. Desde logo, por serem muitas vezes compostos por pessoas provenientes ou (mesmo) exercendo funções nos organismos do futebol que eles mesmos são supostos controlar. Tal circunstância impede um efetivo escrutínio interno e uma aplicação independente e isenta das regras. São inúmeros os casos de aplicação seletiva das regras, consoante os interesses do poder político do futebol. A independência destes órgãos é também afetada por outros fatores: não têm staff próprio (funcionando, frequentemente, na dependência da administração e poder político que é sua responsabilidade controlar); a sua permanência em funções depende quase sempre de uma decisão política (por outras palavras, aqueles que os titulares destes órgãos devem escrutinar são os mesmos que depois decidem o destino desses titulares. . . ); e não é habitual estarem sujeitos a períodos de “nojo” depois do exercício de funções, sendo frequente ver pessoas que exerceram funções neste órgãos ir a seguir trabalhar para associações ou clubes sobre quem antes tomaram decisões. Não pretendo com isto fazer um juízo negativo sobre todos aqueles que exercem estes cargos no futebol, da mesma forma que a existência de ameaças à independência da magistratura num Estado não coloca em causa a honorabilidade de todos os juízes desse Estado. Estes serão, seguramente, os primeiros interessados em proteger a sua credibilidade e independência. As regras de uma instituição não se substituem à ética e integridade daqueles que nela exerçam funções. Servem, no entanto, precisamente para proteger os que as exercem com ética e integridade e excluir os que não o pretendam fazer dessa forma. Acresce que as decisões destes órgãos não são, em regra, recorríveis para os tribunais comuns, mas sim para sistemas de arbitragem, cuja independência e credibilidade é também ela fortemente contestada. No topo desta pirâmide está o CAS (Tribunal Arbitral do Desporto). Neste, a maioria dos seus membros continuam a ser indicados de forma pouco transparente e através de um conselho dominado pelas próprias federações desportivas. Acresce que a motivação das suas decisões é publicada de forma seletiva e sem aparentes critérios objetivos. A conformidade deste sistema com o princípio do acesso à justiça será, aliás, brevemente julgada num processo perante o tribunal constitucional alemão. Os conflitos de interesse são generalizados e atravessam toda a atividade do futebol. Eles são de tal forma comuns que foram, frequentemente, institucionalizados e não se questionam. Como mencionei, existem na acumulação de diferentes cargos dirigentes, passados e futuros, permitindo, por exemplo, que regulador e regulado sejam frequentemente o mesmo. Outro fenómeno corrente é a presença, por exemplo no comité de desenvolvimento da FIFA (que determina a distribuição de centenas de milhões de euros), de pessoas com interesses económicos que podem vir a beneficiar das decisões desse comité. Foi por isso que, com os meus colegas do comité de governação, tinha suscitado a necessidade de um registo de interesses e um processo de recusa dessas decisões. Mas estes problemas não se limitam aos órgãos de governo do futebol. São conhecidos os conflitos de interesse em que é exercida a atividade dos agentes do futebol, por exemplo na própria gestão da carreira de um jogador ou na relação entre essa atividade e outros interesses económicos (incluindo com e em clubes de futebol). São também crescentes os casos de concentração numa mesma pessoa ou empresa da propriedade ou domínio económico e desportivo sobre diferentes clubes de futebol que podem competir entre si ou influenciar a competição com outros clubes. Os conflitos de interesse são também comuns entre presidentes de clubes e entre estes e outros interesses económicos e desportivos. Em Portugal, por exemplo, é considerado normal clubes contratarem jogadores apenas para serem emprestados a outros clubes como forma de ganhar influência sobre estes últimos. É igualmente frequente que aqueles que decidem sobre o jogo tenham conflitos de interesses não declarados com alguns dos participantes no jogo. Esta é, na sua dimensão desportiva, uma forma institucionalizada de influenciar o próprio jogo. Numa atividade em que a dimensão subjetiva, na prática do jogo ou na sua avaliação arbitral ou disciplinar, é tão forte tornou-se natural (ainda que não ético) procurar influenciar o jogo através dessa dimensão: vamos “colocar os nossos” em posições de influência. Não é necessário existir corrupção, basta existir conflito de interesses para que o enviesamento seja possível e a integridade do jogo fique em causa. Estes conflitos de interesse estendem-se à relação com a política. Os políticos não estão proibidos de ter outros interesses. Devem poder amar o jogo. Mas enquanto estão na política não devem poder estar no futebol. Para a política estar em posição de garantir a necessária supervisão e escrutínio público sobre o futebol não pode misturar-se (e muito menos confundir-se) com ele. Curiosamente, os próprios estatutos da FIFA impõem essa separação e neutralidade, mas, mais uma vez, são aplicados de forma seletiva. A FIFA não hesita em ameaçar excluir das suas competições um Estado em que os tribunais intervenham para repor a legalidade numa federação, mas, quando lhe convém, aceita que os seus órgãos e os das suas federações estejam cheios de titulares de cargos políticos. Ainda mais surpreendente é a cumplicidade do sistema político, mesmo em democracias e Estados de direito consolidados. Um dos casos com que lidámos no comité de governação dizia respeito a um deputado do Parlamento Europeu proposto para um comité da FIFA. Surpreendeu-me que o próprio Parlamento não considerasse tal cargo incompatível. O que mais impressiona em tudo isto é a normalidade com que se vive e se aceita esta cultura, assente num conflito de interesses sistémico, gerador de uma profunda falta de integridade. Ao cartel político que controla o poder juntam-se as falhas do modelo de governação que poderia limitar e escrutinar tal poder. Tudo reforçado pela pouca capacitação de muitos dos agentes desportivos. Esta é a cultura que conhecem e determina a sua escala de valores e padrões de comportamento. Quando o mundo em que se “nasce” e se tem sucesso funciona de acordo com certas “regras”, não se questionam as regras, mas quem não tem sucesso com elas. Para uma grande maioria dos agentes do futebol, não existe um problema no seu mundo, são os outros que não o percebem. Ainda esta semana Platini reconheceu (desvalorizando, “porque os outros também o fazem”) que a França tinha adulterado o sorteio do Campeonato do Mundo que venceu, em 1998. Para ele, tratou-se de uma pequena vigarice num mundo de grandes vigarices. A normalidade com que contou este episódio diz tudo sobre a cultura dominante no futebol. Há, naturalmente, pessoas sérias e competentes no futebol, mas, como em qualquer outro cartel, mesmo os que desejariam ser diferentes, para sobreviver, não podem colocar em causa a cultura em que vivem. Estes problemas têm vindo a agravar-se por três razões. Primeiro, as transformações mediáticas e digitais têm mudado a natureza do discurso público, amplificando os conflitos e a violência verbal. A cultura dominante do futebol não mudou, mas tornou-se mais visível e agressiva. Ao mesmo tempo, num mundo mediático, as pressões e influências também se exercem por via comunicacional. O futebol não é hoje mais sujo do que há 20 ou 30 anos. Mas a sujidade é hoje usada, sem vergonha, como arma comunicacional de influência sobre o lado subjetivo do jogo. Em Portugal, esta dimensão é exacerbada pela importância e número de canais noticiosos que, perante fortes constrangimentos financeiros, têm no modelo dos “debates-espetáculo” um programa de baixo custo e boas audiências. Segundo, o aumento do negócio do futebol, sem correspondente aumento dos instrumentos de escrutínio e controlo, gerou ainda mais incentivos para comportamentos pouco éticos e criminosos. Um exemplo óbvio é o impacto do jogo e apostas online. Terceiro, as novas regras financeiras e dos direitos televisivos têm agravado o diferencial competitivo entre clubes. Nas ligas pequenas e médias (como a portuguesa), o clube (ou clubes) que tenha acesso à Liga dos Campeões beneficia de uma enorme vantagem competitiva (em termos financeiros). Isto gera incentivos perversos para conseguir obter essa vantagem decisiva. E, uma vez obtida, o risco de ela se autoalimentar e consolidar é enorme. Está demonstrado que, com a crise do sistema financeiro, os clubes perderam a “garantia implícita” de sobrevivência que lhes vinha de um acesso fácil ao crédito bancário. Hoje, tal já não existe. As falências de clubes, algo muito raro ou inexistente até recentemente, tornaram-se possíveis. As regras de fair play financeiro foram introduzidas para responder a este problema, mas têm, ao mesmo tempo, agravado o diferencial competitivo entre clubes. Campeonatos desequilibrados reforçam também os incentivos perversos e a probabilidade de influência dos clubes grandes sobre os clubes mais pequenos, seja através da distribuição de poder político, seja através de apoio financeiro, mais ou menos transparente, oferecido a esses clubes ou aos seus atletas. A ausência de mecanismos eficazes de redistribuição dos ganhos do futebol entre clubes e entre ligas reduz assim a competitividade, criando, ao mesmo tempo, incentivos adicionais à corrupção. A minha conclusão e de outros responsáveis (vejam-se, por exemplo, relatórios recentes do Conselho da Europa ou do Parlamento britânico) é de que o futebol será incapaz de reformar a sua própria cultura. Isto não quer dizer que, dentro do futebol, não existam pessoas com a competência e até vontade de empreender reformas. No entanto, o cartel político que o domina e o conflito de interesses sistémico em que assenta impedem que isso aconteça. Qualquer liderança política do futebol que tentasse seriamente reformá-lo seria rapidamente substituída. Essa liderança depende precisamente daqueles que deveria reformar. . . A verdadeira mudança sistémica só acontecerá se imposta de fora. Eis algumas propostas concretas para mudar o modelo de governo do futebol:• Obrigações acrescidas de transparência, financeira e de governação, e criação de registo de interesses;• Proibição de acumulação de quaisquer funções políticas com funções no futebol;• Órgãos de controlo e supervisão genuinamente independentes. A garantia desta independência exigiria, nomeadamente: mandatos mais longos e não renováveis; controlo da sua independência no início do mandato e proibição, após o termo de funções, em trabalhar durante três anos para qualquer entidade do futebol que tenha estado sob a sua jurisdição; um gabinete e administração própria e autónoma;• O aumento da credibilidade e independência dos processos de decisão e governo do futebol legitimaria, por sua vez, uma muito maior exigência na punição do uso de linguagem violenta por parte dos agentes do futebol;• Limitação dos mandatos (incluindo para presidentes de clubes);• Processo de avaliação da integridade e incompatibilidades dos dirigentes do futebol;• Sistema independente de avaliação de conflitos de interesse para dirigentes, mas também para agentes e proprietários de clubes;• Criação de códigos de ética aplicáveis a todos os agentes desportivos;• Alargamento da capacidade eleitoral nas eleições para os órgãos das associações e confederações, nomeadamente através da representação de adeptos e a obrigatoriedade de uma maior representação de mulheres (combatendo a profunda discriminação que existe no futebol e contribuindo, ao mesmo tempo, para romper o cartel político atual);• Controlo independente da integridade dos processos eleitorais e do financiamento das campanhas (por exemplo, uma campanha para a FIFA custa mais de um milhão de euros e ninguém sabe quem, e com que motivação, as financia);• Redistribuição financeira entre clubes para aumentar a competitividade e reduzir os incentivos à corrupção e aos conflitos de interesse (esta redistribuição pode estar associada a formas de tributação — por exemplo das transferências — ou a uma centralização dos direitos televisivos; esta última já acontece nalgumas ligas e na Liga dos Campeões, mas, neste último caso, o modelo de redistribuição não promove a competitividade, pelo contrário, violando, na minha opinião, a decisão da Comissão Europeia que o autorizou). Estas reformas deveriam ser introduzidas (na medida em que sejam aplicáveis) a todos os níveis do futebol, da FIFA aos clubes. Boa parte delas podem, naturalmente, ser voluntariamente adotadas pelas próprias organizações desportivas. Pelas razões que mencionei, a probabilidade de que isso aconteça é, no entanto, praticamente nula. A tentativa de o fazer na FIFA fracassou. Também não o vejo suceder a nível local. Não porque Fernando Gomes ou Pedro Proença não fossem favoráveis (não conhecendo, em detalhe, o seu pensamento sobre estes temas, acredito que são pessoas sérias e têm consciência destes problemas) mas porque os clubes e associações de que dependem vivem na (e da) cultura de futebol que é contrária a estas mudanças. É por esta razões que, quer eu, quer os meus ex-colegas do comité de governação da FIFA, quer os relatores do Conselho da Europa, temos defendido que é fundamental uma intervenção externa sobre o mundo do futebol. Não para tomar conta do futebol, mas para garantir que os seus organismos e agentes atuam de acordo com certos princípios fundamentais de boa governação. Defendemos, nomeadamente, a criação de uma agência europeia independente que desenvolva esses princípios e supervisione a sua aplicação. Nenhum Estado tem o poder, sozinho, para conseguir regular as organizações transnacionais do desporto. A FIFA ameaçará seguramente de exclusão o Estado que o procure fazer. Mas já não o fará com a União Europeia, que representa 28 Estados. O equilíbrio de poder altera-se. Este é um domínio em que a UE pode demonstrar o seu valor acrescentado, impondo algum escrutínio público sobre uma área isenta de qualquer regulação séria neste momento. O ideal seria o modelo de regulação nacional corresponder a este modelo transnacional. Nada impede, aliás, que algumas destas reformas sejam já introduzidas a nível nacional. O mesmo nos clubes. Acho que o meu clube, o Sporting, deveria transformar esta profunda crise numa oportunidade de repensar o seu modelo de governação, seja na limitação do poder presidencial, nos instrumentos de controlo e separação de poderes, ou na introdução de mecanismos de supervisão interna de integridade, conflitos de interesse e compliance. Com isso virá, também, acredito, um prazer pelo jogo que esteja mais associado à nossa vitória do que a derrota dos outros. Num jogo, a vitória conta e como. Mas, no futebol português, aconteceu uma perversão: o prazer da vitória parece depender sobretudo da derrota que se impõe aos outros. . . No Sporting sempre nos afirmámos diferentes e por vezes associámos a nossa dificuldade em vencer a essa diferença. Será terrível se descobrirmos que afinal nem ganhamos tanto nem somos assim tão diferentes. Temos de ter vontade de ganhar, mas começar a ganhar sendo genuinamente diferentes. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Milhares de milhões de pessoas amam o futebol. E, no entanto, não têm nenhum poder efetivo sobre o seu governo. Enquanto tal acontecer, e ninguém agir em seu nome, o futebol irá continuar a ficar cada vez mais feio. Diretor da School of Transnational Governance, European University Institute, Ex-Presidente do Comité de Governação da FIFA. O autor escreve segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA UE
A guerra que mudou o mundo
A Grande Guerra mudou o mundo e as suas consequências ainda hoje se fazem sentir. Quando as tropas marcharam para o conflito, em Agosto de 1914, ninguém imaginou que não viesse passar o Natal a casa. Enganaram-se redondamente. A guerra arrastou-se no tempo e alastrou a vários continentes. Foi a primeira guerra industrial e de massas. Nas negociações da paz, o debate político e diplomático era sobre “as responsabilidades”. E entre os vitoriosos não havia dúvida: a responsabilidade era da Alemanha. Uma reflexão sobre o mundo que saiu da Grande Guerra, 100 anos depois do Armistício. (...)

A guerra que mudou o mundo
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: A Grande Guerra mudou o mundo e as suas consequências ainda hoje se fazem sentir. Quando as tropas marcharam para o conflito, em Agosto de 1914, ninguém imaginou que não viesse passar o Natal a casa. Enganaram-se redondamente. A guerra arrastou-se no tempo e alastrou a vários continentes. Foi a primeira guerra industrial e de massas. Nas negociações da paz, o debate político e diplomático era sobre “as responsabilidades”. E entre os vitoriosos não havia dúvida: a responsabilidade era da Alemanha. Uma reflexão sobre o mundo que saiu da Grande Guerra, 100 anos depois do Armistício.
TEXTO: Faz hoje cem anos. A 11 de Novembro de 1918, era assinado o Armistício que punha fim àquela que todos chamavam a Grande Guerra. Tinha começado quatro anos e meio antes, a 28 de Junho de 1914, quando um nacionalista sérvio, Gravrilo Princip, assassinara o herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, o arquiduque Francisco Fernando, na ponte velha da pequena cidade de Sarajevo. A Europa ficou chocada, mas talvez não fosse motivo para preocupação. Afinal, não era o primeiro e não seria o último dos assassinatos políticos. Eram sempre uma comoção interna, mas nunca tinham tido repercussão internacional. Jamais se imaginou que tal pudesse desencadear uma crise e muito menos um conflito à escala mundial. Porém, o clima de nacionalismo exacerbado, a teia de acordos secretos entre as potências europeias e uma sucessão de acontecimentos mal entendidos conduziu, em pouco mais de um mês, a uma guerra generalizada. Quando as tropas marcharam para a guerra, em Agosto de 1914, todos pensaram que esta guerra seria como as outras: limitada no tempo, no espaço, nos meios e nas consequências. De um lado e de outro dos beligerantes — potências centrais e aliados — ninguém imaginou que não viesse passar o Natal a casa. Enganaram-se redondamente: políticos e diplomatas, generais e soldados e a própria população civil. A guerra não foi curta no tempo: foi longa e durou mais quatro anos e meio. Não foi circunscrita na geografia: na procura de mais forças e novas alianças, a guerra alargou-se das grandes potências beligerantes à periferia europeia, aos territórios coloniais e teve repercussões no Médio e Extremo Oriente. Os Estados Unidos, na tradição da doutrina Monroe, entenderam ficar afastados das questões europeias. Mas em 1917 a guerra submarina alemã ataca um navio mercante no Atlântico, pondo em causa os interesses comerciais americanos e a liberdade nos mares. A Alemanha, por outro lado, incita o México a invadir os Estados Unidos. E estes dois simples acontecimentos foram o bastante para mudar a posição americana. Os Estados Unidos entraram em guerra em 1917 e desequilibraram, definitivamente, a balança estratégica a favor dos aliados. A guerra também não seria limitada nos meios. E por uma simples razão: porque não era uma guerra, apenas, entre exércitos; era uma guerra ente nações. Uma guerra que mobilizou, bem entendido, milhões de soldados e as tecnologias militares mais avançadas. Mas que mobilizou muito mais do que isso, nações inteiras. A economia, a sociedade e a opinião pública, tudo se organiza em função da guerra: a indústria para a produção do armamento; os transportes para a mobilização das tropas; o mercado de trabalho que, com os homens na frente de batalha, se abre às mulheres; a propaganda para moralizar as tropas, mobilizar as opiniões públicas e legitimar o esforço de guerra. O Estado cresce com as novas funções: planeia, organiza, intervém, onde jamais pensara intervir. Os governos reforçam os mecanismos de controlo sobre a economia e a sociedade. É a grande guerra das nações e a primeira guerra industrial e de massas. Militares e civis estão todos em guerra. É essa a lógica da guerra total. As consequências, essas, foram devastadoras. Os números não conseguem traduzir o horror: 10 milhões de soldados mortos, 20 milhões de feridos e mutilados, milhares de civis mortos durante o conflito, vítimas da fome da epidemia ou da violência. E, claro, o colapso de três impérios: o alemão, o austro-húngaro e o otomano. A Grande Guerra mudou o mundo e as suas consequências ainda hoje se fazem sentir. Dos tratados de paz surgiram novas ideias, uma nova geografia política e uma nova ordem internacional. Muitas das fronteiras na Europa e no Médio Oriente são, ainda hoje, o resultado dos acordos de paz do pós-Primeira Guerra. Do colapso dos grandes impérios autocráticos e multinacionais, agora reduzidos nas suas fronteiras, nasceu uma pluralidade de Estados com nomes nunca vistos, como Jugoslávia ou Iraque. Uns, nos Balcãs, cujas fronteiras correspondiam a pequenas nacionalidades, outros, no Médio Oriente, em que as fronteiras não correspondiam nem às nações nem às confissões religiosas. Não sabemos ao certo o que teria acontecido se o destino tivesse sido outro, mas o que sabemos é que desde então a violência dos nacionalismos étnicos ou dos fundamentalismos religiosos não deixou de fazer vítimas e espalhar o horror. Nas negociações da paz, o grande debate político e diplomático era sobre “as responsabilidades” da guerra. E entre as potências vitoriosas não havia dúvida: a responsabilidade era da Alemanha. Apesar da moderação americana do Presidente Wilson, britânicos e, sobretudo, franceses, tinham um só objectivo: a Alemanha tinha de pagar. Tinha de pagar e pagou. Reduzida nas suas fronteiras, mutilada no seu território e obrigada ao pagamento de pesadas reparações e indemnizações de guerra. Numa palavra, politicamente, “humilhada”. O resultado político do tratado de paz e as penalidades impostas à Alemanha foram sentidas por muitos alemães como ilegítimas e rapidamente apelidadas como Diktat. Estava aberto o caminho para esse terrível problema que por vezes surge na vida das pessoas como das nações e que se chama “ressentimento”. Quando Adolf Hitler surge e promete acabar com o Diktat, contava já com esse poderoso aliado. Mas o ressentimento não funcionou apenas entre os derrotados. Funcionou também entre os vitoriosos, insatisfeitos com a sua vitória. Foi o caso da Itália, que nunca obteve, à mesa das negociações, as conquistas territoriais que achava corresponderem ao seu esforço de guerra e a que, entendia, tinha direito. Ora, foi em boa medida esse mesmo ressentimento que ajudou Benito Mussolini a chegar ao poder, em 1922. A guerra deixou marca também na Rússia czarista. Ainda em plena guerra e por causa da guerra, a revolução russa de 1917 depõe o império dos czares e funda um regime de tipo novo: a União Soviética. Obrigada a uma paz separada e mutilada no seu território, instaura um regime comunista que abre um conflito ideológico e político que marcará todo o século XX: para uns, entre o capitalismo e o socialismo, para outros, entre o totalitarismo e a democracia. Uma coisa é certa, só a falência do comunismo, a queda do império soviético e o fim da Guerra Fria puseram termo a este conflito que a Grande Guerra tinha aberto. A herança foi pesada no Médio Oriente. Das ruínas do vasto império otomano nasceu no pós-guerra uma Turquia minguada, moderna e laica. Mas desde 1916 que a França e a Grã-Bretanha tinham dividido a região em zonas de influência: grosso modo, a Síria e o Líbano para a França; a Jordânia e o Iraque para a Grã-Bretanha. À boa maneira imperialista, as fronteiras traçadas para os despojos pós-otomanos eram arbitrárias e correspondiam mais aos interesses das potências europeias do que às realidades locais. Ainda hoje são causa de instabilidade, conflito e guerra. Mas pior do que isso, logo em 1915, os britânicos prometem aos guardiões do lugar santo de Meca a independência para os árabes, em troca de uma aliança na luta contra o Império Otomano. E, em 1917, a célebre declaração Balfour promete, precisamente, o contrário para os judeus: uma pátria na Palestina. De então para cá, sionismo e nacionalismo árabe não mais pararam de se combater e o conflito israelo-árabe está longe de ter um fim. Mas os efeitos da guerra chegaram ao Extremo Oriente. Ambas as potências asiáticas, China e Japão, lutaram ao lado dos aliados. E ambas saíram insatisfeitas com a paz e desiludidas com o Ocidente. Seguiram, contudo, caminhos diferentes. O Japão, sentindo-se maltratado pelas “potências brancas”, quis introduzir uma cláusula de igualdade racial na declaração da Sociedade da Nações. O Presidente Wilson, oriundo do Sul dos Estados Unidos, sabia que uma tal cláusula jamais passaria no Congresso, pondo em perigo a ratificação americana da Sociedade das Nações. Recusou liminarmente, no que foi apoiado pelos europeus. Esta recusa ocidental foi vista como humilhação e pretexto para o desenvolvimento do imperialismo e do militarismo japonês de que o episódio final seria o ataque à base norte-americana de Pearl Harbour, em plena II Guerra Mundial, a 7 de Dezembro de 1941. Por seu lado, a China tinha uma outra pretensão: o território sob controlo alemão na província de Shandong, ao sul de Pequim. As potências ocidentais negaram também tal pretensão. E pior do que isso entregaram-na, temporariamente até 1922, ao Japão como mecanismo compensatório da recusa da cláusula racial. O resultado não foi só o agravamento da rivalidade entre as duas potências asiáticas. Foi também o afastamento dos nacionalistas chineses em relação ao Ocidente e o princípio da influência de um novo modelo vindo da União Soviética. O Partido Comunista Chinês é fundado em 1920 e muitos dos desiludidos com o desfecho da paz e a democracia ocidental, em 1919, aderiram ao partido. Anos mais tarde, Mao Tsetung iniciava a longa marcha, triunfante em 1949. A China comunista ainda hoje aí está. O teatro central da guerra foi a Europa, mas os impérios coloniais das potências europeias foram arrastados pelo vórtice do conflito. Nos domínios de povoamento britânico como o Canadá, a Austrália, Nova Zelândia ou a África do Sul, a participação na guerra foi vista como pertença à “família britânica”, mas ao mesmo tempo como força e afirmação nacional. Nas colónias, a mobilização política e a participação militar das populações não europeias, africanas ou asiáticas no esforço de guerra dos respectivos impérios foi fundamental na formação das elites independentistas e dos futuros movimentos anticoloniais. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas, como é obvio, o essencial passava-se entre a Europa e os Estados Unidos. Ou, dito de outro modo, entre o declínio da Europa e a ascensão dos Estados Unidos. A Grande Guerra enfraqueceu a confiança da Europa em si própria e reforçou o excepcionalismo americano, no sentido em que os Estados Unidos se viam como diferentes e melhores que o resto do mundo. Antes da guerra, a Europa era o centro do mundo, depois da guerra, os europeus descobriram que o centro se deslocara para os Estado Unidos. A Europa estava economicamente devastada e politicamente balcanizada. A América era agora o país mais industrializado, o que tinha o maior stock de ouro, a moeda mais forte e era o maior credor a nível mundial. A grande praça financeira mudara-se para o outro lado do Atlântico: de Londres para Nova Iorque, e a moeda de referência internacional deixara de ser a libra para passar a ser o dólar. Mas a hegemonia económica tinha agora uma tradução política e militar. Os Estados Unidos eram a grande potência emergente e a nova ordem internacional foi uma ideia sua e em particular do Presidente Woodrow Wilson. Contra a velha diplomacia secreta que acreditava ter levado à guerra, propunha uma diplomacia aberta que deveria ser pública e institucionalizada numa organização internacional. A guerra ficaria fora da lei e os Estados comprometiam-se com a resolução pacífica dos conflitos. A Sociedade das Nações foi essa primeira tentativa de uma organização especificamente destinada a garantir a segurança internacional e a paz. Não teve sucesso, mas a ideia perdurou e a sua sucessora — a Organização das Nações Unidas — aí continua. Claro que houve uma outra consequência, essa mais negra e quiçá menos visível: a brutalização das sociedades, na expressão de George L. Mosse — a exposição à violência quotidiana, ao sofrimento extremo e à banalização da morte. Brutalização de que talvez o absurdo da poesia Dada ou pesadelo da pintura surrealista sejam ao mesmo tempo a melhor expressão e a forma de a exorcizar.
REFERÊNCIAS:
Étnia Árabes
Genética sugere que nós e os neandertais nos reproduzimos várias vezes
Temos um pouco de neandertal no nosso ADN. Terá resultado de um único encontro da nossa espécie com os neandertais? Não, dois cientistas dos EUA defendem que esse encontro ocorreu muitas vezes. (...)

Genética sugere que nós e os neandertais nos reproduzimos várias vezes
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Temos um pouco de neandertal no nosso ADN. Terá resultado de um único encontro da nossa espécie com os neandertais? Não, dois cientistas dos EUA defendem que esse encontro ocorreu muitas vezes.
TEXTO: Ainda falta saber muito sobre a relação da nossa espécie – Homo sapiens – com os neandertais, outro grupo de humanos. Ou melhor: ainda há muitos mistérios sobre as relações que os humanos modernos tiveram com os neandertais. Afinal, num estudo publicado na última edição da revista científica Nature Ecology & Evolution, dois cientistas dos Estados Unidos defendem que os neandertais e os humanos anatomicamente modernos se cruzaram – ou seja, reproduziram-se – várias vezes ao longo de dez mil anos. Se hoje os humanos modernos estão praticamente em todo o planeta, há menos de 100 mil anos estavam confinados a África. Nessa altura, já os neandertais e os denisovanos (outros humanos) habitavam o Oeste e o Leste da Eurásia, respectivamente. “Quando grupos de humanos anatomicamente modernos começaram a espalhar-se para fora de África, todas essas populações se encontraram”, escreve Fabrizio Mafessoni – do Instituto Max Planck, na Alemanha, e que não fez parte do trabalho – num comentário também publicado na Nature Ecology & Evolution sobre este estudo. As marcas desses encontros estão registadas no nosso ADN. Em 2010, depois de uma sequenciação com grande qualidade do genoma de uma mulher neandertal, revelou-se que os humanos modernos (de origem não africana) tinham entre 1% e 4% de ADN neandertal. Mais tarde, em 2017, publicou-se a sequenciação de um segundo genoma de outra mulher neandertal e essas percentagens foram actualizadas. Se antes desse estudo se tinha concluído que as populações não africanas actuais da nossa espécie tinham no genoma entre 1, 5% e 2, 1% de ADN neandertal, passou a saber-se que temos mais ADN neandertal do que pensávamos: será entre 1, 8% e 2, 6%. “A descodificação do genoma neandertal confirmou o quão semelhante era ao da nossa espécie a nível molecular e revelou que a maioria dos actuais humanos de descendência não africana carrega pequenos fragmentos do genoma de neandertal”, referem Joshua Schraiber e Fernando Villanea, ambos da Universidade de Temple e autores do estudo agora publicado numa explicação no site da Nature. “A questão que nos vem imediatamente à cabeça é: ‘Com que frequência se cruzou a nossa espécie com os neandertais?’”Pensava-se que tudo isto resultasse de um único episódio de cruzamento entre neandertais e a nossa espécie. Esse episódio teria acontecido algures no Médio Oriente logo quando os primeiros humanos modernos deixaram África. “Esta hipótese era sustentada pelo facto de todos os humanos não africanos terem a mesma quantidade de ancestralidade neandertal (aproximadamente 2%), tal como seria de esperar se o cruzamento ocorresse com um antepassado de todos os não africanos”, explicam os autores. Contudo, havia uma peça que não se encaixava nessa hipótese. Numa análise genómica verificou-se que as populações de humanos modernos do Leste asiático carregam no seu genoma entre 12% e 20% mais ADN neandertal do que as populações europeias. Ou seja, abriu-se assim a hipótese de que a nossa espécie se tenha cruzado do ponto de vista reprodutivo mais do que uma vez com os neandertais. Como tal, Joshua Schraiber e Fernando Villanea decidiram estudar a forma como os fragmentos de ADN neandertal diferem nos genomas de indivíduos actuais do Leste asiático e da Europa. Para isso, através de um modelo matemático e computacional, analisaram a distribuição desses fragmentos nos genomas de pessoas dessas duas populações. Desta forma, construíram modelos teóricos sobre a quantidade de “encontros” entre neandertais e humanos modernos. “Encontrámos uma forte sustentação de que o cruzamento dos humanos modernos com os neandertais aconteceu múltiplas vezes, primeiro e principalmente no Médio Oriente, mas também no Leste asiático e na Europa mais tarde”, explica ao PÚBLICO Fernando Villanea. “O segundo cruzamento genético no Leste asiático foi um pouco mais extenso, resultando numa contribuição elevada para os genomas dos indivíduos do Leste asiático. ”Quando é que tudo aconteceu? “A grande contribuição genómica dos neandertais para os humanos modernos pode ser traçada há entre 50 mil e 60 mil anos. Mas uma pequena porção de fragmentos de neandertais nos genomas humanos tem uma origem mais recente”, responde Fernando Villanea. Contudo, o cientista refere que não é claro se o cruzamento entre os dois grupos de humanos foi contínuo ao longo do tempo ou se foi limitado a pequenas (e discretas) ocasiões. “Ambas as espécies estiveram em contacto aproximadamente durante dez mil anos, mas antes pensávamos que só se tinham cruzado uma vez”, destaca Fernando Villanea. “Sabemos agora que mais tarde houve pequenas ocasiões em que se cruzaram. Ainda não sabemos muito bem por que é que o contacto mais tardio entre as duas espécies resultou apenas num pequeno contributo na sua ancestralidade”, interroga-se o cientista. E adianta que há questões a responder como: esses encontros mais tardios foram raros devido ao declínio dos neandertais (extinguiram-se há cerca de 28 mil anos)? Ou ambas as espécies estavam menos predispostas para o cruzamento?Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Sobre se esses encontros foram violentos ou consentidos, Joshua Schraiber responde ao jornal espanhol ABC: “Não há forma de saber isso através dos dados genéticos. Isso é uma questão para os arqueólogos!”“Os autores exploraram estas questões quantitativamente [a interacção entre neandertais e a nossa espécie], mostrando que um modelo com múltiplos encontros entre os primeiros humanos modernos e os neandertais é robusto”, considera Fabrizio Mafessoni no seu comentário. O cientista – que foi um dos autores de um estudo publicado este ano sobre uma menina que viveu há 50 mil anos e que teria uma mãe neandertal e pai denisovano – ilustra assim o cruzamento entre grupos humanos: “O cenário de múltiplos episódios de cruzamento entre neandertais e humanos modernos encaixa na visão emergente de que houve interacções complexas e frequentes entre diferentes grupos de hominíneos. ”Para Fabrizio Mafessoni, será preciso sequenciar mais genomas antigos para se desvendar outras informações sobre esses encontros. Quanto a Joshua Schraiber e Fernando Villanea, já têm um projecto a caminho: querem compreender como os neandertais e os denisovanos – por exemplo – se cruzaram com espécies como o Homo erectus. Que histórias estarão para ser reveladas?
REFERÊNCIAS:
Étnia Asiático
No final do ano haverá quase um telemóvel por habitante
Quase todos temos telemóvel mas a Internet ainda é uma miragem para muitos. Em África, por exemplo, apenas 16% da população tem acesso. (...)

No final do ano haverá quase um telemóvel por habitante
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-03-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Quase todos temos telemóvel mas a Internet ainda é uma miragem para muitos. Em África, por exemplo, apenas 16% da população tem acesso.
TEXTO: O número de assinaturas de telemóveis vai chegar aos 6800 milhões no final de 2013, o que significa que nessa altura haverá quase um telemóvel para cada habitante, considerando a previsão de que a população mundial rondará os 7100 milhões. As estimativas são da União Internacional de Telecomunicações (UIT), que fala de uma “revolução móvel”. O relatório da UIT revela que mais de metade das assinaturas de telemóveis – 3500 milhões – está na Ásia, que continua a ser o mercado em maior crescimento nesta área. No final deste ano, a taxa de penetração de telemóveis terá chegado aos 96% em todo o mundo. Mas ainda há discrepâncias: nos países desenvolvidos essa taxa será de 128%, enquanto nos países em desenvolvimento deverá ser de 89%. Em relação ao acesso à Internet, o cenário é diferente. A UIT estima que 2700 milhões de pessoas (cerca de 39% da população mundial) estejam já online e que no final do ano 41% dos lares (outro indicador considerado importante para medir o acesso à Internet) estarão ligados à Internet. O destaque vai para os países da Europa, onde a taxa de penetração é de 75%, seguidos pelos Estados Unidos, com uma taxa de 61%. Segundo o relatório, a velocidade da banda larga (pelo menos 10 Mbit/segundo) é maior em alguns países asiáticos, nomeadamente na Coreia, China e Japão, e em países europeus como a Bulgária, a Islândia e Portugal. Apenas 16% dos africanos tem Internet“A revolução móvel está a dar poder às pessoas nos países em desenvolvimento, fornecendo aplicações ICT [tecnologias de informação e comunicação] para a educação, saúde, governo, banca, ambiente e negócios”, escreve o director do Departamento de Desenvolvimento de Telecomunicações da UIT, Brahima Sanou, no relatório divulgado quarta-feira. No entanto, nos países em desenvolvimento apenas 31% da população terá acesso à Internet no final do ano, ou seja, mais de dois terços das pessoas vão continuar offline. Nos países desenvolvidos, 77% dos habitantes têm Internet. Os dados relativos a África espelham bem essa diferença: apenas 16% da população tem acesso à Internet. Ainda assim, nos últimos quatro anos registou-se um forte crescimento do número de lares com Internet, a um ritmo de 27% por ano, nota a UIT. Segundo esta organização, 90% das 1100 milhões de habitações que ainda estão offline em todo o mundo situam-se nos países em desenvolvimento. Nestes, os equipamentos e a tecnologia têm um custo elevado – uma assinatura pode custar mais de 50% do rendimento per capita. Neste que é o primeiro relatório a analisar o acesso das mulheres à Internet, conclui-se que 1300 milhões de mulheres (37% da população feminina) estão online. Os homens são 1500 milhões, ou seja, 41% da população masculina.
REFERÊNCIAS:
Entidades UIT