Espanha vai propor à ONU um tribunal especial para crimes de terrorismo
Chefes da diplomacia de uma e da outra margem do Mediterrâneo estiveram pela primeira vez juntos desde 2008. “As-salamu alaykum”, disse a representante europeia da Política Externa. (...)

Espanha vai propor à ONU um tribunal especial para crimes de terrorismo
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.357
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Chefes da diplomacia de uma e da outra margem do Mediterrâneo estiveram pela primeira vez juntos desde 2008. “As-salamu alaykum”, disse a representante europeia da Política Externa.
TEXTO: A Espanha quer que as Nações Unidas criem um tribunal internacional especializado em crimes de terrorismo – um papel que poderia ser cumprido pelo Tribunal Penal Internacional não fosse o caso de “vários países importantes não aceitarem esta jurisdição”, incluindo os Estados Unidos, a China ou Israel. A ideia foi apresentada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros de Madrid, José Manuel García Margallo, à margem de um encontro que juntou em Barcelona representantes de quase 40 países para discutir o jihadismo e a imigração. “É preciso um tribunal que seja aceitável e aceite por todos”, defendeu Margallo, num momento em que vários países da União Europeia (incluindo Portugal) aprovam novas leis de combate ao terrorismo, tendo em conta a quantidade de jovens europeus a caminho da jihad e na sequência dos atentados de Paris, em Janeiro, Copenhaga, em Fevereiro, ou Tunes, em Março. Entre 5000 e 6000 voluntários europeus partiram para a Síria, disse a comissária europeia da Justiça, Vera Jourova, numa entrevista publicada esta segunda-feira pelo jornal francês Le Figaro. Jourova diz temer que estes valores “estejam altamente subestimados”. “Assistimos a um crescimento do radicalismo junto dos nossos jovens que são cada vez numerosos na adesão ao apelo jihadista a norte e a sul do Mediterrâneo”, afirmou em Barcelona a Alta Representante da UE para a Política Externa, Federica Mogherini. “Os terroristas são um desafio para todos nós. E o mundo muçulmano é uma vítima como todas as outras”, disse o anfitrião deste encontro dedicado à Política Europeia de Vizinhança, o primeiro-ministro Mariano Rajoy. “Que ninguém se deixe enganar pela mentira dos que nos falam de uma luta do islão contra o Ocidente. ”“A mensagem que os europeus devem aprender para começar a restaurar um conhecimento intercultural importante para a prevenção de um conflito entre a Europa e o Oriente, declarou Mogherini, depois de desejar um “as-salamu alaykum” (“que a paz esteja convosco”) aos países do Sul. Mogherini apelou a um reforço da cooperação, já que “todos se confrontam com uma situação frágil provocada por vários conflitos armados, nomeadamente na Síria e na Líbia”. Ora estes foram os dois grandes ausentes da cimeira. Bashar al-Assad deixou há muito de ser reconhecido como líder legítimo dos sírios, enquanto a Líbia tem dois governos rivais e é hoje cenário de vários conflitos que opõem milícias ou grupos que se dizem aliados da Al-Qaeda ou do autoproclamado Estado Islâmico. Vinte anos depois do lançamento do chamado Processo de Barcelona, que visava uma maior democratização e desenvolvimento económico nos países da margem Sul, e sete anos depois da iniciativa União para o Mediterrâneo, lançada pelo então Presidente francês, Nicolas Sarkozy, há um entendimento geral de que estes processos falharam na concretização dos seus maiores objectivos e de que a política europeia para o Sul está desactualizada. O encontro de Barcelona, onde estiveram enviados da Argélia, Marrocos, Tunísia, Líbano, Israel, Jordânia, Egipto e Autoridade Palestiniana, serviu também para começar a debater uma reforma mais profunda desta política, já exposta num documento especialmente crítico, publicado no início de Março pela Comissão Europeia, e promovido por Mogherini e pelo comissário para a Política de Vizinhança, Johannes Hahn. O texto, revela o jornal espanhol El País, centra-se na ideia que a UE não pode tratar os vizinhos como um bloco homogéneo de nações e deveria ter uma abordagem mais pragmática, tendo em conta as particularidades e aspirações de cada um. Um dos pontos potencialmente controversos na margem Norte é aquele que questiona o princípio de condicionalidade, que hoje faz (em princípio) depender a colaboração europeia dos progressos democráticos alcançados por cada país.
REFERÊNCIAS:
Entidades UE
Trump começa a desmantelar a ordem comercial global
Presidente dos EUA rompeu a parceria com os países da Ásia e do Pacífico (TPP) e anunciou intenção de renegociar o tratado assinado por Bill Clinton com o México e o Canadá (NAFTA). (...)

Trump começa a desmantelar a ordem comercial global
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-11-15 | Jornal Público
SUMÁRIO: Presidente dos EUA rompeu a parceria com os países da Ásia e do Pacífico (TPP) e anunciou intenção de renegociar o tratado assinado por Bill Clinton com o México e o Canadá (NAFTA).
TEXTO: Os acordos de livre comércio negociados pelos Estados Unidos com os seus parceiros do Pacífico, e com os vizinhos da América do Norte, já começaram a ser desfeitos por acção administrativa do Presidente Donald Trump, que cumpre assim a sua promessa de começar a desmantelar a ordem económica mundial e reescrever a política de alianças do país logo no seu primeiro dia de trabalho na Casa Branca. O Presidente cumpriu com a palavra dada aos seus eleitores, ao assinar uma série de decretos (são directivas administrativas e não leis) que provam que a sua deriva proteccionista não é só retórica e que as suas credenciais conservadoras não foram descartadas depois da eleição. A sua decisão mais importante foi a que formalmente retira os EUA do acordo transpacífico de comércio livre – a primeira vítima oficial da guerra comercial que o Presidente norte-americano antecipou ao longo da campanha. Trump assinou ainda duas directivas que agradarão à sua base de apoio populista e conservadora: um decreto que congela todas as contratações no Governo federal excepto no Exército, e outro que restabelece a chamada “política da Cidade do México”, que proíbe o uso das verbas destinadas à ajuda internacional para o financiamento de ONG estrangeiras que facilitem abortos. Essa é uma medida que é aplicada por todos os Presidentes republicanos desde Ronald Reagan, e descartada pelos democratas. Ninguém esperava que Donald Trump conseguisse levar a cabo as 18 medidas prometidas, num discurso de campanha em Gettysburg, para o primeiro dia em que se sentasse na Sala Oval – e que passavam pela revogação das medidas administrativas de Obama da imigração às alterações climáticas ou à demarcação de zonas livres de armas em escolas ou bases militares. Mas também não se aguardava que antes de lançar formalmente a sua ofensiva contra os tratados internacionais de livre comércio viesse declarar uma guerra aos media ou anunciar planos militares para derrotar o Daesh – há sempre uma componente de surpresa e improviso com Donald Trump. Além das implicações económicas e financeiras, as suas primeiras directivas terão profundas consequências em termos da política externa norte-americana e das relações internacionais a nível global. Por exemplo, se não é possível quantificar o efeito da rejeição do pacto comercial transpacífico, que nunca entrou em vigor, é fácil de antecipar o impacto político do seu abandono: ao abdicarem de exercer a liderança na esfera económica e estender a sua influência na região, os EUA estão a ceder o palco e a iniciativa à China, a grande potência regional que estava fora do acordo e que inevitavelmente ocupará o vazio para afirmar a sua dominância na Ásia. O novo Presidente americano repetidamente descreveu a parceria comercial que abrangia 12 países da Ásia e do Pacífico, que representam quase 40% da economia global e um terço do comércio mundial, como “um desastre”. O tratado, negociado por Barack Obama entre 2009 e 2015, nunca chegou a ser ratificado pelo Congresso, pelo que a medida de Trump é acima de tudo simbólica – o que não o impediu de se congratular por ter feito “uma grande coisa pelos trabalhadores americanos”. A medida deveria ser ainda elogiada pelos representantes do movimento sindical que o Presidente ia receber na Casa Branca (já depois da hora de fecho desta edição), e que sempre se opuseram ao tratado, bem como a ala mais à esquerda do Partido Democrata. No entanto, terá dificultado o relacionamento com os restantes onze países signatários, bem como com a bancada republicana do Congresso, defensora da iniciativa. No que diz respeito ao Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA, na sigla em inglês), a margem para a acção unilateral é mais curta. O Presidente dos EUA pode decidir retirar o país do tratado, que foi assinado em 1993 por Bill Clinton, mas até ao momento, Trump manifestou apenas a intenção de renegociar os termos do acordo com o Canadá e o México – o primeiro-ministro, Justin Trudeau, e o Presidente, Enrique Peña Nieto, serão recebidos em Washington até ao fim do mês para discussões que além da questão comercial também terão na agenda matérias de imigração e protecção das fronteiras, segundo a Casa Branca. Em declarações ao jornal El Universal, o ministro mexicano da Economia, Ildefonso Guajardo, garantiu total abertura para rever as regras, avisando, contudo, que qualquer decisão dos EUA, particularmente em matérias de tarifas alfandegárias, seria reciprocada pelo seu país. “Qualquer acção que penalize as importações para o mercado norte-americano e encoraje as exportações dos EUA, terá de ser reflectida numa acção idêntica para contrabalançar as mudanças nos incentivos para as actividades e investimentos no México”, afirmou. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para dar força à sua mensagem da “América primeiro” proclamada no discurso de tomada de posse, o Presidente chamou à Casa Branca os responsáveis de empresas multinacionais como a Ford, a Dell, Johnson & Johnson, Dow Chemical, Lockheed Martin ou Whirlpool, que foram mais uma vez pressionados para manter as suas operações em território nacional e contratar mais trabalhadores americanos. “Vamos começar a fazer os nossos produtos na América, e vamos conceder enormes benefícios às companhias que fizerem aqui os seus produtos, vocês vão ver”, prometeu Donald Trump, que considera possível reduzir os impostos sobre as empresas de 35% para 15% e ainda eliminar do quadro regulatório 75% das regras (de segurança laboral ou protecção ambiental) que, na sua opinião, impedem as empresas de trabalhar como lhes apetecer. E para gozar destas vantagens, as empresas nem precisam de fazer nada, disse. “Basta que fiquem e não se vão embora”, sublinhou. Ao mesmo tempo que prometeu recompensas, também lembrou que haverá penalizações se as empresas não seguirem o seu guião, na forma de um novo imposto de 35% nas importações que os legisladores republicanos já recusaram aprovar.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
“Os políticos têm de seguir as regras que exigem aos outros”
Dos populismos de Itália e Grécia aos riscos de colonização económica de países periféricos como Portugal, o politólogo Tiago Fernandes leva-nos a percorrer os caminhos perigosos das democracias actuais. (...)

“Os políticos têm de seguir as regras que exigem aos outros”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Dos populismos de Itália e Grécia aos riscos de colonização económica de países periféricos como Portugal, o politólogo Tiago Fernandes leva-nos a percorrer os caminhos perigosos das democracias actuais.
TEXTO: O que têm em comum o novo Governo italiano, presidido por um primeiro-ministro que terá mentido no seu curriculum, a casa de 600 mil euros do líder do espanhol Podemos, Pablo Iglesias, ou as incompatilidades e interesses privados do ministro Adjunto Pedro Siza Vieira? À partida, muito pouco. A não ser o facto de ajudarem a abrir brechas nos sistemas democráticos europeus, como explica o cientista político Tiago Fernandes, coordenador do estudo “Variedades da Democracia no Sul da Europa – Uma comparação entre Espanha, França, Grécia, Itália e Portugal”. O vosso estudo, publicado em Março pela Imprensa de Ciências Sociais, compara as democracias dos países do sul da Europa. Em todos estes países, à excepção de Portugal, apareceram novas realidades políticas que dão corpo ao populismo, à xenofobia, aos nacionalismos ou independentismos. Itália é hoje um caso paradigmático, com dois partidos anti-sistémicos a assinarem um pacto de Governo securitário, anti-imigração, anti-islão e eurocéptico. Que lições podemos tirar do caso italiano? A crise italiana é muito potenciada por escândalos de corrupção e o abalar de um sistema que tinha uma corrupção sistémica. A democracia cristã e de certa forma o PS italiano tinham uma forma de se relacionar com o eleitorado – nós mostramos isso no livro – baseado em trocas clientelares e muito pouco na mobilização ideológica e na doutrinação de valores cívicos. A sua fusão com a máquina do Estado era muito grande, o uso de políticas públicas para troca de favores políticos com as diversas regiões, através de caciques locais, sobretudo no Sul, para controlar o eleitorado mais pobre, mas também a sua dependência dos negócios no Norte, da burguesia de Milão, também era muito grande. Era um sistema que parecia sólido mas tinha pés de barro. Quando estes sistemas são postos em causa e há uma vaga de denúncias de corrupção, abala o sistema como um todo. Essas trocas clientelares não são um exclusivo de Itália. Nestes cinco países que o estudo abordou, onde é que isto se nota mais?Nos dados que temos, a Itália e a Grécia (e em Espanha também há indícios) são os países onde é mais visível essa troca clientelar – uma forma de se relacionar com o eleitorado baseada na distribuição de recursos do Estado por critérios de fidelidade política, e não tanto por critérios de racionalidade das políticas públicas como a equidade geral e a eficiência. No período que observamos [1968-2016], as políticas públicas tendem a ser mais orientadas em função de critérios particularistas sobretudo nesses dois países, onde os restantes indicadores da democracia são também mais baixos. Os níveis de solidez do sistema partidário são muito mais baixos e foi também aí que irromperam movimentos populistas – tanto à direita como à esquerda, no caso da Grécia – que levaram ao colapso do sistema. Porque é que isto acontece sobretudo na Itália e Grécia?Nesses dois países há um factor que os distingue dos restantes, que são sociedades que têm uma tradição de autoritarismo de direita. O que se nota é que nas sociedades que têm sistemas partidários mais fortes, como Portugal e França, houve uma ruptura forte com o passado. Portugal teve uma revolução marcante e de ruptura com a ditadura. Tanto na Grécia como em Itália, e mesmo em Espanha, de certa forma a seguir à II Guerra Mundial, a continuidade com o passado é maior. E isso tem repercussões na qualidade da democracia. No livro abordamos, por exemplo, a interferência do poder político nos media, que tende a ser muito maior naquelas sociedades onde há uma maior tradição de autoritarismo do Estado. Ainda em Itália, Giuseppe Conte, o primeiro-ministro acabado de nomear pela Liga e pelo Movimento 5 Estrelas tem estado debaixo de fogo por causa de inexactidões no seu currículo – o que não é inédito em Portugal – e pela sua ligação ao “caso Stamina”, uma fraude médica em que participou indirectamente. Que efeito tem este tipo de actuações no eleitorado? No eleitorado dele, não vai gerar nada. Estamos a assistir a uma vaga de líderes demagógicos, no sentido mais apurado daquele líder que diz e faz o que é preciso em cada momento para conquistar o poder, invertendo valores e mudando de ideologia de um dia para o outro conforme mudam as suas conveniências e as suas alianças. Começou com Berlusconi, num certo sentido os líderes do Syriza tiveram comportamentos demagógicos, o Movimento 5 Estrelas quis aliar-se à esquerda e acabou por se aliar à direita. Consideraria que o líder do Podemos, Pablo Iglesias, pode ser considerado um demagogo? Isto por causa da polémica em que está envolvido por ter, em 2012, criticado o então ministro da Economia, Luis de Guindos por comprar uma casa e 600 mil euros e agora fazer o mesmo. Penso que os políticos têm de seguir nas suas vidas as regras que exigem para os outros. Claro que há aqui uma discrepância entre aquilo que o indivíduo professa para a classe política e depois o que é o seu comportamento privado. Estamos mal quando chegamos a uma situação, que é o caso de Espanha – e que Portugal não tem, até porque há uma maior moderação das elites políticas portuguesas e da esquerda radical – em que a classe política utiliza esquemas muito simplistas para analisar a situação política. Aí começa a haver elementos de populismo e demagogia, como a avaliação do sistema político em termos de nós contra eles ou a casta contra o povo. Estas simplificações abusivas não ajudam à qualidade da democracia. É um apoucamento da democracia. Na sequência da polémica, Iglesias decidiu abrir um referendo interno à sua continuidade como líder do partido. Acha que o recurso a este instrumento democrático ajuda a dissipar o mal-estar perante um evidente caso de demagogia? Eu tenho algumas dúvidas sobre os referendos… No livro temos um capítulo do José Santana Pereira e do Tiago Tibúrcio sobre democracia directa. Nestes cinco países, a democracia directa tem muito pouca tradição e quando existe é apenas invocada pelas elites do poder para referendar a sua própria situação política e não é algo que venha debaixo, como iniciativa directa dos cidadãos. Os referendos têm uma continuidade com os autoritarismos de direita anteriores à democracia. Franco e outros utilizaram-nos para se legitimarem e às suas constituições. As democracias continuam a utilizar os referendos, sempre de cima para baixo, e verifica-se que a participação eleitoral é baixa. O que observamos é que os países não precisam destas práticas de democracia directa interna para terem uma forte ligação ao eleitorado. O mais importante é apresentarem ideologias claras e não tanto terem práticas permanentes de debate interno. Mas também é verdade que os partidos estão cada vez mais fechados em si próprios. Defenderia as eleições primárias para líderes partidários como forma de abrir mais os partidos?Não falamos disso no livro, mas penso que as primárias têm riscos porque abrem os partidos à influência de grupos de interesses poderosos, pois quem pode concorrer às primárias são pessoas que vão buscar fundos privados e financiamentos pouco claros. Ou os partidos e o Estado arranjam maneira de financiar candidaturas equitativas para toda a gente, ou então isto vai dar um incentivo a quem tem mais dinheiro e contactos no mundo dos negócios para controlarem as eleições internas. Os partidos podem democratizar-se sem fazer primárias. Basta cumprirem os seus estatutos, que em Portugal são relativamente democráticos, só que na prática muitas vezes não são cumpridos. Através de mecanismos informais, acaba por haver a perpetuação do poder. O problema é que os partidos têm vindo a perder militantes, mas são estes militantes que vão escolher os candidatos a primeiro-ministro, que acabam por ser escolhidos por um conjunto de indivíduos muito pouco representativos da sociedade portuguesa, que controlam uma máquina partidária e que excluem o cidadão comum sequer de entrar e participar nos partidos. Mas para resolver essa situação não é preciso primárias: basta democratizar e cumprir os estatutos. Em Portugal há neste momento um ministro que violou a lei das incompatibilidades e impedimentos, e que vem do mundo dos negócios. Enquanto jurista, participou na alteração de uma lei que favorece a OPA da China Three Gorges à EDP, e já como ministro recebeu esses seus antigos clientes na altura do lançamento da OPA, antes de pedir escusa de qualquer decisão sobre o assunto. A confusão entre política e negócios afecta a qualidade da democracia? Ou são os cidadãos que hoje estão muito menos tolerantes com este tipo de actuações? Há maior consciência cívica, o que é uma coisa boa, crescentes níveis de interesse pela política e um maior nível de instrução. Mas também há uma comunicação social e um sistema judicial que têm às vezes comportamentos justiceiros, um pouco excessivos, que transmitem a ideia de que a classe política está permanentemente sob suspeita e que às vezes se tomam certos comportamentos pelo todo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os casos sucedem-se em catadupa…Sim, mas o importante é os partidos manterem distância desses casos e repudiarem esse tipo de comportamentos. O PS fez bem em distanciar-se da situação que envolve o ex-primeiro-ministro [José Sócrates], por exemplo. Por outro lado, com este ministro começa a haver suspeitas de uma… Os partidos têm de ter uma atitude pedagógica e tirar do seu seio indivíduos cujo percurso é um permanente saltitar entre o mundo dos negócios e a política [as chamadas portas giratórias]. Um dos problemas fundamentais das democracias ocidentais é um aumento crescente das desigualdades, mas sobretudo a maior concentração da riqueza naqueles que são o 1% mais ricos. É o lado negro da globalização, a criação dessa classe de super-ricos que têm tendência a estar integrados nos circuitos de capital financeiro internacional que escapam muito ao controlo democrático dos Estados, que abrem portas a interesses internacionais, sejam de grandes multinacionais, seja de outros Estados. Tudo isso é perigoso para a democracia porque cria oligarquias fechadas, não escrutinadas pelos poderes públicos democráticos. Estamos já a falar de poderes supranacionais, muitos deles Estados que acabam por controlar outros Estados…O que digo é que há um ressurgimento do autoritarismo à escala global, nomeadamente de regimes como a Rússia e a China, que estão cada vez mais fortes e consolidados e começam a ter uma política externa de tentar afirmar uma influência à escala regional ou global. E para isso compra bens, activos, e influencia as elites nos Estados mais fracos. E isto é uma ameaça à democracia e é um processo. Há relatórios recentes que comprovam como a China tem influência em países mais vulneráveis. Começa por ser influência económica, mas também cultural… Num mundo global, os Estados têm de dar-se com toda a gente. Mas outra coisa é haver uma espécie de colonização insidiosa que controla postos-chave de decisão e que afecta a soberania de uma democracia. A Rússia e a China fazem isso em diversos países, na América Latina, em África, mas também na Europa. O estudo “Variedades da Democracia no Sul da Europa – Uma comparação entre Espanha, França, Grécia, Itália e Portugal” foi financiado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.
REFERÊNCIAS:
Partidos PS
Vincennes, o desejo de aprender na universidade e as nossas vidas
Os tempos que vivemos na universidade são de novo sombrios, cheios de silêncios cúmplices com a servidão do pensamento e dos homens. Essa mesma noite do saber, que levou à revolta estudantil em 1968, vai tomando conta dos nossos dias. É o Maio depois de Maio. (...)

Vincennes, o desejo de aprender na universidade e as nossas vidas
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os tempos que vivemos na universidade são de novo sombrios, cheios de silêncios cúmplices com a servidão do pensamento e dos homens. Essa mesma noite do saber, que levou à revolta estudantil em 1968, vai tomando conta dos nossos dias. É o Maio depois de Maio.
TEXTO: E se o espírito da revolta de Maio tivesse vivificado logo em Junho e, melhor ainda, se estivesse de regresso hoje como um vento nas nossas costas? Tão forte, mas tão forte, que nos empurrasse e obrigasse a uma reflexão aguda acerca das possibilidades de renovação da universidade em que nos encontramos, seja como alunos, seja, sobretudo, como professores, lá mesmo no interior desse espaço tão íntimo de todos, o da sala de aula? A meu ver, nada mais exaltante do que esse gesto que nos obriga a sair de nós próprios, questionando sem limites ou condições de partida o que fazemos e podemos vir a fazer. A determo-nos sobre o processo da nossa própria transformação, enfrentando diretamente as forças da conservação que nos habitam e constituem. Por isso, este artigo tem a ambição de falar de Maio depois de Maio, afastando-se da estética “da revolução em direto”, da iconografia tão insistentemente reproduzida pelos media meio século depois dos acontecimentos. Assim, não me dirigirei aqui às reuniões infinitas e muito participadas, às manifestações dos estudantes em Paris, ao movimento ritmado e empoderado dos seus corpos jovens, à catadupa das palavras de ordem, aos corajosos enfrentamentos com a polícia que todos conhecem e muitos olham com uma nostalgia romântica, mas que a mim me parece esvaziar o próprio ato revolucionário; e menos ainda me deterei sobre o ocaso da luta, essa poética centrada no refluxo e no desânimo derradeiro, que assinala o regresso triunfal da ordem política, da bota que pisa o revoltoso e o faz regressar mais vazio e de cabeça baixa à sua vida anterior. Ao contrário, pretendo tão-somente assinalar a “vitória de Maio”. Com esta afirmação quero significar que me determinarei aqui em ir ao encontro daqueles que resistiram e conseguiram transmutar as armas iniciais da crítica em verdadeira capacidade realizadora. Os que não desistiram e se fortaleceram entre si para construir uma universidade completamente diferente da velha Sorbonne com as suas cátedras, aulas magnas, monólogos professorais e entediantes. Na origem do movimento do Maio de 68, convém de novo lembrá-lo, esteve a denúncia dessa velha epistemologia que valoriza o monolitismo do saber herdado, a retransmissão da cultura legítima, a separação estanque das disciplinas, que tornam residual a prática da investigação, a experimentação metodológica e o diálogo comunitário entre professores e alunos na busca do amanhã do pensamento. Na realidade, foi na oposição ao que designaram por ensino como obediência e imitação subserviente que os estudantes construíram o seu programa de luta. A partir daí começaram a projetar a sua própria intervenção na elaboração do conhecimento científico, na necessidade de ir o mais longe possível na exploração dos condicionamentos diversos, na inteligibilidade viva dos conjuntos complexos que cobrem a realidade humana e o funcionamento das práticas sociais. Isto, ao mesmo tempo que defenderam a abertura do ensino superior à população que dela permanecia excluída pelos acasos e arbítrios da fortuna, aos trabalhadores no ativo, aos emigrantes, aos estudantes estrangeiros. Pode então dizer-se que ali se desencadeou todo um programa simultaneamente filosófico e existencial, pedagógico e político, caracterizado pela abertura fundamental e sistemática da reflexão, pelo rasgar de perspetivas de pesquisas originais e inovadoras, fora dos trilhos já experimentados. Que ali foi tomando corpo a hipótese de uma comunidade de iguais, em que todos os atores coincidissem na busca do saber, independentemente da sua posição na universidade. Nenhum destes princípios esmoreceu com o termo da revolta, e a verdade é que as autoridades governativas se sentiram tão pressionadas que acabaram por lhes ceder imediatamente, com a criação do Centro Universitário Experimental de Vincennes, ou Universidade de Paris VIII, logo após o termo da revolta estudantil. Simbolicamente, a nova instituição começou a funcionar num bosque mesmo ao lado de um campo de tiro militar, abrindo portas ainda no ano letivo de 1968-69 num edifício totalmente pensado de raiz e com um programa construtivo destinado a favorecer novos cruzamentos e ligações entre pessoas e disciplinas. Veio a tratar-se de uma experiência pedagógica não muito longa no tempo, é certo – estendeu-se apenas até 1980, ano em que foi desmantelada e transferida para Saint-Denis, cidade limítrofe da capital francesa, não se encontrando hoje quaisquer vestígios materiais, uma vez que os seus edifícios foram completamente arrasados –, mas sem nenhum precedente até então na história da educação universitária europeia. Vincennes ficou conhecida como “a anti-Sorbonne do esquerdismo”, uma instituição que cultivou o florescimento das capacidades de pesquisa de pequenos grupos num quadro de uma inusitada justaposição de saberes, simbolizando a entrada em força do estruturalismo na universidade francesa. Também forçou o ministro da Educação, Edgar Faure, a utilizar uma linguagem que nunca se havia escutado até então, uma espécie de discurso contraintuitivo. Com efeito, na nota que a 7 de dezembro de 1968 enviou ao Presidente da República, Charles de Gaulle, justificou a criação de Vincennes – Paris VIII pela necessidade de reorientar o ensino superior no sentido “pluridisciplinar” e de associar, “tanto quanto possível, as artes e as letras às ciências e às técnicas”, devendo cada um dos seus diferentes departamentos vir a ser marcado por um “espírito polivalente”. Para o ministro, era assumidamente um “programa de experimentação” científico-pedagógico que estava na génese da nova instituição, a qual devia recusar completamente “a progressividade dos conhecimentos” e a “normalização pedagógica”. Daí a mistura em Vincennes de domínios científicos tão variados como a literatura francesa, a história, a geografia, a filosofia, a sociologia, a psicologia, as línguas vivas, a matemática, a informática, as ciências económicas, políticas e da educação, assim como as metodologias jurídicas. A estrutural ligação à investigação científica obrigaria outrossim que “os métodos pedagógicos” apresentassem, e continuo a citar o ministro Edgar Faure, uma “grande originalidade (ano contínuo, supressão dos exames tradicionais, largo apelo a professores associados ao mundo exterior, enquadramento dos estudantes por pequenos grupos)”. Há momentos em que o discurso do poder político se parece confundir com o daqueles que se lhes opõem de forma veemente. Entre as duas dezenas de académicos escolhidos para a comissão de instalação da Vincennes, a partir de um convite endereçado por Hélène Cixous, encontram-se figuras como as de Roland Barthes, Jacques Derrida, Jacques Lacan, Jean-Pierre Vernant, Georges Canguilhem, Emmanuel Le Roy Ladurie. O Departamento de Filosofia seria inicialmente chefiado por Michel Foucault e só por este último haveriam de passar, entre outros, nomes como Michel Serres, Judith Miller, Gilles Deleuze, Alain Badiou, François Châtelet, Jacques Rancière, ou seja, toda uma autêntica “frente filosófica”. Nomes estes que continuam a ser lidos nos quatro cantos do mundo, e nos continuam a incitar com o seu trabalho ao exercício da interrogação, mostrando que a universidade só cumpre a sua vocação quando se assume como o derradeiro lugar de resistência crítica e da mais pura dissidência. Em 1979, quando os ataques ao experimentalismo da instituição eram já mais que muitos e o seu fim praticamente inevitável, foi publicado um volume coletivo com testemunhos de dirigentes, professores e alunos, naturalmente destinado a memória futura. O título do livro é altamente expressivo: Vincennes ou le désir d’apprendre. Nele, desde logo, surpreendem os números da população estudantil envolvida – mais de 32. 000 alunos por lá passaram só até 1975 –, assim como a sua composição extraordinariamente diferenciada, tanto na origem social quanto geográfica e até etária. Não se tratou, portanto, de uma experiência-piloto, um epifenómeno, mas da efetiva construção de uma universidade-mosaico que tomou para si desde a missão de “escutar a diferença”, de concretizar de direito e de facto uma “formação permanente” com pessoas de todas as proveniências; que se apresentou recetiva a estudantes avançando “com os seus próprios ritmos e interesses”, porque entendia que era nas diferentes trajetórias que eles melhor se podiam acercar e colocar “ao lado da inteligibilidade mais viva, de uma força polémica mais afirmativa, de uma liberdade de julgamento mais exigente”; que albergou também várias centenas de docentes (240 logo no ano de abertura) que se sentiram valorizados e a resistir melhor “a um certo tipo de lobotomia do ensino”, sendo que lhes era permitido trabalhar em “pequenos coletivos” e em “auditórios caraterizados pela sua diversidade”. Vincennes aceitou os riscos e o preço a pagar quando inscreveu no seu programa de ação a hipótese de trocar a “hierarquia” pela “dissemelhança”, de tomar a ideia do “reencontro” com o conhecimento como a maior exigência que se pode associar à leitura assídua, ao tratamento de um problema conceptual, à reflexão restrita e meticulosa do trabalho individual, que constituem desde sempre o coração da universidade. A coincidência entre uma grande liberdade de pesquisa e o tipo de ensino conduzido caraterizaram de forma absolutamente inédita a nova instituição com os seus mil e um seminários, aulas e conferências. A possibilidade de explorar aproximações metodológicas em vários territórios científicos, ao mesmo tempo que se iam ensaiando práticas pedagógicas nas quais os alunos participavam igualmente na construção do saber, terá sido de facto um jogo desafiante tanto para eles quanto para os seus professores. Heterogeneidade de estudantes, de docentes e de disciplinas como condição primeira do desenvolvimento da aprendizagem e o trabalho coletivo como o seu motor. No testemunho que forneceu, Jacques Delors descobria na cooperação que se registava entre alunos, professores, funcionários e dirigentes “uma rede de relações sociais internas e externas excecionais”, que conduzia de facto a uma “mutação subversiva”, mais bem dito, a uma verdadeira “autogestão da vida quotidiana”. A historiadora Maria-Antoinetta Macchiochi, que na altura desenvolvia em Paris VIII uma investigação intitulada Gramsci, Fascismos, Marxismos: Um Ensino, Uma Investigação, reconheceria que a realização desse seu trabalho, levado a cabo ao longo de anos, não teria sido possível em nenhuma outra universidade, dada “a liberdade de investigação, a multiplicidade de escolhas de setores culturais”, que lá encontrou. Foi também o espírito de Vincennes que levou outro professor, Henri Meschonnic – que lá ensinou Linguística e Literatura –, a defender que as “condições particulares” exigiam a todos uma reflexão teórico-pedagógica destinada a perceber como trabalhar a cada dia “‘contra’ a distinção entre ensino e investigação”. O historiador, psicanalista e jesuíta Michel de Certeau foi, reconhecidamente, uma figura universitária na qual os acontecimentos de Maio de 68 reverberaram com inusitada intensidade. Terão produzido nele uma “rutura instauradora” e deixado, até, “uma marca definitiva”. Quem se lhe referiu nesses termos foi Luce Giard, sua aluna muito próxima à época e que viria a organizar os dois volumes de A Invenção do Quotidiano, que deram a Certeau uma projeção internacional a partir de 1980 e, muito importante, foram redigidos em parceria com os seus próprios alunos. Ainda segundo a mesma fonte, Certeau obstinou-se desde então em querer compreender o que o “imprevisível nos pode ensinar a respeito de nós mesmos”, que se iria na realidade refletir numa “busca radical” dos “problemas da escola, das universidades, das minorias linguísticas”, a fim de se acercar ainda de mais perto da “verdadeira questão”, aquela que consiste “em saber como se criar a si mesmo” através do trabalho da pesquisa e da escrita. Certeau integrou o corpo docente de Vincennes desde a fundação deste novo estabelecimento de ensino superior e de lá saiu pouco tempo depois, em 1971, para trabalhar no Departamento de Etnologia-Antropologia da também nova Universidade Paris VII-Jussieu (atual Paris-Diderot), tendo aí permanecido até à sua partida definitiva para a Califórnia em 1978. Durante esse período, foi sempre organizando diferentes “círculos” com jovens de menos de 30 anos, alguns ainda alunos da licenciatura e outros já a tendo terminado, com o objetivo de produzir uma investigação de tipo experimental acerca das “modalidades de ação” dos habitantes de vários bairros parisienses; cada participante escolhia livremente a prática que iria observar. Foi desta forma que Certeau alimentou, no interior da universidade francesa, o “sonho comunitário do seminário”, imaginando-o como um “lugar transitório” do qual se podia sair “tão amigavelmente como se entrou”. Esta modalidade pedagógica transformou-se também num tema de reflexão e, ainda em 1972, concedeu uma entrevista a seu respeito. Os excertos dessa conversa seriam reescritos e publicados na revista Esprit, seis anos mais tarde, sob a forma de artigo a que Certeau deu o sugestivo título Qu’est-ce qu’un séminaire. Com um vagar pouco comum à época, refletiu concetualmente sobre as “dinâmicas de grupo”, a “linguagem dialógica” que se desenrolava no interior dessa prática universitária que se havia originado na Alemanha no século XIX; não fugiu, também, a enfrentar o tipo e o alcance da liderança que ele mesmo protagonizava e em que se encontrava então completamente envolvido. É um texto raro, este, em que a análise da “política da palavra”, da sua circulação e troca começa por ser concetualmente equiparada a qualquer átrio de igreja ao domingo (caquetoir). A associação feita por Certeau é tão surpreendente quanto sugestiva: tal qual a “riqueza proliferante e silenciosa dos viajantes”, daqueles que chegam de longe e se detêm na intensidade da escuta depois da missa, assim lhe assomava ao espírito a imagem de seminário. Um espaço em que vários passantes-investigadores se iam cruzando, entrando e saindo ano após ano, sem erigir um lugar próprio nem acumular um tesouro que guardariam apenas para si. O artigo abria com uma definição também forte e impressiva, porque colocava deliberadamente a fonte desta experiência pedagógica no próprio aluno e já não na figura do professor: “Um seminário é um laboratório comum que permite a cada um dos participantes articular as suas práticas e os seus conhecimentos próprios; é como se cada um que aí chegasse trouxesse o ‘dicionário’ dos seus materiais, das suas experiências, das suas ideias e que, por efeito das trocas necessariamente parciais e das hipóteses teóricas necessariamente provisórias, lhe tornassem possível produzir frases com outra riqueza de vocabulário, mais bem dito, o fazem ‘bordar’ ou pôr em discussão as suas informações, as suas questões, os seus projetos, etc. . ”Este ponto de partida de Certeau, não há que escondê-lo, ainda nos faz levantar a cabeça e ficar a pensar no “como seria” se puséssemos um dia a caminho, na universidade em que estamos, esta definição, de modo a que seminário passasse a ser o nome que daríamos a esse “efeito de produção discursiva que a comunidade aciona por si mesma e em si mesma, mas cujos reflexos se esgotam na viagem do sujeito particular, no enriquecimento do seu património”. Assim configurado e constituído na sua potência, este “lugar-comum” tornaria ridícula qualquer das lideranças e hierarquias académicas construídas em nome de uma sapiência inquestionável. A exigência que Certeau entendia dever fazer-se a um professor, no quadro relacional do seminário, era por isso muito diferente dessa. Professor aqui é quem se toma a missão de se adentrar no sistema articulatório, como o que se gera no átrio da igreja, e por isso Certeau se descreveu como o habitante permanente desse imenso caquetoir que então era a universidade de Vincennes Paris-VIII nos anos 70. Instrumento e ponto de passagem da discussão grupal, coadjuvante da erupção de efeitos “teóricos e práticos”, o seminário impunha ao professor que soubesse reagir “às intervenções de uma maneira interrogativa” e que, dessa forma “ricocheteante”, assinalasse o trabalho do coletivo, empurrasse os participantes “a afirmar a sua diferença e a encontrar meios de a formular mais fortemente”. Esta pedagogia da reciprocidade, que fez retornar a ideia de seminário na transformação da universidade francesa no rescaldo de 68, perpassou igualmente as conceções de aula. A tarefa de uma comunidade do saber por vir, apontando para uma prática da palavra oral organizada em prol “das extrações e dos acréscimos”, erguida contra todo o discurso normativo que se toma a si mesmo como relato fiel do saber acabado, foram exaltadas de forma idêntica. Tomo aqui essoutra figura maior do pensamento filosófico do século XX Gilles Deleuze, que preferia a designação de aula à de seminário para identificar o seu encontro com os alunos. O espírito e a tarefa daquele que habita a universidade, como consubstanciando uma voz que vem da escrita e se determina a escrever e a fazer escrever o que ainda se não escreveu, alocaram-se nele com aquela sua energia tão inabalável e exclusiva de quem precisa de estar sempre a chegar ao pensamento no contexto da relação pedagógica. Deleuze foi nomeado professor catedrático no Departamento de Filosofia da nova universidade de Vincennes no final de 1969, assumindo o lugar de Michel Serres, e só saiu de Paris VIII para a reforma, no início de 1987. Mergulhou, assim, no epicentro de uma instituição de ensino superior experimental, totalmente concebida fora das normas habituais, ainda na sua fase inicial, e nela quis permanecer para sempre, mesmo depois da sua deslocalização e desmembramento. Deleuze ficou tomado e encantado com a realidade da sua plateia ser tão diversa na proveniência disciplinar, no plano socioprofissional, etário e, até, na própria origem geográfica. O autor de Diferença e Repetição trabalhava, então, muitíssimo na preparação da sua aula semanal em Vincennes para conseguir alcançar em cada uma delas uma espécie de “apneia do exercício do pensamento”. Queria apresentar-se aos seus alunos de Paris na posição “contrária à do plagiador, mas também ser o contrário de um mestre ou de um modelo”; ambicionava que as suas aulas fossem, como nas canções de Bob Dylan, fruto de uma “longuíssima preparação, mas sem método, nem regras ou receitas”. O professor seria, assim, aquele que tivesse “um saco” onde pusesse tudo o que encontrasse, na condição de ele mesmo também “ser posto num saco”. Deleuze escreveu um primeiro e pequeno texto de natureza pedagógica para o livro coletivo de resistência aos ataques políticos que, sobretudo a partir de finais dos anos 70, foram insistentemente dirigidos à experiência particular de Vincennes. O título que escolheu para esse artigo não podia ser mais expressivo e ia direito ao essencial: Em que a filosofia pode servir a matemáticos ou até a músicos – mesmo e sobretudo quando ela não fala de música ou de matemática. Começou, então, por sublinhar que as práticas desenvolvidas naquela universidade se distanciavam por completo da “situação tradicional em que um professor fala para estudantes que estão a começar ou já têm algum conhecimento sobre uma determinada disciplina”, em que eles mesmos “participam também de outras disciplinas” e, no fim de tudo, “são ‘julgados’ pelo seu nível nesta ou naquela disciplina abstratamente considerada”. Em Vincennes, era totalmente outra a realidade, e Deleuze tinha a cada semana diante de si um público composto, “em graus diversos, por matemáticos, músicos – de formação clássica ou de música pop –, psicólogos, historiadores, etc. . ” Essa mistura era, para ele, a grande responsável por uma operação de inversão de valor na troca pedagógica: a transmissão em bloco do saber cedia, de facto, “ao uso particular e privado da palavra dita pelo professor”. Em lugar de colocar “entre parêntesis” as suas disciplinas de origem, Deleuze percebia que aqueles seus estudantes de Vincennes esperavam da Filosofia algo que lhes “servisse pessoalmente” ou viesse a “entrosar-se com as outras suas atividades”. Era nessa, e apenas nessa escuta de interesse-usufruto particular que a Filosofia lhes poderia passar a dizer diretamente respeito, e “não já em função de um grau que eles possuiriam nesse tipo de saber”, mesmo que fosse um “grau zero de iniciação”. Os estudantes estavam ali à sua frente a ouvi-lo, “mas em função direta das suas preocupações”, ou seja, “das outras matérias ou materiais” de que eles já tivessem “um certo domínio”. E Deleuze esclarecia: “Um ensino como esse não é, de maneira alguma, de cultura geral; ele é pragmático e experimental, sempre fora de si mesmo, precisamente porque os outros são levados a intervir em função de necessidades ou de contribuições que são as deles. ” Porque não havia lá ouvinte ou estudante que não chegasse com os seus “domínios próprios”, o grande “interesse pedagógico” de Vincennes consistia, portanto, em “pôr em jogo, no interior de cada disciplina, essas ressonâncias entre níveis e domínios de exterioridade”. Aula correspondia, em Deleuze, ao exercício em que uma disciplina efetivamente ensinada permitiria aos estudantes retornar aos seus temas e problemas particulares. Praticar uma escuta ativa e ficar mais intensamente no interior dos seus próprios pensamentos. Não tinha sido tanto em Lyon ou na Sorbonne, onde ensinara antes, mas em Vincennes que Deleuze experimentara o “esplendor” da sua própria mudança enquanto professor do ensino superior. Ensinar ali Filosofia foi a sua grande experiência da heterogeneidade. “Construí a minha vida de professor em Vincennes. Se tivesse de ir para outra faculdade, parecia estar a viajar no tempo, voltar ao século XIX”, afirmaria ele, em jeito de balanço. Em vez da designação “aula magistral”, em que só o professor fala, preferia achar outro termo que se aproximasse o mais possível de uma “conceção musical de aula”, para significar a possibilidade de formas não simultâneas de entendimento, de um certo efeito de retardamento, de algo que acontece num “ínterim” que só a música proporciona, alguma coisa que apenas fica clara um pouco mais à frente. Se não haviam entendido uma ideia, os alunos tinham oportunidade de perguntar na semana seguinte. E havia também uma outra questão que saltava à vista e o levava a defender uma conceção musical de aula. Resultava diretamente do facto de ninguém, segundo ele, conseguir escutar com a mesma atenção alguém durante duas horas e meia. E por isso é que o essencial da tarefa do professor consistia em promover uma deslocação permanente dos ritmos das ideias e das respetivas possibilidades de alocação. Só dessa forma se pode ligar aos interesses individuais. Quem ler, mesmo em voo de pássaro, as transcrições diretas de cassetes em que foram gravadas as suas aulas em Vincennes sobre Espinosa percebe muito bem essa sua maneira coloquial de se ir ligando à assistência e ser por ela interrompido, descobre a produção de uma teia encantatória que o fazia voltar ao enunciado inicial e às mesmas questões de forma deslocada. Ele próprio encarnava ali a noção de que, tal como investigar, ensinar corresponde a uma busca e a uma prática da permutação ou da interseção. Do diálogo efetivo. Um espaço em que todos explicitam o desejo do saber e a sua procura incessante. Conseguir levar o pensamento ainda em andamento à boca de cena da sala de aula, buscando e renovando com ele a itinerância do pensamento a partir de uma base plenamente dialógica do professor com os seus alunos e destes com ele – eis aquela que permanece como sendo a grande questão pedagógica de “uma universidade do saber por vir” e que Vincennes conseguiu concretizar com uma intensidade que ainda nos surpreende e cativa, dada a miséria científica e relacional em que novamente nos encontramos. Enquanto académicos-pesquisadores, o nosso problema maior tem sido, e há de continuar a ser, o de encontrar modalidades de troca em que as ideias e o próprio conhecimento se apresentem em estado de desmultiplicação, em conseguir delimitar um espaço de aprendizagem fora de um modelo de conhecimento prefabricado e da replicação de uma trajetória já estabelecida. Numa palavra: em suscitar e saber permanecer num contexto pedagógico no qual a palavra docente não se fixe no monólogo, não procure a síntese ou o acordo final entre posições. Os tempos que vivemos na universidade são de novo sombrios, cheios de silêncios cúmplices com a servidão do pensamento e dos homens. Essa mesma noite do saber, que levou à revolta estudantil em 1968, vai tomando conta dos nossos dias, não havendo muito quem queira vir ao espaço público falar sobre o assunto, e menos ainda tenha a coragem de o fazer no interior das instituições que se apresentam todas como de “excelência”, na “linha da frente” da investigação. Escrevi estas linhas sobre Vincennes, certamente muito encantadas, para assinalar o que considero uma traição histórica à nossa profissão. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Procurei espelhar uma distância. Aquela que nos obrigará a reconhecer como nós, professores universitários confortavelmente instalados nas suas carreiras inamovíveis, fomos aceitando que a dimensão ensinante e reprodutiva regressasse de novo pujante como resposta imediata à democratização do acesso, primeiro à licenciatura, e mais recentemente aos mestrados e doutoramentos. Passámos a dizer que não é possível trabalhar com tantos alunos que “nada sabem e trazem de trás”, começando logo aí a deixar a morrer o compromisso de pensar alto com eles acerca do que estamos a tentar querer fazer e os desafios que enfrentamos nas nossas investigações. Não raro, os nossos “novos” e “instantes” afazeres têm-nos levado também a abandonar de vez as salas de aula, entregando-as a jovens recém-doutores, que passam a trabalhar num verdadeiro regime escravo, com contratos precários e salários de fome, sendo nós os que beneficiamos diretamente dessa lamentável circunstância. Tornámo-nos sobretudo captadores de recursos financeiros para as nossas instituições e ficamos muito felizes quando, após preenchermos formulários esdrúxulos e intermináveis, vemos os nossos projetos financiados. Aceitámos transformar-nos em meros gestores que escrevem relatórios; temos muitos bolseiros sob nossa responsabilidade direta, vamos a congressos e a outros eventos internacionais em que conhecemos colegas importantes e podemos fazer um lobby mais consistente para continuar a ampliar os recursos materiais entretanto adquiridos. Trabalhamos gratuitamente como avaliadores de artigos para grandes empresas internacionais, que também nos editam nas suas revistas científicas, mas se fazem cobrar e muito quando as queremos ler. Além disso, vamos afirmando que a escrita académica já não traduz um trabalho lento de maturação – até nas escolas de Ciências Sociais, Artes e Humanidades se repete amiúde que os livros já não fazem sentido e ninguém tem tempo para os ler, quanto mais ainda para os redigir –, da mesma forma que achamos normal publicar versões praticamente idênticas dos mesmos artigos científicos para continuarmos a ser competitivos e somarmos pontos no currículo. Estamos transformados nos primeiros plagiadores de nós próprios. Daqui extraio umas simples interrogações e com elas termino. O que nos sucederia se recusássemos frontalmente esta forma de vida afinal tão empobrecida, tal como os nossos antecessores de 1968? E quais as tarefas que teríamos pela frente para que a paixão incessante do conhecer e do estar-junto comunitário nos voltasse a ocupar por inteiro nas universidades em que estamos? Em última instância, qual o perigo dos discursos proliferarem sem parar a partir da sua diferença maior?Professor do Instituto de Educação da Universidade de LisboaO autor segue o novo acordo ortográfico
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens escola cultura campo educação fome comunidade social espécie corpo
Liga ultrapassa 5 Estrelas e é já o principal partido italiano
Duas sondagens publicadas nos últimos dias demonstram que o partido de Matteo Salvini foi o que mais aumentou a sua base de apoio desde as eleições de Março. (...)

Liga ultrapassa 5 Estrelas e é já o principal partido italiano
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.083
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Duas sondagens publicadas nos últimos dias demonstram que o partido de Matteo Salvini foi o que mais aumentou a sua base de apoio desde as eleições de Março.
TEXTO: O partido de extrema-direita italiano, a Liga, liderado por Matteo Salvini, o novo ministro do Interior, tem pela primeira vez mais apoio eleitoral que o seu parceiro de Governo, o partido anti-sistema Movimento 5 Estrelas. É o que demonstram duas sondagens publicadas nos últimos dias. A primeira, divulgada na segunda-feira, e realizada pela empresa italiana SWG mostra que 29, 2% dos italianos apoia a Liga, o nível mais alto alguma vez alcançado pelo partido de Salvini. Já o 5 Estrelas, liderado por Luigi Di Maio, conta com 29%. Este inquérito foi conduzido entre os 13 e 18 de Junho. A Liga aumentou assim a sua base de apoio desde as eleições de 4 de Março, onde alcançou 17, 4% dos votos. O que sugere que a política e propostas de Salvini (que ficou com o cargo de ministro do Interior no novo executivo), nomeadamente relativamente à imigração, têm gerado benefícios no seio do eleitorado italiano. Depois de o Governo italiano ter encerrado os seus portos à embarcação Aquarius, que trazia mais de 600 migrantes, uma sondagem demonstrou que quase 60% dos italianos concorda com esta abordagem, segundo referiu Ferdinando Pagnoncelli, presidente da Ipsos Italia, num texto publicado no domingo no Corriere della Sera. Na terça-feira outra sondagem da Ipsos Italia conclui também que a Liga é neste momento o principal partido italiano mas com 30, 1% dos eleitores consigo enquanto o 5 Estrelas arrecada 29, 9%. Apesar de a diferença entre os dois partidos de Governo ser a mesma nas duas sondagens, no inquérito da Ipsos o crescimento do partido de Salvini desde a votação de Março é ainda maior. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Nas eleições, o 5 Estrelas foi o partido mais votado (com mais de 32% dos votos) mas não alcançou a maioria para governar sozinho pelo que chegou a um acordo para formar Governo com a Liga de Salvini, e que é liderado por Giuseppe Conte, um independente próximo do 5 Estrelas. Por trás da subida da Liga estará o desempenho de Matteo Salvini como ministro do Interior, prometendo fechar os portos italianos aos imigrantes. É o que se depreende de outra sondagem SWG, que mostra que 64% dos italianos estão "muito ou bastante de acordo" com a ideia de criar um bloqueio naval para impedir que as embarações com imigrantes cheguem às costas italianas. E dois em cada três italianos estão de acordo com a gestão da crise do navio Aquarius. De resto, o Força Itália, de Silvio Berlusconi, é o partido que mais desceu desde as eleições, onde teve 14% dos votos. Na sondagem da SWG o partido desce 3, 1% e na da Ipsos fica-se pelos 8, 7%. Já o Partido Democrata, o grande derrotado nas eleições, mantêm-se em ambas as sondagens estável nos mais de 18%, percentagem semelhante à alcançada na votação de Março.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave imigração
Lá onde cresce o perigo
Podemos afirmar que a declaração conjunta franco-alemã também constitui uma vitória de e para Portugal. (...)

Lá onde cresce o perigo
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Podemos afirmar que a declaração conjunta franco-alemã também constitui uma vitória de e para Portugal.
TEXTO: A Europa volta a ser fustigada por adversidades muito perigosas. Não me refiro sequer à Europa enquanto projecto político consubstanciado na União Europeia, mas à Europa enquanto espaço e tempo de uma determinada ideia de civilização. Olhando para a Itália e para a horripilante solução governativa que aí se impôs por vontade maioritária do eleitorado, observando o Leste e constatando o triunfo de uma linha de pensamento declaradamente iliberal que lá faz carreira, mirando a Norte e percebendo aí o avanço dos egoísmos nacionais, dificilmente poderemos deixar de ficar profundamente preocupados com o destino europeu. Resta-nos talvez o recurso à memória e à inspiração do mundo cultural que ainda vai moldando as nossas estruturas mentais. Perante tal estado de coisas, acreditemos na validade do que escreveu Hölderlin: “lá onde cresce o perigo, cresce também o que salva”. Emmanuel Macron e Angela Merkel encontraram-se anteontem num castelo dos arredores de Berlim a fim de procurar alcançar um entendimento básico em torno dos assuntos de maior acuidade da vida política europeia. Ao longo do primeiro ano do seu mandato, Macron produziu quatro importantes discursos sobre a Europa, proferidos em locais devidamente escolhidos pelo seu peso simbólico: Atenas, a Sorbonne, Estrasburgo e Aix-la-Chapelle. Nesses textos explanou um pensamento profundamente pró-europeísta, definiu objectivos estratégicos e enunciou iniciativas concretas. Ao regresso da França, através da voz culta e convicta do seu Presidente, pareciam opor-se uma subtil rejeição alemã e uma obstinada discordância de alguns países do Norte. Merkel afigurava-se diminuída, quer pelas dificuldades verificadas no processo de formação do novo governo, quer pelo crescimento de posições extremistas assentes na contestação à sua política migratória. De um certo modo foi-se criando a ideia de que Macron estava destinado à incompreensão e ao isolamento naquilo que alguns já sugeriam ser a sua obstinação europeia. Anteontem, contudo, as coisas mudaram significativamente. Os dois líderes entenderam-se em torno de duas questões essenciais: a criação de um orçamento para a zona Euro e o reconhecimento da necessidade de uma maior solidariedade intra-europeia na abordagem da questão da imigração. Apesar desse entendimento ter ainda um carácter bastante vago, representa já um inquestionável avanço. Há muito que se estabeleceu um consenso quanto à premência de reformas na zona monetária europeia. Algumas delas foram sendo concebidas e aplicadas nos últimos anos, mas permanece ainda muito por fazer. A criação de um orçamento próprio da zona Euro constitui uma opção de relevantíssimo significado, que poderá contribuir decisivamente para a promoção da convergência económica entre os vários países e para a progressiva concretização de alguns princípios de solidariedade que têm animado o percurso histórico deste projecto. Até aqui, a Alemanha tinha manifestado uma grande resistência a uma iniciativa desta natureza. Por isso mesmo, o passo dado anteontem poderá e deverá revelar-se de uma importância crucial na vida europeia. É certo que há ainda um longo caminho a prosseguir, o qual passa pela superação da resistência de vários Estados-membros, pela pormenorização da ideia agora apresentada e pela sua aplicação prática. Trata-se sem dúvida de uma grande vitória da persistência do Presidente francês, que ao longo dos últimos meses pôde contar com o apoio firme de alguns outros governos nacionais, entre os quais se inclui o executivo português. Nessa perspectiva poderemos afirmar que a declaração conjunta franco-alemã também constitui uma vitória de e para Portugal. Aliás, e como aqui já várias vezes o referi, António Costa tem-se destacado como uma das mais proeminentes figuras da actual constelação de líderes políticos explicitamente comprometidos com a opção europeísta. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Deveremos igualmente registar a relevância do acordo alcançado em relação à política migratória europeia. Depois da obscena posição tomada pelo governo italiano e da notável resposta dada pelo novo executivo espanhol, e face ao risco de desagregação da metade direita da maioria parlamentar alemã, este entendimento tornara-se indispensável. Aí foi Macron que cedeu, o que aliás só honra os melhores pergaminhos da história republicana francesa. Ao que dizem as notícias, os dois líderes também terão acordado patrocinar a instauração das listas transnacionais, de modo a que estas possam ver a luz do dia nas eleições para o Parlamento Europeu de 2024. Neste caso estamos perante um inequívoco sucesso simbólico de quantos nelas perspectivaram um avanço no plano da consciencialização progressiva de uma verdadeira cidadania europeia. Sendo certo que o tema ainda originará um amplo debate com resultados obviamente imprevisíveis. O que se está hoje a passar no espaço político europeu é de tal ordem importante que reclama de todos os intervenientes, aos mais diversos níveis, um esforço de clarificação de posições e uma disponibilidade para a prossecução de uma discussão que não esteja entrincheirada numa retórica ora dogmática, ora dominada pela vacuidade dos lugares-comuns, ora preocupada com o simples exercício da propaganda. Creio que no que toca a Portugal estaremos todos em condições de garantir a realização de uma tal discussão.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave imigração
“Acesso à cultura” ou produção cultural?
Em certo setores da cultura ainda não conseguimos descolar do paradigma de há mais de 50 anos. (...)

“Acesso à cultura” ou produção cultural?
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.1
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em certo setores da cultura ainda não conseguimos descolar do paradigma de há mais de 50 anos.
TEXTO: Promover o “acesso à cultura” tornou-se um lugar-comum do linguajar político. Não há partido nem governo que não inscreva a consigna no seu programa. Está nela implícita uma ideia um tanto nebulosa de “cultura”, qual pronto-a-vestir que se trata de franquear ao maior número possível de potenciais “consumidores”. É certo que se fala também de “criação” e de “criadores”, mas nem por isso se esbate o foco principal do campo semântico: o “acesso à cultura”. Se o foco é esse, não admira que se tenda para um desequilíbrio estrutural entre o investimento na “produção” e o investimento no “consumo” – desequilíbrio particularmente sensível no estado atual da música e das chamadas artes cénicas em Portugal. A míngua de recursos públicos para a cultura e o paradigma dominante de rentabilidade empresarial, que assenta na redução tão drástica quanto possível da massa salarial, não deixam prever uma correção desse desequilíbrio, antes apontam para o seu agravamento. Os gestores culturais sonham, cada vez mais, com um modelo em que, descontados os “custos de suporte” administrativos (onde se incluem naturalmente as suas generosas remunerações e regalias!), a totalidade do orçamento seja exclusivamente destinado a programação. Emprego artístico estável como o exigido por qualquer estrutura de produção artística (grupo ou companhia de teatro ou de ópera, orquestra, etc. ) é, para eles, um pesadelo. Imaginem um Teatro de São Carlos à maneira de outrora, ainda não há muitos anos: que, além de não empregar um ensemble nuclear de cantores nem de fazer funcionar um estúdio de ópera (aliás, previsto nos atuais estatutos), também não tivesse de pagar salários a uma orquestra e a um coro da casa; uma Fundação Gulbenkian que despedisse a orquestra como despediu em tempos o Grupo Gulbenkian de Bailado; uma Casa da Música sem a Orquestra Sinfónica do Porto. Que alívio para os conselhos de administração e que brilharete para diretores artísticos e programadores! Não faltaria quem se vangloriasse de programar mais e melhor. . . com metade do orçamento! Cumprir-se-ia então, em toda a linha, o ideal dos gestores: o “acesso à cultura” por outsourcing!Mas, vendo bem, tal não seria senão generalizar um padrão já hoje dominante nas nossas instituições culturais, sejam elas públicas ou privadas: programar na base da produção alheia. As mais abastadas vão ao catálogo das agências artísticas internacionais e compram o êxito acumulado das ofertas disponíveis. O público exulta com essas temporadas de luxo que, em nome do “acesso à cultura”, lhe são servidas a preços subvencionados, muito abaixo do preço de custo – em contraste com os preços de mercado que é preciso pagar por outros “bens de consumo” importados (por exemplo, carros “topo de gama”). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Outro sintoma dos equívocos nesta matéria é o resultado dos recentes concursos de apoio às artes. A confusão entre programação e produção, somada ao facto de o Ministério da Cultura, por erro de enquadramento legal, ter alijado para um júri opções estratégicas de política cultural que só a um governo eleito competem, fez passar a extraordinária mensagem de que o “acesso à cultura” em Portugal pressupõe a liquidação da rede de grupos independentes, enquanto estruturas de produção e emprego artísticos. Como se o princípio da precariedade do emprego e da volatilidade dos projetos fosse, em Portugal, o salvatério das artes!Nunca a formação média, superior e avançada em música e artes cénicas atingiu indicadores de excelência tão elevados como os atuais, em extensão e qualidade. Escolas superiores, universidades e os seus centros de pesquisa, nesta e noutras áreas artísticas, internacionalizaram-se e fervilham de atividade criativa. E que resposta dão a este estado de coisas os mais poderosos agentes culturais? Não oportunidades de emprego em estruturas de produção consolidadas e estáveis, mas sim o convite à emigração maciça. Preferem ter, por exemplo, meia orquestra (sendo a outra metade recrutada em outsourcing) do que ter uma orquestra inteira, a valer, “topo de gama”. Ou seja: em contraciclo com o valor acrescentado que já geramos e exportamos em tecnologias de ponta, parece que, em certo setores da cultura, ainda não conseguimos verdadeiramente descolar do paradigma de há mais de 50 anos: “topo de gama”. . . só importado!O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave cultura campo consumo
Amazon criticada por vender tecnologia de reconhecimento facial a autoridades
Grupos de direitos civis vêem o serviço como uma ferramenta de vigilância governamental. Há sistemas a funcionar na China e na Rússia há anos. (...)

Amazon criticada por vender tecnologia de reconhecimento facial a autoridades
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Grupos de direitos civis vêem o serviço como uma ferramenta de vigilância governamental. Há sistemas a funcionar na China e na Rússia há anos.
TEXTO: A Amazon está a ser criticada por vários grupos de direitos civis, nos EUA, por vender serviços de reconhecimento facial à polícia norte-americana nos estados da Florida e do Oregon. A preocupação é que a tecnologia seja utilizada para vigiar as populações de forma semelhante ao que acontece em Estados autoritários, em vez de aumentar a segurança. A empresa, porém, defende o lançamento do sistema de videovigilância Amazon Rekognition, em uso desde 2016, ao dizer que é muito utilizado para encontrar pessoas e crianças desaparecidas, e para gerir a entrada em grandes eventos. A tecnologia depende de algoritmos capazes de analisar milhões de imagens diariamente para identificar pessoas, objectos e expressões textuais. Recentemente, o sistema foi usado no casamento real britânico entre o príncipe Harry e Meghan Markle, para confirmar a identidade dos convidados que chegavam. E, no Oregon, a tecnologia está a ser utilizada para identificar possíveis suspeitos a partir de fotografias de antigos prisioneiros. “A nossa qualidade de vida seria muito pior, se proibíssemos novas tecnologias, porque há pessoas que podem escolher abusar dessa tecnologia”, lê-se num comunicado da Amazon. “Como com qualquer serviço da Amazon, exigimos que os nossos clientes respeitem a lei. ”A União Americana pelas Liberdades Civis, uma organização não governamental nos EUA, não se convence e começou uma petição para impedir a venda do serviço. “A tecnologia de reconhecimento artificial não é neutra, independentemente daquilo que a Amazon possa dizer”, lê-se no texto que acompanha a petição. “Estes serviços automatizam a vigilância em massa e ameaçam a vida privada das pessoas fora do olhar do governo. ”Nos últimos anos, serviços do género têm-se tornado populares em alguns países autoritários. Desde 2016 que a cidade de Moscovo, na Rússia, está equipada com 140 mil câmaras com tecnologia de reconhecimento facial para encontrar criminosos e pessoas desaparecidas. A grande maioria, porém, fica à entrada de edifícios. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Na China, por outro lado, alguns polícias já andam equipados com óculos de realidade aumentada, que lhes permitem identificar as pessoas com quem se cruzam e fazer várias detenções. A tecnologia de reconhecimento facial junta-se a um sistema de pontuação social (ainda em fase de testes) em que as pessoas recebem pontos conforme o seu comportamento. O valor pode determinar o acesso ao emprego, o preço dos produtos, o lugar num comboio e até a pessoa para namorar (através de uma parceria com um serviço de encontros) ou a escola onde os filhos estudam. A tecnologia, porém, não funciona sempre bem e depende de vários factores, como a quantidade de luz, condições atmosféricas e qualidade das imagens captadas. No Reino Unido, mais de 2000 pessoas foram erradamente identificadas como possíveis criminosos num teste realizado na final da Liga dos Campeões de 2017, em Gales. A polícia atribuiu o erro de mais de 90% à má qualidade das imagens fornecidas, mas reforça que ninguém foi detido injustamente. Matt Jukes, chefe da força policial, garantiu que só são feitas detenções quando a identificação é confirmada por um humano. “Todos podem ficar tranquilos, porque não vamos simplesmente usar este recurso e agir em força contra as pessoas”, disse Jukes. Nos EUA, mais de 21 mil pessoas já assinaram a petição da União Americana pelas Liberdades Civis contra Amazon. Para a organização, serviços de reconhecimento facial “aumentam a possibilidade de grupos definidos como suspeitos por governos – como imigrantes ilegais e activistas negros – sejam vistos como alvos pelo sistema Rekognition”.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Depois do diagnóstico crítico, o Facebook tenta vários remédios
Da privacidade à política, foram postas em prática várias medidas para melhorar uma plataforma que é usada por mais de um quarto da humanidade. (...)

Depois do diagnóstico crítico, o Facebook tenta vários remédios
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento -0.03
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Da privacidade à política, foram postas em prática várias medidas para melhorar uma plataforma que é usada por mais de um quarto da humanidade.
TEXTO: O Facebook tem sido criticado por permitir a disseminação de desinformação e notícias falsas, por não conseguir lidar com o discurso de ódio, por estar a sugar o tempo e a atenção das pessoas, e por não lidar de forma segura com os dados e a privacidade dos utilizadores. Em Janeiro, Zuckerberg tinha anunciado como decisão de ano novo “resolver os problemas” da rede social – mas o escândalo Cambridge Analytica revelado em Março mostrou o muito que está por fazer. Nos últimos meses, o Facebook tem vindo a experimentar vários remédios que tentam melhorar uma rede social que se transformou numa gigantesca plataforma de informação global e que tem potencial para influenciar referendos e eleições. Em Abril, a rede social avançou com um novo conjunto de regras para estes anúncios políticos, que se aplicam não apenas aos anúncios comprados por uma campanha, mas também aos anúncios sobre temas políticos (por exemplo, políticas de emigração). Nos EUA, quem quiser pagar para exibir este tipo de anúncios terá a sua identidade verificada pelo Facebook, de forma a garantir que se trata de uma pessoa ou organização do país em causa. Por ora, esta medida está em vigor apenas nos EUA, mas deverá alargar-se ao resto do mundo. Estes anúncios também serão assinalados como sendo políticos e indicarão aos utilizadores quem pagou por eles, de forma semelhante ao que acontece, por exemplo, nos anúncios televisivos. Para além disto, o Facebook está a testar uma funcionalidade que permite aos utilizadores verem todos os anúncios que uma determinada página está a fazer e criar um arquivo pesquisável de anúncios políticos. O Facebook adoptou as medidas impostas pelo Regulamento Geral para a Protecção de Dados, que entra esta semana em vigor. Teve de pedir novos consentimentos aos utilizadores e explicar melhor os termos de uso. Também simplificou a página onde são geridas as definições de privacidade. Estas medidas, no entanto, aplicam-se apenas a utilizadores na União Europeia. Quando foi ouvido no Congresso dos EUA, Zuckerberg não pôs de lado a hipótese de adoptar nos outros países algumas das regras europeias – mas não é claro se, quando e até que ponto isso vai acontecer. A empresa já transferiu a sua relação legal com os utilizadores não europeus para a sede nos EUA. Até recentemente, a maioria destes utilizadores estava vinculada às regras da sede europeia, na Irlanda. No início de Maio, foi anunciada uma funcionalidade que permitirá aos utilizadores apagar o registo de alguma da actividade que o utilizador fez com a conta do Facebook. Isto inclui os sites que visitou e sites com que interagiu recorrendo a ferramentas do Facebook (por exemplo, o botão “gosto”, que muitos sites mostram. Esta é uma funcionalidade inspirada na limpeza do historial que existe em navegadores da Web. A rede social avisou que serão precisos meses de desenvolvimento para a disponibilizar. Na sequência do caso da consultora política Cambridge Analytica, que através de um académico acedeu indevidamente aos dados de 87 milhões de utilizadores, o Facebook lançou uma investigação interna à forma como as aplicações (que podem ser jogos ou questionários, por exemplo) usam os dados dos utilizadores. Acabou a suspender cerca de 200 aplicações (que não identificou) enquanto averigua se de facto houve acesso ilícito a informação. O Facebook está a eliminar todas as parcerias com empresas de consultoria de dados, num processo que deverá estar concluído até Setembro. Isto quer dizer que quem faz publicidade na rede social vai deixar de poder recorrer àquele género de empresas para cruzar a informação disponível no Facebook (por exemplo, o número de telemóvel dos utilizadores) com dados recolhidos por empresas especializadas sobre o comportamento das pessoas fora da Internet, como o histórico de compras em lojas ou a propriedade de habitação. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ao contrário de outras empresas de tecnologia, como a Apple, o Google e o Twitter, o Facebook tem o mesmo presidente executivo desde que foi fundado. Mas os últimos acontecimentos levaram a uma reestruturação da empresa e a mexidas em alguns cargos de topo. A empresa vai ser dividida em três grandes estruturas: uma responsável pelo desenvolvimento dos grandes produtos (como o Facebook, o Instagram e o WhatsApp), outra dedicada a tecnologias emergentes (como realidade virtual e inteligência artificial) e uma terceira dedicada a operações de negócio e questões como segurança informática. Cada uma destas estruturas está sob a alçada de um executivo. No topo da pirâmide continuam Mark Zuckerberg e a directora de operações, Sheryl Sandberg. A empresa vai abrir as suas bases de dados para académicos que queiram investigar o impacto das redes sociais em eleições. A iniciativa é financiada por várias fundações dos EUA e passa por criar um comité independente de académicos que será responsável por solicitar e avaliar propostas de investigação. Os resultados serão publicados após um processo de peer review e sem que seja necessária qualquer aprovação do Facebook. “Olhando para trás, é claro que fomos demasiado lentos a identificar interferências nas eleições de 2016, e temos de fazer melhor em futuras eleições”, afirmou Zuckerberg quando anunciou esta medida.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
“Vamos ter de voltar a aprender a ter tempo livre”
Os robôs e as máquinas inteligentes vão ocupar cada vez mais postos de trabalhos. “Vamos ter mais tempo livre”, antecipa Ana Sofia de Carvalho, do Grupo Europeu de Ética em Ciências e Novas Tecnologias. Mas isso será um desafio. (...)

“Vamos ter de voltar a aprender a ter tempo livre”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.2
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os robôs e as máquinas inteligentes vão ocupar cada vez mais postos de trabalhos. “Vamos ter mais tempo livre”, antecipa Ana Sofia de Carvalho, do Grupo Europeu de Ética em Ciências e Novas Tecnologias. Mas isso será um desafio.
TEXTO: Por entre os receios de que os robôs e a inteligência artificial roubem empregos, há previsões que mostram algum optimismo: dados recentes da OCDE apontam para 14% de empregos em risco, enquanto estudos anteriores indicavam valores perto da metade do total. Porém, não é razão para celebrar, argumenta a académica Ana Sofia Carvalho, que integra o Grupo Europeu de Ética em Ciências e Novas Tecnologias. Diz que a “perda ainda é significativa” e que “é preciso preparar os 14%”. Em entrevista ao PÚBLICO, Ana Sofia Carvalho, também directora do Instituto de Bioética da Universidade Católica no Porto, alerta que é fundamental organizar as novas gerações para um futuro em que vai haver menos empregos, mais robôs, mais necessidade de redistribuir e mais tempo livre. A previsão de 14% da OCDE é bem mais optimista do que as anteriores. O que explica os números tão diferentes?Em parte, as variações na metodologia. O relatório da OCDE surge como contraponto a um estudo de 2013 de Oxford que prevê 47% de perdas de postos de trabalhos nos EUA devido à automação. O que é realmente preocupante, e que este relatório da OCDE não contradiz, é que não se sai dos dois dígitos. Portanto, 47% é algo que me deixa completamente histérica, agora 14% deixa-me muitíssimo inquieta na mesma. Mas 14% é uma percentagem mais optimista. A economia como um todo não tem uma cara. Esses 14% têm uma cara. São pessoas que vão viver um drama, que é o drama do desemprego. Como se diz, o tempo tudo cura menos o desemprego. É algo que se agrava com o tempo. Pode ter menos impacto sobre as pessoas, mas a dimensão ética não é diferente. Há ideias como “esta é a quarta revolução industrial e a sociedade subsistiu a todas as outras revoluções industriais”. Mas basta ler [o sociólogo Max] Weber sobre a primeira revolução industrial e o efeito na Alemanha. A sociedade como um todo subsistiu, mas quantas pessoas se suicidaram, quantas pessoas viveram na miséria total?E quais vão ser os primeiros trabalhos a ser afectados?O primeiro impacto vai ser na franja mais frágil da sociedade, uma vez mais: tarefas rotineiras, trabalhadores menos qualificados. Teoricamente, nas pessoas em situações mais precárias e nos jovens. Como o relatório da OCDE confirma, há muito mais perigo de desemprego jovem do que de reformas antecipadas. Há um fosso geracional brutal. A quantidade de emprego vai diminuindo, e aqueles que precisam de entrar no mercado de trabalho não conseguem. Têm uma barreira automática com a falta de experiências, e depois há uma quantidade de contratos a prazo, part times involuntários. A Comissão Europeia defende que a criatividade é uma das grandes barreiras para as máquinas e a inteligência artificial. É preciso reforçar as áreas das humanidades?Isto é um debate muito recente. Quando começámos a discutir este assunto no Grupo Europeu de Ética e ouvimos diferentes peritos, a ideia era investir nas áreas das ciências e da tecnologia, e nas tarefas associadas à programação. Hoje assiste-se a uma inversão desse discurso, no sentido de dizer que também é importante focar questões associadas à comunicação e à flexibilidade. É preciso voltar a repensar o papel daquilo a que durante décadas chamámos “soft skills”. Mas, mais do que trabalhar em determinadas competências, é preciso trabalhar os valores das pessoas e é algo de que se fala pouco. Com a automação, o mundo vai ser de tal forma diferente que todas as soluções vão ter de ser no sentido de redistribuir e vão obrigar a que as pessoas tenham e pratiquem um conjunto de valores a que não estão habituadas. Pode dar alguns exemplos específicos?O rendimento básico universal ou a semana de 15 horas. É partilhar dinheiro, partilhar tempo, partilhar trabalho, é partilhar um conjunto de circunstâncias para diminuir o fosso da desigualdade. E isto obriga a uma mudança muito significativa nos valores das pessoas, e é para isso que também temos de preparar os jovens. Antes de perceber como é que se tem de resolver o problema, é preciso perceber qual é o problema. Devido às circunstâncias vai haver uma ruptura — seja ela encarada como um perigo ou como um desafio. Vamos ter mais tempo livre. Mas as pessoas sabem ter mais tempo livre? Tudo isso obriga a mudanças tão significativas que vamos ter de reestruturar para manter o equilíbrio que permita a dignidade de todos. Voltando às soft skills: como é que fazem a diferença?Teoricamente, a nível matemático e científico, a máquina poderá fazer melhor do que o humano, mas a nível relacional, que é o auge do ser humano, este não pode nunca ser substituído pela máquina. É preciso haver equilíbrio: formar bons técnicos, mas também investir em competências essenciais como trabalho em equipa e o pensamento crítico. No parecer mais recente, o Grupo Europeu de Ética em Ciências e Novas Tecnologias considera um equívoco dizer que a tecnologia ou os algoritmos são autónomos. O que é que se quer dizer com isto?A autonomia é uma característica do ser humano. Adjectivar uma máquina, computador ou uma inteligência de autónoma não faz sentido. É possível, no entanto, que o ser humano conceda alguma autonomia à tecnologia, mas a última palavra deve ser sempre do ser humano. É sobre estas questões que o Grupo Europeu de Ética se está a pronunciar, especialmente, no caso das armas autónomas de destruição maciça e dos carros autónomos. Como é que isto se faz? O que está a ser debatido no Grupo Europeu de Ética?Nós não propomos regulação. Propomos matrizes éticas, que devem ser consideradas quando se vai discutir política. No nosso parecer mais recente, defendemos que a decisão não pode nunca ser de uma máquina. Tem de haver um processo de rastreabilidade para a pessoa. É claro que há tecnologias que precisam de regulação — por exemplo, os veículos autónomos. Esta questão, particularmente com as perdas de trabalho, tem de ser muito da base para o topo. E qual é a base?É preciso envolver as pessoas nesta decisão. Há imensos países em que as pessoas estão a ficar revoltadíssimas com a tecnologia. A tecnologia não faz as regulações, nem faz as regras. Quem faz as regras e os regulamentos são os seres humanos. Para evitar este medo — e nós realmente vivemos numa Europa com medo do terrorismo, com medo da emigração e agora com medo da tecnologia — é preciso envolver as pessoas neste debate. Não é difícil, porque é uma área que interessa a todos. Como é que se envolve as pessoas?As grandes empresas têm de ter estratégias nesta área. É preciso começar a fazer um mapeamento dos tipos de emprego que podem vir a desaparecer com o investimento em novas tecnologias, e terão de se encontrar estratégias para evitar que as pessoas percam o emprego. Ou, pelo menos, dar-lhes competências para entrar de novo no mercado de trabalho. Temos de parar de fazer treino de competências técnicas para algo que a pessoa já executa. A robótica vai ter mais impacto do que a inteligência artificial?Sim. A robótica está aí e já há empresas com uma enorme taxa de robotização. A Adidas montou fábricas de raiz na Alemanha onde consegue produzir uns ténis num terço do tempo que produz no Bangladesh. Se as empresas europeias se deslocalizavam por causa do preço da mão-de-obra, com a robótica podem voltar ao inshoring [abrir operações em solo nacional]. Do ponto de vista macroeconómico, para a Europa, é fantástico, porque aumenta claramente os dividendos. Mas do ponto de vista da pegada e da destruição que deixa nos outros países, é uma circunstância muito complicada. E todos falam da deslocalização só num sentido. Isto também são impactos éticos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Já a inteligência artificial, há quem diga que está longe, há quem diga que está perto. Mas ainda não é claro e provoca consequências diferentes. A robótica substitui tarefas rotineiras e não cognitivas, já a inteligência artificial substitui tarefas não rotineiras e cognitivas. Mesmo ao nível da criatividade?Não sei. Há imensas experiências na área da medicina. Experiências com “professores” que têm inteligência artificial e conseguem responder aos alunos 24 horas por dia, sete dias por semana. Conseguem sempre perceber se o aluno está a gostar ou se é preciso alterar alguma coisa. O grande impacto será claramente ao nível da robótica e da diminuição tendencialmente significativa da perda do número de postos de trabalho disponíveis. E não interessa se estamos a falar de 14%, ou se estamos a falar de 47%, é sempre significativa. E o lado positivo da robótica e da automação?Vamos ter muito mais tempo para fazer voluntariado, tomar conta dos filhos e eventualmente isso até será pago. Mas isso obriga a uma mudança radical da vida social, e nós não estamos preparados para isso. Ao contrário do que toda a gente imaginaria, os telemóveis e computadores não diminuíram o número de horas que passamos a trabalhar. As pessoas trabalham muito mais do que há uns anos. Fazemos Porto-Lisboa de comboio e conseguimos estar a mandar emails e a receber relatórios, o que não se fazia há uns anos, quando podíamos ler um livro descansados. Fomos habituados a trabalhar loucamente, e agora dizem-nos que não vamos conseguir continuar a fazer isto e, por isso, vamos ter de fazer redefinições e vamos ter de voltar a aprender a ter tempo livre.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE