A Eurovisão como jogo político, em directo e na TV
Para lá das canções, o Festival Eurovisão da Canção é um teste às relações entre os países que participam no concurso. Será a música mais forte do que a política? (...)

A Eurovisão como jogo político, em directo e na TV
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Animais Pontuação: 6 | Sentimento -0.08
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Para lá das canções, o Festival Eurovisão da Canção é um teste às relações entre os países que participam no concurso. Será a música mais forte do que a política?
TEXTO: No ano passado em Kiev, Ucrânia, Salvador Sobral recebeu um “puxão de orelhas” da organização do festival da Eurovisão. Nos bastidores, o músico tinha vestida uma camisola preta com a mensagem “SOS Refugees” (SOS Refugiados), algo que para a União Europeia de Radiodifusão (EBU) é visto como uma mensagem política, uma atitude banida pelo regulamento do concurso. Salvador defendeu-se dizendo que aquela camisola tinha uma “mensagem humanitária”, mas a organização não se mostrou permissiva, numa edição que tinha como assinatura “Celebrate Diversity” (Celebrar a diversidade). Numa Europa de várias sensibilidades, a única forma de chegar a todos sem gerar problemas é garantindo (ou pelo menos tentando) que o concurso fica à parte das mensagens políticas e comerciais, seja nas canções ou fora delas. Mas fugir ao regulamento pode dar a um artista ou a um país a capacidade de passar uma mensagem para um universo de mais de 200 milhões de espectadores. A história do concurso mostra que houve vários participantes a afrontar as regras, com mais ou menos sucesso. Rita Pereira, com 23 anos, é aluna de mestrado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e está a preparar uma tese de mestrado sobre o facto de o regulamento da Eurovisão dizer que este é um “concurso apolítico”. Rita acompanha o festival desde a edição de 2005, também na Ucrânia: “Encanta-me a combinação da música com a multiculturalidade. ” Não se considera uma enciclopédia do festival, mas diz de cor intérpretes e anos em escassos instantes. “A Eurovisão é relativamente pouco estudada”, desabafa, por isso o tema da tese acabou por ser uma “escolha natural”. A primeira questão que põe em cima da mesa equivale à abertura de uma caixa de Pandora: “O que faz com que uma canção seja considerada política?” Rita assegura que “a política existe sempre na Eurovisão”, mesmo que “existam regulamentos que digam o contrário”. “Há um concurso com canções de vários países — uma expressão artística — e sobre o que é que as pessoas falam? Falam dos contextos sociais onde vivem. Isso também não é político?”Portugal acaba por ser um “exemplo paradigmático” em várias canções que levou à Eurovisão com mensagens políticas, desde aquelas que tinham a intenção de ser entendidas “por cá”, como as críticas ao Estado Novo em Tourada de Fernando Tordo (1973) ou até à tentativa dos Homens da Luta de passar uma mensagem contra a austeridade a nível europeu (2011). Apesar dessas demonstrações mais politicamente activas ou conotadas, nunca existiu um problema em relação às participações portuguesas no concurso. “Quando as canções são políticas, mas que não criam pontos de tensão entre países, a organização não diz nada”, até porque “muitas vezes o festival não percebe os significados”. Apesar disso, Rita faz questão de dizer que, para ela, “o festival não é um concurso de canções”, mas sim “um espectáculo audiovisual” e por isso a “mensagem também se pode passar “nessa vertente visual”. Exemplo disso foi quando em 2015, na Áustria, várias bandeiras LGBT foram erguidas aquando da actuação da representante russa. Este gesto levou a que no ano seguinte fosse introduzida uma “política de utilização das bandeiras” que proibia a utilização da “bandeira arco-íris” de “forma política” durante a actuação da Rússia. A organização justificava a sua decisão dizendo que estas bandeiras “não podiam ser usadas como uma ferramenta política”. Para existir uma canção banida por razões políticas, temos de recuar a 2009. We Don’t Wanna Put In do grupo pop Stephane & 3G foi escolhido pela Geórgia para ir ao festival que se realizava em Moscovo, na Rússia. As duas palavras do título da canção faziam lembrar o nome do Presidente russo, Vladimir Putin, que combinado com “We Don’t Wanna” (nós não queremos) levou a que os intérpretes nunca chegassem a pisar o palco do Estádio Olímpico de Moscovo. A organização considerou que a canção continha uma mensagem política evidente e, para evitar um conflito com o país organizador, baniu a canção. A ex-república soviética tinha cortado as relações diplomáticas com a Rússia um ano antes, o difícil relacionamento entre as duas nações acabou por ditar o abandono da Geórgia dessa edição do festival. O (ainda instável) Leste europeu tem levado à existência de situações complicadas no festival. Lisboa recebe nesta quinta-feira a actuação da cantora russa Julia Samoylova conhecida por ter sido banida do festival que se realizou na Ucrânia o ano passado. Samoylova tinha ido em 2014 à Crimeia quando esta já se encontrava anexada pela Rússia e foi por isso impedida de ir a Kiev pelas autoridades ucranianas. Em protesto pela organização não ter resolvido o diferendo, o canal estatal da Rússia recusou-se a participar na edição do ano passado. Este ano, a canção Mercy, apresentada pela França, fala sobre refugiados. “A Eurovisão ainda não disse nada, mas isso não é político?”, questiona Rita Pereira. “Há coisas que não dá para contornar”, por isso “não é mesmo possível excluir tudo o que é político”, defende. Questionada se é mais importante a canção do que o país que a apresenta, Rita defende que “o mais importante é mesmo a canção e a actuação” e prova esse argumento dando o exemplo da participação de Salvador Sobral em Amar pelos Dois, que, no ano passado, venceu não só na classificação dos vários painéis de jurados, mas também no televoto. Rita sempre ouviu que Portugal “não podia ganhar a Eurovisão porque não tinha vizinhos”, mas a realidade mostrou o contrário. Certo é que nas votações há muito de político, e as históricas amizades entre nações revelam-se no televoto (e em certos casos nos próprios jurados). Por esse motivo quando a votação dos telespectadores era determinante para escolher o vencedor do festival (1997-2008), os países de Leste acabavam por conseguir reunir mais vitórias do que os países do Ocidente. Havia uma espécie de política de voto em bloco pelos Balcãs, que se acentua pela imigração de Leste na Europa ocidental. O que demonstra que na Eurovisão, às vezes, é preciso “ter uma boa vizinhança”. Tiago Batista, 24 anos, é o autor da tese de mestrado “A Geopolítica e a votação no Festival Eurovisão da Canção”. Na tese que realizou no ISCTE, em 2016, Tiago analisou o impacto da introdução, em 2009, do modelo misto de votação, que dava igual poder aos painéis de jurados e ao televoto dos espectadores. Antes, o festival tinha passado por um período de controvérsia em relação aos resultados apurados por televoto. Em 2007, por causa deste sistema, nenhum país ocidental que tivesse participado na semifinal se qualificou para a final, “o que obrigou a mudar o sistema”. A Áustria boicotou o festival em 2008, “diziam que assim o que estava a valer era o nome do país e não a canção”. Batista garante que “com o modelo misto o voto não é tão político”. Situações como a da primeira participação da Albânia, em 2004, deixaram de ter relevo. Nesse festival, à excepção de Sérvia, Eslovénia e Macedónia que deram os 12 pontos (a pontuação máxima) à Albânia “mais ninguém achou piada à música”. “Mas é engraçado como os vizinhos gostaram todos. ” Um dos casos de “resistência” em relação àquilo que “ainda continua a ser um voto declaradamente político” é o caso de Chipre e da Grécia. São poucas as vezes na história da Eurovisão que o país do mediterrâneo não deu a pontuação máxima à ilha vizinha, que mantém uma disputa de décadas entre a população de ascendência grega e de ascendência turca (parte norte da ilha). “É normal votarmos em países com os quais temos afinidade”, diz Tiago Batista. Por isso “é claro que Portugal vote mais em Espanha do que noutro país qualquer com o qual não tem afinidade”. Tiago Batista considera que “o Leste ainda politiza muito o festival”, e dá um exemplo relacionado com esta edição: “O Presidente da Bielorrússia disse esperar que o país recebesse os 12 pontos da Rússia e da Ucrânia. ” “Na Europa de Leste as coisas são levadas muito a sério”, de tal forma que em 2013 o Governo do Azerbaijão teve de pedir desculpa à Rússia por não lhe ter dado pontos no festival. Caso extremo foi o do Azerbaijão em 2009, quando o Governo pediu à empresa de telecomunicações do país que lhe desse o nome de todas as pessoas que votaram na canção da Arménia. Esse fãs seriam depois investigados, já que tinham revelado uma “atitude antipatriota”. Foram 43 os azeris chamados a justificarem-se. Há também registo de picardias entre os dois países no próprio espectáculo televisivo. Nesse ano, no momento de votação da Arménia, a porta-voz mostrou uma imagem de um monumento da região de Nagorno-Karabakh, que está em disputa com o Azerbaijão. “Os países usam o festival porque é muito mais fácil e mais barato do que fazer guerra”, diz o investigador. A participação da Macedónia também é um problema para a Grécia, de tal forma que quando a ex-república jugoslava aparece no festival tem de vir com o nome “F. Y. R. Macedonia”. Esta situação acabou por ser levada ao extremo quando, em 2006, o festival se realizou em Atenas e o grafismo contou com o nome do país escrito de forma integral “Former Yugoslav Republic of Macedonia” (Antiga República Jugoslava da Macedónia). Este conflito tem origem no nome em disputa entre os dois territórios e que tem condicionado a participação do país na Eurovisão. Também este litígio tem levado ao atraso na integração europeia da Macedónia, por influência da Grécia. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Apesar das apostas, ao contrário de uma grande competição desportiva onde o leque de possíveis vencedores é reduzido à partida aos ditos “favoritos”, na Eurovisão a inexistência de um padrão comum de vencedores leva a que não haja um vencedor antecipado (e já foram 27 os países a ganhar pelo menos uma edição do festival). “Não existe um modelo eurovisivo”, e “Salvador Sobral é a prova disso”, defende Tiago. O investigador também tem “dúvidas” de que a RTP tivesse querido verdadeiramente ganhar o festival até ao ano passado. Antes da vitória de Salvador Sobral, “íamos só marcar presença” e por isso “não éramos levados a sério”. O autor de A Festa da Vida (1972), Carlos Mendes, chegou a dizer que o operador público o “proibiu de promover o festival a nível europeu, porque Portugal não podia albergar o festival”. A “semana Eurovisão” está a começar agora. Não haverá cartazes políticos, porque esses são proibidos no recinto do festival. O que já não é garantido é que as mensagens políticas não possam passar de formas mais criativas ou menos explícitas. O que parece mais certo são os 12 pontos “políticos” que Chipre dará à Grécia.
REFERÊNCIAS:
Étnia Azeris
Maria é loira, de olhos verdes e filha de ciganos búlgaros pobres. E agora?
Ficou provado que houve um crime. Mas o "caso do anjo loiro" também provou os preconceitos da Europa, diz o sociólogo Pedro Góis. (...)

Maria é loira, de olhos verdes e filha de ciganos búlgaros pobres. E agora?
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 13 | Sentimento -0.20
DATA: 2013-10-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ficou provado que houve um crime. Mas o "caso do anjo loiro" também provou os preconceitos da Europa, diz o sociólogo Pedro Góis.
TEXTO: Maria, a menina encontrada num acampamento cigano na Grécia, não é uma criança desaparecida ou raptada. É filha biológica do casal de ciganos búlgaros Sacha e Atanas Rusev. Os testes de ADN provaram-no. E agora?Agora, acabou o sonho. Os media gregos chamaram-lhe “anjo loiro” e os meios de comunicação da Europa reproduziram a frase. Porque a criança é loira e tem os olhos verdes, todos quiseram acreditar num “milagre” — os jornais britânicos até disseram que a descoberta de Maria dava esperança a todos os pais de crianças desaparecidas. Se o “anjo loiro” foi encontrado, Maddie McCann também poderia ser. Os media e o seu público sofreram com a sorte da criança, obrigada a mendigar na rua. Sabe-se agora que a família biológica é ainda mais pobre do que a grega e vive não num acampamento mas num gueto — se na Grécia os ciganos são discriminados, na Bulgária são perseguidos. E agora?Agora, explica o sociólogo Pedro Góis, que se especializou em imigração (e minorias) em Portugal e na Europa, vamos perceber como se construiu uma série de ilusões apenas porque o caso nasceu de um preconceito. “Chamaram-lhe anjo loiro. . . andamos todos, na Europa, à espera de uma espécie de milagre, de uma história feliz, que nos redima neste período em que vivemos, mas não é assim”, diz Pedro Góis, que é professor na Universidade do Porto e investigador na de Coimbra. Maria foi vista por um polícia que, durante uma rusga ao acampamento grego, achou que uma menina tão loira não podia ser cigana. “Creio que a primeira notícia foi muito amplificada porque se usou essa categoria, cigano, que acabou por marcar toda a história”, diz o sociólogo. À identificação étnica da família com quem a criança vivia seguiram-se outras notícias que ligaram ciganos a roubo ou compra de crianças. Histórias assim contadas, diz o sociólogo, adensam a exclusão das minorias que vivem no espaço europeu. “Todos os paises envolvidos nesta história são da União Eurpeia. E o caso revela que a Europa não está conciliada com a sua própria realidade. A Europa é diversa, tem todos os tipos de pele e a maioria dos grupos étnicos do mundo, mas percebemos que a realidade sociológica avançou mas que os nossos estereótipos não se adequam à realidade”, diz o sociólogo. Nesse desfasamento, o preconceito ganha e o bom senso perde, como se viu na Irlanda do Norte, onde outra menina loira foi retirada à família cigana com quem vivia, para se provar com ADN que era filha daqueles pais. Por entre a teia de preconceitos, provou-se que houve um crime, que será julgado. A “família” de Maria foi acusada de tráfico de menores (registaram-na ilegalmente como sua filha), a família biológica poderá ser acusado de abandono e de tráfico se fi car provado que a vendeu por €250. A criança está a viver numa associação de apoio à criança. Filhos-fantasmasPorém, para Pedro Góis, o que é realmente importante foi ter-se destapado uma realidade que já se sabia que existia: o tráfico de crianças está cada vez mais activo na Grécia e na Bulgária. A investigação revelou outros casos (dois esta semana) e esquemas — a mãe “adoptiva” registou o nascimento de seis filhos em dez meses e, diz a AFP, obtém cerca de 2700 euros de abonos de família. Filhos fantasmas estão a nascer em toda a Grécia, não apenas nas famílias pobres de minorias, mas nas famílias dos novos excluídos. “A Grécia está particularmente vulnerável a estes casos. Tem um conjunto de campos de refugiados económicos onde se vive de forma inumana. Os bairros de gente muito pobre crescem de dia para dia — são pessoas que estavam protegidas pela Segurança Social e que agora estão totalmente excluídos e à mercê da exploração e do abandono”, diz Pedro Góis. Para se saber isto, diz o sociólogo, não era preciso dizer-se que Maria vivia com uma família cigana: “Há na Europa um antagonismo contra os grupos de ciganos, que impede que olhemos para eles como seres humanos iguais a nós. E casos como este, amplificados desta forma pelos media, podem servir de acelerador para os movimentos de extrema-direita pegarem no lado negativo desta exclusão e criarem bodes expiatórios, como já aconteceu no passado. ”A história de Maria, que tentámos transformar no conto de fadas, não teve o fim feliz que a Europa esperava. Mas pode ser positiva, diz o sociólogo. Em primeiro lugar, para Maria. “Pode haver a possibilidade de ser incluída socialmente, com as mesmas oportunidades dos outros. A sociedade europeia é isso mesmo, é a construção da igualdade de oportunidades, e esta história pode alertar de que há outras crianças ao nosso lado que não podem ficar excluídas — se demorarmos dez anos a dar por elas, será mais difícil, se demorarmos 20, serão adultas com uma vida de exploração e mendicidade. ”Maria, afinal, não era "Maddie". Mas Pedro Góis deseja que tenha na União Europeia um efeito idêntico ao que a inglesa desaparecida na Praia da Luz teve em Portugal: “Tornarnos mais atentos ao que se passa à nossa volta”.
REFERÊNCIAS:
Étnia Cigano Búlgaros
Dias de horror para os rohingya
Há 176 aldeias rohingya desertas e 400 mil pessoas em fuga da Birmânia para o Bangladesh. A ONU fala em “limpeza étnica”. Um grupo que fugiu da aldeia de Maung Nu testemunha a violência do Exército e conta como sobreviveu na floresta, comendo folhas de bananeira. (...)

Dias de horror para os rohingya
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há 176 aldeias rohingya desertas e 400 mil pessoas em fuga da Birmânia para o Bangladesh. A ONU fala em “limpeza étnica”. Um grupo que fugiu da aldeia de Maung Nu testemunha a violência do Exército e conta como sobreviveu na floresta, comendo folhas de bananeira.
TEXTO: Os soldados chegaram à aldeia birmanesa de Maung Nu pouco depois das 8 da manhã e vinham preparados para a guerra. Dispararam primeiro para o ar mas depois apontaram para as pessoas que fugiam, disparando indiscriminadamente. Deixaram mortos e feridos sobre os arrozais. Era a vingança dos militares pelo ataque de militantes rohingya a postos de polícia, que ocorrera umas horas antes. O agricultor Mohammed Roshid ouviu os tiros e pôs-se em fuga com a mulher e os filhos, mas o seu pai, de 80 anos e dificuldades de locomoção, não teve a mesma sorte. Roshid diz ter visto um soldado a agarrá-lo e a cortar-lhe a garganta com tal ferocidade que quase o decapitou. “Queria voltar para trás e tentar salvá-lo, mas a minha família não me deixou porque eram muitos soldados”, conta Roshid, de 55 anos. “Não ter podido fazer nada pelo meu pai foi o momento mais triste da minha vida. ”A “operação de limpeza” do exército birmanês em Maung Nu, e em dezenas de outras aldeias povoadas pela minoria rohingya, levou à fuga de cerca de 400 mil pessoas para o Bangladesh e já foi classificada pelas Nações Unidas como uma “limpeza étnica”. Espera-se que nos próximos dias o número de refugiados aumente. Os que já estão no Bangladesh – exaustos, agarrados aos parcos pertences, alguns descalços e com lama pelos tornozelos – encheram completamente um campo e construíram abrigos improvisados. Há quem simplesmente se sente nas bermas das estradas e multidões acotovelam-se quando grandes camiões de assistência despejam sacos de arroz e garrafões de água. As organizações de direitos humanos dizem que vão ser precisos meses, ou até anos, para se conhecer verdadeiramente a devastação que obrigou tantas pessoas a fugirem da Birmânia – a minoria rohingya é considerada população imigrante oriunda da Índia e Bangladesh. Fotografias de satélite mostram vários incêndios, testemunhas relatam que os soldados mataram civis, e o próprio Governo admite que 176 aldeias rohingya estão agora desertas. Ainda não há uma contagem das vítimas porque o acesso à área continua vedado pelos militares. Quase uma dúzia de rohingyas que escaparam da aldeia de Maung Nu fizeram um relato das últimas horas que passaram nas suas casas e da longa jornada que se seguiu. Durante dois dias, foram entrevistados no campo de refugiados de Kutupalong, perto da fronteira do Bangladesh com a Birmânia, onde chegaram na semana passada. A Fortify Rights, uma organização de direitos humanos que se foca no Sudeste Asiático, estima que o número de mortes em Maung Nu e em três aldeias vizinhas ascende a 150. “Não sei dizer quantos foram”, lamenta Soe Win, professor do secundário. “Todos nós vimos o que os militares fizeram. Mataram-nos um por um. E o sangue começou a escorrer pelas ruas. ”A mais recente onda de violência começou a 25 de Agosto, quando um grupo emergente de militantes rohingya, o Exército de Salvação Rohingya de Arracão, atacou dezenas de postos avançados da polícia em todo o estado de Rakhine, matando 12 pessoas. A subsequente repressão militar levou centenas de milhares de refugiados a abandonar a Birmânia, país de maioria budista e até há pouco tempo governado por uma junta militar, onde os rohingya há muito enfrentam a negação da cidadania e de outros direitos. O Comité Internacional de Resgate, organização que ajuda populações em zonas de guerra, estima que um total de 500 mil pessoas acabarão por fugir para o Bangladesh, o que corresponde a metade da população rohingya da Birmânia, a maioria da qual vive no estado de Rakhine. Há muito que a zona é palco de tensões entre os budistas e os apátridas rohingya, que embora lá vivam há séculos, ainda são considerados pelo Governo como imigrantes ilegais. A crise tem provocado protestos generalizados e a condenação da Birmânia e da sua líder de facto, Aung San Suu Kyi, laureada com o Nobel da Paz – só esta semana Suu Kyi se pronunciou sobre a situação dos rohingya não usando em momento nenhum do seu discurso o termo “rohingya” mas “muçulmano”, disse estar “preocupada com o número de muçulmanos que fugiram para o Bangladesh”, que não teme “o escrutínio internacional” e escusou-se a criticar as operações militares em Rakhine. O alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos, Zeid Ra'ad al-Hussein, chamou ao sucedido “um exemplo flagrante de limpeza étnica”. Em Maung Nu, minúscula aldeia de 750 casas nas margens do rio Mayu, os rohingya viviam há muito tempo em relativa paz e tomavam chá com os seus vizinhos budistas, afirmam os entrevistados. Mas essa coexistência pacífica acabou após os ataques dos insurgentes rohingya. A repressão militar tem sido incessante deste então e ainda na semana passada o fumo negro no horizonte era visível desde o Sul do Bangladesh. Mohammed Showife, um mecânico de automóveis de 23 anos, relata que no primeiro dia do assalto ele e a família tinham acabado as orações matinais e estavam a preparar o arroz quando três soldados apareceram no quintal, anunciando sua chegada com uma salva de metralhadora, e lhes disseram que tinham de abandonar as suas casas imediatamente. “Bengalis, saiam de casa. Podem ir para onde quiserem, mas não podem viver aqui”, disseram os militares, segundo Showife. Na fuga, separou-se dos familiares e parou para ajudar o vizinho Mohammed Rafique, de apenas 17 anos, que vira uma bala atravessar-lhe completamente a anca. Correram por entre uma multidão que saqueava casas e soldados; estes levavam lança-morteiros ao ombro e incendiavam outras habitações. Procuraram abrigo na selva, usando a folhagem luxuriante e densa após as monções como esconderijo. Aí chegados, algumas mulheres soluçavam silenciosamente, enquanto outros olhavam em redor, sem saber o que fazer. Tentaram tratar a ferida de Rafique com água fervida e trapos rasgados das roupas. A primeira noite chegou, trazendo consigo uma inquietante escuridão, esbatida apenas pelos pontos de fogo e sombras que cintilavam no céu. Não sabiam nesse momento que outras cinco noites assim se seguiriam. No segundo dia, o empresário Mohammed Zubair, que se escondera em casa, recebeu uma chamada de um sargento alto e magro que todos conheciam e a quem chamavam “Bajo” e com quem havia jantado muitas vezes. “Bajo” disse-lhe que os militares iriam requisitar um dos seus barcos de passageiros e, dadas as circunstâncias, Zubair, de 40 anos, não achou que tivesse outra opção que não fosse obedecer. Mandou o capitão do barco entregá-lo no pequeno cais da base militar, onde os oficiais receberam as chaves com um aviso para o capitão: “Também vais ser morto. ” O condutor do barco acabou por conseguir escapar ileso, juntando-se ao resto da população em fuga. Zubair conta que seguiu os militares para saber o que iriam fazer com o seu barco e que ficou em choque quando os viu começar a empilhar corpos na embarcação, um após outro, como se fossem troncos de madeira. Nesses corpos incluíam-se os de dois rapazes de 13 anos que conhecia bem. “Aquela visão fez-me desmaiar”, diz Zubair. Acredita que os corpos tenham sido lançados ao rio. No terceiro dia, a mãe de Rafique, Khalida Begum, de 35 anos, desesperada por notícias do filho, cansou-se de saltar de casa em casa com os seus outros quatro filhos. Educara-os sozinha depois da morte do marido há vários anos, trabalhando como costureira para os sustentar. Conseguiram chegar à selva, onde viu Rafique estendido e imóvel junto a uma árvore. Correu para ele, enchendo alegremente a sua cara de beijos, enquanto ele despertava da sua confusão febril. Estava tão desorientado que a princípio nem reconheceu a mãe, mas pouco depois estavam abraçados a chorar. Ao sexto dia, os habitantes de Maung Nu decidiram em conjunto começar a andar para norte, em direcção à fronteira com o Bangladesh, temendo que o perigo se intensificasse. Caminharam durante oito dias em condições muito adversas, alimentando-se de folhas de bananeira e bebendo água de riachos. No meio do choro das crianças, Showife carregou Rafique às costas, enquanto o adolescente alternava entre períodos de consciência e perda dela. As pernas dos viajantes começaram a inchar. Chegaram finalmente a um cruzamento, no topo de uma colina, onde um simples pilar anunciava que tinham cruzado a fronteira do Bangladesh. Eram 16h30 e chovia. À sua frente, uma nova cidade de refugiados, milhares de tendas temporárias, postes de bambu cobertos por lonas de plástico preto. Ao descerem a colina tentando não escorregar na lama, sabiam que os esperavam tempos difíceis. Durante os dias seguintes, fechar os olhos equivaleria a ver os corpos inertes dos vizinhos e a ouvir o estrondo dos tiros junto ao ouvido. Mas naquele pilar surgiu um pouco de alegria. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Senti-me tão contente”, conta Khalida Begum. “Estava maluca, estava extasiada. Pensei que finalmente estávamos em segurança. ”Ao lembrar esse momento dias depois, os olhos de Khalida enchem-se de lágrimas. Era a primeira vez que se permitia acreditar no que os que tinham retirado Rafique da aldeia lhe diziam: que o seu filho iria sobreviver. Exclusivo PÚBLICO /The Washington Post. Tradução de António DomingosEste artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO
REFERÊNCIAS:
Dar nome às vítimas
Uma reportagem exemplar sobre os portugueses nos campos de concentração (...)

Dar nome às vítimas
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-10-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma reportagem exemplar sobre os portugueses nos campos de concentração
TEXTO: Há muitos anos — quase 30 —, quando visitei Dachau pela primeira vez, deparei com a bandeira portuguesa na sala onde se assinalavam os países que tinham nacionais seus entre as vítimas daquele campo de extermínio. Na altura, Dachau estava ainda longe dos olhares do turismo de massas, era um local inóspito e desolado, onde aos visitantes era facultada uma fotocópia com um mapa do campo, e pouco mais do que isso. A surpresa de ver que existiram portugueses entre as vítimas levou-me a pensar que esse seria um tema para uma grande reportagem jornalística. Foi feita no ano passado, nas páginas deste jornal, e agora, numa versão mais ampla, publicada em livro. Jornalista de profissão, Patrícia Carvalho refere, logo nas primeiras linhas, que este não é um livro de História mas uma reportagem sobre os portugueses que estiveram nos campos de concentração. A obra, de facto, não procura enquadrar o destino daqueles homens e daquelas mulheres na perspectiva mais vasta do relacionamento entre o Estado Novo e a Alemanha hitleriana, desenvolvendo um tema que já foi abordado, de modo exaustivo e em grande profundidade, por Irene Pimentel e Cláudia Ninhos emSalazar, Portugal e o Holocausto (2013). Do mesmo modo — e ainda que os títulos das duas obras possam prestar-se a essa confusão —, o livro Portugueses nos Campos de Concentração Nazis, de Patrícia Carvalho, tem um alcance e um propósito muito distintos de Portugueses no Holocausto, de Esther Mucznik. Por vezes, e como é natural, há nomes de vítimas que surgem nestes vários trabalhos, mas a atenção de Patrícia Carvalho centrou-se na identificação de vítimas e no acompanhamento do seu trágico percurso rumo a Auschwitz, Dachau, Buchenwald, Ravensbrück, Bergen-Belsen e outros lugares de morte. Adivinha-se, em cada linha, o esforço e a tenacidade que devem ter sido necessários para localizar os portugueses que passaram pelos campos de concentração, tendo a autora identificado 49 vítimas, muitas das quais sobreviveram. Infelizmente, já não pôde falar directamente com nenhum dos sobreviventes (o último dos quais terá morrido em 2008). Mas não só entrevistou todos os familiares que conseguiu localizar como mergulhou a fundo em diversos arquivos de vários países (em Portugal, talvez merecesse a pena consultar a Torre do Tombo, sobretudo para complementar os elementos colhidos no arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros ou suprir as suas eventuais lacunas). A investigação que fez é de tal forma diligente e minuciosa que dificilmente poderá ser ultrapassada. O ângulo de análise incide, como se disse, na trajectória de cada uma das vítimas, onde encontramos um pouco de tudo, desde emigrantes em França que foram subitamente apanhados no turbilhão da guerra a outros que, pelas suas acções de resistência ao nazismo, tiveram como destino “natural” os campos de concentração. A autora tem o cuidado de não proceder a uma “teoria geral”, seja do perfil das vítimas, seja da atitude das autoridades portuguesas. O que lhe interessa é reconstruir caminhos singulares, biografias pretéritas, ainda que o livro contenha, aqui e ali, breves apontamentos que descrevem sumária mas rigorosamente a natureza de cada um dos vários campos de extermínio. A obra é pontuada por magníficas fotografias de Nelson Garrido e apresenta, sem dúvida, o máximo de informação que é possível recolher sobre o que aconteceu, entre outros, ao comunista Luiz Ferreira, a Júlio Laranjo, natural de Alcácer do Sal, à jovem Rachel Basista ou a uma corajosa opositora ao nazismo, Maria Barbosa, hoje sepultada numa pequena localidade no Sudoeste de França, numa campa onde o seu viúvo fez inscrever as dolorosas palavras “antiga deportada”. Por vezes — e este será, porventura, o único defeito a apontar à obra —, Patrícia Carvalho descreve, com excessivo pormenor, o modo como alcançou cada um dos seus biografados, as instituições que contactou ou onde é possível obter informação. No entanto, é isso que nos permite ter uma ideia aproximada da dimensão ciclópica do trabalho levado a cabo para produzir uma reportagem de grande interesse e seriedade, verdadeiramente exemplar. De futuro, e pela qualidade da pesquisa aqui demonstrada, seria interessante que Patrícia Carvalho se debruçasse sobre uma outra realidade: a dos refugiados do Holocausto que chegaram a Portugal e aqui fixaram raízes. Aqui fica o desafio.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte homens guerra campo concentração mulheres
O que move os nossos mestres? Não é o dinheiro
Os mestrados são hoje em Portugal a antecâmara de uma vida profissional que muitas vezes não se cumpre, mas Bolonha tornou-os cada vez mais obrigatórios. (...)

O que move os nossos mestres? Não é o dinheiro
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os mestrados são hoje em Portugal a antecâmara de uma vida profissional que muitas vezes não se cumpre, mas Bolonha tornou-os cada vez mais obrigatórios.
TEXTO: Dizem-nos que vamos ganhar cerca de 700 euros em Portugal. ” Pouco importam a Helena as promessas de sucesso de um mestrado, como o que ela está a concluir em Engenharia Mecânica. O que lhe ficou no ouvido, enquanto estudante a receber uma bolsa de excelência de mil euros, foi o prognóstico de alguns professores sobre um futuro muito próximo, para ela, quase presente. Os mestrados são hoje em Portugal a antecâmara de uma vida profissional que muitas vezes não se cumpre, mas Bolonha tornou-os cada vez mais obrigatórios. No último ano lectivo com dados disponíveis, 32% dos mais de 350 mil estudantes que se inscreveram no ensino superior já foram candidatos a mestres e 38 mil deles terminaram o curso nesse mesmo ano de 2013-2014, em universidades e politécnicos. O que estes números indicam é que Bolonha generalizou e agigantou uma etapa de estudos superiores que produz já um quarto dos diplomados — o resto divide-se por doutorados e licenciados — à procura de uma vida. Indicam, por outro lado, uma janela para um mundo em mudança. Por exemplo, um mundo em que cai rapidamente o número de mestrados com turmas só de homens ou só de mulheres; em que os estudantes estrangeiros europeus ultrapassam os dos países de língua oficial portuguesa; em que o universo de desempregados conta com mais mestres. A Revista 2 comparou os últimos três anos lectivos com dados completos e inquiriu as principais instituições do ensino superior. E o quadro que encontrou é uma parte das vidas de Helena, André, Nuno, Ana, Marco e Juan. Em 2013/2014, 62, 5% dos mestres eram mulheres, o que constitui um recorde. No inquérito feito pela Revista 2, a maioria das instituições de ensino superior conta entre 50 e 60% de presenças femininas. A excepção está na Universidade do Porto: as mulheres representam 39, 8% das inscrições em mestrados em 2014/2015. Na Universidade de Coimbra, a percentagem, no mesmo período, é de 55, 8%. Mais a sul, a Universidade do Algarve tem 64% de mulheres inscritas e o Instituto Politécnico de Setúbal 67%. Também há mulheres que escolhem outra porta. É o caso de Helena Sofia Lopes, uma das poucas alunas do Mestrado Integrado em Engenharia Mecânica da Universidade do Minho. Em Braga, Engenharia Mecânica é um dos cursos com maior discrepância entre sexos: neste ano lectivo estão inscritos 523 estudantes, 473 são homens, 50 são mulheres. Nesta universidade, em 2014/2015, 61, 9% das matrículas nos mestrados foram feitas por mulheres. Mas para Helena, 21 anos, Engenharia Mecânica foi mesmo a primeira opção na candidatura de acesso ao ensino superior. “Durante o secundário, via bastantes programas no Discovery Channel e National Geographic que abordavam assuntos sobre mecânica, automóveis, entre outros, e penso que isso também influenciou a minha escolha. ” Matemática e Física eram as disciplinas preferidas e a curiosidade em perceber como as coisas funcionavam, aliada ao interesse pela área das tecnologias, também pesaram na hora da decisão. É a melhor aluna da turma e, por isso, ganhou a Bolsa Excelência da Universidade do Minho pela sua média de 18, 61 valores. A bolsa de cerca de mil euros permite-lhe pagar um ano de propinas. Helena pensa no futuro e lembra-se do tal prognóstico de alguns professores: “Vamos ganhar 700 euros em Portugal. ” A frase bate, mas não lhe abana as aspirações. Se surgir oportunidade, Helena quer tirar uma pós-graduação. “Seria uma possibilidade de adquirir mais ferramentas e conhecimentos, além de ser uma vantagem quando estiver inserida no mundo profissional. ” Trabalhar em Portugal é a primeira opção, mas se tiver de partir, vai. “Não tanto pela parte económica, mas por enriquecimento pessoal e pelo contacto com outras realidades. ”O desemprego jovem preocupa-a: “Há tantos jovens qualificados a não terem oportunidades de emprego nas suas áreas, tanto assim é que alguns são ‘obrigados’ a emigrar ou a arranjar trabalho noutra área qualquer. É muito mau não só para os jovens, mas também para as suas famílias e para o país que investiram neles. ” Apesar de tudo, Helena, filha única, está optimista. Gostaria de prosseguir os estudos, trabalhar numa empresa moderna na sua área de especialização em sistemas mecatrónicos, que alia conhecimentos de engenharia mecânica, electrónica, informática. “Ter um curso ou um mestrado é sempre uma mais-valia. Além disso, é algo que os empregadores valorizam”, refere. Mas, na sua opinião, um mestrado integrado num curso vai perdendo força. “Está um pouco desvalorizado. ” No entanto, entre ter e não ter, é melhor ter, até porque a realidade lhe tem mostrado que os mestrados e doutoramentos são valorizados na avaliação que as empresas fazem dos currículos. No final do ano passado, quem tinha habilitações superiores representava 12% do total dos desempregados. Eram, ao todo, 70. 783 e, destes, 14, 4% eram mestres. Um mestre que calçou as chuteirasAndré Vale não fazia parte desses números, mas a sua vida poderia ser mais tranquila, financeiramente falando. Um dia, quis que tudo mudasse. Mestre em Engenharia do Ambiente pelo Instituto Superior Técnico (IST), investigador, passava os dias sentado a uma secretária com estudos de impacte ambiental à frente. A carreira académica seria o percurso mais previsível. Não foi. O sonho de trabalhar com crianças e ser treinador de futebol falou mais alto. É agora treinador na Escola de Futebol do Benfica, que tem miúdos dos três aos 16 anos, e é coordenador técnico da Escola de Futebol no Benfica de Oeiras, onde faz a gestão de treinos e treinadores que têm a seu cargo cerca de 70 crianças dos três aos 12 anos. Trabalha em part-time na Associação Cultural Moinho da Juventude na Cova da Moura, em Almada. Coordena o projecto Eco-Escolas dessa associação, faz a ligação entre as várias respostas sociais da instituição no que diz respeito à educação ambiental e também dá apoio escolar complementar nas áreas de Ciências e Matemática. André tem 28 anos e não se arrepende de ter largado a carreira de investigador. Não foi fácil, teve de fazer contas à vida, ainda vive com os pais. “Tinha tudo seguro para seguir uma carreira académica consolidada. Tive de ter uma força de vontade muito grande e de provar a todos que sabia o que estava a fazer. Sabia que ia ter resultados, sabia que ia alcançar coisas”, conta. Acumula vários empregos, trabalha 50 horas por semana se for preciso. “E tem de ser assim para conseguir ter um rendimento suficiente ao final do mês que me permita ser minimamente independente. É na área que gosto e onde sempre sonhei estar e quem corre por gosto também se cansa, mas nunca se arrepende”, refere. Em Setembro de 2011, terminou o Mestrado Integrado em Engenharia do Ambiente com média de 15 valores e com seis meses em Milão como aluno de Erasmus. Um professor convidou-o a ficar no IST como investigador. Aceitou e começou a trabalhar. Em Outubro do ano seguinte, concorreu a uma bolsa do LNEC — Laboratório Nacional de Engenharia Civil, “pelo prestígio de trabalhar num laboratório de renome”. Foi o melhor classificado, ficou com uma bolsa de investigador, na altura, de 980 euros por mês. “Passava o dia inteiro à frente do computador a trabalhar para as pessoas, sem lidar com as pessoas. Fazia e assinava projectos que influenciavam a vida das pessoas e não ia aos sítios”, recorda. Ficou um mês. “É muito difícil chegar a casa e dizer: ‘Estou farto disto, vou largar tudo e seguir o meu sonho, quero ser treinador de futebol e vou conseguir, der por onde der’. ” Um dia antes de se despedir, no regresso a casa, perdeu o medo e a vergonha e bateu à porta do Estádio da Luz. O professor António Fonte Santa, a quem chama mentor, aceitou-o na escola. “A ele devo uma parte do meu sucesso em mudar de vida”, confessa. Em Junho de 2013, começou a fazer cursos de formação de futebol, os chamados “níveis de treinador”, em Inglaterra. Ainda não acabou. “Decidi fazer estes cursos no estrangeiro porque queria desafiar-me, sair da minha zona de conforto, obrigar-me a ir treinar em condições e numa língua diferentes e também porque teria mais uma coisa que me diferenciasse no currículo. ” O percurso no futebol tem sido sempre a subir. Em Setembro, passou de treinador estagiário a treinador principal da selecção de 2009 das Escolas de Futebol do Estádio. E ainda treina, três vezes por semana, os iniciados B, adolescentes de 13 anos, do Linda-a-Velha. Como estagiário e aprendiz no Benfica, não tinha rendimentos. Desenhou então um projecto de empreendedorismo social que apresentou a um grupo de investigação do IST. Esse projecto, revela, “consistia na criação de uma plataforma de conhecimentos que permitisse a qualquer pessoa, em tempo real, aceder a informação básica sobre ambiente, ecologia, agricultura”. A ideia é, explica, “que essa informação não fosse puramente académica ou teórica, mas sim da partilha de conhecimentos ancestrais e seculares, juntamente com conhecimentos surgidos da investigação científica nessas áreas”. Uma plataforma online aberta à participação de todos. E assim, em Novembro de 2012, voltou à faculdade com uma bolsa a tempo parcial para conciliar o tempo com os treinos. Ficou quase um ano, até Setembro de 2013, quando largou de vez o papel de bolseiro. “Era o mesmo problema: muito trabalho em frente do computador, muito pouco junto das comunidades que queríamos influenciar e, por essa altura, a minha motivação estava totalmente focada no futebol. ” Sem remuneração, André entra na Associação Cultural Moinho da Juventude, na Cova da Moura. “Tem sido um desafio enorme, mas é um trabalho que me dá muito prazer. É duro, mas permite-me sentir que estou a trabalhar para algo que se vê”, conta. Está lá desde Dezembro de 2103. “Tenho aprendido muito do que é a vida, a sociedade, as dificuldades que muita gente passa, através do bairro”, diz. André não desvaloriza o percurso académico. Pela capacidade de raciocínio, pela capacidade de realizar muito trabalho e de pensar sob pressão. “O Técnico é muito bom, ensina-nos a pensar e a desenrascar. Saí muito bem preparado, com um bom ritmo de trabalho. ” Falta, na sua opinião, preparação para o mercado de trabalho, mais protocolos entre as universidades e as indústrias, um semestre de integração num grupo de investigação ou numa empresa, estágios obrigatórios em contexto de trabalho para todos os alunos. “Os engenheiros existem, na sua essência, para resolver problemas práticos. Como podem fazer isso se só têm cadeiras teóricas?”, questiona. Compreende, no entanto, que a actual situação do país não dê grande margem de manobra às faculdades. “Por ver que a formação superior oferece, muitas vezes, caminhos que não vão, de todo, ao encontro do que as pessoas querem, mas onde, muitas vezes, se deixam a definhar ao nível pessoal, arrisquei em não o permitir. ”André tem os pés no chão. “A altura em que se larga tudo para mudar de vida é naturalmente conturbada e difícil, em que se têm de tomar decisões de uma responsabilidade enorme. ” Como toda a gente, tem dias bons e dias maus. O seu lema passou a ser não tomar decisões baseadas em dinheiro. Faz questão de passar essa mensagem aos que estão à volta. “Há cada vez mais um número assustador de pessoas que fazem frete no trabalho pelo vencimento, sem darem uma única oportunidade de tentarem ser felizes e fazerem o que gostam. Todos merecem uma chance, por mais madrasta que a vida possa parecer. ”Segundo o inquérito realizado pelo PÚBLICO, na Universidade de Évora, em 2014/2015, o rendimento médio líquido à data do início do mestrado de 2. º ciclo era de 1023 euros. Na Universidade de Aveiro, 33, 5% estavam nos salários entre 1000 e 1499 euros, enquanto 31, 6% auferiam entre 750 e 999 euros e 3, 2% auferiam 2000 ou mais euros por mês. Na Universidade do Porto, 28, 9% dos mestres ganhavam entre 801 e 1100 euros, 27, 9% auferiam entre 1101 e 1400 euros e 11% mais de 1701 euros mensais. Nuno em Angola, Ana e Maria procuram trabalhoNuno Rocha estudou na Universidade do Porto e não sabe o que é estar desempregado. Tem 30 anos, trabalha em Angola como advisor numa empresa de investimento, a Gemcorp Capital, que tem sede em Londres, e é o responsável pelo processo de expansão em África. Tem um salário confortável, uma carreira pujante. São os desafios e as experiências que o fazem mexer. Não é uma questão de números ou de uma carteira mais recheada. “A formação académica, mais do que um melhor salário, significa mais e melhores opções seja através do empreendedorismo ou trabalhando para alguém num caminho que deve ser sempre trilhado tendo metas e objectivos bem definidos e que, naturalmente, vamos renovando”, conta numa troca de emails. Saiu da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto em 2007 com uma média de 14 valores. “O grande trunfo que ganhei durante a universidade foi aprender a pensar. Continuo a resolver problemas e a encontrar as melhores soluções como um engenheiro, apesar de nunca ter exercido. ” Dedicou-se à área financeira. Curso concluído, começou a carreira como analista na avaliação de activos numa empresa de consultoria e engenharia, fazendo a ligação aos principais bancos portugueses. Fez uma pós-graduação em Análise de Investimentos e Avaliação e no final de 2012 saiu da empresa como director executivo. “Senti que precisava de organizar e estruturar os conceitos relativamente a liderança e gestão. Nessa altura, procurei algumas opções de Business Schools, tendo sido aceite em duas. Optei pela Universidade Católica do Porto e pelo programa MBA Atlântico”, revela. Acabou o MBA em Agosto de 2014 e no mês seguinte recebeu uma proposta para liderar a área de investimento de uma empresa em África. Em Março deste ano surgiu o convite da Gemcorp Capital. Nuno é apologista do velho ditado que o saber não ocupa lugar. “A formação académica abre caminhos, mas é função de cada indivíduo encontrar as oportunidades e os desafios que o satisfaça e o faça feliz. ” E o futuro? “A minha expectativa é ter uma vida familiar completa, seja em que geografia for, e liderando um projecto que me desafie todos os dias”, responde. Quando era pequeno, queria ser como André Agassi, jogador profissional de ténis. Na hora de tomar decisões, decidiu estudar Engenharia Civil. O pai, engenheiro, era o exemplo que queria seguir. Durante as suas especializações, nunca deixou de trabalhar. Casou-se em Julho deste ano, a mulher trabalha em Portugal. Apesar de estar noutro continente, o país está sempre perto: “Vejo em Portugal oportunidades que, muitas vezes, são desaproveitadas pela vergonha social de falhar. Essa é uma das grandes mudanças que Portugal e os jovens portugueses devem encontrar no seu caminho para a felicidade”, defende. A emigração, em seu entender, exige reflexão e mudanças de todos os intervenientes envolvidos na equação. “É preciso perceber as causas reais que são mais profundas do que aquilo que se ouve nos discursos. É preciso, por outro lado, olhar para os desafios que a conjuntura nos apresenta como enormes oportunidades para evoluirmos como indivíduos, mas principalmente como sociedade. ”Segundo dados do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), a maioria dos mestres desempregados tem entre 25 e 34 anos, são 6488 do total e representam 22, 4%, seguindo-se 1903 mestres sem trabalho com menos de 25 anos e que representam 14, 9%. No inquérito realizado pela Revista 2, o Instituto Politécnico de Setúbal revela que, em 2014/2015, 81% dos alunos já tinham contratos remunerados antes da conclusão do mestrado e 15% arranjaram trabalho até seis meses depois da conclusão dessas formações. Na Universidade do Porto, também em 2014/2015, após um ano da conclusão dos mestrados, 76, 2% estavam empregados, 11, 3% estavam desempregados, 5, 9% em estágios e 5, 3% continuavam a estudar. Ana Ferreira está do lado dos 12% de desempregados diplomados contabilizados no final do ano passado e nos 1661 mestres que andam à procura de trabalho há cerca de um ano. Aos 25 anos, procura o primeiro emprego com uma licenciatura em Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e um mestrado do 2. º ciclo em Comunicação, Arte e Cultura na Universidade do Minho, concluído em Outubro do ano passado com uma média de 17 valores. “Sabia que depois do mestrado ficava por minha conta. ” Assim foi. Ficou atenta aos anúncios, enviou currículos, inscreveu-se em estágios, esperou por respostas que não chegaram. Até ao momento, foi a quatro entrevistas. Ter um mestrado não tem sido um entrave, o calcanhar de Aquiles é a falta de experiência profissional, mesmo para empregos a recibos verdes e em part-time. “Numa das entrevistas, senti que havia bastante apreensão por parte dos empregadores pelo facto de eu não possuir qualquer experiência profissional e este ser um critério de avaliação nas candidaturas aos estágios, coisa que para mim não faz qualquer sentido visto que o programa pretende ser um primeiro contacto dos jovens com o mercado de trabalho. ”O mestrado não surgiu por acaso. Ana escolheu a área que queria aprofundar: “Senti necessidade de aprofundar temáticas que a Sociologia aborda. ” Entre o curso e o mestrado, fez seis meses de voluntariado no programa Escolhas, planificou e dinamizou actividades pedagógicas para jovens. “Essa experiência permitiu-me perceber o que gostava de fazer em termos profissionais. ”Ana faz parte do Orfeão Universitário do Porto desde 2009. Desde o tempo da faculdade que mantém o contacto com a instituição. Mora com a mãe e o irmão, o pai emigrou para Angola. Tenta manter o optimismo, inscreveu-se em bolsas de voluntariado na Casa da Juventude de Matosinhos, na plataforma de apoio aos refugiados. “Houve já diversas ideias para constituir um negócio com amigos ou família, mas isso nunca foi para a frente”, lembra. Tem pensado em muita coisa, em voltar à universidade e inscrever-se num mestrado que saiba que “tenha saída”. O que vê à volta não é animador. “As minhas colegas de licenciatura não estão a trabalhar na área. Desde supermercados a call centers e portagens, há de tudo um pouco e nenhuma trabalha em Sociologia”, refere. “Nesta perspectiva, é um bocadinho difícil estar optimista. ”Do lado do desemprego, mas com experiência profissional, está também Maria Manuel Rola, 31 anos, designer gráfica, sem trabalho desde Maio deste ano. Recebe subsídio de desemprego, continua a enviar currículos, a ir a entrevistas e a ficar com a amarga sensação de que a sua experiência no mercado de trabalho, o curso, o mestrado em Barcelona, a pós-graduação em Portugal, não têm assim tanto peso para quem contrata. Diz que os empregadores procuram “canivetes suíços” ou “polvos”. Gente que saiba fazer muita coisa ao mesmo tempo, que multiplique as mãos e o cérebro por 650 euros por mês. “Com três, quatro anos de experiência no mercado, propõem-nos à volta de 600, 650 euros, como se fôssemos recém-licenciados, abaixo do que seria expectável. A crise tem servido como desculpa para muita coisa”, repara. O percurso de Maria começou no Colégio dos Carvalhos, em Vila Nova de Gaia, no curso técnico-profissional de Artes e Indústrias Gráficas. Seguiu-se a experiência de dois anos em Arquitectura na Faculdade do Porto. Não era por ali. “Era interessante, mas era preciso um amor à profissão que não era o meu”, desabafa. Inscreveu-se em Design Gráfico na Escola Superior de Artes e Design (ESAD) de Matosinhos e depois partiu para Barcelona para um master em Design e Direcção de Projectos Expositivos. Os pais incentivaram-na a ter outro tipo de experiências e uma especialização no estrangeiro que poderia significar mais possibilidades em termos de empregabilidade. Um ano a estudar fora, um mês à procura de trabalho em Barcelona. Voltou em 2009. Fez um workshop em Design, vários trabalhos na área, uma pós-graduação em Web Design na ESAD, como trabalhadora-estudante. Em Maio deste ano, ficou desempregada. Continua à procura de emprego, tem enviado várias candidaturas. “O que se encontra mais são estágios curriculares e do IEFP”, adianta. O marido de Maria está a estudar nos Estados Unidos com uma bolsa de doutoramento num projecto de cinco anos. “Continuo à procura de trabalho, há a hipótese de emigrar. ” Partir é, neste momento, a última opção. Ter um mestrado é uma boa ferramenta, mas não é tudo. Por enquanto, não pensa voltar à faculdade. Esse regresso tem de fazer sentido na perspectiva de crescer enquanto profissional porque são as competências técnicas que lhe interessam. Na especialização que tirou em Portugal, sentiu que estava tudo formatado para o empreendedorismo, era preciso desenvolver um projecto e arranjar financiamento. Soube-lhe a pouco. “Não queria ser empreendedora, mas desenvolver competências para o trabalho que estava a exercer”, comenta. “Neste momento, preciso mesmo de trabalhar. ”Marco quer abrir um jardim-de-infânciaMarco António Freitas está a terminar o mestrado em Educação Pré-Escolar da Universidade do Minho. É o único rapaz da turma de 47 alunos inscritos no ano lectivo de 2014/2015. Não se sente peixe fora de água. Bem pelo contrário. “As pessoas olham para mim e pensam que se estou aqui é porque realmente quero estar aqui. A Educação Pré-Escolar foi sempre a área de que mais gostei, com a qual mais me identifiquei e ambicionei seguir. ”A vontade de ser feliz faz parte desta história. Marco tem 26 anos, é da Madeira e quer abrir um jardim-de-infância, seja no continente seja na ilha: O sonho não tem localização definida, o importante é concretizá-lo. “O que me interessa é ter trabalho na área onde me especializei. Trabalhar em Braga ou na Madeira é igual. ” É persistente. Quando acabou o 12. º ano, esteve um ano a subir a nota de História, disciplina que fazia parte das provas de ingresso à faculdade. Na candidatura de acesso ao ensino superior, colocou Educação Básica nas seis opções possíveis. Entrou em Braga, fez as malas e aterrou no continente. Os estágios que fez ao longo do ensino superior confirmaram a certeza de querer trabalhar com crianças. A formação seguinte era inevitável. É uma exigência do mercado com as alterações de Bolonha. “Sem o mestrado, não consigo exercer, só nas AEC. Não fazia sentido não o fazer e era chato para os meus pais que me estão a financiar. ” Até 31 de Outubro tem de entregar a tese Construir a Identidade Descobrindo a Diversidade que defenderá em Janeiro do próximo ano. Ter mestrado nunca é de mais. “As pessoas consideram que ter um mestrado lhes dá mais segurança para fazerem algo que gostem, que as realizem no futuro. O saber não ocupa espaço, independentemente de, no futuro, terem ou não emprego na sua área. ” Continuar a estudar é uma hipótese, Marco quer ter várias portas abertas. “Gostava de aprender um pouco mais, continuar a estudar num doutoramento que me realizasse como professor e como pessoa”, adianta. No início do próximo ano, terá de tomar decisões. Desemprego é uma palavra que anda no ar. “Qualquer estudante que se candidate ao ensino superior, ou que quer ter um mestrado, pensa no desemprego, é uma coisa que automaticamente lhe vem à cabeça. Todos sabem o estado em que se encontra o nosso país e ficam com as escolhas limitadas. ” E se pudesse mudar alguma coisa nos mestrados, esticaria o tempo dos estágios. “É a prática que vai fazer com que apliquemos e percebamos o que aprendemos na teoria”, sublinha. Marco foi aluno bolseiro. Recebia uma bolsa do Governo da Madeira, outra bolsa da Universidade do Minho que, juntas, rondavam os 270 euros por mês. “Hoje em dia não é fácil obter uma bolsa boa”, comenta. Em praticamente todas as instituições de ensino superior do país que responderam ao inquérito da Revista 2, verifica-se um aumento do número de bolsas atribuídas a alunos de mestrados. Em 2014/2015, e dos dados disponíveis, foi a Universidade de Aveiro que atribuiu o maior número de bolsas: 1019 e um investimento de cerca de 1, 9 milhões de euros. A Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro concedeu 519 bolsas que representaram pouco mais de um milhão de euros. A Universidade Nova de Lisboa atribuiu 311 bolsas que, no total, valiam 564. 622 euros, a Universidade de Coimbra deu 259 bolsas que representaram um investimento de 109. 402 euros, enquanto a Universidade de Évora aprovou 169 bolsas de, no total, 321. 113 euros. Os alunos estrangeiros a procurar Portugal para obter o grau de mestre também estão a aumentar: 9092 alunos estavam inscritos em 2011/2012, 9326 no ano seguinte e 10. 104 em 2013/2014. A Universidade Nova de Lisboa já ultrapassou a barreira dos 20% de alunos estrangeiros em programas de mestrado. A subida tem sido significativa: 12, 5% em 2012/2013, 16, 6% em 2013/2014 e 21% em 2014/2015. Nas universidades de Aveiro e da Beira Interior, na Covilhã, a tendência também é de crescimento. Na primeira de 8, 7% em 2013/2014 para 10, 3% em 2014/2015. Na segunda, e no mesmo período, de 6, 47 para 7, 87%. Se na maioria, as inscrições dos alunos estrangeiros em programas de mestrado aumentam, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro verifica-se uma descida com algum peso: de 10, 8% em 2013/2014 para 6, 6 em 2014/2015. Se anteriormente, a maioria dos estudantes chegava do Brasil e de Angola, seguindo-se Cabo Verde, Espanha, Itália, França e Alemanha, em 2013/2014, a ordem de preferência alterou-se com Espanha à cabeça seguida do Brasil. Angola aparece atrás de Itália e Cabo Verde, seguindo-se Alemanha e Polónia. Juan Enrique Ruiz é um dos estudantes espanhóis que representam a maioria dos alunos que chegam de fora para uma especialização no nosso país. Chegou ao Porto a 1 de Setembro deste ano para frequentar o mestrado em Finanças na Faculdade de Economia da Universidade do Porto. É aluno de Erasmus, estará no Porto durante seis meses, a cidade que conheceu de raspão há um ano durante dois dias de férias que ali passou. Depois volta a Madrid, de onde chegou, para terminar o mestrado na área de Economia. Juan, 23 anos, licenciado em Engenharia Industrial, quer aprender português. E está bastante motivado. Por enquanto, ainda recorre ao inglês para manter conversas e não tropeçar nas palavras. Está num curso intensivo, três horas ao final dos dias, para que possa juntar mais uma língua ao currículo (fala espanhol, inglês, italiano e estudou em Itália como aluno de Erasmus há cerca de dois anos). “Quero ser fluente em português. Saber várias línguas é muito importante. ” Conhecer pessoas, compreender outras realidades, movimentar-se à vontade em várias geografias, também. Depois do mestrado, Juan ainda não decidiu o que fazer. Talvez montar o seu próprio negócio, uma empresa de consultadoria, talvez tente o sistema financeiro na área da banca. Talvez regresse ao Porto e tente encontrar trabalho por algum tempo. De uma coisa tem a certeza: “Não quero estar num escritório a trabalhar das 9h às 6h. ” O dinheiro não é objectivo máximo do seu percurso. As viagens dão-lhe estofo e bagagem para o futuro. “Quando saímos de casa, deixamos a nossa família, saímos da nossa zona de conforto, tornamo-nos independentes, crescemos imenso e aprendemos muitas coisas”, refere. Sabe do que fala. E faz por isso. Eber, o guatemalteco que acredita na justiça socialNa Universidade de Coimbra, onde o guatemalteco Eber Quiñonez Hernandez chegou a 15 de Setembro de 2011 para fazer o mestrado em Intervenção Social, Inovação e Empreendedorismo, na Faculdade de Economia, o número de alunos estrangeiros inscritos em programas de mestrado não tem sofrido oscilações. Em 2014/2015, 11, 5% de alunos estrangeiros frequentavam os mestrados, percentagem igual ao ano de 2012/2013, registando-se uma ligeira quebra em 2013/2014 com 10, 5%. Eber, 33 anos, escolheu estudar em Portugal com uma bolsa financiada pelo Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford, dos Estados Unidos da América. Os textos de Boaventura Sousa Santos que lia e que os amigos guatemaltecos partilhavam inspiram-no a escolher Coimbra. O sociólogo português despertava-lhe atenção. “Alguém do outro lado do mundo olhava para aquele outro lado do mundo, falava da nossa realidade, e fazia sentido. ” Portugal também era apetecível por ser uma “porta de entrada para outras partes do mundo”. Desde 2011 que faz parte do grupo de estudos em Economia Solidária, EcoSol do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Em 2006, Eber terminou o curso de Psicologia na Universidade de S. Carlos da Guatemala, a quarta mais antiga da América. Participou em vários projectos sociais, um dos quais numa comunidade indígena com mulheres vítimas de violência sexual e familiar. Antes de partir para Portugal, coordenava um projecto de combate à violência e de inserção social, que envolvia crianças e jovens até aos 24 anos, em Santa Isabel, na periferia da capital Cidade da Guatemala. “A ideia era contribuir para que a violência não se perpetuasse. ” Os jovens tinham bolsas para várias formações: mecânica, estética, técnicas de computação, lazer, desporto. Decidido a apostar na formação académica, fez as malas. “Não fazia ideia do que era Coimbra. ” Encontrou uma cidade “com uma tradição muito ligada ao movimento estudantil”. “Fiquei surpreendido não apenas por ser uma cidade de estudantes, mas por ser uma cidade pequena e ter muita oferta cultural e académica. ” E por encontrar pessoas de todo o mundo. Acabou o mestrado em 22 meses, estudou a forma como o capitalismo, no caso europeu, e especificamente em Portugal, “submete e domina cada vez mais os pequenos produtores agrícolas, obrigando-os, através dos quadros regulamentares da Política Agrícola Comum, e das regulamentações implementadas no país, a reduzir a sua possibilidade de aceder ao mercado para escoar os produtos, precarizando, desta forma, e cada vez mais, a sua condição de rural e de subsistência”. Mestrado feito, quis passar dos pequenos produtores agrícolas ao consumo alimentar e, por isso, em 2013, inscreveu-se no doutoramento em Sociologia na mesma universidade. Estuda agora a polaridade dos temas rural e urbano, as formas de comercialização de bens agroalimentares por venda directa do produtor ao consumidor ou por venda indirecta através de um único intermediário. “Empreendedorismo” é um nome que está no seu mestrado, mas a palavra não lhe soa lá muito bem. “É mais uma ferramenta do capitalismo para corroer as relações entre iguais. Este conceito, sem o devido cuidado, pode gerar muitos individualismos, em detrimento do colectivo, em que sobressai uma ou duas pessoas, quando, muitas vezes, por trás desses empreendimentos, participaram imensas pessoas que ficam invisíveis ou marginalizadas. ”Eber quis fazer o encontro entre teoria e prática, estudar a fundo temas que lhe interessam, aprofundar conhecimentos que, em seu entender, serão potenciados na sua vida profissional. A carreira académica não tem propósitos financeiros. “Pertenço à área humanista que não procura o fim ganancioso do dinheiro. Estou a lutar por uma melhor qualidade de vida, no sentido colectivo. ” Estuda para apreender ferramentas que lhe permitam pensar que outro mundo e outras realidades mais justas são possíveis. “A componente das relações interpessoais foi também um factor muito importante porque me permitiu alargar a minha visão da sociedade portuguesa em geral, e da conimbricense em particular. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Neste momento, é bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) num projecto de gestão e comunicação entre a biblioteca e a universidade onde estuda e as diversas unidades de investigação com que a faculdade tem ligação. Por isso, desenvolve várias actividades na biblioteca. E não mais voltou à Guatemala. Admite que é “um bicho estranho” e que tem o coração dividido. “Umas vezes sinto-me em casa, outras estrangeiro. Mas gosto de cá estar. ” Garante que tem sido bem acolhido e que o seu cabelo comprido alimenta o imaginário índio-latino. Quer voltar ao seu país, mas antes gostaria de conhecer a realidade de outros países como Inglaterra e os países nórdicos. “Se ficar em Portugal, gostaria de poder contribuir para uma maior justiça social, seja em que contexto for, como, por exemplo, na área de educação da investigação, fazendo estudos comparativos com outras realidades. ”
REFERÊNCIAS:
Entidades IEFP LNEC
Só os fascistas não têm culpa do fascismo?
Só ganharemos se defendermos convictamente as ideias de inclusão e solidariedade que sejam as mais claras e opostas possíveis ao tribalismo autoritário que divide e que exclui. (...)

Só os fascistas não têm culpa do fascismo?
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.2
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Só ganharemos se defendermos convictamente as ideias de inclusão e solidariedade que sejam as mais claras e opostas possíveis ao tribalismo autoritário que divide e que exclui.
TEXTO: Conhecem a anedota do homem que vai ao médico e que lhe diz “doutor, não sei o que se passa: quando toco nos ombros dói-me, quando toco nos joelhos dói-me, quando toco na cabeça dói-me”? A resposta do médico é: “bem, o problema é que você tem o dedo partido”. Lembrei-me dessa anedota no outro dia ao participar numa discussão sobre o momento político global numa universidade americana. Havia participantes de vários países: os italianos diziam que a culpa do fascismo em Itália era do centrismo de Renzi, os brasileiros diziam que era do esquerdismo de Lula, os gregos falavam da austeridade, os franceses falavam da imigração, os alemães de Merkel e dos refugiados. Os economistas diziam que a causa estava na crise. Mas se houvesse holandeses na sala talvez eles nos lembrassem que o primeiro grande sucesso nacional-populista foi o partido de Pim Fortuyn, meia-dúzia de anos antes do colapso do Lehman Brothers. E se houvesse suecos eu gostaria de lhes perguntar como é que, com o melhor estado social do mundo, os suecos têm um partido de extrema-direita com votações nos dois dígitos. E aqui está o que me fez lembrar da anedota: afinal há tantos culpados para a ressurgência dos fascistas, mas só os fascistas é que não têm culpa do fascismo? Dói ao tocar na cabeça, no joelho e no ombro, e ninguém se lembra de se perguntar o que se passa com o dedo?O problema deste identificar de culpas domésticas, por muito interessante e até plausível que seja, não está só em paradoxalmente desonerar os fascistas das culpas do fascismo. Pior: nesta lógica perversa são os anti-fascistas que têm a culpa do fascismo. Isso nota-se muito nas discussões nas redes sociais: a qualquer tipo de oposição ao fascismo aparece logo a resposta “estás a ver, por isso é que eles crescem!”. Nos EUA já levamos dois anos com os republicanos culpando a esquerda pela ascensão de Trump, embora Trump nunca tenha tido a aprovação da maioria dos americanos. No Brasil, mal acabaram as manifestações de mulheres contra Bolsonaro apareceram as primeiras críticas alegando que concentrar os esforços em deter Bolsonaro é que vai eleger Bolsonaro. A solução está, aparentemente, em ficar sentado e esperar que passe. Mas essa não funcionou no passado e não vai funcionar agora. É evidente que há inúmeras explicações locais para o que se está a passar, às quais precisamos de acrescentar os erros táticos e estratégicos das várias famílias e lideranças políticas. Mas o facto de se estar a viver um fenómeno global exige também explicações e abordagens globais. E para chegarmos a essas precisamos de não perder de vista algumas ideias. A primeira é que as pessoas devem ser responsabilizadas por aquilo que defendem na praça pública, e pelas ideias a que dão força através do voto. Nenhum tipo de auto-desculpabilização do fascismo ou, pior ainda, de desculpabilização do fascismo por outros, deve ser aceite. Os Bolsonaros, as Le Pen, os Salvini e os Trump sabem o que estão a fazer, e se bem que nem toda a gente que vote neles o faça compartilhando todas as suas ideias, a verdade é que o limiar de aceitabilidade destas se tornou mais baixo. Isso leva-nos à segunda ideia. Estamos a viver uma mega-crise global composta de aspectos financeiros, ecológicos, sociais, migratórios e comunicacionais. No centro dessa crise está a ansiedade de que talvez não possa ser possível haver uma boa vida para todos. Nesse contexto em que o egoísmo é uma tentação, o aparecimento de políticos que justificam o egoísmo ou o tribalismo traz consigo grandes possibilidades de sucesso eleitoral, o que por vez arrasta consigo todo o tipo de oportunistas e carreiristas da pior espécie. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A terceira ideia é a de que há soluções para a crise global que não passam pelo tribalismo, mas que estas não dependem só de cada país isoladamente. Um bom exemplo é o das migrações. Paradoxalmente, nada é tão popular na Europa como a liberdade de circulação, até em países como a Hungria: só que se trata de liberdade de circulação para nós e não para os outros. Quando as fronteiras acabaram na UE não se exacerbou a migração interna (Portugal não ficou vazio depois de 1986, nem a Hungria e a Polónia depois de 2004) porque a abertura de fronteiras foi acompanhada de redistribuição e investimento na época da adesão (com a austeridade, a emigração voltou a aumentar). Da mesma forma, sem redistribuição e investimento entre países ricos e pobres nem as fronteiras mais perigosas do mundo deixarão de ser atravessadas. A extrema-direita sabe disso e aproveita-se, porque manter políticas que impedem a migração legal e aumentam a ilegal cria trabalhadores a ganharem pouco e sem direitos: uma situação hipócrita, que funciona discretamente a favor dos nacional-populistas e das suas elites. Em último lugar, há que entender que este é um problema que vai ficar connosco bastante tempo: enquanto não se perceber que os estados não controlam hoje todas as variáveis da globalização vai haver gente a vociferar que a solução está no regresso ao passado do estado-nação e não na criação de formas democráticas que estejam mais adaptadas à globalização. Nessa longa batalha de ideias que temos à nossa frente não poderemos sair vencedores se aquilo que tivermos a propor for apenas a versão mitigada do discurso egoísta que os fascistas lograram impor no espaço público. Pelo contrário, só ganharemos se defendermos convictamente as ideias de inclusão e solidariedade que sejam as mais claras e opostas possíveis ao tribalismo autoritário que divide e que exclui.
REFERÊNCIAS:
Dezenas de mortos em mais um naufrágio ao largo de Lampedusa
A embarcação transportava cerca de 250 pessoas. Entre as vítimas mortais há pelo menos dez crianças. (...)

Dezenas de mortos em mais um naufrágio ao largo de Lampedusa
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.2
DATA: 2013-10-12 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20131012160311/http://www.publico.pt/1608859
SUMÁRIO: A embarcação transportava cerca de 250 pessoas. Entre as vítimas mortais há pelo menos dez crianças.
TEXTO: Dezenas de pessoas, entre elas uma dezena crianças, morreram após mais um naufrágio de uma embarcação com cerca de 250 imigrantes a bordo, no estreito da Sicília. Uma gigantesca operação de salvamento está em curso ao largo da ilha de Lampedusa, em Itália, para resgatar os ocupantes de um navio que naufragou ao final da tarde a cerca de 70 milhas da costa europeia. Cerca de 150 pessoas foram resgatadas com vida por um navio maltês e outras 50 foram salvas por um navio da Marinha italiana. A embarcação transportava cerca de 250 imigrantes. O balanço inicial dava conta de 50 mortos mas na manhã de sábado tinham sido recolhidos apenas 34 cadáveres, na sua maioria de mulheres e crianças, segundo a agência italiana Ansa. Um fonte militar maltesa citada pela AFP falava em 33 corpos. Segundo os jornais italianos, meios marítimos e aéreos da polícia e Exército da Itália e Malta estão envolvidos na missão. O barco, que transportaria cerca de 250 imigrantes de nacionalidade eritreia e somali, terá virado ou adornado em águas internacionais, no canal mediterrânico que liga a Tunísia à Itália. O alerta foi dado pelas autoridades maltesas, que requisitaram o apoio da marinha italiana para a operação de salvamento. "Temos pelo menos 200 pessoas na água, que estão a ser resgatadas pelos nossos helicópteros", confirmou um porta-voz da marinha à Reuters. O responsável indicou que todos os sobreviventes seriam transportados para Lampedusa. A operação acontece após uma noite de intenso movimento da guarda costeira italiana, que socorreu mais de 500 imigrantes em dificuldades no estreito da Sicília. As autoridades começaram por responder a um pedido de SOS lançado por telefone satélite ainda em águas territoriais da Líbia, dando conta do naufrágio iminente de duas embarcações em borracha pneumática – uma com 101 e outra com 109 pessoas a bordo. Os imigrantes foram levados para o porto siciliano de Trapani por um navio de Malta. Outros 118 imigrantes em risco foram recuperados por uma embarcação com pavilhão das Bahamas e conduzidos para Porto Empedocle, na Sicília. E finalmente, dois barcos com 65 e 110 indivíduos a bordo foram arrastados pela Marinha italiana até Siracusa, na costa leste daquele arquipélago. Na semana passada, um incêndio a bordo provocou uma das maiores tragédias marítimas da história recente, com 339 pessoas a perder a vida no naufrágio de uma embarcação que zarpou da capital da Líbia com mais de 500 imigrantes. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, cerca de 32 mil imigrantes desembarcaram nos portos italianos e em Malta este ano. Dois terços requisitaram asilo na União Europeia.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave mulheres
Isto não tem de ser assim
A cada vez que há novas tragédias no Mediterrâneo, muitas pessoas têm a sensação de que o que se passa é uma fatalidade, algo contra o qual muito pouco podemos fazer, um fenómeno incontrolável e regular como as estações do ano. Nada disto é verdade. Há abordagens que permitem minimizar — e até erradicar — os naufrágios de migrantes no Mediterrâneo e as suas consequências. Há enquadramento legal europeu que permite pelo menos começar esse trabalho, e facilmente poderia haver legislação abrangente para lidar globalmente com esta questão. E há até dinheiro no orçamento comunitário para financiar estas operações. O q... (etc.)

Isto não tem de ser assim
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
TEXTO: A cada vez que há novas tragédias no Mediterrâneo, muitas pessoas têm a sensação de que o que se passa é uma fatalidade, algo contra o qual muito pouco podemos fazer, um fenómeno incontrolável e regular como as estações do ano. Nada disto é verdade. Há abordagens que permitem minimizar — e até erradicar — os naufrágios de migrantes no Mediterrâneo e as suas consequências. Há enquadramento legal europeu que permite pelo menos começar esse trabalho, e facilmente poderia haver legislação abrangente para lidar globalmente com esta questão. E há até dinheiro no orçamento comunitário para financiar estas operações. O que falta? Vontade política e assunção de responsabilidades. Mas já lá iremos. Em primeiro lugar, importa precisar que os náufragos do Mediterrâneo não são “ilegais” nem “clandestinos”. Até os recebermos e processarmos os seus casos, são migrantes — simples humanos deslocados. A Convenção de Genebra sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1951, e de que todos os países europeus são signatários, não permite repelir ou rechaçar estas populações antes de chegarem às nossas fronteiras (princípio de “non refoulement”, ou não-repatriamento) e serem inquiridos pelas autoridades competentes. Só depois se pode precisar se estamos a falar de refugiados, requerentes de asilo ou emigrantes voluntários, e só neste último caso o repatriamento pode ser aplicado. Em segundo lugar, importa notar que uma grande proporção dos náufragos no Mediterrâneo é, quase de certeza, de refugiados. Com guerras, ditaduras e conflitos por vezes atrozes pelo menos na Síria, Eritreia, Iraque, Líbia, Palestina, Egito e Etiópia, há razões bem fundadas para admitir que muitos dos procedentes destes países estejam em condições legais de serem reinstalados na União Europeia. Em terceiro lugar, algumas destas pessoas pertencem a categorias prioritárias que já deveriam estar a ser reinstaladas. Estamos a falar dos mais vulneráveis entre os vulneráveis: mulheres e crianças vítimas de violência sexual, pessoas sob ameaça de morte, ou padecentes de doenças que não podem ser tratadas nos campos de refugiados ou nos países de trânsito. As leis da União Europeia sobre o Fundo Europeu de Refugiados (hoje Fundo para o Asilo e Migração), de que sou um dos co-autores, reservam um orçamento específico para estes casos prioritários, amplamente suficiente para reinstalar bem mais do que todos os mortos no Mediterrâneo, e que é majorado para os países que queiram pela primeira vez fazer reinstalação de refugiados (em 2013, o remanescente deste dinheiro foi até especificamente destinado a países como Portugal e a Irlanda, mais afetados pela crise). E aqui chegamos ao ponto da vontade política. Muitos países do centro da Europa — alguns deles beneficiários de generosas políticas de acolhimento de refugiados no passado — temem o impacto político destas soluções, e acima de tudo opõem-se à aplicação do “princípio da solidariedade” (art. 80 TFUE) nas políticas europeias sobre migrações. Portanto, quando falamos de “inação europeia”, deveríamos antes falar de “inação dos estados europeus”. Mas não tem de ser assim. Espero que Portugal aja de forma diferente e se disponibilize para receber os sobreviventes do naufrágio deste domingo. O sinal político seria importante.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte humanos violência sexual mulheres
Marinha italiana resgata 170 crianças que viajavam em embarcações ilegais no Mediterrâneo
A marinha italiana resgatou em apenas dois dias cerca de 1000 imigrantes ilegais, incluindo 170 crianças. As duas embarcações de madeira foram encontradas ao sul da cidade de Capo Passero, Sicilia. Na segunda-feira resgataram aproximadamente 488 imigrantes, incluindo 133 crianças e 62 mulheres, já esta terça-feira o barco de patrulha italiana San Giorgio resgatou 462 imigrantes de um outro barco: 37 eram crianças. Em comunicado, a Marinha italiana anunciou ter localizado dois barcos de madeira com mais de 150 crianças a bordo e pelo menos 200 mulheres. A Marinha não confirma o número total de imigrantes ilegais n... (etc.)

Marinha italiana resgata 170 crianças que viajavam em embarcações ilegais no Mediterrâneo
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.25
DATA: 2014-05-21 | Jornal Público
TEXTO: A marinha italiana resgatou em apenas dois dias cerca de 1000 imigrantes ilegais, incluindo 170 crianças. As duas embarcações de madeira foram encontradas ao sul da cidade de Capo Passero, Sicilia. Na segunda-feira resgataram aproximadamente 488 imigrantes, incluindo 133 crianças e 62 mulheres, já esta terça-feira o barco de patrulha italiana San Giorgio resgatou 462 imigrantes de um outro barco: 37 eram crianças. Em comunicado, a Marinha italiana anunciou ter localizado dois barcos de madeira com mais de 150 crianças a bordo e pelo menos 200 mulheres. A Marinha não confirma o número total de imigrantes ilegais nas embarcações, mas estima-se serem aproximadamente 1000 as pessoas que foram resgatadas. Uma das embarcações sofreu uma avaria e teve mesmo que ser rebocada, acrescentaram as autoridades italianas. Não há qualquer morte confirmada. As operações de resgate foram prejudicadas devido aos mares revoltos e só terminaram no fim da manha de terça-feira. A organização não-governamental Save the Children está bastante preocupada com esta situação já que o número de menores que estão a imigrar sem qualquer acompanhamento parental tem aumentado “gravemente”. Enquanto a maioria das crianças com menos de 10 anos que chegam a Itália vêm com as suas famílias, muitos adolescentes estão a viajar sozinhos e a Save the Children denuncia que não há instalações adequadas para os acomodar e proteger. O aumento da imigração ilegal para Itália tem sido gritante. Segundo a agência noticiosa Associated Press, chegaram este ano a Itália mais de 26 mil imigrantes ilegais até agora, o que corresponde a um aumento de 850% em relação ao mesmo período do ano passado. O ministro do Interior italiano, Angelino Alfano, é da opinião que o seu país deve desafiar as regras impostas pela União Europeia no que concerne ao asilo dos imigrantes ilegais, se não conseguir mais ajudas em relação ao patrulhamento das fronteiras marítimas italianas. "Nós vamos deixá-los ir ", afirmou, referindo-se a um acordo da EU em que os imigrantes devem permanecer no país a que chegam até o seu estatuto de refugiados estar concluído. As autoridades italianas acreditam que grande parte dos resgatados nestes dois dias provém da Síria, fugindo da guerra. Os restantes são do Egipto e Bangladesh. Segundo a agência de fonteiras da EU, o número de imigrantes sírios que tentaram passar ilegalmente as fronteiras europeias cresceu aproximadamente 300%. Em 2012 foi cerca de 7 mil e 500, já em 2013 o número ultrapassou mesmo os 25 mil. Ainda não há previsões para este ano, mas acredita-se que devido à continuação do conflito sírio, o número deverá aumentar drasticamente.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte guerra imigração mulheres ilegal
As mulheres por trás da queda da mais poderosa das máfias
Boas e más mães, avós que usam netas para chantagear filhas até à morte, homens que vêem as mulheres como submissas. A Itália da ’Ndrangheta no livro As Boas Mães. Lê-se como um romance, se esquecermos que cada palavra é real. (...)

As mulheres por trás da queda da mais poderosa das máfias
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 12 | Sentimento 0.133
DATA: 2018-10-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Boas e más mães, avós que usam netas para chantagear filhas até à morte, homens que vêem as mulheres como submissas. A Itália da ’Ndrangheta no livro As Boas Mães. Lê-se como um romance, se esquecermos que cada palavra é real.
TEXTO: Esta é uma história de mulheres. De mães. De filhas. Chama-se As Boas Mães. “Para as boas filhas”, escreveu o jornalista Alex Perry na dedicatória. Porque há uma filha que acaba o que a mãe começou em vida e outras se seguirão. Porque a mãe, “figura sagrada”, era, afinal, o caminho para quebrar uma “tirania misógina”, como percebeu a procuradora antimáfia Alessandra Cerreti. “As mulheres não importam”, costumavam dizer os colegas de Alessandra. “Os homens italianos subestimam todas as mulheres. É um verdadeiro problema”, comentou a procuradora a Perry (os dois conversaram oito horas ao longo de um ano). Esta é a história da ’Ndrangheta, a máfia da Calábria, a ponta da bota apontada à Sicília, a máfia que se tornou (quase) impenetrável por fazer da “família a base do seu poder”. Que cresceu incógnita durante 150 anos até se tornar numa “organização criminosa quase tão perfeita quanto alguma vez eles [os procuradores] viriam a encontrar”, com presença em 120 países e lucros superiores aos da Microsoft. Isto enquanto a Cosa Nostra (Sicília) e a Camorra (Nápoles) inspiravam filmes de Hollywood e sacríficos de juízes de verdade nas guerras dos anos 1980 e 1990. As Boas Mães é tragédia e absolvição, sangue e coragem. É mito: ao nascer enquanto a Itália era unificada, na segunda metade do século XIX, e no Sul do país, onde ainda hoje há quem se sinta ocupado e sempre ressentido em relação no Norte, rico (onde muitos olham para o Sul como o parente pobre que é preciso ajudar), os mafiosos calabreses (como os sicilianos) apresentam-se como valentes e honrados, a alternativa ao Estado ausente. Rufias transformados em herdeiros de cavaleiros andantes medievais, uma Sociedade Honrada baseada na defesa mútua, uma irmandade ferida que acalentara um sentimento de revolta justa e uma lealdade à prova de bala. Rituais supostamente antigos ditavam que os bebés filhos de um chefe fossem postos à prova logo depois de nascerem: “Um rapaz seria deitado a espernear e a gritar numa cama, com uma chave junto à mão esquerda e uma faca junto à direita, a representar o Estado e a máfia. O primeiro dever de uma mãe da ’Ndrangheta era garantir que, com toques cuidadosos, o filho agarrava na faca e selava o seu destino”. “A ’Ndrangheta não tinha tradição. Tiveram de inventar uma”, escreveu um dos principais historiadores italianos da máfia, Enzo Ciconte, citado por Alex Perry. A verdade é que a máfia nasceu na prisão, onde criminosos comuns contactaram com revolucionários burgueses, muitos deles maçons. Cá fora, apropriações de terras, exigência de dinheiro por protecção a cada negócio do bairro, subornos às autoridades; aldeias, vilas, lugarejos de montanha longe de tudo. “Uma terra à parte”, com “vales só acessíveis a partir do mar”, “encostas íngremes”, “pinhais cerrados”, famílias que ali viveram séculos sem ninguém para as defender. Para ajudar, um idioma arcaico – o grecânico, herdado da Idade Média, quando a Calábria fazia parte do Império Bizantino. Um nome: ’Ndrangheta, do grego andraganthateai, “sociedade de homens de honra e valor”. Uma farsa, bem montada. O dinheiro por protecção, pizzo, já não só da pizzaria mas também da protecção de bens, propriedades, perseguição de bandidos, arbitragens de disputas. “Um objectivo central de todas as máfias era criar um consenso em torno do poder. Sempre que surgia a questão do poder – político, económico, social, divino – a resposta tinha de ser a máfia”, descreve Alex Perry. “Era uma ventura peculiar das máfias italianas que as circunstâncias conspirassem para enxertar o seu empreendimento na mais duradoura das estruturas de poder da Itália meridional: a família. ” E assim se fundou uma hierarquia e um secretismo assente em relações de parentesco. Com o tempo, uma hierarquia mais complexa, mas sempre baseada na “lealdade ao sangue e à terra pátria”. A omertà. Lea Garofolo nasceu na máfia, na família. Era uma princesa, uma Garofolo de Pagliarelle, da aristocracia da ’Ndrangheta da costa oriental. Cresceu para se tornar numa bela mulher, uma silhueta esguia, maçãs do rosto definidas, cabelo preto e forte, elegância natural. O pai foi morto por três membros de um clã rival quando ela tinha oito meses, na véspera da passagem de ano de 1974. Ficou-lhe a mãe, o irmão mais velho, Floriano, a irmã, Marisa. Cresceu ao ritmo de mortes de familiares, vinganças pela vendeta lançada pelos Garofolo. Aos nove anos, escondeu uma pistola a pedido de Floriano. A mãe era uma excepção na ’Ndrangheta, casara nela mas não deixara de trabalhar e ensinou-lhe que “educação era liberdade e sustentar a família era o que conferia dignidade à mulher”. De alguma forma, Lea sempre viu “para lá da mentira”, sabendo que tinha de abafar a raiva pela morte do pai e fingir, todos os dias. Para ela, “a ’Ndrangheta era um culto da morte e Lea era uma mulher que adorava a vida; a ’Ndrangheta determina o seu destino por ti, Lea queria planear o seu próprio destino”, descreve Vincenza Rando (Enza), a primeira advogada de Lea. “Não se vive. Apenas se sobrevive de alguma maneira. Sonha-se com alguma coisa – qualquer coisa – porque não há nada pior do que essa, vida”, diria Lea aos carabinieri, em 2002. Parecia ter tudo para fugir ao seu destino. E no entanto. . . “É a tragédia destas mulheres. Mesmo ela, que viveu sempre com consciência do certo e do errado, do que queria. Apaixonou-se a pensar que assim fugia. Carlo parece amá-la. Denise acredita nisso [como Lea acreditara, em adolescente, tanto, até descobrir que ele estava com ela para subir na hierarquia, com a bênção do irmão]. E ela cai na armadilha. Há coisa mais trágica? No nosso tempo. Isto ainda acontece. Se pensarmos, é incrível”, diz Perry em Lisboa, à conversa quase no fim de umas férias de Verão com base em Sintra. Britânico, jornalista de investigação, Perry foi correspondente ou enviado a quase meio mundo. E nunca tinha ouvido falar da ’Ndrangheta até dar consigo na Sicília, a trabalhar numa história sobre refugiados e imigrantes em 2015, quando percebeu que a máfia calabresa dividia com outras organizações a gestão dos centros onde ficavam alguns dos que ali desembarcavam. “Só isso foi uma revelação. Não tinha noção que a máfia italiana tivesse esse nível de penetração”, conta. Quis saber mais. “Perguntei à jornalista italiana que trabalhava comigo se me ajudaria a perceber melhor como funcionava a ’Ndrangheta. Ela aceitou, em troca de 150 dólares e do meu compromisso em assistir a uma peça de teatro em Roma. ”E foi assim que Perry deu consigo num espaço algo degradado. A peça era um monólogo, uma mulher a contar a sua vida, não percebeu muito mais. No fim, a jornalista pediu-lhe que subisse ao palco e dessa a sua opinião sobre a peça e a ’Ndrangheta. “Uma vergonha. Não tinha percebido nada e ainda não sabia quase nada”. Em palco tinha acabado de assistir à história de Maria Concetta Cacciola, Concetta ou ’Cetta, uma das “boas mães”, com um fim absolutamente trágico, como Lea e ao contrário de Giuseppina Pesce, a sobrevivente entre as três mulheres que decidiram denunciar a ’Ndrangheta, quebrar a omertà, e ocupam grande parte deste livro. E foi assim que Perry decidiu ficar em Itália. “Era tudo absolutamente fascinante e irreal. Na Europa, no século XXI, tão desconhecido. Os italianos tinham acabado de acordar para esta realidade. ”Concetta, Giuseppina e Lea. Três das “boas mães” cujas vidas ficamos a conhecer com o pormenor possível (e é muito o detalhe a que Perry chega) – antes também as houve, nenhuma com a importância de Lea, a primeira destas três, a primeira princesa da ’Ndrangheta a denunciá-la – depois haverá mais, sempre mais. Lea mostra que é possível, Giuseppina que se pode fazê-lo e sobreviver, salvando os filhos de caminho. Há uma quarta “boa mãe”, sem filhos, Alessandra, que acaba por desenvolver uma relação maternal com Giuseppina. “É verdade. Ela emprestou-me o diário dela. E quando li que sentia uma ligação quase umbilical a Giuseppina… Pensei, ‘olha, a Alessandra com sentimentos maternos, afinal, ela também é capaz”, diz Perry. Porque Alessandra fez as suas escolhas. Ser procuradora antimáfia significa viver sob segurança permanente, numa espécie de bunker hiperprotegido, em Milão, onde fez os seus estudos e começa a sua carreira, apesar de ter nascido no Sul (no porto siciliano de Messina), onde conseguirá ser colocada para as primeiras guerras que o Estado trava e ganha à ’Ndrangheta. Alessandra, hoje com 50 anos, sempre soube que não teria filhos. Alessandra tem as suas particularidades: quando a professora pediu à turma de oito anos que fizessem uma redacção sobre o que queriam ser quando crescessem, enquanto as colegas deram conta de sonhos de princesas ou astronautas, ela deixou claro que não iria para longe. “Quero ser procuradora de acusação à máfia”, escreveu. “Quero pôr bandidos atrás das grades. ”“A questão de não ter filhos não parece ser um sacrifício. Ela fala disso como uma consequência natural, sem nenhum drama. É uma mulher dura”, diz Perry. “Sim, sentir-se a ganhar afeição a Giuseppina não terá sido fácil. Ela estabelecera muito bem as regras, as defesas, a ideia de que não podia sentir emoções. Penso que ainda gere essas contradições. Mas elas continuam próximas. Telefonavam-se quase todos os dias, julgo que ainda acontece. ”O livro de Perry começa com os últimos dias da vida de Lea, finais de Novembro de 2009, em Milão. E acaba com o seu funeral, na mesma cidade, a 19 de Outubro de 2013, depois de terem sido encontrados os seus restos mortais, quando a filha, Denise, entra definitivamente no programa de protecção de testemunhas onde passara anos na companhia da mãe. “Obrigada por tudo o que fizeste por mim”, diz Denise, no funeral, então com 21 anos. “Obrigada por me dares uma vida melhor. Tudo o que aconteceu, tudo o que fizeste, sei agora que o fizeste por mim e nunca deixarei de te agradecer. ”Denise Cosco (do pai, Carlo Cosco) nunca mostra o rosto em público. Nem no funeral da mãe, presenciado por uma pequena multidão. Fala através de um altifalante sem que os presentes, muitos dos quais derramam lágrimas ao ouvi-la, alguma vez a vejam. Há imagens dessa despedida emocionada no YouTube. A voz de Denise cada vez mais embargada. “Ciao, Mama”, despede-se, entre bandeiras com o rosto de Lea e a frase “Oiço, vejo falo”, um lema que se tornou omnipresente nas concentrações contra a máfia, a par das fotos, de Lea, principalmente, mas também de Concetta ou Giuseppina. A vida de Lea é a que os italianos conhecem melhor. Apesar de ninguém para além dos próximos, de alguns polícias e procuradores terem ouvido falar dela quando morreu. Várias fotografias, de Lea e de Lea com a filha pequena, saíram entretanto em jornais, e a sua história, iniciada na Calábria e brutalmente interrompida em Milão, haveria de ser contada até que Lea se tornasse numa das poucas histórias capazes de unir a Itália. Um filme, uma série, peças de teatro, livros, reportagens, cartazes com o seu rosto em marchas e concentrações; parques, pontes e praças com o seu nome. Monumentos: em Petilia Policastro (Crotone, Calábria) surgiu uma estátua que representava uma bola a fender um rochedo em dois. A localidade, disse o presidente da câmara ao inaugurá-lo, seria para sempre um farol para “as mulheres de coragem” em toda a Itália. Autocarros alugados para levarem a Milão quem quisesse juntar-se ao luto vindo de Petilia e Pagliarelle, chegaram vazios. Mas centenas de calabreses estavam entre a multidão que trouxe flores e bandeiras com o rosto de Lea, num momento em que a Itália pareceu finalmente unida, toda a Itália junta, nas ruas da cidade. Do próprio funeral saíram mulheres prontas a denunciar o que sabiam e a libertar-se: Enza reconheceu uma mulher da ’Ndrangheta que seguiu da cerimónia para uma esquadra. “Ela disse ‘Lea ensinou-se a ser corajosa. Ela ensinou-me a ter coragem’”, disse-lhe esta mulher, haveria de contar Enza a Perry. 2009 a 2013. Estes são os anos em que a Itália e o mundo se apercebem do poder da ’Ndrangheta, do tráfico de armas e de droga, da compra de activos financeiros, como dívida, a outras organizações criminosas por todo o mundo. Os anos em que sem conseguirem nunca derrubar a hidra, os procuradores que se juntaram na Calábria conseguem abalá-la. Centenas e centenas de detenções, milhares de empresas e propriedades apreendidas, milhões e milhões de euros. Lea foge, denuncia o marido, Carlo Cosco, uma e outra vez. Quando engravida decide que vai dar o bebé para adopção e fugir para sempre; Denise nasce e ela apaixona-se. A primeira fuga é em 1996. Passa anos à espera que o seu testemunho seja avaliado, até o Estado decidir se merece entrar no programa de protecção, é encontrada e volta a fugir, e de novo isso se repete sem que o Estado nunca perceba como pode usar as informações de uma princesa da ’Ndrangheta. Há muito que escapa ao Estado. Declaram-na segura quando o irmão é morto, por exemplo, sem nunca perceberem que ele foi morto por não a matar. Lea volta para o marido sem voltar, aceita fazer as pazes, pela filha, volta a fugir quando se sente em perigo. Lea e Denise vivem como num jogo, mudam de casa, de cidade, de nomes, são como duas irmãs a viver uma vida só delas. Até que, em 2009, estava a filha a pensar onde faria a universidade, contando com a ajuda do pai, e Lea concorda com uma viagem a três a Milão, elas num hotel, ele no seu apartamento ou em trabalho, no prédio a partir de onde gere os negócios da ’Ndrangheta na cidade. Dias de passeios e jantares, muitos fingimentos. E Lea, que pedira a Denise “nunca te afastes de mim, és a minha salvação”, acaba por amolecer e aceitar um jantar a dois, ela e Carlo, na noite em que deverão apanhar o comboio rumo ao Sul, ela e Denise. Carlo convence a filha a jantar com familiares, ‘os teus tios e os teus primos têm saudades tuas”, diz-lhe. E quando ela se apercebe que só metade da família está por ali e que quem está nem lhe dá atenção, que há um entra e sai suspeito, quando ela tenta telefonar à mãe, pelas 21h, 21h30, já é tarde, o telefone que nunca era desligado por segurança já não toca. Alessandra chega à Calábria já conhecendo o testemunho de Lea e com a convicção que este é o caminho: as mães, a família que a ’Ndrangheta usou e perverteu, as meninas prometidas em casamento, as mulheres que nela (só) parecem pouco contra e pouco saber, são a base da besta. A intolerância violenta da ’Ndrangheta face às suas mulheres não era somente “uma tragédia”. Era “uma falha e podia tornar-se numa crise existencial”. “Libertar-lhes as mulheres é a maneira de derrubar a ’Ndrangheta”, acredita Alessandra. “Mais do que tudo, foi a história de Lea que comoveu a Itália. Se Concetta representava a tragédia e Giuseppina Pesce encarnava a resiliência, Lea era ambas as coisas. Ali estava uma mulher nascida na máfia que tentara escapar durante toda a sua vida. Ainda mais encurralada pelo casamento, encontrou a força para lutar no amor pela filha, antes de ser abandonada pelo Estado e levada a cair numa armadilha por um marido que fingiu ter-se apaixonado novamente por ela”, escreve Perry. “Era um melodrama épico com inflexões e reviravoltas tão inacreditáveis que as pessoas pareciam comparecer nas comemorações da vida dela, que se realizavam um pouco por todo o país a partir de 2013, só para se assegurarem que o tinham ouvido era verdade. ”Perry não oferece nenhum exclusivo no seu livro As Boas Mães – A história verdadeira das mulheres que enfrentaram a máfia mais poderosa do mundo. “Gostava de dizer que passei meses numa floresta a escutar conversar e a vigiar mafiosos. Não é verdade. Limitei-me a convidar procuradores para almoçar e a dar-lhes uma pen drive que eles me devolviam cheia de documentos”, diz, a rir. Não foi só isso, claro, mas percebe-se. Os procuradores em Itália guardam registos de todas as entrevistas com suspeitos ou denunciantes e podem divulgá-los assim que os processos avançam. Perry falou com eles e teve acesso a milhares e milhares de páginas: entrevistas, testemunhos, escutas. O que ele faz, magistralmente, é usar toda essa informação para nos contar uma história com sentido. “Se o que fiz tem algum valor é o de juntar muita informação dispersa encadeando-a e fazendo o retrato possível destas mulheres, da ’Ndrangheta e do combate que a Justiça travou. ” É precisamente isso que o livro faz. E não é nada pouco. É tanto que levou dois anos a conseguir. A ideia inicial era um artigo que “por sorte ninguém comprou”. Cresceu para um livro acabado de publicar no Reino Unido e em Portugal. E em Itália? “Não há interessados. Não percebem o que um 'não italiano' pode ter para dizer sobre estes temas, para acrescentar ao que que os italianos já sabem”, diz Perry. Aliás, esse preconceito esteve sempre presente na investigação. “A própria Alessandra, julgo que teve sempre muito medo do que sairia dali. Principalmente quando soube que no fim haveria um livro. ”Que o autor saiba, Alessandra (que Perry aprendeu a respeitar e a admirar, como se torna óbvio na conversa com o P2) ainda não terá lido As Boas Mães. “Devia enviar-lhe uma cópia, não era?” Era. Percebe-se que se há opinião que conta é esta, a de alguém com quem Perry deixou a conversa por terminar (“esteve sempre disponível, mas depois de vender os direitos da sua história para Hollywood não apareceu no último encontro”) e cuja “exigência e crivo” parecem impossíveis de satisfazer. Concetta hesita demasiado, foge de casa, volta para casa, foge de casa e às tantas regressa sabendo que será morta mas, sem conseguir estar longe dos filhos, acreditando que tem um ano, ano e meio de vida. Não tem. Quando diz à mãe que vai voltar a fugir e reafirmar tudo o que disse às autoridades traça o seu destino. Polícias e procuradores como Alessandra esperam em vão por um telefonema para a ir buscar a casa dos pais, a ela e aos filhos. O telefone nunca toca e Concetta acaba no banco de trás de um carro a caminho do hospital. Já está morta. Bebeu uma tal quantidade de ácido que ninguém conseguiria ingerir por vontade própria, tal seria o sofrimento. Giuseppina também avança e recua. É presa, quer falar, depois recua, a família faz com que publique um desmentido num jornal da Calábria, a mãe usa os seus três filhos (tantos como os de Concetta) para a chantagear. Telefones que não deveriam entrar na prisão fazem o seu caminho para servirem um propósito claro. Mais tarde, Alessandra e outros procuradores ouvirão estas conversas. Como as da mãe de Giuseppina com outros familiares – diálogos que darão a ouvir a Giuseppina, derradeira confirmação que está a ser enganada. Há um momento em que Giuseppina está prestes a sair do programa de testemunhas e Alessandra sabe que ficará à mercê da família. A procuradora quase enlouquece. Giuseppina fugiu-lhe, recusou assinar tudo o que denunciou. Mas quer salvá-la. Quando sabe que ela saiu para um último passeio com o homem por quem entretanto se apaixonou, compreende que tem ali uma oportunidade: ao afastar-se demasiado da casa de protecção viola as regras do seu estatuto, no último dia em que é obrigada a cumpri-las. Alessandra fala com o comandante de polícia da zona, quer que ele feche estradas inteiras para a deter. Ele recusa, mas põe polícias na estrada à procura do carro com o casal. Às tantas, Alessandra já está ao telefone com os agentes espalhados pelo caminho, grita-lhes, enervada, descreve uma e outra vez a mulher que devem procurar. Finalmente Giuseppina é detida, a tempo. É na prisão que Alessandra lhe dará tempo para pensar. Muito tempo. E Giuseppina acabará por encontrar a clareza de espírito necessária. A morte de Concetta, de quem fora amiga, ajuda. Subitamente não restam dúvidas. Só se salvará, a ela e aos filhos, se virar completamente as costas à família. Se os enviar a todos para a prisão por muitos anos. É isso que faz, 64 membros da sub-organização da ’Ndrangheta Pesce. Testemunha ainda no caso de Concetta. E vive. O pai de Concetta, Michelle Cacciola, ao saber da traição da filha, num episódio gravado: “Aquela merdosa desprezível!”, “Trabalhei 20 anos para ela!”, “Eles estão à espera que uma mulher me possa desgraçar. Mas que pode ela saber a meu respeito? Ela não sabe nada. O que pode uma mulher saber na minha casa? Acham que eu falei à minha filha no raio do meu negócio? Ela não sabe nada!”. Primeiro dia do julgamento do clã Pesce: “já sabiam que estavam a ser julgados por uma procuradora com base no testemunho de uma mulher”. Por alguma razão, no caminho para a sala do tribunal os réus depararam-se com uma proporção invulgar de mulheres entre funcionários, jornalistas, polícias, advogados… Quando “os juízes entraram, um presidente e dois assistentes, os ’ndranghetisti ficaram espantados ao ver mais três mulheres”. E gritaram. “Não! Não! Aquilo não!”“Uma sinfonia da libertação das mulheres”, diria Alessandra, a recordar o momento a Perry. “Giuseppina sabe que o que fez é mais uma sentença de morte. A traição dela tinha de ser castigada com a morte e teria de ser o irmão, alguém do mesmo sangue, a matá-la para restabelecer a honra da família. E um dia ele sairá da prisão”, diz Alessandra. Mas Giuseppina nunca mais voltou a duvidar de si mesma. “Para Giuseppina, o que ela fez foi um acto de amor para com os filhos. ” Escolheu a sua família. “Ela está óptima. Na verdade, penso que está feliz. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Denise libertou-se ao decidir testemunhar contra os assassinos da mãe. O pai, tios, mas também o jovem por quem entretanto se apaixonara, Carmine. Sim, Denise, que sempre soube que a mãe fora morta naquela noite (e que não fugira para a Austrália, como dizia Carlo) e decidiu fingir para não ser ela própria morta pelo pai, acaba por se apaixonar por um dos assassinos da mãe. Mas sobrevive. Ao contrário de Lea, está sozinha mas não está. A multidão no funeral. As cartas de admiração e agradecimento. As concentrações contra a máfia. “Oiço, vejo, falo”, a frase nas T-shirts com o rosto de Lea, a faixa sobre o caixão. No elogio fúnebre, Don Luigi disse que Lea não tinha mais que se preocupar. “Denise tem agora uma família com milhares de membros para cuidar dela. ”As detenções continuam, no início deste ano dezenas de pessoas foram presas com base nos testemunhos de Lea. E ainda não pararam de aparecer mais Leas.
REFERÊNCIAS:
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