“As mulheres devem estar nos lugares de decisão da Igreja”
O teólogo que fundou a comunidade monástica de Bose, Itália, mantém-se fiel à ausência de hierarquias. Procura a “espiritualidade a sério” e já ensinou um chef a confeccionar ovos pelo tempo de uma ave-maria. Bianchi não hesita ao dizer que “é estúpido querer saber se o inferno está vazio ou cheio”. (...)

“As mulheres devem estar nos lugares de decisão da Igreja”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 9 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: O teólogo que fundou a comunidade monástica de Bose, Itália, mantém-se fiel à ausência de hierarquias. Procura a “espiritualidade a sério” e já ensinou um chef a confeccionar ovos pelo tempo de uma ave-maria. Bianchi não hesita ao dizer que “é estúpido querer saber se o inferno está vazio ou cheio”.
TEXTO: Ao fim de 50 anos, a comunidade monástica de Bose, em Itália, continua a ser uma experiência singular na Igreja de coexistência entre homens e mulheres de várias confissões cristãs. O seu fundador, Enzo Bianchi, e também seu prior até 25 de Janeiro de 2017, é uma voz activa na dignificação do papel da mulher na Igreja e diz que o papa Francisco “tem, de verdade, no coração a promoção da mulher”. São palavras proferidas poucos dias antes de Francisco ter nomeado três mulheres como consultoras para a Congregação para a Doutrina da Fé. Pela primeira vez na história da Igreja, as mulheres ascendem a este cargo e passam a ser maioria (três em cinco) neste órgão que já foi a Inquisição. A entrevista com Enzo Bianchi, que esteve em Lisboa com o filósofo Massimo Cacciari para uma das Lições Italianas organizadas pelo Instituto Italiano de Cultura e o Citer (Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião da Universidade Católica), é uma parceria do PÚBLICO com este centro universitário. Qual é, para si, a principal mensagem da recente exortação apostólica do papa Francisco, Gaudete et Exsultate?A mensagem central que eu identifico na Gaudete et Exultate é o destaque de que o verdadeiro santo cristão é um santo quotidiano, é um santo da vida normal, não é um herói, mas simplesmente quem na vida quotidiana, onde quer que se encontre, pode muito bem praticar o seguimento de Jesus Cristo, e vivê-lo a partir dos seus sentimentos, com as suas atitudes, com as suas preferências. Toda a vida humana é atravessada por fragilidade, por pecado, por contradições, mesmo aquela que tenta conformar-se à vontade de Deus. Mas é esta tentativa, este empenho, este esforço de amor que é a santidade comum. O papa chama-lhe “santidade ao pé da porta”, quase a convidar-nos a vê-la naqueles que habitam o mesmo condomínio, o mesmo alojamento, a reconhecê-la em vidas que são quase escondidas, que não têm nada de extraordinário, que não têm nada de heróico, mas podem igualmente ser vidas de observância e santidade cristã. É isso a que papa se refere quando fala da “classe média da santidade”?Não é que o papa peça uma vida média, no sentido de baixa, ou que não tenda verdadeiramente para uma santidade que seja plena. Porém, é como se dissesse que a santidade não é um projecto que o homem elaborou por si composto por uma construção de esforços heróicos e de méritos. A santidade é algo que Deus faz sobre as nossas vidas, as nossas vidas comuns, porque Deus purifica-nos dos nossos pecados e perdoa-nos. E dá-nos a força para arrostar as dificuldades. E nesta dinâmica, creio eu, está a classe média da santidade, como lhe chama o papa. As duas heresias de que o papa fala na sua exortação, o gnosticismo e o pelagianismo – hoje raras de se ouvir -, são uma resposta aos críticos conservadores?Certamente, o papa está a falar de duas tentações que estiveram sempre presentes ao longo da história da Igreja e estarão sempre presentes. Na história do cristianismo sempre se deram estas duas visões contrapostas, e ambas não correspondentes à verdade do Evangelho: de um lado, a ideia que tudo depende do homem, da vontade, simplesmente daquilo que ele faz, das suas obras; de outro lado, a ideia que a salvação é toda questão de conhecimento intelectual, de compreensão. Ora, o papa estigmatiza estes dois vícios permanentes, que renascem sempre no seio do cristianismo, mas não lhe pertencem, diferentemente das outras religiões que não vêem problema nisso. Exactamente porque tem esta fé no amor de Deus gratuito e preveniente, o cristianismo é profundamente crítico em relação seja ao gnosticismo, como ilusão que o conhecimento possa tornar-se meio de salvação, simplesmente como compreensão, sabedoria, seja ao pelagianismo, à soberba confiança na auto-suficiência das obras do homem. Certamente nestas duas tentações encontram-se também críticos do papa Francisco, porque de um lado ele é mal aceite por um certo intelectualismo católico que se alimenta de uma teologia decerto altíssima, mas que acaba por confiar mais em preceitos doutrinais que não na força do Evangelho e, portanto, o papa estigmatiza-os. Por outro lado, há uma resistência contra o magistério do papa que vem de uma atitude própria de alguns sectores conservadores, os tradicionalistas, que tendem a ver a santidade simplesmente como o resultado dos esforços das pessoas. Assim, mesmo a liturgia, perdida no mundo tradicionalista, torna-se não uma via de salvação na qual Deus perdoa os nossos pecados e nos acolhe na nossa miséria, mas torna-se simplesmente um trajecto para alcançar a comunhão com Deus que devemos merecer através de uma série de ritos, de observâncias minuciosas, como se isso fosse decisivo para a salvação do homem. Diz que o teísmo o assusta. Porquê?O deísmo é a afirmação de Deus como uma entidade meta-histórica, alheia à contingência que, ao contrário, é núcleo essencial da encarnação de Jesus Cristo, que é algo que podia não haver, é um acontecimento de liberdade radical. Pascal dizia por isso, com razão: “É melhor o ateísmo que o deísmo . ”Ora, também nós, porém, os católicos, estamos um pouco doentes de deísmo. Estamos presos numa tradição doutrinal em que primeiro afirmávamos Deus em si e, depois, afirmávamos Jesus Cristo. Mas este dualismo vem de um modelo cultural exterior ao cristianismo, que se aninhou nele. O que constitui o cristianismo é a absoluta centralidade de Jesus Cristo, a via, o caminho aberto por Jesus – “Eu sou o caminho”. Para chegar a Deus passamos por Jesus Cristo. O nosso Deus é o Deus de Jesus Cristo. Tudo isto faz, sim, que o teísmo, quando é afirmado de uma maneira autónoma em relação à cristologia, torna-se realmente uma espécie de deísmo e assim um grande problema para a fé. E creio que hoje há sectores culturais da Igreja que estão ainda ligados a um racionalismo metafísico que contorna o tema da encarnação, não o leva a sério. A fé em Jesus Cristo morto e ressuscitado dissolve-se assim numa religião desencarnada da história, num deísmo que mata a verdade central do cristianismo, que é Deus feito homem, feito carne. Como vê a possibilidade da comunhão dos recasados?Este tema, que, claramente, foi tratado pela [exortação] Amoris Laetitia, pelo Sínodo e pelo papa Francisco, é um tema, sem dúvida, não fácil, porque temos por trás um tempo em que precisamente se fazia crer às pessoas que os divorciados estavam excomungados. Os divorciados nunca estiveram excomungados pela Igreja. Havia em relação a eles uma disciplina de não admissão aos sacramentos, mas excomungados nunca estiveram. No entanto, no pensamento popular, pensava-se que eles estavam excomungados. E o papa justamente, e não simplesmente por uma condição de contingência, porque hoje os católicos divorciados são muitos, mas precisamente a partir de uma reflexão sobre o Deus que é misericórdia, abriu um caminho de acolhimento que não significa que os divorciados possam fazer automaticamente a comunhão. Isto não é verdade, porque fica assente o princípio doutrinal de que a fidelidade matrimonial é um dever absoluto, com o fundamento sobre uma palavra de Jesus no Evangelho, não é alguma coisa de que a Igreja possa dispor. O que o papa diz é que em certas condições, em certas situações, em que não se pode refazer uma história de fidelidade com o cônjuge anterior, em que se desenvolveram todas as exigências de justiça para com o outro cônjuge, e para com os filhos, e se há uma vida cristã e se há uma vida eclesial, quando todas esta condições são cumpridas, então deve ser dada ao recasados a possibilidade de iniciar um caminho que seja, antes de mais, de penitência, mas que, ao mesmo tempo, leve a usufruir dos dons que Deus nos dá nos sacramentos, e sobretudo na eucaristia, porque o papa Francisco repete o que tinha dito Bento XVI ao declarar que já o Concílio de Trento tinha estabelecido “A eucaristia não é um prémio para os bons, para os justos, mas é um dom oferecido para a salvação dos pecadores”. O Concílio tridentino, que decerto tem por trás a tradição católica, afirmou vigorosamente que a eucaristia é um sacramento para a remissão dos pecados, portanto, remite também os pecados. Tudo isto faz, assim, que, em certas condições, através do trabalho de discernimento, haja a possibilidade de os divorciados estarem na mesa da eucaristia. Mas esta não é uma lei geral e automática, prevê e requer caminhos de purificação espiritual. Para sintetizar: o que se dá é uma mudança de uma disciplina da Igreja, não uma modificação da sua fé ou da sua moral. Qual é o significado de uma exortação apostólica que defende claramente a mulher, a exalta, falando até de um “génio feminino”, e a liga a períodos muito difíceis da história da Igreja?Creio que o papa Francisco tem, de verdade, no coração a promoção da mulher e o desejo profundo que na Igreja haja esta possibilidade real de a mulher poder ser verdadeiramente um sujeito e não simplesmente uma destinatária, porque, de facto, está na hora de a mulher não estar na Igreja unicamente como corpo discente, mas ser parte de uma Igreja magisterial. Devo dizer francamente, todavia, que esta expressão “génio feminino”, que se deve a João Paulo II, não me satisfaz, assim como não agrada a muitas mulheres. Porque para haver um génio feminino, então deve haver um génio masculino, e entramos num jogo de distinções, algo vão. Creio que devemos estar atentos à retórica que às vezes a Igreja usa, sobretudo em relação às mulheres e em relação aos jovens. A retórica é geralmente inimiga da mudança real de atitudes e um reconhecimento daquela metade do mundo que são as mulheres, não pode passar apenas por grandes palavras, mas antes de mais pelos factos. No seu livro Jesus e as Mulheres, fala dessa espiritualidade e da dificuldade da Igreja em aceitar a mulher. De que tem medo a Igreja, ao certo?Eu escrevi Jesus e as Mulheres exactamente para poder dizer que é absolutamente necessário procurar no comportamento e no estilo de Jesus em relação às mulheres alguma coisa que inspire também a praxis da Igreja hoje. Jesus teve discípulos e teve discípulas, teve um discípulo amado e teve uma discípula amada, Maria de Magdala. No final do Evangelho é Maria de Magdala a primeira a receber e transmitir a mensagem da ressurreição, o que faz dela uma apóstola dos apóstolos. Mas para definir o papel da mulher na Igreja não podemos focar-nos unicamente em Maria de Magdala, mas dar adequado relevo ao conjunto da palavra e dos actos de Jesus. Jesus viveu uma vida normal, entre o seu povo, em que procurou remover todos aqueles tabus e todas aquelas proibições que impediam uma verdadeira comunicação com as mulheres e que as retinha, mesmo às crentes, numa situação de menoridade em relação aos homens. Jesus enfrentou, combateu esses tabus, rompeu barreiras e há nos evangelhos tantos exemplos desta determinação e, no meu livro, estão todos descritos e comentados. Eu estou convencido de que a Igreja deve ter a coragem de iniciar este caminho na sequela de Jesus e que o primeiro passo deve ser de dar a palavra às mulheres. Termino, dizendo sobre a Igreja e as mulheres, que para que as mulheres façam parte da Igreja no papel de plena igualdade e dignidade que Jesus Cristo lhes reconheceu, para que as mulheres não se tornem uma parte em falta da Igreja, (o que é um risco crescente), é preciso que elas possam tomar a palavra. Isto é para mim o essencial: as mulheres devem estar nos lugares de decisão da Igreja, porque é preciso escutá-las. Há um princípio na tradição cristã: o que respeita a todos deve por todos ser tratado, meditado e deliberado. Não se pode pensar que isto não diz respeito às mulheres, que são a metade da humanidade. Por consequência, creio que se requer uma mudança radical, que suscita um grande medo em muitos, porque a Igreja é ainda muito clerical e os homens, sem dúvida, monopolizam os postos de poder, são eles que estão habituados há séculos a decidir e a representarem eles a Igreja e a não a deixarem representar também por uma mulher. São hábitos de séculos que devem ser mudados e tudo isto faz com que o caminho seja muito, muito difícil e custoso. Mas devemos sair da retórica mais depressa e dar passos muito concretos de forma que as mulheres se sintam verdadeiramente implicadas na vida eclesial como sujeitos e em plena igualdade. Há condições neste momento para uma mudança?Agora, para uma mudança com vista à ordenação das mulheres, não creio que haja condições, porque isto, por um lado, é um problema ecuménico que deve ser resolvido com a Igreja Ortodoxa e hoje não há maturidade do povo cristão para pensar que haja ordenações presbiterais dadas às mulheres. Mas ao lado desta questão há todo um caminho a fazer. Penso por exemplo, em quantos organismos poderiam ser confiados às mulheres e não serem simplesmente monopólio dos homens, clérigos e leigos. Se abríssemos este caminho, dar-se-ia sem dúvida uma mudança radical da condição de sujeição das mulheres na Igreja. A comunidade de Bose é uma comunidade monástica singular, juntando homens e mulheres de várias confissões cristãs. Quantas confissões cristãs tem hoje Bose e quantos elementos?A comunidade de Bose compõe-se de cerca de noventa membros, homens e mulheres. Os católicos constituem certamente a maioria, mas temos também um número significativo de membros das diversas igrejas da Reforma, e um pequeno núcleo de ortodoxos. A composição da comunidade de Bose é, decerto, igual à da Igreja actual e, para nós, isto é muito importante porque, em comunidade, experimentamos uma espiritualidade a sério, que sem fazer compromissos nem sincretismos, se alimenta de todas as tradições eclesiais e se enriquece com estas. É uma grande graça, e nós, agora, fazendo isto há 50 anos, vemos que esta comunhão no pluralismo das tradições é possível, que não é só fonte de uma reconciliação, mas que é possibilidade de um caminho comum e de uma única confissão do Senhor Jesus. Ao fim de todos estes anos, qual é a principal experiência de que Bose é testemunho?Não creio que tenhamos um carisma especial, porque estamos no interior da regra monástica. Certamente o nosso caminho teve dois elementos característicos que foram escolhidos como resposta a uma urgência que reconhecemos na altura da nossa constiuição e que se confirmaram como aspectos centrais da nossa experiência comunitária. O primeiro é a lectio divina (leitura orante da Bíblia), que fomos efectivamente nós a redescobrir no princípio dos anos de 1970 como praxis eclesial de primária importância e que a seguir se divulgou crescentemente na Igreja até que hoje ela é expressamente recomendada pelos papas. A revitalização da antiga tradição monástica da lectio divina é reconhecida como um marco da nossa comunidade e muitos vêm ainda a Bose, porque em Bose se pratica a lectio divina, porque em Bose todos os dias há a lectio divina e porque as nossas vidas são plasmadas por ela. A outra característica peculiar da nossa experiência é a coexistência de homens e mulheres. É decerto uma mensagem positiva, passados 50 anos desde a fundação da comunidade, não ter havido escândalos, nem situações difíceis, não houve ‘embaraços’, o que prova a nossa intuição de partida: homens e mulheres podem viver em conjunto, escolhendo consagrar-se inteiramente a Deus. O fruto deste convívio é uma certa maturidade afectiva, uma normalidade humana importante. Sermos homens e mulheres na Igreja, na comunidade, não deve tornar-se um factor de separação e de sujeição de alguns aos outros, mas deve afirmar-se como um enriquecimento recíproco, como a construção de um caminho comum. Tudo isto tem um significado peri-monástico que caracteriza Bose como uma forma de monaquismo numa sociedade secularizada. Um monge teólogo da grande abadia beneditina de Sainte-Marie-de-la-Pierre-qui-Vire, Ghislain Lafont, creio que era jovem quando disse que o monaquismo de Bose é o primeiro monaquismo que conseguiu inculturar-se numa sociedade secular. Creio que isto será o que decerto Bose deu, dá, e esperamos que possa ainda dar nos anos próximos. O que atrai os jovens que vão a Bose?Temos efectivamente a presença de muitos jovens, para os quais organizamos frequentemente acções formativas, jornadas teológicas, sessões de lectio divina, retiros… E temos uma procura que supera muito a nossa oferta. Não conseguimos efectivamente acolher mais do que cem, cento e vinte jovens de cada vez. Frequentemente os pedidos de inscrição alcançam o dobro. Porque vêm? Essencialmente, creio, por duas razões. Em primeiro lugar porque em Bose nós os escutamos. Os jovens querem ser escutados. Não devem ser tratados apenas como destinatários passivos de uma mensagem, mas devem ser reconhecidos também como sujeitos, portadores de uma palavra a escutar. Estou convencido que o que faz falta aos jovens não é atenção de os considerar destinatários de mensagens e ofertas, mas a escuta, o silêncio e paciência que os põe em condição de se exprimir. Em segundo lugar, o que atrai os jovens é o facto que a nossa proposta é extremamente simples e se articula em dois aspectos. Por um lado, o que fazemos é transmitir uma gramática humana básica para enfrentar a vida, para os ajudar a viver o caminho de humanização que deve ser a nossa existência. Porque um jovem tem absoluta necessidade de ser exercitado na escuta, na palavra, nas relações, nas histórias de amor, e é precisamente isto que nós procuramos fazer, na sabedoria possível de comunicá-lo e de verificá-lo juntos. Por outro lado, apresentamos aos jovens, simplesmente, humildemente, a palavra evangélica. Achamos que o nosso papel é oferecer aos jovens a possibilidade se se encontrarem com o evangelho, nada mais. Não insistimos noutros temas do cristianismo, nem em questões doutrinais, que eles terão tempo de percorrer e de assumir. A comunidade de Bose é uma comunidade onde os monges e as monjas fazem votos de celibato e vida comunitária. E é uma associação laica. Isso é importante para Bose?O monaquismo sempre foi um fenómeno de laicos, e nós não o devemos esquecer porque todos os padres do deserto eram laicos: Pacómio era laico, Basílio era laico, mesmo S. Francisco permaneceu laico, nunca se tornou diácono, como diz a lenda. Por isso, o monaquismo, por si, é laico e eu não quis de todo que fosse diferente. Devo dizer que os bispos [da diocese a que Bose pertence] que se sucederam me pediram que eu fosse ordenado padre, mas eu sempre recusei este convite, porque quero ficar um simples fiel, um simples laico como os monges. Não esqueço aquela frase dita por Pacómio ao patriarca de Alexandria, o grande patriarca que foi procurá-lo e que era Atanásio, e que perguntou: “E a comunidade?” E ele respondeu: “Somos simples laicos. ”O que eu escolhi foi simplesmente manter-me fiel a esta tradição. É claro que isto tem consequências. Por exemplo, ter menos vocações, porque muitos querem, sim, tornar-se monges, mas também padres, o que não é certo que seja possível ao escolher ser monge de Bose. Porque em Bose é só a necessidade da comunidade que determina a ordenação de um monge como padre. Se a comunidade precisa de um padre, então dá-se uma ordenação. Mas a maioria de nós fica laico para toda a vida. É uma escolha que afasta um número consistente de jovens, e todavia, vemos que há uma resposta constante, que para nós é suficiente. Não é tanto uma questão de números, quanto de qualidade da vida comunitária. Estamos contentes ao ver que a comunidade se mantém por meio desta opção como um corpo muito mais homogéneo, muito mais unido, porque somos irmãos e simples irmãos, sem hierarquias. O nosso reconhecimento jurídico, que foi feito pelo bispo, é de uma comunidade monástica, mas no nosso estatuto, como na nossa regra, a condição é laical. Ir para um mosteiro hoje é fugir do mundo?Não. O mosteiro deve sempre ter esta posição de estar não marginalizado, mas marginal, nas bordas, porque se o mosteiro se separa do mundo torna-se uma seita. Deve absolutamente estar sempre à escuta do mundo, ter a capacidade de estar presente no mundo, testemunhando uma diferença, que não deve ser expressão de um medo, não pode tornar-se uma contracultura, uma forma de defesa e recusa da sociedade. Dentro do monaquismo há o celibato, uma vida fraterna comum, o trabalho e a oração criam uma antropologia diversa, em comparação com a que se encontra no mundo, mas diversa não significa contrária, não significa em luta, significa simplesmente que pode ser alternativa, porque é capaz de fazer esta estrada e a sente como a sua verdade, mas não é uma estrada de perfeição, não é um caminho melhor. O título do meu livro sobre a vida religiosa [em edição espanhola, No Somos Mejores, Una Vision Renovada De La Vida Religiosa] formula precisamente este ponto central: Nós não somos melhores. Voltando à Gaudete et Exsultate, o papa Francisco pede aos cristãos que dêem tanta atenção aos imigrantes e sobretudo aos pobres como se dá ao aborto. Surpreende-o isso?O papa, nesta exortação apostólica, põe os pontos nos is. Um primeiro ponto é deflacionar a contraposição entre a contemplação e vida activa. Ele diz que não podemos refugiar-nos na oração e ignorarmos o irmão em necessidade, não nos pode recolher em silêncio e fugir assim daqueles que pedem ajuda. Ele recusa como um desvio este dualismo que polariza a vida contemplativa e a vida activa como formas alternativas de vida cristã, convidando a integrar estas duas dimensões na experiência de fé de cada um. Os cristãos seguem o Senhor, certamente em momentos de contemplação, de oração, de escuta da palavra de Deus, mas da mesma maneira devem escutar os homens, escutar as mulheres, escutar os irmãos, escutar os necessitados. Um segundo ponto no i, uma segunda chamada de atenção é feita aos católicos que fazem grandes batalhas contra o aborto, pela bioética, em defesa dos “seus valores”, e não fazem absolutamente nenhuma pelos migrantes, pelos pobres, por aqueles que sofrem a opressão. Neste caso, observa o papa, há uma defesa da vida muito teórica, cultural e política, que não corresponde a uma batalha igualmente determinada em prol da vida real, dos seres humanos em carne ossos, nas suas necessidades. Hoje há sectores da Igreja, nomeadamente nos Estados Unidos, muito empenhados em grandes batalhas identitárias, contra o aborto, contra a eutanásia, contra a moral sexual mas que não se ouvem em relação às situações de pobreza, injustiça, exploração, opressão que se vê no mundo. Isto é escandaloso, e é este dualismo que o papa denuncia de maneira muito forte. A dificuldade em se perceber o que é o humanismo cristão vem da dificuldade de se dizer a palavra “Deus”?Bem, sim e não, no sentido de que hoje, sem dúvida, a palavra “Deus” é uma palavra que se esvaziou muito, de forma dramática na última geração, no milénio actual. Muitos dizem que Deus já não interessa, que podemos viver a vida sem Deus. E frequentemente esta posição é associada a uma reivindicação humanista de tolerância e de convivência pacífica, porque no contexto actual de radicalismos e fundamentalismos emergentes Deus acaba por ser associado ao fanatismo, à intolerância religiosa, aparece exactamente como factor detonante do fanatismo terrorista. Deus é uma palavra que não goza de boa saúde actualmente e devemos tomar consciência disso. Mas o facto é que a fé dos cristãos não consta na confissão de um Deus em geral, de uma entidade suprema, abstracta, meta-histórica. O nosso Deus é o Deus de Jesus Cristo e Jesus Cristo revelou-nos Deus através de uma vida humaníssima. Portanto, é inspirando-nos na vida humana de Jesus que podemos avançar em direcção a Deus, um Deus inefável, indizível, de que não conseguimos dizer nada porque nunca o vimos, que é a fonte de vida, que é a fonte do amor, e que é o Pai de Jesus Cristo. Este é, na minha opinião, o caminho que devemos fazer. Onde há espaço para o humanismo cristão no mundo de extremismo, populismo, violência, discurso do ódio?Certamente hoje é fácil o fundamentalismo, é fácil a intolerância, em consequência, mesmo no interior da Igreja Católica. O papa, na exortação Gaudete et Exsultate lamenta-se da violência que se manifesta e se espalha na Web, no mundo da Internet. Mas creio que o humanismo cristão, exactamente porque é esta praxis que ajuda a convivência, que ajuda um caminho de humanização, pode ser extremamente fecundo hoje. E hoje, mais do que ontem, este humanismo evangelicamente inspirado é reconhecido antes de mais pelos mesmos cristãos, como uma mensagem de reconciliação e de integração social, como uma força que contraria a solidão e a fragmentação. O papa Francisco terá dito a um jornalista italiano que o inferno não existia. Faz sentido hoje discutirmos isto?O debate voltou de novo e decerto Eugenio Scalfari [jornalista italiano que alega ter ouvido essa frase ao Papa] interpretou como quis as palavras do papa. Porque o que o papa pode dizer, dentro de uma fidelidade ao Evangelho, é isto: que o inferno é uma ameaça que se encontra directamente nas palavras de Jesus. Ousarei dizer que, se há uma novidade do Novo Testamento, é a possibilidade do inferno. No Antigo Testamento, esta noção não se encontra: no Além veterotestamentário há um repouso, há uma escuridão, mas não se fala de ressurreição, de vida ultra-terrena, nem propriamente de condenação eterna. O Novo Testamento, pelo contrário, anuncia a ressurreição, que implica a possibilidade do inferno. Isso é de uma condição para além da condição terrena que se confirme na escolha existencial do pecado, como opção de viver sem Deus, sem amor. Este é o núcleo da palavra evangélica, que se reveste do imaginário judaico do fogo, da desolação de lugares ultraterrenos, mas estes são apenas ícones necessários para simbolizar o mistério. Para os cristãos, o que é isto?Para os cristãos, o imaginário dado por Dante dentro da Divina Comédia continua predominante. Como há o reino dos bem-aventurados, há um reino na profundidade do inferno onde há tormentos, sofrimentos diversos, conforme os pecados. Na realidade, do inferno não sabemos nada. Digamos que Jesus põe diante de nós a possibilidade de um caminho mortífero, que leva ao mundo sem Deus, sem amor, e uma vida com Deus, com amor, que é chamada Reino dos Céus, que é chamada paraíso. O que faz o cristão? O cristão sabe e deve saber que existem estas duas possibilidades diante dele e que é ele que escolhe, aqui. O que está em jogo nesta promessa de salvação e nesta possibilidade de perdição não é um segredo que nos escapa. O essencial é claríssimo para cada um: eu hoje escolho o inferno, hoje escolho o Reino de Deus, escolho por meio das minhas acções. Esta opção levar-nos-á àquilo que é um juízo diante da misericórdia de Deus e é isto, a consciência do juízo de Deus, de um Deus que conjuga misericórdia e justiça que conta e que deve condicionar o nosso discurso. Na minha opinião, é estúpido querer saber se o inferno está vazio ou cheio. O que interessa é se queremos ou recusamos o amor de Deus, vivendo-o como amor para os irmãos. Há apenas uma consideração que considero relevante a este respeito. Um verdadeiro cristão pode pensar na sua felicidade no Reino de Deus sem que ali se encontrem os outros? Uma pessoa não se salva sozinha. Por isso, a esperança de um cristão deveria ser que para o inferno não vai ninguém, que a misericórdia de Deus abrange tudo. Para dizer a verdade, quando penso no Além, temo o inferno, mas temo-o por mim, e pergunto-me: se para o inferno vai qualquer pessoa, porque não hei-de ir eu? Sou assim tão santo? Duvido, por isso, espero que ninguém vá para o inferno. É a atitude de Paulo que dizia: espero que a nenhum dos meus irmãos judeus aconteça que não seja salvo. É a atitude de tantos santos da tradição oriental, que diziam: se há o inferno, Senhor, manda-me a mim, para que outros não entrem no inferno. É a atitude de quem é nutrido de amor. Não pode haver um verdadeiro cristão que afirme que há inferno, porque quer mandar para lá os outros, pensando que ele não vai. O papa Francisco disse há algumas semanas: “Queridos jovens, vocês têm o que é preciso para gritar contra a anestesia. ” Cinquenta anos depois do Maio de 68, é a Igreja, o papa Francisco, a exortar os jovens a gritar. Há 50 anos a Igreja era o símbolo do conservadorismo. Não é uma ironia?Sem dúvida, que na história, sabemo-lo bem, há estes movimentos, estes refluxos, com uma oscilação entre momentos de grande esperança e, por consequência, também de contestação da situação existente e de batalhas para a mudança e momentos de recuo e bloqueio, em que todos parecem paralisados e mesmo as vozes de mudança se mostram extremamente fracas. No mundo ocidental estamos a viver um destes momentos de anestesia social e histórica. O problema é que todos, inclusive os jovens que geralmente são uma força de transformação, hoje estão muito homologados por esta cultura da sociedade de consumo. Então o papa quer acordá-los, dizendo “Gritai, não deixeis gritar as pedras” e desafia-os a tomar consciência do seu papel na história. Pois, também aqui estejamos atentos a que não se torne uma retórica. O que é preciso não é só dizer aos jovens “gritai”, mas é preciso dizer “Nós estamos dispostos a tomar-vos a sério e a escutar-vos. Digam-nos alguma coisa. Não basta gritar, digam-nos a nós que, juntos, queremos mudar as coisas. ”É conhecido o seu gosto pela cozinha. De onde lhe vem?Essencialmente da minha família e da minha terra, o Monferrato, que é sabido ser uma terra de grande tradição gastronómica, refinada pelo intercâmbio com a França. A minha avó era uma cozinheira francesa e o meu avô era padeiro. Não éramos uma família de lavradores, mas de artesãos, ligados profissionalmente à cozinha ou mais em geral à alimentação. A este contexto local e familiar acrescentaram-se as circunstâncias da vida: a minha mãe morreu quando eu tinha oito anos, o que me obrigou a preparar a comida para o meu pai que voltava do trabalho. Já aos nove anos eu era responsável pelo menos para a refeição do meio-dia, todos os dias. Desde então, nunca mais deixei de cozinhar. Cozinhava para mim e para os companheiros de alojamento quando estava na universidade, no alojamento tinha de preparar a minha alimentação. Continuei a cozinhar depois de mudar-me para Bose, porque pelo menos durante os primeiros seis ou sete anos eu era o único disponível para acolher aqueles que chegavam. Isto nunca foi para mim um peso, mas uma alegria. Por isso, quando devo fazer festa em comunidade ou quando convido amigos, a primeira coisa que gosto de fazer é cozinhar para eles, convencido de que fazer os cozinhados é a primeira maneira de dizer a alguém “quero-te bem”. Portanto, a comida na mesa é amor?Sim, exactamente, é a manifestação do amor. A mesa é o magistério do amor. Come-se, mas também fala-se, compartilha-se, para que haja comida para todos, dá-se atenção aos produtos que se utilizam. À mesa celebram-se todas as nossas histórias, os casamentos, os nascimentos, as mortes. A mesa é o lugar onde se iniciou a humanização, é o lugar onde nasceu a linguagem, a palavra. Então a mesa deve ser levada a sério. O problema é que hoje a mesa se tornou o lugar da máxima estranheza, quando a mesa tem a vocação para a máxima comunhão. O chef italiano e seu amigo, Carlo Petrini, diz que o ensinou a cozer ovos com base em ave-marias. Como é que as ave-marias são mais precisas que os relógios?A razão é muito simples: os nossos antepassados quando cozinhavam os ovos não tinham relógio e por isso tinham essa sabedoria extremamente camponesa, imbuída de religiosidade, que o tempo de fazer um ovo à la coque é exactamente o de rezar dez ave-marias, enquanto para obter um ovo cozido temos que contar o tempo de vinte pai-nossos… Hoje que temos os relógios, achamos que já não precisamos das ave-marias, mas se calhar eram as nossas avós que sabiam mais!Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. [Tradução de Rita Veiga]Corrigido a 8/5/2018, às 12h03. Enzo Bianchi foi prior da comunidade de Bose até 25 de Janeiro de 2017
REFERÊNCIAS:
Religiões Cristianismo Ateísmo
Siri Hustvedt distinguida com o Prémio Princesa das Astúrias de Letras
Fundação espanhola premeia escritora norte-americana, classificando a sua obra como “uma das mais ambiciosas do panorama actual das letras”. Tem seis títulos traduzidos em Portugal. (...)

Siri Hustvedt distinguida com o Prémio Princesa das Astúrias de Letras
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 9 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-05-22 | Jornal Público
SUMÁRIO: Fundação espanhola premeia escritora norte-americana, classificando a sua obra como “uma das mais ambiciosas do panorama actual das letras”. Tem seis títulos traduzidos em Portugal.
TEXTO: A escritora norte-americana Siri Hustvedt foi distinguida nesta quarta-feira com o Prémio Princesa das Astúrias. “A sua obra é uma das mais ambiciosas do panorama actual das letras”, diz o comunicado do júri, reunido em Oviedo. Descendente de emigrantes noruegueses, a autora de livros como O Mundo Ardente (2014) e Elegia para Um Americano (2008) aborda na sua obra “aspectos que desenham um presente convulso e desconcertante, a partir de uma perspectiva com raiz feminista, fazendo-o através da ficção e do ensaio, como uma intelectual preocupada pelas questões fundamentais da ética contemporânea”, diz ainda o comunicado do prémio asturiano. Comentando a distinção, Siri Hustvedt, que é mulher do escritor e cineasta Paul Auster, disse-se simultaneamente “surpreendida mas feliz, encantada e agradecida”. Os livros de Siri Hustvedt desdobram-se pelo romance — o mais recente dos quais, Memories of the Future, não tem ainda tradução portuguesa — e pelo ensaio, mas escreve também memórias, poesia e, inclusivamente, argumentos para cinema — como o que co-assinou com o seu marido, The Center of the World (O Preço da Fantasia, realizado em 2001 por Wayne Wang). As obras de Hustvedt estão traduzidas em mais de 30 idiomas e “contribuem para o diálogo interdisciplinar entre as humanidades e as ciências”, nota ainda o comunicado do prémio. Instituído em 1980 pelo então príncipe Felipe das Astúrias — actual rei de Espanha —, o prémio visa distinguir pessoas, entidades ou organizações de todo o mundo que tenham alcançado feitos notáveis nas áreas das ciências, das artes e humanidades e da vida pública. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Licenciada em História e doutorada em Literatura Inglesa, com uma tese sobre Charles Dickens — Figures of Dust: A Reading of Our Mutual Friend —, Hustvedt tem vindo a lidar com a dificuldade de se libertar da condição “mulher de. . . Paul Auster” (também já distinguido com o prémio asturiano em 2006): “a mulher de um escritor famoso que surge sempre como o responsável da educação da sua mulher”, comentou um dia a escritora, citada pelo jornal espanhol El País. Uma reflexão que perpassa também pelo seu ensaio mais recente, A Woman Looking at Men Looking at Women. As ciências, em particular a psicanálise e as neurociências, mas também a militância feminista e anti-Trump são outros temas na “agenda” da escritora. Em português, Hustvedt tem traduzidos os seguintes livros: De Olhos Vendados (Asa, 1995), Fantasias de Uma Mulher (Asa, 1999), Aquilo Que Eu Amava (Asa, 2005, e Dom Quixote, 2014), Elegia para Um Americano (Asa, 2009), Verão sem Homens (Dom Quixote, 2012) e O Mundo Ardente (Dom Quixote, 2014).
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens educação mulher princesa feminista
Europa elegeu pela primeira vez as suas muçulmanas mais influentes
Num jantar de gala em Madrid onde lenços ("hijab") unicolores e multicromáticos conviviam com penteados mais ou menos elaborados, a Europa elegeu, no sábado – pela primeira vez – as dez mulheres muçulmanas mais influentes do continente. (...)

Europa elegeu pela primeira vez as suas muçulmanas mais influentes
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 9 | Sentimento 0.375
DATA: 2010-11-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Num jantar de gala em Madrid onde lenços ("hijab") unicolores e multicromáticos conviviam com penteados mais ou menos elaborados, a Europa elegeu, no sábado – pela primeira vez – as dez mulheres muçulmanas mais influentes do continente.
TEXTO: Ndeye Andújar, feminista espanhola que é a directora do site Webislam. com, com mais de 12 milhões de visitantes por mês; Shaheeda Fatima, uma das mais destacadas advogadas do Reino Unido que está a preparar-se em Harvard para ser a primeira juíza muçulmana da Gra-Bretanha; Zaha Hadid, descrita como “uma diva com muitos prémios, paixão e ego” –, a primeira arquitecta a ganhar o Pritzker e recém-galardoada com o Stirling; Sabina Iqbal, fundadora e presidente do Deaf Parenting of UK, a primeira associação mundial dirigida por pais surdos para ajudar pais surdos (como ela); Lamya Kadoor, académica e fundadora da União Liberal-Islâmica, que dá voz aos muçulmanos alemães que “interpretam o islão de uma forma contemporânea”; Sineb El Masrar, fundadora e directora da revista "Gazelle", a primeira publicação multicultural dedicada a mulheres com raízes imigrantes; Bani Noo, jovem enfermeira de origem somali, presidente da Associação das Mulheres Muçulmanas da Suécia; Nabila Ramdani, jornalista e académica francesa de ascendência argelina, especialista em Médio Oriente, em assuntos islâmicos e em questões franco-inglesas; Hilal Sezgin, comentadora política e autora de vários livros sobre islão e islamofobia, multiculturalismo e feminismo islâmico na sua Alemanha natal; Anna Stamou, "marketing manager" da Associação dos Muçulmanos da Grécia, uma convertida ao islão que tenta oferecer a primeira mesquita e o primeiro cemitério à sua comunidade. A eleição das European Muslim Women of Influence é uma iniciativa, sem precedentes, da CEDAR (Connecting European Dynamic Achievers of Role Models), rede pan-europeia de profissionais muçulmanos que procura “gerar uma cultura de sucesso e de liderança entre as diversas comunidades muçulmanas da Europa” (cerca de 23 milhões de pessoas). A CEDAR contou com o apoio do Institute for Strategic Dialogue em Londres, da Casa Árabe em Madrid, do British Council, da Open Society Foundation e da Vodafone alemã. Todas as convidadas receberam uma estatueta de cristal, numa noite em que a diversidade europeia ficou bem visível nos corredores do luxuoso hotel madrileno Wellington, quando mulheres modestamente cobertas da cabeça aos pés se cruzavam, nos corredores, com as convidadas decotadas, transparentes e provocantes da “Boda de Gisele e Pedro” numa sala adjacente. Lehman SistersDepois de apelar à Europa para que imite o Brasil no modo como este país “ostenta orgulhosamente” os seus mosaicos étnicos e culturais, e para destacar o quanto as dez mais influentes podem ser fonte de inspiração, Cherie Blair, oradora de honra, arrancou aplausos à audiência quando disse que não basta ficar no patamar da tolerância. “Esta é aliás uma palavra de que não gosto”, admitiu a mulher do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair. “Prefiro falar de respeito e de parceria. ”“É muito mais aquilo que nos une do que o que nos divide” frisou Cherie Blair, adiantando que muitas mulheres muçulmanas querem ajudar as suas sociedades mas só encontram apoio verbal e nenhuma ajuda prática. Por isso, recomendou, é importante que aquelas que vencem inspirem as que estão em desvantagem. A este propósito a bem-humorada Cherie recitou uma história que ouviu à Presidente da Libéria Ellen Johnson Sirleaf. Numa visita a uma escola, as crianças estavam desassossegadas e a professora repreendeu-as. Nesse momento, uma criança levantou-se e dirigiu-se à ilustre visitante: “Tenha cuidado com o que me vai dizer, porque um dia também eu poderei ser Presidente”. Esta ousadia e este sonho seriam impensáveis, notou a mulher de Tony Blair, antes de a antiga economista do Citibank ter sido eleita, em 2005, a primeira chefe de Estado do primeiro país independente de África.
REFERÊNCIAS:
Partidos PAN
O clube dos poetas negros
Quase nenhum dos participantes tem livros publicados. Cruzaram-se no Djidiu, iniciativa do áudio blogue Afrolis, espécie de Clube dos Poetas Negros. É lá que dizem a sua poesia ou contam as suas histórias partilhando esta ideia do que é ser afrodescendente ou negro em Lisboa. (...)

O clube dos poetas negros
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento -0.16
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Quase nenhum dos participantes tem livros publicados. Cruzaram-se no Djidiu, iniciativa do áudio blogue Afrolis, espécie de Clube dos Poetas Negros. É lá que dizem a sua poesia ou contam as suas histórias partilhando esta ideia do que é ser afrodescendente ou negro em Lisboa.
TEXTO: Março, último domingo do mês. É um dos raros dias de Sol nesta Primavera tardia em Lisboa. Às mesas do bar Tabernáculo (R. de São Paulo) espalham-se jovens e uma ou outra criança. Começam, pouco a pouco, a tomar a palavra para dizer poesia, dirigem-se ao centro da sala, olham para uma “plateia” cheia. São homens e mulheres negros que se juntam para um momento de partilha. Trazem sobretudo material seu: poemas, histórias, apontamentos. Uma dupla de irmãos, Carlos Graça e Carla Lima, faz uma performance: ele diz a sua poesia, ela canta gospel. Encenam a intervenção. Os temas para este dia são macro e micro agressões. A maioria não fugirá da questão e relata experiências em nome próprio. Carla Fernandes, Alexandra Santos, Santiago d’Almeida, Michel Té (Te Abi Pequêrs Té), Luz Gomes, Apolo de Carvalho são alguns dos que trouxeram as suas palavras. O ambiente é descontraído, de festa mas também de intimidade. Junho, último domingo do mês. Estamos na Graça, em Lisboa, na Casa Mocambo, um espaço que serve cozinha africana e tem recebido algumas iniciativas culturais. As mesas são ocupadas por jovens, alguns estiveram na sessão de Março, mas há várias caras novas, e há também pessoas mais velhas. O tema é a família, e vão contar-se histórias de trabalhadoras domésticas ou falar de relações amorosas. Histórias, de novo, em nome próprio ou com personagens inventadas – que podiam muito bem ser reais. Quase nenhum dos participantes tem livros publicados. A maioria nem sequer tem um blogue ou site onde disponibiliza as suas criações porque geralmente aparecem e dizem poemas escritos de propósito para o evento, poemas que estavam na gaveta, poemas que estavam encravados. Entre Março e Junho aconteceram mais duas sessões de Djidiu “a herança do ouvido”, uma iniciativa da Afrolis – Associação Cultural onde participam poetas e contadores de histórias, ou quem esteja interessado na produção literária africana e negra. É sempre no último domingo do mês. As pessoas inscrevem-se e intervêm. Objectivo? “Produzir conhecimento sobre a própria realidade”. Porque a “experiência de vida como africanos / negros no mundo tem particularidades”, define-se. O Djidiu surgiu depois do Ciclo de Cinema Documental África Positiva, organizado na Casa do Brasil, em Fevereiro, também pela Rádio Afrolis. Criado em Abril de 2014, como aúdio blogue, o AfroLis – que agora é também uma associação – tem por missão divulgar a diversidade dos afrolisboetas. A passagem para o convívio surgiu porque queriam conhecer quem estava a aderir ao blogue, conta Carla Fernandes, a mentora. “Quisemos dar mais e receber mais”, explica, sentada numa das mesas do Tabernáculo, o local onde aconteceu o primeiro Djidiu público. A Afrolis reflecte sobre as experiências dos afrodescendentes negros em Lisboa através da rádio porque “é bom ter exemplos positivos, que é o que o audioblogue faz”. Mas “também é bom que as pessoas reflictam sobre a sua própria realidade”, e que o façam através da poesia, de contos ou de reflexões mais próximas da crónica explica. E é isso que se pretende também com o Djidiu. O tema do primeiro Djidiu, as micro e as macro agressões, surgiu para dar uma visão global da experiência dos afrodescendentes negros em Lisboa e reflectir de forma mais profunda sobre situações de racismo. Seguiu-se o tema da revolução e liberdade em Abril. Em Maio a temática foi África, Junho foi dedicado à família – segue-se o tema da beleza em Julho. O que são micro e macro-agressões? Um exemplo de micro agressão é pedirem para tocar e agarrar nos cabelos afro, diz Carla Fernandes, “porque o que está por detrás disso é a possibilidade de tocar no outro”, fazer dele “mais ou menos um objecto”, explica. “É uma coisa mínima. Mas quando se nega esse acesso, a micro-agressão pode-se tornar uma macro-agressão: ‘porque é que não me deixas tocar? Agora vou tocar mesmo, se não deixares vou-te bater…’”A apoiar esta actividade está o Grupo de Teatro do Oprimido, por isso todas as quartas-feiras o grupo reúne-se para trabalhar textos e discutir os temas. Levam autores como Noémia de Sousa ou Toni Morrison, autores de língua portuguesa e não só. Todas as sessões para o público são em locais diferentes porque a ideia é “mostrar que [nós, os negros] podemos ocupar os espaços em Lisboa”, diz. “Por isso é bom girar para nos habituarmos a entrar e a frequentar esses espaços”. “Basta/ Quero mudar de casta/ Quero sair desta vida que se arrasta/ posso? Posso agora dizer-te algo, patrão?” O poema Basta é da mentora da Afrolis. Falando agora como poeta, Carla Fernandes sente que a “a experiência de opressão”, “um historial manchado por humilhação, por exclusão” une este Clube dos Poetas Negros. “É uma experiência sofrida de formas diferentes, mas quando a trazemos à tona toda a gente tem um sentimento mais ou menos semelhante. Nem sequer são precisas muitas palavras. ”Jornalista e tradutora Carla Fernandes nota que a maioria do que é levado para “o palco” do Djidiu são “experiências transformadas em texto”, “não necessariamente poemas”. Há quem venha da spoken word, do hip-hop, da tradução, do contar histórias – tudo maneiras diferentes do que pode ser poesia. Basta/ Quero mudar de casta/ Quero sair desta vida que se arrasta/ Posso? Posso agora dizer-te algo, patrão?A pouco e pouco, o Djidiu começa então a formar-se como um Clube de Poetas Negros, que aliás era a ideia inicial do projecto. Apesar de haver pessoas brancas, o público é predominantemente formado por pessoas negras. “Há uma identificação com as temáticas e com os textos. Acho que faz sentido sublinhar o ‘poeta negro’ – se bem que sinto que há dificuldade em algumas pessoas em fazê-lo, sublinham mais a parte do africano. Mas o negro é a experiência comum a todos nós. ”Afrodescendente? Negro? Que palavra usar? Nenhuma é consensual, nota, mas afrodescendente “é um termo que tem potencial para ser uma categoria política, até porque é um termo que sai de um historial de luta”, acredita. O importante é “ir para a frente” com as questões comuns, acredita. A verdade é que é muito difícil separar a imigração da questão racial, pelo menos em Portugal. Há muita gente que nasceu em Portugal e é tratada como imigrante, há muita gente que se identifica mais com o país de origem dos pais, há muita gente que rejeita ser visto de outra forma que não como português. A nível institucional, a associação deparou-se com grandes dificuldades em concorrer a apoios, justamente por não se afirmar como uma entidade dedicada a imigrantes – não cabe, assim, nos apoios à imigração. Nascida em Angola, veio para Portugal com a família quando tinha dois anos. Criou o formato de áudio blogue com entrevistas semanais para dar voz aos entrevistados, fazê-los falar na primeira pessoa: “porque tantas vezes não falamos por nós”. Ela sente que se está a criar uma rede que não tem só a ver com a poesia, “o que é bom porque temos que criar espaços seguros para falar da experiência”. “Isso é muito importante, às vezes as pessoas não valorizam. No primeiro Djidiu uma pessoa verbalizou isso: ‘tenho este poema há anos, já fui a várias sessões de poesia, e nunca consegui ler porque pensava sempre que não era o lugar. Mas aqui sinto-me à vontade’, disse. E eu pensei: ‘é para isto que o Djidiu serve, para criar espaços seguros para nos podermos exprimir à vontade. ”De facto, não há assim tantos espaços como este. Carla Fernandes sentiu que era mesmo necessário criar algo assim. “Vai-se a muitos eventos, até sobre racismo, e quem fala mais são as pessoas brancas. E tu pensas: ‘então as pessoas que mais sofrem não estão a verbalizar porquê?’ Faltam espaços seguros. Não é para separar. É por uma questão de empatia, de olhar de reconhecimento. ”Entre 2008 e 2013, Carla Fernandes esteve ausente de Portugal, na Alemanha, e quando regressou notou uma grande diferença na “afirmação da identidade negra” em Lisboa, por isso acredita que este tipo de espaços e iniciativas estão e vão continuar a aumentar. “Ainda está numa fase inicial mas tem muito potencial”. As redes sociais ajudam muito: “Quanto mais acesso há ao que se passa noutros territórios, como Itália, Espanha, etc, onde há grupos que pensam nestas questões, mais se cria a noção de que não estamos sozinhos”. O Djidiu aproximou ainda mais os irmãos Carlos, 29 anos, e Carla, 27 anos. Nunca tinham trabalhado juntos. Carlos começou a escrever rap ainda novo com um MC da zona onde vivia, em Moscavide, Lisboa. As letras tinham sobretudo a ver com os problemas do bairro, com a realidade à sua volta. Por razões profissionais, parou. Os dois sempre ouviram música de Cabo Verde, de onde são os pais, e foram sendo influenciados pela mãe que escrevia. Carlos não podia ser rapper, mas podia dizer poesia falada. É um dos fundadores do Djidiu. Quando o Djidiu começou, convidou a irmã a juntar a sua voz de gospel. Tem muito a ver com criarmos o nosso espaço. Muitas vezes o pessoal pergunta: "por que é que os media não nos representam", ou X e Y não nos representam? Se temos capacidade, então vamos criar instrumentosCarla Lima: “Sempre fomos muito ligados à terra [Cabo Verde], era muito presente em casa. E sempre tivemos aquela coisa ‘de onde a gente vem’. Comecei a despertar para a questão de ser negra, africana, por causa do meu irmão. Via-o a estudar, interessei-me também e percebi que fazia sentido. Participei no primeiro Djidiu com a parte de música que adaptámos aos temas. Nunca tinha trabalhado com o meu irmão. Adorei, foi das melhores coisas que fiz até hoje”. Depois dessa estreia, Carla começou a escrever a sua poesia. “Escrevo sempre algo relacionado com África e com ser negra. O Carlos tem muito mais conhecimento da história. Eu uso sempre a minha experiência porque assim tenho a certeza do que estou a falar”. A ideia da Afrolis era dar voz a quem escreve e partilhar “o que é isto de ser negro, o que é ser africano”, lembra Carlos Graça. Vai vendo as pessoas que frequentam o Djidiu a consciencializarem-se de algumas situações de discriminação e a reagirem quando antes não o faziam. Nas sessões das quartas-feiras conversam muito sobre os temas, por vezes fazem os poemas em conjunto. Querem um ambiente familiar. No tema de Julho, os padrões de beleza, a ideia é questionar se “enquanto negros, realmente temos que seguir um padrão de beleza europeu”, por exemplo. “Sempre achei que era feia”, diz Carla Lima. “Tenho a pele clara, tenho os olhos claros, tenho o meu cabelo claro e mesmo assim nunca me senti integrada nos padrões de beleza”, confessa. O Djidiu surgiu da necessidade de criar “hábitos de pronunciação”, define. “Fala-se muito de África e dos negros mas não de nós para nós”. Carlos: “Tem muito a ver com criarmos o nosso espaço. Muitas vezes o pessoal pergunta: ‘por que é que os media não nos representam’, ou X e Y não nos representam? Se temos capacidade, então vamos criar instrumentos. Por isso o ciclo de África positiva: se os media nunca dão uma imagem positiva de África, então vamos mostrar nós para contrabalançar um bocado. ” Carla Lima completa: “Não é fantasiar, nem romantizar, mas mostrar o que há para as pessoas pensarem pela própria cabeça”. Está em pleno período de exames, e recebe-nos entre estudos e exercícios na Faculdade de Arquitectura, da Universidade de Lisboa. O edifício fica no alto da Ajuda, com vista para o rio Tejo. Lá dentro, imensos estiradores e desenhos, jovens conversam e mexem em cartolinas e papel. Porque a morte gosta de ausentar ânimas e de causar sofrimentos/ Porque Nelson Mandela gosta do sossego e da liberdadeEle anda sempre com a fotografia da mãe ao peito. Michel Té, ou Te Abi Pequers Té (na foto de capa), é um dos que está ligado à fundação do projecto Djidiu – natural da Guiné-Bissau, foi ele quem sugeriu o nome, por causa do enquadramento que estavam a querer dar à plataforma. “Djidiu é crioulo da Guiné-Bissau. O papel do Djidiu é muito vasto. Queríamos intervir e encontrei na palavra a identidade do grupo: Djidiu não é aquele que se limita a contar a história. É poeta, historiador, visionário político, contador de histórias, recita versos. Músico, filósofo. Escolhemos intervir pela oralidade, que é a função do Djidiu, uma biblioteca falante. Também queremos transmitir pela oralidade aquilo que sabemos”. Este poeta não data as coisas que faz, “porque posso pensar hoje e escrever daqui a um ano”, então nesse caso, de que data é o poema? Já participou em um par de antologias. Também não nos quer dizer a idade: “Quando é que eu nasci? Quando saí da barriga da minha mãe? Quando estava no útero? É necessário para a sociedade mas é uma banalidade. ” Para ele, “uma das coisas mais brilhantes no Djidiu é a partilha”. Se Nelson Mandela morresse era bem feito é um dos seus poemas. "Porque a morte gosta de ausentar ânimas e de causar sofrimentos Porque Nelson Mandela gosta do sossego e da liberdade Porque Deus é perfeito e conhece todo o nosso gosto Se Nelson Mandela morresse era bem feito Porque um BOM-GRANDE LIDER merece toda eternidade"Apolo de Carvalho tem 26 anos e trabalha em restauração. Está a tirar uma pós-graduação em Estudos Estratégicos e de Segurança e tem a ambição de fazer doutoramento em breve. Chegou à Afrolis através de Herberto Smith, o fotógrafo do aúdioblogue. Acordai, povos e nações/ Despertai e recordai as vossas grandes civilizações/ Mergulhai nús, livres e sem temorEscreve em português e em crioulo de Cabo Verde, onde nasceu. “Renascimento africano” é um dos seus poemas: “Acordai, povos e nações/ Despertai e recordai as vossas grandes civilizações/ Mergulhai nús, livres e sem temor (…) Parti em safari de introspecção tal iniciante destemido”. Viveu em França, e foi lá e em Portugal que descobriu a “África de Cabo Verde”. Escreve sobre a sua história e a necessidade de regressar às origens, e cada vez mais prefere dizer os seus poemas em crioulo cabo-verdiano. “Não existia um espaço como este, que convoca todos os afrodescendentes e africanos a contarem a sua história”, comenta sobre o Djidiu. “É importante porque acaba por ser um momento de vivência”, diz. É “como se fosse aquela grande árvore em África em que os anciões e os novos iam falando”, compara. “Acabamos por levar coisas e discutir temas polémicos – o mais interessante é que conseguimos desconstruir as nossas ideias de forma super harmoniosa. ”Os encontros têm ainda outra função: dar argumentos para a defesa de situações de racismo. “Arma-nos intelectualmente, dá-nos armas para saber como responder e defender-nos de situações dessas”, comenta. Depois há muita gente que não é africana que vai ao Djidiu, ouve e passa a palavra. “O mal de muitas associações africanas é que se fecham entre os membros, temos a mesma luta mas parece que estamos acantonados e esquartejados. A Afrolis procura trazer pessoas. ”“(…) Nesta linguagem de partes, que parte as pessoas em bocados, metades, pedaços, como se as pessoas não fossem por inteiro. Eu também sou negra porque há parte de mim que vem da negritude, sou parte de algo que me querem fazer acreditar não ter lugar em mim”. Escreveu poemas como este, Partes, que leu no Djidiu. E apesar de regularmente o fazer, é uma descrente na sua obra, nem se se considera poeta. Identifica-se mais com a palavra de intervenção, com a poesia falada, com slam. Alexandra Santos, Alexa, 29 anos, tem um blogue Queering Style, “espaço queer feminista que tem como missão a visibilidade de discursos e de identidades variadas” – começou como um blogue e é hoje um site e “sonho tornado realidade”. Tem várias colaborações e vertentes, da escrita à imagem. Nesta linguagem de partes, que parte as pessoas em bocados, metades, pedaços, como se as pessoas não fossem por inteiro. Eu também sou negra porque há parte de mim que vem da negritudeNo Centro Comercial Vasco da Gama, em Lisboa, perto do local onde trabalha, Alexa diz-nos que o Djidiu é um espaço “muito importante” para fazer sentir às pessoas que podem ter voz, que há outras pessoas como elas, para sentirem “que não estão sozinhas no mundo”. Especialmente por ter um lado “genuíno” e despretensioso que faz quem lá vai sentir-se à vontade para levar algo que está menos acabado ou que não considera “bem poesia”, por exemplo. A afirmação de um Clube dos Poetas Negros importa, defende. Sobretudo porque “dentro da nossa negritude – a minha mais clara do que outras – temos dificuldade em encontrar pessoas com quem nos identificamos, pelo menos no meu espaço a maioria das pessoas não são negras”. Dá o exemplo do cabelo, e do facto de “ser assediada” muitas vezes por causa ele, uma experiência que é facilmente e rapidamente partilhável e compreendida por quem passa por ela. Falar sobre o tema, escrever, e intervir é dar voz a estas questões e aos próprios negros, diz. “Tudo isto é criação de espaço e movimento. Nesta construção de comunidade – as coisas acontecem-me a mim e não só a mim – o Djidiu é importante. E é importante nas suas especificidades. Nem todos os jovens negros se irão identificar com um espaço como aquele – mas é bom que exista, e há outros que se identificam, e por isso pode-se transformar numa espécie de família. ”Alexa tem mais poemas sobre a questão racial. É um tema que a faz reflectir através de vários pontos de vista. Por ser “mais clara” sente “discriminação dos dois lados”: sendo que “não se pode chamar discriminação quando um grupo minoritário (negros) não se sente à vontade com alguém que tem obviamente mais privilégio (brancos)”, defende. A negociação “que faço neste corpo” é “às vezes de muito esticar” e constantemente de “educar e ver onde me encaixo”, confessa. “Não sou branca efectivamente, mas depois também não sou negra efectivamente. Tenho constantemente que me explicar. Quando as pessoas dizem: ‘ah, olho para ti e não te vejo como mulher negra’. E em espaços de mulheres negras me dizerem: ‘não és branca? Já vi muitas mulheres brancas com o teu cabelo’. E a minha negritude não é o meu cabelo. ”São estas situações, quando a angustiam, que se tornam motor para escrever: “Entendo as tensões que a minha própria palavra trazA mãe, mais escura, cabo-verdiana, não se posiciona como mulher negra – ou pelo menos Alexa nunca fala desta questão nem com a mãe, nem com as irmãs (é trigémea). “Porque não tenho mais amigos negros? É uma busca. E busca também para quebrar estereótipos que tinha na minha cabeça. Mas é um movimento consciente. Sou de Loulé, e durante muito tempo éramos as únicas miúdas mais escuras da turma, tanto que o nosso nome na escola eram as pretas: a preta 1, a preta 2 e a preta 3. Houve todo um exercício da minha parte para desconstruir isto – coisa que as minhas irmãs nunca fizeram. ”Perguntam-lhe qual é o problema de se identificar como uma mulher branca. Ela responde: “A questão é que o meu corpo não é branco. Isto custa explicar. Há dias que estou com vontade, outros em que só quero que a outra pessoa compreenda!”Para o Djidiu sobre a revolução e liberdade Luz Gomes criou um poema que se chama lIbErdAdE RevOlUcIOnÁrIA dO CoRPo. Lê-se assim: “Não acredito em nenhuma liberdade revolucionária que não passe pelo meu corpo de menina-mulher da pele preta… Que não venha das minhas entranhas de vida sanguínea… (…) Não acredito em nenhuma liberdade revolucionária que não poetise a reinvenção fragmentada de cotidianos do meu corpo de menina-mulher da pele preta. . . ”Brasileira do Recôncavo baiano, a viver em Portugal há dois anos, Luz Gomes está a fazer um doutoramento em museologia sobre galerias de arte que trabalham com artistas angolanos em Lisboa. Em quase todos os espaços é confundida com uma africana. É uma questão “perversa”, considera: as pessoas não a associam ao estereótipo da brasileira e “olham para o meu fenótipo e atrelam a África”. Não acredito em nenhuma liberdade revolucionária que não passe pelo meu corpo de menina-mulher da pele preta…Leitora de escritores como Manoel de Barros, Anaïs Nin, Odete Semedo, Toni Morrison, Rainer Maria Rilke, Pablo Neruda, é autora de um blogue que se chama Etnografias poéticas de mim. Tem ido aos encontros do Djidiu desde o princípio, com alguns intervalos, e lá sempre leu os seus textos. “Acredito no Djidiu como espaço importante nessa discussão que não é simplesmente o texto, mas esse corpo que fala – eu sempre penso a partir do corpo. Porque todos os processos de opressão que a gente sofre vêm pelo corpo: é o corpo que sente física ou emocionalmente. É interessante pensar nos corpos negros nesses espaços do centro [de Lisboa], falando poesia e de questões que atingem a população negra”. Não há maneira de não comparar a questão racial em Portugal e no Brasil, nota. Algumas coisas são comuns. “Sempre nos vêem como bons bailarinos, bons músicos, mas a escrita nos é cara. A gente nunca está sendo colocada nesse patamar – e quando escreve, a qualidade do trabalho é sempre questionada. ”Por isso o Djidiu é importante para trazer estas questões, bem como a liberdade de, como negra, falar da questão do racismo mas também de amor ou de outra coisa qualquer – algo que Luz Gomes faz na sua poesia, que anda muito à volta de temas como o amor e a mulher. “Não consigo pensar nessas questões fora do meu corpo, porque quando sou discriminada é por causa do meu corpo. ”Se por um lado não há forma de pensar Lisboa senão como um lugar onde há música feita por africanos e seus descendentes, noutros espaços nota que é a única negra. “Tem uma população negra no centro que circula mas não está presente em alguns espaços. Ou tem essa população na música mas não na poesia. ”Djidiu pode ser espaço onde as pessoas se sintam à vontade e falem de forma aberta. “A gente tem que se ver em diferentes espaços: eu não tenho que abrir o jornal e ver a população negra atrelada à criminalidade. A gente quer se ver de outras formas e a partir dos nossos olhares”, continua. Em Portugal e Brasil os negros têm que procurar um espaço, e muitas vezes isso é “mal interpretado”, continua. As pessoas dizem “a arte é para todo mundo”, não se deve separar. “Mas se os indivíduos na sociedade não são tratados de forma igual, se a mulher não é tratada de forma igual, se negro não é tratado de forma igual, como me quer convencer que a produção dessas pessoas será vista de forma igual?”Naquela tarde de Março do primeiro Djidiu de que Carla Fernandes falava, foi Santiago d’Almeida Ferreira quem tomou a palavra no palco e desabafou que já tinha estado noutros encontros literários mas nunca tinha se tinha sentido à vontade para ler o seu Foge do Bandido. Ali leu: “Queres? Queres mesmo? Queres mesmo tirar me a pele? Escaldar-me a cor, e pelar me a voz? Queres mesmo que seja escuro, negro, preto e fusco? Queres que corra, tente fugir? Que me coce com palha-de-aço e beba água das poças de óleo que a terra derrama?”Até há pouco tempo não se considerava poeta. Mas no blogue Conjecturações Desmielinizantes podemos ler vários dos seus poemas. Nem todos falam das questões da negritude. Santiago d’Almeida Ferreira, 27 anos, nascido em Viseu diz ter sido o primeiro português a admitir que é intersexo – algo a que o senso comum chama “erradamente” de “hermafrodita”. “O intersexo é um espectro muito grande”, e não “é apenas a genitália”. “Queres? Queres mesmo? Queres mesmo tirar me a pele? Escaldar-me a cor, e pelar me a voz? Queres mesmo que seja escuro, negro, preto e fusco?A viver há dois anos em Lisboa, é artivista – um artista e activista pelo anti-racismo e feminismo. Foi bailarino, coreógrafo, trabalhou em restaurantes e está neste momento a estudar Antropologia. Co-fundou em 2015 a sua associação, Acção pela Identidade, que se dirige à defesa e estudo da diversidade de género e de características sexuais, incluindo a experiência das pessoas trans e intersexo, cruzadas com questões de raça e etnia, por exemplo. “Trabalhamos na primeira pessoa, e isso significa que somos especialistas das nossas próprias causas”, diz. “É muito importante haver alianças entre comunidades, e a própria comunidade LGBT perceber que há pessoas negras – estamos a trazer essa interseccionalidade e fomos pioneiros nisso”. Isto porque também se depara com “bastante racismo no activismo LGBT dominado por pessoas brancas”, queixa-se. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Desde sempre que sofre discriminação, desabafa. “O racismo sempre foi muito presente. Nasci em Portugal, o meu pai é de Angola e a minha mãe de Viseu e não fui criado com os meus pais biológicos. Na escola chamavam-me preto”. No Djidiu encontrou muita gente com quem se identificou. Grande parte do seu background veio de África, por isso não tem problemas em se identificar como afrodescendente. “Por ter consciência que a minha pele era negra, diferente, essa questão esteve sempre presente nos meus textos. Não podia dizer noutras plataformas que sofri racismo no trabalho. Mas na escrita podia, de forma quase escondida, transmitir essa dor e sofrimento – hoje escrevo menos na base da dor e mais na base da reflexão”. De qualquer maneira, “está marcado no meu corpo ser inter sexo e ser negro, é uma pele que não dispo”. No Djidiu identificou-se mais com os poemas que falavam sobre a actualidade. Nota que ainda “existe uma grande necessidade de falar sobre racismo”. “Estamos a querer falar, a querer gritar, a dizer: ‘Hey, temos andado aqui, porque não estamos a ter o mesmo tempo de antena?’ Senti isso. Estávamos todos a querer dizer a mesma coisa, porque foi isso que eu fui fazer. Há um espaço para eu falar. Enquanto afrodescendentes estamos nesse momento do ‘grito’ e de querer falar. ”
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
As minorias são "uma ficção terrível"
Conhecido pela forma como escreve sobre a margem e os excessos numa sociedade cosmopolita e multirracial, Hanif Kureishi assumiu a migração como tema literário e político. Numa conversa a partir de Londres, fala das suas opções de risco num percurso feito de cinema, teatro, sexo e droga. (...)

As minorias são "uma ficção terrível"
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento -1.0
DATA: 2015-04-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Conhecido pela forma como escreve sobre a margem e os excessos numa sociedade cosmopolita e multirracial, Hanif Kureishi assumiu a migração como tema literário e político. Numa conversa a partir de Londres, fala das suas opções de risco num percurso feito de cinema, teatro, sexo e droga.
TEXTO: “Gosto da ideia de que as coisas sejam arriscadas, sujas; gosto de explorar o sentimento de vergonha associado à imaginação pornográfica, de questionar a virtude, do ver o quão selvagem é a nossa imaginação. ” As palavras chegam numa voz rouca e há um barulho que se assemelha ao de pedras de gelo, primeiro num balde e depois num vidro, o som de um gole de bebida na boca, uma breve pausa antes de dizer que talvez tenha mesmo dito que uma coisa para ser boa tem de ser um pouco pornográfica. Fala ao telefone desde Londres, onde vive na zona Oeste de uma cidade que tem levado para os seus romances, contos, ensaios, peças de teatro, argumentos de cinema. A Inglaterra na sua diversidade étnica e cultural, nos contrastes entre subúrbio e a metrópole, nos que vivem à margem, os rebeldes pelo que arriscam e não pelo “modo pop” em que a rebeldia se transformou. “Ser rebelde é saber que se tem muito a perder em defesa de uma ideia, de uma atitude. Hoje até nisso há vazio. "Hanif Kureishi, 60 anos, filho de pai paquistanês e mãe inglesa, o menino mal comportado das letras britânicas que há 30 anos criou um beijo homossexual entre um paquistanês e um skinhead branco no filme A Minha Bela Lavandaria (1985), de Stephen Frears, tímido, provocador, empenhado em fazer da literatura um acto político associado à sua “inevitável e inerente” – para ele é assim – dose de entretenimento, continua a beliscar convenções. Depois do sexo, das drogas, da irreverência urbana e da eterna busca do prazer como algo essencial à existência, foca-se nos preconceitos de raça, nas desigualdades sociais ditadas pela etnia e na imigração como os grandes temas da sua escrita, num momento em que é “preciso estar a tento a movimentos nacionalistas” na Europa. “Já assistimos a isso antes e não foi bonito. "“A literatura e a sociedade olham para o imigrante como um objecto, um boneco, e o discurso público refere-o quase sempre como um zombie num jogo de vídeo. Assistimos ao imigrante a partir do sofá”, sublinha Kureishi, reforçando o significado vazio da palavra, da ideia de migrante em todas as suas variações. Num artigo que assinou em véspera das últimas eleições europeias no jornal britânico The Guardian, intitulado The migrant has no face, status or story ("O migrante não tem cara, estatuto ou história”, numa tradução à letra), Kureishi escreve: “O imigrante tornou-se uma paixão contemporânea na Europa. Um ponto vago à volta do qual as ideias chocam. Facilmente disponível como símbolo, existindo em todo o lado e em lado nenhum, é falado constantemente. Mas, no discurso público corrente, esta figura migrou não apenas de um país para outro, migrou da realidade para a imaginação colectiva onde foi transformado numa ficção terrível. ”No trabalho de Kureishi, o migrante surge enquanto indivíduo com uma história pessoal, um contexto cultural e político, uma biografia com uma data de nascimento e um percurso que, como o de Hanif Kureishi, pode ter começado a 5 de Dezembro de 1954, na cidade de Bromley, a Sul de Londres, então um subúrbio branco, como eram brancos todos os subúrbios em Inglaterra, filho de pai paquistanês e de mãe inglesa, num altura em que o império britânico entrava em declínio, uma década surpreendente, como a classificou o jornalista e escritor Colin MacInnes (1914-1976) na sua colectânea de trabalhos jornalísticos England, Half English. "O que aprendemos, algures, sobre as mães de crianças da classe operária, velhas prostitutas semi-profissionais, os verdadeiros tormentos do amor homossexual e a nova raça dos rapazes de cor nascidos ingleses? Ou (…) que evidências reveladoras temos sobre milhões de adolescentes, sobre os Teds, ou sobre as inumeráveis minorias na Commonwealth – cipriotas, malteses e os muitos milhares de paquistaneses… e sobre a vasta cultura pop?” Sobre estas interrogações, Kureishi escreve na sua autobiografia My Ear at His Heart (2014) que eram uma boa pista para o que estava por vir. É no território destas afirmações, meio século depois, que o artista Hanif Kureishi se situa. Em Portugal acabam de ter edição simultânea os seus primeiro e último romances. O Buda dos Subúrbios (1990) e A Última Palavra (2013) revelam duas etapas diferentes da vida e da escrita do autor. Uma sátira sobre o crescimento e a vontade de sair dos subúrbios para uma vida com todos os excessos dos anos 70; a reflexão de um velho escritor do início do século XXI obrigado a reviver a sua existência para uma biografia, um retrato tão melancólico quanto amargo, sarcástico e doloroso. No início há o sexo enquanto elemento libertador, no fim o amor mais profundo a que se pode aspirar. Em todas as etapas, o humor enquanto modo de ver o mundo, e em Kureishi ele pode ser imensamente negro ou cínico. “Não podes errar se começares como cínico”, diz ao seu jovem biógrafo o velho Mamoon Azam, escritor, dramaturgo, mais de 70 anos, natural da Índia, a viver nos subúrbios ingleses, em tempos muito “respeitado pelo muito literário, bem como pelos jornais de direita”, um homem demasiado cerebral, inflexível e angustiante para ser lido por um público amplo”, financeiramente arruinado; nele convivem demasiadas características do Nobel V. S. Naipaul (Trindade e Tobago, 1932), nos seus defeitos e nas suas virtudes, na sua ambivalência, nos mexericos que gera, para que Kureishi negue a inspiração. “Sempre escrevi sobre velhos indianos”, refere, no entanto, nesta conversa que, como o seu livro mais recente, o leva até à condição de escritor e a um percurso de que se destaca a relação tão forte quanto conflituosa com o pai, um aspirante a escritor que falhou nas suas tentativas e que é a figura central da sua autobiografia. “Não faço da literatura uma catarse pessoal. Deixo isso no privado”, refere, numa alusão rápida à psicoterapia que faz há anos. Se há psicanálise na literatura, é para o leitor. “Com as suas emoções e o seu historial, talvez seja ele a fazer terapia nos livros”, continua agora, tendo a última frase do romance como tópico, a voz de Harry Johnson, o escritor contratado para biografar Mamoon: “Terminara o seu trabalho que era informar as pessoas de que Mamoon contara como artista, que fora um escritor, um criador de mundos, um narrador de verdades importantes e que essa era uma forma de mudar as coisas, de viver bem e de criar liberdade. ” Escuta a frase que escreveu e diz que lhe soa como se não tivesse sido ele a escrevê-la. “Mas fui, e não sei se quando a escrevi pensei em mim ou no que quero do meu trabalho. É difícil isso. Eu quero ter alguma substância no que digo, dar alguma profundidade a questões que são tratadas de forma barata pelos media. Vivemos num mundo de informação barata, de opinião barata. A literatura faz parte desse universo onde deve haver substância. Gosto de pensar nela como um meio de veicular ideias importantes. E se há alguma biografia no que escrevo é nisso, na escolha dos temas que me estão mais próximos, que marcaram a minha vida. ”Do subúrbio à cidade Saiu cedo de Bromley para trabalhar num teatro, o Royal Court. Tinha lido Genet, Plath, Hughes, Larkin. Não durou muito, mas percebeu o que era o trabalho de equipa e gostou e ficou-lhe a noção de que no palco ou na dramaturgia, no teatro, era impossível escapar ao argumento de que a cultura é inevitavelmente política. Acrescenta: a arte é inevitavelmente política. Fugiu do conforto do subúrbio como o adolescente Karim, de O Buda dos Subúrbios, livro que foi adaptado a série pela BBC em 1993. “O meu nome é Karim Amir, e sou inglês de nascimento e criação, ou quase. É frequente considerarem-me um tipo de inglês singular, estranho, uma espécie de raça nova, dado que sou fruto de duas velhas civilizações. Mas estou-me nas tintas para essas catalogações: o que eu sei é que sou inglês (embora não tenha muito orgulho nisso, um inglês dos subúrbios do Sul de Londres e há que dar que falar. Talvez seja a estranha mistura de continentes e de sangues, de coisas de dois mundos, de ser daqui e não ser daqui, que faz de mim uma pessoa inquieta, insatisfeita e que, facilmente, se aborrece. ” Escrito em 1990, é um olhar para trás através dessa personagem com quem tem muito em comum, pertencente a uma família que Kureishi retrata de forma bastante sexualizada, um traço que o acompanha a partir desta estreia no romance saudada pela crítica e por nomes como Salman Rushdie, outro inglês/indiano, e que valeu a Hanif Kureishi a zanga pública da sua irmã, que o acusou de usar a intimidade familiar para se promover pessoalmente. O mesmo tipo de acusação viria mais tarde da mãe dos seus dois filhos gémeos, depois de uma separação conturbada. “Escrevo histórias sobre o mundo em que cresci. Venho da história colonial da India”, diz referindo-se ao pai, herdeiro de uma família rica de Madras, actual Chennai, e de mãe inglesa, uma candidata a pintora que renunciou à arte com o casamento. Também vem de Londres, para onde foi por si mesmo. “Não me sinto particularmente exótico. É uma vida, mas é uma vida representativa, as sociedades passaram de monoculturais a multiculturais, multirraciais, e a literatura reflecte isso. Tive a sorte suficiente de ter nascido à volta desta nova realidade. É um misto de talento e de sorte. Sou um escritor inglês com uma herança da Índia. ” Nesse início, a parte oriental interessava-lhe menos; chegou mesmo a desprezá-la, como Karim, porque isso o colocava fora de uma norma qualquer, a ele que era até avesso ao normativo. “Passamos parte da vida a pensar nos nossos pais e no que fizemos com o que eles nos deram, no que isso significou na construção da nossa própria história. Eu queria ser só inglês porque me parecia que ser multirracial era ‘anormal’, era ser excluído. Depois percebi que o mundo me tinha dado essa vantagem e comecei a pensar politicamente na questão. ”É nesta fase que estamos. Ainda que com os temas de sempre. As mulheres, o sexo, a ironia, as minorias, a forma desassombrada como escreve acerca da intimidade como se não houvesse filtro entre pensamento e escrita estabelecem comparações entre os seus romances e os de Philip Roth. Um Philip Roth inglês pós-colonialista. “O Philip Roth também veio de uma comunidade minoritária. Era um judeu de Newark e falava e comportava-se como tal; as suas histórias têm que ver com essa comunidade. Temos isso em comum. E ele escreve muito sobre mulheres e sobre sexualidade, mas não me compete dizer que tipo de escritor sou. Gosto de pensar que sou um escritor à minha maneira muito pessoal”, salienta depois de falar do início, do princípio da escrita. Antes do teatro, do cinema, do romance, houve a pornografia. Romances pornográficos que assinava com o pseudónimo de Antonia French. “Foi nos anos 70, durante um breve período. Eram tempos selvagens. Eu e os meus amigos éramos pobres, alguns eram dealers, havia também prostitutas, e era duro viver em Londres nesses dias. Fazíamos o que podíamos para viver e essa foi a minha contribuição. Durante algum tempo escrevi pornografia, mas era um pouco estúpido. De ler e de escrever. Não é uma forma interessante”, admite a uma distância que lhe permite dizer que a experiência foi “demencial” e o nome de Antonia French lhe surgiu num sonho, porque lhe pareceu “sexy” escrever na perspectiva de uma mulher. Foi um período de excessos na vida de Hanif Kureishi. Os seus livros e filmes espelham essa passagem que não era incomum. Ele não a vê como tal. Era um leitor, queria ser escritor, pensava em filosofia. Não imaginava que passados mais de 30 anos estaria grato, “muito grato por ter conseguido viver da escrita, ser reconhecido”. Cuida da faceta pública como pode, dá entrevistas, promove os livros, mas diz que a imagem que sai disso lhe escapa, não a controla como muda o percurso de uma personagem num romance, como apimenta o enredo com ironia. “A melhor literatura é cómica”, refere sem hesitar. Tem dito isso em muitas entrevistas, em muitos ensaios. O escritor inglês P. G. Wodehouse (1888-1975), multitalentoso, prolífico e politicamente comprometido, é o autor no topo de uma lista de outros inspiradores. “Os melhores escritores são os escritores cómicos. Joyce é um grande cómico, Dickens, Shakespeare… A vida não é uma paródia, mas podemos divertir-nos com ela. ”Riu-se do pai, ou, como escreve na biografia, preferiu ter uma perspectiva cómica do pai e da florescente New Age da década de 60. Estava na contra-cultura. O pai era o tradicional que ele combatia. Na escrita, esse riso passou para as personagens; quis fazer esse movimento inspirado em Tchékhov, um escritor cómico que criava personagens infelizes. Mamoon é esse homem. Uma das personagens angustiadas de Kureishi que vê o trabalho artístico como fruto de uma espécie de conflito, que descreve A Última Palavra vindo de um editor calculista, outro cínico. Dizia ele que o escritor, como “qualquer verdadeiro artista, era o diabo, rivalizando com Deus na criatividade, tentando ultrapassá-lo": "Deus era, sem dúvida, a criação mais fatal do homem, a puta kitsch do diabo. Era Deus, com a sua insistência em ser adorado e admirado, que tornava necessário o debate sobre a arte, mantendo viva a chama da discórdia nos homens e nas mulheres. Este dissidente era o artista, que abarcava, com a sua imaginação, a razão e a sem-razão, o reverso e o anverso, o sonho e o mundo, homens e mulheres. "A experiência de ler o último e o primeiro romance de Hanif Kureishi permite perceber a evolução e o entusiasmo com que foi recebido na sua estreia. Era disruptivo na forma como escrevia sobre o indivíduo na sua luta por descobrir uma identidade, por afirmar-se na diferença. “De sexo, gostava; tal como as drogas, também o sexo era uma alegria, uma loucura, uma coisa estonteante. Tinha crescido com putos que me ensinaram que o sexo era uma coisa nojenta. Que o sexo era cheiros, obscenidades, embaraços e gargalhadas cavalares. Mas o amor era demasiado forte para mim. ” É o jovem Karim em O Buda dos Subúrbios. O velho Mamoon vê o amor como a única coisa que vale a pena perseguir e “a chave é a persistência”. Um e outro são livros políticos, no último a análise dos tempos actuais é feroz, mas não tem o fôlego do primeiro romance. É errático, com alguns momentos embaraçosos, como aqueles em que aparecem os fantasmas da mãe de Harry ou da primeira mulher de Mamoon, e outros muito estimulantes acerca da tarefa do escritor, de denúncia crítica, de reflexão. “Aqui”, refere Mamoon sobre a sua obra, "não se encontram respostas universais, só perguntas universais, aquelas que fazem a literatura”.
REFERÊNCIAS:
“Ninguém que dependa de votos no Brasil é louco de se associar aos ateus”
A Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos está numa luta de proporções bíblicas: combate pela laicidade do Estado brasileiro. O seu fundador e presidente, Daniel Sottomaior, não se deixa intimidar pela tarefa e está a transferir esse debate da esfera pública para a Justiça. (...)

“Ninguém que dependa de votos no Brasil é louco de se associar aos ateus”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento -0.6
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: A Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos está numa luta de proporções bíblicas: combate pela laicidade do Estado brasileiro. O seu fundador e presidente, Daniel Sottomaior, não se deixa intimidar pela tarefa e está a transferir esse debate da esfera pública para a Justiça.
TEXTO: Não se foge à religião no Brasil. Aqui, a fé é ela própria uma divindade de direito próprio: omnipresente. A velar o turismo carioca no topo do Corcovado; no Brás, distrito industrial paulistano onde a Igreja Universal do Reino de Deus construiu recentemente uma enorme réplica do primeiro templo citado na Bíblia, o Templo de Salomão; nas intersecções obscuras da mata atlântica que se adentra pelas cidades, com o candomblé baiano; nos media; no Congresso. Falar de laicismo parece por isso mais um exercício de republicanismo teórico do que um debate sobre uma característica fundamental dos Estados modernos. Nas urnas, as escolhas do povo estão longe de reflectir essa necessidade. O que tolhe as elites e aumenta o poder das várias igrejas que pululam pelo país, em particular as evangélicas. É nesse contexto, e em absoluta contracorrente, que nasceu a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA). Daniel Sottomaior é o fundador (2008), presidente e principal rosto da ATEA, que está a tomar em mãos o que ele próprio, com ironia, designa como “luta de David contra Golias”: travar a promiscuidade entre o Estado e as religiões. Na Justiça. Um caso de cada vez. Conversámos numa pequena empadaria do centro de São Paulo, onde pouco depois da entrevista um pregador fortuito num altar de cartão nos diz na rua: “Deus continua existindo!”Quantos ateus estimam que existam no Brasil?Todas as pesquisas indicam de 1% a 3%. Não dá para saber exactamente quanto, porque a margem de erro é perto de 1%. Em números absolutos são…Se pensarmos em 2%, são quatro milhões de pessoas. Como são tratadas num país tão religioso?Uma imensa parte muito mal. Costumo dizer que somos os párias oficiais. Se olhar o que aconteceu na evolução do movimento negro ou do movimento LGBT, por exemplo, houve no Brasil uma progressiva judicialização dos casos de preconceito e discriminação – o que é um sinal de progresso. Hoje em dia, se uma pessoa xinga um negro de macaco, sabe que pode ser preso. Se faz o mesmo com um ateu, a expectativa é completamente diferente. Por exemplo. Há um tempo uma moça fez um tweet preconceituoso contra os nordestinos (os imigrantes magrebinos na França são os “imigrantes” nordestinos em São Paulo, é a mesma coisa) e houve comoção nacional, investigação no Ministério Público, manchetes… Óptimo. Muito bom. Agora, quando se falam as mesmas coisas para os ateus [o tweet: “Nordestino não é gente, faça um favor a SP, mate um nordestino afogado”] ou pior, nunca dá manchete, acção das autoridades, ninguém vai preso, é investigado, nada. Xingar os ateus é a mais perfeita normalidade institucional. Ninguém fica indignado. É a mais pura expressão da cultura local. Acontece ao contrário: ateus a insultar crentes?É possível, mas não tenho notícia de ateus dizendo que os cristãos – ou seja quem for – são criminosos, que não merecem viver, que têm que ser segregados da sociedade, que têm que ir embora, que merecem o inferno… Não vejo os ateus dizendo isso de ninguém. Qual é o papel da ATEA?São muitos. Tentamos focar-nos em dois mais importantes: diminuir o preconceito e lutar pela laicidade do Estado. A que tipo de acções se dedicam mais?Ao activismo judicial. Com a imprensa, podemos contar relativamente pouco. O poder público – o executivo e o legislativo – depende de votos. E ninguém que dependa de votos é louco de se associar com os ateus. Sabe o que acontece. Por eliminação, sobra o judiciário. E, ainda assim, aos trancos e barrancos. Mas que acções são essas?A mais recente: no final do mês [de Março] a Cúria Metropolitana vai fazer uma procissão pedindo chuva. É a dança da chuva moderna. A diferença é que agora se sentem no direito de usar o carro do corpo de bombeiros – um serviço público essencial – para carregar a imagem pela cidade. E os bombeiros, obviamente, também não vêem nenhum problema. A ATEA vai tentar impedir que isso aconteça – ou, se não for impedido, que os cofres públicos sejam ressarcidos. E campanhas de sensibilização?Já fizemos duas, mas isso é eventual. O dia-a-dia é ir à Justiça, ir ao Ministério Público, e pedir providências. Quantos associados têm?Cerca de 14 mil, por todo o país. Como assistiu às últimas presidenciais, tão marcadas pela religião, em particular pela candidatura de Marina Silva?Não só as presidenciais: para governador, prefeito, vereador, deputado estadual… Todas as eleições são dominadas pela questão religiosa. É uma tragédia anunciada. Os evangélicos se começaram a expandir no Brasil pela TV, há 20 ou 30 anos. Têm muitos fiéis com baixa escolaridade, vítimas fáceis destes predadores, que conseguem amealhar vastas fortunas – um deles é Edir Macedo [fundador da Igreja Universal do Reino de Deus], que está até na lista Forbes entre os mais ricos. Óbvia e literalmente, o dinheiro não cai do céu. Sai dos bolsos dos fiéis. Uma parte vai parar em propaganda porque rende (se desse prejuízo, parariam). E essas pessoas, como noutros países, elegem o melhor representante que o dinheiro pode comprar. Têm interlocutores habituais? Partidos políticos, poderes locais, estaduais, federal…Ninguém é louco. [risos]Ainda assim, há algum partido em particular mais apto a incluir as reivindicações da ATEA no seu programa político?Quanto mais à esquerda, maior é a tendência de haver uma certa afinidade. São esses os partidos que vejo a poder defender os direitos das minorias e a laicidade do Estado. Mas não sei se posso apontar algum em particular – tanto que isso não aconteceu até hoje. Em 2009, endereçaram uma carta aberta ao Presidente Lula da Silva, apontando-lhe contradições no que diz respeito à laicidade. Como é que Dilma Rousseff está a tratar esta questão?A acção é sempre ambígua. Tende mais para o religioso do que para o laico. Um dado interessante: ela é agnóstica. Um pouco antes de ser candidata, numa entrevista famosa, disse [sobre a existência de Deus]: “Eu me equilibro nessa questão. Será que há? Será que não há?” Podemos interpretar isso como sendo a confissão de uma agnóstica, ou de uma ateia que está só abrindo a portinha do armário. Meses depois, miraculosamente, se converteu. Virou uma beata, como se o fosse desde a infância – e assim permanece. Isso é só curiosidade. Em termos da laicidade em si, ela prefere ceder às pressões dos evangélicos, dos religiosos, sempre que haja um conflito. Seja na questão do aborto, na questão dos direitos das mulheres, casais homossexuais… Dilma sabe qual é o poder da bancada [parlamentar] evangélica. Teve um caso emblemático do chamado “kit gay”, uma iniciativa do Ministério da Educação para incluir em material didáctico uma espécie de cartilha sobre diversidade sexual – a importância e o preconceito. A bancada evangélica disse que o Governo estava tentando influenciar as crianças a serem homossexuais e conseguiu barrar a iniciativa. Isso, obviamente, com o aval da Presidente. É possível uma associação tão pequena fazer frente a forças tão poderosas? Igrejas com tanto dinheiro, acesso a canais de televisão, que se impõem nas cidades com grandes templos…É uma luta de David contra Golias. [risos] No que diz respeito ao Brasil, a organização deles chegou com 500 anos de antecedência em relação à nossa. É natural que estejam na frente. Não temos a perspectiva de ficar num embate equilibrado de forças em pouco tempo. Temos de ser realistas: estamos só começando. Já fizemos progressos monstruosos: os media já reconhecem a ATEA como uma liderança. A quantidade de associados é enorme, mesmo para um país com 200 milhões de pessoas. No Facebook, caminhamos para os 400 mil seguidores. Para uma página em português, que só fala de ateísmo e achincalha todas as religiões, é um número extremamente expressivo. Temos muitas acções na Justiça, já conseguimos movimentar uma pequeníssima quantidade de dinheiro… Há dez anos, antes de começar a ATEA, jamais imaginaria que teríamos tantas vitórias assim em pouco tempo. Têm algum apoio do Estado, enquanto associação cívica?O Estado quer que a gente morra! Tudo o que fazemos é contra o Estado. O violador é sempre um agente do Estado. E, frequentemente, alguém do alto da pirâmide: o presidente da câmara que diz que tem que deixar o crucifixo na câmara; o magistrado que beneficia religiosos; ou o Congresso, que aprova a Concordata com o Vaticano concedendo à Igreja Católica direitos que ninguém mais tem. Todas as decisões para preservar a laicidade, num país religioso, com a religiosidade tacanha que tem aqui, são impopulares. Recebem muitas reacções de crentes?O amor cristão sempre nos é expresso nos termos mais chulos e mais violentos: “um dia, todo o joelho se dobrará a Jesus”, ou que nós arderemos no fogo do Inferno, que vamos todos morrer de cancro, que somos pessoas infelizes, que não temos mais nada para fazer, que temos que deixar [em paz] a maioria cristã… Bastante!No ano passado, sentiram necessidade de sair em defesa do colectivo Porta dos Fundos. Porquê?O Porta dos Fundos tem vários ateus. Mas isso não seria relevante, não fosse o facto de que eles fazem muitos vídeos ridicularizando muito abertamente a religião. E eles foram várias vezes atacados. Salvaguardando as devidas proporções, foi um pouco como aconteceu com o Charlie Hebdo: qual é direito que eles têm para falar coisas daquelas? O nosso apoio foi para lembrar que o sagrado só o é para os religiosos, que não podem obrigar os outros a seguir as mesmas regras que eles, inclusive as regras da sexualidade. Um jornal como o Charlie Hebdo poderia singrar no Brasil, ou seria rechaçado?Tem espaço para a Porta dos Fundos… O único problema é o espaço para os media impressos, que hoje em dia atravessam dificuldades sérias. Fora isso, assim como na França [o Charlie Hebdo] só vai vender um milhão de cópias por causa da tragédia, aqui também: iria vender 5 mil cópias, que seriam os seus fiéis… leitores. Correcção: os estudos indicam que os ateus correspondem a 1% a 3% da população brasileira e não a 1% a 6%, como estava erradamente transcrito na resposta à primeira pergunta.
REFERÊNCIAS:
Polónia: a liberdade de expressão está a passar à clandestinidade?
Em três anos, entre 2015 e 2018, a Polónia desceu quarenta posições no Índice Global de Liberdade de Imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras. O serviço público de comunicação transformou-se em propaganda do governo e os jornalistas enfrentam processos na justiça. O discurso oficial tem-se moldado com valores nacionalistas, e isso reflecte-se nos comportamentos individuais. (...)

Polónia: a liberdade de expressão está a passar à clandestinidade?
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em três anos, entre 2015 e 2018, a Polónia desceu quarenta posições no Índice Global de Liberdade de Imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras. O serviço público de comunicação transformou-se em propaganda do governo e os jornalistas enfrentam processos na justiça. O discurso oficial tem-se moldado com valores nacionalistas, e isso reflecte-se nos comportamentos individuais.
TEXTO: 11 de Janeiro de 2016. O jornalista Maciej Czajkowski tinha a carta de demissão no bolso. Trabalhava no serviço de informação da televisão estatal polaca e sabia que não podia continuar mais. A direcção tinha acabado de ser substituída por simpatizantes do partido que tinha ganho as eleições legislativas em Outubro de 2015, e que se mantém no Governo — o Lei e Justiça (PiS, na sigla em polaco). “Costumam dizer que o meu nome do meio é a imparcialidade”, brinca. A carta nunca chegou a ser entregue. Maciej foi chamado para uma reunião com a direcção antes de poder marcar ele mesmo um encontro. Não foi inesperado, mas mesmo assim “foi difícil”, confessa ao P2, em Varsóvia, na redacção do jornal onde agora trabalha, o Gazeta Wyborzca, o maior jornal diário da Polónia. Czajkowski mostra-nos os cantos à casa que o adoptou depois do despedimento e vai apontando outros colegas que tiveram o mesmo destino. Nestes quase três anos, terão sido quase 300 os jornalistas despedidos do serviço público, diz um comunicado publicado no início de Dezembro pelo Gazeta Wyborzca. Nesse comunicado, o jornal recusa ceder a pressões por parte do Governo para silenciar jornalistas. “Quase 300 pessoas que não serviam?”, pergunta Czajkowski. O jornalista trabalhou 12 anos na BBC, no Reino Unido, e em 2012 regressou à Polónia com um convite para renovar a TVP, a televisão estatal polaca. A experiência correu bem, mas terminou abruptamente passados quatro anos. “Foram despedidos profissionais de topo, pessoas muito conhecidas. Basicamente, não eram pessoas que estavam preparadas para trabalhar ao serviço de um partido. ”Desde 2016 que o serviço público de rádio e televisão polacos se tem vindo a transformar num veículo de propaganda do governo. Já os meios privados mais incómodos, bem como os seus jornalistas, têm sido processados pelas mais variadas razões, no que algumas organizações internacionais denunciam como uma tentativa de boicotar o trabalho dos jornalistas. Para além da pressão nos tribunais, as empresas do estado tiraram toda a sua publicidade dos meios que não alinham com o Governo. O executivo fala ainda numa “repolonização” das empresas de comunicação social, impondo um limite ao capital estrangeiro. A maior televisão privada do país, a TVN, é propriedade da americana Discovery, e alguns dos grandes jornais do país fazem parte do grupo suíço e alemão Ringier Axel Springer Media. A par destas decisões que restringem a liberdade de imprensa polaca, causa preocupação a reforma do sistema judicial que questiona a independência dos juízes e viola as regras europeias. A medida mais controversa foi aprovada há cerca de um ano e fez com que se colocasse em cima da mesa a hipótese de activação do artigo 7. º do Tratado Europeu contra a Polónia. Essas mudanças abriram caminho para o Governo passar a controlar a nomeação e demissão dos 86 juízes do Supremo Tribunal e dos tribunais inferiores, e para o parlamento escolher a composição do Tribunal Judiciário Nacional, a quem compete a indicação de todos os magistrados. Um ano depois, uma parte da reforma foi travada depois de uma exigência do Tribunal Europeu de Justiça. Em causa estava a antecipação da idade da reforma dos juízes do Supremo Tribunal, e que só este ano já tinha obrigado à reforma de cerca de dois terços dos magistrados. No final de Novembro, o governo recuou e voltou a integrar esses juízes. As restantes alterações, no entanto, mantêm-se. “É preciso dizer a verdade sobre a liberdade de expressão. Ela foi concebida no século XVIII pelos franceses, mas acabou. ” Andrzej Tadeusz Kijowski é o especialista em liberdade de expressão do Conselho Nacional de Radiodifusão polaco (KRRiT, na sigla original), o organismo público que tem como missão garantir que este direito está a ser cumprido pelas rádios e televisões na Polónia. Kijowski recebe o P2 na sede do KRRiT. Conversamos em inglês e francês, um polaco e uma portuguesa, com a ajuda de outra polaca, Teresa Brykczynska, a porta-voz do conselho, que vai pontuando a conversa com algumas clarificações. Momentos antes de a entrevista começar, Brykczynska pergunta se não podemos ter apenas uma conversa sem câmara ou gravador. Quer saber exactamente o que vai ser perguntado — “para ter a certeza” de que sabem responder. Ao lado dela, Kijowski parece saber muito bem o que dizer. A liberdade de expressão, argumenta, “acabou em 1950 com o artigo 10. º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que estabelece que a difusão de rádio e televisão pode ser limitada pelos governos”. O artigo citado por Kijowski dá a todas as pessoas o direito de transmitirem ideias e opiniões sem restrições e prevê, como afirma o especialista do Conselho Nacional de Radiodifusão polaco, a possibilidade de se estabelecer um regime de autorização prévia a empresas para obterem licenças de radiodifusão (isto é, para abrirem um canal de televisão ou de rádio). Kijowski, cuja função é a de garantir a liberdade de expressão nos media, defende que ela há muito que não existe na Europa e dá exemplos. “A situação da liberdade de imprensa na Polónia é muito melhor do que por exemplo em França e na Alemanha, porque lá não se pode de maneira nenhuma dizer as verdades sobre a situação dos imigrantes e sobre a oligarquização da democracia na União Europeia. ”O discurso não surpreende quem tem acompanhado a informação através do serviço público. Os noticiários estão cheios de discursos contra a Europa. Há um “nós” (polacos) contra “eles” (a União Europeia) constante. Um relatório publicado em Janeiro pela Sociedade de Jornalistas polaca mostra como a televisão polaca se transformou num instrumento de propaganda do partido no governo, ajudando ainda a criar uma sensação de ameaça vinda do exterior, por parte dos russos e dos imigrantes, e ainda um clima de desconfiança em relação aos membros do anterior governo, agora na oposição. Kijowski não nega a instrumentalização do serviço público. Explica que o país vive uma “guerra” de informação (Teresa torce o nariz, diz que “guerra” é uma palavra muito forte, mas sublinha que a comunicação tornou-se muito polarizada), e o serviço público não tem alternativa se não ser usado pelo governo. Mesmo se a lei diz que ele deve ser pluralista, isento e independente. Teresa Brykczynska completa: “É preciso dizer que a televisão pública é a televisão onde o nosso governo pode, e podemos mesmo dizer, deve, apresentar as suas políticas, os seus planos, porque as pessoas que votaram nele querem saber quais são as políticas que existem na Polónia”. A instrumentalização da informação é confirmada pelo relatório da organização Repórteres Sem Fronteiras que acompanha o Índice Global de Liberdade de Imprensa 2018. O país ocupou este ano o 58. º lugar no ranking, uma posição muito distante da 18. ª posição conquistada em 2015. Na tabela de 2018, Portugal ocupa o 14. º lugar e quatro estados-membro da União Europeia estão em situação pior do que a Polónia — Malta (65. ª), Croácia (69. ª), Hungria (73. ª) e Grécia (74. ª). Sobre a Polónia, o relatório da RSF fala em “cegueira ideológica” e descreve um serviço público de comunicação transformado numa voz para o governo difundir a sua propaganda. Como funciona a propaganda no serviço público? Andrzej Krajewski é o autor do estudo da Sociedade de Jornalistas publicado em Janeiro deste ano e que revela a instrumentalização por parte do partido no governo do serviço público de televisão. Recebe-nos no seu escritório, em casa. Uma parede está decorada com fotografias de Krajewski com vários ilustres, que teve a oportunidade de entrevistar enquanto jornalista — do papa polaco João Paulo II a George H. W. Bush. Do outro lado, recortes de jornais emoldurados, onde ele próprio foi o protagonista das notícias — como uma manchete de Junho de 1989 do New York Times, quando os polacos votaram nas primeiras eleições legislativas depois do fim do regime comunista. No final de Setembro e início de Outubro deste ano, antes das eleições locais, voltou a analisar os conteúdos da TVP, onde ele próprio chegou a trabalhar, como correspondente em Washington, entre 1990 e 1994. Concluiu que 73% dos momentos em que uma pessoa fala directamente para a câmara eram protagonizados por representantes do partido Lei e Justiça. Também nos comentadores, havia uma “maioria clara, perto dos 90%”, de apoiantes do governo. “As vozes contra eram muito reduzidas, quase inexistentes”, explica. Krajewski convida-nos para ver com ele o Wiadomosci, o telejornal da televisão estatal. No dia 11 de Dezembro, a notícia de abertura é o aumento das pensões, que vai entrar em vigor em Março. A peça compara o aumento com o do governo anterior, que tinha sido menor. Mostram-se imagens de brutalidade policial durante as manifestações dos coletes amarelos em França. O oráculo diz: “Macron oferece dinheiro para comprar tempo” (anunciou o aumento do salário mínimo e cortes nos impostos sobre as pensões para fazer face aos protestos). A notícia seguinte vai até ao Parlamento Europeu e o oráculo volta a marcar o tom: “Bruxelas cega perante o drama dos franceses”. “A única comparação com o que tem acontecido no serviço público na Polónia durante os últimos quase três anos é o que aconteceu na imprensa nos anos 80”. A Polónia vivia uma ditadura comunista e Andrzej Krajewski dava os primeiros passos na carreira de jornalista, ao mesmo tempo que, na clandestinidade, fazia parte do movimento Solidariedade, do histórico líder Lech Walesa, o primeiro presidente eleito após a derrocada do comunismo. “Eu julgo que a liberdade de expressão está a passar à clandestinidade”, lamenta. Ao mesmo tempo que controla a informação no serviço público, o governo polaco tem aumentado a pressão sobre os meios privados. Dominika Bychawska-Siniarska, advogada de direitos humanos especializada em liberdade de expressão, é directora do Observatório da Liberdade de Imprensa da Fundação Helsínquia para os Direitos Humanos e recebe-nos no seu escritório a poucos metros do Supremo Tribunal Administrativo da Polónia. O gabinete parece pequeno para todos os dossiers e livros que foi acumulando ao longo dos anos. A advogada denuncia um “ambiente hostil” que está a ser criado à volta dos jornalistas. “O que é novo é o uso generalizado do sistema criminal contra os jornalistas”, explica. “Isto quer dizer abrir processos com base na lei da imprensa, com base na difamação de órgãos do Estado, de instituições do Estado, e estes procedimentos raramente aconteciam antes. Os órgãos estão a tentar proteger-se através das instituições e da máquina do Estado. ”O uso do sistema judicial para proteger o Estado tornou-se mais fácil com a reforma na justiça e pelo facto de o procurador-geral e o ministro da Justiça serem a mesma pessoa. Os dados mais recentes sobre processos de difamação remontam a 2016, ano em que o número de processos contra meios de comunicação social aumentou. Em 2013 e 2014 houve 58 processos, em 2015 foram 70, e em 2016 foram abertos 101. “Não temos estatísticas [mais recentes], visto ser algo novo, mas vemos cada vez mais casos desses a serem divulgados”, afirma Dominika Bychawska-Siniarska. E a pressão tem aumentado. “Há cada vez mais casos em que a polícia vai até casa dos jornalistas, fazendo buscas à procura de material jornalístico”. No final de Novembro, elementos da Agência de Segurança Interna da Polónia (o equivalente ao Serviço de Informações de Segurança português) foram até casa de um repórter de imagem que se tinha infiltrado num grupo de neonazis polaco para um documentário emitido em Janeiro deste ano na emissora privada TVN. Piotr Wacowski chegou a estar acusado de propagação do nazismo, mas a procuradoria acabaria por retirar a acusação dias depois. “Ninguém devia ter ido até casa dele de acordo com as regras de proporcionalidade”, diz Bychawska-Siniarska. E acrescenta que este tipo de intimidações aumentou no início de Dezembro. “Este fim-de-semana [8 e 9 de Dezembro], um polícia foi até casa de um repórter de imagem que tinha filmado uns protestos. Ontem [10 de Dezembro], a polícia visitou um jornalista que tinha descrito os protestos. Mais uma vez, não havia nenhuma urgência que justificasse esta visita. ”Dominika não tem dúvidas de que é o novo partido no governo quem está por trás desta postura por parte das autoridades. “Isto é um fenómeno novo. Há muitos anos que trabalho aqui. Nós conseguíamos trabalhar em conjunto com o Governo e os parlamentares. Tínhamos a impressão de que estávamos a trabalhar para um objectivo comum, a melhoria dos direitos humanos. Agora, não temos nenhuma hipótese de comunicar com as autoridades ou com os parlamentares, a nossa voz é ignorada. ”Estas ameaças à liberdade de imprensa surgem numa sociedade marcada por uma profunda divisão política. A advogada de direitos humanos Dominika Bychawska-Siniarska descreve uma sociedade tão “polarizada” que chega a haver pessoas dentro da mesma família que não conseguem comunicar. “Infelizmente, isto tem-se tornado cada vez mais evidente, e é muito difícil de construir pontes e encontrar tópicos que não sejam políticos e usá-los para construir pontes e começar um diálogo com o outro lado”. Nuno Bernardes, um professor de português que trocou Faro pela Polónia há onze anos, conhece bem esta divisão. Sentiu-a numa altura em que jogava futebol amador, mas com três treinos por semana. Nos exercícios de aquecimento, recorda, havia uma clara separação entre os jogadores de um partido e os de outro. “Se uma pessoa fosse do partido A, e eu fosse do partido B, não fazíamos os exercícios juntos. ” Em campo, funcionavam em conjunto porque “tinham de obedecer ao treinador”. No dia-a-dia, a política é tema a evitar se se quer manter um bom ambiente. “É daquelas informações que é preferível não revelar. ”A polarização é também muito evidente nos media, explica Bychawska-Siniarska, que lamenta que esta divisão dificulte a luta pela liberdade de expressão e de imprensa. “Há os meios de comunicação muito críticos e os que são pró-governo. Muito pouco no meio. ”E no meio, ou de fora, fica quem se quer manter afastado desta divisão política. Nuno admite que tem dificuldade em manter-se informado sobre o que se passa na Polónia por causa disso. E dá um exemplo. No início de Outubro, estreou-se nos cinemas polacos o filme O Clero, baseado em acontecimentos reais e com testemunhos de vítimas de abuso sexual por parte de membros da Igreja. Entre as personagens retratadas, há um padre bêbado que aconselha a amante a fazer um aborto, um padre acusado de abusar de um menino, e um membro do clero envolvido em esquemas de chantagem e corrupção. A película foi um sucesso nas bilheteiras logo na primeira semana: mais de 1, 8 milhões de pessoas foram vê-lo, quase 5% da população do país de maioria católica com 38 milhões de habitantes. Nuno conta como a imprensa do lado da oposição “rejubilou” com o fenómeno, enquanto os meios pró-governo sublinharam que “mais de 35 milhões de polacos boicotaram a estreia”. De acordo com a retórica que domina os meios pró-governamentais, a União Europeia é uma instituição inimiga da Polónia, que procura castigar os polacos e impor regras que prejudicam a país. Uma estratégia que o partido Lei e Justiça já terá percebido que não funciona entre a população. Os polacos só se juntaram à União Europeia em 2004, mas são já um dos povos mais europeístas da comunidade. Em Setembro, o Eurobarómetro perguntou a cidadãos dos vários estados-membros como votariam caso houvesse um referendo sobre a permanência do seu país na UE. Na Polónia, 75% responderam que optariam pela permanência, um número idêntico ao registado em Portugal (74%). A Itália foi o país onde menos pessoas responderam a favor da permanência (44%). “Eu penso que temos muita sorte por sermos membros da comunidade europeia. Se não fôssemos, provavelmente hoje seríamos um país parecido com a Rússia, com outro Putin”, argumenta Maciej Czajkowski, na redacção do Gazeta Wyborzca. A este tempo de incerteza, Maciej chama um “soluço” no percurso democrático da Polónia. Dominika Bychawska-Siniarska sublinha que o país precisa de uma maior intervenção por parte da UE, uma vez que os mecanismos nacionais não estão a funcionar. “Penso que a UE é lenta, mas a decisão recente que levou à reinserção dos juízes do Supremo Tribunal foi importante. Nós vemos agora que as instituições e os tribunais internacionais estão a ser a nossa salvação”, diz a advogada de direitos humanos. Muitas das mudanças propostas pelo governo tiveram como resposta a contestação popular. Klementyna Suchanow não falha uma manifestação, diz que vive há três anos na rua. Desde que o Lei e Justiça chegou ao poder. Em 2016, quando o governo mostrou intenções de proibir o aborto, Klementyna foi uma das impulsionadoras do movimento de mulheres que tomou a rua para protestar. A contestação popular foi de tal ordem que o tema não voltou a estar em cima da mesa. Há um ano, quando foram introduzidas as maiores mudanças no sistema judicial, Klementyna também estava lá. “Posso dizer que tenho andado a tentar defender a democracia”, conta ao P2, sentada num banco de um jardim na margem direita do Vistula, em Varsóvia. Para aqui chegar, vindo do centro da cidade, é preciso atravessar o rio e deixar para trás os quarteirões modernos e as avenidas largas da capital da Polónia. Klementyna Suchanow, escritora e historiadora, acumulou ao longo destes três anos vários confrontos com as autoridades. “Já fui perseguida pela polícia algumas vezes, fui algemada, fui atirada ao chão”, conta, como se estivesse a falar de uma nova normalidade, sem qualquer arrependimento ou raiva na voz. Por causa das suas participações em diversas manifestações, também vai acumulando audiências em tribunal e chamadas para prestar declarações. Tantas que deixou de comparecer. “Parei de ir porque teria de passar todo o meu tempo nas esquadras da polícia. A parte boa é que, por causa das reformas no sistema judicial, muitos juízes sentem-se responsáveis pelas pessoas que defendem a justiça e há pessoas que trabalham em nossa defesa pro bono. ” Estas pessoas fazem-na acreditar que o sistema não está corrompido. Aos 44 anos, Klementyna confessa que é a primeira vez que sente este tipo de pressão sobre a liberdade. Lembra-se de o pai ter estado preso por motivos políticos durante a ditadura comunista. Mas, acrescenta, até há pouco tempo, “na Polónia, não havia nada relacionado com um estado nazi, ou coisas que não pudéssemos dizer ou escrever”. “Eu sou uma escritora, e estou muito atenta às palavras e ao texto, à língua, e vejo como esta situação política está a influenciar a liberdade de expressão das pessoas, como elas começam a censurar-se porque sentem que o devem fazer. ”Klementyna chama-lhe um “regime suave, estranho e clandestino”, que, a pouco e pouco, se vai instalando na mente das pessoas sem ser preciso recorrer a regras e leis. “E as palavras trazem atitudes”. Exemplifica: “Eu lembro-me da primeira parada gay e eu não vi tanta agressividade como vejo hoje. ”Um estudo da Fundação Helsínquia para os Direitos Humanos realizado antes das eleições locais de Outubro mostra como alguns candidatos do Lei e Justiça usaram retórica antimigrantes e discurso de ódio para ganhar votos. O discurso molda-se para acomodar outros valores e esta transformação já está a acontecer nas escolas. Klementyna Suchanow tem uma filha de 15 anos e por isso está mais atenta à retórica no meio escolar. Diz que passou a incorporar valores como a “promoção da família, com um homem e uma mulher, questões históricas como ‘a Polónia é a melhor’, muito ódio em relação à Ucrânia, aos migrantes, aos judeus”. “Vai levar anos a recuperar”, calcula. Mesmo se o partido Lei e Justiça não for reeleito em Outubro, quando os polacos serão de novo chamados às urnas para escolher a composição do Sejm, o parlamento. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Eu sou historiadora e conheço os processos da história. Sei que nós podemos estar no fundo neste momento, mas há sempre um fim. Estamos a falar da Polónia, mas está tudo ligado: os Estados Unidos, a União Europeia, a Rússia. Estamos a perder, mas a longo prazo vamos ganhar, de certeza, porque eu não vejo alternativa. As pessoas querem a liberdade. ”
REFERÊNCIAS:
Entidades UE
“Não ando com um cartaz. As pessoas heterossexuais também não andam”
Sandra Cunha, do BE, acha que “o Parlamento deveria representar o mais fielmente possível a sociedade” (...)

“Não ando com um cartaz. As pessoas heterossexuais também não andam”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sandra Cunha, do BE, acha que “o Parlamento deveria representar o mais fielmente possível a sociedade”
TEXTO: A socióloga Sandra Cunha, eleita por Setúbal nas listas do Bloco de Esquerda, nunca tinha dito isto a um órgão de comunicação social: “A orientação sexual não é visível – como o género, a etnia ou algum tipo de deficiência ou handicap –, embora muita gente não a esconda. Eu, por exemplo, não a escondo, mas não ando com um cartaz. As pessoas heterossexuais também não andam. Simplesmente, não escondem. ”A primeira pessoa abertamente homossexual a sentar-se no Parlamento foi Miguel Vale de Almeida, antropólogo nascido em Portugal em 1960. Entrou em 2009 como independente eleito por Lisboa nas listas do PS. Já era um dos mais conhecidos activistas pelos direitos LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgénero e intersexo) e tinha objectivos concretos: a lei que consagrou o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a lei de identidade de género que permitiu mudar o nome próprio e a menção ao sexo nos documentos sem tratamentos hormonais e cirurgias. Saiu em Janeiro de 2011, sentindo que os cumprira, embora esta última lei tenha tido de ser votada segunda vez. Nas últimas eleições legislativas, voltou a haver só uma pessoa abertamente homossexual, Alexandre Quintanilha, cientista nascido em 1951, em Moçambique, casado com o escritor Richard Zimler, que conheceu quando vivia nos Estados Unidos. Eleito pelo círculo do Porto nas listas do PS, não se dedica a esses temas (preside à Comissão de Educação e Ciência). Desengane-se quem julga que todos os outros eleitos são heterossexuais. “Há mais gente no Parlamento que também não esconde a sua homossexualidade”, afiança Sandra Cunha. Fazem a sua vida. Alguns até partilham parte dela nas redes sociais, o que quebra a separação entre a esfera pública e a privada. Só não falam nisso com jornais, rádios ou televisões. Podem, simplesmente, não querer falar na sua vida privada. Podem nunca ter sido questionadas sobre esse assunto. Pode nunca ter vindo a propósito, como desta vez, que, para assinalar o Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e para o Desenvolvimento, o PÚBLICO decidiu ver que diversidade existe no Parlamento. “É deslocado estar a falar nisso, a não ser que haja uma entrevista em que isso é perguntado”, salienta. E fazê-lo, pelo menos para já, ainda implica sujeitar-se a ser alvo de notícia, o que comporta riscos. "Há algumas reticências, porque a vida privada das figuras públicas é escrutinada e a revelação da sua vida privada não as implica só a elas, implica também as pessoas que a rodeiam, que fazem parte dos seus círculos de amizade ou das suas relações familiares”. Sandra Cunha integra a Comissão dos Direitos, Liberdades e Garantias. Participa na sub-Comissão para Igualdade e Não Discriminação. Faz parte do grupo de trabalho sobre parentalidade e igualdade de género e do grupo de trabalho sobre regimes eleitorais. Tem estado, por exemplo, a trabalhar na lei sobre a autodeterminação da identidade de género, que Marcelo Rebelo de Sousa vetou no passado dia 9 de Maio, e no regime jurídico de recenseamento de residentes no estrangeiro, que será sujeito a votação no próximo dia 24. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os deputados têm pastas atribuídas e é nelas que se concentram. Podia ter ficado com outras. Ser mulher, lésbica, oriunda de uma família de emigrantes, ter nascido em França em 1972, ter vindo para Portugal ainda criança fazer a escolaridade, ter andado cá e lá, ter optado por se fixar cá, ter um percurso como activista dos direitos LGBTI, não a obriga a interessar-se por temas relacionados com género, orientação sexual ou migrações. "Uma coisa não implica a outra", salienta. "Estamos aqui para representar todos os cidadãos e todas as cidadãs. " Não deixa, porém, de ver uma vantagem. "Acho que quem calça sapatos que são seus também tem uma sensibilidade acrescida. A empatia, que deve existir sempre, é invevitavelmente maior. ”No seu entender, “o Parlamento deveria representar o mais fielmente possível a sociedade”. Não é isso que acontece. "As pessoas que têm mais actividade política ou que estão mais disponíveis para a participação política são provavelmente as que têm mais oportunidades ao longo da vida. " Ocorre-lhe o exemplo das mulheres. "Não será essa a razão principal, mas também pesa o facto de estarem mais ocupadas com o cuidado da casa e das crianças. "
REFERÊNCIAS:
Partidos PS
“Se os marcianos vierem, dir-nos-ão: ‘vós, os humanos’. Não precisarão de mais adjectivos”
Raça, género e identidade são os tópicos de que Harryette Mullen, membro do movimento Cave Canem, se serve para construir uma poesia que quer falar do que é comum a toda a gente, e não apenas do que lhe é específico enquanto mulher, afro-americana e feminista. Os escritores negros, defende, devem escrever como quiserem, independentemente da cor. (...)

“Se os marcianos vierem, dir-nos-ão: ‘vós, os humanos’. Não precisarão de mais adjectivos”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 Animais Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 11 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-08-03 | Jornal Público
SUMÁRIO: Raça, género e identidade são os tópicos de que Harryette Mullen, membro do movimento Cave Canem, se serve para construir uma poesia que quer falar do que é comum a toda a gente, e não apenas do que lhe é específico enquanto mulher, afro-americana e feminista. Os escritores negros, defende, devem escrever como quiserem, independentemente da cor.
TEXTO: E se a poesia de Safo, a grega, soar a blues depois de traduzida para o inglês da América? Soou mesmo a blues a Harryette Mullen, a americana que aprendeu o som, o ritmo e a cadência da sua poesia com as línguas de poetas que não consegue ler no original. Assume o contágio entre o que escreve e essas palavras que sabe entender fora do seu significado original, ou convencional, e que transmuta para uma poesia comprometida com causas, mas sobretudo com a singularidade da sua voz. Eis Harryette Mullen, 64 anos, natural do Alabama, criada no Texas. Professora de literatura afro-americana na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, não é apenas a responsável por resgatar para a actualidade uma obra esquecida que entretanto foi considerada um clássico contemporâneo: Oreo, o único romance de Fran Ross. Publicado em 1974, o livro, que refaz a história de Teseu numa versão satírica protagonizada por uma rapariga negra, compondo um retrato cheio de humor da relação entre afro-americanos e judeus, ficou adormecido até 2015, quando Mullen convenceu um editor a reeditá-lo (em Portugal saiu na Antígona em 2016). Foi também por causa de Oreo que Harryette Mullen passou a fazer parte da História da literatura americana, mas isso é pouco para falar dela. Em Lisboa, onde veio participar no programa Lisbon Revisited – Dias da Poesia, que reuniu vários poetas na Casa Fernando Pessoa para celebrar os 130 anos do escritor português, Mullen agradece a atenção. “Nos Estados Unidos os jornais não se interessam por poesia”, sorri, os cabelos num desalinho que a faz parecer muito, muito nova, ainda mais quando combinados com o sorriso que lhe abre covas na face e lhe faz cerrar os olhos. Acabada de chegar de Los Angeles, onde vive, pede desculpa pelo cansaço e justifica o desinteresse dos media do seu país pela poesia com a vida, o quotidiano. “Estão interessados em coisas práticas. Na economia, em negócios, em comprar e vender, e a poesia nem sempre é o melhor para isso. ” Autora de nove livros em que conjuga humor, desafia convenções e joga com a linguagem de forma provocadora, diz que está sempre a dizer aos seus alunos que “a poesia só serve para perder dinheiro": "O poeta perde dinheiro, o editor perde dinheiro, o livreiro perde dinheiro. É preciso gostar de poesia por outras razões. ”Sem um único livro publicado em Portugal, Mullen deu-se a conhecer na Casa Fernando Pessoa através da tradução de outra poeta, Margarida Vale de Gato. E lê-se, por exemplo, assim em português: “Os lumes da minha maluca não são nada como o néon. Os refrescos da Royal são mais coral que o seu beijo. Se o Tide lava mais branco, bazucas mais beges que as dela não há. A sua trunfa eriçada dava um esfregão Bravo de aço. Se vi as cores da moda na revista Marie Claire, nas trombas dela não vejo pó de rouge sequer. E os elixires Tantum têm mais frescura que o verdor da axila da minha mais-que-tudo. Gosto quando abre a goela, mas a pop enlatada tem mais ritmo do que ela. Eu cá não me dou com Marilyn Monroes. A minha larica verde é tão feiinha que dói. Mas, fogo, para mim, o sex appeal da minha Choco-Shake mete num chinelo as manequins platinadas e as actrizes de cinema, esterlicadas que faz pena. ” É o poema Duma Parda, que contrasta com este, [Que penas as dela, que folhas]: “Que penas as dela, que folhas. Ondula toda em brisas. Fru-frus e franzidos que tem. Rufos que se imagina. Vestido estival, sua souplesse, ao vento leve, farfalhando os folhos, levantando as faldas, espreitando pelas cavas. Suas palavras espalhadas ao vento. Quem lhe ouve a voz, tão baixa, cada vinco ao toque suave. Recolhe as folhas espaventadas, as penas, as asas. ”Conotada com causas como a raça ou o feminismo, Harryette Mullen prefere falar em identidade. “Interesso-me cada vez mais pelo mundo no seu todo. Nos Estados Unidos temos a tendência para pensar que somos o mundo, e em Los Angeles é fácil acreditar nisso, porque o mundo vive lá; todos os dias se falam mais de 70 línguas na cidade, e cada uma das pessoas que as falam tem uma identidade e tem raça e tem género. E essa identidade não tem só a ver com o lugar de nascimento, mas com diferenças que influenciam o modo como experienciamos o mundo e que muitas vezes têm a ver com desigualdade, emigração, globalização. A raça está no fundo da pirâmide da diferenciação salarial. É a questão dos tais 99 versus um por cento em todo o mundo. ” A cor define a classe social, razões económicas sustentam o preconceito. “As pessoas simplesmente não têm as mesmas oportunidades de sucesso, de educação. Isso faz a diferença. ”Na poesia dela há isso, e também por isso é política. Mas Harryette Mullen quer mais; pretende que nela haja a universalidade que, justamente, o preconceito de raça não lhe quer conferir. “Enquanto escritora gostava que a minha poesia fosse representativa da humanidade, e a humanidade pode também ser feminina e pode ser negra ou de outras cores. Mas quando me chamam negra, ou quando chamam negra à minha poesia, dizem-me que não posso ser universal. Que sendo negra e mulher e feminista posso apenas ser específica. Porque não sou branca europeia, o tal cliché do universal. O que querem é que eu carregue uma identidade, ao contrário dos brancos, que são apenas humanos. É um complexo dizer que os europeus brancos representam a humanidade mas eu não. Também quero representar a humanidade. Sou humana. Se os marcianos chegarem aqui, dir-nos-ão: ‘vós, os humanos’. Não precisarão de todos esses adjectivos para nos descreverem. Talvez isso servisse para nos unir. Mas parece que não há marcianos, que Marte está vazio. ”Harryete Mullen cresceu numa pequena cidade do Texas, Fort Worth. A mãe era professora e por isso muito cedo na sua vida apareceu o interesse pelas palavras. “Não me lembro de aprender a ler ou a escrever. Aconteceu-me muito cedo, teria uns três ou quatro anos. O mundo em que eu e a minha irmã fomos criadas era como uma pequena escola. Havia secretárias, estantes e livros, era fácil fazer desenhos, pintar. E havia enciclopédias. Acho que começámos a ler e a escrever antes de termos consciência disso. Escrevo poemas desde muito pequenina, imitando o que estava à minha volta: a poesia das canções, das rimas para crianças. Isso é uma espécie de poesia natural quando somos muito novos. ”O aparente jogo infantil com as palavras permanece. Mas depois veio o combate a um ambiente que tendia a excluir. “O Texas é muito resistente a ideias liberais. Apesar de tudo, fui para a universidade, em Austin, um dos lugares mais liberais de todo o estado, muito diferente de Fort Worth. ” Fort Worth é cowboys. . . Tenta um retrato social desse lugar: “As pessoas que possuíam gado e terras eram os 'cow cattleman'; as que trabalhavam para elas e não tinham nem terra nem gado eram os 'cowboys', aquilo a que no México se chama de vaqueros. Alguns eram afro-americanos. Mas na sua maioria os negros que chegaram lá antes de eu nascer iam trabalhar para os matadouros. Em Fort Worth havia dois grandes centros de abate e por isso se formou ali uma numerosa comunidade negra. Os barbecues continuam a ser um grande acontecimento na comunidade”, ri-se. Logo regressa a Fort Worth e ao Sul. “Há um feriado não oficial, o Juneteenth [também chamado o Dia da Liberdade ou da Emancipação], celebrado pela comunidade negra. Depois de a escravatura ter sido banida por Abraham Lincoln, as pessoas no Sul continuaram a viver como escravas e a lutar pela sua liberdade durante muito tempo. Por isso celebram o feriado numa data diferente do dia oficial da emancipação. E, claro, celebram-no com muitos churrascos. ”Parte da poesia que Harryette Mullen escreve reflecte os sons que ouviu nesse lugar, e depois noutros e noutros, as várias formas de inglês, as diferentes línguas que de facto se falam nos Estados Unidos. “Ninguém fala o inglês standard, a não ser, talvez, os apresentadores de televisão. Há diferentes formas vernaculares de inglês. O do Norte é diferente do do Sul, o do Este é diferente do do Oeste, e ainda há o inglês do Midwest. Também há diferenças étnicas e raciais: há o chamado 'black english', há o 'spanglish'. Quero reflectir essa diversidade. " E também esse contágio: " Estudei espanhol durante anos: nunca me tornei fluente, mas houve uma altura em que conseguia ler e escrever bem, ainda que o espanhol que aprendi na escola não fosse igual ao que escutava à minha volta. Embora tenha perdido quase tudo, a música dessa língua continua a ter influência sobre mim. E também aprendi um pouco de francês e de latim, porque andei numa escola católica. ”Além das suas aulas de literatura afro-americana, Mullen também dá um curso sobre poetas negros americanos contemporâneos. Muitos deles nasceram demasiado tarde para poder integrar o Black Arts Movement dos anos 60. “Foi um movimento importante, como uma segunda 'American Renaissance', depois da dos anos 1920. Abriu um novo território e afirmou que tínhamos uma linguagem, uma literatura, uma cultura. À minha mãe ensinaram que os negros eram desprovidos de cultura própria. Eles vieram provar o contrário. Agora os escritores negros estão mais integrados: fazem parte do sistema educativo, são membros de organizações literárias, estão a ocupar um território na poesia que antes não existia porque as pessoas não liam os seus livros, não se interessavam por eles. ”Uma dessas organizações de escritores negros americanos é a Cave Canem, fundada por Toi Derricotte e Cornelius Eady em 1996. “A intenção é dar maior visibilidade a estes poetas no contexto da cultura americana. O Black Arts Movement não foi visto como parte da cultura americana. A grande diferença é que os artistas negros hoje já não são vistos como marginais em relação a essa cultura”, explica, enumerando poetas e prosadores que venceram o Pulitzer, e "até uma vencedora do Nobel [Toni Morrison, em 1993]”. “Os jovens poetas negros hoje têm muitos mais modelos com prestígio. ”Harryette Mullen, que foi uma das instrutoras do Cave Canem, tem visto alguns dos seus alunos, como Terrance Hayes, ganharem prémios de poesia. “São muito diferentes entre si. Em relação a movimentos anteriores, há maior igualdade de género e não precisam de se guiar por uma agenda política em particular. O Cave Canem existe para incentivar os poetas a escreverem a poesia que querem escrever, para quebrar o o estigma de que um poeta negro tem de escrever o que se espera que seja a poesia negra. ”Ela não o faz. Vai ao centro da palavra poesia e traz significados possíveis. “Acho que a poesia acciona o cérebro, por exemplo quando cria falhas, quando abre brechas que é preciso preencher. ” E volta à língua, à identidade. “Tenho estudado a minha árvore genealógica. Consegui recuar uns 300 anos e nenhum dos meus antepassados, até onde fui, nasceu em África. Nasceram na Virginia, na Carolina do Sul e na Carolina do Norte, na Georgia. Sou americana, acho que tenho de admiti-lo. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Sublinha esse facto "porque parece que é preciso andar a dizer isto, ainda mais agora”. É o agora depois do primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Não tem dúvidas de que Obama fez diferença. Mas. . . “Agora temos a reacção. Trump foi eleito para derrubar tudo o que Obama construiu. ” Na saúde, na imigração. "Somos um país a envelhecer, precisamos de imigrantes, especialmente dos mais jovens. Não entendo a visão curta desta política; deveríamos estar a dar as boas-vindas aos imigrantes. Em Los Angeles é preciso ser muito distraído para não perceber que eles fazem grande parte do trabalho essencial. É perverso querer o trabalho feito e ao mesmo tempo não querer as pessoas. E vemos como estão a ser recuperadas palavras de antes. Como as que James Baldwin proferiu há décadas. Estamos a ler James Baldwin agora porque não o ouvimos da primeira vez. Ele foi tão profético! Disse-nos que a mudança tem de ser uma combinação de raiva e de perdão. ”O semblante de Harryette Mullen muda, então. Quer falar da diversão que é jogar com as palavras. Ter o dicionário como ferramenta e matéria-prima. Ir aos limites, explorar cada camada, desafiar sentidos. “A poesia é onde a linguagem brinca consigo mesma. Por alguma espécie de razão gosto de chalaças, de trocadilhos; as palavras são escorregadias e podem assumir muitos significados. Na poesia estarmos sempre a ver como dizer o máximo com o mínimo. Há uma energia, uma ignição que se dá quando certas palavras se juntam. ”Artigo corrigido dia 24/6 às 13h07: altera a ortografia de Safo
REFERÊNCIAS:
Jean-Marie Le Pen diz que vai fazer uma "fornada" com os que criticam a Frente Nacional
Polémica em França onde se exige um processo-crime contra o líder histórico do partido que ganhou as europeias. (...)

Jean-Marie Le Pen diz que vai fazer uma "fornada" com os que criticam a Frente Nacional
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20150501223750/http://www.publico.pt/1639202
SUMÁRIO: Polémica em França onde se exige um processo-crime contra o líder histórico do partido que ganhou as europeias.
TEXTO: Um comentário anti-semita e racista do líder histórico da Frente Nacional, Jean-Marie Le Pen, abriu uma polémica em França, onde as organizações não governamentais exigem a abertura de um processo crime contra o antigo dirigente da extrema-direita. Num vídeo publicado no site da FN na Internet, Le Pen surge a conversar com uma interlocutora que lhe pede para comentar as críticas ao partido feitas por uma série de artistas e de outras personalidades, francesas e internacionais – entre eles Madonna, Guy Bedos (humorista), Yannick Noah (antigo campeão de ténis) e Patrick Bruel (cantor judeu). Le Pen é rápido na resposta e, a rir, diz: "Da próxima vez faremos uma fornada com eles". O vídeo foi retirado neste domingo, já a polémica estava aberta. E de pouco serviram as explicações que o líder histórico da extrema-direita francesa deu, entretanto. "A palavra 'fornada', que usei, não tinha qualquer conotação anti-semita a não ser para os [nossos] inimigos políticos e para os imbecis. Se há gente do meu campo que fez esse interpretação, não passam de imbecis". Louis Aliot, vice-presidente da FN e companheiro de Marine Le Pen (filha de Jean-Marie e actual líder do partido) disse que, se por um lado, Jean-Marie "usou bem o termo fornada", por outro "disse uma má frase". "Foi estúpido do ponto de vista político e um constrangimento". O partido que venceu as eleições europeias em França, com 25% dos votos, não quer perder o momento que lhe é favorável; Marine tem como próximo grande objectivo ser eleita Presidente de França. No Twitter, a ministra francesa para os Direitos das Mulheres, Najat Valaud-Belkacem, condenou Le Pen e disse que se o partido não o banir devido ao comentário, a FN "será para sempre o partido da náusea republicana". O SOS Racismo, em comunicado, exige que "nos próximos dias" seja aberto um processo contra Jean-Marie Le Pen, que acusa de ter "usado a mais grosseira lógica anti-semita". Comentanto as declarações de Aliot, esta organização disse também que o partido tem que deixar de minimizar as tiradas anti-semitas e racistas de Jean-Marie, chamando-lhes incidentes. O Movimento Contra o Racismo e pela Amizade dos Povos (Mrap), também classificou as palavras de Le Pen de "autêntico anti-semitismo" e anunciou que vai apresentar uma queixa contra o veterano político. Jean-Marie Le Pen já foi condenado em tribunal, mais do que uma vez, por incitamento ao ódio. Dias antes das eleições europeias, o pai da actual líder da Frente Nacional afirmou que as pressões de imigração que a Europa atravessa poderiam ser resolvidas com o vírus ébola. Le Pen também é conhecido por negar crimes contra a humanidade – classificou as câmaras de gás nazis como "um pormenor da História".
REFERÊNCIAS:
Étnia Judeu