Um só mundo... ou nenhum
O internacionalismo assumiu múltiplas faces, nem sempre quis questionar o primado do Estado-nação e não poucas vezes representou a forma mais palatável de promover interesses egoístas. Também foi uma causa pela qual muitos dedicaram os melhores dos seus esforços, pela qual muitos sonharam para lá dos limites do imaginável. (...)

Um só mundo... ou nenhum
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: O internacionalismo assumiu múltiplas faces, nem sempre quis questionar o primado do Estado-nação e não poucas vezes representou a forma mais palatável de promover interesses egoístas. Também foi uma causa pela qual muitos dedicaram os melhores dos seus esforços, pela qual muitos sonharam para lá dos limites do imaginável.
TEXTO: A 22 de Agosto de 1939, num mundo em assustadora desintegração, agitado pelos desvarios de Adolf Hitler e Benito Mussolini e marcado pelo desenrolar da Guerra Civil Espanhola, o australiano Stanley Melbourne Bruce, antigo primeiro-ministro do seu país e então delegado na Sociedade das Nações (SDN), assinou um dos relatórios sobre questões internacionais mais importantes do século XX. Forjado no interior de reuniões de um comité ao qual presidia e sob a direcção do secretário-geral Joseph Avenol, o relatório The Development of International Co-operation in Economic and Social Affairs, que ficou conhecido como “Relatório Bruce”, deixou marca não apenas naqueles turbulentos dias, mas também nas décadas seguintes. Foi um olhar para a frente quando tudo parecia recomendar o fechar de olhos. Bruce fora já um dos responsáveis pela promoção da questão da nutrição a problema global, defendendo investigação e intervenção internacionais. Já em 1935 defendia o “casamento entre a saúde e a agricultura” na Assembleia da SDN. A acumulação de estudos desde os anos 20, nomeadamente os elaborados pela Organização Internacional do Trabalho e pela Organização de Saúde da SDN, que apontavam para notórias insuficiências nutritivas a uma escala global, exigia uma resposta global. Para Bruce, era importante deixar claro que o estudo da nutrição não podia ser reduzido a uma questão de saúde: era um problema laboral e agrícola, que afectava o bem-estar das crianças e as dinâmicas educativas. A guerra iminente na Etiópia não ofuscou algumas destas ideias à época. Elas deixaram marca, reavivando anteriores iniciativas e sendo abraçadas por várias delegações. Já em 1933, um relatório sobre nutrição e saúde pública, assente em inquéritos nacionais, fora debatido em Genebra. Era urgente enfrentar o problema. Entre outros aspectos de relevo, reconhecia-se que “em geral as populações coloniais eram subnutridas”. Nem sequer se tratava de um problema de malnutrição. Era fome, escassez de alimentos, pura e simplesmente. O novo saber do “nutricionismo”, agora com uma expressão institucional internacional, e a expansão dos serviços médicos em territórios coloniais, em parte como resultado da necessidade de responder regularmente a pedidos de informação provenientes de instâncias internacionais, confirmavam factos antigos, conhecidos e denunciados por alguns. Nos anos 20, os esforços da SDN para conhecer, regular e intervir em problemas sociais como a prostituição, o bem-estar das crianças, o tráfico de mulheres e crianças, o comércio de narcóticos ou a escravatura eram essencialmente normativos e negativos. Centravam-se sobretudo na tentativa de restringir, de jure e com inúmeras limitações, essas práticas, procurando comprometer os seus membros com normas e políticas comuns. Um dos casos mais fascinantes foi o dos relatórios escritos por Paul Kinsie para o comité especial de especialistas sobre tráfico de mulheres e crianças, nos anos 20. Kinsie era um empregado da American Social Hygiene Association, patrocinada por John D. Rockefeller. Este já tinha financiado o importante Prostitution in Europe (1914), da autoria de Abraham Flexner, e um outro livro, Commercialized Prostitution in New York City (1913), de George Kneeland. Este último comportara uma inovação significativa no estudo da prostituição, pois assentara em investigações clandestinas de tipo policial. Kinsie e a sua equipa também actuaram como agentes infiltrados, viajando por mais uma centena de cidades pelo mundo, incluindo Lisboa, entre 1924 e 1926. Entrevistaram centenas de indivíduos envolvidos no negócio da prostituição, de proxenetas a médicos, passando por polícias a políticos. Undercover, o próprio Kinsie esteve em cerca de 60 cidades de 30 países em três continentes, produzindo centenas de relatórios que registavam detalhadamente a sua interacção com o submundo da prostituição. A SDN tinha ficado responsável pela supervisão da aplicação da convenção internacional para a supressão do chamado “tráfico branco” (1910). Em 1921, a expressão foi substituída por “tráfico de mulheres e crianças” e uma comissão técnica permanente foi estabelecida para monitorizar o problema à escala global. A delegada dos EUA na comissão era Grace Abbott, activista social norte-americana, figura ímpar na defesa dos direitos dos imigrantes e do bem-estar das crianças, incluindo em matéria de trabalho infantil. Foi ela que redigiu o memorando que propôs o primeiro inquérito internacional sobre o assunto, sugerindo o envio de agentes com “treino especial e experiência para conduzirem investigações pessoais e não oficiais”. Tal medida era imprescindível para garantir “factos para refutar exageros sensacionais ou desmentidos gerais” sobre a existência do tráfico. Esses “factos” seriam a condição para “um programa sólido de cooperação internacional”, tendo por fim a sua supressão. Tal como sucedera com a investigação de Kneeland, a crença na fiabilidade dos dados oficiais era reduzida. O receio de possíveis bloqueios das autoridades nacionais era grande. Os relatórios Kinsie acabaram por alimentar o relatório da comissão, de 1927, sendo, todavia, fortemente instrumentalizados e suavizados em nome da necessidade de assegurar a continuidade da comissão e do seu projecto de intervenção global. O dilema é recorrente e não há soluções simples e perfeitas. Os relatórios Kinsie foram, contudo, excepcionais. Na maioria dos casos, a capacidade de recolha de informação e de condicionamento das agendas políticas nacionais da SDN era extremamente limitada. No entanto, durante os anos 30, e apesar da cada vez mais conturbada situação política e económica global, os seus dispositivos de investigação e de intervenção sofreram ligeiras mudanças, multiplicando-se também os tópicos abordados. Por exemplo, criaram-se programas de assistência técnica e de formação e aprimoraram-se formas de conhecimento de alguns problemas, instigando a produção de informação de raiz, não dependendo apenas dos dados providenciados pelos Estados-membros. O caso da nutrição é, novamente, um bom exemplo. A extensa dimensão da pobreza global coincidia com a existência de substanciais excedentes agrícolas, facto que precisava de ser enfrentado política e moralmente. A organização criou um comité científico com o fito de avaliar o impacto económico e agrícola de uma melhoria da nutrição a um nível global. Este efectuou inúmeras e ricas investigações, publicadas em 1936 e 1937, que demonstravam a relação umbilical entre má nutrição, pobreza e deficientes condições de saúde. Determinou parâmetros dietários mínimos, sublinhando a estreita relação entre estes e a saúde individual e pública, o bem-estar social e a actividade económica, nomeadamente a produção agrícola. Os efeitos da depressão faziam-se sentir em vários domínios e eram necessárias respostas. O Relatório Sobre Nutrição teve um enorme impacto, tornando-se a publicação da SDN mais vendida, com várias traduções. Ao contrário do que sucedera no passado, foram tomadas medidas para amplificar os conteúdos do relatório na esfera pública internacional. Comités nacionais foram criados para pressionar em favor de reformas. Como em muitos outros casos, muitas das medidas advogadas não atingiram os seus objectivos, esbarrando em empecilhos burocráticos e diplomáticos e em incompatibilidades várias, reais e de conveniência. Nos contextos coloniais, a “descoberta” da malnutrição esteve, em parte, ligada a intenções de aumentar a produtividade laboral e, até, à imaginação das populações locais como futuros consumidores. Frequentemente, cálculos económicos e (geo)políticos sobrepuseram-se a motivações humanitárias. Mahatma Gandhi não foi o único a perceber, com razão, como preocupações “científicas” sobre as realidades coloniais da nutrição também serviram para renovar e justificar ideologias de “missão civilizadora”. Do mandato dual de Frederick Lugard (1922) e do African Survey (1938) de Lorde Hailey até ao argumentário desenvolvimentista dos anos 40 em diante, abraçado que foi por todos os Estados-império, foram vários os exemplos de interrogações cientificamente alimentadas que foram usadas com propósitos políticos óbvios. Mas também é verdade que o relatório de 1937 insistia no facto de as maiores necessidades se localizarem na Ásia e em África, associando-o, entre outros aspectos, às condições de trabalho coloniais. Quando a guerra começou, existiam planos para intensificar a recolha de informação nesses territórios e para aí realizar conferências. Tal só sucedeu na América Latina. Os parâmetros dietários foram usados, mas principalmente pelos beligerantes, com a Alemanha à cabeça. Estas conclusões e orientações dos anos 30 constituíram uma referência para programas de ajuda alimentar, para regimes salariais ou para dietas escolares. Directrizes reformistas semelhantes foram assumidas em áreas como a habitação ou o planeamento urbano. Essas propostas reformistas foram rapidamente apropriadas e positivamente instrumentalizadas pelo mundo filantrópico e pelo activismo internacional e transnacional. Foram-no também por todos aqueles que visavam a reforma colonial ou ainda pelos que, como Gandhi, visavam a emancipação, denunciando a tibieza da assistência social das administrações coloniais, associadas por certo a dinâmicas várias de extracção. Mais, governaram muito da arquitectura institucional e os princípios de actuação das Nações Unidas. O seu Conselho Económico e Social foi decalcado, com pequenas mudanças, do Relatório Bruce. Como sucedeu com muitas outras iniciativas promovidas durante a Sociedade das Nações, tiveram um impacto positivo, que não pode ser ignorado por supostos “realismos”, mais ou menos científicos, que obliteram partes menos ajustáveis da história. Parte significativa desse esforço foi empreendida por homens como Bruce, visando a reforma da organização internacional no final dos anos 30, numa tentativa da aumentar a autonomia das agências sociais e económicas da SDN. Apesar da notória incapacidade política, a caminho da paralisia da organização, alguns sectores, nomeadamente os centrados em questões económicas, sociais e humanitárias, não deixavam de tentar prolongar a sua acção. É que, com dificuldades e obstáculos constantes, a organização deixara algumas impressões positivas nas últimas duas décadas. E a aparente despolitização da sua actividade podia ser benéfica politicamente. Os anos entre 1935 e 1939 revelaram uma “renascença” das agências respectivas, como um analista escreveu poucos anos depois. O supramencionado Relatório Bruce mostrava como mais de metade do orçamento da SDN tinha sido entregue a projectos humanitários e sócio-económicos. A ideia de desenvolvimento já circulava, sendo pensada já como “uma estratégia de intervenção sócio-económica de larga escala”, na qual “conhecimento especializado, assistência técnica e prestação de ajuda” desempenhavam um papel crucial. Tão importante, o relatório revelava as insuficiências dos Estados “soberanos” em lidar com questões vitais de natureza sanitária, social, económica e, por certo, moral. Notava ainda sua incapacidade em responder ao “crescimento contínuo das exigências materiais e intelectuais” da humanidade. A imaginação moral, política, social e económica do desenvolvimento da SDN marcou de modo indelével as décadas posteriores à sua liquidação. Estes factos contrariam, de modo evidente, os que, incapazes de pensar de um outro modo, a pensam numa narrativa de falhanço, sempre a partir de uma perspectiva no essencial profundamente a-histórica. O caso do Relatório Bruce é um excelente exemplo do modo como é imperioso repensar a história das organizações internacionais, corrigindo inúmeras apreciações superficiais e uma visão pobre da história, assente sobretudo na determinação de sucessos e insucessos. A história mais banalizada sobre o período posterior a 1945 tende a focar-se desproporcionadamente nas dinâmicas referentes à competição bipolar que sucedeu à II Guerra Mundial. No mesmo período, seguindo a toada, o direito de autodeterminação nacional estendeu-se a todo o globo, deixando de ser um privilégio ocidental e de alguns casos excepcionais. Todavia, há outras histórias a contar. Se muito do que sucedeu após a derrota nazi encontra precedentes no período entre guerras, a expansão de internacionalismos, a vários níveis, é uma parte deste passado que merece ser relembrada. Apesar de se poder argumentar que este novo ímpeto internacionalista se deveu, ou foi profundamente modulado, pelo contexto da Guerra Fria, ele claramente obriga a reponderar o seu lugar histórico. Não se tratou apenas da refundação de arquitectura de segurança global, corporizada na Organização das Nações Unidas, em 1945. A nova ordem eliminou barreiras “raciais” ou “civilizacionais” ao direito de se organizarem autonomamente comunidades políticas específicas e consagrou a extensão de um regime de direitos universais. Criou novas estruturas económicas multilaterais, ainda antes do fim da guerra, em Bretton Woods, em 1944. Era o resultado, consagrado na Carta das Nações Unidas, da compreensão de que as questões sociais, económicas e culturais constituíam não só um direito de toda a humanidade como representavam um pilar fundamental da paz e segurança internacionais. Boas intenções seguramente condicionadas por objectivos de natureza geopolítica, na sua acepção mais ampla, mas que não deixaram de produzir os seus efeitos. Como anunciava o candidato presidencial republicano Wendell Wilkie, no seu best-seller, One World (1940), a consciência de que existiam problemas com que se deparava toda a humanidade, e que exigiam soluções globais, não esmoreceu com a maior mortandade que aquela tinha engendrado. O reconhecimento destes processos não acarreta uma posição celebratória ou apologética. Muitos dos novos esforços de promover a cooperação técnica deram-se em domínios pouco atreitos a isso, como no caso da criação da Organização Internacional da Aviação Civil (1944), ou da Organização Meteorológica Mundial (1947). Mas tratava-se de um processo que era causa e consequência de uma crescente interdependência global, que se traduziu em mais do que uma duplicação de organizações internacionais entre 1940 e 1950. Nem estas histórias estiveram isentas de percalços, disputas ou instintos menos altruístas. O caso da nutrição e alimentação, já referido, constitui um bom observatório. Ainda durante a guerra, o presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt percebeu que esta seria uma questão crucial nos futuros planos do pós-guerra. A Food and Agriculture Organization (FAO) seria criada em 1945. Mas as diferenças entre os participantes, e em relação aos anos entre guerras, desde cedo se fizeram sentir. Por exemplo, os governos da América Latina queriam uma organização com reais poderes de regulação dos mercados internacionais; os EUA e o império britânico, uma mais dedicada à consultoria técnica, compilação de estatísticas e com menos poderes decisórios. Seria esta última visão que acabaria por prevalecer, levando a que John Boyd Orr, que viria a ser o primeiro director da organização, declarasse, irritado, que as pessoas esfaimadas “queriam pão, mas eram-lhe dadas estatísticas”. A resistência a que a organização pudesse ter poderes vinculativos em matérias como o comércio internacional de matérias-primas manteve-se, mesmo depois de a criação de uma Organização Internacional do Comércio ter fracassado. Mas, face às dificuldades, os funcionários da própria organização tiveram de a reinventar. Já com um novo director, o indiano Binay Sen, a FAO viria a criar uma das primeiras campanhas a nível global, a Freedom from Hunger Campaign, na década de 50. Envolvendo a sociedade civil, de indústrias de fertilizantes a grupos religiosos, a campanha visava alertar a opinião pública para o problema da fome no mundo. Patrocinada pelos EUA, que viam nela uma forma de granjear simpatias pelo mundo e, ao mesmo tempo, resolver o problema dos seus excedentes agrícolas, a campanha ajuda a justificar o aumento do orçamento da FAO de 7 para 83 milhões de dólares entre 1958 e 1967. A FAO é apenas um exemplo entre muitos da transformação operada no mundo das organizações internacionais nesta época. Sem ignorar os contributos pretéritos, a capacidade de intervenção destas organizações expandiu-se, aliando aos estudos, recomendações técnicas e sistema de aferição e cumprimento de normas internacionais, um número cada vez maior de intervenções no terreno. Uma expansão que era também geográfica à medida que o Sul global, especialmente após os anos da reconstrução europeia e, depois, com o acelerar da descolonização, se tornou o seu principal palco de intervenção. A Organização Mundial da Saúde (1948), além de criar normas de vacinação uniformes internacionais, compilação de estatísticas e sinalizar focos de epidemias a uma escala global, promoveu campanhas globais como a da erradicação da malária ou da varíola, mais tarde. Também aqui a história não é simples. O balanço final da campanha de erradicação global da malária foi francamente negativo, devido a factores ligados à própria metodologia da campanha, mas também a outros como as características da doença e as realidades sanitárias locais. A da varíola, pelo contrário, seria considerada um sucesso, em muito contribuindo para a erradicação global da doença. A acção destas organizações internacionais não se esgotava nas grandes campanhas internacionais. A troca cada vez mais regular de informações, a circulação de normas e modelos no seu seio promoviam diálogos menos visíveis. Logo após a sua fundação, e sustentando-se nos trabalhos de antropólogos e actores estatais durante o período entre guerras, a UNESCO olhou com particular interesse para programas na África do Sul, no Brasil e no México que visavam ultrapassar as desigualdades e discriminação raciais. No caso da África do Sul, o entusiasmo esmoreceria com a afirmação do apartheid no final da década de 40. O modelo da “democracia racial” brasileira acabaria por também sofrer com a constatação das suas insuficiências no terreno e com a instrumentalização do seu principal ideólogo — o para nós conhecido Gilberto Freyre — pelo Estado Novo português. O México acabaria por se assumir como um modelo de referência. Para isso contribuiu o trabalho de muitos dos seus académicos que procuravam responder à questão “indígena” nos anos 30, entre eles Jaime Torres Bodet, que lideraria a organização entre 1948 e 1952. Contribuía também uma prática política e social que pretendia substituir a “incorporação” pela “integração”, isto é, assumia que a integração plena das populações indígenas no espaço social “nacional” deveria ser feita com respeito por aspectos particulares da sua condição social, histórica e cultural. A afirmação do “modelo mexicano” seria, mais tarde, aproveitada por um sem-número de administradores e académicos franceses. Ao contrário de outras organizações internacionais, de quem o Governo francês desconfiava profundamente, a UNESCO, instalada em Paris, revelou-se instrumental na modelação de políticas coloniais francesas. Especialmente após o início da guerra na Argélia (1954), François Mitterrand, ministro do Interior, proclamou a nova doutrina de “integração”. Para isso, nomeou Jacques Soustelle, antropólogo que fizera trabalho etnográfico no México, para governador-geral na Argélia. Soustelle pôs então em marcha um plano inspirado no modelo mexicano dos anos 30: criando programas especiais para “cidadãos franceses muçulmanos da Argélia” no domínio da educação, reconhecendo a desvantagem fundamental criada pelo racismo que governara o império em matérias sociais e económicas e que não era resolvido pela simples igualdade jurídica. A França imperial iria tão longe quanto instituir quotas para argelinos muçulmanos nas estruturas administrativas, em 1958. O mesmo modelo enformaria os tropos anti-racistas que visavam justificar a presença francesa nos três departamentos. É importante sublinhar, novamente, que não se trata de celebrar o internacionalismo. Antes de sinalizar que ele constituiu uma realidade incontornável do século XX. Dois aspectos turvam esse olhar. Por um lado, a importância das organizações internacionais decaiu substancialmente à medida que o século se aproximou do fim. Se uma reunião técnica de qualquer organismo internacional, nos anos 50, se encontra profusamente espalhada pelo arquivo, hoje, a realidade, por exemplo, nos jornais diários é substancialmente diferente. Por outro, e à medida que a descolonização avançava, os projectos de remodelação integral de sociedades através de um meio que se queria “técnico” e “científico” começou a merecer cada vez maior desconfiança por parte das opiniões públicas ocidentais. O distanciamento do objectivo de criar um mundo mais igual em direcção a outros que davam prioridade à atenuação da pobreza, ligados a transformações da ordem económica internacional, e a burocratização dos técnicos e dirigentes das organizações internacionais para isso contribuíram. Seria, todavia, importante, assinalar que esta transformação abriu portas até então cerradas. Como afirmava o primeiro director da OMS, Brock Chisholm, os “povos do mundo” estavam a tentar “fazer coisas que nunca pensaram tentar na história da raça humana”. Não seria expectável que os “seus esforços relativamente primitivos tivessem sucesso à primeira ou que prosseguissem sem dificuldades”. Mesmo se nos fixarmos na história da Guerra Fria, aquilo que se passava para além das relações entre Estados e dentro destes forma uma história que deve ser recuperada no seu pleno direito. A ideia de Wilkie de One World acabaria por ser premonitória. E reforçada, à medida que o potencial destrutivo das armas nucleares passou a ser conhecido. Foi em torno desta questão que um dos mais importantes movimentos transnacionais da época se desenvolveu. O sentimento de vulnerabilidade suscitado pela possibilidade de aniquilação total, numa guerra fratricida, agitou os espíritos. Ao One World responderam Oppenheimer, Bohr e Einstein e outros cientistas com One World or None. O alerta para o perigo à espreita suscitava pulsões internacionalistas. Como Oppenheimer afirmava “os poderes amplamente aumentados de destruição que as armas atómicas nos deram trouxeram consigo uma profunda mudança no equilíbrio entre interesses nacionais e internacionais. O interesse comum de todos na prevenção da guerra atómica é tão grande que eclipsa qualquer interesse puramente nacional, seja de bem-estar ou segurança”. Consequentemente, a Federation of Atomic Scientists empenhou-se na batalha do desarmamento e da utilização da energia nuclear exclusivamente para fins civis. Não seriam os únicos. Na sequência de um teste de uma bomba de hidrogénio perto do atol de Bikini, em 1954, pelos EUA, um navio pesqueiro japonês que não fora alertado aproximou-se da zona, expondo a tripulação aos efeitos da radiação. Um poderoso movimento de base, não comunista, estendeu-se por todo o Japão, o primeiro após a guerra, pedindo o repúdio de todas as armas nucleares. Em Agosto de 1955, simbolicamente em Hiroxima, realizariam uma conferência mundial contra as bombas atómica e de hidrogénio, contando com a solidariedade, através de uma declaração, de Albert Einstein, Bertrand Russel e do físico nuclear e primeiro laureado nobel japonês, Yukawa Hideki. Não seria este o único eixo em torno do qual movimentos transnacionais se mobilizariam no contexto da Guerra Fria. A ideia de contrariar o movimento comunista internacional com um movimento de sentido contrário, mas também multinacional, datava já de finais do século XIX e adensara-se após a revolução russa de 1917. Com o início do conflito bipolar, projectos deste género multiplicaram-se. Um deles foi o Comité Europeu para a Paz e Liberdade, com filiais em França, na Alemanha, em Itália ou na Turquia. Investidos em criar uma “NATO espiritual”, os diversos grupos locais coordenaram acções conjuntas na batalha política e ideológica global. Tinham, seguramente, origens diversas. Enquanto o Paix et Liberté francês fora patrocinado pelo afamado René Pleven e contava com antigos membros da resistência e colaboradores do círculo do ex-comunista, então anticomunista, Boris Souvarine, o seu congénere alemão tinha na sua liderança o ex-braço direito de Joseph Goebbels e nas suas fileiras vários antigos nazis. Envolveram-se em acções concertadas que visavam desacreditar o comunismo internacional. Publicaram cartazes icónicos como o da “Pomba que faz boom”, atacando os movimentos pela paz mais ou menos ligados à União Soviética. Mas as diferenças faziam-se sentir. Num cartaz francês em que se convidava os observadores a visitar a União Soviética, “país da liberdade”, sugeria-se que aproveitassem os “campos de férias. . . soviéticos”. A ideia foi repetida na Alemanha, mas sem a imagética mais explícita francesa, que remetia para os campos de concentração nazi. Na Ásia, face à vitória da revolução chinesa, aos conflitos na Coreia e Indochina, à “insurgência” na Malásia, foi criada a Liga Anticomunista dos Povos da Ásia (1955), patrocinada por Chiang Kai-Shek e Sygman Ree. Seria esta a principal impulsionadora da criação da Liga Anticomunista Mundial (1966). Mais conhecida seria a Confederación Anticomunista Latinoamericana (1972). Ligada aos esquadrões da morte que começavam então a ganhar destaque no continente e a vários serviços militares e de intelligence, a confederação acabaria por se envolver em várias acções bem mais enérgicas. A operação levada a cabo por agentes da missão Condor que levaria ao assassinato de Orlando Letelier, antigo ministro de Salvador Allende, em 1976, nos EUA, contou com o esforço intermediário da confederação. Investida em derrotar os movimentos da Teologia da Libertação e inclusive o Concílio Vaticano II, e o Papa Paulo VI, por transigir com forças heréticas, a confederação, pelo menos através da sua delegação na Bolívia, deu instruções para colaborar com as instituições militares na denúncia de actividades suspeitas, especialmente de padres estrangeiros, num contexto marcado por vários homicídios desta natureza na América Latina e Central. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Servem estes exemplos para sublinhar um aspecto que continua a ser desvalorizado nas narrativas histórica sobre o século XX: se este é o século da afirmação do Estado-nação enquanto instância modelar de organização sócio-política, corresponde também à afirmação de múltiplas modalidades de internacionalismo. São as ideologias gémeas do século, e especialmente do liberalismo, como afirma Glenda Sluga em Internationalism in the Age of Nationalism. A história da coexistência, e por vezes competição, entre as duas mundivisões não é excludente, muito menos simples. Como procuramos mostrar neste texto, o internacionalismo assumiu múltiplas faces, nem sempre quis questionar o primado do Estado-nação e não poucas vezes representou a forma mais palatável de promover interesses egoístas. Também foi uma causa pela qual muitos dedicaram o melhor dos seus esforços, pela qual muitos sonharam para lá dos limites do imaginável. Como historiadores, a nossa função é não a ignorar. A sociedade em geral melhor faz se não se deixar aprisionar em antigos tropos sobre perversas e gigantescas conspirações que se traduzem, no quotidiano, num expediente para o destrato de cidadãos diferentes, frequentemente os mais frágeis e desprotegidos.
REFERÊNCIAS:
Quando o mundo veio a Portugal ver como se faz uma revolução
40 anos depois do 25 de Abril de 74, a revolução portuguesa tem o seu comeback. Livros, filmes, conferências. . . mas este regresso parece ter menos a ver com os rituais de uma efeméride do que sinalizar uma crise de identidade. Como se voltássemos a olhar para ela com a intensidade de uma primeira vez. Não foi preciso ter estado lá. Em Abril de 1974, dois jornalistas da rádio suíça francesa são enviados a Portugal para fazer uma reportagem “positiva” sobre a ajuda helvética a um país “subdesenvolvido, mas simpático”. Os jornalistas entediam-se na província portuguesa quando, subitamente, a revolução dos cravos f... (etc.)

Quando o mundo veio a Portugal ver como se faz uma revolução
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-02-06 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20160206113854/http://ipsilon.publico.pt/cinema/texto.aspx?id=333490
TEXTO: 40 anos depois do 25 de Abril de 74, a revolução portuguesa tem o seu comeback. Livros, filmes, conferências. . . mas este regresso parece ter menos a ver com os rituais de uma efeméride do que sinalizar uma crise de identidade. Como se voltássemos a olhar para ela com a intensidade de uma primeira vez. Não foi preciso ter estado lá. Em Abril de 1974, dois jornalistas da rádio suíça francesa são enviados a Portugal para fazer uma reportagem “positiva” sobre a ajuda helvética a um país “subdesenvolvido, mas simpático”. Os jornalistas entediam-se na província portuguesa quando, subitamente, a revolução dos cravos faz acelerar a sua carrinha Volkswagen em direcção a Lisboa. E, numa noite, produzem a reportagem das suas vidas. Um filme conta como foi, com todos os adereços de época, de calças à boca de sino para cima: As Ondas de Abril, do suíço Lionel Baier, é exibido esta sexta-feira às 19h no Festival IndieLisboa, e estreia em sala a 8 de Maio. É uma farsa – o realizador achou que ninguém levaria a mal se fizesse uma comédia sobre “uma revolução onde tudo correu bem” – mas só porque a história não é verdadeira, não quer dizer que não tenha acontecido. Numa cena, o repórter de guerra Joseph Cauvin é aclamado pelo povo enquanto discursa, apesar de ninguém entender o que diz. Esse momento, conta Lionel Baier ao Ípsilon, emocionou um português que, ao ver o filme na Suíça, se lembrou de ter tido uma experiência semelhante durante a revolução. “À época muitos sindicalistas de toda a Europa vieram a Portugal e ele lembrava-se de uma discussão uma noite num café de Lisboa onde um sindicalista tomou da palavra e falou em francês durante duas horas, sem que ninguém percebesse nada. Esse senhor disse-me: ‘Mas eu estava tão feliz com o direito de reunir e de falar livremente e, mais do que isso, com o facto de os franceses falarem de nós. Pela primeira vez em muito tempo, os franceses, os alemães, e outros falavam de nós. Tivemos a impressão de que nos estávamos a juntar ao resto do mundo, finalmente. ”Não houve, de facto, muitos momentos assim, em que o resto do mundo convergiu para Portugal. Literalmente: “De repente, toda a gente olhou para Portugal como se isto fosse uma coisa do outro mundo”, diz José Rebelo, que foi correspondente do Le Monde em Lisboa a partir de Janeiro de 1975. “Eu andei a passear por Lisboa com o Sartre e a Simone de Beauvoir. Vinha cá toda a gente. Parece que tudo quanto era importante se passava ali entre o Rossio e os Restauradores. ”Depois da revoluçãoAgora que se completam 40 anos sobre a revolução portuguesa, esse olhar exterior, estrangeiro, está de novo a ser evocado, o que parece ter menos a ver com os deveres de uma efeméride (afinal, este não é o primeiro aniversário redondo de Abril) do que sinalizar uma qualquer crise de identidade. Repórteres e enviados especiais que cobriram a revolução para a imprensa estrangeira foram convidados a participar de muitas das conferências e festividades que estão a ter lugar; um novo livro de Joaquim Vieira e Reto Monico, Nas Bocas do Mundo: O 25 de Abril e o PREC na Imprensa Internacional (ed. Tinta da China), reconstitui a forma como os jornais estrangeiros acompanharam o processo revolucionário português através dos seus textos de opinião e comentário; Lídia Jorge acaba de publicar um novo romance, Os Memoráveis, que tem no centro a realização de uma reportagem televisiva sobre a revolução portuguesa para a estação americana CBS (sobre essa questão de o olhar estrangeiro ser o catalisador deste regresso, a escritora explicou recentemente no Ípsilon que “no exterior avalia-se a revolução com mais frequência como uma coisa positiva”, seja porque os portugueses são “profundamente autopunitivos”, seja porque no exterior “talvez não se saiba do que veio a seguir”. )O que levou Lionel Baier, um suíço de 38 anos, a fazer um filme sobre a revolução portuguesa, quando a Suíça não viveu nenhuma guerra nem grande crise no século XX?“Quando era pequeno e ia à escola, no início dos anos 80, havia muitas crianças que eram filhas de imigrantes portugueses, eram quase 30% da minha turma. Quando havia festas de aniversário eu ia a casa delas e lembro-me de ver fotografias e de ouvir falar da revolução dos cravos. Quando somos pequenos e suíços temos a impressão que a democracia é uma coisa normal. As primeiras pessoas que me fizeram ter consciência do preço da democracia foram os portugueses. Dei-me conta de que tinham sido privados dela durante muito tempo e que a democracia era qualquer coisa frágil, que se podia perder”, explica. “Os portugueses têm qualquer coisa em comum com os suíços. São pessoas muito trabalhadoras, austeras, não muito alegres. Ao mesmo tempo, tiveram a força de fazer uma revolução, apesar de isso não fazer parte da sua natureza. Os franceses fazem revoluções o tempo todo, é uma coisa normal. Quando os portugueses se revoltam, é preciso um esforço suplementar. Creio que deram uma verdadeira lição de democracia aos suíços. Creio que é frequentemente o caso na Suíça: as vagas de imigrantes, quer sejam espanhóis, italianos ou portugueses, trazem com elas um certo peso do mundo que os suíços não conhecem. ”Existe nas personagens do filme uma certa condescendência em relação ao Portugal pré-revolucionário. Cauvin, o veterano, chega a relativizar uma ditadura patriarcal e arcaica, dizendo que as pessoas não parecem ter razões de queixa. Os jornalistas de As Ondas de Abril apercebem-se muito rapidamente de que a reportagem que lhes foi encomendada em Portugal não tem interesse, mas parecem demasiado ingénuos ou ter pouco brio profissional: apesar de se encontrarem numa das últimas ditaduras da Europa ocidental, nunca lhes ocorre fazer uma reportagem sobre isso. Ao mesmo tempo, há nesse retrato alguma verdade: de forma geral, a imprensa estrangeira ignorou Portugal durante a ditadura. O país não existia antes da revolução. “Tenho a impressão que os jornalistas estrangeiros não tinham consciência de que era uma ditadura tão esmagadora quanto era, na verdade”, sugere Lionel Baier. Werner Herzog, um jornalista suíço (nenhuma relação com o cineasta alemão homónimo) que cobriu a revolução para jornais suíços e alemães, admite: “Quase ninguém escrevia sobre Portugal. Tínhamos dado como perdida a possibilidade de alcançar a democracia em Portugal. Esperava-se mais de Espanha. Portugal foi uma surpresa. Parecia que eram umas ditaduras que duravam, duravam, duravam. Espanha e Portugal estavam atrás dos Pirenéus. Essas montanhas pareciam ter dez mil metros de altura porque aí começava outro mundo, que não tinha nada a ver com o resto da Europa ocidental. 25 de Abril foi o dia em que Portugal foi colocado no mapa da Europa. ” Falta dizer que tudo isto é dito originalmente em português – outro resultado, dizemos nós, do 25 de Abril. “Se não tivesse havido o 25 de Abril, eu não teria vindo a Portugal”, diz o catalão Ramón Font, 62 anos, que veio ver a revolução portuguesa quando no seu país a ditadura de Franco perdurava. “Na minha geração, quando se fala de Portugal, há sempre alguém que pergunta: ‘E tu, em que dia chegaste a Portugal?’ Há uma competição para ver quem chegou antes. Porque, mais tarde ou mais cedo, nos primeiros dois anos viemos todos. ”Para um imenso número de jornalistas internacionais, o testemunho e a cobertura da revolução portuguesa correspondeu a um trampolim profissional: uma escola de aprendizagem ou um prenúncio da carreira futura. Muitos deles prosseguiram o seu trabalho noutras zonas do globo, em particular África, ou perseguiram outras revoluções (no Irão, no mundo árabe). As suas biografias mencionam quase sempre a passagem pela revolução portuguesa, como um factor de orgulho. As suas histórias davam um filme. Há uma em particular que Dominique Pouchin, ex-repórter do Le Monde, contou vezes sem conta em cursos de jornalismo onde lhe pediam que partilhasse as suas experiências. Pouchin – que participa esta sexta-feira numa sessão no Museu do Oriente com Mário Soares e o ex-Presidente brasileiro Lula da Silva sobre “o 25 de Abril visto de fora” – costuma apresentá-la como “a história do scoop falhado”. Tinha terminado o seu estágio no Le Monde há pouco tempo quando, em Março de 1974, nas vésperas do levantamento militar falhado das Caldas da Rainha, o seu editor lhe perguntou se tinha medo de ir a Portugal. “Medo não, mas para fazer o quê?”, perguntou o jovem jornalista. A pasta sobre Portugal que existia nos arquivos do jornal era frugal. Havia sinais de descontentamento no interior do exército português – o alarme tinha soado duas ou três vezes em pouco tempo, explicaram-lhe. Não era forçoso que escrevesse alguma coisa, mas disseram-lhe para manter os olhos e os ouvidos abertos. Pouco depois, Pouchin deu consigo na parte de trás de uma mota, às voltas por Lisboa, sem saber onde estava. Tinha pedido ajuda a colegas portugueses, do jornal de oposição República. “Eu gostava de escrever sobre isto, mas se existe realmente um movimento de capitães preciso de falar com um deles. ” O encontro produziu-se na sala mais recôndita de um restaurante do Bairro Alto – que, afinal, não ficava longe da sede do República, a mota limitara-se a andar às voltas para despistar suspeitas –, onde Pouchin se viu sentado diante de um militar de óculos escuros que lhe falou durante mais de duas horas. “Esse senhor fala-me da sua admiração por Amílcar Cabral, da longa marcha chinesa. . . Fico completamente aturdido. ” O militar não correspondia às expectativas. “Tenho a impressão de estar perante um perito em acções militares, mas esquerdista”, ri-se hoje Dominique Pouchin, ao contar o episódio. O jornalista escreve um artigo curto, no qual cita vagamente o militar em questão, identificado como “Comandante R”. Após o golpe das Caldas de 16 de Março, tido como um ensaio para o 25 de Abril, regressa a Paris. Mas a revolução chama-o, pouco depois, de volta a Lisboa. Em de Julho de 1974, está no seu quarto no Hotel Mundial a folhear os jornais da manhã quando repara na fotografia de primeira página do Diário de Notícias. Era um retrato do militar que tinha encontrado em Março e que, percebia agora, veio a ter um papel crucial no movimento das forças armadas. “Dou-me conta de que o homem com tinha falado em Março, era o Major Melo Antunes. Ou seja, tinha encontrado Melo Antunes e não fiz nada, ou quase nada. ”Entre Março de 1974 e Janeiro de 1976, Pouchin passou mais tempo em Lisboa do que em Paris. “Eu ia e vinha, dependendo da evolução dos acontecimentos durante o PREC – a palavra mais horrível que já ouvi. Como se pode baptizar uma revolução com um nome tão horrível? Sempre que havia um sobressalto, eu vinha. ” Ao todo, foram 17 viagens a Lisboa, 40 blocos de notas. José Rebelo, que hoje é investigador e professor na área de sociologia da comunicação no ISCTE, nota que os jornalistas estrangeiros estavam distribuídos pelos hotéis de Lisboa de acordo com a nacionalidade. “Os americanos estavam quase todos no Sheraton. Os ingleses no Ritz. ” Os franceses ocupavam o último andar do Hotel Mundial. Jornalistas de diferentes jornais, da esquerda e da direita. “Constituíamos uma verdadeira redacção. Jantávamos sempre juntos no restaurante panorâmico do hotel. Não havia concorrência. Havia tanta coisa que se passava todos os dias que cada um de nós era incapaz de cobrir tudo. ”Um laboratório políticoO jornalista americano Steve Broening, então correspondente da Associated Press em Lisboa, é citado no livro de Joaquim Vieira e Reto Monico, dizendo que à excepção do Vietname, “nenhum outro acontecimento estrangeiro motivara tanta e tão longa atenção” por parte da agência quanto a revolução portuguesa. O que é que atrai tanto a atenção da imprensa internacional?“Estamos a falar de um período em que o cenário de guerra fria ainda existia, e os golpes de estado na altura eram de direita ou de extrema-direita, e eram feitos por generais e coronéis, sempre com tendências autoritárias e totalitárias, para endireitar um regime que eles achavam que estava a ser desviado por defeito dos políticos que estavam à frente dele. E este é o contrário”, contextualiza Joaquim Vieira. “Ainda para mais ocorrendo na Europa. Se fosse num país do Terceiro Mundo se calhar era diferente. Mas na Europa o que estava a acontecer era inédito desse ponto de vista. Tinha havido um golpe de estado na Grécia mas tinha sido feito por coronéis. ”Além disso, a mudança de regime não se produziu apenas em Portugal, mas em todas as extensões territoriais no ultramar. O que se estava a passar era maior do que um rectângulo no extremo ocidental da Europa. “O fim da guerra colonial e as independências africanas iam causar uma alteração profunda do ponto de vista geoestratégico. Muita gente começou a ver, a prazo, que a União Soviética podia ter influência nesse processo”, diz Joaquim Vieira. Que continua: “Depois do Maio de 68 em França, que durou só algumas semanas e não teve um grande resultado político, havia um processo revolucionário em Portugal que se prolongava com coisas concretas: ocupações de fábricas, de terras e tudo isso. A opinião pública estrangeira começou a estar muito atenta à evolução dos acontecimentos em Portugal, para ver o que é que isto ia dar. Muitos estrangeiros, herdeiros do Maio de 68 e outros, vinham aqui para Portugal. Havia uma ligação muito directa entre Portugal e as correntes estrangeiras mais de esquerda e extrema-esquerda. ”Inicialmente, pelo menos, a revolução é vista com simpatia pela imprensa internacional e saudada como positiva. “O que impressionou muito naquela fase foi que não houvesse violência”, diz Ramon Font, que se fixou como correspondente em Lisboa a partir de 1976, logo a seguir à aprovação da Constituição. “Não foi partido vidro nenhum. Há uma fotografia extraordinária que está no átrio da Universidade de Lisboa, onde se vê uma chaimite, dessas que estavam no Chiado, cheia de povo, sobrelotada, e, do lado direito, um senhor que devia ser funcionário de alguma repartição pública, vestido de fato e gravata, agarrando a chaimite como se fosse o seu guia. Como se dissesse: ‘Siga-me, siga-me que vou indicar-lhe o sítio. ’ Tudo isso configurava um universo assombroso para quem, como nós, vinha de fora. E estávamos fascinados com os militares, que eram a antítese dos nossos militares [espanhóis]. De repente, aparecem à nossa frente tipos com os quais se podia tomar um copo num bar de Lisboa. ”Numa visita a de Caxias, em Julho de 1974, Ramon Font fica impressionado com a forma como os novos prisioneiros – ex-agentes da polícia política do Estado Novo – são tratados. “Almoçámos no refeitório da prisão e nas mesas ao lado das nossas estavam os pides. Que nos diziam: ‘Estamos aqui como passarinhos, mas não vamos estar aqui muito tempo. ’ Efectivamente, saíram pouco tempo depois. Isso causou-me um impacto brutal de uma sociedade diferente. Se os vencedores são capazes de tratar os vencidos com esta generosidade. . . Essa foi a imagem mais forte que levei de Lisboa. Lembro-me que no regresso a Espanha passamos pela Andaluzia e fomos ter com uns militares espanhóis, nossos conhecidos, a quem contámos esse episódio e eles não nos deram crédito. Pensavam que, à hora a que contávamos isto, depois do jantar, era consequência do que tínhamos bebido. Não era possível. ”Os estrangeiros não tinham necessariamente uma visão “turística” da revolução portuguesa. Portugal parecia-lhes menos um caso de exotismo do que um laboratório político que podia trazer respostas às questões que os inquietavam. Ser o imenso PortugalZuenir Ventura, que veio cobrir a revolução para a revista brasileira Visão, chegou a Lisboa logo no dia 26 de Abril de 1974. “Fui o primeiro enviado especial do Brasil a chegar. Encontrei a cidade numa saudável confusão que me lembrou Carnaval, celebração desportiva e comício político. As pessoas, sem qualquer objectivo definido, pulavam, cantavam – e, sobretudo, falavam. Era quase como se tivessem descoberto a própria voz. Fiquei contagiado pela euforia do povo, uma espécie de embriaguez de liberdade. Como se fosse um prenúncio da nossa. ” O Brasil vivia então sob uma ditadura militar, que acabara de completar uma década, em vésperas da revolução portuguesa. “Foi a cobertura mais alegre e surpreendente da minha vida. Porque eu olhava para aquilo pensando no Brasil. Menos em Portugal e mais no Brasil. ” Até então, Portugal tinha sido uma referência no Brasil, mas irónica. “De repente, você queria ‘ser o imenso Portugal’, como na canção Fado tropical, de Chico Buarque. ”Outro brasileiro que veio para Lisboa nesse período, foi o realizador Glauber Rocha. “Ele conseguiu uma câmara emprestada e filmou o 1º de Maio. Filmou como se quisesse se preparar para fazer o mesmo no Brasil. ”A neutralidade não era possível. “Há idades em que é muito difícil resistir a certos cantos de sereia”, diz Ramon Font. “Com 22 anos, era difícil não me deixar arrastar [pela revolução]. Ninguém me pedia neutralidade. E se alguém tivesse pedido, eu teria dito: ‘Desculpe, não consigo. ’ Ainda por cima, o país estava todo à esquerda. [Os de direita] Ou tinham fugido ou todos disfarçavam. ”Talvez espante ouvir dizer que a revolução, aqui, foi “exemplar” (a expressão é de Lionel Baier) quando 1975 em particular representa um período traumático para alguns sectores da sociedade portuguesa (as nacionalizações, as expropriações, a vaga de “retornados” das ex-colónias) e abriu dissidências político-partidárias que perduram até hoje que fazem com que a nossa forma de comemorar o 25 de Abril ainda não esteja normalizada (prova disso é a recente polémica sobre se os capitães de Abril deveriam ou não ter direito a discursar no Parlamento, nota Ramon Font). Talvez espante ouvir dizer que a revolução foi exemplar quando para boa parte da esquerda, ela representou o fim das ilusões revolucionárias dos soixante-huitards (“Usando linguagem teatral: o pano cai em 1975”, diz Dominique Pouchin, ex-trotskista cicatrizado). Talvez espante ouvir dizer que a revolução foi exemplar quando o modelo hoje seguido na Tunísia, um exemplo feliz da Primavera árabe, é a transição espanhola, onde não houve revolução e a mudança de regime foi um pacto negociado por mútuo acordo entre ex-franquistas e a esquerda (“A minha suspeita é que os tunisinos sabem muito mais sobre a transição espanhola e estão, de certa forma, a tentar seguir-lhe o exemplo. E não fazem ideia do que foi o processo português”, disse ao Ípsilon Philippe Schmitter, analista americano que presenciou a revolução portuguesa e escreveu sobre ela, na véspera de partir para a Tunísia. “Amanhã tiro as teimas!”)Talvez espante ouvir dizer que a revolução foi exemplar quando a crise parece confrontar-nos com as escolhas que foram feitas nesse período e com esse legado. Para as gerações que nasceram depois de 1974, talvez este seja o primeiro aniversário em que a revolução é mais do que uma efeméride. “Há uns anos tive a impressão que muitas pessoas nas novas gerações se tinham esquecido do que se passara. Isso surpreendeu-me. Os jovens não sabiam grande coisa porque para eles era algo que pertencia à história”, diz Lionel Baier. Mas em 2012, quando filmou As Ondas de Abril em Portugal, o realizador teve a sensação de que as pessoas começavam a ganhar uma nova consciência. “Grande parte da equipa do filme era portuguesa e eu fazia imensas perguntas. E pareceu-me que era como se falassem pela primeira vez em muito tempo da revolução. As pessoas parecem ter vontade de se lembrar desse espírito. ” Por causa da crise? “Por causa da crise, sim. ”Não por acaso, o filme de Baier termina com imagens actuais, dos graffiti anti-austeridade e anti-troika. “Parecia-me impossível fazer um filme com um tom meramente histórico. Todos os dias havia manifestações na rua, havia dias em que interrompíamos as filmagens para que os técnicos ou os figurantes pudessem ir manifestar-se. O filme devia dizer qualquer coisa sobre o presente. ”
REFERÊNCIAS:
Iluminados pelo fogo
Pedro Costa fez do Museu de Serralves um lugar de reencontro com o cinema, com o mundo dos deserdados e esquecidos e com aqueles que cuja companhia preserva e cultiva: amigos, vivos e mortos. Pedro Costa - Companhia faz o espectador entrar em labirintos, corredores, memoriais, iluminado por vozes e gestos que são os de uma humanidade comum. (...)

Iluminados pelo fogo
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: Pedro Costa fez do Museu de Serralves um lugar de reencontro com o cinema, com o mundo dos deserdados e esquecidos e com aqueles que cuja companhia preserva e cultiva: amigos, vivos e mortos. Pedro Costa - Companhia faz o espectador entrar em labirintos, corredores, memoriais, iluminado por vozes e gestos que são os de uma humanidade comum.
TEXTO: Há onze anos, Pedro Costa concluía uma conversa com uma exortação dirigida ao museu (podemos lê-la no catálogo da exposição Pedro Costa, Rui Chafes: Fora! = Out!). Que este devia ser ousadia e felicidade, e citava os filmes Cézanne e Uma Visita ao Louvre (2004), de Jean-Marie Straub e Danièle Huille e Bando à Parte (1964), de Jean-Luc Godard. Diante do corredor que começa Pedro Costa Companhia, no Museu de Serralves, essa ousadia é solicitada a quem chega, pois, para entrar, tem de correr o risco do escuro, sondar o espaço. Descemos o corredor, o corpo parece imobilizar-se, enquanto, ao fundo, a cena final de Trás-os-Montes, de António Reis e Margarida Cordeiro avança veloz, cresce, agiganta-se ao rimo do silvo e do fumo do comboio. A sensação é de vertigem e reminiscente desse encontro, absolutamente solitário, na sala escura que as imagens iluminam: com o espanto do cinema. Organização: Museu de Arte Contemporânea de Serralves Comissário(s): Nuno Crespo e João RibasEsta é primeira grande experiência de Pedro Costa Companhia, exposição que, dedicada ao cineasta português, pode ser vista como uma colectiva, uma exposição de um grupo, um grupo de amigos. Artistas, pintores, poetas, cineastas, actores e actrizes, uns vivos, outros mortos, representados nas obras. Todos, aqueles que ele escolheu para lhe fazer companhia: Pablo Picasso, Robert Bresson, António Reis, Walker Evans, João Queiroz, John Ford, Jeff Wall, Jacques Tourneur, Maria Capelo, Andy Rector, Jean-Luc Godard, Max Beckmann, Paulo Nozolino, Jacob Riis, Rui Chafes, André Cepeda, Charlie Chaplin, Robert Desnos, Ventura. Quando se fala de amizade, está-se a falar, inevitavelmente, do mundo, do mundo a que o museu deve a sua existência, e que existe fora das paredes brancas. E para Costa esse mundo é o dos deserdados, dos esquecidos, dos homens e das mulheres comuns, daqueles que o progresso calca, imparável, na sua marcha. Antes desse encontro com o comboio na noite de Trás-os-Montes, há um retrato de um homem negro, pintado por Théodore Géricault (1791- 1824). É o mesmo que pudemos ver em Cavalo Dinheiro (2014). A exposição começa assim, numa pintura. Desse retrato, aparecerão outros na parede do corredor, de personagens e actores do mesmo filme, em impressões fotográficas. Ventura, Vitalina, Tito e, talvez, o de Tom Joad, interpretado por Henry Fonda, em As Vinhas da Ira, de John Ford. Entre o retrato pintado por Géricault e estas projecções, quais pinturas rupestres iluminadas pelo fogo, o espectador descobre outra entrada para Pedro Costa Companhia. Num labirinto, feito de corredores, passagens, vultos e imagens, luzes, sombras. Um cenário reminiscente do cinema expressionista alemão do século XX, com os seus ângulos e volumes. Nas paredes deste cenário labiríntico, só há uma acção. A do encontro do espectador primeiro com o cinema que Pedro Costa ama, e num segundo momento com a carta de Robert Desnos a Youki (que o cineasta transfigurará em Juventude em Marcha), o desenho de Pablo Picasso e um trabalho de Andy Rector. Detemo-nos no encontro com o cinema. Em televisores encastrados nas paredes, vêem-se excertos de filmes, que condensam momentos e acções cujos significados não perdem, ainda hoje (e talvez sobretudo hoje), o seu poder de revelação. Entre muitos, três: o encontro do vagabundo de Luzes da Cidade, de Charlie Chaplin, com a mulher que finalmente o pode ver (“Yes, I can see now”, diz ela), o discurso de Josiah Doziah Gray (Joel McCrea), em Stars in My Crown, de Jacques Tourneur que, dirigido ao coração dos outros, impede um assassinato racista ou as palavras lancinantes do pedófilo e assassino Hans Beckert (Peter Lorre), que suplica em M (1931), de Friz Lang, pelo reconhecimento da sua própria humanidade. Na mesma conversa, mencionada no início deste texto, Pedo Costa disse temer a presença dos televisores nos museus. Pois, ei-los, a fazer aparecer esse cinema, como uma forma arcaica e quase perdida de ver e narrar o mundo. Em excertos, fragmentos, memórias de vozes e palavras, gestos e acções que nos assombram. São eles, miniaturizados, reduzidos (como se protegidos pelas paredes do museu, como se não restasse outra coisa que esse exílio, o do arquivo) que rodeia, que protegem a sala de Alto Cutelo, uma instalação que Costa havia mostrado em 2012, no Carpe Diem e na galeria do Palácio Galveias, no âmbito do DocLisboa 2012. No ecrã, grande, alto, Ventura canta as dores da partida e da emigração. Evoca a história do homem que parte, da mulher que fica, dos filhos, da terra que deixou para trás. Noutro ecrã, os vulcões soltam lava e fumo (são imagens de A Ilha do Fogo, de Orlando Ribeiro). Portugal, Cabo Verde, Lisboa, o trabalho, a exploração dos homens pelos homens, a contingência da política e da história iluminam, à volta da qual circulam as histórias do cinema. Entretanto, a escuridão do corredor atenuou-se. O olhar habituou-se à luz e à sombra, e assistimos à primeira “conversa” entre artistas: um conjunto de peças de Rui Chafes e a instalação Filhas do Fogo, de Pedro Costa. Suspensas do tecto, as esculturas, finas e pesadas, desenham um bailado, que parece apontar ao céu, com os rostos, projectados nos ecrãs, das mulheres que ficaram, para trás, com os seus mistérios na Ilha do Fogo. As histórias, as personagens libertam-se da narrativa, no espaço. Este já é outro cinema, mas ainda é a exposição, o trabalho de Pedro Costa. A questão do trabalho, mais exactamente de como representar, filmar, fotografar os outros, respeitando-os, na sua irredutível dignidade, surge na aparição do livro Let Us Now Praise Famous Men (1941) de James Agee e Walker Evans, que documenta e retrata a vida quotidiana de trabalhadores rurais e pobres do Sul dos EUA, durante a Grande Depressão. Numa pequena sala, vemos os retratos de Allie Mae Burroughs e Floyd Burroughs, as casas, os objectos, os alpendres, mas é nas questões que James Agee, crítico e escritor, levanta no prefácio, pressente-se outra afinidade com Pedro Costa que não passa por temas ou conteúdos, mas tem a ver com a atitude em relação ao método de trabalho, à representação do outro, ao destino das imagens, aos princípios que presidiram à sua realização. Agee tem pudor em apelidar de “Arte” o livro e as suas imagens. Não serão estes dilemas familiares ao cineasta? Não é apenas uma sensibilidade comum às coisas que o torna amigo de Evans e Agee, mas também dúvidas, hesitações, questões que enfrentou na companhia dos outros. Uma família que se foi construindo e consumindo ao longo de três décadas e que podemos ver nas séries de fotografias, alusivas às rodagens dos filmes (de Sangue, em 1989 até Vitalina Varela, em 2018). Estão lá os retratados (Inês Medeiros, Canto e Castro, Pedro Hestnes, Vanda Duarte, Zita Duarte, Ventura) como aqueles que retrataram: Martin Schafer; Mariana Viegas, Richard Dumas, Marta Mateus, o próprio Pedro Costa. É desta galeria que descemos ao segundo piso, onde nos aguarda uma clareia banhada pela luz natural. Aqui não se mostram filmes, mas pinturas de paisagens de Thomas Gainsborough, João Queiroz e Maria Capelo, ou antes retratos de paisagens, algumas das quais deixam entrever vestígios da presença humana. É o momento mais desequilibrado da exposição, porque a luz queima o escuro da outra sala, impedindo o espectador de ver Puissance de La Parole, de Jean-Luc Godard. Como se a luz e escuridão, a pintura (na sua impassibilidade) e cinema (na sua ruidosa agitação) tivessem dificuldade em habitar, lado a lado, o mesmo museu. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Passado este desencontro, percorrem-se corredores e becos, passagens, descobrem-se acessos a salas, como a que reúne Paulo Nozolino e Pedro Costa, amigos de muitos anos: de um lado, fotografias, silenciosas, quase sem tempo e sem lugar, do outros, sons e imagens em movimento que reconhecemos do Bairro das Fontainhas. Fotografia e cinema, ambos testemunhos mundanos de sítios e pessoas. Entretanto, adensam-se rumores e ecos do que ainda está para vir e ver. A fragilidade e o sofrimento humanos ganham sentido na fotografia de Josef Koudelka, realizada em 1968 na Checoslováquia, e num desenho do artista expressionista alemão Max Beckmann, intitulado Descida da Cruz, mas são os gritos e a música de uma cena de Give Us This Day, de Edward Dmytryk que despertam a atenção, que assustam, que afligem. Ela torna visível o drama dos homens que construíram os arranha-céus de Nova Iorque, outro Ventura entre tantos Venturas na história da humanidade. Pedro Costa insiste em lembrar que o cinema também esteve ao serviço os homens comuns, quando os libertou, pela ficção, do olvido, quando dramatizou as suas vidas: “Vejam. Não se esqueçam”, segreda. Esta frase ganha uma força mais intensa diante da instalação das fotografias de mulheres, homens, crianças, famílias que Jacob Riis realizou em 1890 no início do século XX, nos bairros mais pobres de Nova Iorque. Numa sala escurecida, cada imagem ocupa uma coluna, pedindo para ser vista individualmente, a uma escala humana. É um memorial coletivo que a fotografia tornou possível e em que cada imagem, ressuscita, por instantes, no encontro que o espectador lhe proporciona, as figuras fotografadas. Memorial que temos de atravessar para ver Sweet Exorcist. E aí voltar a escutar o medo de Ventura, o medo de que será esquecido, de que ninguém o lembrará. E, então damo-nos conta, de que Pedro Costa, na companhia dos seus amigos, vivos e mortos, não só não o esqueceu, como o salvou, se não com felicidade, certamente com a ousadia de quem correu, acompanhado, pelas salas do museu.
REFERÊNCIAS:
Francisco Ribeiro Telles: “Disparei. Fazer a revolução sem dar tiros…”
Francisco Ribeiro Telles é a partir de Janeiro o novo secretário executivo da CPLP. Até lá, embaixador em Roma, acompanha o processo político em Itália. (...)

Francisco Ribeiro Telles: “Disparei. Fazer a revolução sem dar tiros…”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Francisco Ribeiro Telles é a partir de Janeiro o novo secretário executivo da CPLP. Até lá, embaixador em Roma, acompanha o processo político em Itália.
TEXTO: Diz, com ironia, que aprendeu a ser mediador nas rondas nocturnas nos night clubs da então Lourenço Marques, separando comandos de paraquedistas desavindos no desafogo após o mato. Em Timor sob ocupação da Indonésia, esteve numa missão da ONU para preparar uma frustrada visita de deputados portugueses ao território, e manteve encontros à margem do estabelecido. Depois de estar à frente das embaixadas em Cabo Verde, Angola e Brasil, regressou à Europa e não gosta do que vê. Por não saber desenhar não seguiu as pisadas paternas, a arquitectura paisagista. É um óptimo contador de histórias, com sentido de humor e comicidade das situações, quem vai estar no Palácio de Conde de Penafiel à frente da Comunidade de Países de Língua PortuguesaComo é ser filho do pai?Estamos nos jardins da Fundação Gulbenkian que o meu pai concebeu, lembro-me de os visitar durante a construção duas ou três vezes com 12 ou 13 anos. Ainda pensei ser arquitecto paisagista mas percebi que não podia. Para além do meu pai ser muito criativo, vanguardista, é um excelente desenhador, e eu não tinha jeito para o desenho. Seria o filho do arquitecto e ficaria a perder. Qual o papel diferenciador do arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, seu pai, na sua formação?Sempre o vi como um homem de princípios, de uma coerência absoluta na vida. Atravessou várias fases em termos políticos, mas o que mais me marcou foi a coerência do pensamento sem transigir nos valores fundamentais. Ele tinha uma perspectiva de Portugal a que, na altura, muito pouca gente dava atenção, e o tempo veio provar a sua enorme razão na conservação da natureza e ordenamento do território. Talvez se tivesse sido ouvido pouparíamos muitos problemas dos que temos. Viu muito antes o que seriam os problemas da sociedade contemporânea. Portanto, o seu pai foi mais decisivo na sua formação que o curso de História?Muito mais decisivo. Falo por mim e pelos meus irmãos, marcou-nos profundamente. Com ele aprendi muito. Com Salgueiro Maia, no 25 de Abril de 1974, também aprendeu. Como foi?Na Escola Prática de Cavalaria de Santarém, eram cinco ou seis da tarde de 24 de Abril, comentei a um amigo, o Vasco Câmara Pereira, que iríamos ter exercícios nocturnos, porque os carros de combate e jipes estavam a abastecer, mas estava longe de imaginar que naquela altura já o primeiro e o segundo comandantes estavam presos. Fomos acordados às duas da manhã e eu disse ao Vasco que lá íamos para exercícios, quando o capitão Maia nos leu rapidamente o comunicado do Movimento das Forças Armadas e, depois, faz-nos uma prelecção sobre a questão colonial, dizendo que o Movimento a queria resolver, que se estava a tornar insustentável para todos. Para um alferes miliciano isso foi ouro sobre azul. Exactamente (risos). Depois, pediu 150 voluntários para marchar sobre Lisboa, nós tínhamos três meses de tropa, não sabíamos disparar, havia o exemplo do golpe falhado das Caldas da Rainha [16 de Março de 1974], mas viemos. Saímos de Santarém às 3 da manhã a uma velocidade impressionante, uma coluna de veículos a 30 quilómetros por hora, e chegámos ao Terreiro do Paço. Houve uma série de peripécias já conhecidas, o capitão Maia alertara-nos de que o grande problema seriam os M 47 [blindados] de Cavalaria 7, se disparassem, a revolução estava perdida. Acabaram por se render. Depois, fomos em apoteose até ao Largo do Carmo, onde, como muitos outros, disparei, fazer a revolução sem dar tiros… disparei para as paredes do quartel do Carmo. Eu estava instalado numa seguradora frente ao quartel, com telefone à secretária, ia relatando as peripécias revolucionárias ao meu pai, de quando o Maia iria dar ordem de fogo ou não. Saímos do Carmo já com a prisão do Marcello Caetano, subimos a Avenida da Liberdade em delírio, com toda a agente à janela e acabámos no Colégio Militar. Essa noite ainda fizemos escolta à Junta de Salvação Nacional e ao general Spínola na RTP. Depois partimos para Santarém, lembro-me que demorámos seis ou sete horas, quando chegámos ao Cartaxo às 3 da manhã estava a população na rua para nos saudar. Era da Polícia Militar, tinha uma boa classificação de curso, éramos 40 e fiquei entre os primeiros oito, e em princípio não seria mobilizado. Mas há os acontecimentos em Lourenço Marques, sectores da população que queriam uma independência à Rodésia e alguns militares que se associaram invadiram o Rádio Clube. Eu que estava calmamente em Lisboa, em Lanceiros 2, na Ajuda, fui mobilizado à pressa para Moçambique onde cheguei em Novembro e fiquei até 24 horas antes da independência [25 de Junho de 1975]. Tinha um dia de serviço e três de folga, de maneira que só ia duas vezes por semana ao quartel e, quando ia, fazia rondas na rua Major Araújo, a dos night clubs onde os militares vindos do mato se iam desafogar. Um dos grandes problemas que tinha era separar os paraquedistas dos comandos que inevitavelmente se envolviam à pancada. Daí ter ganho dotes de negociador (risos). No total, tive uma tropa de 15 ou 16 meses muito intensos. O que ficou dessa experiência?Uma enorme admiração pelo capitão Salgueiro Maia. Penso que quando o capitão Maia pede voluntários para Lisboa e ter sido ele a pedir levou muita gente a avançar. Quantos vieram?Entre 150 a 200, quase todos deram um passo em frente. Lembro-me que, duas semanas antes, tivemos uma semana de campo e acabámos à volta da fogueira a cantar Zeca Afonso. Eu comentava que era uma tropa esquisita, que algo se estava a passar. O que me marcou foram os meses que passei com o capitão Salgueiro Maia. A propósito da capacidade de negociador nas rondas de Lourenço Marques. A diplomacia é instrumento do multilateralismo, como é que um diplomata avalia a subalternização da ONU?Muita coisa está a mudar na diplomacia. Comecei por um posto multilateral, as Nações Unidas em 1987, aprendi as vantagens da diplomacia multilateral, da concertação entre Estados. Vejo que muito dos grandes avanços das negociações internacionais, sempre em fóruns multilaterais, se estão a perder. Não sei o que vai acontecer, mas existe um desencanto em relação ao multilateralismo. Há dias deparava com uma carta do eng. Guterres aos países da ONU sobre as enormes dificuldades económicas da organização. Talvez seja pela influência dos tempos que se vivem nos Estados Unidos, mas o multilateralismo está a perder a relevância, quando até hoje todos os Presidentes norte-americanos acreditaram no multilateralismo. Escreveu sobre a necessidade de reforma do Conselho de Segurança da ONU, uma reforma que está no tinteiro. Ficou um sabor amargo?Deixou um sabor amargo, porque temos uma composição do Conselho de Segurança obsoleta que resulta dos vencedores da Segunda Guerra Mundial. O mundo mudou tanto que a legitimidade dos membros permanentes do Conselho de Segurança pode ser posta em causa porque as estruturas de poder mudaram a nível global. De forma que havia de adaptar o Conselho de Segurança, escrevi sobre uma maior presença de membros não permanentes e de não mexer nos cinco permanentes. É uma questão difícil porque os permanentes não abdicam. Lembro-me que uma das coisas que me deixou perplexo foi quando pedíamos aos franceses e ingleses para nos relatarem o que se passava no circuito fechado do Conselho de Segurança, e eles privilegiavam a condição de membros permanentes em detrimento da de membros da União Europeia, o que é sintomático. A diplomacia implica códigos definidos, atitudes previsíveis e guiões compreensíveis. O apogeu do populismo baralha estes dados?Pode baralhar. O que refere como previsibilidade sempre aconteceu, mas esta é uma questão muito mais vasta. Tem a ver, e sinto isso em Itália, com o descontentamento dos italianos e com a perda do poder de compra. Tem a ver com o que significou para os italianos a entrada no euro, com o desemprego, a emigração que não é muito significativa mas que determinados partidos e movimentos aproveitam. A Europa foi um projecto de sucesso no século XX, agora há que adaptar-se ao século XXI. Após 16 anos no hemisfério sul, em Cabo Verde, Angola e Brasil, ao chegar à Europa não gosto do que vejo. A diplomacia está em vias de extinção?De maneira nenhuma. Já muita gente apostou na morte da diplomacia mas, juntamente com a outra, é das mais velhas profissões do mundo. Foi consultor de Mário Soares, trabalhou com o ministro dos Negócios Estrangeiros Jaime Gama e é embaixador. Como chefe de representação teve de se conter mais?Trabalhei três vezes com Mário Soares enquanto primeiro-ministro e duas como Presidente da República, no início e no final da sua Presidência. Com Jaime Gama fui adjunto e chefe de gabinete. Tive a sorte de trabalhar com dois homens excepcionais, muito diferentes mas com enorme sentido de Estado, enorme dimensão humana, com quem aprendi bastante. Tinha um trabalho de gabinete, na chefia de uma missão diplomática é diferente, está-se mais exposto, é-se mais escrutinado, sobretudo nos países onde estive. Pode-se ir para um país da Europa frio e cinzento em que ninguém dá por ti, em que se é uma segunda linha, mas estar em Cabo Verde, Angola ou no Brasil como embaixador de Portugal, tem um escrutínio e visibilidade diferentes. Há que medir muito bem as palavras, o que se faz, com quem nos damos, com quem almoçamos, com quem jantamos. É mais trabalho diplomático?Sim. Lembro-me que após quatro anos em Cabo Verde havia a possibilidade de ir para a Europa, mas não me interessava. Possivelmente ia ser uma segunda linha, estava mal habituado porque em Cabo Verde era uma primeiríssima linha, mas havia também a possibilidade de ir para Buenos Aires ou Luanda. O ministro da altura, professor Freitas do Amaral, tinha-me dito da sua vontade de me ver em Luanda mas se eu quisesse ir para Buenos Aires não havia problema. Lembro-me de ter falado com a minha mulher, Maria João, e de ela me ter dito que se eu queria um pouco de festa, salero e algum trabalho ia para Buenos Aires, mas se queria um posto difícil, exigente o destino era Luanda. A diplomacia é um pouco isto. É de uma fornada de diplomatas para quem a questão de Timor-Leste não estava arrumada. Onde estava e como celebrou a independência?Timor marcou-me muito, foi o meu dossiê quando cheguei em 1987 às Nações Unidas, onde tínhamos vindo a perder apoios, já ninguém queria discutir Timor, era um assunto arrumado. E, quando discutiam, era sobretudo no plano dos Direitos Humanos, nunca mencionando a autodeterminação, embora todas as organizações das Nações Unidas falassem da autodeterminação. Aliás, a resolução 37/30, que pede à ONU negociações com todas as partes, foi aprovada por apenas quatro votos. Exactamente, e na altura o embaixador Futscher Pereira percebeu que mais um ano e perderíamos. Quando cheguei à ONU, tirando os movimentos de libertação que por lá apareciam, o Ramos Horta, o Mari Alkatiri, o José Luís Guterres, pouca gente falava de Timor. Tínhamos alguns apoios, eram sobretudo países africanos de língua oficial portuguesa, no seio da União Europeia muito poucos, talvez os gregos e os espanhóis tivessem alguma apetência para nos apoiar, mas diplomatas europeus chegaram-me a dizer “Francisco, esquece isso, não vale a pena, do que se trata é de sermos vigilantes em relação aos Direitos Humanos”. E nós estávamos, de certa forma, nessa linha. Lembro-me que quando fui em 1991 preparar uma visita de deputados portugueses a Timor, tínhamos chegado a acordo com os indonésios de que a missão era sob a égide da ONU, que envolveria dois diplomatas portugueses, um da missão de Nova Iorque, eu, outro, o assessor diplomático do presidente da Assembleia da República. A Indonésia teria também dois diplomatas e os restantes seriam chefiados por um representante do secretário-geral. Passei cinco dias em Timor-Leste, dois em Díli e três praticamente ao relento nas montanhas. A visita marcou-me imenso. O que nos contavam ser a situação em Timor, pois só nos podíamos basear nos relatórios e informações que nos davam os nossos amigos, não correspondia de maneira nenhuma à realidade, a situação era muito mais tensa. E os timorenses não estavam dispostos a ficarem indefinidamente sob o jugo indonésio. Estava no quarto do hotel, recebia chamadas às duas, três e quatro da manhã que diziam “independência ou morte, viva Timor-Leste”. Quando regressei, chamei a atenção de uma situação diferente da que nos transmitiam. Também escrevi que a visita dos deputados não ia ser um passeio, porque tinha a informação de que se estava a preparar uma grande manifestação para a sua chegada, que havia bandeiras da Fretilin enterradas nos quintais, o que os indonésios desconheciam. Foi em conversas com o bispo Ximenes Belo e em encontros clandestinos com resistentes, à margem da missão que me apercebi do que se preparava. Quando a delegação portuguesa chegasse a Timor, haveria manifestações de rua e a visita poderia não durar cinco dias, poderia acabar ali. A fase final das negociações não surtiu efeito e não houve visita. O pretexto foi que queríamos que uma jornalista muito conhecida, a Jill Jolliffe, fizesse parte da delegação, os indonésios opuseram-se e cancelámos a visita. Há um desencanto dos timorenses e quando chega o relator especial da ONU para os Direitos Humanos, cuja visita tínhamos acordado com os indonésios em Genebra, o que era suposto acontecer para os deputados aconteceu para ele e dá-se o massacre de Santa Cruz. Quando cheguei a Nova Iorque vindo de Díli disse a dois jornalistas americanos com vistos para Timor para a visita dos deputados para não cancelarem a ida. “Vocês vão fazer a reportagem das vossas vidas, porque o que se passa em Timor é escamoteado e escondido”. São eles que filmam o massacre e, no dia em que as imagens aparecem no prime-time da CNN, pensei: está ganho. Há um ponto de viragem, aparecer no prime-time da CNN implica a Casa Branca tomar posição e ninguém acreditava que uma pequena população ocupada por um gigante como a Indonésia, com aliados poderosos na região, caso da Austrália, pudesse ser independente. Foi uma página brilhante da nossa diplomacia, uma página brilhantíssima dos timorenses que resistiram. Quando já estava na embaixada de Madrid como ministro conselheiro, recebi uma carta de Ramos Horta para assistir à cerimónia da independência mas, infelizmente, não pude ir. Esteve em vários destinos, qual foi o maior desafio como embaixador?À sua maneira, cada um foram postos fascinantes, falo de Cabo Verde, Angola e do Brasil onde se tem uma enorme autonomia de actuação, onde o que se diz conta, se é respeitado, se é uma voz de primeiríssima linha. Cabo Verde foi uma experiência muito interessante, num país pobre, um arquipélago no meio do Atlântico praticamente sem recursos, com uma gestão impressionante e pessoas muito preparadas. Angola foi um desafio enorme. Tinha acabado de haver a paz, o país fora destruído pela guerra, os angolanos tinham perdido duas gerações. Fui com a atitude de observar, escutar e tirar conclusões. Uma das coisas que notei ao longo dos cinco anos que lá estive é que qualquer português tem uma opinião formada e definitiva do que deve ser a política do Estado português em relação a Angola. Diplomatas de bancada, portanto?Diplomatas de bancada, o que não se passa em relação a outro país. Os próprios partidos políticos portugueses tomaram partido por movimentos angolanos, o que também não aconteceu em mais lado nenhum. De maneira que as relações com Angola são sempre muito emocionais, muito intensas e muito susceptíveis porque damos muita importância ao que dizemos um do outro. Há que gerir isso com alguma prudência e sabedoria. Lembro-me que muitos portugueses que vinham falar comigo já tinham lido todos os últimos estudos sobre Angola, as análises e estatísticas, já sabiam perfeitamente o que iam encontrar. O problema era quando chocavam com a realidade e ficavam baralhados. Foi um posto fascinante, duro e difícil, mas que me deu muito prazer pessoal e profissional. E o Brasil é o Brasil. Cada diplomata devia fazer um estágio no Brasil. Aprendi muito o que é ser português em Cabo Verde, Angola e no Brasil. No Brasil há aquela dimensão enorme de um país em que se fala português desde o Rio Grande do Sul ao Amazonas, há aspectos positivos e negativos. Na minha despedida falava com um general brasileiro que me dizia “embaixador, nós temos agora um estudo muito sofisticado sobre a segurança e as vulnerabilidades do Brasil em relação à ameaça externa e você sabe que os pontos mais sensíveis, mais vulneráveis, foram onde os portugueses há quatro séculos construíram os fortes?”. Temos com o Brasil uma relação muito forte, nunca me senti estrangeiro, há uma cumplicidade natural. Em Itália estou há ano e meio, é o regresso à Europa, apanhei a mudança de um governo de centro-esquerda para uma coisa que ninguém sabe muito bem o que é, mas que existe, que faz o seu caminho, que transmite as suas mensagens e que neste momento tem um apoio de 60% dos italianos. A Itália sempre funcionou como um laboratório político para a Europa e volta a funcionar. Destes destinos, qual foi a maior surpresa?Não posso dizer que tenha ficado surpreendido com os meus destinos, mas talvez o país que me tenha impressionado mais foi Angola. Apanhei o boom angolano, o regresso e a chegada das empresas portuguesas, havia uma espécie de eldorado, o que chamava de efeito manada do empresariado português – ia um e todos atrás, não se sabe muito bem para fazer o quê. Angola foi de certa forma uma revelação porque é um país próximo de nós, onde as atitudes e os costumes são muito próximos dos portugueses, da forma de falar, de vestir, de vibrar com as situações, é um país onde deixámos, para o bem e para o mal, uma grande influência. E a maior decepção?Não tive decepções, talvez tenha ficado nesta última fase decepcionado com o que se passa no Brasil. O Brasil sempre teve um jeito natural para resolver os seus conflitos, o tal jeitinho brasileiro. Hoje vejo uma sociedade dividida, crispada, tensa, famílias divididas e isso é muito mau. Na base está o problema de sempre, o sistema político que tem de ser refundado de alto abaixo. Oxalá o Brasil tenha condições para o fazer. É verdade que a diplomacia portuguesa passou do croquete à economia?Não, não é verdade. Sempre fiz, e todos os meus colegas também, diplomacia económica. Essa história da diplomacia do croquete é uma caricatura, uma das coisas que mais nos custa, aos meus colegas estrangeiros e nacionais, é ir a uma recepção. Fui a tantas, faço-o por dever, por respeito ao país que me convida. Em Brasília, onde somos 140 embaixadas, comentava que como todos os países tinham o seu dia nacional, nós, embaixadores, todos os dias nos víamos. Em Roma, vou às recepções que considero estritamente indispensáveis, e a representação de Portugal é assegurada pelo número dois ou o número três. Nunca fiz a diplomacia do croquete, fiz sempre uma diplomacia onde a componente política foi muito importante, foi muito importante em Angola e no Brasil. A componente económica também, está a dominar tudo, mas a componente política é essencial a qualquer trabalho diplomático. Temos a ideia que a diplomacia portuguesa é hoje mais eficiente. Tem a ver com o perfil dos novos diplomatas?Talvez, tem a ver com outra preparação. Se compararmos com quem ia para a carreira diplomática há 30 anos quem hoje vai é uma geração mais nova, muito mais bem preparada, mais focalizada nas questões importantes. Há muito mais mulheres, o elemento feminino foi um elemento transformador fantástico da carreira diplomática. Ganhou o prémio Francisco Melo Torres para melhor diplomata económico quando era embaixador no Brasil. Investiu a bolsa de 25 mil euros na compra de um carro eléctrico do CEIIA [Centro de Excelência para a Inovação da Indústria Automóvel] como veículo oficial da embaixada. Foi diplomacia económica no terreno?O carro é o primeiro veículo eléctrico da embaixada portuguesa no Brasil graças ao patrocínio do CEIIA. Na altura, o CEIIA estava-se a instalar no Brasil, tinha um projecto na Foz do Iguaçu que visitei, e começavam a ter projectos importantes na área da mobilidade. Quando ganhei o prémio, e querendo dar uma imagem de modernidade de Portugal, estabeleci uma parceria com o CEIIA para o carro eléctrico. Que lá está, é utilizado todos os dias, tem o escudo da embaixada de Portugal e uma referência ao CEIIA. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ganhei a primeira edição do prémio – não dou muita importância a isso – talvez pelo trabalho com as empresas portuguesas e porque tinha dossiês sensíveis, como o dos vinhos e do azeite. Mais de metade das nossas exportações para o Brasil é de azeite e os brasileiros queriam que ele fosse certificado no Brasil e não na origem, o que acabaria com as nossas exportações. Tudo se resolveu. Também queriam taxar ainda mais os vinhos portugueses, mas resolveu-se. É esta experiência dos diplomatas na economia que leva antigos embaixadores e ex-ministros dos Estrangeiros a mudarem para o mundo empresarial?É uma tendência que já existe noutros países. Falo com colegas meus em Roma, que estão a atingir o limite de idade, e têm a perspectiva de passarem para uma empresa privada. É muito comum no Reino Unido os embaixadores saírem e determinadas empresas aproveitarem o seu network e know-how para contratarem-nos como consultores. Em França suponho que seja a mesma coisa, em Espanha talvez não tanto. É uma tendência nalguns países europeus aproveitar as mais-valias que alguns diplomatas e ex-ministros têm no campo económico e a rede de contactos que estabeleceram ao longo da sua vida. Na transição devia haver algum período de nojo?Talvez fosse adequado haver um período de nojo, não sei se de seis meses ou um ano, após a cessão de funções enquanto diplomata e a assunção de funções numa empresa.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU
Raimund Hoghe, aliás Minnelli
An Evening with Judy e Quartet, as duas mais recentes peças do coreógrafo alemão que podem ser vistas esta sexta-feira e amanhã no Rivoli, vão da depressão de duas vidas afundadas em álcool e comprimidos ao esplendor de luzes e confetti do musical. Judy Garland primeiro, Liza Minnelli depois: até hoje, ele não consegue ouvi-las sem ficar de lágrimas nos olhos. (...)

Raimund Hoghe, aliás Minnelli
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: An Evening with Judy e Quartet, as duas mais recentes peças do coreógrafo alemão que podem ser vistas esta sexta-feira e amanhã no Rivoli, vão da depressão de duas vidas afundadas em álcool e comprimidos ao esplendor de luzes e confetti do musical. Judy Garland primeiro, Liza Minnelli depois: até hoje, ele não consegue ouvi-las sem ficar de lágrimas nos olhos.
TEXTO: Raimund Hoghe (Wuppertal, 1949) tem todas as más memórias que podemos fazer decorrer das simples coordenadas do seu nascimento na Alemanha do pós-guerra (tipo: o sítio errado à hora errada), mais aquelas, intransmissíveis, que durante décadas, provavelmente até hoje, fizeram virar cabeças na sua direcção quando passava na rua e, depois, a partir de 1994, quando passou a atirar o corpo para a luta em cima do palco, em resposta à frase de Pier Paolo Pasolini da qual fez o seu slogan. Deformada por um parto difícil e pela ausência de medicação adequada, a sua coluna não é uma coluna “normal” – e mais anormal será à medida que o tempo continuar a passar e o avanço do diagnóstico pré-natal permitir erradicar definitivamente a deficiência como a mais indesejável das anomalias (“Não sou contra o aborto, mas sou contra a selecção de pessoas, porque isso é fazer o que o Terceiro Reich fez. Escolher não é humano. Se a minha mãe tivesse ‘escolhido’, talvez eu não tivesse nascido”, disse-nos em 2007, quando veio à Fundação de Serralves contar a história da sua luta num ciclo paralelo à exposição Anos 80: Uma Topologia). Não estaríamos outra vez a ter esta conversa sobre o coreógrafo alemão se An Evening with Judy (2013), a primeira das duas peças que este fim-de-semana traz ao Teatro Municipal do Porto – Rivoli no prolongamento do Dia Mundial da Dança (hoje, 21h30, Grande Auditório), não tratasse justamente do glorioso momento, ocorrido há muitos e bons anos, ainda o leão da Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) rugia, em que Raimund Hoghe encontrou uma alma gémea do tamanho de Judy Garland (1, 51 metros, para sermos mais precisos). Estaremos a romantizar, mas apenas porque não há outra maneira de olhar para esta peça em que se trata sempre da turbulenta história de amor entre o público e a menina que aos 12 anos calçou uns sapatos vermelhos para seguir por uma estrada de tijolos amarelos e cumprimentar O Feiticeiro de Oz e que aos 47, um casamento com Vincente Minnelli (em certo sentido o seu Frankenstein) e várias tentativas de suicídio depois, apareceu morta na casa-de-banho do apartamento que alugara em Londres, afundada em cirrose, depressão e comprimidos para dormir. Por algum motivo, aliás, as primeiras palavras que se ouvem, numa voz off monumental, são: “Thank you for being here. And I love you. ”Antes disso, claro, An Evening with Judy trata sobretudo da história de amor entre Raimund Hoghe, que na sua autobiografia, quando teve de se definir (escritor, actor, performer, dramaturgo, coreógrafo?), escreveu “corcunda”, e a starchild tornada box office draw a quem Louis B. Mayer, o patrão da MGM, chamava “a minha corcundinha”. Continua até hoje, essa história, assegura Raimund, que encontramos num hotel do Porto horas depois de uma viagem de avião em que veio a ouvir duas gerações de raparigas malditas, a mãe Judy Garland e a filha Liza Minnelli, e ficou mais uma vez “de lágrimas nos olhos”. “Gosto muito da Judy desde a minha infância. Na peça mostro um disco dela que me acompanha religiosamente desde então. De resto, já em 1980 – Ein Stück von Pina Bausch, a minha primeira grande peça para a Pina Bausch [durante uma década, Hoghe foi dramaturgo da coreógrafa alemã no Tanztheater Wuppertal], o Over the rainbow aparecia duas vezes: numa primeira versão gravada quando a Judy Garland ainda era jovem, e numa outra gravada já no final da vida. Dei esses dois discos à Pina – e agora uso-os eu noutro contexto”, diz ao Ípsilon. A paixão que tem por Judy Garland, acrescenta, não é bem do mesmo género da que teve por outras cantoras americanas ou francesas: “Saber que o patrão lhe chamava ‘minha corcundinha’ é tão forte para mim… Não, ela não tinha nem a beleza nem o glamour das outras estrelas de Hollywood, e é impossível eu não me identificar com isso. ”TragédiaTerceiro de uma série de retratos de cantores sem happy end – depois de Meinwärts (1990), o seu primeiro solo, a partir da vida do tenor romeno-alemão Joseph Schmidt, que foi perseguido pelos nazis e morreu em 1942 num campo de internamento para imigrantes ilegais na Suíça, um dia antes de lhe ter sido concedido um visto de trabalho; e de 36, Avenue Georges Mandel (2007), sobre a morte atrozmente solitária de Maria Callas em Paris, aos 53 anos –, An Evening with Judy parece um reencontro de Raimund Hoghe com a tragédia. Não é: “A tragédia das vidas deles não me interessa. Interessa-me a extraordinária qualidade musical dos três: deram tanto deles que ainda hoje ouvi-los cantar é invulgarmente comovente. Ouves um disco da Judy Garland e pensas: ‘Ok, ela não vai conseguir cantar outra música assim, pôs o coração todo aqui’. E depois a canção seguinte é igualmente arrebatadora. ”Certo, Raimund Hoghe não ignora que a tragédia é fundadora na vida dos três. Feio, baixíssimo, Joseph Schmidt passou ao lado da fulgurante carreira na ópera que a sua voz prometia porque media menos de 1, 52m (conta o site Music and the Holocaust: “Quando o maestro Leo Blech o ouviu cantar pela primeira vez, ficou profundamente comovido: ‘Pena não seres baixo’, disse-lhe. ‘Mas eu sou baixo’, respondeu Schmidt. ‘Não, tu não és baixo, tu és demasiado baixo’, retorquiu o maestro”). Paradigma mais-que-perfeito da diva do século XX, Maria Callas morreu sozinha – como uma sem-abrigo, argumentava Hoghe em 36, Avenue Georges Mandel, a peça que se sentiu forçado a fazer depois de uma visita ao hall da casa onde a soprano morreu de ataque cardíaco –, cumprindo o destino da frase que dissera uns anos antes (“É terrível ser a Maria Callas”). E depois há Judy Garland, nascida Frances Ethel Gumm em 1922, no Minnesota, filha de pais que faziam vida do vaudeville e que a medicavam para a pôr a trabalhar, tal como às irmãs – a Judy Garland que parecia grande de mais para protagonista de O Feiticeiro de Oz, que foi recauchutada para funcionar como a girl next door (já que a mais do que isso não podia aspirar) nos musicais de Minnelli, que foi uma estrela difícil, absentista e suicida e mesmo assim teve uma segunda vida na televisão, com o The Judy Garland Show, e nas salas de concertos, antes de se matar de vez. MúsicaAn Evening with Judy, o espectáculo que Hoghe faz caber inteiro no trolley com que entra e sai do palco de vestido preto, saltos altos, véu e óculos escuros (tal como 36, Avenue Georges Mandel cabia inteiro num cobertor da Cruz Vermelha), alimenta-se desses materiais biográficos (sobretudo de entrevistas, porque não está interessado “no que terceiros pensam acerca dela, apenas no que ela diz de si própria”), mas também de toda a fantasia inscrita nas canções dos discos guardados dentro dessa mala, uma fantasia que frequentemente a verdadeira vida de Judy contradiz. Mas se o espectáculo começa instalado nessa zona de apoteose e de aplauso que podia ter sido (mas não foi…) de conforto para Garland, como sublinha a intransponível distância entre as primeiras e as últimas versões de Over the rainbow, acaba colado ao luto por uma vida que não acabou como a actriz imaginava, na cozinha (porque as insónias tiveram isso de bom: fizeram-na aprender a cozinhar). Em certo sentido, porém, esta história tem uma continuação inesperada em Quartet (2014), que expande a reflexão de Hoghe acerca do preço do show-business, da ambivalência do estrelato e do que há por trás da lenda – uma continuação materializada no corpo do bailarino Takashi Ueno, que aparece na primeira peça “como convidado, como uma espécie de figuração da Liza Minnelli” em foco na segunda peça (amanhã, 21h30, Grande Auditório). Inicialmente pensada como uma dedicatória para (e com) os seus quatro bailarinos favoritos e mais fiéis – Ornella Balestra, Marion Ballester, Emmanuel Eggermont e Takashi Ueno – a partir dos quartetos de cordas de Schubert, Quartet evoluiu como todas as peças corais de Hoghe em função do que aconteceu nos ensaios (“Sou muito aberto. Muito do que acaba por entrar vem da música e do modo como os bailarinos reagem às minhas escolhas. É uma jornada: vamos juntos e eu descubro muitas coisas com eles, neles”, explica-nos). Mas também evoluiu em função do que aconteceu em An Evening with Judy, não só porque Hoghe não queria voltar a estar praticamente sozinho em palco como porque foi com Judy Garland que chegou a Liza Minnelli (“Claro que conhecia o Cabaret e o New York, New York, mas o resto não”). Há mais música em Quartet, nalguns casos sugerida pelos bailarinos: vozes divertidas como as das versões italianas de Girl, dos Beatles, ou These boots, de Nancy Sinatra, mas sobretudo vozes doridas como as da brasileira Dolores Duran, que um amigo português deu a conhecer a Hoghe e ele demorou anos a levar a sério (“Achei o nome tão estúpido, tão foleiro…”), da enorme Elaine Stritch, outra epifania recente, ou de Marianne Faithfull. “Há alguma coisa nessas vozes que fala da luta pela sobrevivência”, argumenta Hoghe, resumindo aquilo que escreveu sobre Judy Garland e que está em todas as entrelinhas de Quartet: “Interessam-me essas vozes de outro tempo. Têm qualidades que não existem nas vozes contemporâneas, que se gastam rapidamente, primeiro porque o marketing é impositivo e obriga os cantores a cantarem demasiado, e depois porque a televisão cria estrelas todas as semanas. ”As estrelas dele, Raimund, não se gastam nunca, embora morram relativamente cedo e ainda assim não deixem cadáveres bonitos (mas enfim, afinal isto é o entretenimento, e não há negócio como ele). Mais do que na maioria das outras peças do coreógrafo, há cor e ligeireza em Quartet, como num musical: “Acredito na felicidade (há flores em quase todos os meus espectáculos…), mas também conheço o outro lado da vida. Em 1999 criei um espectáculo a partir de cartas de amor, Lettere Amorose. Uma das cartas em que me baseei era de dois jovens africanos que sonhavam vir para a Europa agarrados às asas de um avião. Passaram estes anos todos e continua a ser uma tragédia dos nossos dias. ”No fundo, também é por isso que Raimund Hoghe quis ser estas três pessoas – Schmidt, Callas, Garland – pelo menos uma vez na vida. “Com o Joseph Schmidt não foi difícil porque ele era baixo e descrito como feio pelos jornais nazis. Com elas é mais difícil, por isso me limito a usar saltos altos, um lenço e uma saia. Não o faço por travestismo. Faço-o porque não quero nem consigo explicar a um bailarino o que sinto por estas pessoas. É a Judy que canta no Nasceu uma Estrela, embora não esteja na minha peça: ‘I’ll go my way by myself’. ”
REFERÊNCIAS:
Marine versus Jean-Marie: a Frente Nacional discute em público
Marine Le Pen critica pela primeira vez publicamente o pai, por comentários “maldosamente interpretados” como anti-semitas. (...)

Marine versus Jean-Marie: a Frente Nacional discute em público
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20150501223750/http://www.publico.pt/1639309
SUMÁRIO: Marine Le Pen critica pela primeira vez publicamente o pai, por comentários “maldosamente interpretados” como anti-semitas.
TEXTO: A estratégia de normalização da Frente Nacional de Marine Le Pen acabou de levar uma machadada precisamente numa altura em que ela precisava que o partido estivesse na sua forma mais respeitável, quando se esforça para negociar um grupo europeu de partidos anti-euro e anti-imigração, o que lhe daria mais verbas e relevância no Parlamento Europeu. Por isso, Marine, que herdou a liderança do partido de extrema-direita em 2011, viu-se obrigada a responder, publicamente, pelo comentário do seu pai dizendo que faria uma “fornada” com críticos, incluindo um judeu, e acusá-lo de ter cometido “um erro”. Jean-Marie, que é o presidente honorário da FN, parece não ter vontade de se calar e lembrou que tem o título de modo “vitalício”. Tudo começou quando Jean-Marie Le Pen comentou as críticas ao partido feitas por uma série de artistas e de outras personalidades – entre eles, a cantora Madonna, o humorista Guy Bedos, o antigo campeão de ténis Yannick Noah e o cantor (judeu) Patrick Bruel. Questionado sobre como responderia, Le Pen riu-se: “Da próxima vez, faremos uma fornada com eles. ”Marine Le Pen manteve a resposta pronta que o seu pai sempre tem perante acusações de racismo ou anti-semitismo: que ele não é racista nem anti-semita, e que estas interpretações são feitas pelos seus opositores com intenção de o denegrir. Embora dizendo-se “convencida de que o sentido dado às suas palavras vem de uma interpretação maldosa”, Marine ousou criticar o pai: dada a sua “longa experiência”, o facto de “não ter antecipado a interpretação que seria feita dessa formulação foi um erro político do qual a Frente Nacional vai sofrer as consequências”. Marine tentou, ainda, transformar a situação a seu favor: “Esta polémica pode ter um lado positivo, que é o de me permitir lembrar que a Frente Nacional condena do modo mais firme toda a forma de anti-semitismo. ”Mas o comentário é desastroso pelo alvo e pelo timing. Uma coisa é Le Pen falar do ébola como possível regulador do “problema da imigração em França” antes da votação para as europeias, e aí Marine ter-lhe-á chamado a atenção, em privado. Outra coisa é falar em “fornos” a propósito de um judeu precisamente na altura em que a filha precisa da aura de respeitabilidade que tem tentado dar ao partido para conseguir acordos com outros partidos europeus para formar um grupo no parlamento de Bruxelas. Pode até causar problemas com um partido que está na aliança inicial, o PVV holandês, de Geert Wilders, que tem uma postura anti-imigração, mas para quem o anti-semitismo é intragável (Wilders, político que começou com uma forte veia anti-islão, recebe apoio de Israel e há alguns anos recusava qualquer associação com Jean-Marie Le Pen, classificando-o como “horrível”). Em editorial, o diário Le Monde diz que Le Pen “lembra à sua filha de onde vem a Frente Nacional”. Le Pen pai já foi condenado por dizer, em 1987, que as câmaras de gás eram “um detalhe” na II Guerra – Marine Le Pen disse, por seu lado, em 2011, que os campos nazis eram “o supra-sumo da barbárie”. Associações anti-racismo já anunciaram que vão pedir que lhe seja retirada a imunidade parlamentar (Jean-Marie é um dos 24 eurodeputados da FN), para o acusar de anti-semitismo. Outros responsáveis da Frente Nacional, incluindo alguns que sempre lhe foram leais, criticaram o erro e até chegaram a aconselhar-lhe a reforma. O presidente honorário da FN não recuou. À filha, não disse “nada”: “Não tenho nada a dizer, o que tiver, direi no seio das instâncias da Frente Nacional”, cita o site da revista Le Point. Mas confessou ver as declarações da filha “um pouco como uma traição”. Mais lembrou ter o título “vitalício” de presidente honorário do partido e criticou quem na FN fizer uma interpretação dos seus comentários como anti-semitas: “Quem, no meu campo, fizer isso, é um imbecil”.
REFERÊNCIAS:
Étnia Judeu
Michael Cimino (1939-2016), um realizador entre o Céu e o Inferno
Um dos grandes líricos do cinema americano, teve Óscares por O Caçador, mas tem o seu nome impresso com as letras gigantes de uma catástrofe: As Portas do Céu (Heaven's Gate, 1980). (...)

Michael Cimino (1939-2016), um realizador entre o Céu e o Inferno
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um dos grandes líricos do cinema americano, teve Óscares por O Caçador, mas tem o seu nome impresso com as letras gigantes de uma catástrofe: As Portas do Céu (Heaven's Gate, 1980).
TEXTO: Morreu Michael Cimino, vencedor de um Óscar de Melhor Realizador por O Caçador. Ou teria sido o homem que, com As Portas do Céu, ajudou a fechar com estrondo os 70s e a acabar com o sonho da Nova Hollywood? Teria 77 anos - a sua idade e alguns factos da vida são incertos, mantidos numa zona de mistério ou ocultados pelo próprio. O anúncio foi feito no sábado, no Twitter, pelo director do Festival de Cannes Thierry Fremaux: “Michael Cimino morreu, em paz, rodeado dos seus e das mulheres que amava. Nós também o amávamos. ” Eric Weissmann, amigo e ex-advogado do realizador, confirmaria a morte. Mas segundo o The New York Times, que o cita, o corpo terá sido encontrado na sua casa de Los Angeles, sábado, pela polícia, que foi contactada por amigos do realizador quando não o conseguiram contactar por telefone. A causa da morte, segundo Weissmann, está ainda por determinar. Apesar do sucesso com O Caçador (1978), história de amigos operários da Pennsylvania e das suas perdas com a experiência da Guerra no Vietname (nomeações para nove Óscares, vencedor de cinco, entre os quais o de melhor filme, "batendo" O Regresso dos Heróis, de Hal Ashby, visto como adversário ideológico), Cimino levaria à falência o estúdio da United Artists com As Portas do Céu (Heaven's Gate, 1980): filme "maldito", um dos fracassos de bilheteira de maiores consequências para o cinema americano. Não terá sido, na verdade, "apesar de. . . ". Uma coisa, o sucesso de O Caçador, levou à outra: com a indústria a seus pés, teve carta branca, e 12 milhões de dólares, para entregar até ao Natal de 1979 o seu filme sobre o conflito sanguinário, nas terras do Wyoming dos anos 1890, entre barões do gado e colónias de imigrantes, entre a lei e o vigilitantismo. Entregou-o quase um ano depois, 40 milhões de dólares depois, mas quando o filme chegou às salas já estava desapossado da sua possibilidade de ser "um filme". Já se tornara media event. E foi como se as salas o expelissem. Todo o espectáculo da rodagem, os adiamentos da estreia, os comentários sobre as excentricidades de Cimino, que queria ter o nome no genérico do tamanho do título do filme (e assim ficou com o nome pegado à dimensão desse desastre), foram antecipando com ironias amargas e slogans espirituosos (To Hell with Heaven’s Gate; Apocalypse Next) aquilo que se seguiu. Eclipsaram-se os 70O desastre anunciado confirmava-se: uma semana em exibição numa sala de Nova Iorque, a crítica a ditar o "unqualified disaster" (Vincent Canby no The New York Times. . . ) desta versão original de 219 minutos (seria retirada, para segunda distribuição em versão mais curta, que só tornaria a comunicação emocional ainda mais difícil) e o filme a ser apontado por todos, e entre eles muitos que não o tinham visto, como exemplar da megalomania dos tempos em que Hollywood estivera à mercê dos "autores". Cimino ajudou a ditar com esse fracasso o fim de uma era, o fim dos sonhos da geração dos movie brats, foi isso que lhe aconteceu. Podia ter acontecido com Coppola (Do Fundo do Coração, 1981), com William Friedkin (Sorcerer, 1977), com Spielberg (1941, Ano Louco em Hollywood, 1979), com Peter Bogdanovich (They All Laugued, 1991), que tiveram os seus fracassos dolorosos. Mas, independentemente do efeito deles na vida dos seus autores (a Zoetrope de Coppola, por exemplo, faliu. . . ), o grande estrondo aconteceu com Cimino e aconteceu a Cimino. As Portas do Céu parecia trazer, em si, aliás, uma premonição. Como se recebesse e abraçasse a catástrofe. Tudo começa, se se lembram, na Harvard do século XIX, com dois amigos, James Averill (Kris Kristofferson) e William Irvine (John Hurt), no rodopio de valsas de Strauss e de entrega de diplomas à elite estudantil de que fazem parte. É então que a personagem de Hurt diz: "Os anos 1870 acabaram!". Há-de haver um corte, e o prólogo em Harvard, momento de ideais e de esperança, dará lugar à impotência, ao niilismo… sentimentos inescapáveis face à personagem de Kris Kristofferson, que vemos agora no comboio a caminho do Wyoming 20 anos depois da sua formação em Harvard, impregnado de malaise. (Está tudo nessa passagem, como no "corte" que nos transportava de forma abrupta da Pensilvânia para o Vietname em O Caçador — as elipses que essas obras contêm são feridas no tecido dos filmes, a alastrar, a consumi-los). Pois bem, Heaven's Gate e o seu fracasso alastraram, e acabaram por dizer: "Os anos 1970 acabaram!". É verdade: pouco tempo depois, duas semanas apenas, da estreia começava a era Reagan. Deixaria de haver tolerância para visões lúgubres de uma América fundada não sobre um qualquer abraço fraterno mas sobre o genocídio, a guerra de classes e o racismo. Em 2012, por alturas da edição em DVD do filme, em cópia que restaurava a versão original, Kris Kristofferson dizia ao The New York Times que a visão de Heaven's Gate sobre o capitalismo americano esteve na origem de um verdadeiro “assassinato político". Kristofferson lembrava-se de que o attorney general de Reagan, William French Smith, mandou recados aos chefes dos estúdios de Hollywood: "Não deveria haver mais filmes com uma visão negativa da história da América". E no documentário Final Cut: The Making and Unmaking of Heaven's Gate explicita: tudo não foi mais do que uma estratégia dos "poderes instituídos" para acabar com uma forma de fazer cinema. Eclipsaram-se os anos 70 (uma década depois do “we blew it” de Easy Rider, pronunciado em 1969). Desapareceu a Nova Hollywood, substituída pelas corporações (mas não desapareceram os filmes que ultrapassam orçamentos. . . ). E Cimino foi definhando com O Ano do Dragão (1985), O Siciliano (1987), Desperate Hours (1990) e The Sunchaser (1996), com rasgões de beleza mas quase sempre tolhido. "Não tem graça ser famoso pelas piores razões: torna-se uma ocupação esquisita", dizia, em 2012, no Festival de Veneza, antes de o director Alberto Barbera lhe entregar o Prémio Persol que reconhecia "uma das mais intensas e originais vozes do cinema americano". Nessa altura, procedia-se a uma revisão de Heaven's Gate. Que nos últimos anos tem sido descoberto enquanto filme, para além de media event, já que esteve sempre como que inacessível, impossibilitado de, nas coisas belíssimas que tem e nas suas dificuldades - a problemática coabitação entre o monumental e o íntimo -, poder dar a ouvir, enfim, a vibração trágica do seu trio: Averill (Kristofferson)/Ella (Isabelle Huppert)/ Nathan (Cristopher Walken) - e como todo ele é uma deflagração de fragilidade, Chris Walken…Lirismo e destruiçãoTudo começara antes, como se disse. Naqueles anos de euforia, em que Hollywood descobria um wonder boy. Os anos de O Caçador. O ressentimento desenvolvia-se nessa altura: na muito emotiva e electrizante noite desses Óscares, Jane Fonda, premiada como melhor actriz por Coming Home, confrontava o realizador nos bastidores por ter feito um filme "racista, a versão do Pentágono da guerra" do Vietname. (Mas parece que nem tinha visto o filme). Duas sequências provocavam a divisão (porque, acredite-se ou não, houve quem o considerasse o melhor filme anti-guerra desde A Grande Ilusão, de Jean Renoir): a da roleta russa, no Vietname, a suposta prova do racismo do realizador, e a do hino americano, em "casa", a suposta evidência do seu paroquial patriotismo. Fora do Dorothy Chandler Pavillion, Os Veteranos do Vietname contra a Guerra faziam piquete. O facto de ter sido John Wayne — última aparição pública, já minado pelo cancro — a entregar o Óscar de melhor filme a O Caçador, parecia autorizar todas as leituras de uma simbólica passagem de testemunho. Até porque se começava a explorar supostas incongruências biográficas do realizador (a sua idade, a veracidade do seu currículo académico e do que ele tinha apresentado como "esforço de guerra". . . ). Wayne era, ele próprio, autor de um pedaço de propaganda bélica, Os Boinas Verdes (1968), e tinha sido convidado por Cimino para uma primeira projecção do filme. No final da qual teria exclamado: "Isto vai mostrar a alguns filhos da puta como se vive na América". O "boneco" estava feito. Cimino ia desautorizando leituras políticas do filme, reafirmando que não era sobre uma guerra justa ou injusta, era um filme sobre as experiências de pessoas que conheceu, um canto, um lamento, sobre "gente vulgar deste país que viajou das suas casas para o coração das trevas e voltou". Mas não o ouviam, e a sua personalidade trazia anti-corpos ao discurso. Conservador? Sim, tal como John Ford - um dos seus cineastas de cabeceira - quando cantava a América. A crítica Pauline Kael referiu-se assim a The Deer Hunter e tocou no essencial: "Um filme tacanho com grandeza dentro. . . uma obra espantosa. . . com uma visão extasiada da vida normal — a poesia do banal. " (Se John Ford está na alma de O Caçador, Sam Peckinpah, outro dos heróis de Cimino, está no horizonte de As Portas do Céu, mas se calhar cada filme do cineasta vive sempre no caminho entre esses dois gigantes líricos, e do caminho do idealismo para a destruição). Michael Cimino nasceu em Nova Iorque, descendente de italianos. Estudou em Yale, mas as suas habilitações académicas foram alvo de "dúvidas", fazendo-se sempre da personagem uma figura "suspeita" de se ficcionar. O que ajudou à "guerra", por exemplo, quando se tratou de atacar a "veracidade" de O Caçador. Fez anúncios de televisão. Iniciou a carreira em Los Angeles como argumentista—- no seu currículo, O Cosmonauta Perdido (1972) e o segundo filme da série Dirty Harry, Magnum Force (1973). Antes de O Caçador realizou A Última Golpada/Thunderbolt and Lightfoot (1974), com Clint Eastwood, com quem assinou o argumento. Já aí estava a paisagem americana como reservatório mitológico que faz a sua cobrança, em tragédia, a quem lá entra, a quem a atravessa. Raramente dava entrevistas, e durante os anos que seguiram ao desastre de As Portas do Céu recusou-as. Em 2001 publicou o seu primeiro romance, Big Jane. Nesse ano, o Ministro da Cultura francês distinguiu-o com a medalha de Chevalier des Arts et des Lettres. Megalómano? Foi um dos grandes do cinema americano e uma das suas grandes "baixas". Em 2010, aceitou viajar com um historiador e crítico de cinema francês, Jean Baptiste Thoret, pelos "lugares" dos seus filmes — o Colorado com as suas primeiras neves, os céus imensos do Montana, o Wyoming. Teve a sua catedral, tal como John Ford teve Monument Valley. Resultou num livro esta longa conversa sobre a perda, sobre os ideais que tombam, sobre os "novos" sacrificados pelos "velhos". Veja-se esta passagem e o que ela pode encerrar: "No final, é sempre a mesma coisa, a traição dos idealismos de juventude pelos mais velhos: os velhos acabam por ganhar, em todas as guerras, em todos os países, em todos os períodos da história. E os velhos justificam isso contando tretas: os jovens desencadeando as catástrofes e eles ficando para limpar a casa". É um comovente road book, Michael Cimino, Les Voix Perdues de l'Amérique (Flammarion, 2013). A dele já se tinha perdido, nunca se reencontrou. No final do seu Dicionário Biográfico de Cinema, David Thomnson terminava a sua entrada sobre o realizador: "Cimino é um monstro e enquanto ele viver temos de estar preparados para lhe ceder terreno, ou abatê-lo. "Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Vasco Câmara sobre As Portas do Céu: What one loves about life are the things that fadeMichael Cimino não acha graça a "ser famoso pelas piores razões"
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte guerra lei cultura homem racismo mulheres corpo assassinato racista
"A boa notícia é que, no longo prazo, todos tendemos para a igualdade. A má notícia é que o longo prazo demora 300 anos"
O que pode um apelido contar-nos sobre mobilidade social? Muito, conclui o economista escocês Gregory Clark, que vem a Lisboa falar sobre os resultados desconcertantes do estudo de centenas de milhões de apelidos ao longo de cinco séculos (...)

"A boa notícia é que, no longo prazo, todos tendemos para a igualdade. A má notícia é que o longo prazo demora 300 anos"
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.02
DATA: 2018-07-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: O que pode um apelido contar-nos sobre mobilidade social? Muito, conclui o economista escocês Gregory Clark, que vem a Lisboa falar sobre os resultados desconcertantes do estudo de centenas de milhões de apelidos ao longo de cinco séculos
TEXTO: Há pessoas que conseguem passar do 1% mais baixo da sociedade para o 1% mais alto, mas é raro e, em geral, os movimentos sociais desenrolam-se muito lentamente, concluiu Gregory Clark, professor de Economia na Universidade de Davis, Califórnia, e autor da premiada investigação sobre a história da mobilidade social The Son Also Rises – Surnames and the History of Social Mobility, livro editado pela Princeton. Pelo menos, a mudança é muito mais lenta do que acreditamos, defende o autor. O livro é a base de um debate — e de uma controvérsia — que não tem respostas a preto e branco. Com uma equipa de oito investigadores de vários continentes, Clark estudou a mobilidade social usando um método original: os apelidos. Como é que uma família percorreu a escada social ao longo de séculos? Depois de analisar centenas de milhões de apelidos, a conclusão, desconcertante, é que pouco ou nada parece provocar mudanças sociais e ajudar as pessoas das classes baixas a ascender às altas. Nem as revoluções, nem a democracia, nem o acesso à educação. Quem está em baixo, em baixo fica. Seguindo uma "espécie de memória dos seus antepassados", entranhada em cada um de nós. No próximo sábado, Clark participa na conferência anual da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que este ano pergunta "Em que pé está a igualdade?". Como nasceu a ideia que levou a este projecto e a uma investigação tão pouco convencional?A ideia nasceu de uma conversa com um jornalista do New York Times. Falávamos do diferencial de fertilidade [que designa as diferenças em termos de fertilidade nos subgrupos de uma população] no período pré-Revolução Industrial, e foi ele quem sugeriu que eu talvez pudesse analisar os apelidos e a sua frequência como factor de medição das questões ligadas aos diferentes parâmetros da fertilidade. Essa ideia interessou-me, e vim a descobrir que há imensa informação disponível sobre a distribuição dos apelidos e a maneira como estes estão ligados às diferentes classes sociais ao longo do tempo. Acabei por perceber que é possível medir muito para trás, até à Idade Média, o fenómeno da mobilidade social nas diferentes sociedades, apenas olhando para o estatuto que os apelidos tiveram durante esse período. Portanto, não posso ficar com todos os créditos pela originalidade da ideia. Aliás, esta ideia de rastrear a mobilidade social através dos apelidos já tinha sido usada num livro anterior, na verdade por uma pessoa conhecida nos Estados Unidos por ser um escritor racista. Chamava-se Nathaniel Weyl e era um antigo comunista que se tornou de extrema-direita, e que foi testemunha contra Alger Hiss [alto funcionário do governo americano acusado de espionagem] no julgamento por perjúrio em 1950. E é de facto uma ideia interessante e com muitas ramificações, e que pode ser usada para diferentes investigações. Quantos milhões de apelidos analisaram?Centenas de milhões. Só em Inglaterra, tínhamos dados sobre a distribuição dos apelidos que remontavam a 1540. Analisámos também apelidos na China, e estamos agora a investigar na Rússia, na Hungria… é um trabalho em constante evolução, porque muitas pessoas contactam-me com informação nova de diferentes países. O último trabalho que publicámos foi uma pesquisa sobre a mobilidade social na Austrália, em que obtivemos dados de 1870 até ao presente. E foi um trabalho muito interessante, porque através dos apelidos conseguimos demonstrar como as taxas de mobilidade social na Austrália não diferiram nesse período das da Inglaterra, que era o país de onde vinha a maior parte da população. O facto de ser um país novo, com novas instituições e um ambiente diferente, não influenciou em nada a capacidade de mobilidade social. As famílias que se distinguiam na Austrália do século XVIII continuam hoje a mandar os filhos para a universidade com uma frequência muito maior do que a média. O que aconteceu aos descendentes dos condenados ingleses enviados para a Austrália?A coisa mais interessante e surpreendente deste estudo foi ter a possibilidade muito rara de analisar os nomes de pessoas condenadas pela justiça. Descobrimos que essas pessoas nunca foram uma sub-classe, e têm até um desempenho, desde o século XIX, ligeiramente acima da média dos colonos brancos. Creio que a explicação residirá no facto de muitos dos condenados já não serem originalmente de classes baixas e terem cometido crimes de pequena importância. Usando o mesmo parâmetro da educação superior dos filhos, os descendentes dos colonos condenados apresentam números iguais ou superiores à média dos colonos livres, nos quais se incluíam, por exemplo, os funcionários administrativos e os soldados. O que encontrou na Rússia?É uma pesquisa muito interessante. A Rússia passou por grandes mudanças estruturais, como a Revolução de 1917 ou a restauração do capitalismo, mas através da informação que nos foi disponibilizada pela Universidade Estatal de Moscovo, uma das maiores instituições de ensino do país, pudemos perceber que, surpreendentemente, a revolução teve um impacto muito diminuto na distribuição dos nomes e apelidos que pertenciam tradicionalmente à elite. Nesses incluíam-se, por exemplo, os apelidos acabados em -sky e também apelidos de origem alemã, normalmente de famílias judias da Alemanha de leste. Por outro lado, é possível discernir que os nomes mais comuns na Rússia, como os acabados em -in ou em -ov, continuam ao longo do tempo, independentemente da revolução, a apresentar resultados mais modestos nas estruturas subjacentes à organização social, nomeadamente no acesso ao ensino superior. Na Rússia, as universidades são obrigadas a publicar a lista de todos os alunos e as suas notas de acesso, o que nos dá uma fonte muito segura para este tipo de estudos. E a análise da distribuição dos apelidos nessas listas de acesso mostra que os nomes que já eram comuns na Rússia do século XIX continuaram ao longo do tempo a ter uma menor presença nos lugares cimeiros das notas dos alunos, o que parece indicar que as classes inferiores continuaram a ter as mesmas dificuldades na capacidade de mobilidade social, não obstante uma enorme revolução socialista. O que conclui a partir daí?A principal conclusão que se pode tirar do estudo da evolução social dos apelidos é que é muito difícil, em qualquer sociedade, uma alteração radical do estatuto social. Quanto mais alargado o período de estudo, mais probabilidades há de observarmos alterações mais significativas, mas estes processos de mudanças sociais são lentos e surpreendentemente impermeáveis a momentos de agitação social ou de mudanças de regime, e não parece haver nada que afecte estas velocidades de mobilidade social. A mobilidade social pouco se tem alterado nos últimos séculos, tanto nas classes altas como nas baixas?Sim, nos casos estudados até agora não temos verificado qualquer aumento da capacidade de mobilidade social. O único estudo que revelou resultados um pouco diferentes foi o caso do estado indiano de Bengala Ocidental, onde os números relativos à mobilidade social são ainda mais baixos do que nos outros. E isso está relacionado com a questão dos casamentos muito próximos e muito organizados entre determinadas classes. E o que se verifica na Índia é que as pessoas das castas mais baixas têm imensas dificuldades para mudar de estatuto, não obstante o governo investir balúrdios na sua escolarização e reservar lugares nas universidades para as pessoas das castas mais baixas. O que acontece é que, ironicamente, há muitos que se aproveitam do apelido para ocuparem esses lugares, embora na verdade não sejam pertencentes a essas castas. Mas chegam efectivamente a existir casos em que não há qualquer vislumbre de mobilidade social, tão fechados dentro dos seus grupos são os casamentos. Um bom exemplo é o dos cristãos coptas, no Egipto, que mantêm o estatuto de classe alta há mais de mil anos, e que só casam entre si, não se misturando com a população que os rodeia. Assim, uma sociedade aberta, que promove o casamento entre imigrantes e pobres e ricos, etc. , terá à partida mais mobilidade social. Pelo contrário, as sociedades onde imperam divisões religiosas ou raciais têm tendência para uma maior cristalização dos estratos sociais. Estamos presos no estrato social em que nascemos?Claro que não é uma situação estática e podemos sempre observar movimentos, até porque as pessoas das classes mais baixas tentam sempre subir de estrato social, mas são processos muito lentos. Se olharmos para os apelidos das famílias que na Inglaterra do século XIX faziam parte da verdadeira elite, podemos ver que ainda hoje os seus filhos têm uma maior probabilidade de ingressarem na universidade ou de arranjarem melhores empregos. A boa notícia destes estudos é mostrarem que, no longo prazo, todos tendemos para a igualdade; a má notícia é que o longo prazo parece demorar cerca de 300 anos. Isso acontece em todos os países que estudaram?Sim, as pessoas podem passar centenas de anos até que as famílias que vêm de estratos mais baixos consigam ter a mesma probabilidade das outras em ascender a posições sociais de maior importância. E isto aplica-se a todos os períodos estudados. O que está a dizer significa que o acesso à educação não teve impacto e não ajudou a reduzir as desigualdades. Se olharmos para o caso inglês, podemos ver que nem a mudança de um paradigma em que não havia apoio estatal à educação para outro em que existem imensos apoios à educação parece ter influência na mobilidade social ou nas perspectivas de subida de classe. O mesmo acontece relativamente ao direito de voto: a evolução para um sistema em que todos os cidadãos são chamados a participar na vida política não teve qualquer efeito em termos da facilidade de alterações nos estratos sociais. Isto faz pensar que são coisas muito enraizadas na própria estrutura das sociedades. Estamos agora a desenvolver um novo trabalho, focado nos indivíduos em vez de nos apelidos [recuando na sua árvore genealógica]. Começámos por Inglaterra, e até agora já conseguimos estabelecer as linhagens de cerca de 300 mil pessoas ao longo de 250 anos. Temos acesso a todas as relações de parentesco e aos correspondentes estatutos sociais, e podemos assim estudar melhor o que aconteceu a todas estas famílias ao longo dos anos. Como selecionou essas famílias?Apoiámo-nos no estudo dos apelidos mais raros e, em Inglaterra, há muitos apelidos raros. Outra das coisas que tornam o estudo do caso inglês mais fácil é que os ingleses são muito excêntricos, e há no país imensa gente que se dedica ao estudo dos apelidos. Há até uma organização, a Guild of One-Name Studies, que tem uma publicação na qual escrevemos um artigo a pedir aos seus membros que nos enviassem mais dados. Descobrimos pessoas que há 25 anos se dedicam a estudar a história do seu apelido e a localizar todas as pessoas do mundo com o mesmo apelido. Agora até usam testes de ADN para fazer esse mapeamento, porque se há uma origem comum das pessoas com o mesmo apelido raro, então todos os homens dessa linhagem devem ter o mesmo cromossoma Y. Falei com uma pessoa que se dedicava ao estudo do nome Argall, um apelido raro da zona da Cornualha, que descobrira que todos os homens que eram filhos biológicos da família Argall tinham o mesmo cromossoma Y, o que mostra que, nessa família, durante 300 ou 400 anos não houve infidelidade!Há alguma vantagem em estudar pessoas em vez de apelidos?A nossa base de dados tem 170 mil pessoas e as análises a essa informação já produziram descobertas muito interessantes. Os dados parecem sugerir que a herança genética é uma das principais razões para a fixação dos estatutos sociais. O que levanta diversas questões: se são os genes que interessam e não as circunstâncias familiares, então o tamanho das famílias devia ser irrelevante para o sucesso na vida de cada um. Na Inglaterra do século XIX, encontramos diversas famílias com apenas um filho, mas também famílias com 17 filhos. E ao compararmos esses extremos, descobrimos que em quase todos os casos o número de filhos não é relevante para o nível de educação ou de sucesso que eles alcançam. Há uma teoria económica vigente que defende que uma das razões para termos, hoje, sociedades com maiores rendimentos é precisamente o facto de termos menos filhos, podendo assim providenciar-lhe uma melhor educação e torná-los melhores “agentes económicos”. Ora no século XIX em Inglaterra não havia controlo de natalidade, e portanto o tamanho das famílias era bastante aleatório, mas as estatísticas sobre o efeito que isso teve no sucesso das pessoas mostram variações muito pequenas. O factor decisivo é então o talento inato, mais do que o dinheiro ou a educação?Essas características são de alguma forma herdadas dos pais. Talvez seja algo que está relacionado com uma cultura ou um ethos familiar. Outra coisa que podemos analisar é o efeito da ordem de nascença dos filhos, e quanto a isso muitos psicólogos defendem que os filhos mais velhos têm uma significativa vantagem sobre os mais novos, por não terem de dividir a atenção dos pais durante os primeiros anos de vida. Eu sei que isso acontece, até pela minha experiência pessoal como pai de três filhos. Mas cheguei à conclusão, quando tivemos o terceiro, que todo esse esforço extra com o primeiro não fez grande diferença [risos]. É engraçado, porque os meus pais eram ambos o 9. º de 12 filhos, por isso este assunto sempre me interessou. Lembro-me de perguntar à minha avó se me podia contar alguma coisa sobre o meu pai quando era pequeno e ela respondeu: “Não. ” [risos] Ela falava muito sobre o filho mais velho, a quem era muito apegada, mas quando se chega ao 9. º já não há a mesma interacção, o mesmo impacto. As nossas descobertas apontam para que, pelo menos na Inglaterra do século XIX, isso tenha muito pouca importância no sucesso pessoal. E de forma muito clara. A natureza é mais forte do que o berço?A informação que analisámos aponta esmagadoramente para que assim seja. Para dar outro exemplo: se eu quisesse tentar prever o sucesso que os seus filhos irão ter na vida, muita informação relevante estaria em si e no seu marido, mas também nos vossos pais e irmãos. Quantos mais membros da família pudesse observar, mais acertada seria a minha previsão. E embora haja quem veja nisto o reconhecimento da importância da cultura, dos recursos, da rede de contactos e do ambiente de uma família como um todo, o que verificámos foi que, se compararmos casos em que os avós já morreram quando um neto nasce com outros em que ainda estão vivos, ou casos em que os avós vivem perto dos pais com outros em que vivem a 50 ou mais quilómetros de distância, os números mostram que em qualquer dessas situações a importância que os avós assumem para a percentagem de acerto da previsão sobre o futuro dos netos é a mesma. Simplificando: para o nosso estudo, os avós servem apenas de fonte de informação do estatuto genético subjacente aos pais, ou seja, completam a informação para que se determine se estamos perante uma linhagem “alta” ou, ao invés, uma linhagem “baixa” que por alguma razão teve sorte e conseguiu subir na vida, e se essa sorte se prolongará nas gerações futuras. O interessante desta base de dados alargada é podermos fazer este tipo de experiências e cruzamentos para encontrarmos pontos de contacto entre as diferentes gerações. Como olha para as excepções, milionários selfmade como Oprah Winfrey ou Ralph Lauren?O interessante sobre as excepções é que, estatisticamente, só uma ínfima parte dessas pessoas que conseguiram alcançar posições muito altas na sociedade vieram dos últimos 10% da pirâmide social. Normalmente, partem de posições já muito perto do topo. Se olharmos para Bill Gates, por exemplo, o seu pai já estava no percentil 1% da distribuição de rendimentos. Referia-me aos que vêm mesmo de baixo, como o CEO da Starbucks…São fenómenos raros. O padrão mais comum é a ascensão social ser feita por pessoas que já estão perto desse estatuto. Essa podia ser até uma possível pesquisa a fazer com a nossa base de dados: tentar perceber quem são e de onde vêm as pessoas que conseguem essas transições maiores em termos de riqueza e ocupação profissional, parâmetros que ainda não analisámos. Um dos parâmetros que usámos em Inglaterra foi o acesso às Universidades de Oxford e Cambridge, que são muito elitistas. O que observámos foi que é muito raro que uma família que nunca tenha tido um membro nessas universidades acabe por meter lá alguém, independentemente de demonstrar alguma ascensão social nesse período. Por outro lado, há famílias cuja probabilidade de terem um membro em Oxford ou em Cambridge se mantém quase inalteradamente alta ao longo do tempo. O que quero dizer é que na sociedade, embora haja pessoas que conseguem passar do 1% mais baixo para o 1% mais alto, os números mostram que em geral esses movimentos sociais se desenrolam muito lentamente. Quão mais lentas são essas mudanças?Os estudos convencionais costumam considerar que há muita mobilidade social, no sentido em que é normal na nossa sociedade existirem pais que são operários e que têm filhos que são professores. A nossa pesquisa tenta olhar para a história mais alargada destas famílias e observamos que quando essas mudanças se dão, tanto para cima como para baixo, as gerações seguintes têm tendência a voltar para a posição original na pirâmide social. A diferença entre os estudos convencionais e o estudo dos apelidos é que os primeiros olham apenas para a mobilidade social no decurso de uma geração, enquanto os nossos estudos analisam o comportamento de múltiplas gerações. Os dados apontam para que as pessoas tenham entranhada uma espécie de memória dos seus antepassados, mesmo que nunca os tenham conhecido. Daí a convicção de que para poder fazer uma previsão sobre o futuro dos seus filhos, seria muito importante ter dados sobre os avós e demais família. O interessante acerca desta perspectiva é a ideia de que, embora a única verdadeira interacção que os filhos tenham seja com os pais, eles estão de certa forma inscritos numa rede social mais alargada. Não pode ser a projecção dos antepassados, despertando a vontade de seguir ou contrariar as suas pisadas?É muito difícil dizer. Pode funcionar como uma espécie de transmissão cultural familiar, ou seja, as pessoas que os antepassados foram pode levar a que os pais tenham determinadas expectativas e modelos para os filhos, ou pode realmente ter a ver com os genes. É muito difícil poder tirar esse tipo de conclusões a partir da nossa pesquisa. O que eu posso afirmar a partir dos dados que analisámos em Inglaterra, é que os recursos que os filhos recebem dos pais tendem a ter uma importância muito menor do que o que se costuma pensar. Quer seja o dinheiro que os pais têm, o tempo que passam com os filhos ou a qualidade da escola em que os conseguem matricular, todos esses factores parecem ter um papel muito mais reduzido do que o que costumamos assumir. De uma certa forma, é uma visão que torna o mundo mais justo, porque quer dizer que os chavões tipo “tens pais ricos e foste para uma boa escola, tens a vida garantida” não funcionam. Pelo menos, é o que temos vindo a descobrir. Vai provocar uma debandada das escolas privadas![risos] Isto é bastante controverso e nós sentimo-lo até ao candidatarmo-nos a financiamento para estas investigações. É muito difícil arranjar financiamento, porque as pessoas dizem-nos que não estão interessadas no estudo da genética, que não querem saber o quão difícil é mudar a vida das pessoas, estão interessadas é em como mudar a vida das pessoas. Este tipo de estudos das ciências sociais assenta quase sempre em como mudar o mundo e há até um preconceito inerente a estas áreas que leva a que seja sempre muito mais fácil publicar estudos que sugerem maiores mudanças na mobilidade social do que o contrário. Propõe uma visão quase fatalista. Prefiro ter uma visão optimista sobre o assunto. Por exemplo, no sul da Europa há hoje uma crise de natalidade. Uma das razões para essa crise é o incrível peso da responsabilidade que recai sobre os pais. Sentem que se não derem aos filhos todas as condições, se não estiverem sempre a prestar-lhes atenção ou a impedi-los de verem demasiada televisão ou não os inscreverem na melhor escola possível, isso trará consequências negativas. Por isso parece-me até libertador podermos pensar que os filhos são o que são e que há sempre muita aleatoriedade e retirarmos um pouco a responsabilidade aos pais de tentarem moldar o futuro dos filhos. Se quiserem, tenham mais filhos! A própria genética prevê que os filhos sejam bastante diferentes entre si, por isso há que aproveitar os filhos e não sentir esse peso. E se olharmos para os nossos avós, eles não tinham essa preocupação de monitorizar os filhos a cada instante, é um conceito recente. Aqui na Califórnia, por exemplo, os pais até sentem a responsabilidade de verem os filhos a jogar futebol, de assistirem enquanto os filhos brincam. E parece-me que também é uma visão mais justa do mundo porque evita essa presunção de que são os pais e o seu estatuto que definem o futuro dos filhos, que abrem portas ou arranjam oportunidades. Os dados a que temos acesso mostram, em certos momentos, sociedades abertas e em que existe uma certa possibilidade de mobilidade social a curto-prazo. No mínimo, esta ideia de imutabilidade frustra, e baralha, políticos de todo o mundo. [risos] Se esta teoria de que a herança genética do talento é um factor relevante se provar correcta, a maior consequência em termos de mobilidade social está relacionada com o casamento, porque quer dizer que se uma pessoa se casar com alguém de “capacidade aleatória” haverá maior possibilidades de ocorrer mobilidade social. Explicando de outra forma, pensar assim quer dizer que uma pessoa que tenha um diploma universitário tem uma maior probabilidade de casar com alguém que não tem um, porque é isso que ditam as estatísticas. Mas o que observamos hoje é que quem possui uma licenciatura casa quase sempre com alguém do mesmo estatuto. E o que notamos a nível genético é que quanto mais próximo em termos de estatuto social for um casamento, maior será a marca desse estatuto nos filhos desse casamento. Por outro lado, se pensarmos num “acasalamento aleatório”, a correlação dos estatutos sociais a longo prazo será muito diferente. O que estou a tentar dizer é que uma das características importantes de qualquer sociedade é a diversidade dos casamentos. E quanto menor for essa diversidade, menor será também a mobilidade social. Um dado interessante é que hoje essa diversidade é muito pequena. Uma das razões é a maior facilidade em encontrar alguém dentro dos mesmos parâmetros sociais e educacionais, porque no século XIX as discrepâncias a nível educativo eram imensamente maiores: basta dizer que as mulheres não frequentavam as universidades. Na verdade, dada a actual proximidade dos casamentos a nível social, e a cada vez maior facilidade em escolher exactamente o tipo de parceiro que é parecido connosco, teme-se que a mobilidade social possa começar a ser negativa, porque há uma tendência muito grande para a estagnação. Esta “proximidade de acasalamento” está ligada também a maiores desigualdades, porque os filhos das elites e os filhos dos pobres estarão sempre muito mais condicionados pela sua posição social. A nossa pesquisa identificou fenómenos ligados a isto também na Inglaterra do século XIX onde, não obstante as maiores diferenças e contrastes em termos educativos, já se notava uma tendência para os homens mais cultos casarem com as irmãs de outros homens cultos. É um mito que no século XIX era fácil a mulheres bonitas de classes baixas conseguirem casar com um homem de uma classe superior. Creio que uma das principais razões para a mobilidade social ser tão difícil é exactamente este padrão consolidado de casamentos. Uma outra conclusão que retirámos da nossa pesquisa, e que parece ser transversal a todas as sociedades, é que, no caso das pessoas que estão no 1% mais baixo da sociedade, os seus filhos têm sempre tendência a melhorar. Não se vislumbram provas de grilhetas que prendam as pessoas à pobreza mais extrema. E isso é incrível. E os que na geração seguinte vão ocupar esses lugares da base da pirâmide estão normalmente em melhor situação na geração anterior. Assim, vemos que as classes sociais mais baixas se vão renovando de geração para geração. E isso é muito estranho se pensarmos em termos dos recursos que os pais dão aos filhos, mas faz muito mais sentido se o encararmos como uma questão genética. Voltando à educação: o facto de a democratização do acesso à educação ser historicamente tão recente não distorce os vossos resultados? São 100 anos nos 500 que estudou. Os dados apontam para que, em Inglaterra, a introdução do ensino universal em 1910 não tenha tido um grande impacto em termos de mobilidade social, porque tendencialmente as famílias mais pobres eram também as que mais ficavam pela escolaridade mínima. A abertura do acesso ao ensino não fez com que de repente muito mais crianças tivessem acesso a posições superiores na hierarquia social. Normalmente deixavam a escola aos 14 ou 15 anos. Mas há casos, até anteriores, de escalada social de famílias de classes muito baixas, que conseguem chegar a empregados de balcão ou funcionários públicos, e daí a advogados ou equivalente. Mas essas histórias de sucesso não apagam o facto de que, mesmo com a escola pública, muito poucas famílias pobres conseguiam tirar partido dessa oportunidade. E essa descoberta foi surpreendente, porque também achávamos, à partida, que a democratização do ensino, primeiro da escola e depois das universidades, teria tido reflexos na capacidade de mobilidade social. Em Inglaterra houve períodos em que o Estado investiu fortemente na educação, mas não vemos resultados disso no que toca à mobilidade social. A análise centrou-se nas famílias de classes superiores. Isso não coloca também problemas em relação às extrapolações?Essas são as famílias que têm registos melhores e mais completos. Mas em Inglaterra, por exemplo, também é possível estudar os apelidos das famílias das classes mais baixas, e os padrões de mobilidade social parecem ser os mesmos. À medida que recuamos, os apelidos das famílias mais pobres não são muito difíceis de seguir?Absolutamente. Aliás, na Suécia, outra das sociedades sobre as quais dispomos de informação, as pessoas comuns nem tinham apelidos até ao início do século XX. Felizmente em Inglaterra os apelidos tornaram-se habituais a partir do século XIV e portanto é-nos possível localizar os apelidos ao longo da História, mesmo os das pessoas comuns. Para outros casos não é tão fácil, claro. Um outro exemplo é o do Chile, que também investigámos, e onde os habitantes nativos, os Mapuches, tinham apelidos muito distintos e fáceis de detectar nos arquivos. Mas é muito mais simples rastrear os apelidos das elites. Uma das críticas que o livro tem recebido é exactamente a de supostamente só mostrar a imobilidade do topo da sociedade, mas posso dizer-lhe que quando se analisa o outro lado, os resultados são bastante simétricos. Se no caso da Suécia houve dificuldade em rastrear os apelidos das famílias mais pobres, como é possível fazer deduções sobre a mobilidade social no país desde 1700?As pessoas mais pobres tinham apelidos, mas eram patronímicos. Sven, filho de Anderson, era Sven Anderson, mas o seu filho Gunnar seria Gunnar Svenson. O que podemos fazer é usar estes apelidos terminados em –son como um grupo e compará-lo com os apelidos das famílias aristocratas ou dos licenciados. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas isso não faz com que só registemos a mobilidade social, ou falta dela, das elites da Suécia? Como podemos perceber o que aconteceu às famílias mais pobres?Efectivamente, o que examinámos na Suécia entre 1700 e 1900 foi principalmente a mobilidade descendente das elites – mas isso também nos ajuda a compreender a mobilidade ascendente das classes mais baixas. Os operários não conseguem subir na pirâmide social se as elites não mostrarem o movimento contrário. Quanto mais persistente for o estatuto da elite, mais persistente será o estatuto das classes inferiores. Já pensou em alargar o estudo ao continente africano?É muito difícil, porque a informação é muito escassa. Mas descobrimos uma curiosidade relativa a África, que é que nos Estados Unidos são as elites quem tem mais propensão para manter os seus apelidos de origem africana. Portanto, não parece haver algum tipo de conotação racial relativa ao estatuto social. Em Inglaterra, aliás, os apelidos africanos estão também muito presentes nas elites actuais. Isso tem a ver com a própria natureza das migrações e das políticas subjacentes, porque nos dias de hoje nos emigrantes de África para os Estados Unidos ou para a Inglaterra já encontramos enfermeiros, médicos e engenheiros. A educação superior é até muitas vezes o que lhes permite entrar nesses países. E nos Estados Unidos é possível discernir entre os apelidos africanos de origem inglesa, que eram os dos escravos, e os apelidos africanos recentes. O ex-Presidente Obama, por exemplo, é um homem de ascendência africana cujo pai emigrou para os Estados Unidos, e é uma pessoa que encaixa perfeitamente no perfil desse grupo, que tem efectivamente um estatuto social médio bastante elevado. A entrevista encontra-se publicada no P2, caderno de Domingo do PÚBLICO
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
O novo West Side Story na Broadway vai ser de Anne Teresa de Keersmaeker
Criadora belga junta-se ao encenador Ivo van Hove para uma nova abordagem ao "clássico" que é a coreografia original de Jerome Robbins para apresentar em 2019 em Nova Iorque. (...)

O novo West Side Story na Broadway vai ser de Anne Teresa de Keersmaeker
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.136
DATA: 2018-07-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: Criadora belga junta-se ao encenador Ivo van Hove para uma nova abordagem ao "clássico" que é a coreografia original de Jerome Robbins para apresentar em 2019 em Nova Iorque.
TEXTO: O regresso à Broadway de West Side Story, o emblemático musical de Leonard Bernstein e Stephen Sondheim, vai fazer-se pela mão de dois belgas, a coreógrafa Anne Teresa de Keersmaeker e o encenador Ivo van Hove. Só sobe a um palco ainda não identificado dentro de ano e meio, mas já é dado como certo que seja uma abordagem muito diferente da que Jerome Robbins eternizou na sua primeira encenação de 1957 e à qual as várias “revivals” desde então têm ido beber. Os Jets e os Sharks, Tony e Maria, avatares de Romeu e Julieta e Montéquios e Capuletos dos anos 1950 de Nova Iorque, voltam à Broadway em Dezembro de 2019, como anunciou o produtor Scott Rudin há uma semana. Será a primeira vez que De Keersmaeker e Van Hove colaboram. O retorno à morada dramatúrgica do Upper West Side foi uma ideia do próprio encenador e a mesma publicação regista que o seu propósito é descolar West Side Story da sua matriz coreográfica, que muito elogiam. Afinal, “é um clássico em si mesmo” e a coreográfica é outro “clássico”, diz a coreógrafa à Hollywood Reporter. Jerome Robbins estabeleceu uma base cheia de rua e Anne Teresa De Keersmaeker, que classifica este como o “projecto ideal” para a juntar a Ivo van Hove, quer explorar o lado físico com o “desafio de oferecer uma nova leitura”, sobre a qual, como é expectável, ainda pouco quer revelar. Mas garante: “Não temos qualquer intenção de fazer algo que é contra Jerome Robbins”, mas sim uma “versão alternativa”. “Queremos trazê-la para o século XXI”. Maria é de Porto Rico e um beijo com um americano fá-lo ver quão maravilhoso pode ser um som. Tony acaba de conhecer essa rapariga chamada Maria e o resto é história, de gangues, racismo, imigração - como canta Anita, a sua frustração por vezes fá-la desejar que a terra natal a que devota o coração se afunde no oceano - e amores desavindos, uma jazida que continua rica, explorada nos palcos em 1964, 1980 e 2009 na Broadway, e 2008 no West End. Na próxima temporada estará então no teatro e, quem sabe, terá concorrência cinematográfica – Steven Spielberg e Tony Kushner estão a trabalhar, ainda sem data, num remake da história de Arthur Laurents que Robert Wise e Robbins levaram ao cinema em 1961 para vencer o Óscar de Melhor Filme. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas para já, West Side Story será mesmo da Broadway e dos belgas. Uma coreógrafa que tem no seu trabalho uma forte pesquisa de relação entre corpo e música e que em 2012, ano em que foi Artista na Cidade de Lisboa, teve direito a retrospectiva em Portugal, e um encenador de origem flamenga que montou com David Bowie o seu canto de cisne teatral, o musical Lazarus, e já foi premiado por The Crucible, também na Broadway. Anne Teresa de Keersmaeker e Ivo van Hove vão começar as suas antestreias a 10 de Dezembro do próximo ano mas a estreia oficial está agendada para 6 de Fevereiro. A ideia é que “artistas de renome do presente tenham uma oportunidade de fazer algo de novo a partir das grandes obras do passado”, como disse Rudin à revista Hollywood Reporter. O trio Sondheim, Bernstein (1918-1990) e Robbins (1918–1998) está na origem de um dos clássicos do teatro, e também do cinema, do século XX e os primeiros – ou seus familiares – saudaram este regresso a West Side Story por uma nova equipa. Mas como assinalou o New York Times, nem a família nem a Fundação Jerome Robbins se pronunciaram ainda publicamente sobre este retorno e sua premissa “alternativa” do seu trabalho.
REFERÊNCIAS:
“Tenho de saber quem sou. E quem sou é uma coisa interminável”
Acabada de chegar do Rio de Janeiro, onde viveu quatro anos, Alexandra Lucas Coelho preparava-se para concluir o seu grande romance sobre o Brasil, Deus Dará, quando uma ideia obsessiva se lhe meteu no caminho: a história de uma mulher que quer matar um homem. (...)

“Tenho de saber quem sou. E quem sou é uma coisa interminável”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.12
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Acabada de chegar do Rio de Janeiro, onde viveu quatro anos, Alexandra Lucas Coelho preparava-se para concluir o seu grande romance sobre o Brasil, Deus Dará, quando uma ideia obsessiva se lhe meteu no caminho: a história de uma mulher que quer matar um homem.
TEXTO: Viajou pelo Médio Oriente, o Afeganistão e o México, viveu em Jerusalém e no Rio de Janeiro, e depois num minúsculo quintal no Alentejo. Escreveu quatro livros de viagem, um romance de amor, outro de fúria, está a meio de um terceiro, onde o pré-apocalipse no Brasil é contado numa língua imaginária, atlântica. É uma escritora que vem do futuro, a correr para o passado, em expansão por várias vidas, tão suas como a própria morte. Em movimento, de um lugar para o outro e da realidade para a ficção, embora não goste da palavra ficção, nem de verosimilhança. Prefere a verdade, mesmo inventada. Uma conversa com Alexandra Lucas Coelho. Assim nasceu, em dois meses, O Meu Amante de Domingo, publicado em Portugal pela Tinta da China e já com tradução prevista, pelo menos, em francês, pelo grupo editorial Éditions du Seuil. Falámos com Alexandra Lucas Coelho em Lisboa, ao chegar da Sérvia, depois de meses no Alentejo, e antes de partir de novo para o Brasil e Gaza. Porque não paras?Em primeiro lugar, porque posso. Não tenho filhos, nem ninguém que dependa de mim. E em segundo lugar porque quero. Sendo ateia e não acreditando noutra vida, sempre pensei que seria bom ter várias vidas nesta. Não quero encerrar-me numa possibilidade. Atrai-te a ideia de recomeço?Atrai-me a ideia de estar em movimento. Não necessariamente geográfico. Estar em movimento é um processo de expansão. Revejo-me muito na lógica do movimento antropofágico brasileiro, que vem dos índios. Comer o outro é uma forma de nos expandirmos. Por isso sempre me afligiu todo o processo que nos tenta reduzir, que nos tenta encaixar. Sempre vivi muito contra todos esses mecanismos que a sociedade naturalmente tenta impor aos indivíduos. Quando sentes que a missão está cumprida, partes para outro projecto. Não é estratégico, é muito pulsional. Porque não estou a tentar chegar a lado nenhum. Não me interessa o desfecho, mas o processo. Tenho horror a essa ideia, da sociedade capitalista, de que se vai ascendendo. Tenho horror à ideia de carreira. O poder nunca me interessou. Interessa-me a expansão. Das minhas possibilidades. Lendo o que escreves, percebe-se que as viagens e os acontecimentos não se sucedem por acaso, mas de acordo com uma lógica, como se uma coisa levasse a outra. É um mapa que vou construindo. Não vejo isto como uma sequência errática, talvez porque sempre soube exactamente o que queria fazer. Queria sair para o mundo e escrever. Isso determinou toda a forma como eu vivi. São duas pulsões tão fortes, que organizam tudo o resto. Nunca me senti perdida. O jornalismo foi uma etapa nesse percurso?O jornalismo foi uma forma de fazer isso, que agora se prolonga nos livros. Para mim, não se trata de uma interrupção. Mas implica um olhar diferente sobre as coisas e os lugares?Sim, mas porque se exige aos jornalistas que sejam diferentes das outras pessoas? Todos os escritores escrevem com tudo aquilo que são. O seu passado, a sua história. Mas as pessoas acham estranho que os jornalistas ponham no que escrevem algo da sua experiência jornalística. Porque se há-de estranhar que eu escreva sobre Gaza, se Gaza faz parte da minha vida, da minha biografia?Essas experiências passam agora por um processo de transfiguração?Para mim, o que sempre distinguiu o jornalismo da literatura é a liberdade. O jornalismo tem uma série de regras. O que se passa agora é que não tenho de obedecer a regra nenhuma. Estive recentemente, para escrever um conto, com total liberdade, nos Balcãs, uma zona que tinha visitado como repórter. Usei algumas técnicas da reportagem, como a forma como me oriento nos lugares, como procuro as pessoas. Mas depois não conversei com elas como se estivesse a fazer uma reportagem. Não estavas tão preocupada em recolher informações factuais?O texto que escrevi é a fusão que me interessa fazer. Tem elementos totalmente inventados, personagens que não existem, tem personagens do meu passado pessoal, alterados e misturados com a história, tem elementos da minha vida como repórter, e tem personagens reais. Isso tudo misturado chama-se ficção. Não gosto da palavra ficção, porque é demasiado redutora. Prefiro dizer: isto é um texto inteiramente livre, onde posso usar os elementos que me apetecer. Neste caso é um conto, podia ser um romance. A fronteira é sempre a liberdade. E o pacto que eu estabeleço com o leitor é esse. Nunca se percebe muito bem o que é da minha história e o que não é. Mas trata-se sempre de um trabalho de autobiografia. É o ponto de confluência em que a biografia se cruza com o lugar e se cruza com a História. Na reportagem, o elemento autobiográfico é muito reduzido, existe apenas no nosso olhar. Como leitor, a minha impressão é de que no anterior romance, E a Noite Roda, há uma ligação com a realidade evidente, e neste último, O Meu Amante de Domingo, a ligação é mais apagada. Este é o momento da transição para uma nova fase?Não vejo isso como uma transição. É um processo, em que certos elementos podem estar mais ou menos presentes. Os livros interligam-se. Eu estava a escrever um sobre o Brasil, mas ele resistia. Até que tive a ideia de escrever uma novela de sacanagem, em que uma mulher ia ter vários amantes, porque queria matar um homem. Isto começou a incrustar-se de tal forma, que telefonei à minha editora e disse: vou parar o romance e escrever outra coisa. O romance do Brasil tinha 200 páginas escritas, e tenciono escrever mais 200 ou 300. Vai ser parcialmente anterior a este e parcialmente posterior. E há uma ligação entre os dois. Eu queria na verdade construir uma ligação entre todos. Uma continuidade?Em O Meu Amante de Domingo a narradora corresponde-se com uma portuguesa que está a fazer pesquisa no Rio de Janeiro e que é amiga de um músico brasileiro de ascendência sírio-libanesa, que tinha decidido ir montar um centro cultural na Síria, o Karim. É o mesmo Karim que, em E a Noite Roda, é o anfitrião da narradora, quando ela se instala em Damasco, na casa de um brasileiro. No romance do Brasil, ele teria voltado, por causa da guerra. Dois irmãos dele são protagonistas do livro, e a sua casa no Rio de Janeiro é o centro do livro. Esse Karim tem alguma relação com a realidade?É totalmente inventado. Como nasceu O Meu Amante de Domingo?Nasceu da circunstância de eu estar numa casa, no meio do Alentejo, que era uma cozinha que se prolongava num quintal cercado por um muro. Vinha do Rio de Janeiro, uma cidade onde tudo me puxa para fora, para um lugar onde tudo me puxa para dentro. Este livro resultou disso. E do impacto, e da fúria que se foi gerando com a minha chegada a Portugal. A forma como a narradora fala reflecte esse estado de espírito?Algumas pessoas disseram que esta mulher tem uma linguagem desbragada, que significa que ela não domina aquilo que quer dizer. Ora eu acho que ela domina o que quer dizer. Por isso usa aquela linguagem. Acho que se fosse um homem ninguém diria que usa uma linguagem desbragada. Uma coisa são as consequências que teve, outra é a tua motivação. Sim, quero falar da minha motivação. No sexo confluem algumas das coisas mais poderosas sobre as quais alguém pode querer escrever. Tudo se projecta ali de alguma maneira. A vida e a morte, o espectro todo entre o prazer e a dor, todas as cambiantes de fracasso, dominação, violência, amor, entrega, recusa, medo, todos os fantasmas que se podem projectar. O sexo tem um poder metafórico enorme. E o uso de palavrões, habitual no Porto, refere-se a um universo alegórico em que todas as circunstancias da vida são traduzidas para situações sexuais, que significam relações de poder. Esta mulher usa palavrões porque é uma mulher do norte e é uma mulher em estado de fúria. Os palavrões estão ligados à fúria?Estão ligados à fúria e à pulsão de matar que atravessa o livro. De vingança. Matar, mas como pulsão de revolta. E de vitalidade. Porque é disso que se trata. Todo o processo deste livro é um processo de como ficar vivo. É uma mulher de 50 anos que quer matar, como forma de se manter forte, de sobreviver ao que lhe está a acontecer. Nisso, ela é mais do que si própria?Interessou-me criar uma narradora ligeiramente mais velha do que eu, mas na mesma faixa etária. Estas mulheres fazem parte da minha vida. A minha vida também é isto. E eu quero escrever sobre aquilo que está à minha volta, que me move e me motiva. Acho normal que tendo eu 47 anos queira escrever sobre esse facto. Temeste que isso não fosse compreendido?A 30 de Setembro acabei de escrever o livro e enviei-o para a Tinta da China. Mas mal o mandei decidi que não queria publicá-lo. Porquê?Estava exausta. Foi um processo fisicamente tão violento, eu trabalhei 12 horas por dia, li o texto vezes sem conta, eu já não podia com esta mulher. Só pensava: está péssimo e eu não o vou publicar. Foi violento fazer emergir isto tudo. Mesmo os diálogos. Para mim, a zona mais violenta do livro é o diálogo dela com o futuro Nobel. Eu nunca tinha escrito diálogos assim. Não sei muito bem de onde é que estas coisas vêm. De onde vem essa energia?A maior parte desse diálogo foi escrito logo exactamente assim. Saí de casa para ir fazer ginástica, veio-me uma frase à cabeça, voltei para o computador e escrevi 5 mil caracteres. Escrita automatica. Sim. Quase não trabalhei esse texto. A crítica foi positiva. Esses diálogos funcionaram, as pessoas identificaram-se. A questão do sexo foi pouco abordada pela crítica. Como se houvesse uma espécie de desconforto ou pudor. Por ser uma mulher a falar de sexo, com palavrões?Talvez o uso da expressão linguagem desbragada tenha a ver com isso. Uma mulher é suposto ser contida. Mas esta personagem representa uma mulher desobediente. Claro, não aceita esse lugar. E eu sinto que, ao contrário do que me aconteceu como repórter, em que não tenho memória de ter sido preterida ou tratada de forma incorrecta por ser mulher… Pelo contrário, em algumas situações isso foi até uma vantagem, nalgumas zonas do mundo, como por exemplo o Afeganistão, ao contrário do que possa parecer. Nunca tive nenhum director que me dissesse, não podes ir para a guerra do Iraque porque és mulher. Como escritora está a ser diferente?É uma conjugação de duas coisas: eu ter um percurso de quase 30 anos como jornalista, e ser mulher. A conjugação destas duas coisas permitiu por exemplo que o senhor secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, na entrega do prémio APE, depois de ter feito na cerimónia declarações que confundem o Estado com o Governo, etc, me ter dito à parte que o meu discurso era primário. Não acredito que ele o fizesse se eu fosse um homem e não fosse jornalista. Porquê?Acho que ele o fez com o menosprezo de quem não leva a sério a pessoa que tem à sua frente, por eu ser uma repórter que começou há pouco tempo a publicar romances, e por eu ser mulher. A conjugação destas duas coisas faz com que, na hierarquia que imagino que presida ao comportamento do senhor secretário de Estado, ele me tenha tratado daquela forma. Não acredito que o tivesse feito com Mário de Carvalho, ou Lobo Antunes, se algum deles tivesse proferido um discurso crítico em relação ao Governo, ou ao Presidente da República, como eu fiz. Ele chegou ali, disse aquela série de disparates inacreditáveis, que noutras condições poderiam ter levado muito boa gente a questionar como é que um secretário de estado confunde Estado com governo, e afirma que um escritor que recebe um prémio de uma associação que também tem um fundo do Estado, deveria mostrar-se agradecido àquele Governo. A gravidade disto é extrema. É esse sentimento que está neste livro? A forma como sentes que as mulheres são tratadas, como o país é tratado. Esta fúria também é essa?Também é essa. Aquilo que aconteceu na cerimónia do prémio da APE esteve no meu espírito certamente quando escrevi este livro. O comportamento daquele governante, a sobranceria, o disparate, a arrogância daquele comportamento, e a falta de consequência pública e política daquele comportamento. E se eu quiser interpretar isso de uma forma lata percebo que aconteceu comigo porque mil outras coisas mais graves estavam a acontecer em Portugal. E não há espaço para noticiar tudo. O quadro era tão grave, que isto não era suficientemente grave para ter sido um caso. Há 10 anos teria sido impossível esta história não ter sido tratada por nenhum jornal. Mas nessa altura a situação do país não era o que é hoje, nem os jornalistas ganhavam o que ganham, nem tinham para fazer o que hoje têm. Hoje, quem está nas redacções trabalha 12 horas por dia e ganha 600 euros por mês, quando ganha. Também está no livro esse sentimento de injustiça e de impotência? As pessoas não se revoltarem, a passividade?A passividade, claro. Este episódio lamentável do prémio da APE aconteceu no dia 11 de Abril. Eu voltei do Brasil em Março. A cronologia é esta. Vinha de uma cidade como o Rio de Janeiro, e de repente estava ali num quintal com pouco mais de um metro quadrado, com um muro à volta. E a ver o que é hoje uma pequena cidade alentejana. Como o silêncio que eu lá buscava corresponde à desertificação de quem sempre foi dali e tem de ir para fora para arranjar trabalho. O fracasso que representa. O livro é o resultado de tudo isso. Mas há no livro uma certa proposta de redenção. Onde vês isso?Na revolta desta mulher. Não é necessariamente uma redenção. O que esta mulher diz é: eu fico viva. Eu posso dizer que não. E quero morrer. Há uma frase neste último filme de Godard, que creio que vem da Antígona - “Estou aqui para dizer ‘Não’ e para morrer”. A afirmação da vida passa por isso, por ter direito à nossa própria morte. Isto é muito importante para mim, que não sou crente. Se não vou delegar nada num deus, tenho de acreditar que a responsabilidade é toda minha, a força é minha, eu sou comandante de mim própria. Por isso me aborrece tanto que alguém me tente arrumar numa gaveta, me diga: tu és repórter, deixa-te estar aí quietinha. Ninguém me vem dizer que eu tenho de ficar ali quietinha. Porque desde criança que ninguém me vem dizer isso. É uma coisa vital para mim. Não me venham dizer para ficar ali quietinha, porque eu não vou ficar ali quietinha. Tens um problema com a autoridade. Exactamente, tenho um problema com a autoridade. Não quero mandar em ninguém, e não quero que ninguém mande em mim. Esta personagem parece representar uma revolta contra a autoridade. A própria ideia de vingança significa afirmação da sua vontade. Tenho horror à ideia de ficar no lugar. Como assim, tens de ficar no teu lugar? Eu tenho é de saber quem sou. E quem eu sou é uma coisa interminável. O poder sobre mim própria deve ser absoluto. É o único poder que me interessa. E isso está em causa?Está em causa permanentemente. Está em causa perante a Segurança Social, que me penhora a conta bancária sem me perguntar nada, perante o meu banco, perante os patrões com quem as pessoas têm de lidar ao longo da vida, todos os sistemas hierárquicos, todas as tentativas de dominação, as nossas relações, tudo. Mas ninguém é totalmente autónomo. Não, ninguém é. É uma luta constante, contra não só tudo aquilo que me tenta fragilizar exteriormente, seja o Estado, seja a polícia, sejam as autoridades, mas também em relação às minhas próprias vulnerabilidades e fraquezas. É um duelo constante. Mas é possível vencer. Sim, é possível. Quando eu achar que não é possível, dou um tiro na cabeça. E eu quero ter o direito de dar um tiro na cabeça. Em última análise, a morte é nossa. A morte é nossa. A vida é minha e a morte é minha. Sempre que te atiram para um lugar de vazio, te tentam reduzir, ao teu lugar, ao teu papel, ao teu caminho, tudo isso são pequenas mortes. Mas depois é preciso construir um colectivo, uma comunidade, porque vivemos todos juntos. Uma ideia de política. Este livro é político porque contém uma afirmação de força, de não-submissão. Há a responsabilidade de tentar construir alguma coisa. Sim, como se articula a liberdade do indivíduo, essa autonomia que eu defendo, com outra coisa em que também acredito - a dádiva que temos de ter em relação aos outros, porque vivemos com os outros. Eu não sou uma eremita. Quando foste para o Brasil, levavas uma grande expectativa em relação à força e entusiasmo colectivo daquele país. Depois houve uma desilusão?Não houve nenhuma desilusão. Apenas um processo de conhecer melhor o país onde estava. Primeiro há o impacto brutal daquela natureza. Aquilo tudo atravessa-nos. E a minha atitude era essa: eu queria deixar-me trespassar. A língua, a natureza, aquela energia. Eu queria sofrer o impacto de tudo aquilo. Fisicamente e não só. E queria ver o efeito que isso teria em mim. Para onde me atiraria. O que resultaria do meu encontro com aquele lugar. Sempre senti que foi uma grande sorte eu ter ido para o Brasil depois dos 40 anos. Não fui directamente, saí de Portugal, dei uma volta ao mundo e fui para o Brasil. E isso libertou-me daquela atitude dos portugueses que oscila entre a subserviência e a arrogância. O problema clássico da relação do ex-colonizador com o ex-colonizado. Exactamente. Ou fica todo o tempo a pedir desculpa, ou mantém uma postura sobranceira. Ter corrido o mundo libertou-te disso, por teres conhecido outras ex-colónias?Sim, eu andei a cobrir o colonialismo dos outros. Isso libertou-me para enfrentar a minha própria história. Para ser dura, ou irónica, quando tiver de ser. O Brasil foi absolutamente libertador para mim. Acho que não teria escrito O Meu Amante de Domingo se não tivesse vivido no Brasil. Libertou-te de que forma?A vida pode ser tão dura no Brasil… Claro que pode ser muito dura em muitos lugares do mundo, mas em talvez nenhum outro lugar eu tenha sentido como a vida pode ser dura, mesmo assim, haver alegria. E como essa alegria triunfa o tempo todo sobre a tristeza. A alegria no Brasil é o resultado de quem conheceu o fundo do fundo. É uma alegria que vem da tristeza, que a venceu. Por isso é uma alegria libertadora?Sim, eu passei a estar-me nas tintas para o que as pessoas achassem. Foi mais fácil começar a dizer “Eu”. E projectou-me para a nossa própria História, deu-me uma dimensão dessa História muito diferente, como uma outra possibilidade. Fez-te olhar a identidade portuguesa de forma diferente?Fez-me ver, como nunca, como a identidade está em movimento. E como ela é constantemente alterada. Isto é uma ideia que eu trouxe do México, na verdade. O México foi uma viagem decisiva para mim. É o México que me ajuda a decidir ir para o Brasil. Porquê?Esse encontro do colonizador com o Novo Mundo, com o índio, aquilo a Le Clezio chama o encontro do ouro com a magia. Foi uma viagem absolutamente mágica na minha vida. Foi nesse momento, em Maio de 2010, que eu decidi ir para o Brasil. Porque queria esse encontro, mas transportado para a nossa própria História, não a dos espanhóis. Não tinhas sentido isso noutras viagens, por exemplo no Médio Oriente?Não de uma forma tão física, tão carnal. O corpo no Médio Oriente não existe da mesma maneira. No México eu tive essa sensação. É como se, a certa altura, eu entregasse o próprio corpo. Deixo o meu corpo ali, seja o que for. No Brasil isso concretizou-se de uma forma muito poderosa. Isso devia-se apenas à surpresa que o Brasil foi para ti, ou também à mudança que o próprio Brasil experimentava?É a confluência de todas essas coisas, daquilo que eu trazia, do que aconteceu, do impacto que aquele território teve na minha biografia e na nossa História de portugueses. Nas crónicas via-se que estavas muito atenta ao que mudava no Brasil. Foi isso que eu achei quase mágico. Eu cheguei ao Brasil em 2010, numa altura em que o país se encontrava numa espécie de pujança todopoderosa. Os preços dispararam, tudo entrou numa loucura de consumo brutal. Uma euforia total. Simultaneamente eu estava a aterrar naquilo que podia ser uma terceira via do mundo (quando cheguei à praça Tahrir, no Cairo, os miúdos falavam-me do Lula). O Brasil parecia ser essa possibilidade de uma terceira via, entre os capitalismo e o socialismo, uma espécie de lugar novo que se podia construir à esquerda, mas na verdade eu aterrei numa das sociedades mais capitalistas do mundo. Aquilo era o auge de um capitalismo. Aquele capitalismo. Mas não deixava de ser desenvolvimento. Aqueles 40 milhões que emergiram da pobreza emergiram à custa de um brutal incentivo ao consumo, que depois não se reflectia em avanços na Educação, Saúde, etc. Nesse momento eu senti que havia uma atmosfera pré-apocalíptica. Para ti isso foi uma possibilidade de utopia que falhou?Tornou-se um prisma para ler o mundo. Simultaneamente, o Brasil está completamente voltado para dentro, e é um lugar à parte do mundo. Quem está lá não tem relação nenhuma, leitura nenhuma. Foi muito surpreendente perceber como o Rio de Janeiro, sendo uma cidade gigantesca, é tão provinciana. O Brasil é completamente autónomo, é como se fosse um grande quintal à parte do mundo. Isso é muito exaltante e ao mesmo tempo desesperante. Mas uma das coisas boas do Brasil é que nos rimos daquilo tudo, toda a gente se ri junta. Riem de si próprios. Sim, e isso também é uma boa aprendizagem. Talvez eu tenha perdido aí algum dramatismo. É a ausência de culpa?Sim, eu acho que o Brasil tem um efeito psicanalítico muito interessante na nossa mentalidade de portugueses. Eu, que tenho uma costela bastante melancólica e ansiosa, acho que o Brasil teve um grande efeito terapêutico. O que queres dizer com ver o mundo através do prisma Brasil?Por um lado havia uma autonomia quase infantil, que é fascinante para quem chega. Mas de repente fica-se naquela coisa que é o mundo-Brasil. Deus é brasileiro, há apenas o Brasil e o Universo. À medida que o tempo passa e tudo sedimenta, eu passei a olhar o mundo através do Brasil. Foi aí que eu comecei a sentir aquele clima pré-apocalíptico. O Brasil poderá ser precursor de algumas coisas que vão acontecer a nível global?Não é ser precursor, é uma coisa mais subterrânea. É mais ser antecessor. É como uma lupa. O Brasil deu-me chaves para eu conseguir olhar para determinadas realidades. A viagem que fiz à Amazónia teve para mim esse efeito muito decisivo. É impossível voltar da Amazónia e continuar a olhar para o mundo da mesma forma. O Eduardo Viveros de Castro, um antropólogo muito importante para mim, tem uma visão de fim do mundo próximo. De falência total do planeta. Estamos a correr para isso. O que se vê com essa lupa é o fim do capitalismo?A única coisa que posso dizer é que há um clima pré-apocalíptico e que isso vem da consciência da relação da Natureza com os homens. O Rio é uma cidade completamente à mercê da Natureza. A casa onde eu morava ficava no Cosme Velho, um bairro que na verdade está no meio da Tijuca, a maior floresta urbana do mundo. No jardim da minha casa havia macacos maiores do que eu, apareceu uma cobra na casa de banho, havia tucanos, árvores gigantescas, quando cai chuva é como se se abatesse uma catarata sobre nós. Temos a sensação de que a selva a todo o momento nos vai engolir, e que estamos a lutar com ela, mas somos ínfimos, porque tudo aquilo é muito mais forte, aquelas raízes, aquelas frutas, aquelas folhas, aquelas cores, aqueles cheiros, aqueles sons. Tudo aquilo é mais forte do que nós. Eu não vivia num apartamento num 5º andar no Leblon, protegido por grades. Eu estava no meio da floresta. Essa sensação de vulnerabilidade estende-se também à organização colectiva, ao sistema político?Sim, o absurdo que é estarmos a pensar que controlamos alguma coisa. Quando vemos as extensões gigantescas de terra que são ocupadas por plantações na Amazónia, os erros gigantescos que estão a ser cometidos…Por outro lado há o facto de 40 milhões de pessoas terem saído da pobreza, nos últimos anos. Esse clima de pré-apocalipse não será relativo? Não depende da perspectiva em que nos colocamos?Claro, as coisas não são preto e branco. Mas os perigos para o planeta não têm nada de relativo. Estamos a falar de coisas bastante objectivas. Para quem tinha fome era um pouco indiferente os perigos para o planeta. Uma forma pessimista de olhar para isto é: com o incentivo ao consumo, a esquerda, ao elevar 40 milhões da pobreza, neutralizou a revolta desses 40 milhões. Que pensarão essas pessoas se alguém lhes for dizer que foi um erro melhorar as suas condições de vida, porque agora perderam a vontade de se revoltarem?Não estou a fazer juízos. As coisas são assim. De facto houve 40 milhões de pessoas que sairam da pobreza, e isso é bom, ponto final. Não tem ‘mas’. Por outro lado, estamos a falar de um país com problemas terríveis de racismo, abusos policiais, violência extrema, onde 70 por cento dos jovens mortos são negros. Um país onde há uma guerra urbana, entre a polícia e os morros, e onde uma esmagadora maioria da população continua a ser sujeita ao que foram séculos de colonialismo, escravatura, repressão racial, ditadura. Tudo isso existe na vida do Brasil de hoje. E tudo isso se tornou pesado para ti pessoalmente? Foi por isso que regressaste?Não, o meu regresso deveu-se, antes de mais, à impossibilidade de viver lá, porque é demasiado caro. A partir do momento em que eu decidi viver com pouco dinheiro e escrever livros, que foi a decisão que eu tomei ao sair da redacção do Público, passou a ser impossível viver no Rio, que se tornou obscenamente caro. Terias ficado, se não fossem os motivos económicos?Talvez. Eu olho para o meu tempo no Brasil sem qualquer mágoa, e é maravilhoso poder voltar. Muitas pessoas importantes para mim estão lá. O Brasil foi, e continua a ser, parte da minha vida. Mas uma coisa que eu senti nos últimos meses que morei no Brasil, é que estava a tornar-se difícil escrever o livro lá. É muito difícil estar lá a viver e a escrever ao mesmo tempo sobre a cidade. Isso foi uma das razões que me fizeram pensar: agora preciso de me afastar. O livro é sobre o Brasil, ou é apenas passado lá?O livro passa-se todo no Rio de Janeiro. Chama-se Deus Dará, tem sete protagonistas, muito diferentes uns dos outros. Um deles é o Karim. Passa-se em sete dias seguidos da semana, embora de anos diferentes, de 2012 a 2014. A acção vai alternando entre eles, em vários pontos da cidade, que é no fundo a principal personagem. Dois dos protagonistas são portugueses. O livro começou a ser escrito antes das manifestações rebentarem no Brasil, e eu alterei-o muito por causa disso. É atravessado por um clima de pré-apocalipse. É escrito a pensar em leitores portugueses ou brasileiros?Não penso nisso. O livro tem várias linguagens. É também uma tentativa de trabalhar o português em várias zonas. Há personagens portuguesas e brasileiras, e há o narrador. A narração é feita na terceira pessoa. Os vários protagonistas têm vários sotaques, porque uns são da favela, outros da burguesia. Mas isto não pretende ser o romance de uma carioca, que eu não sou. Há-de ser exactamente aquilo que é: o romance de uma portuguesa que viveu no Rio de Janeiro, e que está a escrever um livro, com um narrador e sete personagens. Mas de uma portuguesa que se tenta aproximar o mais possível. Nas crónicas que escreveste para o PÚBLICO desde que foste para o Brasil usaste formas de português do Brasil, o que não é comum. Há algum statement nessa opção?Ainda hoje escrevi “autocarro”, porque estava a falar da Serra da Estrela. Se estou a falar do Rio de Janeiro, escrevo “Ônibus”, porque isso permite ver o autocarro no Rio de Janeiro. É uma forma de o transportar para lá. Eu encarei as crónicas como uma possibilidade de experiência da minha própria relação com a língua. Mas o facto de passares a escrever à brasileira…Eu não passei a escrever à brasileira. Escrevia naturalmente. Era uma tentativa de pensar aquilo que eu incorporei naturalmente. O vestígio, a marca que ficou naturalmente na minha língua. Isso ultrapassa a dimensão da língua, significa que também alargamos a nossa identidade? E que devemos abraçar isso?Óbvio. Pois se temos essa possibilidade. Como fala o narrador do teu livro?Escreve num híbrido, que não é uma coisa nem outra. É a fala de um português que foi para o Brasil?Não, o narrador não é português. É um misto, entre uma coisa e outra?É um narrador masculino, mas não é claro o que ele é. Ele diz que escreve numa espécie de língua atlântica. Na verdade aquilo é a língua que eu ouço na minha cabeça. É a língua portuguesa no melhor das suas possibilidades?O narrador escreve exactamente como lhe apetece. Tem essa liberdade. É o verdadeiro narrador omnisciente. E o Karim? Nasceu antes ou depois de teres ido viver para o Brasil?Não sei. Ele nasceu em E a Noite Roda, mas quando comecei a pensar no Deus Dará decidi logo que ele seria um dos protagonistas. E a Noite Roda foi começado em Portugal, mas terminado no Brasil. Eu queria escrever um romance que acontecesse no Rio, porque queria tratar a experiência de lá ter vivido quatro anos. Como o Karim era uma personagem carioca, construí o romance a partir dele. Mas quando comecei a escrever E a Noite Roda eu já sabia que ia para o Brasil. A criação do Karim está associada à ideia de que eu ia para o Brasil, embora eu ainda não morasse lá. E vais conseguir escrever sobre o Rio não estando lá?Na verdade, tudo o que escrevi deste livro, escrevi-o em 40 dias que estive isolada na casa de uma amiga, em Minas Gerais. Escrevi pouquíssimo no Rio. Procuras o silêncio para trabalhar, mas não aguentas mais de dois meses, e procuras de novo o ruído, onde as coisas acontecem, depois de novo o silêncio para escrever sobre elas. Sim, eu funciono por imersões. Foi assim com os romances que escrevi até agora. De repente fechava-me durante três semanas e escrevia intensamente. Mas agora será uma experiência diferente, porque a imersão passa a ser um continuum. Não sei bem como vou gerir isso. O método das imersões funciona para um repórter, que se recolhe de vez em quando para escrever. Para um escritor é difícil escrever intensamente e continuar a viver intensamente. A imersão funciona bem em períodos curtos. Quando começa a ser muito longa, a vida não pode ficar congelada. É preciso misturar a vida nisso. O que queres fazer a partir de agora?Tenho vários livros na cabeça. Depois deste, sobre o Rio de Janeiro, que quero publicar no Outono, vou escrever uma peça de teatro sobre a Síria. Depois um romance passado nos anos 80, sobre a minha adolescência nos Olivais. Será também uma fantasia musical, porque é contado através da música que eu ouvi nos anos 80. Haverá outro romance que tem a ver com a minha infância, os meus avós paternos e a minha relação com a Serra das Estrela e as Penhas Douradas. Será mais interior ainda e mais para trás ainda. Isto é um processo da frente para trás. Porque vais nessa direcção?Isto relaciona-se com a minha convicção de que tudo é biografia. Vamos entrando na biografia cada vez mais. Mas não é linear. Antes disso ainda haverá um romance sobre Gaza. E uma espécie de documentário em livro sobre os imigrantes portugueses no Brasil, embora para isso eu precisasse de um apoio. O que não me vejo mais a escrever é livros de viagens. Já não faz sentido para mim. Mas a realidade está sempre presente em tudo o que escreves. Isso continuará a ser uma marca?Nenhum destes livros, mesmo o da minha infância, que vai atravessar o Estado Novo, pode deixar de ter um elo contemporâneo. Terão sempre um laço com o presente. Não serão romances históricos. Porquê?Porque eu não busco a verosimilhança, mas a verdade. Não me interessa criar um artifício, uma ilusão, uma verosimilhança. Por isso não gosto da palavra “ficção”. Não estou a ver-me a criar ali uma bolha, nos anos 80, sem haver este arco que instale a distância e crie a perspectiva. Se a distância existe em mim, eu quero que essa distância esteja lá também. Porque eu quero lidar com isso mesmo, com o meu olhar sobre essa distância. Eu escrevo sobre os outros e com os outros, mas em última análise escrevo sobre mim. No sentido em que não posso ter a arrogância de escrever sobre mais ninguém. Veja o programa de Minha Língua, Minha Pátria, evento que vai reunir escritores portugueses e brasileiros em São Paulo
REFERÊNCIAS: