Rei saudita apoia Mubarak, União Africana está preocupada com a violência
O rei da Arábia Saudita telefonou a Mubarak a manifestar o seu apoio. A União Africana está “preocupada” com a violência das manifestações no Egipto. O mundo, e sobretudo a região, estão de olhos postos nos acontecimentos no Cairo. (...)

Rei saudita apoia Mubarak, União Africana está preocupada com a violência
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 12 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-01-29 | Jornal Público
SUMÁRIO: O rei da Arábia Saudita telefonou a Mubarak a manifestar o seu apoio. A União Africana está “preocupada” com a violência das manifestações no Egipto. O mundo, e sobretudo a região, estão de olhos postos nos acontecimentos no Cairo.
TEXTO: “O Egipto está a viver uma situação preocupante que devemos acompanhar com atenção”, disse à AFP o presidente da Comissão da União Africana, Jean Ping, durante uma conferência em Addis-Abeba, na Etiópia, onde teve início a 16ª cimeira da organização. “No seguimento do que se passou na Tunísia, estamos a acompanhar o que se passa agora e estamos preocupados”, adiantou. Nas ruas de várias cidades do Egipto milhares de manifestantes pedem o fim do regime do Presidente egípcio, Hosni Mubarak, e dos confrontos já resultaram pelo menos 85 mortes. Na Arábia Saudita, o rei Abdullah telefonou a Mubarak para lhe manifestar o seu apoio e denunciar “os atentados contra a segurança e a estabilidade" no Egipto. O chefe de Estado saudita, que se encontra actualmente a convalescer em Marrocos, disse ainda, citado pela AFP, que esses atentados estão a ser cometidos por grupos infiltrados “em nome da liberdade de expressão”. Foi o primeiro líder de um país árabe a reagir aos acontecimentos no Egipto que estão a ser encarados como uma espécie de prolongamento por contágio da revolução tunisina que derrubou o Presidente Ben Ali e que se alastra a boa parte da região. “O povo e o Governo da Arábia Saudita condenam fortemente [os acontecimentos no Egipto] e estão, com todas as suas capacidades, ao lado do Governo”, disse Abdullah, segundo a agência oficial saudita. Também o líder líbio Muammar Khadafi telefonou a Mubarak, mas não foram divulgados pormenores sobre esse contacto, adiantou a AFP com base em informações da agência líbia Jana. Mubarak fez sexta-feira as primeiras declarações em público após o início dos protestos, há cinco dias, durante as quais anunciou a demissão do Governo mas não deu sinais de pretender abandonar o poder.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave espécie
Confrontos entre cristãos e muçulmanos causam 35 mortos na Nigéria
Confrontos entre cristãos e muçulmanos, que começaram devido à destruição de uma mesa de bilhar, causaram 35 mortos no centro da Nigéria. (...)

Confrontos entre cristãos e muçulmanos causam 35 mortos na Nigéria
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 12 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-01-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Confrontos entre cristãos e muçulmanos, que começaram devido à destruição de uma mesa de bilhar, causaram 35 mortos no centro da Nigéria.
TEXTO: Os distúrbios terão começado por questões de dinheiro. Um jogador muçulmano deitou fogo a uma mesa de bilhar de uma sala de jogos de um proprietário cristão no centro da Nigéria. “Trinta e cinco pessoas foram mortas na sequência de violência religiosa em Tafawa Balewa na quinta-feira”, disse à AFP o chefe da polícia local, Abdulkadir Mohammed Indabawa. Na semana anterior a polícia também já tinha confirmado quatro mortes em cinco mesquitas e cinco casas que também foram incendiadas. A violência começou com uma discussão sobre dinheiro entre um muçulmano e o proprietário cristão de uma sala de bilhar. Inicialmente um grupo de anciãos terá procurar intervir mas uma mesa de bilhar foi incendiada. “Os jovens cristãos acusaram os muçulmanos desse acto”, adiantou Indabawa. A localidade de Tafawa Balewa já foi palco de diversos confrontos entre cristãos e muçulmanos, por estar localizada no estado de Plateau, entre a região predominante muçulmana do Norte do país e a região Sul, maioritariamente cristã. Na Nigéria tem havido vários episódios de violência, grande parte na cidade de Jos, entre grupos de muçulmanos e de cristãos.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave violência
Petrobras quer desenvolver estudos na costa oeste africana para exploração de petróleo
A Petrobras está “motivada” para desenvolver estudos regionais na costa oeste africana para a exploração de petróleo em águas profundas e ultra-profundas, afirmou hoje o representante da área internacional da companhia. (...)

Petrobras quer desenvolver estudos na costa oeste africana para exploração de petróleo
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 12 | Sentimento 0.1
DATA: 2010-12-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: A Petrobras está “motivada” para desenvolver estudos regionais na costa oeste africana para a exploração de petróleo em águas profundas e ultra-profundas, afirmou hoje o representante da área internacional da companhia.
TEXTO: “Dada a similaridade geológica do Brasil, a Petrobras tem motivação de desenvolver estudos regionais com esta característica”, afirmou Carlos Alberto de Oliveira, gerente executivo de suporte técnico de negócios da área internacional da petrolífera. A actuação da Petrobras na costa ocidental do continente faz parte da estratégia da petrolífera brasileira de procurar oportunidades em águas profundas e ultra-profundas no continente. Segundo declarou Oliveira, que falou hoje à imprensa num balanço feito de 2010 pela Petrobras, o posicionamento da empresa em África dependerá do “avanço” no desenvolvimento das actividades exploratórias em função dos estudos. “É uma área onde a gente está a desenvolver”, garantiu ao destacar que a Petrobras hoje tem posições destacadas em Angola, Nigéria e Namíbia. A Petrobras está presente em Angola desde 1979, após a independência do país em 1975. Recentemente foi anunciada uma nova descoberta no poço Cabaça Sudeste-2, localizado a cerca de 100 quilómetros da costa numa profundidade de água de 470 metros. A empresa estatal mantém contratos de exploração e produção, através da participação em seis blocos marítimos, estando um já em produção e outros cinco em exploração. Somente nos blocos em que opera, há o compromisso de perfurar 11 poços até 2011.
REFERÊNCIAS:
Países Brasil Nigéria Angola Namíbia
Antigo ditador centro-africano Bokassa foi hoje reabilitado
Jean-Bedel Bokassa, o ditador da República Centro-Africana que em 1976 se proclamou imperador e na coroação gastou um terço do Orçamento anual, foi hoje formalmente reabilitado por um decreto presidencial. (...)

Antigo ditador centro-africano Bokassa foi hoje reabilitado
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 12 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-12-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Jean-Bedel Bokassa, o ditador da República Centro-Africana que em 1976 se proclamou imperador e na coroação gastou um terço do Orçamento anual, foi hoje formalmente reabilitado por um decreto presidencial.
TEXTO: Num extraordinário volte-face por parte de um país cujos cofres delapidou, aquele que chegou a ser considerado o mais feroz ditador africano da década de 1970, ao qual só se poderia comparar o ugandês Idi Amin Dada, foi agora “reabilitado em todos os seus direitos” pelo actual Presidente da República, François Bozizé, que chegou ao poder em 2003, graças a uma rebelião. Catorze anos depois de “Sua Majestade Imperial Salah Eddine Ahmed Bokassa” ter morrido, após ter sido derrubado em 1979, Bozizé achou por bem assinar um decreto a afirmar que ele foi “um filho da nação, reconhecido por todos como um grande construtor”. Num discurso feito aos seus compatriotas, para assinalar os 50 anos de independência da antiga colónia francesa do Ubangui-Chari, que em 1960 passou a chamar-se República Centro-Africana, François Bozizé, que chegou a ser ajudante de campo do autoproclamado monarca, afirmou a dada altura: “Ele construiu o país, mas nós destruímos o que ele construiu”. De acordo com o ponto de vista do actual detentor do poder, o homem que se coroou à imagem e semelhança de Napoleão Bonaparte “fez muito pela humanidade, ao participar ao lado da França na guerra do Vietname, de 1950 a 1953". Na cerimónia de hoje, Bozizé não só condecorou a viúva de Bokassa, a antiga “imperatriz Catherine”, como a sua própria mulher, Monique Bozizé, e as esposas de dois outros antigos presidentes com uma medalha de honra daquele Estado do interior de África. Durante os 14 anos em que esteve no poder, Jean-Bedel Bokassa mandou assassinar alguns dos seus adversários e foi até acusado de canibalismo, mas em Setembro de 1993, sete anos depois de ter regressado a Bangui, voltava a dar que falar, concedendo audiências fardado de marechal. E chegava a chamar o chefe do antigo coro da corte, para que entoasse o "hino imperial", como se o tempo não tivesse passado. Nos tempos da sua desgraça, fechado no castelo francês de Hardricourt, durante o exílio, o antigo ditador ainda apelou em vão para alguns dos políticos internacionais com quem durante algum tempo convivera, tendo ficado conhecida uma sua mensagem ao Presidente Valery Giscard d’Estaing a perguntar se já não se lembrava daquela caixa de diamantes que um dia lhe tinha oferecido. Foi tudo em vão, os velhos amigos europeus viraram-lhe as costas, a ele, que chegou a assinar uma carta como "imperador, marechal e apóstolo, servidor de Cristo". Mas hoje um dos antigos ajudantes de campo mostrou-se absolutamente grato à sua memória, “reabilitando-o em todos os seus direitos”. Mesmo que não se saiba muito bem o que é que isso quererá dizer.
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
WikiLeaks: Pfizer fez pressão para evitar ser processada na Nigéria
A farmacêutica Pfizer procurou obter informações comprometedoras acerca do antigo procurador-geral da Nigéria, Michael Aondoakaa, para evitar ser processada devido a um ensaio clínico que acabou por causar a morte de 11 crianças, de acordo com documentos diplomáticos divulgados pela WikiLeaks. (...)

WikiLeaks: Pfizer fez pressão para evitar ser processada na Nigéria
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 12 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-12-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: A farmacêutica Pfizer procurou obter informações comprometedoras acerca do antigo procurador-geral da Nigéria, Michael Aondoakaa, para evitar ser processada devido a um ensaio clínico que acabou por causar a morte de 11 crianças, de acordo com documentos diplomáticos divulgados pela WikiLeaks.
TEXTO: O telegrama em que as pressões são referidas foi publicado pelo diário britânico “Guardian”, e nele se fica a saber que o responsável pela Pfizer na Nigéria, Enriço Liggeri, informou os responsáveis norte-americanos sobre a questão num encontro a 9 de Abril de 2009. “Segundo Liggeri, a Pfizer contratou investigadores para descobrir eventuais casos de corrupção ligados ao procurador-geral Michael Aondoakaa, de forma a pressioná-lo a abandonar o caso”, adiantou a AFP. A Pfizer negou ter contratado alguém para investigar o procurador-geral nigeriano. Em Julho passado acabou por assinar com o Governo da Nigéria um acordo de 75 milhões de dólares relativo ao ensaio clínico de um medicamento para a meningite, Trovan, em 1996. O medicamento foi testado em 200 pessoas e 11 crianças acabaram por morrer. Em comunicado, a Pfizer adiantou que negociou o acordo “de boa-fé”.
REFERÊNCIAS:
Tempo Julho Abril
Katrina: Dez anos depois há meio milagre
O jornalista Gary Rivlin viveu os oito meses que se seguiram ao Katrina em New Orleans. Reportou então a vida da cidade diariamente para o New York Times. Agora aparece com um livro onde questiona a reconstrução e aponta o dedo a uma política de discriminação. (...)

Katrina: Dez anos depois há meio milagre
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 11 | Sentimento -0.05
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O jornalista Gary Rivlin viveu os oito meses que se seguiram ao Katrina em New Orleans. Reportou então a vida da cidade diariamente para o New York Times. Agora aparece com um livro onde questiona a reconstrução e aponta o dedo a uma política de discriminação.
TEXTO: Dez anos depois do Katrina há uma população que celebra a reconstrução de New Orleans e outra que se interroga acerca de quando essa reconstrução estará concluída, ou se alguma vez estará. O jornalista Gary Rivlin chama a essas duas perspectivas sobre o actual estado da capital do Louisiana “a narrativa branca” e “a narrativa negra”. Uma e outra representam, segundo ele, o fosso entre brancos e negros, que se acentuou ainda mais no período pós-furacão. Diz ainda que o fim desta história é neste momento imprevisível. New Orleans não é o milagre de que todos falam, mas apenas “um meio milagre”. A expressão é do jornalista, que não aposta num final feliz. “Estou pessimista, por mais que essa minha posição irrite os dirigentes locais”, afirma à Revista 2 dias depois de publicar Katrina: After the Flood (Simon & Shuster), um livro em que faz o retrato da última década na região devastada por um dos mais violentos furacões da História dos Estados Unidos da América. Desde o momento em que se anunciava a tempestade até ao momento em que se anuncia agora, quase formalmente, o fim do trabalho de recuperação da catástrofe. “O que aconteceu em Agosto de 2005 pode ter parecido irreal em muitos aspectos, ou mesmo surreal, mas não é menos surreal que a cidade continue com tanto por fazer, que continue a não existir um hospital público, que projectos de habitação pública não tenham avançado e que o mayor venha declarar publicamente que a reconstrução da cidade terminou, que New Orleans está recuperada do Katrina. Ele fez estas declarações em Maio deste ano. Isto é surreal. ”Gary Rivlin viveu oito meses em New Orleans depois do furacão. “A água continuava a cobrir grande parte de New Orleans na primeira vez que vi a cidade depois do furacão Katrina”, conta numa nota de autor onde descreve ainda as circunstâncias que o levaram ao cenário de catástrofe uma semana depois de estar a escrever sobre o Google, o Facebook e Silicon Valley na delegação de São Francisco do New York Times. Rivlin era repórter da secção Nacional quando foi chamado a ajudar na cobertura do Katrina. “A minha New Orleans era a New Orleans dos turistas: Bourbon Street, Mardi Gras, o Festival Jazz & Heritage. Não tinha qualquer ligação com alguém que vivesse lá. ” O seu novo escritório seria por ali, em qualquer lugar onde pudesse escrever umas linhas e enviá-las para o jornal. Encontrou-o já determinado por colegas que tinham chegado antes dele. Chamaram-lhe “a plantação”, uma velha casa de colunas em Bourbon Street, no centro, e que antes do Katrina era alugada para festas. Seria ali a mais recente redacção do New York Times. Gary Rivlin escrevia diariamente sobre a devastação e o modo como a cidade reagia a dias de ventos fortes, chuvas torrenciais e a invasão do mar. O livro é a história dessa experiência através das pessoas que conheceu e o ajudaram a conhecer a realidade. É por aí que a conversa começa, quando Rivlin viaja num comboio para Nova Iorque, onde vai apresentar Katrina: After de Flood numa livraria de Union Square. Natural de North Woodmere, na costa sul de Long Island, onde nasceu em 1958, Gary Rivlin foi jornalista no New York Times, na New York Times Magazine, Wired e Newsweek, é autor de vários livros em que cruza ensaio e reportagem. Ao ler Katrina: After de Flood — mesmo para quem não tenha lido mais nada sobe New Orleans — estamos perante uma velha história que prolonga uma ferida antiga. A narrativa das tempestades em New Orleans é longa. Teve um dos seus episódios maiores em 1927, com aquela que ficaria conhecida como a Grande Tempestade, quando o Mississípi rompeu as fronteiras do seu percurso há pouco tempo alteradas por uma população cansada de destruições cíclicas que queria domesticar o rio. Então, a água quebrou as barreiras e invadiu uma área de 27 mil metros quadrados, atingindo quase três metros de altura e fazendo milhares de desalojados, sobretudo entre a população negra, a grande força laboral da região. A história não se repetiu da mesma forma em Agosto de 2005. Teve outras consequências. Havia imagens e elas revelaram mais do que números. Corpos à tona da água, milhares de hectares submersos, casas destruídas, gente sem saber para onde ir. Escreveu-se que depois do Katrina a América perdeu “alguma inocência” em relação à pobreza no país. A reconstrução deveria limpar isso?A 29 de Agosto, a 11. ª tempestade a merecer nome naquele ano atingia o Louisiana com ventos de 280 quilómetros por hora, causando cerca de mil mortes e um milhão de desalojados. “Durante vários dias, o mundo assistiu em directo à tragédia de uma cidade submersa e de uma população encurralada. O país dava uma imagem de enorme fragilidade, o Governo Federal recebia críticas de todo o lado”, lembra Rivlin. Como é que o país que invadira o Iraque dois anos antes e declarava uma guerra universal ao terrorismo não era capaz de evitar uma tragédia interna? “Hoje olho para isso de outra forma. Não é fácil ter uma câmara apontada para uma tragédia daquelas. Hoje não culpo o Governo Federal pelo estado de aparente anarquia que se instalou nem o que se seguiu de imediato. Culpo a gestão da cidade e a gestão do estado do Louisiana… Houve decisões tontas e outras totalmente erradas”, aponta Gary Rivlin, remetendo para os números e uma enumeração exaustiva de medidas, programas, experiências suportadas por testemunhos de quem as viveu, num relato intenso onde parte de muitas perguntas às quais tenta dar resposta. “Como está hoje New Orleans?” é apenas a mais abrangente. “Está dividida”, responde. “Sinceramente, acho que em muitos aspectos está pior do que antes. ”Sabe que esta sua resposta vai a escrutínio cerrado numa data que soa a celebração. “New Orleans é uma cidade que continua muito sofrida. A parte do centro, do chamado French Quarter, o mais conhecido, parece recuperada. Mas é preciso sair dali, percorrer o resto da cidade, ver que há bairros que continuam como no primeiro ano depois do Katrina, um destroço. Há muitas pessoas, como o mayor e alguns dirigentes políticos locais, que estão chateadas comigo. Eles querem que me junte a eles, vêm ter comigo a falar de recuperação, querem que entre no discurso da cidade-milagre; uma cidade que se recuperou a si própria e está melhor do que nunca; que há uma resiliência na população e há heróis. Mas eu não estou pronto para lhe chamar um milagre. Chamo-lhe um meio milagre. Continuo à espera da outra metade do milagre de que se fala. ”Há uma resiliência na população e há heróis. Mas eu não estou pronto para lhe chamar um milagre. Chamo-lhe um meio milagre. Continuo à espera da outra metade do milagre de que se falaE terá de ser um milagre maior do que New Orleans, porque parte do que News Orleans foi e é faz parte de um legado maior. Talvez quem como ele tenha assistido aos primeiros dias após o Katrina possa fazer a mesma leitura: a de que o preconceito, o “favorecimento”, a “desigualdade”, o “esquecimento” que se manifestaram nesse início de salvamento marcaram todo o período seguinte: o da recuperação. “A tragédia aqui é que houve um desastre que causou a destruição de uma comunidade e as políticas locais que apareceram favoreceram as comunidades mais privilegiadas. Houve uma sobreposição de interesses. Cinquenta e quatro por cento das habitações em New Orleans eram alugueres por altura do Katrina e não houve qualquer plano ou ideia para ajudar estas pessoas, um plano para as trazer de volta depois do acidente. ” Como? “Por exemplo, arranjar casas a baixos custos. O alojamento é tão raro depois do Katrina que o mercado simplesmente inflamou; as rendas subiram de tal maneira por falta de oferta que se torna incomportável pagá-las. Isso afectou mais de metade da cidade. Mais de metade da cidade ficou sem ajuda. ”Rivlin não esconde o desalento pelo que considera serem políticas de exclusão. No livro, socorre-se também de declarações de testemunhas — centenas — a que junta números reveladores para o peso que questões raciais ou de classe desempenharam nesta reconstrução. Não foi apenas no salvamento imediato que essa diferença se manifestou. Ela era mais profunda, fazia parte do modo como toda a cidade estava estruturada. Na noite anterior à tempestade, Alden J. McDonald Jr. , o presidente do maior banco de que a comunidade negra é proprietária nos Estados Unidos, o Liberty Bank and Trust, reservou vários quartos no Hyatt de New Orleans, um edifício sólido, considerado um dos mais seguros da cidade. Vários serviços de emergência mudaram-se para lá durante a tempestade (e foi de lá que o mayor dirigiu os trabalhos de prevenção e salvamento). “Teoricamente, prometia aos seus convidados um ancoradouro seguro no caos”, continua Rivlin. “McDonald acordou cedo na sua casa naquela manhã do último domingo de Agosto. Dormiu talvez três ou quatro horas. O Centro Nacional de Furacões classifica cada tempestade tendo por base a força dos ventos. Quando McDonald e a sua mulher, Rehsa, se foram deitar na noite de sábado, o centro tinha classificado o Katrina como uma tempestade forte de categoria 3. Naquela manhã cedo, a tempestade subira na escala para a categoria 5. Não há categoria 6”, escreve Rivlin. Foi um dos furacões mais arrasadores da história dos EUA. Na manhã daquele domingo, depois de McDonald beber o café, eram muitos os avisos. A tempestade parecia-se com a de 1927. Sendo natural de New Orleans, McDonald tinha ouvido falar muito na Grande Tempestade. Ele nascera na zona leste da cidade, aquela onde vivia a maior comunidade afro-americana pertencente à classe média. Era filho de uma criada e vivia agora em Lake Forest Estates, um enclave de ricos. “Pouco depois das oito da manhã, McDonald saltou para o volante do seu BMW vermelho descapotável. Só mais tarde iria perceber que aquela viagem à volta de New Orleans Leste era uma espécie de despedida à que fora a sua casa durante mais de trinta anos. ‘Este é o meu povo’, diria sobre os residentes de New Orleans Leste quando o mayor Ray Nagin, um mês depois do Katrina, o nomeou para uma comissão encarregada de determinar que partes da New Orleans submersa seriam reconstruídas e que partes seriam devolvidas ao pantanal numa cidade destinada a perder residentes. ” New Orleans será uma cidade mais pequena. Já é. Perdeu cerca de 200 mil habitantes, tendo agora 378 mil. Alden McDonald é apenas uma das personagens que Rivlin segue. Como ele, há políticos — republicanos e democratas —, activistas sociais, motoristas, homens de negócios, médicos, bombeiros, homens e mulheres, brancos e negros. Esses testemunhos constituem a parte mais interessante de um livro que se tornou o projecto de vida de Rivlin nos últimos anos. Rivlin relata o quotidiano de uma cidade que foi sempre um caso à parte na História dos Estados Unidos e que para si representa um enorme foco de tensão que pode alastrar ao país, que faz parte do debate nacional e que vai marcar a agenda das eleições presidenciais de 2016. É a velha questão que a América parece incapaz de resolver: brancos versus negros. O modo como foi feita a reconstrução, ou os anos pós-Katrina, tem uma grande quota de responsabilidade no que se está a passar. “Estamos a falar de disparidades raciais, da maneira como políticas estão a influenciar e a aumentar essas disparidades, de como as leis tratam os afro-americanos de maneira diferente dos brancos. Isso é a história de New Orleans. Há muitos activistas negros de prestígio que aparecem a reivindicar a origem da frase que anda a percorrer a América nos confrontos mais recentes: black lives matter. Ela tem a génese em New Orleans, porque ali todos vemos rostos que revelam estar encurralados. O que se pode fazer, sendo negro pobre em New Orleans depois de ouvir o tal discurso de que a recuperação está feita? É sentir-se entregue a si mesmo sem meios, sentir-se abandonado. Houve outros que foram salvos numa história de grande desigualdade. Na primeira semana, todo o resgate foi tão desigual que se tornou claro o que se seguiria. A recuperação também não tem sido democrática. Isto, para mim, quer dizer muito sobre o debate que é actualíssimo na história deste país. ”A questão tem sido manifestada publicamente, em entrevistas e nas redes sociais desde que o livro foi publicado, no dia 11 deste mês de Agosto, e volta a ser sublinhada nesta conversa em que alerta para os potenciais perigos de um discurso que dê por concluída a reconstrução de New Orleans. Há uma longa tragédia de sobrevivência e persistência, mas também corrupção e aproveitamento, em que uma parte frágil da população serve a mais forte. “Aí, socialmente, a recuperação está por fazer”, afirma. O que se pode fazer, sendo negro pobre em New Orleans depois de ouvir o tal discurso de que a recuperação está feita? É sentir-se entregue a si mesmo sem meios, sentir-se abandonadoA canção de Bessi Smith Backwater blues é famosa no Louisiana. Conta outra reconstrução, a de Abril de 1927: “When it thunders and lightnin’ / and the wind begins to blow, There’s thousands of people / ain’t got no place to go. ” “Continua a ser verdade”, insiste Gari Rivlin. Katrina: After de Flood lembra as palavras que Richard M. Mizelle escreveu em Backwater Blues, o mesmo título da canção de Bessie, sobre a mesma tempestade. Diz ele que o que se passou então é apenas “parte de uma narrativa muito mais longa de como raça, classe, género e questões de sociais são a moldura do desastre ambiental”. No livro de Rivlin, tudo vem dessa moldura social de que falou Mizelle. Escreve agora: “Em grande parte da metade oeste da cidade, onde vivia a maioria branca, o Katrina foi mais uma inconveniência grave do que uma tragédia. A maior parte dos homens de negócios brancos que estavam nessa noite no Gino’s [um famoso restaurante italiano em Baton Rouge, com uma grande área de bar] estava frustrada por não poder voltar para casa, mas sabia que tinha uma casa e bens e um emprego para onde voltar. ”Rivlin conta, a propósito, a história de Lance Hill, branco, habitante da parte alta e privilegiada de New Orleans. Naquele dia 29, ele era “um homem branco no lado errado”, lê-se. Não era rico, era um activista que lutava pela igualdade de direitos, pela inclusão racial. Passeava de calções e T-shirt. “Depois do Katrina, se se estivesse em Uptown e se fosse branco, as pessoas assumiam que se era rico”, conta na reportagem de Rivlin: “Eu estava no meio de pessoas que estavam abertamente a planear uma cidade que fosse mais branca e influente do que era antes do Katrina. ” Essas pessoas pertenciam a uma aristocracia local, com raízes antigas na região. Nos dias em que esteve entre essas pessoas, Hill descreve conversas que confluíam para um ponto: “A sua visão era a de uma New Orleans à imagem daquela que os seus antepassados teriam gostado antes de a comunidade negra da cidade dominar a política local. ”O Katrina era o pretexto para chegar a essa realidade sonhada. “Para muitos, uma New Orleans alagada significava uma folha branca sobre a qual se poderia criar uma cidade nova e melhor. Build up, not out foi uma mantra familiar nas semanas após o Katrina. Bairros inteiros eram imaginados como jardins, enquanto outras partes da cidade seriam transformadas em minimetrópoles densas em projectos de condomínios. O mayor usou a comissão Bring New Orleans Back de modo a evitar qualquer outra opinião acerca do futuro da cidade. ‘Nós criámos um processo’, repetiu. ‘Agora deixem decorrer esse processo. ’”O mayor de então era Ray Nagin. Eleito em 2002, seria reeleito em 2006 e esteve em New Orleans até 2010. Negro, democrata, é um dos nomes mais visados neste livro de Rivlin. Cinco dias depois do furacão, saía da cidade, alegando que precisava de uma pausa para recuperar do cansaço. Foi recentemente condenado a dez anos de prisão por crime de corrupção. Mitch Landrieu, branco, católico, democrata, era então governador adjunto do Louisiana. Em 2010, substituiu Nagin. Desde 1978 que não havia um branco à frente dos destinos da cidade. O último fora o seu pai, Moon Landrieu. Mitch teve o voto de brancos e negros. Nas eleições, ele tinha tomado uma posição: reduzir os limites da cidade seria reduzir o seu destino. Numa entrevista pediu para não lhe chamarem um mayor branco, pediu ainda para não descreverem New Orleans como uma cidade maioritariamente negra. “New Orleans nunca foi uma cidade branca ou negra”, declarou. “É um melting pot. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Depois do Katrina estima-se que 80% da população afro-americana e 20% de brancos abandonaram a cidade. Os afro-americanos, apesar de terem diminuído de peso, continuam a representar 59% da população. Grande parte deles não gostou de ouvir Landrieu dizer que a reconstrução estava feita e a cidade pronta a enfrentar os desafios sociais e económicos. Resta perguntar a Rivlin qual é então a parte do milagre, a metade para celebrar. “A cidade é mais segura do que era há dez anos. Os turistas vão notar a diferença. Há novidade, há uma vibração, a parte histórica foi reconstruída e está fantástica. ”
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
“Se os marcianos vierem, dir-nos-ão: ‘vós, os humanos’. Não precisarão de mais adjectivos”
Raça, género e identidade são os tópicos de que Harryette Mullen, membro do movimento Cave Canem, se serve para construir uma poesia que quer falar do que é comum a toda a gente, e não apenas do que lhe é específico enquanto mulher, afro-americana e feminista. Os escritores negros, defende, devem escrever como quiserem, independentemente da cor. (...)

“Se os marcianos vierem, dir-nos-ão: ‘vós, os humanos’. Não precisarão de mais adjectivos”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 Animais Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 11 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-08-03 | Jornal Público
SUMÁRIO: Raça, género e identidade são os tópicos de que Harryette Mullen, membro do movimento Cave Canem, se serve para construir uma poesia que quer falar do que é comum a toda a gente, e não apenas do que lhe é específico enquanto mulher, afro-americana e feminista. Os escritores negros, defende, devem escrever como quiserem, independentemente da cor.
TEXTO: E se a poesia de Safo, a grega, soar a blues depois de traduzida para o inglês da América? Soou mesmo a blues a Harryette Mullen, a americana que aprendeu o som, o ritmo e a cadência da sua poesia com as línguas de poetas que não consegue ler no original. Assume o contágio entre o que escreve e essas palavras que sabe entender fora do seu significado original, ou convencional, e que transmuta para uma poesia comprometida com causas, mas sobretudo com a singularidade da sua voz. Eis Harryette Mullen, 64 anos, natural do Alabama, criada no Texas. Professora de literatura afro-americana na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, não é apenas a responsável por resgatar para a actualidade uma obra esquecida que entretanto foi considerada um clássico contemporâneo: Oreo, o único romance de Fran Ross. Publicado em 1974, o livro, que refaz a história de Teseu numa versão satírica protagonizada por uma rapariga negra, compondo um retrato cheio de humor da relação entre afro-americanos e judeus, ficou adormecido até 2015, quando Mullen convenceu um editor a reeditá-lo (em Portugal saiu na Antígona em 2016). Foi também por causa de Oreo que Harryette Mullen passou a fazer parte da História da literatura americana, mas isso é pouco para falar dela. Em Lisboa, onde veio participar no programa Lisbon Revisited – Dias da Poesia, que reuniu vários poetas na Casa Fernando Pessoa para celebrar os 130 anos do escritor português, Mullen agradece a atenção. “Nos Estados Unidos os jornais não se interessam por poesia”, sorri, os cabelos num desalinho que a faz parecer muito, muito nova, ainda mais quando combinados com o sorriso que lhe abre covas na face e lhe faz cerrar os olhos. Acabada de chegar de Los Angeles, onde vive, pede desculpa pelo cansaço e justifica o desinteresse dos media do seu país pela poesia com a vida, o quotidiano. “Estão interessados em coisas práticas. Na economia, em negócios, em comprar e vender, e a poesia nem sempre é o melhor para isso. ” Autora de nove livros em que conjuga humor, desafia convenções e joga com a linguagem de forma provocadora, diz que está sempre a dizer aos seus alunos que “a poesia só serve para perder dinheiro": "O poeta perde dinheiro, o editor perde dinheiro, o livreiro perde dinheiro. É preciso gostar de poesia por outras razões. ”Sem um único livro publicado em Portugal, Mullen deu-se a conhecer na Casa Fernando Pessoa através da tradução de outra poeta, Margarida Vale de Gato. E lê-se, por exemplo, assim em português: “Os lumes da minha maluca não são nada como o néon. Os refrescos da Royal são mais coral que o seu beijo. Se o Tide lava mais branco, bazucas mais beges que as dela não há. A sua trunfa eriçada dava um esfregão Bravo de aço. Se vi as cores da moda na revista Marie Claire, nas trombas dela não vejo pó de rouge sequer. E os elixires Tantum têm mais frescura que o verdor da axila da minha mais-que-tudo. Gosto quando abre a goela, mas a pop enlatada tem mais ritmo do que ela. Eu cá não me dou com Marilyn Monroes. A minha larica verde é tão feiinha que dói. Mas, fogo, para mim, o sex appeal da minha Choco-Shake mete num chinelo as manequins platinadas e as actrizes de cinema, esterlicadas que faz pena. ” É o poema Duma Parda, que contrasta com este, [Que penas as dela, que folhas]: “Que penas as dela, que folhas. Ondula toda em brisas. Fru-frus e franzidos que tem. Rufos que se imagina. Vestido estival, sua souplesse, ao vento leve, farfalhando os folhos, levantando as faldas, espreitando pelas cavas. Suas palavras espalhadas ao vento. Quem lhe ouve a voz, tão baixa, cada vinco ao toque suave. Recolhe as folhas espaventadas, as penas, as asas. ”Conotada com causas como a raça ou o feminismo, Harryette Mullen prefere falar em identidade. “Interesso-me cada vez mais pelo mundo no seu todo. Nos Estados Unidos temos a tendência para pensar que somos o mundo, e em Los Angeles é fácil acreditar nisso, porque o mundo vive lá; todos os dias se falam mais de 70 línguas na cidade, e cada uma das pessoas que as falam tem uma identidade e tem raça e tem género. E essa identidade não tem só a ver com o lugar de nascimento, mas com diferenças que influenciam o modo como experienciamos o mundo e que muitas vezes têm a ver com desigualdade, emigração, globalização. A raça está no fundo da pirâmide da diferenciação salarial. É a questão dos tais 99 versus um por cento em todo o mundo. ” A cor define a classe social, razões económicas sustentam o preconceito. “As pessoas simplesmente não têm as mesmas oportunidades de sucesso, de educação. Isso faz a diferença. ”Na poesia dela há isso, e também por isso é política. Mas Harryette Mullen quer mais; pretende que nela haja a universalidade que, justamente, o preconceito de raça não lhe quer conferir. “Enquanto escritora gostava que a minha poesia fosse representativa da humanidade, e a humanidade pode também ser feminina e pode ser negra ou de outras cores. Mas quando me chamam negra, ou quando chamam negra à minha poesia, dizem-me que não posso ser universal. Que sendo negra e mulher e feminista posso apenas ser específica. Porque não sou branca europeia, o tal cliché do universal. O que querem é que eu carregue uma identidade, ao contrário dos brancos, que são apenas humanos. É um complexo dizer que os europeus brancos representam a humanidade mas eu não. Também quero representar a humanidade. Sou humana. Se os marcianos chegarem aqui, dir-nos-ão: ‘vós, os humanos’. Não precisarão de todos esses adjectivos para nos descreverem. Talvez isso servisse para nos unir. Mas parece que não há marcianos, que Marte está vazio. ”Harryete Mullen cresceu numa pequena cidade do Texas, Fort Worth. A mãe era professora e por isso muito cedo na sua vida apareceu o interesse pelas palavras. “Não me lembro de aprender a ler ou a escrever. Aconteceu-me muito cedo, teria uns três ou quatro anos. O mundo em que eu e a minha irmã fomos criadas era como uma pequena escola. Havia secretárias, estantes e livros, era fácil fazer desenhos, pintar. E havia enciclopédias. Acho que começámos a ler e a escrever antes de termos consciência disso. Escrevo poemas desde muito pequenina, imitando o que estava à minha volta: a poesia das canções, das rimas para crianças. Isso é uma espécie de poesia natural quando somos muito novos. ”O aparente jogo infantil com as palavras permanece. Mas depois veio o combate a um ambiente que tendia a excluir. “O Texas é muito resistente a ideias liberais. Apesar de tudo, fui para a universidade, em Austin, um dos lugares mais liberais de todo o estado, muito diferente de Fort Worth. ” Fort Worth é cowboys. . . Tenta um retrato social desse lugar: “As pessoas que possuíam gado e terras eram os 'cow cattleman'; as que trabalhavam para elas e não tinham nem terra nem gado eram os 'cowboys', aquilo a que no México se chama de vaqueros. Alguns eram afro-americanos. Mas na sua maioria os negros que chegaram lá antes de eu nascer iam trabalhar para os matadouros. Em Fort Worth havia dois grandes centros de abate e por isso se formou ali uma numerosa comunidade negra. Os barbecues continuam a ser um grande acontecimento na comunidade”, ri-se. Logo regressa a Fort Worth e ao Sul. “Há um feriado não oficial, o Juneteenth [também chamado o Dia da Liberdade ou da Emancipação], celebrado pela comunidade negra. Depois de a escravatura ter sido banida por Abraham Lincoln, as pessoas no Sul continuaram a viver como escravas e a lutar pela sua liberdade durante muito tempo. Por isso celebram o feriado numa data diferente do dia oficial da emancipação. E, claro, celebram-no com muitos churrascos. ”Parte da poesia que Harryette Mullen escreve reflecte os sons que ouviu nesse lugar, e depois noutros e noutros, as várias formas de inglês, as diferentes línguas que de facto se falam nos Estados Unidos. “Ninguém fala o inglês standard, a não ser, talvez, os apresentadores de televisão. Há diferentes formas vernaculares de inglês. O do Norte é diferente do do Sul, o do Este é diferente do do Oeste, e ainda há o inglês do Midwest. Também há diferenças étnicas e raciais: há o chamado 'black english', há o 'spanglish'. Quero reflectir essa diversidade. " E também esse contágio: " Estudei espanhol durante anos: nunca me tornei fluente, mas houve uma altura em que conseguia ler e escrever bem, ainda que o espanhol que aprendi na escola não fosse igual ao que escutava à minha volta. Embora tenha perdido quase tudo, a música dessa língua continua a ter influência sobre mim. E também aprendi um pouco de francês e de latim, porque andei numa escola católica. ”Além das suas aulas de literatura afro-americana, Mullen também dá um curso sobre poetas negros americanos contemporâneos. Muitos deles nasceram demasiado tarde para poder integrar o Black Arts Movement dos anos 60. “Foi um movimento importante, como uma segunda 'American Renaissance', depois da dos anos 1920. Abriu um novo território e afirmou que tínhamos uma linguagem, uma literatura, uma cultura. À minha mãe ensinaram que os negros eram desprovidos de cultura própria. Eles vieram provar o contrário. Agora os escritores negros estão mais integrados: fazem parte do sistema educativo, são membros de organizações literárias, estão a ocupar um território na poesia que antes não existia porque as pessoas não liam os seus livros, não se interessavam por eles. ”Uma dessas organizações de escritores negros americanos é a Cave Canem, fundada por Toi Derricotte e Cornelius Eady em 1996. “A intenção é dar maior visibilidade a estes poetas no contexto da cultura americana. O Black Arts Movement não foi visto como parte da cultura americana. A grande diferença é que os artistas negros hoje já não são vistos como marginais em relação a essa cultura”, explica, enumerando poetas e prosadores que venceram o Pulitzer, e "até uma vencedora do Nobel [Toni Morrison, em 1993]”. “Os jovens poetas negros hoje têm muitos mais modelos com prestígio. ”Harryette Mullen, que foi uma das instrutoras do Cave Canem, tem visto alguns dos seus alunos, como Terrance Hayes, ganharem prémios de poesia. “São muito diferentes entre si. Em relação a movimentos anteriores, há maior igualdade de género e não precisam de se guiar por uma agenda política em particular. O Cave Canem existe para incentivar os poetas a escreverem a poesia que querem escrever, para quebrar o o estigma de que um poeta negro tem de escrever o que se espera que seja a poesia negra. ”Ela não o faz. Vai ao centro da palavra poesia e traz significados possíveis. “Acho que a poesia acciona o cérebro, por exemplo quando cria falhas, quando abre brechas que é preciso preencher. ” E volta à língua, à identidade. “Tenho estudado a minha árvore genealógica. Consegui recuar uns 300 anos e nenhum dos meus antepassados, até onde fui, nasceu em África. Nasceram na Virginia, na Carolina do Sul e na Carolina do Norte, na Georgia. Sou americana, acho que tenho de admiti-lo. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Sublinha esse facto "porque parece que é preciso andar a dizer isto, ainda mais agora”. É o agora depois do primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Não tem dúvidas de que Obama fez diferença. Mas. . . “Agora temos a reacção. Trump foi eleito para derrubar tudo o que Obama construiu. ” Na saúde, na imigração. "Somos um país a envelhecer, precisamos de imigrantes, especialmente dos mais jovens. Não entendo a visão curta desta política; deveríamos estar a dar as boas-vindas aos imigrantes. Em Los Angeles é preciso ser muito distraído para não perceber que eles fazem grande parte do trabalho essencial. É perverso querer o trabalho feito e ao mesmo tempo não querer as pessoas. E vemos como estão a ser recuperadas palavras de antes. Como as que James Baldwin proferiu há décadas. Estamos a ler James Baldwin agora porque não o ouvimos da primeira vez. Ele foi tão profético! Disse-nos que a mudança tem de ser uma combinação de raiva e de perdão. ”O semblante de Harryette Mullen muda, então. Quer falar da diversão que é jogar com as palavras. Ter o dicionário como ferramenta e matéria-prima. Ir aos limites, explorar cada camada, desafiar sentidos. “A poesia é onde a linguagem brinca consigo mesma. Por alguma espécie de razão gosto de chalaças, de trocadilhos; as palavras são escorregadias e podem assumir muitos significados. Na poesia estarmos sempre a ver como dizer o máximo com o mínimo. Há uma energia, uma ignição que se dá quando certas palavras se juntam. ”Artigo corrigido dia 24/6 às 13h07: altera a ortografia de Safo
REFERÊNCIAS:
O cinto do mundo
A olhares pouco atentos, podia parecer que “a questão racial” fosse “um assunto puramente nacional e local”, confinado aos Estados Unidos. Mas não, a “linha da cor cinta o mundo”, afirmava W. E. B. Du Bois. Era neste plano que devia ser pensada: globalmente. E era assim que devia ser confrontada: globalmente. As desigualdades de riqueza e poder, as oportunidades e os constrangimentos associados, tinham (e têm) cores e não tinham (nem parecem ter) limites. (...)

O cinto do mundo
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: A olhares pouco atentos, podia parecer que “a questão racial” fosse “um assunto puramente nacional e local”, confinado aos Estados Unidos. Mas não, a “linha da cor cinta o mundo”, afirmava W. E. B. Du Bois. Era neste plano que devia ser pensada: globalmente. E era assim que devia ser confrontada: globalmente. As desigualdades de riqueza e poder, as oportunidades e os constrangimentos associados, tinham (e têm) cores e não tinham (nem parecem ter) limites.
TEXTO: “O problema do século XX é o problema da linha da cor [color line], (. . . ) a relação entre as raças de homens mais escuras e mais claras, na Ásia e em África, na América e nas ilhas do mar. ” Assim escreveu W. E. B. Du Bois, em The Souls of Black Folk, publicado em 1903. Segundo o célebre pensador afro-americano, o século que então se iniciava seria inevitavelmente marcado pelo “problema dos problemas”: a persistente desigualdade racial, com causas, contextos e consequências que se manifestavam globalmente. Como notara Frederick Douglass, anos antes, num texto precisamente intitulado The color line, publicado na North American Review (1881), o “preconceito contra a cor”, bem disseminado e naturalizado, precisava de ser confrontado. Douglass apontava essencialmente para o contexto norte-americano. Du Bois também esmiuçava as atribulações do “contacto racial” no Sul dos Estados Unidos da América, perscrutando as suas motivações e expressões morais e sociais, políticas e, claro, económicas. Mas via mais longe: o “contacto racial” estruturava relações numa outra escala, resultava de dinâmicas translocais, extravasava fronteiras, implicava um outro tipo de conexões e de explicações. Era um problema verdadeiramente global. Não por acaso, a tirada certeira tinha já surgido na declaração inicial dos promotores da primeira Conferência Pan-Africana (Londres, 1900). Assinada pelos organizadores, foi elaborada por Du Bois. A Address to the Nations of the World era clara no problema que colocava: durante quanto tempo e até que ponto as “diferenças raciais” seriam usadas para justificar a “negação” das “oportunidades e privilégios da civilização moderna” a “metade do mundo”?Tinha também sido usada num encontro da American Negro Academy, numa comunicação intitulada The present outlook for the dark races of mankind. Nela, Du Bois clarificava um aspecto importante, que o diferenciava de muitas visões coevas: a questão racial, o problema da color line, não se esgotava numa dimensão “nacional e pessoal”. Envolvia outros espaços e tempos, mais amplos e duradouros. A olhares pouco atentos, podia parecer que “a questão racial” fosse “um assunto puramente nacional e local”, confinado aos Estados Unidos, onde esta parecia à época mais gritante. Mas não, a “linha da cor cinta o mundo”, afirmava. Era neste plano que devia ser pensada: globalmente. Era assim que devia ser confrontada: globalmente. As desigualdades de riqueza e poder, as oportunidades e os constrangimentos associados, tinham (e têm) cores e não tinham (nem parecem ter) limites. Anos mais tarde, em 1925, Du Bois publicou um outro texto, sobre os mundos da cor (Worlds of color). Foi nas páginas da conhecida Foreign Affairs, que ainda hoje guia, nem sempre de modo luminoso, muitos dos que se interessam pelo fugidio domínio das “relações internacionais”. Neste texto, o “problema dos problemas” era pensado a partir dos efeitos da expansão imperial europeia, da “sombra” que esta projectara sobre o globo, feita de imparáveis discriminações e desigualdades, de iniquidades várias com efeitos prolongados. O caso da exploração da mão-de-obra numa escala global era um exemplo. Para Du Bois, “os problemas da cor e do trabalho” eram “dois lados do mesmo emaranhado humano”. O texto acrescentava textura histórica à sua argumentação anterior, concretizando alguns dos seus pontos mais caros. O caso português era abordado como sendo muito esclarecedor: na colónia de São Tomé e Príncipe, o “sistema de recrutamento laboral” correspondia, no essencial, à “escravatura”. Também ali a linha da cor era bem visível. A racialização do trabalho em contexto colonial era óbvia. A escravatura moderna, de Henry Nevinson e John Harris, entre outros, não escapava a Du Bois, que na década de 1920 tomou conhecimento em primeira mão dos temas coloniais discutidos, por exemplo, em Genebra, na Sociedade das Nações ou na Organização Internacional do Trabalho. Aspecto importante: a Foreign Affairs era a sucessora directa do que antes se chamara Journal of Race Development. E muitos pensavam (e pensam) precisamente assim: pensar as “relações internacionais” é pensar no “desenvolvimento da raça”, de uma “nação”, de um “povo”, de uma “identidade”. É assegurar a preservação da sua ascendência, no duplo sentido. E da sua descendência. A história da disciplina das Relações Internacionais, tal como a da Ciência Política, revela bem a centralidade de formas de pensamento racialista e de racialização do mundo no desenvolvimento dos saberes das ciências sociais e humanas. O excelente livro de Robert Vitalis, nosso entrevistado, mostra como e porquê. Na mesma altura em que Du Bois escrevia os seus textos sobre a linha da cor, argumentos semelhantes, com preocupações e propósitos distintos, circulavam internacionalmente, sobretudo no mundo “anglo-saxónico”. Em 1893, o historiador britânico, emigrado na Austrália, Charles Pearson publicou National Life and Character: a forecast. O medo da “expansão” chinesa e de “outras raças amarelas” era explicitado sem hesitações. E foi rapidamente associado a outros receios, com outras cores, associados a outros colectivos, sempre pensados uniforme e compactamente. O livro teve um impacto considerável, também enquanto inspiração para a política externa norte-americana e para o seu intervencionismo na América Central. Saiu cinco anos depois de uma das mais importantes formulações do “problema negro”, o maciço The American Commonwealth, da autoria de James Bryce, seu antigo colega de estudos no Oriel College (Oxford). Esta última obra constituía um exemplar esforço de formular uma espécie de sociologia comparativa das “relações raciais”, visando provar a relação íntima entre determinismo racial e a formação de uma (des)ordem global. Foi invocada como fundamental para todos os que almejaram criar políticas de segregação social e racial, um pouco por todo o mundo. Anos mais tarde, em 1902, Bryce abordou as relações entre comunidades (“raças”) “avançadas” e “atrasadas” da humanidade, no seu The Relations of the Advanced and the Backward Races of Mankind. A recorrência de interacções entre “raças”, em parte resultante de fenómenos de mobilidade crescente a uma escala global, aumentara de modo dramático e isso implicava inúmeros riscos sociais e (geo)políticos. Uma “crise na história do mundo” avizinhava-se em razão desse facto. Era preciso governar as “relações raciais”, numa escala local, mas também global, para defrontar e debelar a crise. Para Bryce, era óbvio o que estava em causa. Como escreveu no mesmo opúsculo, que registou para a posteridade nas suas Romane Lectures, era preciso evitar os “riscos que uma democracia corre quando o sufrágio é garantido a uma larga massa de homens semicivilizados”. Os princípios democráticos que pautaram a sua juventude, numa sociedade monárquica e de privilégios chocantes como a inglesa, pareciam vacilar face aos supostos estádios desiguais de “civilização”. Era este o “problema negro”, ao qual Pearson juntava o “problema amarelo”. Tal como Bryce, e, mais tarde, Du Bois, mas certamente com outros sentidos e fins, Pearson argumentava que só um enquadramento histórico global poderia permitir compreender as “relações raciais”. Chamava ainda a atenção para o facto de que as exigências de garantia de direitos sociais, económicos e políticos (incluindo os de mobilidade e de residência) por parte das “raças amarelas e negras” tenderem a aumentar. As políticas do medo tinham agora substância intelectual para manipular. Para muitos, as suas análises foram tomadas como um apelo à mobilização e ao activismo racial: era preciso preservar o lugar e os privilégios da “raça branca”. Anos mais tarde, um admirador de Pearson publicou The Rising Tide of Color Against White World Supremacy (1920). Neste, Lothrop Stoddard ia mais longe: era preciso garantir a sobrevivência dos países dos homens brancos. Segundo ele, “toda a raça branca” estava “exposta, imediatamente e inevitavelmente, à possibilidade de esterilização social e final substituição ou absorção pelas populosas raças de cor”. Era um apelo às armas. O lugar do homem branco estava em risco. Na mesma altura, a esterilização era invocada com outros propósitos, ecoando argumentos de finais do século XIX e antecipando pontes com o descalabro dos anos 30 e 40. Numa série de várias edições, iniciada em 1918, Madison Grant publicou The Passing of the Great Race. O livro foi celebrado por Theodore Roosevelt, que também apreciara, e muito, o livro de Pearson. Não por acaso, o expansionismo americano de então era visto como “um desafio nacional e racial”. A expansão territorial garantiria sobrevivência, política e racial. Para uns, era o espaço vital. Para Grant, membro da Immigration Restriction League e presidente do Eugenics Sub-Committee of the United States Committee on Selective Immigration, os imigrantes do Sul e do Leste europeu estavam a liquidar a “raça nórdica”, através da miscigenação. Tal como ouvimos recentemente, podemos deduzir que migrantes da Escandinávia mereceriam melhor recepção. No livro de Grant, como noutros do período, o racismo científico encontrava nas políticas restritivas de imigração manifestação poderosa. A invenção do passaporte fui utilíssima. O uso dos testes de literacia, por exemplo, para o impedimento do acto de voto, foi uma bênção. O próprio Stoddard escrevera de modo claro que a “restrição da imigração é uma espécie de segregação em larga escala”, através da qual “stocks inferiores podem ser impedidos tanto de diluírem como de suplantarem os stocks bons”. Em 1924, o Johnson Immigration Act estabelecia quotas com um sentido óbvio: o favorecimento do Norte da Europa. As políticas nacionais podiam atacar de frente as linhas de cor e os seus esperados efeitos, reais e imaginários, desejados ou temidos. Mas outros rasgos eram necessários, que enfrentassem o carácter e as ramificações globais do problema. Para muitos, a questão racial era, também e talvez até sobretudo, de ordem geopolítica. Para Dubois, estava fortemente associada à formação histórica, política, económica e sociocultural do imperialismo. Para Bryce, Pearson, Grant ou Stoddard, apesar das diferenças de perspectiva e ênfase, remetia para ansiedades várias e problemas existenciais concretos. Para receios de sobrevivência e ascendência, individuais e colectivas. Tratava-se de preservar, de modo tenaz, uma comunidade imaginada de branquitude, resistente a contaminações e capaz de vincar a sua supremacia global, civilizacional, de impedir o seu declínio. A identidade racial devia guiar a identidade (geo)política. A racialização do mundo determinava a espacialização da imaginação política. Cláusulas de “igualdade racial” foram negadas, como sucedeu com a proposta japonesa na Conferência de Paz de Paris, em 1919. Todos estes argumentários são, eles próprios, produtos globais. Resultam da circulação, apropriação, contestação e advocacia, por vezes bem organizada, de ideias e de políticas, de receios e expectativas, intimamente ligados a projectos de diferenciação e discriminação racial, num plano internacional, transnacional e global. E a sua história não acabou com os desvarios do século XX. Os ecos destes passados são facilmente reconhecíveis no mundo de hoje. O lugar da questão racial enquanto coordenada orientadora das imaginações da ordem internacional não se esbateu com os violentos embates e ampla geografia do segundo conflito global. Transformações processaram-se, ainda que com sentidos variados, em função de contextos sociais e políticos diversos. A expansão japonesa pelo continente asiático abalou as fundações dos impérios europeus no continente, como nas Índias Orientais Holandesas, em Singapura ou na Malásia ou no Vietname. Manifestou-se tanto pela desarticulação das estruturas administrativas e políticas locais e pelas alianças com grupos nacionalistas, como pelo seu impacto simbólico: era a demonstração da possibilidade de derrota marcial dos modernos exércitos ocidentais por adversários não brancos. Mas, também aqui, os resultados não foram uniformes. O direito de os povos asiáticos disporem de si próprios e assim se organizarem politicamente foi feito depender de vários critérios. À cabeça, desde logo, a sua acomodação no novo mundo criado pela competição entre os EUA e a URSS. A mesma Guerra Fria que, por exemplo, no que dizia respeito a África, obrigou os governos norte-americanos a temperar as pressões sobre os seus aliados ocidentais no sentido de outorgarem maior autonomia política, administrativa, económica e cultural às suas dependências. Uma leitura equilibrada destes anos, por um lado, deve sinalizar a persistente centralidade da questão racial globalmente, por outro, não pode ofuscar as mudanças que então se operaram. É sobre provavelmente o momento mais simbólico dessa transformação que trata The Color Curtain: a report on the Bandung Conference (1956), de Richard Wright. Wright, um prolífico romancista afro-americano a viver em Paris já há largos anos, e autor de livros aclamados como The Native Son (1940), Black Boy (de 1945, e de feição autobiográfica) e, mais tarde, White Man! Listen (1957), deslocou-se a Bandung, na Indonésia, durante três semanas, para acompanhar a Conferência Afro-Asiática que aí decorreu, em 1955. Nela, Wright anunciava aquilo que via como a afirmação de um novo momento de libertação das chamadas “coloured races”. É importante sublinhar que tanto a conferência como a própria obra de Wright se prestaram a consideráveis processos de mitologização. O carácter inaugurador de Bandung, como este texto demonstra, deve ser matizado por uma história mais longa de contestação ao domínio racial branco. Como Robert Vitalis assinala, “fábulas” como as que rezam sobre a presença de Kwame Nkrumah na conferência persistem. A equação de Bandung com o movimento dos não-alinhados, criado em 1961, perdura, mesmo em meios especializados. Na verdade, a maioria dos representantes dos Estados participantes estava plenamente alinhada num dos campos, como era o caso da China, da Turquia ou das Filipinas. Mesmo a ideia de uma unidade racial em revolta mereceu resistência por parte de alguns delegados, como os do Médio Oriente, e foi, por vezes, cuidadosamente omitida. Todavia, a forma como a conferência foi apropriada, por apologistas como Wright, ou por detractores, desde logo nas metrópoles imperiais europeias, tornou Bandung o epítome de uma transformação global que ditou o fim, pelo menos formal, dos impérios ocidentais. Sinalizou ainda o início de uma era em que o putativo “atraso” cultural ou civilizacional das populações autóctones perdeu legitimidade enquanto elemento aferidor da propriedade de soberania estatal. A figura de Richard Wright, e mesmo do seu relato sobre Bandung, nunca deixou de se sujeitar às mais variadas polémicas. Tendo sido comunista nos anos 1930, Wright acabaria por renunciar à militância através de um artigo intitulado I tried to be a communist (1944). Mais tarde, já em Paris, acabaria por denunciar à CIA uma série de militantes comunistas e compagnons de route também empenhados na causa anti-racista e anticolonial. As suas descrições da conferência e dos delegados mereceram críticas de muitos, que ali encontraram sinais de condescendência, referências ao suposto “primitivismo” dos activistas anticoloniais, desdém pela recorrente referência destes a questões culturais e religiosas. Anteviram em Wright um americanismo orgulhoso e um endossamento sem contemplações do que via como a modernidade ocidental. Mas, para Wright, a tocha dessa modernidade seria agora carregada pelas novas nações e pelas minorias oprimidas das sociedades segregadas. Eles eram o futuro, e a ordem global acompanharia esse novo devir. Bandung era, inequivocamente, o retrato de um novo mundo, ainda que não necessariamente idílico. Wright era apenas um dos muitos indivíduos que olhavam para os desenvolvimentos do pós-guerra com a esperança de que testemunhavam uma nova era, em que a estrutura das hierarquias raciais e socioculturais seria profundamente abalada. E que a concebia em termos globais, procurando ligar regiões aparentemente distantes e fundir os movimentos contra a segregação racial doméstica e as novas lutas de descolonização numa só corrente. Porventura, nenhuma região terá produzido maior número relativo de intelectuais comprometido com esta visão, em termos genéricos, como as Caraíbas. Maioritariamente colónias de plantação, os vários territórios que constituíam a região eram significativamente marcados pelo peso da população negra e o seu lugar social diminuído. A maior parte deles entrincheirada entre o “tradicional” colonialismo europeu e o que viam como o novo imperialismo norte-americano. Faziam parte do complexo que Paul Gilroy classificou como o Black Atlantic (no livro homónimo, onde um dos capítulos é precisamente organizado em torno de Wright), unindo as experiências das populações segregadas do Sul dos EUA e os sujeitos coloniais em África e nas Caraíbas, todas sociedades profundamente tributárias do processo triangular da escravatura transatlântica. A lista é extensa, de Eric Williams, de Trindade, de que viria a tornar-se primeiro-ministro, que estudou no Reino Unido e nos EUA, tendo escrito o seminal Capitalism and Slavery (1944), a Franz Fanon, nascido na Martinica, migrado para Paris, adoptando a causa da Frente de Libertação Nacional Argelina, mais tarde autor de Peles Negras, Máscaras Brancas (1952) e Os Condenados da Terra (1961). Aimé Césaire, também da Martinica, um dos proponentes da Négritude, que emigrou para a metrópole parisiense, onde se tornou deputado à Assembleia Nacional; CLR James, nascido em Trindade e Tobago, que circulou pelo mundo anglo-saxónico, e autor de Black Jacobins (1938), onde analisava historicamente a revolução antiesclavagista de Santo Domingo; ou George Padmore (ver número anterior), também de Trindade; são nomes que, mais uma vez, apesar das suas diferenças e divergências, partilharam uma angústia sobre o seu lugar existencial enquanto sujeitos coloniais. Todos identificaram, ainda que de modos diferentes, na questão racial a centralidade que muitos anos antes Du Bois lhe atribuíra. Formados no período entre-guerras, experimentados pelos grandes acontecimentos globais como a depressão ou a revolução bolchevique, bem como por outros de natureza local, como as múltiplas crises que emergiram em Porto Rico, Trindade ou na Jamaica na segunda metade dos anos 1930, profundamente viajados, acreditavam num projecto global de emancipação da “outra metade do mundo”. Claro que, consoante o actor e a época, este desiderato e o modo da sua concretização assumiram um pendor mais ou menos internacionalista, mais ou menos centrado na unidade nacional. Esta é uma pequena lista que poderia ser facilmente aumentada, com protagonistas de épocas mais recuadas. Desde logo, recuperando o famoso Marcus Garvey, com a sua proposta de uma diáspora africana, alimentada por uma companhia de cargueiros exclusivamente composta por negros, ou por outros nomes como Claude McKay, o poeta jamaicano, que contribuíram directamente para o que ficou conhecido como a “Harlem Renaissance”. Não se trata, todavia, de uma ligação que se cinja a um movimento intelectual. Um terço da população do Harlem nos anos 1930 era composto por habitantes das Índias Ocidentais. O domínio inglês sobre estas encontrava-se em competição com a influência norte-americana, originando múltiplos fluxos que reforçaram identidades partilhadas ou solidariedades translocais. Estas estender-se-iam também ao continente africano, primeiro em movimentos de protesto motivados pela invasão da Etiópia pela Itália, em 1935, mais tarde com o acelerar do movimento de descolonização do continente. O sentido de uma experiência comum passada marcada pelos efeitos da escravatura e do tráfico de escravos, assim como pelo domínio colonial e, no presente, pela segregação racial doméstica ou pelo domínio estrangeiro, sedimentaram movimentos e circuitos que, especialmente após 1945, ajudaram a pôr em causa uma ordem global “branca” e “ocidental”. As várias insuficiências e contradições que se manifestaram quando essa proclamada filiação comum precisou de ser materializada não deve impedir a sua séria compreensão histórica. “Apenas são grandes nações aquelas em que raças variadas se têm misturado e integrado, cada uma completando as demais, e só essas têm contribuído para o progresso da humanidade. As grandes nações do mundo — Estados Unidos, União Soviética, China, Brasil — abrangem muitas raças e culturas, e muito têm enriquecido a civilização. Paralelamente, a história prova-nos que as nações habitadas por uma só raça, e com uma só cultura, uma religião, uma língua, podem dar-nos a impressão de estabilidade e de felicidade; mas também nos sugerem paragem e estagnação; e pouco têm contribuído para o progresso da humanidade. ”O leitor mais incauto e possivelmente enrubescido talvez não hesitasse em, ao ler estas palavras, lançar um impropério contra os “activistas do politicamente correcto”. Seria algo que provavelmente o seu autor não gostaria de ouvir. Alberto Franco Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeiros, escrevia esta frase em 1967, num pequeno opúsculo, depois traduzido para inglês, com o objectivo de disseminar a posição portuguesa face ao que eram então as pressões para a descolonização das colónias. A afirmação global do direito de autodeterminação corporizou, também ela, um processo conturbado, e disputado. E, no entanto, nessa história entram esforços não despiciendos para fazer o relógio andar para trás e evitar o que se via como a constituição de um novo regime internacional indiferente aos supostamente desiguais estágios de “civilização”. Em 1967, a simples afirmação da superioridade civilizacional e racial ocidental e branca já não era suficiente para legitimar a presença portuguesa em África. A retórica diplomática portuguesa construída sobre o edifício mais antigo do lusotropicalismo via-se na necessidade de justificar o seu domínio imperial recorrendo à nova linguagem da autodeterminação, dos direitos humanos e da não-discriminação. Como afirmava Franco Nogueira: “Muito mais importante do que a simples criação da palavra ou do conceito teórico de multirracialismo, no entanto, é a criação da própria realidade viva a que se aplica o vocábulo. E esse mérito cabe aos portugueses, e isso desde há séculos. Porque foram os portugueses que levaram à África e ali pela primeira vez implantaram a noção de direitos humanos e a noção de igualdades de raças. ”Num exercício que talvez surja familiar a leitores regulares de jornais no presente, Franco Nogueira virava a questão de uma ordem racial desigual de pernas para o ar. Pensar o Terceiro Mundo através da “adopção de um critério étnico” seria “a mais perigosa das definições: porque suporia a tendência inevitável para o conflito de raças em plano mundial, e o Terceiro Mundo coincidiria, no fim de contas, com o cerco à raça branca e à sua civilização”. O objectivo final: legitimar a resistência do império. O resultado da projecção global da linha de cor seria um violento choque de civilizações, sendo o império português um dos últimos bastiões da civilização europeia, em mera posição defensiva. Afinal, o que importava era os direitos humanos, não a raça. Como sugeria, associar a autodeterminação e independência a direitos humanos criava um paradoxo racista: “Aceita-se a negação dos direitos humanos desde que praticada por homens da mesma raça: rejeita-se a protecção dos direitos humanos desde que exercida ou garantida por indivíduos de raça diferente. ”Há dois aspectos que é preciso sublinhar. O primeiro tem que ver com a relativa sageza de Franco Nogueira. Num período em que a Guerra Fria dominava as atenções, o eixo de fractura perpendicular que atravessava norte e sul mantinha a sua acuidade. Menos argúcia talvez fosse identificável no facto de que existiam novas formas (e mais eficazes) de manter as profundas desigualdades sociais, políticas e económicas que continuavam a caracterizar o mundo. O segundo tem que ver com a absoluta insustentabilidade das afirmações de Franco Nogueira. Não só a posição de subordinação das populações africanas no quadro imperial era mais do que evidente como as violações dos direitos humanos eram mais do que muitas. Não é preciso avançar até às violências várias associadas aos conflitos em Angola, Moçambique e Guiné, desde o uso de napalm às punições exemplares. Basta pensar no ano de 1960, nas vésperas do início dos conflitos militares. Em nenhuma das colónias portuguesas de indigenato haveria mais de 5% (para sermos generosos) de africanos com estatuto de cidadania. Isto implicava não apenas que os “indígenas” não podiam votar, mas também que não podiam, por exemplo, deter a posse privada de terra ou que, ao contrário dos europeus, deveriam cumprir um número mínimo de meses de trabalho por ano. O acesso a saúde e educação era profundamente desigual. Campos de “internamento” em territórios sem guerra, como em Moçambique, destinados aos indianos que aí residiam, após a invasão de Goa, acolheram crianças de meses. Como reportava um inspector colonial (supostamente zelador do bem-estar das populações coloniais), nesse mesmo ano e referindo-se também a Moçambique, todos sabiam que a palmatória era o “melhor instrumento, senão o único, de política indígena”. Deveria ser temperado o seu uso, mas não abolido, porque levaria o “indígena” a “maiores desobediências”. Em Angola, no mesmo ano, um governador de distrito assegurava que era “muito cedo para em Angola instituir o trabalho livre”, porque “dar ao indígena mais do que ele pode receber é convidá-lo à indisciplina, ao retrocesso, à rebeldia”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Podíamos continuar. São apenas alguns exemplos entre muitos possíveis do que consistia o carácter peregrino português na afirmação dos direitos humanos em África, numa altura em que a maior parte dos impérios europeus se encontrava em retirada. O próprio Franco Nogueira estava bem ciente destas realidades. Como afirmava em relação à questão do trabalho forçado, em 1956 (cuja legislação associada datava de 1928, admitindo legalmente ainda muitas formas de trabalho compelido), o problema situava-se na “distância que separa o que é legislado do que é praticado na África Portuguesa”. Provavelmente, são estes alguns dos dotes que permitem que a capacidade técnica de Franco Nogueira seja hoje celebrada. Todavia, o importante a reter é a forma como a questão racial era por este percebida como central na evolução do século XX. E os seus esforços para inverter as acusações de uma discriminação histórica evidente, acusando de racismo os que contestavam o domínio português, fazendo da vítima, algoz, de algoz, vítima. Tanto na forma como no conteúdo, são dispositivos retóricos hoje bem em voga. E que não devem tolher um olhar crítico sobre as profundas e persistentes marcas de desigualdade racial e cultural entre e dentro de países que sobreviveram à formação acidentada de uma nova ordem global, em princípio e teoria, indiferente à cor da raça. Princípio esse, mesmo com as suas limitações enquanto tradução real, pelo qual vale a pena lutar.
REFERÊNCIAS:
Partidos PAN LIVRE BE
Um livro zangado com a América dá a Ta-Nehisi Coates o National Book Award
É um documento de denúncia escrito em forma de uma carta ao seu filho adolescente. Fala da experiência de ser negro na América e fez do seu autor um nome obrigatório em pleno debate sobre questões raciais. Chama-se Between the World And Me. (...)

Um livro zangado com a América dá a Ta-Nehisi Coates o National Book Award
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 11 | Sentimento -0.5
DATA: 2015-11-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: É um documento de denúncia escrito em forma de uma carta ao seu filho adolescente. Fala da experiência de ser negro na América e fez do seu autor um nome obrigatório em pleno debate sobre questões raciais. Chama-se Between the World And Me.
TEXTO: Uma semana antes de acontecer, a conversa com Ta-Nehisi Coates numa livraria de Brooklyn tinha os lugares esgotados. Os funcionários pediam desculpa. Nada a fazer. No Verão, em Julho, o colaborador da Atlantic, onde escreve sobre cultura, política e sociedade, publicara Between the World And Me, um testemunho pessoal, escrito como uma carta ao seu filho adolescente, Samori, sobre a experiência de crescer e ser negro na América. A sua escrita visceral e clara valeu-lhe comparações com James Baldwin, um autor envolvido na luta pelos direitos civis da população negra nos Estados Unidos na década de 60, e que foi talvez o primeiro escritor negro a conseguir fazer chegar aos brancos americanos toda a emoção de existir na diferença. Toni Morrison, Nobel da Literatura em 1993, afirmou que Coates veio preencher o vazio intelectual deixado após a morte de Baldwin, e Alberto Manguel, numa entrevista dada ao PÚBLICO em Outubro, considerou-o uma das suas descobertas recentes mais estimulantes. O livro de Ta-Nehisi Coates venceu na quarta-feira à noite o National Book Award para não-ficção, um dos mais prestigiantes prémios literários na América. Numa conversa com o escritor na revista New Yorker, o jornalista e escritor David Remnick referiu-se ao livro como sendo uma polémica com memória incluída, e Ta-Nehisi concordou. Falamos de um documento que chegou em pleno debate sobre as questões raciais nos Estados Unidos, meses depois de algumas das acções mais mediáticas do movimento I Can’t Breath, o grito que se ouviu nas ruas das principais cidades americanas após a morte de Eric Garner em Staten Island, em Julho de 2014, asfixiado por um polícia. Era mais uma morte a juntar a outras onde as vítimas eram negros e havia um sentimento de impunidade face a quem matava. Como a morte de Prince Jones, assassinado em 2000 por um polícia no norte da Virgínia. Jones era amigo de Ta-Nehisi Coates e Between the World And Me nasceu do sentimento de impotência e da raiva face a essa morte e foi alimentado pelas que se seguiram. “Sempre que ligamos a televisão, vemos algum tipo de violência dirigida a negros. Uma e outra vez. E continua a acontecer”, disse na noite de quarta-feira, no discurso de entrega do prémio, depois de ter sido protagonista de muitas conversas, palestras, debates ao longo dos últimos meses. O nome de Ta-Nehisi Coates passou a ser obrigatório sempre que se fala de tensões raciais ou de direitos de negros ou de exclusão na América. A atenção sobre ele levou, por exemplo, a que o vencedor do National Book Award para Ficção, quase sempre o protagonista deste prémio, ficasse em segundo plano na hora de se conhecer os vencedores. Na sua edição de quinta-feira, o New York Times escolhia uma foto de Ta-Nehisi Coates para ilustrar o artigo sobre o prémio, que titulava simplesmente “Ta-Nehisi Coates vence o National Book Award”. Só no terceiro parágrafo referia que Adam Johnson vencera em ficção com o volume de contos Fortune Smiles (Doubleday), e muito mais à frente acrescentava que Don DeLillo recebera a medalha de carreira. Between The World And Me (Penguin) não é o primeiro livro de Ta-Nehisi Coates, que já explorara o mesmo tema em The Beautiful Struggle (2009), um volume de memórias que parte da relação com o seu pai, William Paul Coates, um editor de títulos ligados à comunidade negra, casado quatro vezes e pai de sete filhos, que viviam com as suas mães e só esporadicamente encontravam o pai. Ta-Nehisi é filho do segundo casamento. Nasceu em 1975 em Baltimore, cresceu politicamente influenciado por Malcom X e é um admirador confesso de James Baldwin. Neste livro zangado com uma América que não acolhe todos da mesma forma, confessa de forma muito íntima o medo de um pai em relação ao futuro do seu filho. “Escrevo-te no teu 15º aniversário”, começa por explicar, “escrevo-te porque este foi o ano em que viste Eric Garner ser sufocado até à morte por vender cigarros na rua…”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos morte violência cultura exclusão filho negro comunidade adolescente medo casamento negra
O terror do Boko Haram desenhado pelas crianças
“Foram ter com as pessoas que estavam à beira da água e dispararam contra elas, na cabeça”, conta Soumaila Ahmid. Com canetas de feltro conta o que viu os membros do grupo radical islamista que controla parte do Nordeste da Nigéria fazerem. (...)

O terror do Boko Haram desenhado pelas crianças
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 10 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-04-12 | Jornal Público
SUMÁRIO: “Foram ter com as pessoas que estavam à beira da água e dispararam contra elas, na cabeça”, conta Soumaila Ahmid. Com canetas de feltro conta o que viu os membros do grupo radical islamista que controla parte do Nordeste da Nigéria fazerem.
TEXTO: Rostos ensanguentados, corpos sem cabeça, casas queimadas: no campo de refugiados de Dar-es-Salam, perto do lago Chade, quando as crianças sobreviventes ao Boko Haram desenham as atrocidades que sofreram na Nigéria, o resultado é impressionante. Frente à grande tenda branca da Unicef, está uma multidão. São dezenas de rapazes vestidos com roupas poeirentas, que se acotovelam e riem à gargalhada, antes de serem chamadas à atenção pelos animadores. Todos querem participar no atelier de desenho organizado no espaço “Amigos das crianças”. Mas quando ficam frente à grande folha de papel branco, caneta de feltro na mão, o silêncio instala-se. O tema do dia é doloroso, e cada um deles se concentra para reconstituir o fio dos acontecimentos que testemunhou quando os islamistas atacaram a sua aldeia. Soumaila Ahmid diz que tem 15 anos, mas não lhe daria mais de 12. “No dia do ataque estávamos à nossa porta quando vimos os Boko Haram. Foram ter com as pessoas que estavam à beira da água e dispararam contra elas, na cabeça”, conta o rapaz de olhos amendoados. De cócoras, desenha com afinco uma embarcação de forma abaulada e cadáveres flutuando num rio: “Há os que conseguiram entrar em canoas, estão a fugir. Os outros estão mortos”, diz, sem pestanejar. Esquecer o quotidianoOutro desenho, outra cena de causar arrepios na espinha. “Este homem está em casa. Está a arranjá-la mas ouviu tiroteio lá fora. Quando vai ver o que se passa, um Boko Haram atira e pega-lhe fogo”, explica Nour Issiakam, também ele com 15 anos. Com se contasse uma história banal, conclui: “O homem tenta sair mas não consegue: toda a casa está a arder”. Será queimado vivo. “Desde que começamos esta actividade [o desenho], precipitam-se para se inscreverem”, diz o responsável do atelier, Ndorum Ndoki. “Eles desenham e depois podemos falar. Foi preciso levá-los a abrirem-se, o que não era fácil no início. Hoje estão orgulhosos de serem ouvidos. ” A equipa que com eles trabalha tenta “identificar” os que se isolam, ou que parecem ainda muito próximos da tragédia vivida, para tentarem evitar que o trauma se instale, explica. Todas as tardes, os ateliers de desenho são também ocasião para, entre dois jogos de futebol, o tricot, ou o ludo, abordar outros temas, como o amor ou a escola. É um parêntesis durante o qual as crianças enganam o tédio e esquecem um pouco o quotidiano do campo, pontuado pelo racionamento de alimentos e pelo calor infernal desta área de deserto, a uma dezena de quilómetros dos bancos do lago. “Nunca tiveram uma caneta”Perto de 800 crianças estão também a ser aprender na “escola de emergência” – oito grandes tendas abertas em Janeiro pela Unicef. “Antes não conheciam nada da escola, ainda que alguns tivessem tido ensino corânico. Muitos nunca tiveram uma caneta, mas eles aprendem depressa”, garante Oumar Martin, um animador camaronês que viveu anos na Nigéria e que se viu no fluxo de 18 mil refugiados que vieram para o Chade. No Nordeste da Nigéria, maioritariamente muçulmano e durante muito tempo abandonado pelo poder central, jovens que não falam outras línguas que haussa ou kanuri “constroem já frases em inglês e balbuciam de forma dificilmente compreensível algumas palavras em francês”, diz. Nos bancos da escola, encontram-se “crianças grandes” que ultrapassaram já os 20 anos, mas querem, eles também, aprender a ler e a escrever. De piroga ou a pé, a maior parte desses jovens viveram uma fuga perturbante, perseguidos mesmo já em águas chadianas. Mais de 140 de entre eles chegaram sem os pais, perdidos na confusão ou mortos pelo Boko Haram. Mahamat Alhadji Mahamat, 14 anos, demorou quase uma semana a chegar ao campo de Dar-es-Salam, junto a Baga Sola. De ilha em ilha, com os tios, escondia-se de dia e avançava de noite. Os pais, esses, ficaram na Nigéria. No seu desenho, alguns pássaros voam ao lado de um camião carregado de armas de vários tamanhos. “Nunca poderei esquecer o que vi”, diz, com um sorriso tímido. “Houve mesmo crianças que nasceram na estrada, durante a fuga. Quando encontro essas crianças [no campo], não posso deixar de pensar nisso…”“Mas vou aprender e um dia voltarei a casa, na Nigéria. ”
REFERÊNCIAS: