Vírus da poliomielite já ameaça Europa
Organização Mundial de Saúde considera que propagação do “vírus da paralisia infantil” já se tornou num risco de saúde pública. (...)

Vírus da poliomielite já ameaça Europa
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2014-05-05 | Jornal Público
SUMÁRIO: Organização Mundial de Saúde considera que propagação do “vírus da paralisia infantil” já se tornou num risco de saúde pública.
TEXTO: Preocupada com o aumento dos contágios de poliomielite nos últimos seis meses, a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou esta segunda-feira o estado de emergência mundial, pedindo aos diferentes países uma "acção coordenada" no combate à disseminação do vírus. A detecção de vários casos da doença em mais de uma dezena de países levou a OMS a considerar que estes contágios podem representar uma ameaça à escala mundial, conforme sublinhou o director-geral adjunto da organização, Bruce Aylward, a propósito de uma decisão que foi tomada após várias reuniões do Comité de Emergência da OMS. “Uma resposta coordenada é essencial para parar a transmissão internacional do vírus”, enfatiza aquela organização, que procura, assim, fazer frente aos meses de maior transmissão do vírus, Maio e Junho. Causada por um vírus de fácil propagação, a poliomielite é uma doença do sistema nervoso que pode provocar paralisia permanente ou mesmo a morte, nos casos em que os músculos envolvidos no processo respiratório são também afectados. No final do ano passado, a OMS já tinha confirmado a existência de 223 casos de poliomielite. Cerca de 60% destes casos é resultado de uma propagação internacional, para a qual contribuíram em muito os viajantes adultos, nomeadamente porque a transmissão ocorre rapidamente por via das más condições de higiene, nomeadamente através da ingestão de líquidos ou de comidas contaminadas com fezes. Então, dois especialistas alemães em doenças infecciosas alertavam, num artigo publicado na revista médica The Lancet, para o risco de o vírus da paralisia infantil voltar a fazer vítimas, nomeadamente na Europa, que acolhe um grande número de refugiados sírios. Por isso é que, no final de Janeiro passado, a Direcção-Geral da Saúde determinou que todos os grupos de imigrantes, refugiados ou asilados que chegassem a Portugal oriundos de países de risco em relação à poliomielite fossem imediatamente imunizados com uma dose suplementar da vacina contra a doença que ataca sobretudo as crianças. Os especialistas alemães consideram, porém, que vacinar apenas os refugiados, conforme recomendado pelo Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças, é insuficiente. As preocupações quanto aos riscos crescentes de um regresso da poliomielite são tanto mais agudas quanto se sabe que países como a Bósnia, a Ucrânia e a Áustria têm uma taxa de cobertura muito fraca em termos de vacinação contra aquela doença. Às notícias do surto de poliomielite na Síria, onde a guerra civil agravou os problemas sociais com a consequente descida das coberturas das vacinas, seguiram-se outras dando conta da transmissão daquele vírus selvagem em Israel e na Palestina, enquanto o Afeganistão, a Nigéria e o Paquistão continuavam identificados como países com poliomielite endémica. Só este ano, precisa a OMS, o vírus propagou-se de três para dez países: do Paquistão para o Afeganistão, da Síria para o Iraque e dos Camarões para a Guiné Equatorial.
REFERÊNCIAS:
Entidades OMS
O momento dos Sessenta: nem apolíneo, nem dionisíaco
Devem os sessenta e “1968” ser tomados como catalisadores de mudança social ou como sintomas de dinâmicas já em andamento? Ou devem ser tomados antes como um momento de reforço do conservadorismo, não de ruptura? São muitas as questões que ainda hoje se encontram por responder. As respostas, quaisquer que sejam, devem decorrer do estudo de contextos sociais e históricos específicos, não da celebração acrítica ou da crítica infundada. (...)

O momento dos Sessenta: nem apolíneo, nem dionisíaco
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Devem os sessenta e “1968” ser tomados como catalisadores de mudança social ou como sintomas de dinâmicas já em andamento? Ou devem ser tomados antes como um momento de reforço do conservadorismo, não de ruptura? São muitas as questões que ainda hoje se encontram por responder. As respostas, quaisquer que sejam, devem decorrer do estudo de contextos sociais e históricos específicos, não da celebração acrítica ou da crítica infundada.
TEXTO: Em Israel, os anos Sessenta foram marcados pela “Guerra dos Seis Dias”, não por expressões de protesto juvenil ou profundas transformações sociais. A geração que é invocada, ainda hoje, é a de 67, não a de 68. A guerra ocupa e agita a memória colectiva e o modo como os Sessenta são interrogados. Não são os aspectos frequentemente associados às dinâmicas transformadoras dos sixties que estão no centro dessa interrogação. Tanto ali como nos países árabes envolvidos mais directamente no conflito – Síria, Egipto e Jordânia –, a década foi marcada por outros acontecimentos e deixou outros legados. Mas, apesar disso, há certos aspectos comuns que podem ser identificados. Por exemplo, no que diz respeito a formas de criativa expressão política e cultural. O acontecimento militar não deixou de motivar agendas pacifistas. Abie Nathan, conhecido activista israelita, falhou a missão de paz na sua viagem, não autorizada, ao Egipto em 1966, pilotando o seu avião Shalom 1 (“Paz 1”). Foi deportado por Nasser e preso à chegada a Israel. Não obstante, persistiu. Num país que apenas viu uma segunda estação de rádio ser permitida em 1960, fundou a rádio-pirata Voz da Paz em 1973, transmitindo desde o Navio da Paz, que comprou com a ajuda de John Lennon. Apenas deixou de transmitir a sua mistura de música pop com mensagens pacifistas, em árabe, hebraico e inglês, em 1993. Em 1977, organizou o enterro de brinquedos militares que previamente destruiu, alguns num programa de televisão. Terá gastado 4 mil dólares (3, 4 mil euros) a comprá-los. Em 1978 iniciou a sua primeira greve de fome, em oposição aos colonatos israelitas. Ao longo dos anos, participou activamente no apoio a vítimas de guerra e desastres ambientais, do Biafra à Nicarágua. Num outro sentido, o compromisso juvenil com o projecto sionista foi sendo objecto de questionamento crítico activo. O investimento na doutrinação dos jovens por parte das autoridades israelitas e as correspondentes expectativas de alinhamento ideológico e normativo, de forte cariz nacionalista, foram confrontados com vigor. A “geração expresso”, apodo de Arthur Koestler que Yizhar Smilanski, escritor e político israelita, colou depreciativamente aos jovens israelitas em 1960, não parecia responder aos mesmos incentivos. Para S. Yizhar (nom de plume) eles queriam algo “forte, rápido e barato”. O seu ataque aos “poetas da anexação” envolvia disputas literárias. Mas era muito mais que isso: era uma denúncia do aparente desinteresse pela defesa intransigente do colectivo “nacional”. Em 1961, por ocasião de dois encontros entre David Ben-Gurion e vários jovens intelectuais dos kibutz, entre os quais Amos Oz, o corte geracional no que dizia respeito à relação entre missão nacional e desenvolvimento pessoal era notório. A “geração de 48”, a que participou na “guerra da independência”, era vista como não tendo sucessora à altura. Para Ben-Gurion, era preciso “dizer-lhes como é”. Mas a resposta, dada pelo historiador Muki Tsur, era clara: “Por vezes ignoramos o facto que uma sociedade com a sua própria vida, as suas experiências, os seus próprios desejos, está a emergir nesta terra”. Era preciso dar-lhe voz. Contudo, em 1967, outros clamores se ouviram, parecendo anunciar uma nova geração, capaz, finalmente, de honrar a de 1948. Tal não impediu, claro, que expressões de descontentamento furassem o tom celebratório e vitorioso que predominava em Israel. A publicação do livro Siach Lochamim (“O sétimo dia”), três meses depois do fim da guerra, foi talvez o exemplo mais importante. Composto por inúmeros testemunhos de jovens, da “geração de 67”, reflectindo sobre os efeitos da guerra, o livro tornou-se um best-seller. Foi traduzido para várias línguas. Em 2015 tornou-se um documentário, que resultou de mais de 200 horas de gravações, Censored Voices. Ambos revelam o pulsar de uma sociedade em (relativa) transformação, marcada por inúmeras contradições, mas a dialogar, de modo crescente, com outros contextos. Sim, os Beatles foram impedidos de visitar o país em 1965, por não corresponderem aos critérios artísticos e culturais vigentes. Mas, em 1966, o governo liderado por Levi Eshkol aboliu o regime de conscrição e organização militar que vigorava desde 1948. Movimentos políticos de contestação como o socialista Matzpen começavam a ter alguma projecção pública. 1968 viu o surgimento de um primeiro canal de televisão, ainda que controlado pelo governo. No mesmo ano, Hanoch Levin, um dos mais importantes poetas e encenadores israelitas dirigiu uma peça de cabaré em Telavive: You, I and the Next War. Esta ecoava Brecht, escarnecia do nacionalismo jingoísta e do ethos militarista e lamentava a glorificação da morte. Veiculava ainda uma contestação às orientações colectivistas predominantes. O individualismo era valorizado, em detrimento do sacrifício em nome de um destino colectivo futuro. Um ano mais tarde, Yaakov Rotblit escrevia o hino do movimento pacifista israelita, Shir LaShalom (“Uma canção para a paz”). Em 1971, emergia uma organização de protesto em Jerusalém intitulada Black Panthers, composta por imigrantes judeus de segunda-geração provenientes do Norte de África e do Médio-Oriente. Com óbvia inspiração transatlântica e com alguma capacidade de recrutamento e projecção pública, denunciava as dinâmicas de desigualdade sócio-económica, de notória raiz étnica, que atravessavam a sociedade israelita, condenando os judeus Mizrahim (ou “orientais”) a posições de subalternidade, sobretudo face aos Asquenazes. Todos estes exemplos não significam, longe disso, o sucesso do movimento pacifista ou o gradual, mas imparável, efeito das energias transformadoras dos sixties ou de “68” na sociedade israelita. O pacifismo foi marginal. O feminismo também: as mulheres parecem ter tido um lugar residual nos movimentos de protesto de então. O questionamento do nacionalismo foi igualmente pouco saliente. A Nova Esquerda era olhada com enorme desconfiança. Nem os elogios de alguma esquerda aos kibutz era vista como aliciante. De facto, a mesma desconfiança era dirigida a todos os argumentários que propalavam qualquer espécie de comunitarismo: muita da juventude israelita lutava contra tendências colectivistas e privilegiava a realização pessoal. A fractura geracional foi, também, pouco significativa. Numa palavra: houve e não houve “1968” em Israel. Esta é a história a contar, uma que resiste a operações de simplificação histórica ou memorial. Ressalvando as numerosas diferenças, análises semelhantes podem ser feitas a respeito do Egipto, dos territórios da Palestina, da Síria ou do Líbano. Inúmeras ambiguidades, consequências inesperadas ou improvisações podem ser identificadas. Vários realinhamentos ideológicos e políticos ocorreram, nem sempre de leitura clara. Todas estas dinâmicas foram em parte estimuladas pela guerra. Mas foram decerto condicionadas, e muito, por circunstâncias locais, algumas de longa gestação. Por exemplo, nestas sociedades, questões associadas às relações de género e à sexualidade emergiram com algum vigor no debate político, em parte em razão de tentativas de compreender o desfecho negativo de 1967. O caso do polémico livro de Sadiq Jalal al-Azm, Al-Nakd al-Dhati Ba’da al-Hazima (“Auto-crítica depois da derrota”), publicado no rescaldo do conflito (1968), é particularmente revelador. O conflito criou um espaço de mobilização crítica considerável, que partilhava alguns tópicos comummente associados aos sixties de outras paragens. Sadiq Jalal al-Azm propunha visões secularistas e a igualdade de género como sendo fundamentais para a transformação significativa do “mundo árabe”. Ao mesmo tempo oferecia um diagnóstico crítico das causas da derrota (hazima). Os bloqueios vários das respectivas sociedades, a começar pela questão das mentalidades, eram, no seu entender, as verdadeiras causas da hazima. Não é de estranhar que, anos mais tarde, tenha sido um dos críticos mais ferozes do Orientalismo de Edward Said. No Líbano, a “libertação sexual” acompanhou o retrocesso da moralidade conservadora, parcialmente decorrente da agenda modernizadora e secularizadora que, de modo diverso, percorria o “mundo árabe” nos sessenta e, de modo mais evidente, após 1967. Mais uma vez, o processo deveu mais aos efeitos do conflito do que propriamente à difusão de uma onda global de contestação. Mais, a dita “libertação” decorreu, em parte, à custa de uma degradação da condição da mulher, ainda presa numa sociedade patriarcal e de privilégio masculino. A vincada desigualdade de género filtrou a mudança de valores, gerando consequências para alguns inesperadas, por muitos (homens) aproveitadas. Por vezes, a “libertação” de uns acarreta apenas a redefinição do que aprisiona outros. Essa mesma sociedade que, em razão das notórias dificuldades financeiras e dos persistentes condicionalismos religiosos e morais, não oferecia estruturas médicas capazes de responder ao acréscimo de abortos com um mínimo de condições. E, tal como no “ocidente”, ao contrário da vulgata que a romantiza ou a diaboliza, a “revolução sexual”, grande parte das vezes decorrente sobretudo de formas legalistas de “emancipação”, teve um impacto muito desigual, em função de diferentes universos sociais, culturais e económicos. Quem tinha acesso privilegiado às tecnologias contraceptivas? Quem as podia pagar?Outras manifestações críticas ocorreram nestas sociedades, revelando a dificuldade em destrinçar o sentido de certos fenómenos sociais. A “geração Nakba”, na Palestina, foi questionada, de modo recorrente e crescentemente organizado. A criação da Frente Nacional para a Libertação da Palestina e da Frente Democrática para a Libertação da Palestina são apenas dois exemplos. Esta última teve os sírios Sadiq Jalal al-Azm e Saadallah Wannous como fundadores. Wannous, famoso dramaturgo, foi responsável pelo chamado teatro de politização, que visava torná-lo num instrumento de mudança social e política comprometido, resgatando-o, ao mesmo tempo, ao que considerava ser uma letargia criativa. Um pouco por toda a Síria (e o “mundo árabe”), o campo artístico foi afectado por novos olhares e vozes. O mesmo sucedeu com a multiplicação de tendências modernizadoras no campo político e social. No Egipto, ao lado de revoltas estudantis, beneficiárias das consequências políticas da revolução de 1952 e depreciadoras da dimensão política e militar do envolvimento do país, a revista iconoclasta Galliri 68 (“Galeria 68”) congregava visões críticas, políticas e artísticas, em resposta, sobretudo, ao desfecho de 1967. Motivações políticas, artísticas, sexuais, estéticas, sociais, ideológicas, económicas e até pessoais interagiam. Não podem ser reduzidos nem à guerra, nem à apropriação linear de ventos externos de mudança. É a sua combinação variável e o seu contexto que contam. Que significado tiveram os sessenta e 1968 para quem estava num dos campos de refugiados – por exemplo os de Wadi Dlails ou Baquar, na Jordânia – após o conflito de 1967? O que significou para os milhares de refugiados a visita de Jean-Paul Sartre e de Simone de Beuavoir a Gaza, em Março de 1967? Que fizeram eles com termos como “alienação” ou “conflito de gerações”? Talvez as respostas a estas perguntas sejam bem mais importantes do que enclausurar a história dos sessenta entre o preto e o branco, ou entre leituras que neles tudo ou nada vêem. Entre a mitologia e a memorialização. O que significaram os “sessentas” é uma pergunta que se pode colocar tendo por referencial múltiplas geografias e temas. Feita a pergunta a um “ocidental”, esta seria a década em que a psiquiatria se viu fundamentalmente abalada nos seus alicerces. Simbolizada pela aglomeração de pacientes em unidades de dimensões consideráveis e pela utilização de técnicas como a lobotomia e a aplicação de electro-choques, a psiquiatria viu a sua legitimidade posta em causa. Intelectuais como Michel Foucault ou praticantes como Ronald Laing forçaram o repensar profundo das noções de saúde e doença mental e do que era, de facto, o “normal”. Contribuíram para o que outro psiquiatra cunhou vagamente como anti-psiquiatria. Resultado de tendências várias de desconfiança em relação à obediência cega à autoridade, de combate à coerção e ao controlo, o movimento desenvolveu-se um pouco por todo o mundo “ocidental”. Olhando para a icónica figura do hospício como um aparato de disciplina social, espelho de uma sociedade que visava, de forma insidiosa e rotineira, controlar não só a esfera pública como também a privada, figuras como Laing questionaram concepções estabelecidas sobre doenças como a esquizofrenia. Denunciaram os mecanismos de construção social que estavam associadas ao seu diagnóstico e ao seu putativo tratamento. Propuseram ainda hipóteses alternativas de lidar com o sofrimento psíquico. Livros como One Flew Over the Cuckoo's Nest (1962) de Ken Kesey (que participou em estudos governamentais envolvendo drogas alucinogénias) ou o relato do percurso biográfico da irmã de John F. Kennedy, que sofrera uma lobotomia que a deixaria institucionalizada para o resto da vida, são apenas dois exemplos de episódios que espelham os desafios que a psiquiatria enfrentou. Este é, em traços largos, um possível resumo da história da psiquiatria enquanto objecto de debate público nos anos sessenta. Ela promove uma ideia de ruptura e crítica de consensos vigentes. Mas esta é uma história incompleta. Noutras latitudes, o questionamento da psiquiatria seguiu outros caminhos. Em 1961, a Primeira Conferência Psiquiátrica Pan-Africana decorreu em Abeokuta (Nigéria), tendo como um dos principais organizadores Thomas Adeoye Lambo. Lambo foi o primeiro nigeriano a receber formação em psiquiatria e, mais tarde, ocupou o cargo de director-geral adjunto da Organização Mundial da Saúde. A conferência visava olhar para o impacto das importantes transformações sociais e económicas que marcavam a generalidade do continente, resultado em parte dos esforços do colonialismo tardio, e prosseguido pelos Estados pós-coloniais, de “modernizar” as sociedades africanas. Mas a descolonização plena era o que estava em jogo. Não se tratava apenas da criação de um novo hino e de uma nova bandeira. O trabalho dos chamados “etnopsiquiatras” coloniais tinha contribuído para o reforço de um conjunto de categorizações sobre a mente e a saúde mental dos africanos. Postulava que a esquizofrenia seria mais prevalecente entre os africanos dado o seu carácter “primitivo”, logo infantil. Entre estes, os chamados “destribalizados”, ou seja, os que tinham abandonado as suas comunidades “tradicionais”, constituíam um caso de particular preocupação. Situados num limbo entre “tradição” e “modernidade”, aparentavam ser presas fáceis. Em sentido contrário, a depressão, asseverava-se, era menos frequente em africanos por força do seu carácter pouco dado à auto-reflexividade. A explicação colonial para a situação mental dos “africanos” fundava-se numa crença da importância dos factores culturais face à saúde psíquica de grupos humanos diferenciados. O que Lambo e outros procuraram fazer foi abanar as bases deste princípio. Por exemplo, o facto de nos poucos hospícios existentes na Nigéria colonial não haver praticamente espaço para tratamento – estes eram essencialmente espaços de repressão – fazia com que todos aqueles que tivessem um comportamento “desadequado” ou violento fossem classificados como esquizofrénicos. Eram esses que maioritariamente eram internados e, logo, entravam nas estatísticas, aumentando de forma extraordinária, e errada, as taxas de prevalência da esquizofrenia nas sociedades africanas. Ao mesmo tempo, dado que a depressão não apresentava necessariamente um perigo para a ordem pública, raramente era registada. Os dados coloniais a partir dos quais estes problemas eram interpretados eram mais que questionáveis. Lambo e outros procuraram “universalizar” a doença mental, negando uma especificidade africana. Através de estudos baseados numa psiquiatria transcultural, envolvendo casos das mais diversas partes do mundo, procuraram demonstrar que a doença mental era, e é, parte integrante da natureza humana, a sua incidência e prevalência não sendo essencialmente afectadas por factores raciais (culturais ou biológicos). Mais do que debater a fiabilidade dos estudos feitos por estes psiquiatras nigerianos que, reforce-se, estavam plenamente integrados em redes transnacionais de especialistas, os seus esforços são uma importante janela para uma visão poliédrica sobre a forma como os anos 60 podem ou não ser pensados como época de ruptura, e sobre que tipo de ruptura. Estes casos demostram vários aspectos fundamentais para a compreensão dos problemas que o estudo dos sixties e de 1968 suscitam, finalmente a ser interrogados com um módico de rigor. Através da inquirição de múltiplas fontes e não sobretudo ou apenas dos testemunhos dos diretamente envolvidos ou interessados na gestão do seu significado. As novas investigações lidam melhor com a espessa retórica política e ideológica, pública e publicitada, de então e de hoje. Como afirmou Gerry DeGroot, “depois da década ter morrido, reemergiu de novo como religião”. Os Sessentas têm sido mais rigorosamente contextualizados, por relação com processos históricos contemporâneos como as dinâmicas de emancipação do dito “terceiro mundo” ou a competição bipolar entre modelos de modernidade. As suas cronologias e principais manifestações têm sido revisitadas. Tornam mais fácil resistir à dramatização, glorificação, ou singularização do ano ou da década. Alguns destes aspectos foram tratados, com originalidade e propriedade, por Arthur Marwick, no seu The Sixties. Cultural Revolution in Britain, France, Italy, and the United States, 1958-1974 (1998). Apesar do foco em dinâmicas culturais, arriscando com isso a parcial despolitização do período, o seu livro sublinhou dois aspectos importantes. Reiterou os benefícios da comparação, método correctivo de discursos de excepcionalidade, tão importantes na mitologização e memorialização enquanto instrumentos para formação e preservação de identidades sociopolíticas ou geracionais. Demonstrou ainda a necessidade de redefinição dos enquadramentos cronológico e social a partir dos quais a “revolução cultural” pode ser escrutinada. Como a propósito da “libertação sexual” no Líbano, uma reflexão sobre as transformações culturais do período tem de interrogar todo o campo sociocultural, não apenas os espaços restritos da vanguarda ou das elites. Marwick perscruta o quotidiano de quatro sociedades, identifica temporalidades distintas, mobiliza diferentes observatórios sociais, aborda diversas práticas culturais. Transformou, de modo decisivo, o estudo dos sixties, chamando a atenção para a centralidade dos símbolos, rituais e performatividade do protesto, das estratégias comunicacionais, das disputas identitárias. Talvez tenha falhado na capacidade de alargar a análise a outros contextos que não os “ocidentais”, mas resgatou os sessenta da alta-cultura, da alta-política (mesmo a protagonizada por pretensos “subalternos”), do grande acontecimento. Mutações nas normas sociais e práticas culturais ou nos padrões de consumo foram tão ou mais decisivas na definição dos “longos sessenta”. Indo um pouco mais longe: devem os sessenta e “1968” ser tomados como catalisadores de mudanças societais ou como sintomas de dinâmicas já em laboração? Ou, como alguns argumentam, um momento de intensificação conservadora? Ou devem ser antes escrutinados a partir do estudo do confronto político e social entre as forças da mudança e as do status quo? As respostas, quaisquer que sejam, decorrem necessariamente dos contextos sociais e históricos precisos sob análise. Por exemplo, nos EUA, 1968 é também o ano da morte de Martin Luther King e de Robert Kennedy, ou do “cerco de Chicago”, que captou a atenção de Norman Mailer. Sucedendo a The Armies of the Night, que um ano antes se debruçara sobre o movimento contra a guerra no Vietname, o seu Miami and the Siege of Chicago lançava um olhar crítico sobre a sociedade, interpelando esta a partir do rico observatório das convenções democratas e republicanas no Verão de 1968. E a década começou com a criação da Young Americans for Freedom, vincadamente conservadora, guiada pelos princípios consagrados pelo Sharon Statement, lavrados em casa de William F. Buckley em 1960. Buckley, cuja fulgurante projecção pública muito deveu à série de confrontações televisivas e literárias com Gore Vidal, popularizou a combinação entre conservadorismo social, liberalismo económico e anti-comunismo que pautaria o pensamento republicano até aos anos 80. Da África do Sul à Grécia, a repressão foi a norma, não a excepção. No plano da sexualidade, os motins do Stonewall Inn (1969), em Greenwich Village, Nova Iorque, foram um evento relevante na demorada conquista de direitos civis e sexuais pela comunidade homossexual. Mas o seu impacto não foi imediato. Não beneficiou todos igualmente. E muito menos foi global. Mesmo se nos ativermos aos grupos sociais normalmente enunciados como sendo as forças motrizes dos sixties, como as mulheres e os estudantes, reconsiderações e matizações talvez sejam necessárias. Como interpretar, por exemplo, o poderoso movimento de mulheres que surgiu no Brasil no início dos anos 60 tendo por fim contestar o governo reformista de João Goulart? Movimentos como a Campanha da Mulher pela Democracia multiplicaram-se um pouco por todo o Brasil, tendo por padrão partilhado a participação política de mulheres que se apresentavam como cristãs, como mães de família, e da nação, ou seja, reforçando papéis de género conservadores, contra o ateísmo comunista. Poucos dias antes do golpe de 1964, uma série destas organizações, de São Paulo a Curitiba, convocou uma poderosa Marcha da Família com Deus pela Liberdade, descentralizada, agrupando centenas de milhares de mulheres que protestavam contra o governo. Construíram as suas próprias redes transnacionais de protesto. Em 1967, realizaram o I Congresso Sul-Americano da Mulher pela Democracia, no Rio de Janeiro. Gravações, panfletos e técnicas usadas pelas activistas brasileiras foram partilhados com as suas congéneres chilenas, que lhes deram bom uso, como é sabido, nas manifestações contra Salvador Allende, mais tarde. E que dizer da Frente de Acção de Estudantes Anti-Comunista da Indonésia que preparou o terreno para a repressão brutal (meio milhão de mortos) que se seguiu à tentativa de golpe de 1965? Antes, envolveram-se em rixas contra o poderoso Partido Comunista da Indonésia, ao mesmo tempo que levavam a cabo iniciativas que visavam boicotar produtos culturais estrangeiros. Depois, prestaram-se não poucas vezes ao trabalho sujo de repressão que os militares lhes delegavam. Donde, só se pode concluir que reduzir a década à iniciativa de uns ou de outros é miopia. Compreender as tensas e por vezes ambivalentes relações entre o poder estabelecido, qualquer que ele fosse, mais ou menos conservador, e as forças de contestação e protesto tem-se tornado um ponto central na literatura. Mais, de que modo causas globais (como o movimento contra a guerra no Vietname) se articularam com reivindicações mais específicas, relativas a dissensões locais, com uma outra história e significado? Ou, ainda, como é que dinâmicas locais se apropriaram, negociaram o sentido prático, deram uso instrumental aos ventos de mudança do exterior?Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. As respostas as estas questões mostrarão certamente a variedade de cronologias e dinâmicas de contestação ou preservação de uma dada “ordem social”. Relativizarão grandes narrativas e explicações supostamente claras. Dificultarão ainda a recorrência de perspectivas difusionistas. A tendência para homogeneizar dinâmicas de protesto político, cujas motivações e sentidos são frequentemente interpretadas como elementos de uma contestação global contra as sociedades capitalistas, tem de ser devidamente calibrada. A defesa de uma relação significativa óbvia entre acontecimentos importantes que ocorreram em 1968 – da “Primavera de Praga” ao “massacre de Tlatelolco” no México, passando pela afirmação do Black Consciousness Movement na África do Sul – tem que ser matizada. O mesmo sucede com a consideração desse ano como o ano de todas as consumações: a sobrevalorização de acontecimentos, sobretudo os publicamente marcantes, impede a compreensão dos processos que lhes estão associados, ainda que menos visíveis. Até porque a memória, amiúde, sobrepõe-se à compreensão histórica do sentido e peso dos acontecimentos. Investigações recentes no Brasil, por exemplo, demonstram como o ano de 1968, marcado por importantes protestos estudantis (e que coincidiu com o endurecimento da ditadura através do Ato Institucional Número 5), foi inscrito na vaga de protestos globais desse ano, ainda que a importância dessas articulações tenha decorrido em grande parte de memórias construídas posteriormente e menos de uma experiência quotidiana de interacção transnacional. Em contraste, a recordação do papel das mulheres conservadoras na criação e consolidação da ditadura tem desaparecido parcialmente da memória, processo desde logo operado pelas próprias protagonistas. Como escrevemos acima, a maior parte destes casos revela que é na compreensão da combinação variável entre ideias e repertórios de acção, de proveniência vária, que se encontra o desafio. A compreensão do modo como os tópicos dos sessenta foram globalizados e nacionalizados ao mesmo tempo requer outros instrumentos de análise.
REFERÊNCIAS:
Religiões Ateísmo
O que revelam os véus
Há outras possibilidades e caminhos de interrogação da “controvérsia do véu”, mais atentas aos contextos históricos, recusando simplismos e essencialismos, menos politizadas, mas sem deixar de ser políticas. Talvez sejam menos apelativas para a propaganda e os zelotes de serviço, mas são certamente mais rigorosas e humanas (...)

O que revelam os véus
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há outras possibilidades e caminhos de interrogação da “controvérsia do véu”, mais atentas aos contextos históricos, recusando simplismos e essencialismos, menos politizadas, mas sem deixar de ser políticas. Talvez sejam menos apelativas para a propaganda e os zelotes de serviço, mas são certamente mais rigorosas e humanas
TEXTO: Na Bulgária, a desagregação do império soviético criou novos problemas de administração pública de modalidades de culto e expressão cultural, durante décadas remetidas para o espaço privado e, em muitos casos, fortemente vigiadas e constrangidas, senão mesmo violentamente suprimidas. O caso da heterogénea população muçulmana, com uma presença significativa e secular no território, é exemplar. Exemplar é também a problemática relacionada com o uso do “véu” pelas jovens muçulmanas, no que nos diz sobre o facilitismo interpretativo com que muitas vezes se abordam certos processos e práticas sociais. Por exemplo, essa opção significou e pode significar a procura por uma identidade individual autónoma, distintiva, de natureza política, social ou religiosa. Pode ser um rito de passagem em universos sociais distintos. Ou um símbolo de inscrição “urbana” e recusa de uma vinculação simbólica e material ao mundo rural. Nada que incomode quem não hesita, nem hesitou, a equacioná-lo com uma identidade histórica colectiva, sem fissuras. A tensão entre o domínio da expressão individual, relativamente livre, e as tentativas de imposição de um sentido político e cultural unívoco, mais amplo e profundo, é evidente. Isso não impede que muitos dos mais acérrimos proponentes e oponentes do uso do véu ignorem, de modo recorrente, o primeiro aspecto. Opções estilísticas — simplificando, uma escolha entre a minissaia e várias formas de encobrimento — tendem a ser tomadas ora como símbolos de um “ocidente” decadente e desorientado ou de um “oriente” atávico e despótico. São vistas como expressões de (i)moralidade, de identidades colectivas concorrentes, cristalizadas por uma trajectória histórica sem espinhos. Tornaram-se poderosas armas de arremesso político, como se detivessem alguma propriedade mágica para transformar realidades políticas e socioeconómicas desagradáveis. Como se não fossem também formas de expressão individual decorrentes de uma miríade de motivações. Num contexto de gradual integração europeia da sociedade búlgara, com várias transformações sociais, políticas e económicas associadas, estas questões tornaram-se ainda mais visíveis. Um caso singular protagonizado por duas adolescentes em Smolyan, junto à fronteira com a Grécia, espoletou um debate nacional em 2006. Perante a sua vontade em juntar um hijab ao vestuário escolar, foram proibidas de o fazer, por autoridades locais e nacionais. Em razão da sua persistência e do envolvimento de organizações não governamentais, como a União para a Cultura e Desenvolvimento Islâmicos que se dirige essencialmente aos pomaks (descendentes de búlgaros que se converteram ao islão durante o domínio otomano), o ministro da Educação apropriou-se do argumentário esgrimido em França para sustentar a sua posição. Uma queixa foi depositada na comissão búlgara de protecção contra a discriminação. Como em muitas outras situações, a linguagem dos direitos humanos e da liberdade de expressão foi usada como justificação pela União para contrariar a interdição do véu. Após décadas de políticas de “assimilação” forçada e de limitação religiosa por parte do regime comunista, o problema era colocado como sendo de liberdade. Os direitos religiosos sobrepunham-se aos direitos das mulheres. O problema da igualdade de género emergiu nos debates, mas foi consistentemente desvalorizado pelas partes em disputa. O caso em questão foi aproveitado para promover formas mais comprometidas de pertença religiosa, ou mesmo de reforço de uma visão “purificada” desta. Várias publicações, produzidas para a população pomak, eram claras na afirmação das obrigações morais das mulheres (por exemplo, estrita obediência à hierarquia religiosa e às suas interpretações das escrituras) e na dimensão pecaminosa de não se cobrirem. A polícia da fé era também a polícia da moda. O véu não era apenas um símbolo (como seria a cruz). Acima de tudo era tomada como um dogma religioso e um elemento constituinte de uma relação individual com o divino. A estrita observância a ambas, para além do mais, significava a recusa da decadência ocidental, simbolizada pelo uso generalizado da minissaia, inclusive nas regiões pomak. Como em muitas outras circunstâncias, as forças nacionalistas e conservadoras não enjeitaram a oportunidade. As comunidades muçulmanas seriam as responsáveis pelas árduas condições sociais e económicas que decorreram da “transição” política. A associação da pobreza a regiões pomak (sempre essencializadas de um ponto de vista cultural) foi explorada com insistência. Para gáudio destes e de outros grupos, seguramente desconfortáveis com a comunhão de opinião, em 2006, a dita comissão apoiou a decisão do ministério, chegando a punir a União por incitar à conflitualidade étnica. A possibilidade de banir qualquer símbolo religioso em escolas gerou uma contestação significativa, ironicamente proveniente em larga medida dos sectores cristãos maioritários. Em 2016, a Bulgária baniu o uso público de niqabs e burqas, numa proposta liderada pela coligação nacionalista da Frente Patriótica. O argumento securitário, incluindo o da maior visibilidade dos sistemas de vigilância pública, foi avançado como fundamental. O que foi prontamente disputado, entre outras vozes críticas, pela Amnistia Internacional, que considerou a medida uma clara violação dos direitos da mulher à liberdade de expressão e de religião. De pouco serviu. Nem “robôs islâmicos”, nem “objectos sexuais”Em 2005, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos sancionou positivamente a proibição dos véus nas universidades turcas. Leyla Sahin, oriunda de uma família praticante, confrontou a Universidade de Istambul com a sua vontade de usar o véu na vida escolar. Foi proibida de o fazer, em Fevereiro de 1998, apesar de invocar a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, nomeadamente os artigos que garantem a liberdade de profissão de fé, proibição de discriminação e liberdade de expressão. Sahin personificou — tal como, décadas antes, Sule Yüksel Senler, jornalista, activista e autora do romance de culto sobre o assunto Huzur Sokagi (Rua da Serenidade) — o que um especialista intitulou “feminização simbólica da política de direita”. Em 2008, tornou-se parlamentar, como representante do Partido da Justiça e do Desenvolvimento turco (AKP), de Recep Tayyip Erdogan. O apoio do tribunal europeu deveu-se em parte ao facto da conciliação do uso obrigatório do véu por questões religiosas, e enquanto decorrência de liberdade de expressão, com os princípios de igualdade de género, pilar declarado, mas escassamente protegido, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, ser vista como improvável. Também em 2008, o AKP aprovou duas emendas constitucionais, ratificadas pelo então presidente Abdullah Gül, com o objectivo de revogar a proibição do uso do véu no ensino superior e no sector público, que fora decretada pelo Tribunal Constitucional em 1989. Tal ocorreu com o apoio do Partido do Movimento Nacionalista, um partido de extrema-direita, ultranacionalista. Para regozijo do principal opositor político do processo, o Partido Republicano do Povo (advogado de preceitos secularistas e que encarava as emendas como demonstração dos verdadeiros objectivos do AKP, ou seja, a islamização do regime político), o Tribunal Constitucional anulou essas emendas. Essa decisão, é óbvio, não implicou o esmorecimento do tema. O impasse continuou, sempre num contexto de um ambíguo processo de potencial adesão à União Europeia, que certamente condicionou a “controvérsia do véu”. No seio deste debate, um movimento particular não recebeu o protagonismo que talvez merecesse. Tratou-se de uma iniciativa intitulada “Nós Olhamos Umas Pelas Outras”, que procurou romper com a partidarização calculista do assunto. Fruto de uma coligação de extracção ideológica diversa, criada precisamente em 2008, entre sectores feministas, grupos LGBT e activistas religiosos (nomeadamente a ONG islâmica Organização para os Direitos das Mulheres Contra a Discriminação), o movimento declarava recusar o conjunto de estereótipos públicos que tornavam as mulheres que usavam o véu ou em “robôs islâmicos” ou em “objectos sexuais”. Ou “ignorantes, fanáticas, maliciosas” ou “exibicionistas, sedutoras”. Num caso, recusavam o racismo associado; no outro, o sexismo. A nota de imprensa era clara: “Nós, mulheres, crentes e não crentes, veladas ou não, mulheres que agem de acordo com os direitos e liberdades das mulheres, nós somos contra os que dizem: ‘Se tu existes, então eu não’. ” E continuava: “Nós, as mulheres, rejeitamos o controlo sobre os nossos corpos em nome do modernismo, do secularismo, da república, da religião, da tradição, dos costumes, da moralidade, da honra ou da liberdade. ” Uma citação de Hannah Arendt, “Ignorar uma pessoa condu-la a duvidar da sua própria existência”, encerrava o esclarecedor texto. Sem perder o alcance eminentemente político, a estratégia passava por despolitizar a identidade, não deixando que a discussão ficasse entrincheirada nas antigas disputas entre mundividências “kemalistas” e “islâmicas”. As primeiras, geradas pelo reformismo de Mustafa Kemal Atatürk contra o passado otomano e a favor de uma relativa “ocidentalização” da sociedade turca desde a fundação da República, em 1923, tendem a reduzir a questão do véu a um mero instrumento de incompatibilidade “cultural”. Se nas primeiras décadas da República, marcadas pela abolição do califado e da Sharia e pela chamada Lei do Chapéu, que substituiu o fez ou tarbush, o desvelar era tomado como uma recusa da tradição e do ruralismo empobrecedor, em finais do século, o velamento era tomado como um desafio simbólico à autoridade estatal. As segundas, forjadas na tensa acomodação do islão a um contexto secularista, numa sociedade maioritariamente muçulmana (sunita), tendem a interpretar e a promover o velamento como demonstração clara de lealdade religiosa e compromisso cultural. Talvez seja um truísmo necessário dizer que, ao longo do tempo, o significado e as práticas do velamento mudaram consideravelmente. Há usos do véu que procuram o apagamento das conotações religiosas. Outros revelam de modo claro o abandono da suposta sobriedade “tradicional” no que diz respeito às cores e padrões. Este movimento feminino procurava evitar deixar-se prender no atoleiro do “choque de civilizações” e da política do medo e do controlo social. Mas o delicado encontro de opiniões por parte dos sectores coligados enfrentou vários desafios. E soçobrou. A pressão de sectores religiosos ultraconservadores contra o envolvimento da comunidade LGBT no movimento foi um deles. Outro foi o apoio que alguns dos grupos muçulmanos que dele faziam parte concederam às intoleráveis palavras de Selma Aliye Kavaf contra a homossexualidade, proferidas em 2010, enquanto era ministra dos Assuntos das Mulheres e da Família pelo AKP. Estes factores, entre outros, resultaram na marginalização do “Nós Olhamos Umas Pelas Outras” no interior do movimento feminista, predominantemente kemalista. Mas o seu insucesso não deve implicar a desvalorização do que mostraram ser concebível: outras possibilidades e caminhos de interrogação da “controvérsia do véu”. Talvez menos apelativas para a propaganda e os zelotes de serviço, mas certamente mais rigorosas e humanas. Fé, piedade, privacidade, disfarce, autodefesa, negação. . . Estudos recentes sobre a questão do véu em África revelam aspectos comuns. O significado e o sentido das práticas de velamento variam historicamente, social e geograficamente. Por exemplo, dinâmicas reformistas na educação ou momentos de significativa transformação político-económica suscitam novas codificações e re-significações do seu uso. Essas práticas decorrem ainda de múltiplas motivações e propósitos, muitas vezes reduzidos a interpretações superficiais e facciosas. Em Zanzibar, onde os usos do véu têm uma longa história pré-colonial e remetem para dinâmicas de distinção social complexas, a revitalização da prática do niqab, em substituição do tradicional buibui, parece estar mais associada a formas de estetização do quotidiano e a mecanismos de preservação da privacidade do que a processos de intensificação de fidelidade religiosa. Nada disto obsta à identificação de um padrão semelhante por todas as regiões com presença muçulmana significativa em África e pelo Médio Oriente, demonstrando ligações religiosas difíceis de desprezar. A circulação das normas religiosas percorre caminhos similares às das normas e opções estéticas e de estilo de vida, ainda que com algumas diferenças óbvias. Para os refugiados Oromo (oriundos da Etiópia), no Quénia, o véu preto (abaya) também permite mecanismos sociais tendentes à preservação da privacidade. O disfarce possibilita estilos de vida de outro modo menos exequíveis (sair à noite, por exemplo) ou encena uma superficial integração, facilitadora de oportunidades sociais várias num contexto desfavorável e estranho. Tem ainda a vantagem de dificultar a vigilância de agentes etíopes infiltrados nos campos e fora deles. No Senegal, a justificação dos usos do véu pelas mulheres oscila entre a obrigação da fé e o livre exercício de escolha e autonomia individual, num processo de negociação de papéis sociais e familiares. Na Nigéria, os usos do véu resultam de uma tentativa de diminuir a vulnerabilidade social e “moral” das mulheres, sem deixar de estar associado a afirmações estéticas. É ainda imperioso acrescentar que, como em muitas outras geografias e contextos, as práticas de velamento não são necessariamente constantes, diárias. Ajustam-se a circunstâncias sociais, às suas recompensas e aos seus riscos simbólicos e materiais. Não podem ainda ser interpretadas como significando a ausência de disputas, por vezes acérrimas, no interior de comunidades muçulmanas sobre os pressupostos e o impacto do uso do véu. Este último é por vezes objecto de fortíssima contestação, em função de posições sociais ou diferentes pertenças étnicas, por exemplo. As distinções entre mundos urbanos e rurais é a este respeito muito importante. Acresce ainda que as práticas de velamento não parecem determinar, em si mesmo, qualquer grau de autonomia ou dependência social das que as observam. Ler nelas, necessariamente, expressões de total independência ou, pelo contrário, de subjugação é escassamente confirmado pelas investigações empíricas disponíveis. O riquíssimo livro colectivo coordenado por Elisha P. Renne, Veiling in Africa, é esclarecedor em todos estes sentidos. As modas e as práticas do velamento resultam de relações dinâmicas, por vezes paradoxais e amiúde pouco claras, entre religião e política, “ética e estética”, “piedade e beleza” e “sobriedade e atracção”. Entre relativa autonomia e submissão, podemos acrescentar. Tudo isto atravessado por dimensões geracionais, educacionais, económicas, de estatuto social, entre outras. Com notórias diferenças, só compreensíveis quando descemos aos contextos locais e os compreendemos comparativamente e na sua intersecção com processos que os extravasam, muitas das dinâmicas de descarada instrumentalização política e de distorção interpretativa identificadas nestes três casos são comuns a muitos outros associados à questão do velamento. As “novas” mulheres “novas”Foi contra estas tendências que Joan Wallach Scott escreveu The Politics of the Veil (2007). Figura central da historiografia contemporânea, não apenas por ter insistido na centralidade da questão de género na problematização histórica, Scott debruçou-se sobre a intensa polémica que se instalou em França, em 2004, a propósito do uso do véu nos estabelecimentos escolares. Insuspeita de qualquer simpatia pela prevalência de sociedades patriarcais e reconhecidamente empenhada na luta contra as desigualdades de género, a autora obriga-nos ao desconforto de repensar respostas fáceis a problemas complexos. Desde logo, recusando um uso essencialista e a-histórico dos conceitos. Por exemplo, a usual distinção entre “tradição” e “modernidade” que acompanhou todo o debate é solidamente questionada. É-o com recurso a um exercício simples, mas em grande medida ausente neste debate público: como é que as adolescentes que pretendiam usar véu nos espaços públicos justificavam a sua decisão? Ao contrário do que se possa pensar, muitas delas faziam-no contra a vontade dos pais e dos círculos familiares próximos. Outras porque encontravam no gesto a recuperação de uma espiritualidade que julgavam perdida. As motivações não eram homogéneas. Essa recusa de se enredar em essencialismos não resulta apenas de uma razão heurística: ela existe porque o uso de abstrações decorre de lógicas de natureza política, eivadas de nacionalismo e discriminação. A necessidade de evitar acusações de discriminação numa base étnica ou religiosa fez com que o próprio articulado da lei de 2004 proibisse o uso de qualquer símbolo religioso ostensivo, potencialmente afectando cristãos ou judeus. Mas a oposição entre laicidade e confessionalismo, que inflamou a opinião pública francesa, respondia claramente à crescente islamofobia no país. Os próprios ciclos de erupção da discussão do véu respondiam a agendas de natureza política orientadas em função da questão muçulmana: a ascensão da Frente Nacional nos anos 80, a possibilidade de um governo fundamentalista argelino nos 90, e o contexto posterior ao 11 de Setembro de 2001. Em todos estes casos, a pressão proveniente da extrema-direita levou, voluntária ou involuntariamente, os sucessivos governos de centro-direita ou centro-esquerda, a incorporar alguns dos argumentos das franjas (o que se está a tornar recorrente nos dias que correm, diga-se). O véu, que não tapa o rosto, o niqab ou a burqa passaram a ser tudo uma e a mesma coisa. O mesmo sucedeu com palavras como “imigrante”, “árabe” ou “muçulmano”. O véu, ao mesmo tempo, unifica e dispersa. Os que o usam são fechados numa “comunidade” projectada como inimigo interno e externo, descontrolada, insidiosa. Esses “indesejáveis”, mais ou menos definidos, foram amalgamados num grupo inassimilável, independentemente de sondagens, à época, mostrarem que apesar de a maioria ser contra a proibição, não era necessariamente favorável ao uso do véu. Dispersa, no sentido em que os múltiplos usos quotidianos, as diversas motivações políticas, religiosas, estéticas, os vários condicionamentos económicos e sociais são indistintamente agrupados num único e poderoso símbolo, que tudo explica e determina, “o véu”. Lendas sobre o secularismo, donde decorreria o compromisso da República com a igualdade de género, foram retroprojectadas no passado, não obstante as limitações ao sufrágio universal feminino até 1945 e a persistência de escolas separadas por sexo até bastante tarde. A guerra “cultural” foi tão longe quanto desvalorizar o problema evidente das profundas desigualdades desenhadas ao longo de linhas raciais e religiosas. Ou ao ignorar que, por exemplo, a melhor forma de combater formas de opressão das mulheres seria precisamente através da escola, a mesma escola que podia agora ser vedada na decorrência da nova lei. Os mesmos que decretam o fim das ideologias em nome de um “choque de civilizações” revelam-se lestos a ignorar as consequências práticas do chauvinismo em marcha. Entenda-se, a escolha não é entre a apologia do véu e uma qualquer defesa irredutível da “tradição” e, por outro, a interdição de qualquer manifestação de diferença cultural, definida em função de uma “modernidade”, também ela imaginada. Trata-se, antes, de promover um debate política e historicamente informado, onde aos principais visados e visadas lhes seja dada voz. Centrais nesta história, os legados da França imperial. A articulação da “missão civilizadora” francesa com a edificação de estereótipos e preconceitos em torno da organização familiar, de género e da sexualidade das populações muçulmanas é tão longa quanto a conquista e ocupação da Argélia, na primeira metade do século XIX. As sociedades magrebinas eram tidas como particularmente lúbricas e viciosas. É uma história que se estendeu até à Guerra da Argélia, quando o véu e a poligamia eram apresentados como sinónimos do obscurantismo promovido pelo nacionalismo da Frente de Libertação Nacional. A tutela modernizadora de uma “Argélia francesa” seria a última oportunidade da mulher emancipada. De resto, estas imbricações entre género e diferença cultural podem ser encontradas em muitas histórias imperiais europeias, da abolição do Sati (a prática de queimar viúvas juntamente com os maridos recém-falecidos), na Índia do século XIX, à consolidação de uma representação da família africana como sendo marcada por uma divisão desigual do trabalho, que acabaria por legitimar várias formas de trabalho compelido masculino. Mas esta não é uma história redutível ao moderno colonialismo europeu. A constituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, por exemplo, levantou novos problemas ao recém-constituído governo bolchevique, principalmente nos Estados da Ásia Central. Também aqui, a oposição entre “obscurantismo islâmico” e “modernidade”, especificamente socialista, se manifestou agudamente. A necessidade de criar uma “Vida Nova” com uma “Mulher Nova” tinha de confrontar o putativo atavismo das populações locais. O potencial do “véu” como gatilho simbólico foi calculado. Quando, em 1927, foi lançado pelo Partido Comunista da União Soviética aquilo que foi designado como o Hujum (ataque), no Uzbequistão, milhares de mulheres foram incitadas a queimar publicamente os seus véus (paranjis), iniciativas apresentadas pelas autoridades como actos de livre vontade. Tal supostamente resultava do papel esclarecido que desempenhavam os seus militantes e de uma política mais vasta que pretendia educar e trazer ao espaço público as mulheres uzbeques. Mas, mais uma vez, as subtilezas são cruciais. Antes do lançamento do Hujum já algumas mulheres se tinham mobilizado para largar os seus paranjis, fazendo parte de um grupo mais vasto de reformadores sociais e clérigos que entendiam que o uso do véu representava uma distorção da Sharia. Aliás, como sucedia ao mesmo tempo em movimentos similares, patrocinados pelo Estado em países como a já referida Turquia, o Irão ou o Afeganistão. A luta das autoridades soviéticas não era apenas contra o mullahs conservadores, mas também contra estes proponentes de uma “modernização” diferente. A afirmação do poder do novo Estado soviético não foi um factor de importância desprezável nesta batalha pela “secularização”, que envolveu coacção e violências várias que obrigaram mulheres a queimar os seus paranjis em cerimónias públicas (sendo que muitas delas logo o voltaram a usar, pelo menos em privado). Com violência responderam também clérigos e homens uzbeques que, no rescaldo da Hujum, assassinaram mais de 2 mil mulheres que tinham largado o véu. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A tentação de criar uma “mulher nova” não foi, no entanto, exclusivamente socialista ou colonial. Nem foi sempre uma forma de imposição de normas sociais pelo Estado. No contexto da Coreia ocupada pelo Japão no início do século XX, a afirmação da mulher num espaço em profunda transição, tanto nos campos como nas cidades, graças às políticas imperiais de modernização e de abastecimento alimentar da metrópole, assumiu contornos de particular relevo, especialmente em face do importante cisma em torno da soberania coreana. Por exemplo, nos anos 20, quando algumas mulheres coreanas decidiram adoptar um corte de cabelo curto (bobbed air) como forma de afirmação do seu espaço social, foram visadas pelas críticas tanto dos nacionalistas coreanos, que as acusavam de distorcer os papéis tradicionalmente atribuído aos géneros e com isso colocar problemas à afirmação nacional, como de uma estranha coligação entre estes e as autoridades imperiais japonesas, unidos pelo temor à ocidentalização. As disputas estendiam-se a outros aspectos, do controlo da natalidade e das práticas de casamento precoce à produtividade das mulheres, passando pela multiplicação de folhetins eróticos na sociedade coreana. Nacionalistas anticoloniais e imperialistas, de formas e com resultados diferentes, não deixaram de mobilizar um importante aparato retórico que essencializava factores culturais como legitimadores de um determinado lugar social da mulher. Em suma, a interconexão entre aquilo que é esperado serem os papéis do género e os discursos sobre a “tradição” e a “diferença cultural” tem uma profunda história, e manifesta-se globalmente, em diferentes contextos. Num momento em que termos como “integração” e “assimilação” parecem ganhar nova vida, apesar do seu passado questionável, estudar a história desta relação, os seus usos instrumentais, o carácter poliédrico das disputas que cada um deles encerra, pugnar por uma visão democrática que, sem descurar princípios, não ignore as consequências práticas de cada medida, recusar essencialismos e realmente escutar aquelas que mais têm a perder (e a ganhar), talvez não seja pedir demais. Os autores da série História(s) do Presente são investigadores do Centro de Estudos Sociais — Universidade de Coimbra. Através da revisitação crítica de 12 livros, ao longo de 12 meses, a série História(s) do Presente recupera um conjunto de processos históricos que modelaram inequivocamente o nosso presente. Da longa persistência de modelos de organização concentracionária em “campos” durante o século XX, à recorrente ameaça, proveniente de vários sectores, sobre os fundamentos racionais do conhecimento, passando pelas preocupações relativas ao crescimento demográfico ou à sustentabilidade do planeta, a série oferecerá ao leitor uma visão mais poliédrica dos passados que construíram o mundo como o conhecemos hoje. Para acompanhar sempre no primeiro domingo de cada mês, no P2, caderno de domingo do PÚBLICO
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Actores distinguem a diversidade nos prémios SAG e exigem-na a Trump na vida real
Cerimónia de prémios foi novo palco de discursos inflamados sobre a inclusão e a não-discriminação. Elencos de Elementos Secretos e Stranger Things juntam a vitória ao protesto. (...)

Actores distinguem a diversidade nos prémios SAG e exigem-na a Trump na vida real
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.2
DATA: 2017-03-02 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20170302090943/https://www.publico.pt/1760124
SUMÁRIO: Cerimónia de prémios foi novo palco de discursos inflamados sobre a inclusão e a não-discriminação. Elencos de Elementos Secretos e Stranger Things juntam a vitória ao protesto.
TEXTO: A temporada de prémios está a pleno vapor e os sinais que emite para a noite dos Óscares estão a diversificar-se: não só La La Land – A melodia do amor continua a somar distinções como outros concorrentes, casos do elenco de Elementos Secretos e de Denzel Washington, tiveram destaque nos prémios do Screen Actors Guild. A diversidade esteve na cerimónia também no campo da realpolitik – do lado de fora da festa protestava-se nos aeroportos contra a restrição de entrada de muçulmanos nos EUA e os actores juntaram-se ao coro de indignados. Os prémios do Screen Actors Guild, o sindicato que representa os actores que trabalham nos Estados Unidos, serviram para Hollywood mostrar mais uma vez que não apoia Donald Trump. Começou logo à porta, com Simon Helberg (A Teoria do Big Bang) e a mulher Jocelyn Towne a aproveitarem a passadeira vermelha para passar mensagens claras – “Refugees welcome”, escreveu o Howard Holowitz da série num pequeno cartaz, com a mulher a envergar directamente no peito as palavras “Let them in”. “Refugiados bem-vindos” e “deixem-nos entrar”. Ashton Kutcher falou no início da cerimónia e lembrou "todos os que estão nos aeroportos que pertencem à minha América. Vocês são parte da textura de quem somos. E amamo-vos e damo-vos as boas vindas". Estes prémios, estes filmes e estes rostos de várias cores em palco foram “um passo em direcção à normalização da inclusão”, postula o IndieWire, depois de já em 2016 os SAG terem sido um palco particularmente diversificado em termos raciais em plena controvérsia #OscarsSoWhite. Este ano, apesar disso, foi outra a hashtag a pairar sobre toda a noite - #MuslimBan, um tema que também está pelas redes sociais em comentários a uma das primeiras medidas da administração Trump. #MuslimBan foi usada durante todo o dia dos prémios SAG por muitos manifestantes nos principais aeroportos dos EUA a demonstrar a sua solidariedade para com os homens, mulheres e crianças retidos nos aeroportos devido à suspensão de vistos, ou por políticos como o britânico Jeremy Corbyn criticando a medida. Depois disso, vieram os anúncios dos distinguidos, entrecortados por muitos discursos inflamados e/ou inspirados contra a exclusão. No cinema alguns dos principais galardões foram para Elementos Secretos (estreia-se esta quinta-feira em Portugal) – os prémios do Screen Actors Guild são particularmente relevantes para a temporada de prémios anual de cinema por serem o maior grupo de votantes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, que entrega os Óscares que monetizam carreiras e insuflam as receitas de bilheteira. O prémio de melhor elenco foi para o filme que revela a história das matemáticas afro-americanas que trabalharam para o programa espacial americano nos anos 1960. Mahershala Ali of @moonlightmov #sagawards pic. twitter. com/q9txL6fW8RDelas, só Octavia Spencer está nomeada para um Óscar, o de Melhor Actriz Secundária, ficando de fora Taraji P. Henson, Kirsten Dunst ou a cantora Janelle Monae. Henson agradeceu o prémio lembrando que “este filme é sobre união. Quando nos juntamos enquanto raça, humana, vencemos… o amor vence sempre”. Mas coube a outro dos seus co-protagonistas, Mahershala Ali, um dos discursos mais pessoais e emotivos do evento. Venceu o prémio para o qual se está a perfilar como favorito - Melhor Actor Secundário em Moonlight (estreia-se em Portugal a 9 de Fevereiro). “A minha mãe é pastora religiosa. Eu sou muçulmano. Há 17 anos, ela não deu pulos de felicidade quando lhe telefonei para lhe dizer que me tinha convertido. Mas agora digo-vos, pondo tudo o resto de lado, eu consigo vê-la e ela consegue ver-me. Amamo-nos. O amor cresceu”, partilhou Ali sobre a sua experiência pessoal, religiosa e familiar. Sobre o seu filme, sobre o crescimento de um jovem afro-americano mesclado com a sua sexualidade, lembrou como ele mostra em parte “o que acontece quando perseguimos pessoas”. Emma Stone foi escolhida como Melhor Actriz pelos seus pares pelo seu papel em La La Land – A melodia do amor (o filme, por se centrar sobretudo num casal, não concorria ao prémio para elenco). Nem o seu co-protagonista Ryan Gosling nem o favorito Casey Affleck (Manchester by the sea) foram os eleitos para o prémio de Melhor Actor - Denzel Washington foi o distinguido da noite com o seu primeiro prémio da guilda por Fences, filme de que também é realizador nesta temporada. Washington está nomeado também para Melhor Actor nos Óscares e o seu filme é um dos nove na corrida para melhor do ano. Uma das pouquíssimas vozes a não aludir ao tema da actualidade do fim-de-semana, Viola Davis somou outra vitória para Fences, com o prémio de Melhor Actriz Secundária. O mundo das artes também se debate com os efeitos da suspensão da entrada de cidadãos de países como o Irão, que tem O Vendedor nomeado para Melhor Filme Estrangeiro e que não contará com a sua actriz, por boicote da mesma, nem com o seu realizador, Asghar Farhadi, que também não quer estar no evento, para tristeza da Academia. Na televisão, a noite foi particularmente favorável para o Netflix, que venceu com a série dramática com melhor elenco, o fenómeno Stranger Things, e com os melhores actores numa série dramática Claire Foy e John Lithgow por The Crown. Outro momento forte foi aquele em que o grupo de actores de Stranger Things agradeceu o seu prémio. David Harbour, um eterno secundário que tomou o microfone ladeado por Matthew Modine e uma muito expressiva Winona Ryder (a Internet já se encarregou de cristalizar as suas reacções), resumiu de forma emotiva parte do sentimento da noite – os actores congratulam-se por viverem no seu ecossistema e por se expressarem contra aqueles que vão contra os “seus” valores. #StrangerThings star @DavidKHarbour delivers rousing #SAGAwards speech: 'repel bullies, shelter outcasts & those who have no hope' pic. twitter. com/xeRuFZNbAA“Abrigamos os esquisitos e os proscritos, aqueles que não têm lar. Iremos ultrapassar as mentiras. Vamos caçar monstros. E quando estamos em perda no meio da hipocrisia e da violência casual de certos indivíduos e certas instituições, vamos, como o xerife Jim Hopper [a sua personagem na série], esmurrar a cara de algumas pessoas quando tentarem destruir o que imaginámos para nós próprios e para os marginalizados”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Orange is the new black, também do serviço de streaming, arrematou o prémio de melhor elenco de comédia, Julia Louis-Dreyfuss e Sarah Paulson foram as vencedoras expectáveis na comédia e numa minisérie com Veep e O Caso de O. J. , respectivamente, e Bryan Cranston foi o distinguido por interpretar o ex-Presidente Lyndon B. Johnson no telefilme All the Way, com William H. Macy a receber o reconhecimento da guilda pela sua comédia em Shameless – No limite. Julia Louis-Dreyfus fora a primeira a subir ao palco para receber um prémio – ela é uma ex-Presidente incompetentemente ardilosa na ficção e puxou dos seus galões para decretar que “esta proibição [à entrada] dos imigrantes é uma mancha e é não-americana” –“o meu pai fugiu à perseguição religiosa na França ocupada pelos nazis. Sou uma patriota americana”. O outro Presidente ficcional da noite, Bryan Cranston, disse já nos bastidores, citado pelo Los Angeles Times, que é uma questão de “cidadania” falar sobre algo “que surge de uma forma que nos parece opressão”. Solene, elogiou que uma noite em que um “colectivo” falou sobre um tema premente é algo “vivo”. Sarah Paulson resumiu o espírito da cerimónia de forma directa. Pediu directamente por donativos para a ONG norte-americana American Civil Liberties Union (ACLU), que diz ter recebido 24 milhões de dólares no passado fim-de-semana na sequência da aplicação da proibição à imigração de muçulmanos. Justificou: “Nesta altura, o silêncio não é de ouro”.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Do Maio de 68 do avô Artur às lutas da neta Jaspal
Artur Monteiro de Oliveira estava a fazer 22 anos quando foi apanhado, em Paris, pelo Maio de 68. Andou nas manifestações, distribuiu jornais, levantou a sua quota parte de paralelepípedos. Hoje a sua neta Jaspal é dirigente estudantil e foi um dos rostos da ocupação da Faculdade Paris-Tolbiac, que esteve 26 dias nas mãos dos estudantes até ser evacuada pela polícia. Uma família de activistas com origens no Porto. (...)

Do Maio de 68 do avô Artur às lutas da neta Jaspal
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Artur Monteiro de Oliveira estava a fazer 22 anos quando foi apanhado, em Paris, pelo Maio de 68. Andou nas manifestações, distribuiu jornais, levantou a sua quota parte de paralelepípedos. Hoje a sua neta Jaspal é dirigente estudantil e foi um dos rostos da ocupação da Faculdade Paris-Tolbiac, que esteve 26 dias nas mãos dos estudantes até ser evacuada pela polícia. Uma família de activistas com origens no Porto.
TEXTO: Com 20 anos e na iminência de ser mobilizado para a guerra colonial, depois de ter passado uns meses nos calabouços da PIDE, o portuense Artur Monteiro de Oliveira decidiu, em 1966, emigrar a salto para França. Não imaginava que daí a menos de dois anos estaria a manifestar-se nas ruas de Paris entre gente que gritava palavras de ordem tão estranhas como “é proibido proibir!”, “a imaginação ao poder!” ou “a beleza está na rua!”. Hoje, aos 72 anos, e depois de uma vida dedicada à acção social, começa a convencer-se de que, se calhar, nunca teve “alma de radical”, mas nem por isso deixa de recordar com nostalgia essas semanas alucinadas em que parecia realista pedir o impossível. E é com um discreto orgulho que vê a sua neta Jaspal honrar a tradição activista da família, que ele próprio herdou do seu avô Marcolino Monteiro, um anarco-sindicalista do Porto que esteve várias vezes preso durante a ditadura militar que precedeu o Estado Novo. Estudante de Demografia na Faculdade de Paris-Tolbiac e presidente da secção parisiense da Union Nationale des Étudiants de France (UNEF), o mais importante sindicato estudantil francês, Jaspal De Oliveira Gill é, aos 23 anos, uma das principais dirigentes do actual movimento de protesto contra a reforma do sistema de acesso ao ensino superior promovida pelo Governo de Emmanuel Macron. E o papel que desempenhou na ocupação da Faculdade Paris-Tolbiac, gerida durante 26 dias pela autodenominada Comuna Livre de Tolbiac – o edifício foi evacuado à força pela polícia na madrugada de 20 de Abril –, veio dar ainda mais notoriedade a esta jovem líder estudantil, que vê no Maio de 68 uma referência estimulante, mas não um exemplo que possa ou deva ser imitado. “Temos sempre na cabeça o Maio de 68, que ficou na história e na memória colectiva como um movimento vitorioso dos estudantes e dos trabalhadores”, reconhece Jaspal. Mas acrescenta: “Sabemos que foi incrível, que houve milhares de pessoas nas ruas, mas não queremos reproduzir o Maio de 68, estamos aqui porque a Universidade está a ser atacada e é preciso reagir”. Refere-se à nova lei que regula o acesso ao ensino superior (Orientation et réussite des étudiants, vulgo ORE), apresentada pela ministra do Ensino Superior, Frédérique Vidal, como uma tentativa de reduzir as altas taxas de insucesso nas universidades e de pôr fim a um sistema de acesso que incluía sorteios aleatórios, mas na qual Jaspal vê o pior ataque ao ensino superior público desde o célebre projecto de lei Devaquet, no segundo governo de Chirac, que acabou por não resistir à contestação e caiu no final de 1986. Num ano em que se espera um significativo aumento do número de candidatos ao ensino superior, esta lei, “em vez de criar novos espaços, como se fez depois de 68, aposta na competição entre universidades e na selecção dos universitários”, nota a activista, que acusa Macron de ter usado as reconhecidas fragilidades do modelo anterior como pretexto para impor uma “grande reforma liberal” que, prevê, “vai fechar as portas do ensino superior a muita gente, impedir na prática os alunos dos subúrbios de entrarem nas principais universidades parisienses, e criar licenciaturas ‘à la carte’ e diplomas de primeira e de segunda”. Não muito noticiada em Portugal, a contestação à lei tem sido considerável. Jaspal garante que houve “algum tipo de mobilização” em 75 por cento das universidades, e que 46 por cento “estiveram ocupadas pelo menos durante um dia”. O movimento começou em Janeiro, a 1 de Fevereiro realizou-se uma primeira manifestação de rua com alguma dimensão, mas o ponto de viragem foi a noite de 22 para 23 de Março, quando um grupo de homens mascarados e armados com bastões expulsou violentamente de um anfiteatro da Faculdade de Direito de Montpellier os estudantes que o ocupavam, provocando vários feridos, três dos quais tiveram de ser hospitalizados. Acusado de ter sido cúmplice, se não o instigador, da invasão, o reitor Philippe Pétel foi imediatamente suspenso de funções, e o resultado do inquérito administrativo ordenado pela tutela veio agora confirmar a sua responsabilidade nos acontecimentos. “Depois de Montepellier, as coisas explodem”, resume Jaspal. E não deixa de ser uma coincidência curiosa que o rastilho que agudizou a contestação em 2018 tenha ocorrido na noite de 22 de Março, exactamente 50 anos após a ocupação da Faculdade de Nanterre e a criação do Movimento do 22 de Março, que teve em Daniel Cohn-Bendit a sua figura mais mediática e que marcou o início da revolta estudantil de 1968. “Em Tolbiac passámos a ter de repente assembleias gerais com dois mil estudantes”, conta a dirigente da UNEF, uma organização que, também ela, foi determinante há 50 anos, quando era liderada pelo carismático Jacques Sauvageot, um dos líderes reconhecidos do Maio de 68, a par de Cohn-Bendit ou Alain Geismar. “Decidimos ocupar a faculdade”, explica, “para nos reapropriarmos de um local que é nosso, mas onde cada vez mais nos retiram espaço e nos impedem de nos reunirmos e organizarmos”. Comuna Livre de TolbiacDurante quase um mês, a Faculdade Paris-Tolbiac, cujo nome oficial é Centre Pierre-Mendès-France e tem como sede uma torre de 23 andares, foi gerida pela Comuna Livre de Tolbiac, um colectivo estudantil sem líderes expressos, que não se limitou a ocupar, mas promoveu também aulas alternativas: professores sintonizados com o movimento, mas também políticos ou dirigentes sindicais, foram a Tolbiac dar palestras sobre múltiplos temas, do sexismo à história do Maio de 68. A aventura terminou na madrugada de 20 de Abril, quando a polícia invadiu a faculdade e evacuou o edifício, que desde então continua sem aulas e vedado aos estudantes, que só podem entrar para fazer exames. Embora Jaspal evite cautelosamente enfatizar as semelhanças com o que se passou há 50 anos, acredita que a intensa mediatização do aniversário do Maio de 68 acabou por ajudar à mobilização dos estudantes. “Já me perguntei que estratégia foi a de Macron ao escolher uma altura destas para fazer a sua reforma”. E se a história não se repete, é inegável que há neste movimento aspectos que favorecem as comparações, como a estratégia de ocupar universidades ou as tentativas de concertar acções com as lutas dos trabalhadores. “Há essa vontade de convergência, que é um pequeno paralelo com 68”, observa Jaspal. “Os estudantes que têm falado com os ferroviários ou os enfermeiros em greve, e há trabalhadores que têm vindo às nossas assembleias gerais”. Já uma das diferenças mais ostensivas face a 68 pode ser simbolizada no próprio facto de Jaspal dirigir a poderosa UNEF em Paris (a nível nacional, o sindicato também é presidido por uma mulher) e ser um dos rostos mais visíveis da actual contestação. Há 50 anos, apesar das fotografias icónicas de raparigas agitando bandeiras nas manifestações, os líderes do movimento estudantil eram todos rapazes. Talvez para evitarem uma colagem excessiva ao Maio de 68 neste seu mediatizado cinquentenário, os universitários de 2018 têm também reivindicado outros e mais recuados predecessores. E não será por acaso que vários dos grupos que agora ocuparam faculdades se auto-intitularam “comunas”. Quando a primeira ronda de resultados às candidaturas ao ensino superior foi divulgada, no dia 22 de Maio, alguns dos estudantes que então desfilaram em protesto pelas ruas de Paris deixaram nas paredes pichagens que diziam: “Mai 1968 on s’en fout, on veut 1871” [“Estamo-nos nas tintas para o Maio de 68, queremos 1871”, o ano da Comuna de Paris]. Mas apesar desta e doutras manifestações, uma das fragilidades deste movimento estudantil, que por enquanto ainda não conseguiu que o Governo recuasse um milímetro, tem sido justamente a incapacidade de promover grandes acções de rua. E também não se verificou uma adesão significativa dos alunos liceais, que são afinal os principais visados pela nova lei. Jaspal acredita que os liceus acabarão por se mobilizar quando forem conhecidos os resultados das candidaturas ao ensino superior, mas, até ver, e apesar de algumas ocupações prosseguirem, e de haver universidades em que os estudantes estão a fazer greve aos exames, o movimento parece estar a perder alguma energia. Já ela, Jaspal, tem energia para dar e vender e, saindo a quem sai, não é de desistir facilmente. Não apenas como o avô, mas também como o pai, Helder, que aos 12 anos começou a colaborar com a Greenpeace – escreveram-nos uma carta a pedir autorização, lembra Artur –, ou a mãe, Sandrine (filha de um linguista indiano), que Jaspal se lembra de ver participar em piquetes para impedir a expulsão de famílias africanas que ocupavam um prédio vizinho. Ou ainda a sua avó paterna, Jacinta Sarmento, também ela uma lutadora antifascista, que estava presa em Lisboa quando o namorado deu o “salto” para França e só depois se lhe juntou. “Na minha família toda a gente é activista, é uma coisa transmitida de geração em geração, mas o mais interessante é que cada um de nós descobre o seu próprio modo de ser militante”, diz Jaspal. “O meu avô passou-me esse gosto, e também o meu pai, que é mais ecologista, mas o sindicalismo foi uma escolha minha”. Quando ouve Jaspal falar de uma frente unida de estudantes e trabalhadores contra a política liberal de Macron, Artur Monteiro de Oliveira receia que essa “convergência de lutas” possa ser, como já o terá sido em 68, algo ilusória, mas longe dele pretender arrefecer-lhe os ânimos. “O que importa é que ela tenha esta experiência, que viva o que tem a viver”. Até onde chega a sua memória, a pulsão combativa da família remonta pelo menos ao seu avô materno, militante anarco-sindicalista, com quem viveu em criança numa casa, há muito demolida, que ficava próxima da Rua Escura, na Sé, numa zona pobre do centro do Porto. “Era um homem de poucas falas e poucos risos, mas acho que gostava de mim: levou-me à grande manifestação de apoio a Humberto Delgado [em 1958] e foi ele que me ensinou a meter panfletos nos escapes dos carros e a deixá-los molhados no cimo dos prédios, para que voassem para a rua quando o sol os secava”, conta. Os pais de Artur tinham-se separado quando este era bebé, e é já com 11 anos que vai finalmente morar com a mãe para a Rua de Camões. Ainda frequenta o liceu Alexandre Herculano até ao 3. º ano, mas vê-se obrigado a desistir dos estudos e começa a trabalhar aos 13 anos na firma Neolux, que produzia anúncios luminosos. Aos 15 anos já colabora com o PCP. “No Porto, com vontade de estudar, mas sem meios para isso, uma pessoa volta-se para o que há”, explica. E o que havia “era o Cineclube, onde estava o Henrique Alves Costa, os Fenianos, o TEP, de António Pedro, a cooperativa Árvore, que estava a começar”. É nestes meios que conhece pessoas ligadas ao partido, como Virgínia Moura, que era quase sua vizinha. A partir dos 17 começa a ter actividade clandestina mais séria e, a dado momento, pedem-lhe que aloje umas funcionárias do partido em casa da mãe, que alugava quartos, o que o obriga, por razões de segurança, a abrandar o trabalho partidário. O que não evita que venha a ser preso pela PIDE, “talvez por denúncia”, em Outubro de 1965. Tinha 19 anos. Só foi libertado em Fevereiro de 1966 e diz ter-se sentido “um pouco abandonado” pelo PC durante esses meses de isolamento, nos quais, para passar o tempo, organizava jogos de futebol com 11 filtros de cigarros de cada lado. “Deve ter havido o receio de que eu falasse”, supõe. “O único apoio que tive foi dos advogados Arnaldo Mesquita e Sousa e Castro”. É na cadeia que começa a ter “algumas dúvidas sobre a linha política do partido”, e quando sai e se vê confrontado com ordens para se apresentar na Companhia Disciplinar de Penamacor, de onde depois partiria para a guerra colonial na Guiné-Bissau, decide desertar e emigrar para França, uma opção que o PCP, empenhado em fortalecer a sua organização nas forças armadas, censurava. Mas o passador que o irá ajudar a transpor a fronteira até é um camarada do partido. Gare SalazarArtur sai do Porto em plena noite de S. João e as coisas começam por correr mal. “Iam connosco alguns emigrantes económicos que foram presos e tive de ficar dois dias fechado num sótão, em Chaves”. E para piorar, quando, numa dessas noites, espreita para a praceta onde ficava a casa, reconhece um dos agentes da PIDE que o submetera à tortura da “estátua”. Pensou logo o pior, que estava ali por ele, mas afinal não estava. Quando finalmente põe o pé em França, munido do bilhete para Paris que o passador lhe entregara, gasta algum do pouco dinheiro que leva a comprar o Le Monde e o jornal L’Humanité, então órgão do Partido Comunista Francês (PCF). “Mas só tive coragem de abrir o L’Humanité na casa de banho”, confessa. Levará algum tempo a libertar-se dos automatismos da clandestinidade. “A primeira vez que uns companheiros me contactaram a combinar encontro para uma manifestação, fizeram-no pelo telefone, e eu fiquei logo desconfiado: será que são mesmo amigos?”. Chegado a Paris, só tinha o contacto de uns portugueses que estavam instalados no hotel Excelsior, na Rue Cujas, no Quartier Latin, “em frente ao hotel onde então morava Maria Lamas”. Só que esses amigos, com quem efectivamente viria a viver (três num mesmo quarto) tinham saído e tardou a encontrá-los. Em Paris, praticamente falido e com o pouco francês que aprendera em dois anos de liceu, sugeriram-lhe que poderia ganhar dinheiro distribuindo papéis à saída da Gare Saint-Lazare. E assim fez durante alguns dias, uma vez vencida a inicial apreensão que lhe causou o estranho nome que os franceses tinham dado à estação. “É que percebi ‘Salazar’”, confessa a rir-se, “e aquilo deixou-me confuso: então ele também está cá?!”. Já acomodado no Quartier Latin, é com a ajuda de uma organização protestante, a Cimade, que arranja trabalho na Renault, na zona de Boulogne-Billancourt. Começa em Julho e inscreve-se imediatamente na grande federação sindical francesa, a CGT, próxima do PCF, que lhe proporciona uma formação de vários dias, da qual recorda, pela sua qualidade, a intervenção do então director do jornal sindical Vie Ouvrière, Henri Krasucki. O que mais o espanta, contudo, é o facto de a formação ser custeada pela empresa. “O patrão pagava para que eu aprendesse a reivindicar”. Esta consciência aguda das diferenças entre uma ditadura e uma democracia, afastava-o por vezes dos seus companheiros de luta franceses. “Houve uma manifestação, ainda antes de 1968, em que gritavam ‘abaixo a censura!’ porque um jornal se queixara, sem razão, de que que fora censurado, e lembro-me de dizer: ‘Vocês não sabem o que é a censura’. É claro que sabiam, porque a França viveu períodos de ocupação e ditadura, mas aquilo chocava-me um bocado”. Quando saía do trabalho, voltava ao Quartier Latin, onde frequentava à noite a Alliance Française. E em Novembro de 1967 deixa a Renault e passa os meses seguintes a fazer limpezas em estúdios de cinema. “Entrava às 5h30 e saía às 10h30, o que até me dava mais tempo para o trabalho político, que era sobretudo junto dos emigrantes portugueses”. Artur organizava-lhes as “permanências sociais”, isto é, tratava-lhes dos papéis e de outras burocracias, por vezes escrevia-lhes cartas para a família, o que também servia de pretexto para a doutrinação ideológica. “Era uma actividade pessoalmente desinteressada, mas politicamente motivada”. É também nesta altura que lança com alguns amigos o Jornal do Emigrante”, bastante abertamente político, cujo primeiro número saiu em Janeiro de 1968. Com a chegada a Paris de Jacinta, que entretanto fora libertada, muda-se para outro quarto de hotel, perto do Odéon. Aí compunha as contas trabalhando uma noite por semana no próprio hotel, como depois faria em Montparnasse, no Hotel du Ponant, muito frequentado por portugueses – “o José Mário Branco e a Isabel [Alves Costa] apareciam bastante por lá” – para pagar parte dos seus estudos no Instituto de Ciências Sociais de Montrouge. O seu primeiro envolvimento na actividade política em França, já fora do trabalho sindical na Renault ou do apoio aos emigrantes, foi ainda em 1967, nos comités Vietname, que “mobilizavam muita gente, alguma sem nenhuma militância política”. São estes comités que promovem, em Fevereiro de 1968, uma grande manifestação que contribuirá para o distanciar ainda mais do PCP e do seu partido irmão francês. “A palavra de ordem do PCF era ‘paz e independência’, fazendo depender a primeira da segunda, e a extrema-esquerda e os próprios refugiados vietnamitas gritavam ‘independência e paz’, defendo que não poderia haver paz sem independência”. Uma questão de precedência que acabaria, aliás, por levar ao afastamento de Artur do jornal O Trabalhador, uma publicação da CGT destinada aos operários portugueses. “Davam-me os artigos em francês para eu traduzir e um dia passaram-me um texto sobre o Vietname com o título ‘Paz e Independência’ e eu troquei a ordem das palavras – tiveram razão em afastar-me, foi uma infantilidade”. Surpresa de aniversárioNessa contagem final para o Maio de 68, participa ainda, em Abril, numa manifestação de homenagem a Martin Luther King, assassinado no dia 4. Mas apesar de acompanhar o crescendo de contestação desde o 22 de Março, o início do Maio de 68 foi uma surpresa. Na verdade, uma surpresa de aniversário. “Faço anos a 3 de Maio e fui jantar com a Jacinta a um pequeno restaurante no Quartier Latin”, conta. “Quando chegámos, já havia muita agitação na rua, mas ao sairmos o ambiente era irrespirável”. Não é uma força de expressão: o 3 de Maio é o dia que marca o início dos recontros violentos dos estudantes e militantes da extrema-esquerda com a polícia, e ao cair da noite a zona em volta da Sorbonne é já um verdadeiro campo de batalha. Levantam-se as primeiras barricadas e atiram-se pedras, a polícia de intervenção (CRS) usa granadas de gás lacrimogéneo, há mais de uma centena de feridos. Uma semana depois, na noite de de 10 para 11, Artur vê Paris encher-se de barricadas, mas o momento que mais o comoveu foi o 13 de Maio, quando os sindicatos se juntam ao movimento, começa a greve geral e centenas de milhares de pessoas desfilam pelas ruas de Paris. “Vim de Billancourt numa camioneta de caixa aberta da Renault, a empunhar uma bandeira vermelha”. Mas não foi só o entusiasmo colectivo que o impressionou, foi também a data. “Lembro-me de dizer aos meus amigos franceses que estar ali no dia de N. Sra. de Fátima era realmente o meu grande momento de ruptura”. Uns dias depois, dá-se um episódio cuja memória hoje o diverte. “Tive de ir à polícia para tratar de uma questão de papéis, porque íamos mudar-nos para Billancourt, e havia confusão na rua e a Jacinta apanhou com uma granada [de gás lacrimogéneo] no calcanhar”. Na esquadra, são levados para uma pequena sala. “Sentia-se um cheiro tão intenso que o polícia comentou ‘estão a dar-lhe forte!’ e foi fechar a janela”. Mas “afinal era a Jacinta que tinha a meia queimada”. Acabou por ter de ser tratada, e por um médico que Artur recorda com veneração: Henri Carpentier, um antigo resistente que trabalhava no dispensário do L’Humanité e a quem já costumava levar os portugueses de Billancourt com problemas de saúde. A afastar-se do PCP, mas sem militar em nenhuma organização de extrema-esquerda, vivendo no Quartier Latin, mas trabalhando com os meios operários da emigração portuguesa, colaborando com alguns intelectuais portugueses exilados em Paris, mas sem pertencer ao meio universitário, o envolvimento de Artur no Maio de 68 não era isento de algumas perplexidades e até de alguns receios. Colaborou com os Comité d’Action, que defendiam a insurreição permanente e a greve geral e tinham lançado o jornal Action – “foi aí que comecei a ter uma visão mais política do que se estava a passar” –, e participou em várias manifestações, mas tinha noção de que havia sempre o risco de poder ser detido e recambiado para Portugal. “Um amigo meu, José Albergaria, conseguiu escapar à última hora, e no caso dele ia ser complicado porque era mesmo desertor, eu só não me apresentara, mas, claro, tinha estado preso e tinha ficha na PIDE”. Mas não eram só os perigos. Se a sua memória de Maio de 68 é a de “um tempo muito entusiasmante e intenso”, de “um acontecimento de uma liberdade absolutamente extraordinária”, o seu próprio percurso dificilmente lhe permitiria estar no movimento com essa sintonia incondicional que animava os jovens estudantes. Ilustra-o um episódio inocente mas significativo. “Estava numa barricada a arrancar paralelepípedos, quando vi, de repente, uns dedos entre o pavimento e o ferro que eu trazia. Parei e pensei: ‘o que é que estou aqui a fazer?’”. Mas a rapariga a quem pertencia a mão, ao vê-lo interromper-se, lançou-lhe um ‘Alors, tu arrêtes?!’ tão impositivo que se sentiu coagido a retomar a tarefa. “Lá tirei mais aquele, mas depois parei de vez”. Já entre os emigrantes portugueses com quem lidava diariamente, o sentimento mais generalizado era o medo. “Não liam os jornais franceses, mas ouviam dizer que quem estava por trás daquilo eram os comunistas, e também receavam perder o trabalho por causa das greves e das pancadarias”. Criara ligações fortes com essas pessoas a quem ia servindo de escrivão oficioso, não apenas portugueses, mas também marroquinos, e foi-se dando conta de que, para eles, as greves não significavam apenas perder salário, mas também a angústia de não ter o que fazer. “Eram quase todos homens sozinhos, e quando não trabalhavam, não tinham em que se ocupar: não havia televisões, e se fizessem vida de café, iam gastar dinheiro”. No final de Junho, quando o movimento já estava na ressaca e se aproximava a retumbante vitória eleitoral gaullista, começa a trabalhar numa tipografia que imprimia o Paris Match e outras publicações. Era um emprego interessante para quem sempre tivera “o bichinho dos jornais”. Ainda adolescente, no Porto, publicara alguns textos nos suplementos juvenis do Diário de Lisboa e do República, e colaborara no jornal O Meu Amigo, do pensador portuense Ferrão Moreira. Mas teve azar. Um rastreio médico detectou-lhe uma tuberculose e já não chegou a assinar contrato. Chocolate para o povoEsteve internado vários meses e é no hospital que sabe da entrada dos tanques soviéticos em Praga, momento que marca a sua ruptura definitiva com o PCP. É também nos jardins desse hospital parisiense que se encontra um dia com o encenador Helder Costa, futuro fundador d’A Barraca, de quem se tornará amigo e com quem andará mais tarde envolvido nas lutas dos núcleos O Comunista, uma das estruturas que dará origem, ainda antes do 25 de Abril, por fusão com o grupo que publicava no Porto o jornal O Grito do Povo, à organização maoísta OCMLP. É no início dos anos 70 que Artur se aproxima mais da extrema-esquerda, colaborando com a organização Secours Rouge e com o jornal La Cause du Peuple, dos maoístas de tendência libertária da Gauche Prolétarienne, que virá a estar na génese mais ou menos directa do Libération. “Foi nessa altura que eles roubaram a confeitaria de luxo Fauchon [o assalto, em Maio de 1970, tornou-se um episódio célebre]”, lembra Artur. Mas logo se corrige, com um sorriso: “Roubaram, não, apoderaram-se dos chocolates em nome do povo, e distribuíram-nos nas bidonvilles de Champigny e Massy, e posso assegurar que era um excelente chocolate”. Em 1972, participa com outros portugueses nas manifestações de protesto contra o assassinato, por um segurança da Renault, do militante maoísta Pierre Overnay, cujo funeral reunirá 200 mil pessoas, incluindo Sartre e Michel Foucault. Essa actividade pós-68 ainda lhe custou um susto, quando o escritor Michel Le Bris, responsável do La Cause du Peuple, é preso, e como se vivia um momento de forte repressão da extrema-esquerda, este pediu ao seu advogado que contactasse todos os nomes que estavam na sua agenda de contactos, apreendida pela polícia. Artur era um deles. “Foi nessa altura que fiz um pedido para ficar com o estatuto de refugiado, que consegui com um papel que me mandou do Porto o Sousa e Castro a atestar que eu tinha tido estado preso por razões políticas. Artur trabalhará depois nos serviços de emigração da Embaixada Portuguesa, como responsável da informação, mas sai com o 25 de Novembro de 1975 e decide fazer uma formação de assistente social. A partir desse momento irá sempre trabalhar em serviços sociais. É essa também a especialidade da sua actual mulher, Françoise, que conhece dois ou três anos após o 25 de Abril quando vai à escola onde esta trabalhava para apresentar um filme sobre a Revolução dos Cravos. Hoje, aos 72 anos, Artur colabora numa associação peculiar, sem equivalente em Portugal, a Seuil, que organiza caminhadas para jovens a partir dos 14 anos em contexto social e educativo difícil, em muitos casos enfrentando ou já cumprindo penas de prisão. “Por recomendação dos serviços sociais, o juiz pode aceitar, em alternativa à prisão, que o jovem faça uma caminhada”, explica. São caminhadas de 1800 a 2000 quilómetros e que duram cem dias, nas quais os jovens, acompanhados por um só adulto recrutado pela associação, vão sempre para o estrangeiro (algumas acabam no Porto) e não podem levar telemóvel ou ouvir música. “A ideia é criar uma ruptura com o seu contexto anterior”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Já trabalha há oito anos com a Seuil, ao mesmo tempo que mantém, com o pseudónimo Arthur Porto, um blogue muito activo no jornal digital Mediapart, onde recentemente evocou o “seu” Maio de 68, terminando com uma referência à neta, que “à sua maneira e à do seu tempo, prolonga se não a convergência das lutas, pelo menso a convergência dos sonhos”. Antes de se dedicar à Seuil, Artur especializara-se em processos de mediação, quer tratando do acompanhamento de crianças em situações de divórcio, quer, por exemplo, resolvendo conflitos entre vizinhos. “A mediação é mais do que um processo, é um modo de estar, uma filosofia de vida”, diz. “Então o revolucionário do Maio de 68 tornou-se um conciliador profissional?”, provocámos. “Sim”, ri-se, “acho que no fundo nunca tive alma de radical”.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE PCP
França – Identidades malignas e revolta social
As reações identitárias ao atentado de Strasbourg e as teorias conspirativas que as acompanham lembram, na tragédia, que a crise francesa não se cinge à desigualdade. (...)

França – Identidades malignas e revolta social
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.48
DATA: 2018-12-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: As reações identitárias ao atentado de Strasbourg e as teorias conspirativas que as acompanham lembram, na tragédia, que a crise francesa não se cinge à desigualdade.
TEXTO: As medidas sociais de Macron não são os acordos de Grennelle, de 1968, que puseram termo à mais longa greve geral da História da França. Dez milhões de grevistas paralisaram o país e na sua confluência com a revolta estudantil abalaram De Gaulle. Com Grennelle os trabalhadores garantiram um aumento de 35% no salário mínimo. As concessões sociais do 10 de dezembro não foram negociadas com ninguém e por isso não tiveram contrapartidas — nem mesmo o fim dos bloqueios das estradas ou da violência. A melhoria significativa do poder de compra da classe média francesa com o aumento do salário mínimo e a diminuição de impostos não será suficiente para travar os sectores mais radicais dos Coletes Amarelos. A rejeição de Macron alimenta-se da aversão às elites liberais enriquecidas em anos de crise, mas também do ódio ao cosmopolitismo e ao liberalismo político dessas mesmas elites. Não nos enganemos: a questão identitária que atravessa e divide a França desde os anos 80 e que fez do triste debate sobre a “ameaça islâmica” uma especialidade francesa não desapareceu com a acuidade da crise social, estando bem presente na França profunda e semiurbana, origem dos Coletes Amarelos. O nacionalismo identitário é a ideologia não só da extrema-direita do RN de Le Pen, mas também da direita quase extrema, dos Republicanos de Wauquiez. Em França, como na maioria dos países ocidentais, há anos que confluem duas crises: uma social, produto do caráter predatório do neoliberalismo a que a crise de 2008 deu uma dimensão sistémica, e uma identitária, produto do fim da sociedade patriarcal, da universalização dos direitos humanos e da crescente diversidade das sociedades, que o debate sobre as migrações, o islão e o terrorismo cristalizam. Foi a confluência dessas duas crises, aproveitadas sem vergonha, que elegeu Trump e levou Marine Le Pen à segunda volta das presidenciais. O que torna a presente situação particularmente violenta e perigosa para a democracia é a confluência daquelas duas crises e a quase impossibilidade de, a curto prazo, as resolver. A solução da crise social pode ser construída com uma política económica de combate às desigualdades sociais, que abandone a convicção da teoria da destruição virtuosa e questione o paradigma de que a felicidade está no aumento do PIB e do consumo. A solução está na proposta de um novo modelo económico, mais amigo da natureza, com mais tempo para as coisas boas da vida, para a cultura e a convivência humana. Aliás, hoje, a mudança de modelo é condição para a sobrevivência da humanidade. O modelo predatório, na busca insensata dos aumentos de produtividade, de concentração urbana e motorização, fez da atividade humana o maior risco à vida no braseiro em que se está a tornar a Terra. A superação da crise identitária é também essencial para a vivência em comum, deverá assentar no respeito pelas diferenças, para que deixemos de viver em sociedades dominadas pelo medo do outro, em que as mulheres continuam a ser vítimas de todo o tipo de violência, em que o racismo, designadamente o antimuçulmano, se banalizou, em que se vê no “imigrante” e no “refugiado” um invasor e no muçulmano um “terrorista”, em que se sonha com muros que alienem a miséria e as guerras dos “vizinhos”, em sociedades em que ganham voz os que negam o caráter universal dos direitos humanos e os ressentem como uma agressão aos seus valores, em que o nacionalismo é de novo o aconchego ideológico de muitos, que voltam a procurar nos símbolos identitários religiosos ou históricos o refúgio de um mundo cujos valores lhe são hostis. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A satisfação da sede de justiça social deve ser a primeira prioridade da União Europeia, pela razão simples de que está ao alcance dos governos e tornará menos popular o nacionalismo identitário. Exige, porém, que se assuma que não é apenas uma questão nacional, mas sim europeia — o que implica que a Alemanha reconheça que o seu egoísmo e arrogância teve graves responsabilidades na crise. É necessário um salto na integração federal da Europa, com a criação de um orçamento europeu ambicioso, que combata as desigualdades e salve o modelo social europeu, respondendo às reivindicações das classes médias. Tal exige, como afirma o manifesto lançado por Piketty, uma democratização do processo europeu. A resposta à crise identitária não passa pela satisfação de preconceitos reacionários. Pelo contrário, são esses preconceitos que devem ser superados pela utopia da Europa da liberdade, da igualdade e da fraternidade. É fulcral um combate diário das forças progressistas contra o nacionalismo identitários anti-imigrantes, mas também contra o nacionalismo jacobino de uma laicidade radical feita religião de Estado e que destrói a tolerância religiosa e cultural. A confluência das duas crises ameaça a própria democracia liberal francesa e com ela a União Europeia. Os Coletes Amarelos trouxeram para a ribalta a questão social, mas o atentado de Strasbourg pode trazer de novo a questão identitária para primeiro plano. É impreterível que os democratas franceses, de todas as correntes, se unam na procura de uma saída para a crise, que torne França um exemplo de um modelo de sociedade mais justa e hospitaleira, e os nacionalistas nos grandes derrotados desta crise. O futuro é incerto, mas pode e deve ser democrático.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos humanos violência cultura concentração racismo social consumo igualdade medo mulheres refugiado vergonha imigrante salário
ONU diz que já há dezenas de milhares de deslocados na Líbia Oriental
Os combates na região leste da Líbia podem ter já causado dezenas de milhares de deslocados e comprometido seriamente o fornecimento de serviços básicos e distribuição alimentar, avaliaram hoje as Nações Unidas. (...)

ONU diz que já há dezenas de milhares de deslocados na Líbia Oriental
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-03-23 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os combates na região leste da Líbia podem ter já causado dezenas de milhares de deslocados e comprometido seriamente o fornecimento de serviços básicos e distribuição alimentar, avaliaram hoje as Nações Unidas.
TEXTO: No mesmo relatório a ONU frisa que existe um “elevado nível de incertezas” sobre a actual situação humanitária dentro do território líbio, onde a coligação internacional iniciou no passado sábado uma ofensiva de ataques aéreos contra as forças do contestado líder líbio, Muammar Khadafi – após ter recebido do Conselho de Segurança um mandato para “recorrer a todas as medidas necessárias para proteger os civis” naquele país. A agência calcula que estejam actualmente mais de 80 mil pessoas deslocadas dentro da Líbia, em fuga das suas cidades de origem devido aos combates. Mais de 335. 600 pessoas tinham já partido da Líbia desde o início desta crise, sobretudo para os vizinhos Tunísia (a ocidente) e Egipto (a leste) – e na sua esmagadora maioria cidadãos estrangeiros durante as primeiras semanas. O êxodo de estrangeiros começou pouco após a eclosão da rebelião armada contra Khadafi, a 17 de Fevereiro (dois dias depois das primeiras manifestações que o regime reprimiu violentamente), a que se juntaram mais tarde milhares de líbios, conforme as tropas do regime avançaram sobre as cidades “libertadas” pelos rebeldes. “A situação dos civis dentro e em volta de Ajdabiya [na Líbia Oriental), Misurata [no ocidente] e outras cidades onde os combates prosseguem continua a inspirar enorme preocupação”, nota em relatório o gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários da ONU. O mesmo documento contabiliza a morte de pelo menos 45 pessoas, incluindo crianças, entre segunda e terça-feira (a que carecem 189 feridos) nas batalhas de Misurata, e relata que a situação é “crítica” naquela cidade, “uma vez que não há água, nem combustível, nem electricidade”. As população nas cidades que estão a ser atacadas e cercadas pelas forças de Khadafi podem estar urgentemente a precisar da prestação de serviços básicos e alimentos, pois as redes normais de distribuição estão comprometidas pelos combates, sublinha aquela agência das Nações Unidas, exemplificando que “as necessidades de cuidados médicos na Líbia estão a aumentar drasticamente devido aos combates recentes e são ainda exacerbadas pela falta de pessoal clínico”. Nos últimos dias o alto comissariado das Nações Unidas para os refugiados (ACNUR) denunciara ainda relatos e testemunhos de que mulheres imigrantes de origem sub-sariana estão a ser raptadas e violadas por suspeitos líbios alegadamente membros dos grupos de mercenários que lutam ao lado das forças de Khadafi. Ao mesmo tempo, o ACNUR alertou que cidadãos com origem aparente da Nigéria são assassinados pelas forças rebeldes ao regime, sob suspeita de serem mercenários ao serviço do líder líbio.
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Portugal cala-se sobre violações de direitos em África por "razões económicas"
Salil Shetty, secretário-geral da Amnistia Internacional, considera que os direitos humanos estão em retrocesso na Europa e lamenta que mesmo líderes europeus “com visões progressistas” fiquem “em silêncio por medo de perderem votos”. (...)

Portugal cala-se sobre violações de direitos em África por "razões económicas"
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 | Sentimento 0.1
DATA: 2014-05-06 | Jornal Público
SUMÁRIO: Salil Shetty, secretário-geral da Amnistia Internacional, considera que os direitos humanos estão em retrocesso na Europa e lamenta que mesmo líderes europeus “com visões progressistas” fiquem “em silêncio por medo de perderem votos”.
TEXTO: É por “razões económicas” que Portugal nada diz sobre violações de direitos humanos em países africanos a que está ligado. A denúncia é do secretário-geral da Amnistia Internacional, Salil Shetty, que ontem se encontrou com o primeiro-ministro, Passos Coelho. Horas antes, falou ao PÚBLICO sobre assuntos como a discriminação na Europa e disse que as políticas migratórias actuais consistem em “empurrar as pessoas para fora”, o que é um erro porque “mais imigração representaria mais sucesso económico”. Nos contactos que tem mantido em Lisboa, Shetty, 53 anos, indiano, lembra que a Amnistia foi criada em 1961, depois de o fundador, Peter Benenson, ter lido uma notícia sobre a detenção de estudantes portugueses. “Não existiríamos sem Portugal. ” Em véspera de eleições para o Parlamento Europeu falou também sobre assuntos como a Síria – “provavelmente a maior tragédia do nosso tempo” – e os programas de vigilância global em larga escala. Edward Snowden “está do lado certo do direito internacional”, afirma. Veio falar sobre discriminação na Europa. Como avalia a situação e como acha que se deve lidar com ela?Estamos muito preocupados com os retrocessos dos direitos humanos desde há uns anos. Estamos focados em duas dimensões: o tratamento de refugiados, imigrantes e requerentes de asilo; e a discriminação contra ciganos. São exemplos da inversão dos valores fundamentais da inclusão e igualdade. E a crise económica agravou a situação. Esses valores estão em perigo?Sim. Os membros da Amnistia em Portugal contaram-me que quando vão às escolas falar da pena de morte, jovens de 15 e 16 anos acham que a pena de morte é uma coisa boa. Pensaríamos que na Europa isso seria coisa do passado, mas essas ideias estão a voltar. Vimos em Lampedusa [ilha italiana, importante porta de entrada de imigrantes] pessoas que vinham a fugir de perseguições, de violência, da pobreza, literalmente empurradas de volta para o mar e muitos morreram… Diz-se que a Europa está cheia e não pode receber mais gente mas o número dos que acolhe é muito pequeno. O caso dos ciganos é também um exemplo de discriminação e aí a questão institucional é importante: há legislação anti-discriminação mas não é utilizada. Veja-se o caso da República Checa. Critica a Europa pelas suas políticas migratórias e de asilo e por achar que a resposta à vaga de refugiados da Síria foi inadequada. O que é que a Europa podia fazer diferente?As políticas actuais assentam na detenção, em empurrar as pessoas para fora, o que leva a graves violações dos direitos humanos e não corresponde aos padrões europeus. A detenção é um último recurso. Em Junho, o Conselho Europeu vai discutir estas políticas e o que propomos é que o sistema de busca e resgate existente serva para proteger os imigrantes, refugiados e requentes de asilo e não para os manter à distância. O apoio que é dado pela Europa aos países por onde entram é muito fraco, deve ser reforçado. Outra dimensão é o outsourcing que a Europa tenta fazer do problema: procura manter os imigrantes em países como a Líbia, Marrocos, Turquia, para não virem, mas isso não pára a imigração. Erguer barreiras não funciona. O que defendemos é que deve haver mais formas de permitir que as pessoas entrem legalmente. Em que medida é que a crise influencia as políticas de asilo? As políticas existentes foram definidas antes da crise. A crise foi usada por grupos populistas para atacar pessoas. O argumento económico contra a imigração é muito fraco. Na maior parte dos países, mais imigração representaria mais sucesso económico. Quando há crise aparece esse argumento de que os imigrantes devem partir mas a verdade é que os imigrantes normalmente fazem os trabalhos que mais ninguém quer fazer. Toda a gente beneficia. Falou de sentimentos anti-imigração. Como encara o crescimento de grupos extremistas?O bom da democracia é que todos podem expressar os seus pontos de vista mas precisamos de liderança. Infelizmente mesmo líderes com visões progressistas ficam em silêncio por medo de perderem votos. A liderança implica não estar apenas preocupado com a próxima eleição mas com a próxima geração. Se se acredita em valores não se pode ter políticas de imigração e de asilo contrárias a esses valores, que contrariem os direitos das pessoas. A Europa vai ter agora eleições. Qual é melhor cenário pós-eleitoral em matéria de direitos humanos? Se considerar por exemplo a austeridade, que é um problema sério em muitos países, como Portugal, Espanha, Grécia, Irlanda, e me perguntar o que é um bom resultado nesses países, digo-lhe que não importa quem ganhe, o que importa é que sejam pessoas sensíveis aos direitos das pessoas vulneráveis porque infelizmente a austeridade foi provocada por alguns mas as consequências atingem os mais vulneráveis. Precisamos de Parlamento Europeu de pessoas sensíveis aos direitos humanos e que os promovam. É esse o melhor cenário.
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“Dizer que estes fanáticos nada têm a ver com o Islão é o cúmulo do politicamente correcto e é contraproducente”
O Corão está na base do terrorismo jihadista, como dizem alguns? Ou será que os sangrentos atentados perpetrados por jihadistas nada têm a ver com o Islão, como afirmam outros? Quem são os “muçulmanos moderados”? O que é a “comunidade muçulmana” de que tanto se tem falado nas últimas semanas? Estes clichés têm gerado muita confusão na opinião pública ocidental. Mas há cientistas que tentam perceber as raízes profundas do terrorismo para além das ideologias subjacentes. (...)

“Dizer que estes fanáticos nada têm a ver com o Islão é o cúmulo do politicamente correcto e é contraproducente”
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Corão está na base do terrorismo jihadista, como dizem alguns? Ou será que os sangrentos atentados perpetrados por jihadistas nada têm a ver com o Islão, como afirmam outros? Quem são os “muçulmanos moderados”? O que é a “comunidade muçulmana” de que tanto se tem falado nas últimas semanas? Estes clichés têm gerado muita confusão na opinião pública ocidental. Mas há cientistas que tentam perceber as raízes profundas do terrorismo para além das ideologias subjacentes.
TEXTO: Scott Atran (62 anos), antropólogo e psicólogo do Instituto Jean Nicod, em Paris, e da Universidade do Michigan (EUA), quer desvendar as raízes do terrorismo recorrendo à metodologia científica. Tem entrevistado e realizado experiências de psicologia envolvendo colonos israelitas, refugiados palestinianos, líderes do Hamas e grupos islâmicos radicais do Paquistão e da Indonésia – tendo colocado muitas vezes a sua vida em perigo em nome da ciência. O seu último livro, Talking to the Enemy: Faith, Brotherhood, and the (Un)Making of Terrorists, publicado em 2010, tem por base esse trabalho. Na sequência dos atentados perpetrados em Paris em Janeiro, contra o semanário Charlie Hebdo e um supermercado kosher, o PÚBLICO pediu-lhe para esclarecer uma série de questões e alguns mal-entendidos que o terrorismo jihadista tem vindo a reavivar, em relação às populações e à religião muçulmanas, na opinião pública dos países ocidentais. A religião islâmica conduz ao terrorismo?Podemos dizer que existe hoje uma corrente violenta e brutal dentro do Islão que inspira o terrorismo. O ódio do “outro” é inerente ao Corão?Sim, tal como ao judaísmo e ao cristianismo. Mas a relação entre crença religiosa e acção depende totalmente da maneira como essa crença é interpretada e por quem. E pode ir do apoio absoluto e do sacrifício em nome da guerra ao apoio absoluto e do sacrifício em nome da paz. Mas os muçulmanos estão menos abertos à crítica do que outras pessoas?Os muçulmanos são geralmente tão abertos ao mundo judaico-cristão ocidental quanto o mundo judaico-cristão ocidental o é ao mundo muçulmano. Com uma diferença: conhecem melhor a história do Ocidente porque ela lhes foi imposta. Mesmo os chamados peritos do contra-terrorismo – já para não falar dos políticos, do público e da imprensa ocidentais – não sabem quase nada da história muçulmana nem de tudo o que ela significa: quem conhece uma única das centenas de histórias sobre os quatro primeiros califas? O paternal Abu Bakr, o gigante Omar (doce excepto com os seus inimigos), o multimilionário Otman e o devoto e corajoso Ali? É como dizer que nunca ouvimos falar de Napoleão ou de Abraham Lincoln…Mas a actividade jihadista leva muitas pessoas a pensar que os muçulmanos são mais dados a cometer actos de terror que os crentes de outras religiões. É assim?A maioria dos muçulmanos com quem falei não apoia a violência do Estado Islâmico (EI) ou da Al-Qaeda. Mas considera cada vez mais seriamente a ideia de um califado. “Talvez uma federação de povos muçulmanos, como a União Europeia”, como me disse um imã. Acha que o Islão ainda não se reconciliou com a secularidade e a modernidade – ao contrário, por exemplo, da Igreja Católica?Se estamos a falar da secularidade e da modernidade ocidentais, é certo que não o fez. Mas já houve uma era reformista no Islão, entre finais do século XIX e a Guerra dos Seis Dias em 1967. E o reformismo “reacendeu-se” durante a Primavera Árabe. Contudo, este movimento não se conseguiu organizar politicamente e nunca estabeleceu pontes com as massas religiosas, rurais e urbanas de trabalhadores pobres. O seu trabalho tenta perceber as raízes do terrorismo. Como se faz uma “experiência científica” com grupos jihadistas?Não temos grandes amostras de jihadistas. Portanto, temos de realizar entrevistas de fundo no terreno e, se possível, experiências muito controladas. E para o fazer, temos de convencer os jihadistas a pousarem as armas, a não falarem uns com os outros nem a qualquer líder que estiver por perto e a responder às nossas perguntas sem discutir. Quando ganhamos suficientemente a sua confiança para fazer isto, eles comportam-se como estudantes e fazem o que lhes pedimos. Claro que há certas perguntas que não é possível fazer. Não podemos perguntar se abdicariam da sua fé em Deus ou se mudariam de política ou de religião em troca de uma dada quantia de dinheiro. . . Aí, arriscávamo-nos a levar um tiro. O seu trabalho é perigoso?Às vezes. Tenho o cuidado de combinar os encontros de antemão, mas quando um exaltado que não me conhece de sítio nenhum aparece inesperadamente, em geral preciso de sair rapidamente de cena. Uma vez, tive de me esconder numa mesquita dos Lashkar-e-Taiba [uma das maiores organizações terroristas] em Rawalakot (Caxemira Livre) para fugir de uns tipos dos serviços secretos paquistaneses que estavam a tentar acabar comigo para me impedir de relatar um massacre numa aldeia. Noutra ocasião tive de saltar pela janela de uma casa de banho e esconder-me na selva. Foi em Poso Sulawesi, uma ilha indonésia entre Bornéu e Nova Guiné, que na altura era uma confusão de grupos jihadistas a combater cristãos. Um dos comandantes jihadistas tinha acabado de saber que eu era judeu e um dos meus amigos dentro da organização enviou-me um SMS a dizer que estavam a planear matar-me depois do pôr do Sol. Mas estas situações são raras. Normalmente, só temos de lidar com os ocasionais bombardeamentos do costume. Qual foi a principal conclusão do seu trabalho?A de que uma combinação de valores sagrados e de fusão identitária pode produzir aquilo a que eu chamo “actores devotos”, por oposição a “actores racionais”. Desde a segunda guerra mundial, os analistas militares norte-americanos têm atribuído o espirito de combate [das tropas] à liderança e considerado que as manifestações de camaradagem no combate são uma manifestação racional de interesse pessoal. Mas o nosso trabalho mostra que a devoção incondicional a uma causa sagrada, aliada a um compromisso incondicional com os camaradas, pode levar os elementos de um grupo a fazer sacrifícios extremos, totalmente desproporcionados em relação às suas perspectivas de sucesso. Quais são as motivações dos terroristas que cometem atentados como os de Paris?Aventura, glória, importância. Trata-se na maior parte de jovens adultos numa fase de transição na sua vida – estudantes, imigrantes, pessoas entre dois empregos ou duas relações sentimentais – que abandonaram a família onde nasceram e estão à procura de uma nova família de amigos e de companheiros de viagem que possam dar sentido às suas vidas. E aqueles que vivem nas franjas da sociedade são particularmente vulneráveis ao canto da sereia jihadista. Como é que os terroristas são recrutados?Não há propriamente um recrutamento. Trata-se de pessoas que se auto-radicalizam e procuram algo, não de guerreiros disciplinados. Não nos devemos deixar enganar pelo treino no Iémen. Os atacantes franceses eram muito semelhantes aos bombistas de Madrid ou do metro de Londres. Inspiram-se nos líderes jihadistas, sentem-se atraídos pelo Estado Islâmico ou pela Al-Qaeda, mas não são estes grupos que os identificam, os criam ou lhes fazem uma lavagem ao cérebro. Está a dizer que o terrorismo jihadista no Ocidente se deve em parte ao falhanço dos Estados na integração dos jovens muçulmanos?Sim, mas o fenómeno vai para além dos muçulmanos. A alienação dos jovens ocidentais em relação às suas próprias elites no poder e aos valores das sociedades abertas também está a alimentar a franja xenófoba e nacionalista da direita – e portanto, existe uma aliança tácita entre o nacionalimo xenófobo de direita e o Islão radical. E, devido à estagnação económica bem como à imigração em massa não assimilada e à porosidade das fronteiras, começa a causar uma ruptura na classe média, tal como o fascismo e o comunismo provocaram uma ruptura social na Europa nos anos 1920 e 1930. Um problema central da sociedade europeia, para além do Islão radical, é o crescente desinteresse das pessoas em fazer grandes sacrifícios pelos valores liberais da democracia. Só em caso de grave ameaça é que uma tal disposição é sequer exprimida, enquanto a vontade [dos terroristas] em se sacrificar em nome da jihad, da sharia ou do califado é hoje prevalente, inclusivamente em condições experimentais, mesmo na ausência de ameaças específicas. Essa radicalização tem lugar principalmente em mesquitas? Os terroristas radicalizados nas mesquitas são uma minoria. Cerca de três em cada quatro pessoas que se juntam à jihad no Ocidente fazem-no através de amigos e cerca de 15% através de um familiar. Há muito, mas muito poucos que o fazem por causa das mesquitas ou enquanto “discípulos” de alguém. O que é um “muçulmano moderado”, expressão popularizada nos últimos tempos?É algo que não existe. É uma versão ocidentalizada do “bom muçulmano”. Ouço frequentemente os políticos e a imprensa pregar o “Islão moderado” como sendo uma solução. É estúpido. Eu pergunto-lhes: “Não têm filhos adolescentes? Desde quando é que eles querem coisas moderadas? Querem heróis, querem ser importantes, querem aventuras, glória, a realização de ideais jovens. E o que é que as nossas democracias lhes oferecem? O sonho dos centros comerciais. A jihad é a única ideologia “anti-establishment” sistémica que está a crescer no mundo. E uma reacção idiota a essa realidade, associada à publicidade histérica e ao medo, garante o seu crescimento continuado. Existe uma "comunidade muçulmana" que poderia, como afirmam alguns, ser tida como responsável dos ataques de Paris?Tal como na cristandade, tirando uma adesão básica ao Islão, não existe uma população muçulmana política ou culturalmente identificável pelos seus traços comuns e que congregue pessoas em França, no Ruanda, no Egipto e maias da Guatemala. Mas a jihad é uma parte muito proeminente da pressão política exercida pelos islamistas radicais para recuperar, sem piedade nem hesitação, o controlo de um destino que acreditam ter sido interrompido pelo Ocidente. Há quem diga que não é possível separar o terrorismo jihadista do Corão. O que acha desta posição?A interpretação dos textos sagrados pode ser tão aberta como a da poesia. É por isso que existem os sermões semanais: para fornecer uma interpretação adaptada ao presente. E é essa abertura interpretativa que torna as religiões tão adaptáveis no tempo e em função do contexto. E o que dizer daqueles que têm medo de ser acusados de islamofobia se ligarem a jihad ao Islão? Que se pensam isso, nem a lógica nem os factos os conseguirão ajudar. Dizer, como François Hollande, que estes fanáticos nada têm a ver com o Islão, é o cúmulo do politicamente correcto e é contraproducente. Em vez de encarar esta tendência brutal do Islão radical e as razões pelas quais ela é tão atraente, nega-se simplesmente a sua existência, à maneira de uma avestruz. Considera-se que se trata de niilismo, de fanatismo ou de um disparate desse género. É ser-se deliberadamente cego ao que está a acontecer e ao que é preciso fazer. O que é preciso fazer?Primeiro, perceber que o jihadismo, tal como o nazismo, é motivado por um real sentido de virtude moral. Porque sem virtude, não seria de todo possível fazer o voto de matar tanta gente que nunca fez mal a ninguém. Em segundo lugar, as pessoas mais ameaçadas pelos jihadistas devem ser encorajadas e capacitadas para se rebelarem contra eles. O EI e a Al-Qaeda querem trazer as suas guerras para as ruas do Ocidente para reforçar a aliança tácita entre a direita radical e o Islão radical, de forma a marginalizar ainda mais as populações muçulmanas da Europa e levá-las a ver a jihad como uma alternativa viável. É pouco provável que o “Islão moderado” (na Europa) e a democracia (no Médio Oriente e na África do Norte) sejam antídotos suficientemente fortes e credíveis. As eleições só têm significado democrático quando sustentam valores liberais: uma imprensa livre, uma justiça igual para todos, a tolerância das minorias ou até as opiniões ultra-minoritárias. Os norte-americanos pensaram que bastava ter eleições para obter uma democracia à imagem da sua no Iraque e no Afeganistão – à semelhança dos britânicos, que pensavam que bastava pôr uma peruca na cabeça dos juízes dos tribunais africanos para garantir justiça e igualdade de todos perante a lei. Que ignorância histórica, que arrogância! Seria cómico se os resultados não fossem tão destruidores.
REFERÊNCIAS:
Instagram foi a ferramenta preferida dos trolls russos para "desinformar e dividir"
Relatórios independentes pedidos pelo Senado norte-americano acusam empresas de redes sociais de responderem à interferência de forma "tardia" e com informações "evasivas e deturpadas". (...)

Instagram foi a ferramenta preferida dos trolls russos para "desinformar e dividir"
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.25
DATA: 2018-12-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Relatórios independentes pedidos pelo Senado norte-americano acusam empresas de redes sociais de responderem à interferência de forma "tardia" e com informações "evasivas e deturpadas".
TEXTO: Dois estudos independentes das universidades de Oxford, no Reino Unido, e de Columbia, nos EUA, corroboram a acusação das agências de serviços secretos norte-americanas e do Departamento de Justiça de que houve uma campanha de desinformação e propaganda lançada a partir da Rússia e usada em 2016 para apoiar a candidatura de Donald Trump à Casa Branca. Mas mostram que essa campanha começou anos antes das eleições, foi sendo adaptada a cada nova realidade na política do país e espalhou-se por todas as principais redes sociais na Internet, com particular destaque para o Instagram. As duas investigações foram divulgadas esta semana, mas pedidas no ano passado pela Comissão de Serviços Secretos do Senado norte-americano, que lidera um dos inquéritos às suspeitas de interferência russa na campanha para as presidenciais de 2016. Uma dessas investigações foi feita pela Universidade de Oxford e pela empresa de análise de redes sociais Graphika; a outra é da empresa de cibersegurança New Knowledge e da Universidade de Columbia. Durante mais de um ano, as duas equipas analisaram mais de dez milhões de posts e mensagens em redes sociais e outros serviços como o Facebook, Twitter, Instagram, YouTube, PayPal, Google+, Tumblr ou Reddit, entre outros. Essas mensagens foram disponibilizadas pelas empresas a pedido do Senado. Em termos gerais, ambas as investigações chegam a conclusões muito semelhantes, desde a forma como a campanha foi evoluindo ao longo dos anos até à resposta das empresas de redes sociais a partir da segunda metade de 2017, quando a Google, o Facebook ou o Twitter começaram a reconhecer que os seus serviços foram usados para influenciar os eleitores norte-americanos. Uma das conclusões mais surpreendentes é a de que o Instagram foi a rede social mais usada pela empresa russa Internet Research Agency para partilhar informações falsas e reforçar sentimentos já existentes na sociedade americana, como os protestos contra a violência policial sobre cidadãos negros ou a desconfiança em relação a imigrantes e refugiados. O papel da Internet Research Agency é referido há muito tempo – é uma empresa com sede em São Petersburgo conhecida como a "fábrica de trolls" russa. Em Fevereiro, a empresa e 12 dos seus funcionários foram acusados formalmente pelo Departamento de Justiça norte-americano de interferência criminosa "no processo político e eleitoral" dos EUA. Segundo a equipa do procurador especial Robert Mueller, a Internet Research Agency é financiada pelo empresário russo Ievgeni Prigozhin, próximo do Presidente Vladimir Putin. Segundo os relatórios divulgados esta semana nos EUA, as imagens partilhadas em contas criadas pela empresa russa no Instagram receberam 187 milhões de comentários e "likes", mais do que em posts e mensagens da mesma autoria publicados no Facebook e no Twitter em conjunto. "A atracção do Instagram é que é lá que os mais jovens estão, e parece ter sido o alvo preferencial dos russos", disse Philip N. Howard, director do grupo de investigação de Oxford. Os autores dos estudos apresentam vários exemplos de posts e mensagens que dizem ter sido criados a partir da "fábrica de trolls" russa, divididas em três grandes grupos: apoio a temas de campanha à partida mais próximos dos eleitores de Donald Trump, como as críticas ao controlo das armas e à imigração; um apoio, mais residual, à candidatura do senador Bernie Sanders contra a antiga secretária de Estado Hillary Clinton, no Partido Democrata; e uma atenção especial à população afro-americana, tradicionalmente mais próxima dos democratas, através de contas no Instagram e noutras redes sociais com o objectivo de reforçar as divisões na sociedade americana e lançar mensagens enganadoras para reduzir a participação nas eleições. Numa reacção às conclusões destes relatórios, a histórica associação de defesa dos direitos dos afro-americanos NAACP apelou a um boicote de uma semana ao Facebook, a partir desta terça-feira, acusando a empresa (que também é dona do Instagram) de disseminar "retratos enganadores da comunidade afro-americana". Os relatórios acusam as principais empresas, como o Facebook e a Google, de terem respondido de forma "tardia e descoordenada", e muitas vezes de forma "evasiva e deturpada", aos pedidos de colaboração do Senado norte-americano, deixando a dúvida a alguns congressistas sobre se esse comportamento terá sido propositado. "Se o Facebook não estava consciente [da campanha de propaganda], isso é um problema. Mas se eles estavam conscientes e não partilharam o que sabiam, o problema é outro, completamente diferente", disse Adam Schiff, do Partido Democrata, que será a partir de Janeiro o presidente da Comissão de Serviços Secretos da Câmara dos Representantes. Em particular, Schiff salientou o facto de os responsáveis do Facebook terem falado pouco sobre o papel do Instagram quando foram ouvidos no Congresso. No Senado, o presidente da comissão responsável pelos estudos divulgados esta semana, o republicano Richard Burr, disse que as conclusões mostram "a agressividade com que a Rússia procurou dividir os americanos por raça, religião e ideologia". Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Em comunicado, o Facebook disse que tem feito "progressos para prevenir interferência nas plataformas durante as eleições" e que reforçou "as políticas contra a supressão do voto antes das eleições intercalares de 2018", para além de financiar investigações independentes "sobre o impacto das redes sociais na democracia". Outras empresas, como o Tumblr, também disseram que apagaram "desinformação relacionada com a Rússia" antes das eleições do mês passado nos EUA. E quase todas as que reagiram aos relatórios divulgados esta semana, como o Twitter, garantem que reforçaram as suas equipas "para combater e prevenir o uso ilícito dos serviços".
REFERÊNCIAS:
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