O CDS, a Europa e os “outros povos”
As tiradas de Nuno Melo sobre os refugiados deviam ensinar-nos a perceber onde estão os Salvinis e as Le Pens portuguesas. (...)

O CDS, a Europa e os “outros povos”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Refugiados Pontuação: 14 | Sentimento -0.12
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: As tiradas de Nuno Melo sobre os refugiados deviam ensinar-nos a perceber onde estão os Salvinis e as Le Pens portuguesas.
TEXTO: O CDS decidiu antecipar-se e anunciar, a quase um ano de distância, a sua candidatura ao Parlamento Europeu. E o que escolheram aqueles que se dizem democratas-cristãos como tema preferencial? Os migrantes: “O espaço europeu pode ser um destino de acolhimento para outros povos mas exigimos respeito pelas nossas leis, valores, costumes. A segurança dos cidadãos é uma prioridade”, lê-se no flyer do CDS (PÚBLICO, 19. 7. 2018). A propósito desses “outros povos”, o repetente cabeça de lista, Nuno Melo, que, por um lado, gosta de falar do “humanismo” com que a Europa tem o dever de acolher “aqueles que procuram o nosso espaço comum porque fogem a essas guerras, porque fogem à fome, porque querem salvaguardar a sua vida e a vida dos seus familiares”, é o mesmo que, sempre que de refugiados se fala, vai direitinho ao discurso do medo. Melo repete há anos que “as migrações têm implicações na segurança”, que a questão “não pode ser vista numa perspetiva romântica” porque há muitos migrantes que, “sob pretexto” da procura de asilo, “se querem infiltrar na dita Europa fortaleza para cometer atentados” (Observador, 4. 9. 2015). É que, lembra ele, “a Europa está em guerra” - o CDS, pelo menos, está! - e “a mim preocupa-me bastante que neste momento haja mais de 50 mil pessoas que circulam livremente pela Europa, sem sabermos quem são, de onde vêm e ao que vêm”. Em Penafiel, há dois anos, Melo dizia que “o problema só se resolve na origem” e “não [acreditava] que isto se possa resolver sem uma intervenção militar da qual a Europa e os Estados Unidos façam parte” (Verdadeiro olhar, 3. 4. 2016). É curioso que, de tão banal esta linguagem, já nem se dê importância a estes delírios belicistas! Para quem gosta de sublinhar que Portugal é uma exceção no quadro europeu de consolidação de uma extrema-direita xenófoba e neofascista, as tiradas de Nuno Melo sobre os refugiados deviam ensinar-nos a perceber onde estão os Salvinis e as Le Pens portuguesas - personagens que, lembremo-nos, preocupadas com a “segurança da Europa” e a “preservação do modo de vida europeu”, sempre rejeitaram ser racistas. O CDS (e o PSD) faz parte do Partido Popular Europeu (PPE) juntamente com a CDU alemã, por exemplo, mas também com os partidos de Viktor Orbán e de Berlusconi (o primeiro a trazer a extrema-direita para o governo italiano há 24 anos). Dominando a presidência da UE (Tusk), da Comissão (Juncker) e do Parlamento (Tajani) europeus, bem como a maioria dos governos da UE, o PPE preparou há meses um rascunho do seu programa eleitoral para 2019 no qual sobressaem algumas das teses tradicionais da extrema-direita: “o sucesso da Europa dependerá da nossa capacidade para (. . . ) preservar o modo de vida europeu”, o que passa por “proteger as nossas fronteiras para travar as migrações ilegais” pelo que “precisamos de equipar as nossas fronteiras com a última tecnologia (…) e pelo menos dez mil novos guardas” para “assegurar o nosso direito sistemático a mandar equipas militares ou construir muros onde for necessário” (“EPP Group Priorities, draft programme”, 2018). Estes muros e estes guardas fronteiriços são os mesmos de Trump ou Orbán. Desengane-se quem acha que tudo isto não passa de uma estratégia eleitoral para impedir que mais eleitores se passem de armas e bagagens para o campo da extrema-direita assumida – como se imitar Salvini fosse a melhor forma de evitar que se vote Salvini. Há quase 30 anos que as elites ocidentais, uma vez libertas do bipolarismo da guerra fria, apostaram nessa nova visão colonial do mundo que o “choque de civilizações” destilou, e, a partir dela, forçaram um reordenamento político dos Balcãs, da Ásia Central pós-soviética, do Norte de África e do Médio Oriente, que propiciou as al Qaedas e os Estados Islâmicos. De amálgama em amálgama, o mesmo terrorismo (dito) islâmico que foi (ou é) aliado militar do Ocidente em tantos cenários de guerra passou a ser tido como representação de um só e único “Islão”; dezenas de milhões de muçulmanos que há gerações (e, em muitos casos, há séculos) são europeus, viram-se percecionados como potenciais terroristas; e, por último, milhões de migrantes, de todas as origens, passaram a ser parte da categoria de “outros povos” com os quais, afinal, “a Europa está em guerra”, e entre os quais se escondem “terroristas” que querem ameaçar “o modo de vida europeu”. Na Europa do desemprego juvenil, da precarização do trabalho e da exploração dos imigrantes, é de “invasores” e “guerra” que o CDS quer falar. Está percebido.
REFERÊNCIAS:
Partidos PSD Partido Popular Europeu
Declaração conjunta do Conselho para as Migrações
No 70.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos 40 anos da ratificação de Portugal da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, por ocasião do dia 18 de dezembro, Dia Internacional das Pessoas Migrantes. (...)

Declaração conjunta do Conselho para as Migrações
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Refugiados Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: No 70.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos 40 anos da ratificação de Portugal da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, por ocasião do dia 18 de dezembro, Dia Internacional das Pessoas Migrantes.
TEXTO: Segundo as Nações Unidas, há atualmente 244 milhões de migrantes internacionais e mais de 22 milhões de refugiados, dos quais quase metade com idade inferior a 18 anos. Guerras, terrorismo, alterações climáticas e crises financeiras registadas nas últimas décadas determinaram a intensidade dos fluxos migratórios e provocaram a maior crise internacional de pessoas refugiadas desde a II Guerra Mundial. O racismo, a xenofobia e o ódio religioso dirigido às comunidades migrantes estão a ser evidenciados no tecido social e no discurso político de democracias ocidentais, nomeadamente europeias. Se há menos de três décadas caía o Muro de Berlim, entre 2014 e 2015 foram construídos muros nas fronteiras de vários países da União Europeia para conter a entrada de novos fluxos migratórios. No auge da crise humanitária de 2015, Estados-membros da União Europeia houve que recusavam receber pessoas refugiadas vindas de África e do Médio Oriente que diariamente chegavam à Europa para fugir da violência e da miséria e muitas morreram no Mar Mediterrâneo. Setenta anos após a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos na Assembleia-Geral das Nações Unidas, hoje, mais do que nunca, o Mundo continua a demonstrar a importância de instrumentos políticos como o do ato firmado no dia 10 de dezembro de 1948 e a atualidade do seu texto. Nesta ocasião, no âmbito da celebração dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Conselho para as Migrações lembra que:A imigração é fundamental para o enriquecimento e desenvolvimento do País, em diferentes domínios: económico; qualificação; emprego; empreendedorismo; diversidade cultural e religiosa;Portugal deve continuar a afirmar-se numa política aberta à migração legal e atenta a novos fluxos migratórios, criando novas respostas para recentes desafios;O Estado e a Sociedade Civil devem continuar a pugnar pela constante melhoria das boas práticas no acolhimento e integração de migrantes e refugiados que vivem e trabalham em Portugal;É dever de todos e de todas reforçar a prevenção e luta contra a discriminação racial e o tráfico de seres humanos, bem como a utilização perversa das migrações para fins de exploração laboral, sexual, mendicidade, entre outros. Deve promover-se a igualdade de oportunidades e o reforço da coesão social como princípios norteadores para uma efetiva, transversal e intersetorial política de integração. Assim, na reunião plenária do dia 3 de dezembro, o Conselho para as Migrações deliberou:Aprovado por unanimidade em Sintra, no dia 3 de dezembro de 2018O Conselho para as MigraçõesOs autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos guerra humanos violência imigração racismo social igualdade sexual humanitária discriminação xenofobia
Twitter enche-se de mensagens de apoio à senadora que os republicanos calaram
Elizabeth Warren foi impedida de criticar o candidato de Trump ao cargo de procurador-geral, entretanto aprovado pelo Congresso, e mulheres de todo o país responderam com uma nova hashtag viral: #shepersisted (...)

Twitter enche-se de mensagens de apoio à senadora que os republicanos calaram
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 9 | Sentimento 0.4
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Elizabeth Warren foi impedida de criticar o candidato de Trump ao cargo de procurador-geral, entretanto aprovado pelo Congresso, e mulheres de todo o país responderam com uma nova hashtag viral: #shepersisted
TEXTO: Quando o líder da maioria republicana no Senado norte-americano, Mitch McConnell, impediu que a senadora democrata Elizabeth Warren lesse uma carta escrita pela viúva de Martin Luther King, Coretta Scott King, não imaginou que estava a dar azo a que as redes sociais se enchessem com milhares de mensagens de apoio à representante do Massachusetts. Na quarta-feira, quando Warren começou a ler a carta de 1986 em que Coretta tece duras críticas à nomeação para o lugar de juiz federal daquele que é hoje o candidato de Donald Trump ao cargo de procurador-geral do Estado, o senador republicano do Alabama Jeff Sessions (entretanto eleito), o líder dos republicanos interrompeu-a e acusou-a de quebrar todas as regras ao afrontar outro senador. “Ela foi avisada. Recebeu uma explicação e, mesmo assim, persistiu [na leitura da carta]”, afirmou McConnell, para justificar a votação com que os republicanos conseguiram, depois, impedir que Elizabeth Warren voltasse a tomar a palavra. E foi precisamente o facto de persistir que é agora sublinhado nas redes sociais. Rapidamente, a hashtag #ShePersisted multiplicou-se pelo Twitter, a par de outra, #LetLizSpeak, enquanto mulheres de todo o país partilhavam fotos das suas heroínas, entre activistas como Harriet Tubman (que lutou pelo fim da escravatura) e Susan B. Anthony (activista dos direitos das mulheres, nomeadamente do direito ao voto), ou mesmo a candidata democrata derrotada por Trump nas presidenciais, Hillary Clinton. Há mesmo já quem se interrogue se estes não serão os novos gritos de ordem de liberais e feministas. A votação para impedir Warren de falar aconteceu durante um dos debates no Senado sobre a indicação de Sessions para o cargo de procurador-geral do Estado, o equivalente norte-americano do ministro da justiça português. Segundo a agência Efe, na carta escrita há 30 anos, a viúva de Luther King acusa o candidato de ter usado os seus poderes políticos no Alabama “para intimidar e assustar os eleitores negros de idade avançada” e tomar medidas de carácter racista. Ao longo da campanha de Trump, Sessions tornou-se um dos seus conselheiros mais próximos, partilhando com o novo Presidente ideias como a deportação em massa de imigrantes ilegais. Com a votação dos conservadores, a senadora do Massachusetts não pôde voltar a intervir no debate que antecedeu a confirmação de Sessions, recorrendo ao Twitter para prometer que passará a ter o novo procurador-geral debaixo de olho: "Considerem isto o meu aviso. Não seremos silenciados. Vamos continuar a denunciar. E persistiremos". There’s no Rule 19 to silence me from talking about Jeff Sessions anymore. So let me say loudly & clearly: This is just the beginning. If Jeff Sessions turns a blind eye while @realDonaldTrump violates the Constitution or breaks the law, he'll hear from all of us. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. If Jeff Sessions makes even the tiniest attempt to bring his racism, sexism & bigotry into @TheJusticeDept, he'll hear from all of us. And you better believe every Senator who voted to put Jeff Sessions’s radical hatred into @TheJusticeDept will hear from all of us, too. Consider this MY warning: We won’t be silent. We will speak out. And we WILL persist.
REFERÊNCIAS:
Partidos BE
Porque é que não comemos cães?
“Comum a todas as ideologias violentas é o fenómeno do saber sem saber”. Quem o diz é a activista vegan norte-americana Melanie Joy, para quem comer carne é uma dessas ideologias violentas – ela chama-lhe "carnismo". (...)

Porque é que não comemos cães?
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 Animais Pontuação: 13 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: “Comum a todas as ideologias violentas é o fenómeno do saber sem saber”. Quem o diz é a activista vegan norte-americana Melanie Joy, para quem comer carne é uma dessas ideologias violentas – ela chama-lhe "carnismo".
TEXTO: Comer carne não é apenas uma opção — é uma ideologia. Melanie Joy, professora de Psicologia e Sociologia na Universidade de Massachusetts e autora do livro Porque Gostamos de Cães, Comemos Porcos e Vestimos Vacas (Bertrand Editora), defende que, para encararmos de frente a questão, temos de a poder nomear: ela chama-lhe “carnismo”, palavra que, diz, “já está na Wikipédia e em diferentes dicionários”. O argumento é simples: se não lhe dermos um nome, não a veremos como ideologia, é apenas o “normal”. E para Melanie, que é também fundadora da associação Beyond Carnism e co-fundadora da ProVeg International, não há nada de normal na relação que hoje mantemos com os animais. “Quando um comportamento — neste caso, comer animais — se torna uma escolha e não já uma necessidade, assume uma dimensão ética que não tinha antes. ”É pela psicologia que tenta provar aquilo que vê como uma profunda contradição, a dualidade com que nos relacionamos com o mundo animal, criando uma enorme empatia com algumas espécies e massacrando milhares de milhões de outras para as comer. “A maior parte das pessoas pensa que é cruel massacrar um golden retriever perfeitamente saudável só porque gostamos do sabor das pernas dele”, explica numa conversa com o P2 durante a sua recente visita a Portugal para fazer uma palestra no festival VeggieWorld. É precisamente com o exemplo do cão (noutro país, não ocidental, poderia ser uma espécie diferente) que começa o seu livro. Descreve um jantar de amigos, ambiente acolhedor, uma “travessa fumegante de um apetitoso guisado”. Todos estão deliciados com a carne e alguém pede a receita, ao que o anfitrião responde: “Começamos com 2, 5 quilos de carne de golden retriever. ” A frase é o suficiente para congelar o gesto de levar o garfo à boca. “Se formos como a maior parte dos norte-americanos, ao sabermos que estávamos a comer um cão, as nossas sensações vão passar automaticamente de prazer a um certo grau de repulsa”, escreve a autora. Porque é que não temos o mesmo tipo de empatia com outros animais?O cenário de produção de carne a nível industrial que Melanie Joy descreve no livro — no qual refuta também argumentos como o de que os animais não sofrem, não sentem dor ou medo — é impressionante. Destinados exclusivamente a serem transformados em alimento, os animais criados para este fim têm vidas muito curtas, durante as quais sofrem continuamente. Um artigo do The Washington Post de 2011, assinado por Joby Warrick e citado no livro, incluiu a entrevista a um trabalhador de um matadouro que explicava que, embora o gado devesse chegar já morto à sala de corte, frequentemente isso não acontecia. “Eles pestanejam. Fazem barulhos, mexem a cabeça, arregalam os olhos e olham em volta”, descrevia o funcionário, que continuava a cortá-los. “Eles morrem pedaço a pedaço. ”Esqueçamos as vacas por um momento e vejamos o que se passa em algumas produções onde se amontoam milhões de galinhas: “Como as galinhas têm sido geneticamente modificadas para porem dez vezes mais ovos do que as suas antepassadas, os seus frágeis ossos partem-se com frequência, visto o cálcio do esqueleto ser desproporcionalmente desviado para a formação das cascas dos ovos. Uma outra consequência desta selecção artificial para a produção de quantidades antinaturais de ovos é o prolapso uterino. Quando um ovo fica agarrado à parede uterina, pode trazer o útero com ele ao sair. A não ser que seja recolocado no corpo da galinha, o útero será alvo das bicadas das outras galinhas, levando-a a sangrar até à morte ou a perecer devido às infecções; em ambos os casos, a galinha costuma morrer ao fim de dois dias. ”Um exemplo de algo que pode horrorizar um leitor ocidental é a descrição dos restaurantes sul-coreanos onde se come carne de cão, retirada de uma reportagem de 2002 do jornal britânico The Telegraph: “A morte dos cães é tão desumana como a sua criação. Quase todos são espancados até à morte, pois acredita-se que tal estimula a produção de adrenalina, vista pelos homens coreanos como estimulante para a sua virilidade. Uma vez mortos ou quase mortos, os cães são atirados para água a ferver, esfolados e pendurados pela mandíbula num gancho de carne. Muitos cozinheiros usam então um maçarico para lustrar a carcaça. ”E, para quem não estiver já profundamente perturbado, Melanie acrescenta ainda descrições sobre a vida dos trabalhadores da indústria da carne (muitos deles imigrantes ilegais), que classifica como “o emprego fabril mais perigoso nos EUA, sendo também o mais violento”. Para além do desgaste emocional provocado pelo facto de se trabalhar num ambiente em que animais estão permanentemente a ser massacrados, existem muitos riscos físicos, das quedas aos cortes e amputações. “Em 2005, pela primeira vez, a Human Rights Watch publicou um relatório em que criticava um sector específico dos EUA — o sector da carne — por nele vigorarem condições de trabalho tão chocantes que violavam os direitos humanos básicos. ”Por fim, a questão da higiene (e mais uma vez as referências no livro são sobretudo relativas aos EUA, embora a autora diga que, com algumas diferenças na legislação e nas regras, a situação na Europa é também grave). Se a carne pudesse ter avisos na embalagem semelhantes aos do tabaco, segundo Melanie seriam algo como isto: “O animal convertido neste produto pode ter sido alimentado com gatos e cães mortos para o efeito; com penas, cascos, pêlos, pele, sangue e intestinos processados; com animais mortos por atropelamento, com estrume, com granulados de plástico extraídos dos estômagos de vacas mortas; com carcaças de animais da sua própria espécie. ”“Sabemos que a produção de carne é um negócio sujo”, escreve. “Mas preferimos não saber quão sujo é. (. . . ) Comum a todas as ideologias violentas é o fenómeno do saber sem saber. ” Esta realidade é, de vez em quando, denunciada numa reportagem ou num filme, mas a maior parte das pessoas, ainda que suspeitando que ela existe, prefere ignorá-la, afirma Melanie. Ela própria começou por ser “a rapariga da pizza apaixonada por carne”. Pedia sempre pizza com todo o tipo de carnes e ainda extra queijo. Só mais tarde começou a aperceber-se de uma contradição. “Eu era ao mesmo tempo uma consumidora de carne e uma pessoa que se preocupava com os animais”, explica ao P2. “Não fazia a ligação entre as duas coisas e quando finalmente a fiz fiquei tão chocada que quis contar a toda a gente o que tinha aprendido sobre a produção industrial de carne. ” Foi então que se lhe deparou “uma terrível resistência em relação ao que [lhe] parecia ser uma informação verdadeiramente importante”. As pessoas pareciam não querer ver, nem ouvir. Esta descoberta levou-a a estudar mais profundamente a psicologia da violência e da não-violência. “Queria saber porque é que pessoas boas voltam as costas a problemas sérios, permitindo que eles continuem a existir e a proliferar. ”Se pensarmos nesta questão em termos mais alargados, podemos questionarmo-nos sobre até que ponto esta vontade de não ver nos pode levar a assumir certos posicionamentos políticos — e Melanie não tem problemas em usar neste livro a palavra “holocausto” para se referir ao que está a acontecer a milhões de animais todos os dias. “Entrevistei talhantes, cortadores de carne, comedores de carne, pessoas que criavam e matavam os seus próprios animais para alimentação. Todas tinham os mesmos comportamentos contraditórios, preocupavam-se com eles, mas massacravam-nos e comiam-nos. ” Percebeu, então, que “algo maior devia estar a acontecer”: “A única explicação para este paradoxo generalizado tinha de ser um sistema de crença espalhado, ou seja, uma ideologia. ”Mas, questionamos, comer carne não foi algo que fizemos desde sempre? Se é uma ideologia, como é que começou e quem a propagou? “As ideologias não têm de nos ser vendidas. Podem simplesmente desenvolver-se ao longo do tempo, baseadas na forma como nos relacionamos com o poder. Se pensarmos no sistema patriarcal ou no sexismo como uma ideologia, não houve alguém a vender a ideia de superioridade masculina”, argumenta. “É um conjunto de ideias que começou há muito tempo e foi crescendo, porque um grupo de pessoas, neste caso os homens, tinha poder e agarrou-se a esse poder. ”O que aconteceu depois, segundo Melanie, foi que todo o sistema passou a assentar num mecanismo quase invisível, uma “indústria de milhares de milhões de dólares” que tem todo o interesse em manter o mundo a consumir enormes quantidades de carne. E o grande trunfo deste sistema é a sua invisibilidade. A máquina trituradora de animais é mantida longe dos olhares de quem os vai comer. No entanto, mesmo quando a morte acontece à nossa frente, não nos mostramos tão chocados como seria expectável — basta pensarmos na matança do porco, tradicional em países como Portugal, ou na forma como os animais mortos, inteiros, são apresentados nos talhos. “Para algumas pessoas, a questão é não ver fisicamente, com os olhos”, argumenta. “Para outras, é não ver com o coração. A visibilidade é física, mas também emocional. E as pessoas têm uma capacidade extraordinária para se tornarem insensíveis. No passado, viam a matança de humanos, o tempo todo, à frente delas. Eram insensíveis a isso. Usamos mecanismos de defesa psicológicos. ”As pessoas que lidam directamente com o negócio da carne, que trabalham nos matadouros, por exemplo, são das que mais usam esses mecanismos de defesa. “Os carniceiros que entrevistei têm como trabalho transformar os animais mortos em pedaços de carne, mas quando recebiam os animais, eles nunca tinham cabeças. Eles estavam completamente habituados àquele trabalho, não os incomodava nada, excepto quando, ocasionalmente, um animal chegava ainda com a cabeça. Isso era muito perturbador, porque viam os olhos dele e estabeleciam uma relação emocional que tornava mais difícil manter a distância. ”Quando perguntamos a alguém porque é que, sabendo as condições em que os animais vivem e morrem e conhecendo o impacto que a produção industrial de carne tem no ambiente, continua a comê-la, muitas das respostas assentam em duas ideias principais: porque é “natural” e porque é “cultural”. E estes argumentos parecem ser mais fortes do que os primeiros. Porquê?“É aquilo que aprendemos. É uma ideia, um mito que herdámos, geração após geração. Lemos sobre isso, vemos na televisão, a nossa família diz-nos isso, a religião diz-nos isso, ouvimos a mensagem, uma e outra vez, repetidamente. Por isso, nem questionamos até que ponto é racional. ”Todavia, há na natureza animais que são herbívoros e outros que são carnívoros, contrapomos. O aparelho digestivo humano tem capacidade para digerir carne e derivados, portanto será “natural” fazê-lo. “Sim, os nossos aparelhos digestivos permitem isso, mas também sabemos que dietas com excesso desses ingredientes podem fazer-nos adoecer. ” Dá outros exemplos de adaptação do organismo humano: “Os nossos corpos não foram feitos para viver em climas nórdicos, onde temos de acender aquecedores, ou em climas muito quentes, onde temos de ligar o ar condicionado. Há muitas coisas que fazemos hoje que não fazíamos na natureza, e isso não as torna boas nem más. Não somos os mesmos seres que éramos, quando tínhamos de caçar a nossa comida. ”Melanie defende, por outro lado, que o argumento da tradição — por exemplo, comer peru no Natal ou no Dia de Acção de Graças — é facilmente contornável. “A tradição tem que ver sobretudo com a família estar junta, celebrando, ouvindo as histórias uns dos outros. O que comem não é assim tão importante. ”Quanto à identidade nacional e gastronómica, que em muitos países está profundamente ligada à carne, acredita que “a cultura é dinâmica, não é estática”. “Tal como um casamento, a cultura não fica igual o tempo todo, cresce, desenvolve-se. É, no fundo, uma relação entre milhões de pessoas. Se pensarmos nisso à escala mais pequena, como a do casamento, percebemos que a relação muda, as coisas que eram normais no passado deixam de ser normais. Há tantas coisas que deixámos de fazer — nos EUA enforcavam pessoas, na Roma antiga celebravam os assassinatos públicos. Evoluímos. ”Outro argumento que contesta é o utilizado por quem critica a indústria alimentar para apresentar uma versão romantizada da morte de animais selvagens (a caça) ou que vivem em condições aceitáveis (aqueles que a indústria, e não só, apelida de “felizes”). Para Melanie, isso é uma falácia. “De certa forma, é ainda pior matar um animal feliz, que quer continuar a viver e que estabeleceu laços com outros. Não é racional. Mais uma vez, se nesse raciocínio substituirmos a vaca, o porco ou a galinha por outro animal, vemos que não é racional. Não é respeitável matar um ser vivo só porque queremos comer as pernas dele, mesmo não precisando disso para sobreviver. ”A activista vê, contudo, sinais de mudança. E alguns deles vindos até da indústria. O marido de Melanie, que, tal como ela, está ligado à ProVegg International, deu uma conferência para produtores de carne na Europa e detectou alguns desses sinais. “Disseram-lhe que o objectivo deles não é necessariamente vender proteína animal, querem vender produtos de proteína, seja vegan ou animal. Muitas dessas empresas começaram já a vender produtos vegan. ” Na Alemanha, onde vive, “o mais antigo produtor de salsichas do país começou a fazer salsichas vegetarianas”, depois de ter concluído que “as salsichas são o cigarro do futuro”. Há já muitas pessoas a reduzir o consumo de carne, ou a abandoná-lo definitivamente, mesmo que o façam com motivações diferentes, algumas pela preocupação com o bem-estar dos animais, outras pelo ambiente e outras ainda pela saúde. “Mas”, sublinha, “no fundo são tudo questões éticas. ” “A forma como tratamos os nossos corpos também é uma questão ética. Não temos de fazer uma escolha entre o nosso corpo e os animais ou entre o nosso corpo e o ambiente. ”Sabe que “o mundo não vai tornar-se vegan de um dia para o outro”, até porque estamos a falar de “uma profundíssima transformação social na forma como nos relacionamos com os animais e com a nossa comida”. Mas o movimento está aí, mesmo que “ainda não tenhamos todas as respostas”. Uma das respostas que não temos é para esta pergunta: se não precisarmos de criar certas espécies de animais para a nossa alimentação, será que elas vão continuar a existir? Melanie confessa que não sabe. Questionamo-la também sobre os desequilíbrios que existem no planeta relativamente a esta questão. Se no mundo ocidental é possível haver um número crescente de pessoas a afastar-se da carne, em países como a Índia e a China, com todo o impacto que têm pela força dos números, o consumo de carne está a aumentar à medida que as condições de vida o permitem. Tal como aconteceu na Europa no passado (e ainda acontece em grande medida hoje), a carne é vista como um sinal de riqueza e de estatuto. Sim, reconhece, mas “mesmo a China está a tentar reduzir o seu consumo de carne”. O problema, segundo Melanie, é que a grande indústria alimentar “está a exportar os seus problemas para as nações em desenvolvimento, ou seja, o carnismo está a exportar os seus problemas”. O que lhe dá esperança é que tanto na China como na Índia já existem “grupos activistas que estão a tentar despertar as consciências para que os seus países não sofram os mesmos problemas de diabetes, doenças cardíacas e de ambiente que os nossos enfrentam há tanto tempo”. Estão também a surgir alternativas para substituir o consumo de carne, tal como existe hoje. Uma delas é a carne feita em laboratório, a partir de células retiradas aos animais. Por enquanto, este processo ainda está no início e o primeiro hambúrguer feito a partir de células de bovinos custava uma fortuna. Mas, com o desenvolvimento da técnica, os seus promotores acreditam que um pedaço desta carne, que não implica a morte de um animal, poderá atingir um preço bastante razoável. Melanie, que se apresenta como uma “grande foodie”, considera-a “interessante como alternativa”, mas por enquanto está mais entusiasmada com os produtos semelhantes à carne mas feitos à base de vegetais. “A comida é a minha paixão e descobri que a dieta vegan me permitiu apreciar o que como a um nível completamente diferente. ”A mudança pode não ser tão rápida como ela desejaria; para isso talvez seja preciso uma nova geração. “É geralmente assim que a mudança progressiva acontece. Com cada geração as coisas tornam-se mais fáceis e mais normais. Vemos isso com o feminismo, o anti-racismo, os temas LGBT. ” No entanto, mesmo pessoas mais velhas mudam de hábitos e de ideias — ela acredita que quando envelhecemos nos tornamos mais aquilo que já éramos e que se sempre fomos abertos à mudança, seremos ainda mais. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Até lá, porém, continuaremos a ver muitas reacções. “Uma forma de defender o carnismo é criar uma série de mitos sobre os vegans, estereótipos negativos, para desacreditar a mensagem, apresentando-os como militantes que querem limitar a liberdade de escolha de cada um. ”Apesar disso, as coisas estão a melhorar entre os vegan e não-vegan e uma certa tensão que existia no passado tende a esbater-se — até porque há cada vez mais quem se aproxime desse tipo de alimentação sem ter de abandonar completamente a outra. “Muitas vezes pensamos que ou somos vegan e parte da solução ou não somos vegan e fazemos parte do problema. É importante ver o carnismo e o vegetarianismo num espectro e o lugar que ocupamos nesse espectro é menos importante do que a direcção em que estamos a caminhar. Eu encorajo as pessoas a serem tão vegan quanto possível, de uma forma que encaixe com elas. ”Tudo isto leva-a a ter uma convicção: a alimentação no futuro será diferente do que é hoje. “Para mim isso é muito claro, quando olho a trajectória do veganismo. O carnismo está a seguir outros ismos, como o sexismo. Acredito que um dia o veganismo vai substituir o carnismo como ideologia dominante. E nessa altura nem será uma ideologia, será simplesmente a forma como as pessoas comem. ”
REFERÊNCIAS:
Porque não temos extrema-direita? Uma palavra
A ausência da extrema-direita no nosso país é um facto político precioso. Deveríamos todos esforçar-nos para o manter assim. A sorte ganha-se. (...)

Porque não temos extrema-direita? Uma palavra
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.080
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: A ausência da extrema-direita no nosso país é um facto político precioso. Deveríamos todos esforçar-nos para o manter assim. A sorte ganha-se.
TEXTO: Ontem nestas páginas Teresa de Sousa dava conta de uma pergunta recorrente: “todos os europeus que encontro me pedem a explicação” para o facto de em Portugal “não termos um partido de extrema-direita”. É uma experiência partilhada. Com a recente eleição de uma dúzia de deputados de extrema-direita no parlamento regional da Andaluzia, caiu a “exceção ibérica” à emergência da extrema-direita no continente europeu e ficou só uma “exceção lusitana”. Além de Portugal, só a Irlanda regista também uma completa ausência da extrema-direita no seu panorama político. Por isso a frequência com que estrangeiros perguntam a portugueses como se explica tal fenómeno só vai aumentar. Infelizmente, não é fácil dar-lhe uma resposta. Tal como Teresa de Sousa, também eu costumo começar a minha tentativa de explicação pelo que ela chama de “a vacina do fascismo”, ou seja, o facto de 48 anos de ditadura nacionalista e ultra-conservadora ainda estarem na nossa memória recente. O problema é que essa era também a explicação que se costumava dar para a ausência da extrema-direita na Espanha, que tem uma memória igualmente recente da ditadura, e aparentemente essa memória não protegeu os espanhóis. A partir daqui, divirjo dos restantes argumentos aduzidos por Teresa de Sousa, não por discordar forçosamente deles, mas mais por favorecer outros argumentos. Onde ela vê como possível explicação a “moderação dos socialistas portugueses” e o “instinto de sobrevivência dos partidos à sua esquerda”, eu costumo antes relevar a dimensão e homogeneidade cultural do país, onde é relativamente fácil criar e manter linhas de comunicação abertas entre campos políticos diferentes (mas não foi sempre assim) e o facto de Portugal ter uma bem sucedida experiência de integração de centenas de milhar de retornados de África, que por sua vez antecedeu um também relativamente harmonioso acolhimento de imigrantes a partir dos anos 80/90. Uma das coisas que me surpreendeu quando comecei a ir à Hungria reportar sobre a regressão do estado de direito sobre o governo Orbán foi a facilidade com que se fazia presente a memória da Iª Guerra Mundial e sobretudo do Tratado de Trianon, que em 1919 retirou à metade húngara do Império Austro-Húngaro muitos territórios hoje romenos, croatas e eslovacos. “Fomos traídos”, diziam de políticos a jornalistas, “roubaram-nos dois terços do país”, acrescentam, esquecendo que antes disso já a monarquia imperial habsburga tinha oferecido à sua coroa húngara territórios que não eram dela. A gestão cuidadosa do esquecimento e da exacerbação da memória na Hungria criou o caldo de vitimização e ressentimento que ajudou a propulsionar Orbán e levá-lo ao poder. Boa parte dos carros na Hungria andam com autocolantes nos quais aparece o mapa da Grande Hungria, incluindo capitais de três estados vizinhos. Em Portugal não temos nada disso, apesar do nosso “fim de império” ser bem mais recente. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Outra justificação possível faz parte daquilo a que gosto de chamar “mitos que funcionam”. O principal “mito que funciona” em Portugal é o do “país de brandos costumes”. Se olharmos para a nossa história, desde a forma como o Gama chegou à Ásia, aos séculos de Inquisição, à repressão pombalista, ao estado de guerra civil oficial ou larvar no século XIX, à confusão frequentemente violenta da Iª República e à medonha noite salazarista terminando numa guerra colonial em três países africanos, veremos que o mito do “país de brandos costumes” é mesmo isso: um mito. Mas se suficiente gente acreditar nele, passa a ser um mito que funciona. E apesar de em muitas casas a violência doméstica ser um flagelo, e de na rua se ouvir dizer coisas terríveis sobre os políticos, continua a ser verdade que os portugueses sentem em geral uma verdadeira repulsa pela violência e especificamente pela violência política. Foi talvez isso que nos evitou uma guerra civil após a revolução e que nos encaminhou para uma constituição que — ao contrário do que se passa em Espanha — é unanimemente respeitada. O pior é que quando chego ao fim destas explicações não consigo evitar uma conclusão que parece pouco “técnica” do ponto de vista historiográfico. A grande razão que nos tem protegido, até agora, da extrema-direita resume-se numa palavra: sorte. Não vale a pena embandeirar em arco com a ideia de que temos um caráter especial ou diferente dos outros. Temos tido, também e sobretudo, bastante sorte. Os putativos líderes de extrema-direita que têm aparecido são em geral patéticos e muitas vezes criminosos de meia-tigela, ou ambas as coisas. Outros políticos que namoraram com a retórica xenófoba acabaram por casar com a respeitabilidade que dá o poder. E o misto de denúncia com ignorância seletiva por parte de comentadores e jornalistas tem até agora funcionado. Não quer dizer que a nossa sorte continue, porque o que está a acontecer na Europa e no resto do mundo tem excitado as imaginações de certos oportunistas na confluência entre a baixa política e a imprensa tablóide. Mas a lição mais importante é que a sorte trabalha-se. Se os políticos deixarem de tentar dar soluções reais para problemas reais, é bem possível que os demagogos das soluções irreais para problemas muitas vezes também irreais acabem por conseguir lograr aquilo em que até agora têm falhado em Portugal. A ausência da extrema-direita no nosso país é um facto político precioso. Deveríamos todos esforçar-nos para o manter assim. A sorte ganha-se.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra violência doméstica
Reportagem: Milhares de estrangeiros tentam deixar a Líbia de barco
Uma fila interminável serpenteia junto ao navio. "Não sei para onde vamos", diz uma rapariga de 19 anos, Mary Rose. Está há várias horas à espera para entrar no paquete Alger, que vai zarpar para Alexandria, no Egipto, com dois mil refugiados a bordo. "A agência mandou-nos vir para aqui, não sabemos para onde vamos". Mary Rose é indiana e, desde há um ano, trabalha como baby-sitter em Bengasi. "Vamos todos embora, por causa dos problemas. Não sei se voltaremos." (...)

Reportagem: Milhares de estrangeiros tentam deixar a Líbia de barco
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 5 Refugiados Pontuação: 3 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-03-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma fila interminável serpenteia junto ao navio. "Não sei para onde vamos", diz uma rapariga de 19 anos, Mary Rose. Está há várias horas à espera para entrar no paquete Alger, que vai zarpar para Alexandria, no Egipto, com dois mil refugiados a bordo. "A agência mandou-nos vir para aqui, não sabemos para onde vamos". Mary Rose é indiana e, desde há um ano, trabalha como baby-sitter em Bengasi. "Vamos todos embora, por causa dos problemas. Não sei se voltaremos."
TEXTO: Os "problemas" terminaram por agora em Bengasi, desde que as forças leais a Muammar Khadafi foram vencidas pelos rebeldes, mas Mary Rose e os milhares de imigrantes que tentam embarcar não vêem assim a questão. "Isto está muito mau. É uma guerra, ninguém pode ficar aqui". Mohamed, 20 anos, argelino que veio para a Líbia estudar, observa da janela do seu carro os milhares de indianos, argelinos e sírios que chegam em camiões de caixa aberta, com malas e sacos às costas e o pânico nos olhos. "São paranóicos", diz ele. "Não há problemas com os líbios. Nenhum me fez mal, eu apoio a revolução deles, e quero ficar cá. " Rafiq, que trabalha para o comité dos revolucionários, pergunta a vários indianos se algum líbio lhes fez mal. "Não, não. Os líbios são nossos amigos", responde Santokh Kumar, 30 anos, imigrante do Punjab. "Eu vou-me embora por causa da guerra. Mas quando tudo acalmar, volto". Santokh trabalha numa fábrica de transformação de madeira e vive num campo de operários, com outros imigrantes da Índia e alguns do Gana. Ganha 600 dólares por mês, que envia na totalidade para a Índia. Vive dos 75 dinares mensais do subsídio de alimentação. "O nosso patrocinador é líbio. Chama-se Amar Ali. A empresa fechou e ele mandou-nos regressar. Não temos nenhuma razão de queixa dele. E são os líbios que estão a ajudar-nos a vir para aqui. Pessoas que emprestam camiões e vão buscar os indianos, por várias povoações". Rafiq fica satisfeito com as respostas. "Dizem que nós perseguimos os estrangeiros. Não é verdade. Podem trabalhar, fazer a sua vida. Só fazemos mal aos mercenários, de países africanos, que Khadafi contratou". Atrás do Alger está outro navio, o Europe Palace, e noutro terminal do porto atracou um navio militar sírio. Tem capacidade para mil pessoas, provavelmente menos do que os homens, mulheres e crianças que se empurram para conseguir chegar aos dois funcionários que, sentados em cadeiras de plástico, carimbam os passaportes. Um deles é Mustafa Ahbara, 33 anos, que trabalha no aeroporto, o outro Mahmoud, 24 anos, do Crescente Vermelho. Trouxeram dois carimbos da sede dos serviços de imigração e estão a autenticar a saída dos sírios. Colaboram com o comité. Mortos por todo o lado"Eu não vou regressar mais à Líbia", diz Sfr, sírio de 23 anos. "Não é por mim, mas pela minha família. Têm muito medo. Viram coisas que uma pessoa não devia ver nunca. " A mãe, Safira, o irmão, Mustafa, de 17 anos, e a irmã, Fátima, de 13, não conseguem dizer nada. Vivem em puro terror desde que começou a revolução. "Houve combates em frente do local onde trabalhamos", explica. "Mortos por todo o lado, carros a arder. Tenho de levar a minha família para fora deste país. "A revolução líbia começou em Bengasi no dia 17 de Fevereiro, de forma pacífica, tal como na Tunísia e no Egipto. Mas o que aconteceu a seguir foi muito diferente. As forças de Khadafi dispararam sobre os manifestantes. Usaram metralhadoras e armas pesadas, como baterias antiaéreas. Os buracos das balas são ainda visíveis. Mas a seguir os rebeldes reagiram. Vários comandantes do Exército passaram para o lado dos revoltosos e deram luta às forças especiais do Presidente. Contaram com o apoio de centenas de soldados, e distribuíram armas à população. Os combates decorreram durante três dias, centrados na praça Berka, onde se situa a sede das forças de Khadafi, a Katiba. É um complexo militar cercado por muros altos. No interior, há vários edifícios onde se aquartelavam as forças especiais, um palco onde o Presidente, quando vinha à cidade, fazia os seus discursos ao povo, e vários luxuosos palácios onde ele e os seus apaniguados se hospedavam.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens guerra imigração campo medo mulheres imigrante pânico
O islão delas não é só para homens
As muçulmanas mais influentes da Europa não são mulheres submissas e oprimidas. Religiosas ou laicas, elas valorizam a liberdade, a educação e a ousadia de correr riscos e quebrar tradições. Usar o hijab, diz uma delas, significa apenas “cobrir a cabeça, não esconder as ideias”. (...)

O islão delas não é só para homens
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-11-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: As muçulmanas mais influentes da Europa não são mulheres submissas e oprimidas. Religiosas ou laicas, elas valorizam a liberdade, a educação e a ousadia de correr riscos e quebrar tradições. Usar o hijab, diz uma delas, significa apenas “cobrir a cabeça, não esconder as ideias”.
TEXTO: Suad Mohamed: A imã livre da SuéciaEm 1985, aos 16 anos, quando chegou a Estocolmo, vinda da sua Etiópia natal, Suad Mohamed ficou fascinada ao ver grupos de punks nas ruas. “Se eles exibiam aqueles cabelos excêntricos, eu também poderia usar o meu hijab”, disse a primeira imã (líder espiritual) da Suécia — um título que não é reconhecido oficialmente nos países islâmicos. Ainda assim, não foi fácil. Já naquele tempo, antes de a extrema-direita xenófoba estar em ascensão, uma funcionária de um supermercado foi instruída pelo patrão a não atender Suad Mohamed se esta não retirasse o lenço que lhe cobria a cabeça. O episódio entristeceu-a, mas não modificou a sua opinião sobre o país que a acolheu. “Desde que cheguei à Suécia que me deixei seduzir pelo modo como a sociedade trata as mulheres”, diz-nos a imã, sentada numa poltrona de um hotel de Madrid, cidade onde, a 30 de Outubro, decorreu a gala que elegeu — pela primeira vez — as dez muçulmanas mais infl uentes da Europa. Ela fazia parte de uma short list de 26, seleccionadas pela CEDAR, uma rede pan-europeia de profissionais muçulmanos, mas ficou ausente do top 10. Não ficou incomodada, até porque a amiga Barni Noor, uma jovem de origem somali que é presidente da Associação das Mulheres Muçulmanas da Suécia, foi uma das dez escolhidas. Suad Mohamed estava mais preocupada com o regresso a casa, e a noite já ia longa quando esta entrevista começou. Compreensível, portanto, que a voz doce se arrastasse, o sorriso perdesse luminosidade e os formosos olhos — característicos das mulheres etíopes —, ornados por um eyeliner negro, denunciassem fadiga. O dia tinha sido de muita ansiedade mas, ainda assim, a imã mantinha o porte altivo, numa longa túnica e manto negros, com bordados brancos e brilhantes, a combinar com o hijab que, bem justinho ao queixo e à testa, não deixava vislumbrar uma melena. Quando se fala da Suécia, Suad parece esquecer o cansaço. “Aqui as mulheres são livres. Eu gosto desta liberdade individual. Da capacidade que cada uma tem de fazer as suas escolhas pessoais, de tomar as suas próprias decisões. Foi muito bom para mim —, porque esta é a liberdade que o islão e o Corão me oferecem. Gosto da minha religião, mas não aprecio algumas tradições que impedem as mulheres de agir de sua iniciativa. Olhei para as mulheres suecas como exemplo — absorvi o que gostava nelas; recusei o que não me interessava. Construí desta maneira a minha identidade. ” Ser muçulmana na Europa, acredita Suad Mohamed, fez dela uma pessoa diferente. “Em Marrocos ou na Arábia Saudita, as mentalidades não mudaram. Eu sou muito europeia, mesmo que a minha aparência física não o indique. Os meus filhos são ainda mais europeus do que eu, porque eu nasci na Etiópia mas eles já nasceram na Suécia. Eles são religiosos, por opção, e orgulhosamente suecos. Sou grata por a Suécia ter feito de mim uma mulher livre — não é fácil ser africana, muçulmana e imigrante. ” Suad foi viver para a Suécia, em busca de uma vida melhor, porque já aí se encontrava o seu irmão. Não teve grandes dificuldades de integração e explica porquê: “Falar a língua é a chave, porque quando falamos a língua do país que nos recebe estamos a comunicar, aprendemos os códigos da sociedade. Se não aprendermos — e foi isso que aconteceu com os meus pais —, seremos sempre outsiders. Viveremos como imigrantes isolados. ” Da Suécia, onde fez estudos superiores “para ser professora”, Suad foi para a Universidade de Zarka na Jordânia onde se formou em Shariah, lei islâmica. Quando voltou a Estocolmo, em 2002, deu uma entrevista ao jornal Kyrkans Tidning, órgão oficial da Igreja Protestante sueca [separada do Estado], e foi assim que ganhou o título de imã. “Que coisa extraordinária, não?”, comentou ela, divertida e briosa. “Na realidade, até para mim, tem sido difícil assumir-me como imã. ” Interpretação feminina
REFERÊNCIAS:
Partidos PAN LIVRE
Prendam o Trump! E não faltam motivos para isso
Não sei como vai ser, mas não vai ser bom e se a gente não usa todas as armas da democracia vai perder. (...)

Prendam o Trump! E não faltam motivos para isso
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento -0.06
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Não sei como vai ser, mas não vai ser bom e se a gente não usa todas as armas da democracia vai perder.
TEXTO: “Lock her up! Lock her up!”(Grito de guerra dos comícios de Trump contra Hillary Clinton)Só há uma coisa importante sobre a qual se pode escrever hoje em dia: o Presidente dos EUA, Donald Trump. Dele vai depender quase tudo o que se passa no mundo em 2019: a crise da Europa, a paz do mundo, a situação no Médio Oriente, a corrida aos armamentos, a contínua ascensão de Putin, a economia global, as instituições como a ONU, a Unesco, a UNICEF, as agências humanitárias internacionais, a nova guerra cultural contra as mulheres e a comunidade LGBT, a independência e a separação dos poderes nos EUA, a politização da justiça e das forças armadas, a democracia em muitos países, a democracia nos EUA, de um modo geral o grau de violência que o mundo vai ter sob todas as formas. Muitos destes conflitos não foi Trump que os criou, mas em todos Trump acrescentou factores de agravamento e, nalguns casos, trouxe as franjas mais radicais para o seu lado, para o centro dos conflitos de uma forma que era inimaginável há poucos anos. Os supremacistas brancos, os grupos racistas anti-imigrantes, as redes e os locais de conspiração e calúnia (como o InfoWars e o Breitbart) junto dos quais a comunicação social mais tablóide brilha de sensatez e limpeza, os “operadores políticos” especialistas em operações de desinformação (como Roger Stone), os agentes estrangeiros que, ao serviço dos seus governos, oferecem a desinteressada ajuda a Trump para ganhar eleições e atacar os seus adversários com hackers e fake news e mesmo os assassinos sauditas legitimados pelos cheques da compra de armamento. A tudo isto soma-se essa coorte de mentirosos profissionais, manobradores de todos os dinheiros sujos, como o director de campanha de Trump, o advogado e “facilitador” de Trump, vários assessores e homens de confiança da campanha, e o responsável pela Segurança Nacional, todos a caminho da cadeia. Se a isso somarmos os mentirosos comprovados, os esquecidos de quantas vezes falaram com os russos, teríamos que acrescentar a família Trump, os filhos e o genro. Resumindo e concluindo: é uma pena os portugueses não conhecerem gente como Stephen Miller, um dos principais conselheiros de Trump, solitário porque os adultos de serviço foram saindo um a um, porque, em meia dúzia de minutos, percebiam o que eu estou a dizer. Como é possível escrever tudo o que escrevi sem qualquer risco de contestação, sem qualquer possibilidade de alguém me acusar de calúnia? Pura e simplesmente porque é tudo pura verdade e não há sequer muita controvérsia sobre estas acusações e descrições. Como é que fazendo tudo isto o homem pode continuar a ser Presidente dos EUA? Como é que Trump é capaz de ter feito tanta coisa negativa, qual super-homem do Mal? A resposta é simples: é Presidente dos EUA, o homem mais poderoso do planeta, e não responde a nada a não ser ao seu próprio narcisismo e aos mecanismos do narcisismo, sondagens, audiências, aos bajuladores e sicofantas, e está cada vez mais preso no casulo do seu Ego doentio. Para se perceber Trump é obrigatório ler os seus tweets, com as suas obsessões à flor da pele, os seus erros de ortografia, as suas frases incompreensíveis, as suas calúnias e insultos, a chantagem directa a pessoas, instituições e países, o estilo autocrata e vaidoso – tudo o que ele faz é o melhor do mundo –, a ignorância, a incompetência e a profunda e explicita violência do homem. Em Portugal podia ser ditador de um pequeno café ou dirigente desportivo, para já. Mas no Brasil já poderia ser Presidente. O “para já” não me conforta. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Eu passei o ano entre a explicação racional, a explicação do que ele faz e do seu sucesso e insucesso, e a tentação do irracional, Trump não é bom da cabeça. Cada vez mais penso que são as duas coisas. O que é mais grave é que toda a gente nos EUA que o conhece e com ele contacta sabe que é assim. Suspeito aliás que mesmo na sua base mais fiel, há muita gente que sabe que ele não regula bem. Claro que ele representa muitos interesses económicos, financeiros, americanos e internacionais, como nos lembram os marxistas, mas não é só isso. Há um factor cultural que está para além disso, que é americano e mundial e que homens como Steve Bannon tentam transformar numa nova internacional, Trump mostrou a força da negatividade, um dos mecanismos base do populismo moderno. Conseguiu uma coisa que até agora lhe tem garantido imunidade, mesmo para os actos mais graves quotidianos: conseguiu ser o azorrague dos inimigos de muita gente, a emanação da vontade de vingança e ódio, o cavaleiro andante de muito ressentimento. E nos dias de hoje isso é muito poderoso. Trump foi a todas as cloacas da vida que se manifestam nas redes sociais e fê-las correr a céu aberto e inundar mesmo as terras que eram sadias e limpas. Ele é o primeiro político típico do século XXI. Já o escrevi e repito-o: Trump não vai abandonar o poder a bem mesmo que perca as eleições. Ele encontrará uma qualquer teoria da conspiração porque é incapaz de admitir sequer que ele, o “génio estável”, possa perder uma eleição. E nas chamas tribais que ele incendeia todos os dias isso é um risco de guerra civil. Não como as do passado, mas as modernas, as que vão das igrejas evangélicas aos hackers de Moscovo, passando pelas redes sociais e pelo ataque à liberdade de imprensa e por juízes políticos. Não sei como vai ser, mas não vai ser bom e se a gente não usa todas as armas da democracia vai perder.
REFERÊNCIAS:
Entidades UNESCO ONU EUA
Os refugiados, a bomba-relógio e os medos católicos
As organizações católicas italianas que trabalham com refugiados criticam duramente a nova política do país: o Governo reclama a tradição cristã da Europa, mas as instituições dizem que a política “aldraba a realidade”. E têm receio dos efeitos negativos das orientações no acolhimento e integração dos refugiados — dos que ainda conseguem chegar. Muitos são bloqueados por uma Turquia “que não os protege” ou morrem no Mediterrâneo. (...)

Os refugiados, a bomba-relógio e os medos católicos
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 Refugiados Pontuação: 21 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: As organizações católicas italianas que trabalham com refugiados criticam duramente a nova política do país: o Governo reclama a tradição cristã da Europa, mas as instituições dizem que a política “aldraba a realidade”. E têm receio dos efeitos negativos das orientações no acolhimento e integração dos refugiados — dos que ainda conseguem chegar. Muitos são bloqueados por uma Turquia “que não os protege” ou morrem no Mediterrâneo.
TEXTO: O camaronês Franck Tayodjo, 41 anos, está há 15 anos em Itália, mas tem na pele as marcas do que o levou a fugir do seu país, aos 26 anos: basta levantar ligeiramente as calças para poder ver as cicatrizes da violência e da tortura a que foi sujeito. Jornalista no Aurore Plus, ele e outros colegas eram perseguidos pelo Governo, por causa do que publicavam. “Os governos foram sempre duros com jornais mais críticos. ” Forma branda de explicar porque foi metido numa prisão subterrânea e torturado. Apesar de estar detido na cadeia Regina Coeli, no centro de Roma, Pedro Celeita, 66 anos, colombiano condenado por furto a dois anos de prisão, tem autorização do director para sair durante algumas horas do dia e ajudar outros imigrantes e refugiados no Angolo del Pellegrino: “Estou aprendendo a liberdade. Assim como me ajudaram a mim, estou agora a ajudar outros”, diz, a poucos dias de sair em liberdade e poder regressar à Colômbia, para tentar reconstruir a vida. Apenas terá de cumprir um pedido que lhe fez o Papa — já veremos o quê e quando. Às duas horas da tarde, a fila à porta do Centro Astalli, do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS, da sigla inglesa), já tem umas 30 pessoas, aguardando a comida que será distribuída uma hora depois. Os rostos são sobretudo africanos, mas também asiáticos e do Médio Oriente. Para os voluntários e funcionários do JRS que ali trabalham, nem sempre a tarefa é fácil. “Quem é diferente, vem de outros países e traz consigo uma bagagem de tanto sofrimento, não é uma pessoa fácil de acompanhar”, dirá, uma hora depois, o padre Camillo Ripamonti, director do JRS-Itália, que se manifestará também preocupado com as decisões e atitudes do novo Governo do seu país e com as indecisões europeias. Odine Gideon, 21 anos, nigeriano, viu morrer gente no barco em que se meteu para chegar a Itália, depois de ter ido a pé do seu país até à Líbia. “Umas 14 pessoas perderam a vida” no barco, incluindo crianças. O infortúnio do pequeno Aylan Kurdi, que morreu em Setembro de 2015 numa praia da Grécia, repete-se incessantemente. Na mesma Casa Scalabrini, um antigo seminário transformado em residência de uns 30 refugiados, o missionário Emanuel Selleri, 35 anos, teme a bomba-relógio que as políticas europeias (ou a falta delas) estão a provocar, com o fechamento de fronteiras. Com 75 anos feitos em Julho, o padre Vittorio Trabi quer ser optimista, mas alerta: “Deixamos as pessoas entrar, mas depois não as podemos deixar dormir debaixo da ponte. ” Franciscano, capelão na cadeia Regina Coeli, o padre Vittorio criou o Angolo del Pellegrino e os Voluntari Regina Coeli, grupo de presos que ajudam quem precisa ainda mais. Na última Quinta-Feira Santa, foi este centro de detenção do bairro de Trastevere, no centro de Roma, que o papa Francisco escolheu para o gesto simbólico e litúrgico de lavar os pés a vários presos. Não é fácil o novo quadro político italiano para as organizações católicas que trabalham com imigrantes e refugiados. O Governo fecha portos aos navios e portas da burocracia, corta a torneira da ajuda financeira, cria um ambiente “hostil”, como dirá o padre Camillo. Ainda em Junho, no início da odisseia do navio Aquarius, que só esta semana conheceu um desfecho, o cardeal Ravasi foi criticado por ter recordado que Santo António também foi náufrago e defender o dever evangélico de acolher o estrangeiro. Os bispos assumem a voz da oposição às novas políticas, dizendo que se sentem responsáveis por quem foge das guerras, do deserto, da fome da tortura. A revista Famiglia Cristiana colocou uma fotografia do ministro do Interior, Matteo Salvini, na capa com o título “Vade retro”. O Papa é popular, mas as suas posições sobre este tema não colhem na opinião pública: em cada três italianos, um está do lado do Governo. . . A história de Franck Tayodjo é tragicamente vulgar: nas eleições de 2003 nos Camarões, o jornal Aurore Plus, onde trabalhava, pronunciou-se contra a fraude na contagem dos votos. A resposta do Presidente, Paul Byia, no poder há 36 anos (desde 1982), foi mandar vários militares intimidar jornalistas. Líderes de opinião, comentadores, políticos de oposição, responsáveis de um jornal católico onde Franck também colaborava, ninguém escapou à vigilância da polícia secreta. “Houve pessoas mortas, o Presidente decidiu fechar o jornal, nós procurávamos vender mesmo às escondidas, o Governo militarizou a cidade e mandou a polícia secreta ao jornal. ”E também a sua casa, onde os militares apareceram à noite: “A minha mulher disse que eu não estava e eles começaram a torturá-la. Ela gritou, eu apareci e eles levaram-me. Antes, com a polícia normal, eu escondia-me e o chefe de redacção resolvia o problema. Dessa vez, já não foi possível. . . ”Franck Tayodjo foi submetido a tortura numa prisão subterrânea. Uma das técnicas era fazer rolar os presos no chão e caminhar com as botas sobre eles. Intimidações, perseguições e tortura são práticas quotidianas, acusa. Enquanto fala, Tayodjo mexe timidamente as mãos, sentado na pequena Capela da Fuga para o Egipto, do Centro Astalli: dois bancos corridos, uma cruz etíope e um missal sobre o pequeno altar, que era a escrivaninha do padre Pedro Arrupe, antigo superior geral dos jesuítas, que criou o JRS há 35 anos, na altura da crise dos boat people vietnamitas. Nas paredes, um ícone pintado por Abbye Melaka, refugiado etíope que ali chegou na década de 1990 e hoje vive na Alemanha, evoca a cena da fuga que a tradição coloca no começo da vida de Jesus. Em frente, outro ícone representa a Última Ceia de Jesus com os seus discípulos, como que dizendo que naquela casa o pão é partilhado por quem precisa. Também Franck Tayodjo já teve de fugir, como no episódio que o nome da capela evoca. Em 2003, a região noroeste dos Camarões lutava pela secessão. “A polícia secreta queria que eu lhes desse documentos sobre isso e perguntavam quem estava por detrás de mim. ” Várias pessoas organizaram--se para conseguir a sua libertação. Um bispo católico conhecia-o e organizou a fuga, em direcção a Bamenda, na região secessionista, e depois para a Nigéria, com a qual o país estava em guerra. Mesmo assim, Franck não se sentia em segurança. Acabou por conseguir arranjar documentos falsos e meter-se no porão de um avião da Alitalia, sem poder mexer as pernas durante as oito horas de viagem. “Não sabia que era um avião italiano. ” Quando chegou a Roma, teve quem o informasse de que poderia pedir asilo político, algo que ele ignorava. No aeroporto de Fiumicino, deram-lhe o endereço do Centro Astalli, nas traseiras da igreja jesuíta do Gesù, no centro de Roma. Cinco dias depois da viagem, conseguiu finalmente tomar um duche, ser visto por um médico, contar a sua história, falar com um psicólogo e juristas e, depois, começar a aprender italiano. A resposta ao pedido de asilo, positiva, chegou ano e meio depois. A história de Franck não tem um final feliz: em Roma, faz por vezes alguns trabalhos manuais, sente-se um “eterno precário”. Vive numa casa nos arredores de Roma, com a mulher, que conseguiu juntar-se a ele mais tarde e trabalha como empregada doméstica, indo a casa duas vezes por semana. Mas sente-se permanentemente “em risco de perder a casa, de perder tudo”. E, enquanto refugiado político, não recebe nada do Estado, sublinha. Pelo meio, e ainda nos Camarões, perdera o filho de três anos, por falta de assistência médica. Ele e a mulher adoptaram uma criança, que tinha mais ou menos a idade do filho que morrera — entrou na universidade há um ano. Com tempo livre, Franck acompanha os voluntários do JRS, há cinco anos, em muitas escolas: conta a sua história e fala com os alunos acerca da situação dos refugiados. As idas às escolas fazem parte do projecto que o JRS desenvolve para alunos entre os 13 e os 19 anos, explica Francesca Cuomo, coordenadora do Finestre (palavra italiana para janelas), dedicado ao trabalho nas escolas, e do Incontro, que trabalha o diálogo inter-religioso. “Pretendemos que os jovens desenvolvam um pensamento crítico, baseado no conhecimento”, diz. Isso significa fazer com eles um percurso didáctico sobre migrações forçadas, o contexto geopolítico, a realidade dos países de origem dos refugiados, o direito de asilo, os direitos humanos. . . É nesse percurso que surge o encontro com um refugiado, que servirá de base a um conto que os estudantes escreverão para um concurso literário. “Não se trata de um relatório, mas de se meter na pele daquela pessoa, fugindo à guerra e enfrentando viagens cheias de riscos. E contar isso com um ponto de vista e sensações. ”Mais de 15 mil jovens participaram na última edição do concurso. “O objectivo não é convencer, mas permitir uma experiência e pôr os jovens ao corrente desta realidade, a partir do testemunho, que é o que a televisão não mostra. ” A memória histórica da Itália enquanto país de emigração também serve de recurso, recordando as histórias da emigração económica dos pais ou das emigrações dos avós após a destruição da II Guerra Mundial. Francesca Cuomo tem consciência de que este é um trabalho de paciência, que se confronta com uma opinião pública em que a recusa da diversidade tem crescido. “O que fazemos é plantar uma semente de mudança de mentalidade. Na aula, eles são mais do que 25, porque depois falam com os pais, os amigos. . . É só um instrumento, talvez pequeno, mas poderoso, para mudar as mentalidades. ”Donatella Parisi, responsável pela comunicação no JRS Itália, está consciente de que a tarefa é árdua e o ambiente cada vez mais difícil. “A política aldraba a realidade e a mensagem positiva fica mais frágil. ” O seu dedo aponta responsabilidades graves a muitos políticos e meios de comunicação: “O binómio imigração igual a terrorismo é cavalgado por políticos e pelos media. Tentamos apelar à responsabilidade e à deontologia dos jornalistas, contra as campanhas de ódio que já estão muito estudadas. ”Nota-se tristeza na voz. “Há uma estratégia política muito precisa num momento muito delicado”, diz. Por isso, os 63 mortos de Junho, num novo naufrágio, ou o mês e meio de navegação do Aquarius à espera de autorização para atracar num porto europeu já quase não são notícia, admite. É o “racismo e xenofobia” a crescer, diz. O padre franciscano Vittorio Trani, que reuniu os voluntários da prisão Regina Coeli no Angolo del Pellegrino, para ajudar imigrantes, refugiados, pobres e sem-abrigo, não dramatiza as palavras, mas olha a nova realidade como “muito difícil”. Os media também não ajudam, com a mensagem de que entre os refugiados podem vir terroristas. Há muitos elementos de confusão, diz, e o panorama “não permite pensar o fenómeno” na sua globalidade: pouca clareza no sistema de acolhimento, a “voz comum”, que não corresponde à realidade, de que os refugiados vêm roubar o trabalho. . . “A propaganda não se baseia na realidade”, sublinha Donatella Parisi. Há cada vez menos refugiados a chegar, depois do acordo que a União Europeia fez com a Turquia: entre Janeiro e Junho deste ano entraram em Itália apenas 18 mil pessoas, num país de 65 milhões, observa. “Pagamos à Turquia, que não protege os refugiados. ”Os meios de comunicação falam de uma emergência que afinal não existe, os políticos não resolvem os problemas e apanham a onda, como tem feito o novo ministro Salvini. “Ele já criticara, enquanto deputado europeu, o acordo de Dublin”, que atribui ao país de acolhimento a responsabilidade pela integração. Rejeita-se pois a ideia de que Grécia, Itália e Espanha são os que têm a factura mais alta. No Conselho Europeu de Junho, o problema foi mais uma vez adiado, critica Donatella: “Foi um grande falhanço, nem sequer se previu a reforma do tratado de Dublin. ”O padre Vittorio insiste em que não se pode apenas fazer entrar as pessoas. É preciso “estar na primeira fila para ajudar de modo completo”, ou seja, “acolher de forma a dar uma vida digna às pessoas, acolher com inteligência, ter a coragem de dizer, como o Papa, que a pessoa é uma pessoa”. Na portaria do Centro Astalli (o nome vem da rua onde se situa), vê-se uma fotografia do Papa quando visitou a instituição, há cinco anos. Logo a seguir, um gabinete minúsculo: duas secretárias, um relógio de parede, móveis de arquivo. Três voluntários fazem a primeira triagem de quem chega, respondem a pedidos de informação, entregam correspondência — quem não tem morada dá a direcção do centro — e impõem a ordem quando necessário: por exemplo, quando um homem e uma mulher se envolvem numa discussão acesa. Ela traz uma mala, será a “bagagem de sofrimento” de que falará o padre Camillo?Foi na cave do edifício que tudo começou, há mais de 35 anos: o padre Pedro Arrupe, que estava em Hiroxima quando a bomba nuclear foi lançada, viu as imagens dos boat people do Vietname e quis ajudar os refugiados. Além do apoio nos países asiáticos atingidos pela crise, grupos de voluntários organizaram-se em Roma para distribuir comida, organizar serviços de ambulatório, promover aulas de italiano. . . Hoje, é aqui que se concentram os serviços de distribuição de comida, duches, gabinetes de apoio médico e jurídico, serviços de apoio para a segurança social ou a vítimas de tortura. . . No último ano, mais de 14 mil pessoas foram aqui atendidas, só em Roma, mas o número chegou a cerca de 30 mil nas cinco estruturas do Centro Astalli/JRS em Itália. Uma realidade só possível com os 50 funcionários e 450 voluntários que ali trabalham. Um desses voluntários é Renzo Giannotti, 73 anos, farmacêutico aposentado que há dez anos faz o serviço ambulatório, complementando os dois médicos que dão consultas todas as tardes. É ele que guarda as fichas clínicas dos refugiados que por lá passam e que distribui os medicamentos (doados por outros amigos farmacêuticos ou alguns laboratórios) mais necessários para patologias menos graves — gripes, constipações, dores, problemas de digestão — ou para tratar alguns problemas crónicos. No Verão, 15 a 20 pessoas recorrem diariamente ao serviço. A maior parte são homens jovens, a média etária é de 25 anos. Os casos mais graves são enviados para especialistas amigos ou para as urgências hospitalares, se há necessidade de intervenção imediata. Oitenta por cento dos que procuram os diferentes serviços do Centro Astalli são muçulmanos — por isso, não se distribui álcool nas refeições ali servidas. “Aqui verifica-se um diálogo de vida. Quando o Papa veio, fez-se uma festa e quase todos eram muçulmanos”, conta Donatella Parisi. A maior parte dos que chegam são homens, mas muitos sírios vêm em família e, do Congo, há muitas mulheres que trabalham. Em 2015, o papa Francisco apelou a que instituições católicas convertessem as casas que estivessem vazias em centros de acolhimento de refugiados. Até agora, cerca de oito mil pessoas foram acolhidas nas 35 instituições que responderam imediatamente e noutras que o fizeram depois. Os Missionários Scalabrinianos — o nome vem do fundador, o bispo Giovanni Battista Scalabrini que, em 1887, fundou a congregação para trabalhar precisamente com os imigrantes pobres — fizeram-no, transformando o antigo seminário, vazio, na Casa Scalabrini. Residem ali 32 refugiados, a maior parte de origem africana — por lá já passaram mais de 120, nos últimos dois anos. Significativamente, além da capela que já existia na casa, criou-se um espaço para a oração muçulmana. “Não podíamos fazer mais nada do que abrir as portas e pensar em algo que fosse bom para as pessoas”, diz Emanuel Selleri, missionário leigo, que esteve antes na América do Sul e agora é um dos responsáveis da casa. “Eles vieram primeiro pelo deserto, depois pelo mar. Os que conseguem chegar vêm muito traumatizados e com medo de não serem aceites. ”Por isso, ali, em cerca de seis meses, sempre em comunidade, formam-se os refugiados para os munir de possibilidades de trabalho — língua italiana, carta de condução, noções básicas de economia, direitos e deveres de cidadão — e forma-se a população do bairro social em volta para acolher a diversidade. Uma rádio privada serve para os refugiados expressarem mais intimamente a sua história, os seus anseios, num momento “íntimo, quase terapêutico”. O padre Gabriele Beltrami, 47 anos, responsável pela comunidade, diz que há refugiados que querem regressar ao país de origem. Não é o que pensa o nigeriano Odine Gideon, que prefere ficar na Europa: no seu país, “não havia esperança, nada. . . ” Por causa destas situações, Emanuel acrescenta: “Fechar as fronteiras não é solução, este é mais um drama que esta política europeia e italiana está a colocar no nosso coração: fecham os portos, mas os refugiados chegam por outro lado. ” E o desabafo: “Como italiano, não posso mais com isto. . . ”O Centro Astalli também tem quatro casas para acolhimento e residência de refugiados. Num deles, o da via San Saba, residem 20 homens, actualmente, explica Giuseppe Coletta. Procura-se criar autonomia, neste caso através de um projecto experimental de trabalho em serigrafia. “Permite estabelecer relação entre pessoas que normalmente vivem sozinhas”, explica Donatella. Não tem havido só boas notícias, mesmo nestas instituições: houve paróquias onde várias pessoas abandonaram as missas, quando os párocos anunciaram o acolhimento de refugiados em instalações paroquiais. No início de Agosto, um gambiano acolhido na paróquia de Vicofaro, na Toscana, foi alvejado a tiro quando saiu à rua. Seria necessário alargar a rede de acolhimento e acção, diz Donatella, com católicos, outros cristãos, sindicatos e diferentes organizações. No Angolo del Pellegrino, criado há seis anos pelo padre Vittorio, também se faz a distribuição de comida e de roupa, há lavandaria, apoio médico e farmacêutico, apoio jurídico e para a burocracia do Estado. Não se gasta dinheiro, explica o capelão da prisão Regina Coeli, pois tudo é oferecido e recolhido por uma rede de voluntários. À hora de jantar — pão, bebida, arroz e frango para 30 pessoas —, vários carregam a bateria do telemóvel, objecto que permite a ligação ao mundo e o acesso a informação. Diariamente, há pequeno-almoço às 8h, pizza às 11h e uma ceia às 19h. Vinte pessoas podem dormir nos anexos da Igreja de San Giacomo. Ricardo, um romano de 50 anos (um dos poucos europeus), sem-abrigo, tem falta de trabalho e problemas cardíacos a mais. “Ao menos tenho comida. Caso contrário, ia para supermercados pedir esmola. ” Simon, 53 anos, veio do Líbano, ficou sem nada há um ano: separou-se da mulher, teve de ser operado, perdeu o trabalho. Hoje dorme na rua. Pedro Celeita guarda da visita do Papa à cadeia onde tem estado a recordação do momento em que Francisco lhe pediu: “Quando saíres em liberdade, toma um café e reza por mim. ”São amargos alguns cafés que Franck ainda toma. Há pouco tempo, num autocarro, uma mulher virou-se para ele a dizer que por sua causa é que o transporte estava cheio. “Em vez de pedirmos todos mais autocarros, sou eu o culpado por o autocarro ir cheio. Saí na paragem seguinte. Ou, se dou o lugar a alguém, ainda me dizem que a gentileza era ir para o meu país. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O machado que lhe fazem sentir em cima da cabeça não lhe corta a raiz do pensamento: “Vim para um continente democrático, supostamente civilizado, que deu muita coisa a África. Mas que descarrega sobre os refugiados e os imigrantes a ideia de que a crise é culpa nossa. ” E acrescenta: “As pessoas são mal informadas por muitos políticos, pelos meios de comunicação. Antes, os maus eram os italianos que emigravam ou os do Sul de Itália que vinham para o Norte. Hoje, somos nós. Raramente somos chamados para falar. . . ”A tortura a que Franck foi sujeito cicatrizou nas pernas. Continua, no coração, gravada a sangue.
REFERÊNCIAS:
Descolonizar o pensamento entre Estocolmo e Joanesburgo
A plataforma feminista Mahoyo apresenta esta sexta-feira, em Lisboa, um documentário centrado na efervescente cena cultural de Joanesburgo. Uma alternativa às narrativas uniformizadas sobre África. (...)

Descolonizar o pensamento entre Estocolmo e Joanesburgo
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: A plataforma feminista Mahoyo apresenta esta sexta-feira, em Lisboa, um documentário centrado na efervescente cena cultural de Joanesburgo. Uma alternativa às narrativas uniformizadas sobre África.
TEXTO: Farah Yusuf e MyNa Do, ambas DJ, fotógrafas e stylists, nasceram e cresceram na Suécia mas ouvem sempre a mesma pergunta nas ruas de Estocolmo: “De onde são?”. São da Suécia, vivem na capital, mas não encaixam na norma. Farah é de ascendência somali, MyNa de ascendência chinesa, o que entra em conflito directo com os padrões hegemónicos de representação da identidade nacional sueca, país onde a extrema-direita e os sentimentos anti-imigração têm crescido a passos largos, muito à boleia do (cada vez maior) partido nacionalista conservador Democratas Suecos. “Esse tipo de racismo banalizado consegue ser muito irritante”, diz MyNa Do. “Não é só uma questão de insultos racistas ou violência física, é o constante sentimento de insegurança”, conta Farah Yusuf ao PÚBLICO. “Se algum abuso racial acontecer a nós e a outros, sabemos que não vão ser muitas as pessoas brancas que nos vão defender. ”Foi contra "essa passividade" e estereótipos perversos de raça, género, sexualidade e identidade nacional que Farah e MyNa criaram, em 2008, a Mahoyo, uma plataforma feminista interseccional e interdisciplinar que funciona, online e offline, como “um espaço seguro” onde “exploram livremente” as suas identidades e criatividade, numa lógica colaborativa transcontinental. Esta sexta-feira passam pelo espaço Damas, em Lisboa, em mais uma edição do evento Damachine, onde apresentam, pelas 18h, e com entrada gratuita, o seu mais importante projecto até à data: o documentário The Mahoyo Project (2015), realizado por Moira Galey, que acompanha a viagem das Mahoyo a Joanesburgo, na África do Sul, e o intercâmbio entre jovens artistas africanos e suecos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Boa parte do filme centra-se na efervescente cena cultural de Joanesburgo, com testemunhos de vários artistas locais. Entre eles estão a DJ Phola Gumede – com quem organizaram workshops de DJing e produção de música electrónica para mulheres –, a apresentadora de rádio e televisão Lethabo “Boogy” Maboi, a designer de moda Tiisetso Molobi e a crew de dança V. I. N. T. A. G. E CRU, uma força vital na comunidade LGBTI da cidade. “A coisa mais surpreendente em Joanesburgo não foi a existência de comunidades feministas e queer, mas o facto de ter demorado tanto tempo a sermos expostas a isso”, revelam Farah e MyNA, referindo a influência inicial do projecto de documentários e vídeos Stocktown, do realizador Teddy Goitom (Afripedia), também com base em Estocolmo mas com os olhos em África (e no mundo). O objectivo de The Mahoyo Project é claro, e necessário: contribuir, sem paternalismos, para transformar as narrativas uniformizadas e estereotipadas veiculadas sistemicamente pelos media ocidentais sobre África e a sua produção artística, uma realidade profundamente diversificada que é normalmente encaixilhada sob o título redutor de “arte africana”. Descolonizar o pensamento e o conhecimento é a mensagem que se impõe. “Sabemos perfeitamente que internalizamos muita da propaganda dos mundos ocidentais”, diz o duo. “A descolonização das nossas mentes é uma parte muito importante do processo, bem como verificarmos os nossos privilégios e sermos humildes. "Depois da projecção do documentário nas Damas, segue-se uma conversa com as Mahoyo, a rapper Juana Na Rap e Otávio Raposo, investigador nas áreas de estudos urbanos e segregação, e autor de documentários como Nu Bai: O Rap Negro de Lisboa. À noite há concerto de Juana Na Rap, dama do rap crioulo com ligação directa à Margem Sul, e set DJ das Mahoyo, que nos levará do dancehall ao kwaito (género musical nascido em Joanesburgo), do hip-hop ao r&b.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave violência imigração negro racismo comunidade género mulheres sexualidade abuso feminista raça