O islão delas não é só para homens
As muçulmanas mais influentes da Europa não são mulheres submissas e oprimidas. Religiosas ou laicas, elas valorizam a liberdade, a educação e a ousadia de correr riscos e quebrar tradições. Usar o hijab, diz uma delas, significa apenas “cobrir a cabeça, não esconder as ideias”. (...)

O islão delas não é só para homens
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-11-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: As muçulmanas mais influentes da Europa não são mulheres submissas e oprimidas. Religiosas ou laicas, elas valorizam a liberdade, a educação e a ousadia de correr riscos e quebrar tradições. Usar o hijab, diz uma delas, significa apenas “cobrir a cabeça, não esconder as ideias”.
TEXTO: Suad Mohamed: A imã livre da SuéciaEm 1985, aos 16 anos, quando chegou a Estocolmo, vinda da sua Etiópia natal, Suad Mohamed ficou fascinada ao ver grupos de punks nas ruas. “Se eles exibiam aqueles cabelos excêntricos, eu também poderia usar o meu hijab”, disse a primeira imã (líder espiritual) da Suécia — um título que não é reconhecido oficialmente nos países islâmicos. Ainda assim, não foi fácil. Já naquele tempo, antes de a extrema-direita xenófoba estar em ascensão, uma funcionária de um supermercado foi instruída pelo patrão a não atender Suad Mohamed se esta não retirasse o lenço que lhe cobria a cabeça. O episódio entristeceu-a, mas não modificou a sua opinião sobre o país que a acolheu. “Desde que cheguei à Suécia que me deixei seduzir pelo modo como a sociedade trata as mulheres”, diz-nos a imã, sentada numa poltrona de um hotel de Madrid, cidade onde, a 30 de Outubro, decorreu a gala que elegeu — pela primeira vez — as dez muçulmanas mais infl uentes da Europa. Ela fazia parte de uma short list de 26, seleccionadas pela CEDAR, uma rede pan-europeia de profissionais muçulmanos, mas ficou ausente do top 10. Não ficou incomodada, até porque a amiga Barni Noor, uma jovem de origem somali que é presidente da Associação das Mulheres Muçulmanas da Suécia, foi uma das dez escolhidas. Suad Mohamed estava mais preocupada com o regresso a casa, e a noite já ia longa quando esta entrevista começou. Compreensível, portanto, que a voz doce se arrastasse, o sorriso perdesse luminosidade e os formosos olhos — característicos das mulheres etíopes —, ornados por um eyeliner negro, denunciassem fadiga. O dia tinha sido de muita ansiedade mas, ainda assim, a imã mantinha o porte altivo, numa longa túnica e manto negros, com bordados brancos e brilhantes, a combinar com o hijab que, bem justinho ao queixo e à testa, não deixava vislumbrar uma melena. Quando se fala da Suécia, Suad parece esquecer o cansaço. “Aqui as mulheres são livres. Eu gosto desta liberdade individual. Da capacidade que cada uma tem de fazer as suas escolhas pessoais, de tomar as suas próprias decisões. Foi muito bom para mim —, porque esta é a liberdade que o islão e o Corão me oferecem. Gosto da minha religião, mas não aprecio algumas tradições que impedem as mulheres de agir de sua iniciativa. Olhei para as mulheres suecas como exemplo — absorvi o que gostava nelas; recusei o que não me interessava. Construí desta maneira a minha identidade. ” Ser muçulmana na Europa, acredita Suad Mohamed, fez dela uma pessoa diferente. “Em Marrocos ou na Arábia Saudita, as mentalidades não mudaram. Eu sou muito europeia, mesmo que a minha aparência física não o indique. Os meus filhos são ainda mais europeus do que eu, porque eu nasci na Etiópia mas eles já nasceram na Suécia. Eles são religiosos, por opção, e orgulhosamente suecos. Sou grata por a Suécia ter feito de mim uma mulher livre — não é fácil ser africana, muçulmana e imigrante. ” Suad foi viver para a Suécia, em busca de uma vida melhor, porque já aí se encontrava o seu irmão. Não teve grandes dificuldades de integração e explica porquê: “Falar a língua é a chave, porque quando falamos a língua do país que nos recebe estamos a comunicar, aprendemos os códigos da sociedade. Se não aprendermos — e foi isso que aconteceu com os meus pais —, seremos sempre outsiders. Viveremos como imigrantes isolados. ” Da Suécia, onde fez estudos superiores “para ser professora”, Suad foi para a Universidade de Zarka na Jordânia onde se formou em Shariah, lei islâmica. Quando voltou a Estocolmo, em 2002, deu uma entrevista ao jornal Kyrkans Tidning, órgão oficial da Igreja Protestante sueca [separada do Estado], e foi assim que ganhou o título de imã. “Que coisa extraordinária, não?”, comentou ela, divertida e briosa. “Na realidade, até para mim, tem sido difícil assumir-me como imã. ” Interpretação feminina
REFERÊNCIAS:
Partidos PAN LIVRE
Prendam o Trump! E não faltam motivos para isso
Não sei como vai ser, mas não vai ser bom e se a gente não usa todas as armas da democracia vai perder. (...)

Prendam o Trump! E não faltam motivos para isso
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento -0.06
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Não sei como vai ser, mas não vai ser bom e se a gente não usa todas as armas da democracia vai perder.
TEXTO: “Lock her up! Lock her up!”(Grito de guerra dos comícios de Trump contra Hillary Clinton)Só há uma coisa importante sobre a qual se pode escrever hoje em dia: o Presidente dos EUA, Donald Trump. Dele vai depender quase tudo o que se passa no mundo em 2019: a crise da Europa, a paz do mundo, a situação no Médio Oriente, a corrida aos armamentos, a contínua ascensão de Putin, a economia global, as instituições como a ONU, a Unesco, a UNICEF, as agências humanitárias internacionais, a nova guerra cultural contra as mulheres e a comunidade LGBT, a independência e a separação dos poderes nos EUA, a politização da justiça e das forças armadas, a democracia em muitos países, a democracia nos EUA, de um modo geral o grau de violência que o mundo vai ter sob todas as formas. Muitos destes conflitos não foi Trump que os criou, mas em todos Trump acrescentou factores de agravamento e, nalguns casos, trouxe as franjas mais radicais para o seu lado, para o centro dos conflitos de uma forma que era inimaginável há poucos anos. Os supremacistas brancos, os grupos racistas anti-imigrantes, as redes e os locais de conspiração e calúnia (como o InfoWars e o Breitbart) junto dos quais a comunicação social mais tablóide brilha de sensatez e limpeza, os “operadores políticos” especialistas em operações de desinformação (como Roger Stone), os agentes estrangeiros que, ao serviço dos seus governos, oferecem a desinteressada ajuda a Trump para ganhar eleições e atacar os seus adversários com hackers e fake news e mesmo os assassinos sauditas legitimados pelos cheques da compra de armamento. A tudo isto soma-se essa coorte de mentirosos profissionais, manobradores de todos os dinheiros sujos, como o director de campanha de Trump, o advogado e “facilitador” de Trump, vários assessores e homens de confiança da campanha, e o responsável pela Segurança Nacional, todos a caminho da cadeia. Se a isso somarmos os mentirosos comprovados, os esquecidos de quantas vezes falaram com os russos, teríamos que acrescentar a família Trump, os filhos e o genro. Resumindo e concluindo: é uma pena os portugueses não conhecerem gente como Stephen Miller, um dos principais conselheiros de Trump, solitário porque os adultos de serviço foram saindo um a um, porque, em meia dúzia de minutos, percebiam o que eu estou a dizer. Como é possível escrever tudo o que escrevi sem qualquer risco de contestação, sem qualquer possibilidade de alguém me acusar de calúnia? Pura e simplesmente porque é tudo pura verdade e não há sequer muita controvérsia sobre estas acusações e descrições. Como é que fazendo tudo isto o homem pode continuar a ser Presidente dos EUA? Como é que Trump é capaz de ter feito tanta coisa negativa, qual super-homem do Mal? A resposta é simples: é Presidente dos EUA, o homem mais poderoso do planeta, e não responde a nada a não ser ao seu próprio narcisismo e aos mecanismos do narcisismo, sondagens, audiências, aos bajuladores e sicofantas, e está cada vez mais preso no casulo do seu Ego doentio. Para se perceber Trump é obrigatório ler os seus tweets, com as suas obsessões à flor da pele, os seus erros de ortografia, as suas frases incompreensíveis, as suas calúnias e insultos, a chantagem directa a pessoas, instituições e países, o estilo autocrata e vaidoso – tudo o que ele faz é o melhor do mundo –, a ignorância, a incompetência e a profunda e explicita violência do homem. Em Portugal podia ser ditador de um pequeno café ou dirigente desportivo, para já. Mas no Brasil já poderia ser Presidente. O “para já” não me conforta. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Eu passei o ano entre a explicação racional, a explicação do que ele faz e do seu sucesso e insucesso, e a tentação do irracional, Trump não é bom da cabeça. Cada vez mais penso que são as duas coisas. O que é mais grave é que toda a gente nos EUA que o conhece e com ele contacta sabe que é assim. Suspeito aliás que mesmo na sua base mais fiel, há muita gente que sabe que ele não regula bem. Claro que ele representa muitos interesses económicos, financeiros, americanos e internacionais, como nos lembram os marxistas, mas não é só isso. Há um factor cultural que está para além disso, que é americano e mundial e que homens como Steve Bannon tentam transformar numa nova internacional, Trump mostrou a força da negatividade, um dos mecanismos base do populismo moderno. Conseguiu uma coisa que até agora lhe tem garantido imunidade, mesmo para os actos mais graves quotidianos: conseguiu ser o azorrague dos inimigos de muita gente, a emanação da vontade de vingança e ódio, o cavaleiro andante de muito ressentimento. E nos dias de hoje isso é muito poderoso. Trump foi a todas as cloacas da vida que se manifestam nas redes sociais e fê-las correr a céu aberto e inundar mesmo as terras que eram sadias e limpas. Ele é o primeiro político típico do século XXI. Já o escrevi e repito-o: Trump não vai abandonar o poder a bem mesmo que perca as eleições. Ele encontrará uma qualquer teoria da conspiração porque é incapaz de admitir sequer que ele, o “génio estável”, possa perder uma eleição. E nas chamas tribais que ele incendeia todos os dias isso é um risco de guerra civil. Não como as do passado, mas as modernas, as que vão das igrejas evangélicas aos hackers de Moscovo, passando pelas redes sociais e pelo ataque à liberdade de imprensa e por juízes políticos. Não sei como vai ser, mas não vai ser bom e se a gente não usa todas as armas da democracia vai perder.
REFERÊNCIAS:
Entidades UNESCO ONU EUA
Os refugiados, a bomba-relógio e os medos católicos
As organizações católicas italianas que trabalham com refugiados criticam duramente a nova política do país: o Governo reclama a tradição cristã da Europa, mas as instituições dizem que a política “aldraba a realidade”. E têm receio dos efeitos negativos das orientações no acolhimento e integração dos refugiados — dos que ainda conseguem chegar. Muitos são bloqueados por uma Turquia “que não os protege” ou morrem no Mediterrâneo. (...)

Os refugiados, a bomba-relógio e os medos católicos
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 Refugiados Pontuação: 21 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: As organizações católicas italianas que trabalham com refugiados criticam duramente a nova política do país: o Governo reclama a tradição cristã da Europa, mas as instituições dizem que a política “aldraba a realidade”. E têm receio dos efeitos negativos das orientações no acolhimento e integração dos refugiados — dos que ainda conseguem chegar. Muitos são bloqueados por uma Turquia “que não os protege” ou morrem no Mediterrâneo.
TEXTO: O camaronês Franck Tayodjo, 41 anos, está há 15 anos em Itália, mas tem na pele as marcas do que o levou a fugir do seu país, aos 26 anos: basta levantar ligeiramente as calças para poder ver as cicatrizes da violência e da tortura a que foi sujeito. Jornalista no Aurore Plus, ele e outros colegas eram perseguidos pelo Governo, por causa do que publicavam. “Os governos foram sempre duros com jornais mais críticos. ” Forma branda de explicar porque foi metido numa prisão subterrânea e torturado. Apesar de estar detido na cadeia Regina Coeli, no centro de Roma, Pedro Celeita, 66 anos, colombiano condenado por furto a dois anos de prisão, tem autorização do director para sair durante algumas horas do dia e ajudar outros imigrantes e refugiados no Angolo del Pellegrino: “Estou aprendendo a liberdade. Assim como me ajudaram a mim, estou agora a ajudar outros”, diz, a poucos dias de sair em liberdade e poder regressar à Colômbia, para tentar reconstruir a vida. Apenas terá de cumprir um pedido que lhe fez o Papa — já veremos o quê e quando. Às duas horas da tarde, a fila à porta do Centro Astalli, do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS, da sigla inglesa), já tem umas 30 pessoas, aguardando a comida que será distribuída uma hora depois. Os rostos são sobretudo africanos, mas também asiáticos e do Médio Oriente. Para os voluntários e funcionários do JRS que ali trabalham, nem sempre a tarefa é fácil. “Quem é diferente, vem de outros países e traz consigo uma bagagem de tanto sofrimento, não é uma pessoa fácil de acompanhar”, dirá, uma hora depois, o padre Camillo Ripamonti, director do JRS-Itália, que se manifestará também preocupado com as decisões e atitudes do novo Governo do seu país e com as indecisões europeias. Odine Gideon, 21 anos, nigeriano, viu morrer gente no barco em que se meteu para chegar a Itália, depois de ter ido a pé do seu país até à Líbia. “Umas 14 pessoas perderam a vida” no barco, incluindo crianças. O infortúnio do pequeno Aylan Kurdi, que morreu em Setembro de 2015 numa praia da Grécia, repete-se incessantemente. Na mesma Casa Scalabrini, um antigo seminário transformado em residência de uns 30 refugiados, o missionário Emanuel Selleri, 35 anos, teme a bomba-relógio que as políticas europeias (ou a falta delas) estão a provocar, com o fechamento de fronteiras. Com 75 anos feitos em Julho, o padre Vittorio Trabi quer ser optimista, mas alerta: “Deixamos as pessoas entrar, mas depois não as podemos deixar dormir debaixo da ponte. ” Franciscano, capelão na cadeia Regina Coeli, o padre Vittorio criou o Angolo del Pellegrino e os Voluntari Regina Coeli, grupo de presos que ajudam quem precisa ainda mais. Na última Quinta-Feira Santa, foi este centro de detenção do bairro de Trastevere, no centro de Roma, que o papa Francisco escolheu para o gesto simbólico e litúrgico de lavar os pés a vários presos. Não é fácil o novo quadro político italiano para as organizações católicas que trabalham com imigrantes e refugiados. O Governo fecha portos aos navios e portas da burocracia, corta a torneira da ajuda financeira, cria um ambiente “hostil”, como dirá o padre Camillo. Ainda em Junho, no início da odisseia do navio Aquarius, que só esta semana conheceu um desfecho, o cardeal Ravasi foi criticado por ter recordado que Santo António também foi náufrago e defender o dever evangélico de acolher o estrangeiro. Os bispos assumem a voz da oposição às novas políticas, dizendo que se sentem responsáveis por quem foge das guerras, do deserto, da fome da tortura. A revista Famiglia Cristiana colocou uma fotografia do ministro do Interior, Matteo Salvini, na capa com o título “Vade retro”. O Papa é popular, mas as suas posições sobre este tema não colhem na opinião pública: em cada três italianos, um está do lado do Governo. . . A história de Franck Tayodjo é tragicamente vulgar: nas eleições de 2003 nos Camarões, o jornal Aurore Plus, onde trabalhava, pronunciou-se contra a fraude na contagem dos votos. A resposta do Presidente, Paul Byia, no poder há 36 anos (desde 1982), foi mandar vários militares intimidar jornalistas. Líderes de opinião, comentadores, políticos de oposição, responsáveis de um jornal católico onde Franck também colaborava, ninguém escapou à vigilância da polícia secreta. “Houve pessoas mortas, o Presidente decidiu fechar o jornal, nós procurávamos vender mesmo às escondidas, o Governo militarizou a cidade e mandou a polícia secreta ao jornal. ”E também a sua casa, onde os militares apareceram à noite: “A minha mulher disse que eu não estava e eles começaram a torturá-la. Ela gritou, eu apareci e eles levaram-me. Antes, com a polícia normal, eu escondia-me e o chefe de redacção resolvia o problema. Dessa vez, já não foi possível. . . ”Franck Tayodjo foi submetido a tortura numa prisão subterrânea. Uma das técnicas era fazer rolar os presos no chão e caminhar com as botas sobre eles. Intimidações, perseguições e tortura são práticas quotidianas, acusa. Enquanto fala, Tayodjo mexe timidamente as mãos, sentado na pequena Capela da Fuga para o Egipto, do Centro Astalli: dois bancos corridos, uma cruz etíope e um missal sobre o pequeno altar, que era a escrivaninha do padre Pedro Arrupe, antigo superior geral dos jesuítas, que criou o JRS há 35 anos, na altura da crise dos boat people vietnamitas. Nas paredes, um ícone pintado por Abbye Melaka, refugiado etíope que ali chegou na década de 1990 e hoje vive na Alemanha, evoca a cena da fuga que a tradição coloca no começo da vida de Jesus. Em frente, outro ícone representa a Última Ceia de Jesus com os seus discípulos, como que dizendo que naquela casa o pão é partilhado por quem precisa. Também Franck Tayodjo já teve de fugir, como no episódio que o nome da capela evoca. Em 2003, a região noroeste dos Camarões lutava pela secessão. “A polícia secreta queria que eu lhes desse documentos sobre isso e perguntavam quem estava por detrás de mim. ” Várias pessoas organizaram--se para conseguir a sua libertação. Um bispo católico conhecia-o e organizou a fuga, em direcção a Bamenda, na região secessionista, e depois para a Nigéria, com a qual o país estava em guerra. Mesmo assim, Franck não se sentia em segurança. Acabou por conseguir arranjar documentos falsos e meter-se no porão de um avião da Alitalia, sem poder mexer as pernas durante as oito horas de viagem. “Não sabia que era um avião italiano. ” Quando chegou a Roma, teve quem o informasse de que poderia pedir asilo político, algo que ele ignorava. No aeroporto de Fiumicino, deram-lhe o endereço do Centro Astalli, nas traseiras da igreja jesuíta do Gesù, no centro de Roma. Cinco dias depois da viagem, conseguiu finalmente tomar um duche, ser visto por um médico, contar a sua história, falar com um psicólogo e juristas e, depois, começar a aprender italiano. A resposta ao pedido de asilo, positiva, chegou ano e meio depois. A história de Franck não tem um final feliz: em Roma, faz por vezes alguns trabalhos manuais, sente-se um “eterno precário”. Vive numa casa nos arredores de Roma, com a mulher, que conseguiu juntar-se a ele mais tarde e trabalha como empregada doméstica, indo a casa duas vezes por semana. Mas sente-se permanentemente “em risco de perder a casa, de perder tudo”. E, enquanto refugiado político, não recebe nada do Estado, sublinha. Pelo meio, e ainda nos Camarões, perdera o filho de três anos, por falta de assistência médica. Ele e a mulher adoptaram uma criança, que tinha mais ou menos a idade do filho que morrera — entrou na universidade há um ano. Com tempo livre, Franck acompanha os voluntários do JRS, há cinco anos, em muitas escolas: conta a sua história e fala com os alunos acerca da situação dos refugiados. As idas às escolas fazem parte do projecto que o JRS desenvolve para alunos entre os 13 e os 19 anos, explica Francesca Cuomo, coordenadora do Finestre (palavra italiana para janelas), dedicado ao trabalho nas escolas, e do Incontro, que trabalha o diálogo inter-religioso. “Pretendemos que os jovens desenvolvam um pensamento crítico, baseado no conhecimento”, diz. Isso significa fazer com eles um percurso didáctico sobre migrações forçadas, o contexto geopolítico, a realidade dos países de origem dos refugiados, o direito de asilo, os direitos humanos. . . É nesse percurso que surge o encontro com um refugiado, que servirá de base a um conto que os estudantes escreverão para um concurso literário. “Não se trata de um relatório, mas de se meter na pele daquela pessoa, fugindo à guerra e enfrentando viagens cheias de riscos. E contar isso com um ponto de vista e sensações. ”Mais de 15 mil jovens participaram na última edição do concurso. “O objectivo não é convencer, mas permitir uma experiência e pôr os jovens ao corrente desta realidade, a partir do testemunho, que é o que a televisão não mostra. ” A memória histórica da Itália enquanto país de emigração também serve de recurso, recordando as histórias da emigração económica dos pais ou das emigrações dos avós após a destruição da II Guerra Mundial. Francesca Cuomo tem consciência de que este é um trabalho de paciência, que se confronta com uma opinião pública em que a recusa da diversidade tem crescido. “O que fazemos é plantar uma semente de mudança de mentalidade. Na aula, eles são mais do que 25, porque depois falam com os pais, os amigos. . . É só um instrumento, talvez pequeno, mas poderoso, para mudar as mentalidades. ”Donatella Parisi, responsável pela comunicação no JRS Itália, está consciente de que a tarefa é árdua e o ambiente cada vez mais difícil. “A política aldraba a realidade e a mensagem positiva fica mais frágil. ” O seu dedo aponta responsabilidades graves a muitos políticos e meios de comunicação: “O binómio imigração igual a terrorismo é cavalgado por políticos e pelos media. Tentamos apelar à responsabilidade e à deontologia dos jornalistas, contra as campanhas de ódio que já estão muito estudadas. ”Nota-se tristeza na voz. “Há uma estratégia política muito precisa num momento muito delicado”, diz. Por isso, os 63 mortos de Junho, num novo naufrágio, ou o mês e meio de navegação do Aquarius à espera de autorização para atracar num porto europeu já quase não são notícia, admite. É o “racismo e xenofobia” a crescer, diz. O padre franciscano Vittorio Trani, que reuniu os voluntários da prisão Regina Coeli no Angolo del Pellegrino, para ajudar imigrantes, refugiados, pobres e sem-abrigo, não dramatiza as palavras, mas olha a nova realidade como “muito difícil”. Os media também não ajudam, com a mensagem de que entre os refugiados podem vir terroristas. Há muitos elementos de confusão, diz, e o panorama “não permite pensar o fenómeno” na sua globalidade: pouca clareza no sistema de acolhimento, a “voz comum”, que não corresponde à realidade, de que os refugiados vêm roubar o trabalho. . . “A propaganda não se baseia na realidade”, sublinha Donatella Parisi. Há cada vez menos refugiados a chegar, depois do acordo que a União Europeia fez com a Turquia: entre Janeiro e Junho deste ano entraram em Itália apenas 18 mil pessoas, num país de 65 milhões, observa. “Pagamos à Turquia, que não protege os refugiados. ”Os meios de comunicação falam de uma emergência que afinal não existe, os políticos não resolvem os problemas e apanham a onda, como tem feito o novo ministro Salvini. “Ele já criticara, enquanto deputado europeu, o acordo de Dublin”, que atribui ao país de acolhimento a responsabilidade pela integração. Rejeita-se pois a ideia de que Grécia, Itália e Espanha são os que têm a factura mais alta. No Conselho Europeu de Junho, o problema foi mais uma vez adiado, critica Donatella: “Foi um grande falhanço, nem sequer se previu a reforma do tratado de Dublin. ”O padre Vittorio insiste em que não se pode apenas fazer entrar as pessoas. É preciso “estar na primeira fila para ajudar de modo completo”, ou seja, “acolher de forma a dar uma vida digna às pessoas, acolher com inteligência, ter a coragem de dizer, como o Papa, que a pessoa é uma pessoa”. Na portaria do Centro Astalli (o nome vem da rua onde se situa), vê-se uma fotografia do Papa quando visitou a instituição, há cinco anos. Logo a seguir, um gabinete minúsculo: duas secretárias, um relógio de parede, móveis de arquivo. Três voluntários fazem a primeira triagem de quem chega, respondem a pedidos de informação, entregam correspondência — quem não tem morada dá a direcção do centro — e impõem a ordem quando necessário: por exemplo, quando um homem e uma mulher se envolvem numa discussão acesa. Ela traz uma mala, será a “bagagem de sofrimento” de que falará o padre Camillo?Foi na cave do edifício que tudo começou, há mais de 35 anos: o padre Pedro Arrupe, que estava em Hiroxima quando a bomba nuclear foi lançada, viu as imagens dos boat people do Vietname e quis ajudar os refugiados. Além do apoio nos países asiáticos atingidos pela crise, grupos de voluntários organizaram-se em Roma para distribuir comida, organizar serviços de ambulatório, promover aulas de italiano. . . Hoje, é aqui que se concentram os serviços de distribuição de comida, duches, gabinetes de apoio médico e jurídico, serviços de apoio para a segurança social ou a vítimas de tortura. . . No último ano, mais de 14 mil pessoas foram aqui atendidas, só em Roma, mas o número chegou a cerca de 30 mil nas cinco estruturas do Centro Astalli/JRS em Itália. Uma realidade só possível com os 50 funcionários e 450 voluntários que ali trabalham. Um desses voluntários é Renzo Giannotti, 73 anos, farmacêutico aposentado que há dez anos faz o serviço ambulatório, complementando os dois médicos que dão consultas todas as tardes. É ele que guarda as fichas clínicas dos refugiados que por lá passam e que distribui os medicamentos (doados por outros amigos farmacêuticos ou alguns laboratórios) mais necessários para patologias menos graves — gripes, constipações, dores, problemas de digestão — ou para tratar alguns problemas crónicos. No Verão, 15 a 20 pessoas recorrem diariamente ao serviço. A maior parte são homens jovens, a média etária é de 25 anos. Os casos mais graves são enviados para especialistas amigos ou para as urgências hospitalares, se há necessidade de intervenção imediata. Oitenta por cento dos que procuram os diferentes serviços do Centro Astalli são muçulmanos — por isso, não se distribui álcool nas refeições ali servidas. “Aqui verifica-se um diálogo de vida. Quando o Papa veio, fez-se uma festa e quase todos eram muçulmanos”, conta Donatella Parisi. A maior parte dos que chegam são homens, mas muitos sírios vêm em família e, do Congo, há muitas mulheres que trabalham. Em 2015, o papa Francisco apelou a que instituições católicas convertessem as casas que estivessem vazias em centros de acolhimento de refugiados. Até agora, cerca de oito mil pessoas foram acolhidas nas 35 instituições que responderam imediatamente e noutras que o fizeram depois. Os Missionários Scalabrinianos — o nome vem do fundador, o bispo Giovanni Battista Scalabrini que, em 1887, fundou a congregação para trabalhar precisamente com os imigrantes pobres — fizeram-no, transformando o antigo seminário, vazio, na Casa Scalabrini. Residem ali 32 refugiados, a maior parte de origem africana — por lá já passaram mais de 120, nos últimos dois anos. Significativamente, além da capela que já existia na casa, criou-se um espaço para a oração muçulmana. “Não podíamos fazer mais nada do que abrir as portas e pensar em algo que fosse bom para as pessoas”, diz Emanuel Selleri, missionário leigo, que esteve antes na América do Sul e agora é um dos responsáveis da casa. “Eles vieram primeiro pelo deserto, depois pelo mar. Os que conseguem chegar vêm muito traumatizados e com medo de não serem aceites. ”Por isso, ali, em cerca de seis meses, sempre em comunidade, formam-se os refugiados para os munir de possibilidades de trabalho — língua italiana, carta de condução, noções básicas de economia, direitos e deveres de cidadão — e forma-se a população do bairro social em volta para acolher a diversidade. Uma rádio privada serve para os refugiados expressarem mais intimamente a sua história, os seus anseios, num momento “íntimo, quase terapêutico”. O padre Gabriele Beltrami, 47 anos, responsável pela comunidade, diz que há refugiados que querem regressar ao país de origem. Não é o que pensa o nigeriano Odine Gideon, que prefere ficar na Europa: no seu país, “não havia esperança, nada. . . ” Por causa destas situações, Emanuel acrescenta: “Fechar as fronteiras não é solução, este é mais um drama que esta política europeia e italiana está a colocar no nosso coração: fecham os portos, mas os refugiados chegam por outro lado. ” E o desabafo: “Como italiano, não posso mais com isto. . . ”O Centro Astalli também tem quatro casas para acolhimento e residência de refugiados. Num deles, o da via San Saba, residem 20 homens, actualmente, explica Giuseppe Coletta. Procura-se criar autonomia, neste caso através de um projecto experimental de trabalho em serigrafia. “Permite estabelecer relação entre pessoas que normalmente vivem sozinhas”, explica Donatella. Não tem havido só boas notícias, mesmo nestas instituições: houve paróquias onde várias pessoas abandonaram as missas, quando os párocos anunciaram o acolhimento de refugiados em instalações paroquiais. No início de Agosto, um gambiano acolhido na paróquia de Vicofaro, na Toscana, foi alvejado a tiro quando saiu à rua. Seria necessário alargar a rede de acolhimento e acção, diz Donatella, com católicos, outros cristãos, sindicatos e diferentes organizações. No Angolo del Pellegrino, criado há seis anos pelo padre Vittorio, também se faz a distribuição de comida e de roupa, há lavandaria, apoio médico e farmacêutico, apoio jurídico e para a burocracia do Estado. Não se gasta dinheiro, explica o capelão da prisão Regina Coeli, pois tudo é oferecido e recolhido por uma rede de voluntários. À hora de jantar — pão, bebida, arroz e frango para 30 pessoas —, vários carregam a bateria do telemóvel, objecto que permite a ligação ao mundo e o acesso a informação. Diariamente, há pequeno-almoço às 8h, pizza às 11h e uma ceia às 19h. Vinte pessoas podem dormir nos anexos da Igreja de San Giacomo. Ricardo, um romano de 50 anos (um dos poucos europeus), sem-abrigo, tem falta de trabalho e problemas cardíacos a mais. “Ao menos tenho comida. Caso contrário, ia para supermercados pedir esmola. ” Simon, 53 anos, veio do Líbano, ficou sem nada há um ano: separou-se da mulher, teve de ser operado, perdeu o trabalho. Hoje dorme na rua. Pedro Celeita guarda da visita do Papa à cadeia onde tem estado a recordação do momento em que Francisco lhe pediu: “Quando saíres em liberdade, toma um café e reza por mim. ”São amargos alguns cafés que Franck ainda toma. Há pouco tempo, num autocarro, uma mulher virou-se para ele a dizer que por sua causa é que o transporte estava cheio. “Em vez de pedirmos todos mais autocarros, sou eu o culpado por o autocarro ir cheio. Saí na paragem seguinte. Ou, se dou o lugar a alguém, ainda me dizem que a gentileza era ir para o meu país. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O machado que lhe fazem sentir em cima da cabeça não lhe corta a raiz do pensamento: “Vim para um continente democrático, supostamente civilizado, que deu muita coisa a África. Mas que descarrega sobre os refugiados e os imigrantes a ideia de que a crise é culpa nossa. ” E acrescenta: “As pessoas são mal informadas por muitos políticos, pelos meios de comunicação. Antes, os maus eram os italianos que emigravam ou os do Sul de Itália que vinham para o Norte. Hoje, somos nós. Raramente somos chamados para falar. . . ”A tortura a que Franck foi sujeito cicatrizou nas pernas. Continua, no coração, gravada a sangue.
REFERÊNCIAS:
Descolonizar o pensamento entre Estocolmo e Joanesburgo
A plataforma feminista Mahoyo apresenta esta sexta-feira, em Lisboa, um documentário centrado na efervescente cena cultural de Joanesburgo. Uma alternativa às narrativas uniformizadas sobre África. (...)

Descolonizar o pensamento entre Estocolmo e Joanesburgo
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: A plataforma feminista Mahoyo apresenta esta sexta-feira, em Lisboa, um documentário centrado na efervescente cena cultural de Joanesburgo. Uma alternativa às narrativas uniformizadas sobre África.
TEXTO: Farah Yusuf e MyNa Do, ambas DJ, fotógrafas e stylists, nasceram e cresceram na Suécia mas ouvem sempre a mesma pergunta nas ruas de Estocolmo: “De onde são?”. São da Suécia, vivem na capital, mas não encaixam na norma. Farah é de ascendência somali, MyNa de ascendência chinesa, o que entra em conflito directo com os padrões hegemónicos de representação da identidade nacional sueca, país onde a extrema-direita e os sentimentos anti-imigração têm crescido a passos largos, muito à boleia do (cada vez maior) partido nacionalista conservador Democratas Suecos. “Esse tipo de racismo banalizado consegue ser muito irritante”, diz MyNa Do. “Não é só uma questão de insultos racistas ou violência física, é o constante sentimento de insegurança”, conta Farah Yusuf ao PÚBLICO. “Se algum abuso racial acontecer a nós e a outros, sabemos que não vão ser muitas as pessoas brancas que nos vão defender. ”Foi contra "essa passividade" e estereótipos perversos de raça, género, sexualidade e identidade nacional que Farah e MyNa criaram, em 2008, a Mahoyo, uma plataforma feminista interseccional e interdisciplinar que funciona, online e offline, como “um espaço seguro” onde “exploram livremente” as suas identidades e criatividade, numa lógica colaborativa transcontinental. Esta sexta-feira passam pelo espaço Damas, em Lisboa, em mais uma edição do evento Damachine, onde apresentam, pelas 18h, e com entrada gratuita, o seu mais importante projecto até à data: o documentário The Mahoyo Project (2015), realizado por Moira Galey, que acompanha a viagem das Mahoyo a Joanesburgo, na África do Sul, e o intercâmbio entre jovens artistas africanos e suecos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Boa parte do filme centra-se na efervescente cena cultural de Joanesburgo, com testemunhos de vários artistas locais. Entre eles estão a DJ Phola Gumede – com quem organizaram workshops de DJing e produção de música electrónica para mulheres –, a apresentadora de rádio e televisão Lethabo “Boogy” Maboi, a designer de moda Tiisetso Molobi e a crew de dança V. I. N. T. A. G. E CRU, uma força vital na comunidade LGBTI da cidade. “A coisa mais surpreendente em Joanesburgo não foi a existência de comunidades feministas e queer, mas o facto de ter demorado tanto tempo a sermos expostas a isso”, revelam Farah e MyNA, referindo a influência inicial do projecto de documentários e vídeos Stocktown, do realizador Teddy Goitom (Afripedia), também com base em Estocolmo mas com os olhos em África (e no mundo). O objectivo de The Mahoyo Project é claro, e necessário: contribuir, sem paternalismos, para transformar as narrativas uniformizadas e estereotipadas veiculadas sistemicamente pelos media ocidentais sobre África e a sua produção artística, uma realidade profundamente diversificada que é normalmente encaixilhada sob o título redutor de “arte africana”. Descolonizar o pensamento e o conhecimento é a mensagem que se impõe. “Sabemos perfeitamente que internalizamos muita da propaganda dos mundos ocidentais”, diz o duo. “A descolonização das nossas mentes é uma parte muito importante do processo, bem como verificarmos os nossos privilégios e sermos humildes. "Depois da projecção do documentário nas Damas, segue-se uma conversa com as Mahoyo, a rapper Juana Na Rap e Otávio Raposo, investigador nas áreas de estudos urbanos e segregação, e autor de documentários como Nu Bai: O Rap Negro de Lisboa. À noite há concerto de Juana Na Rap, dama do rap crioulo com ligação directa à Margem Sul, e set DJ das Mahoyo, que nos levará do dancehall ao kwaito (género musical nascido em Joanesburgo), do hip-hop ao r&b.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave violência imigração negro racismo comunidade género mulheres sexualidade abuso feminista raça
Um só mundo... ou nenhum
O internacionalismo assumiu múltiplas faces, nem sempre quis questionar o primado do Estado-nação e não poucas vezes representou a forma mais palatável de promover interesses egoístas. Também foi uma causa pela qual muitos dedicaram os melhores dos seus esforços, pela qual muitos sonharam para lá dos limites do imaginável. (...)

Um só mundo... ou nenhum
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: O internacionalismo assumiu múltiplas faces, nem sempre quis questionar o primado do Estado-nação e não poucas vezes representou a forma mais palatável de promover interesses egoístas. Também foi uma causa pela qual muitos dedicaram os melhores dos seus esforços, pela qual muitos sonharam para lá dos limites do imaginável.
TEXTO: A 22 de Agosto de 1939, num mundo em assustadora desintegração, agitado pelos desvarios de Adolf Hitler e Benito Mussolini e marcado pelo desenrolar da Guerra Civil Espanhola, o australiano Stanley Melbourne Bruce, antigo primeiro-ministro do seu país e então delegado na Sociedade das Nações (SDN), assinou um dos relatórios sobre questões internacionais mais importantes do século XX. Forjado no interior de reuniões de um comité ao qual presidia e sob a direcção do secretário-geral Joseph Avenol, o relatório The Development of International Co-operation in Economic and Social Affairs, que ficou conhecido como “Relatório Bruce”, deixou marca não apenas naqueles turbulentos dias, mas também nas décadas seguintes. Foi um olhar para a frente quando tudo parecia recomendar o fechar de olhos. Bruce fora já um dos responsáveis pela promoção da questão da nutrição a problema global, defendendo investigação e intervenção internacionais. Já em 1935 defendia o “casamento entre a saúde e a agricultura” na Assembleia da SDN. A acumulação de estudos desde os anos 20, nomeadamente os elaborados pela Organização Internacional do Trabalho e pela Organização de Saúde da SDN, que apontavam para notórias insuficiências nutritivas a uma escala global, exigia uma resposta global. Para Bruce, era importante deixar claro que o estudo da nutrição não podia ser reduzido a uma questão de saúde: era um problema laboral e agrícola, que afectava o bem-estar das crianças e as dinâmicas educativas. A guerra iminente na Etiópia não ofuscou algumas destas ideias à época. Elas deixaram marca, reavivando anteriores iniciativas e sendo abraçadas por várias delegações. Já em 1933, um relatório sobre nutrição e saúde pública, assente em inquéritos nacionais, fora debatido em Genebra. Era urgente enfrentar o problema. Entre outros aspectos de relevo, reconhecia-se que “em geral as populações coloniais eram subnutridas”. Nem sequer se tratava de um problema de malnutrição. Era fome, escassez de alimentos, pura e simplesmente. O novo saber do “nutricionismo”, agora com uma expressão institucional internacional, e a expansão dos serviços médicos em territórios coloniais, em parte como resultado da necessidade de responder regularmente a pedidos de informação provenientes de instâncias internacionais, confirmavam factos antigos, conhecidos e denunciados por alguns. Nos anos 20, os esforços da SDN para conhecer, regular e intervir em problemas sociais como a prostituição, o bem-estar das crianças, o tráfico de mulheres e crianças, o comércio de narcóticos ou a escravatura eram essencialmente normativos e negativos. Centravam-se sobretudo na tentativa de restringir, de jure e com inúmeras limitações, essas práticas, procurando comprometer os seus membros com normas e políticas comuns. Um dos casos mais fascinantes foi o dos relatórios escritos por Paul Kinsie para o comité especial de especialistas sobre tráfico de mulheres e crianças, nos anos 20. Kinsie era um empregado da American Social Hygiene Association, patrocinada por John D. Rockefeller. Este já tinha financiado o importante Prostitution in Europe (1914), da autoria de Abraham Flexner, e um outro livro, Commercialized Prostitution in New York City (1913), de George Kneeland. Este último comportara uma inovação significativa no estudo da prostituição, pois assentara em investigações clandestinas de tipo policial. Kinsie e a sua equipa também actuaram como agentes infiltrados, viajando por mais uma centena de cidades pelo mundo, incluindo Lisboa, entre 1924 e 1926. Entrevistaram centenas de indivíduos envolvidos no negócio da prostituição, de proxenetas a médicos, passando por polícias a políticos. Undercover, o próprio Kinsie esteve em cerca de 60 cidades de 30 países em três continentes, produzindo centenas de relatórios que registavam detalhadamente a sua interacção com o submundo da prostituição. A SDN tinha ficado responsável pela supervisão da aplicação da convenção internacional para a supressão do chamado “tráfico branco” (1910). Em 1921, a expressão foi substituída por “tráfico de mulheres e crianças” e uma comissão técnica permanente foi estabelecida para monitorizar o problema à escala global. A delegada dos EUA na comissão era Grace Abbott, activista social norte-americana, figura ímpar na defesa dos direitos dos imigrantes e do bem-estar das crianças, incluindo em matéria de trabalho infantil. Foi ela que redigiu o memorando que propôs o primeiro inquérito internacional sobre o assunto, sugerindo o envio de agentes com “treino especial e experiência para conduzirem investigações pessoais e não oficiais”. Tal medida era imprescindível para garantir “factos para refutar exageros sensacionais ou desmentidos gerais” sobre a existência do tráfico. Esses “factos” seriam a condição para “um programa sólido de cooperação internacional”, tendo por fim a sua supressão. Tal como sucedera com a investigação de Kneeland, a crença na fiabilidade dos dados oficiais era reduzida. O receio de possíveis bloqueios das autoridades nacionais era grande. Os relatórios Kinsie acabaram por alimentar o relatório da comissão, de 1927, sendo, todavia, fortemente instrumentalizados e suavizados em nome da necessidade de assegurar a continuidade da comissão e do seu projecto de intervenção global. O dilema é recorrente e não há soluções simples e perfeitas. Os relatórios Kinsie foram, contudo, excepcionais. Na maioria dos casos, a capacidade de recolha de informação e de condicionamento das agendas políticas nacionais da SDN era extremamente limitada. No entanto, durante os anos 30, e apesar da cada vez mais conturbada situação política e económica global, os seus dispositivos de investigação e de intervenção sofreram ligeiras mudanças, multiplicando-se também os tópicos abordados. Por exemplo, criaram-se programas de assistência técnica e de formação e aprimoraram-se formas de conhecimento de alguns problemas, instigando a produção de informação de raiz, não dependendo apenas dos dados providenciados pelos Estados-membros. O caso da nutrição é, novamente, um bom exemplo. A extensa dimensão da pobreza global coincidia com a existência de substanciais excedentes agrícolas, facto que precisava de ser enfrentado política e moralmente. A organização criou um comité científico com o fito de avaliar o impacto económico e agrícola de uma melhoria da nutrição a um nível global. Este efectuou inúmeras e ricas investigações, publicadas em 1936 e 1937, que demonstravam a relação umbilical entre má nutrição, pobreza e deficientes condições de saúde. Determinou parâmetros dietários mínimos, sublinhando a estreita relação entre estes e a saúde individual e pública, o bem-estar social e a actividade económica, nomeadamente a produção agrícola. Os efeitos da depressão faziam-se sentir em vários domínios e eram necessárias respostas. O Relatório Sobre Nutrição teve um enorme impacto, tornando-se a publicação da SDN mais vendida, com várias traduções. Ao contrário do que sucedera no passado, foram tomadas medidas para amplificar os conteúdos do relatório na esfera pública internacional. Comités nacionais foram criados para pressionar em favor de reformas. Como em muitos outros casos, muitas das medidas advogadas não atingiram os seus objectivos, esbarrando em empecilhos burocráticos e diplomáticos e em incompatibilidades várias, reais e de conveniência. Nos contextos coloniais, a “descoberta” da malnutrição esteve, em parte, ligada a intenções de aumentar a produtividade laboral e, até, à imaginação das populações locais como futuros consumidores. Frequentemente, cálculos económicos e (geo)políticos sobrepuseram-se a motivações humanitárias. Mahatma Gandhi não foi o único a perceber, com razão, como preocupações “científicas” sobre as realidades coloniais da nutrição também serviram para renovar e justificar ideologias de “missão civilizadora”. Do mandato dual de Frederick Lugard (1922) e do African Survey (1938) de Lorde Hailey até ao argumentário desenvolvimentista dos anos 40 em diante, abraçado que foi por todos os Estados-império, foram vários os exemplos de interrogações cientificamente alimentadas que foram usadas com propósitos políticos óbvios. Mas também é verdade que o relatório de 1937 insistia no facto de as maiores necessidades se localizarem na Ásia e em África, associando-o, entre outros aspectos, às condições de trabalho coloniais. Quando a guerra começou, existiam planos para intensificar a recolha de informação nesses territórios e para aí realizar conferências. Tal só sucedeu na América Latina. Os parâmetros dietários foram usados, mas principalmente pelos beligerantes, com a Alemanha à cabeça. Estas conclusões e orientações dos anos 30 constituíram uma referência para programas de ajuda alimentar, para regimes salariais ou para dietas escolares. Directrizes reformistas semelhantes foram assumidas em áreas como a habitação ou o planeamento urbano. Essas propostas reformistas foram rapidamente apropriadas e positivamente instrumentalizadas pelo mundo filantrópico e pelo activismo internacional e transnacional. Foram-no também por todos aqueles que visavam a reforma colonial ou ainda pelos que, como Gandhi, visavam a emancipação, denunciando a tibieza da assistência social das administrações coloniais, associadas por certo a dinâmicas várias de extracção. Mais, governaram muito da arquitectura institucional e os princípios de actuação das Nações Unidas. O seu Conselho Económico e Social foi decalcado, com pequenas mudanças, do Relatório Bruce. Como sucedeu com muitas outras iniciativas promovidas durante a Sociedade das Nações, tiveram um impacto positivo, que não pode ser ignorado por supostos “realismos”, mais ou menos científicos, que obliteram partes menos ajustáveis da história. Parte significativa desse esforço foi empreendida por homens como Bruce, visando a reforma da organização internacional no final dos anos 30, numa tentativa da aumentar a autonomia das agências sociais e económicas da SDN. Apesar da notória incapacidade política, a caminho da paralisia da organização, alguns sectores, nomeadamente os centrados em questões económicas, sociais e humanitárias, não deixavam de tentar prolongar a sua acção. É que, com dificuldades e obstáculos constantes, a organização deixara algumas impressões positivas nas últimas duas décadas. E a aparente despolitização da sua actividade podia ser benéfica politicamente. Os anos entre 1935 e 1939 revelaram uma “renascença” das agências respectivas, como um analista escreveu poucos anos depois. O supramencionado Relatório Bruce mostrava como mais de metade do orçamento da SDN tinha sido entregue a projectos humanitários e sócio-económicos. A ideia de desenvolvimento já circulava, sendo pensada já como “uma estratégia de intervenção sócio-económica de larga escala”, na qual “conhecimento especializado, assistência técnica e prestação de ajuda” desempenhavam um papel crucial. Tão importante, o relatório revelava as insuficiências dos Estados “soberanos” em lidar com questões vitais de natureza sanitária, social, económica e, por certo, moral. Notava ainda sua incapacidade em responder ao “crescimento contínuo das exigências materiais e intelectuais” da humanidade. A imaginação moral, política, social e económica do desenvolvimento da SDN marcou de modo indelével as décadas posteriores à sua liquidação. Estes factos contrariam, de modo evidente, os que, incapazes de pensar de um outro modo, a pensam numa narrativa de falhanço, sempre a partir de uma perspectiva no essencial profundamente a-histórica. O caso do Relatório Bruce é um excelente exemplo do modo como é imperioso repensar a história das organizações internacionais, corrigindo inúmeras apreciações superficiais e uma visão pobre da história, assente sobretudo na determinação de sucessos e insucessos. A história mais banalizada sobre o período posterior a 1945 tende a focar-se desproporcionadamente nas dinâmicas referentes à competição bipolar que sucedeu à II Guerra Mundial. No mesmo período, seguindo a toada, o direito de autodeterminação nacional estendeu-se a todo o globo, deixando de ser um privilégio ocidental e de alguns casos excepcionais. Todavia, há outras histórias a contar. Se muito do que sucedeu após a derrota nazi encontra precedentes no período entre guerras, a expansão de internacionalismos, a vários níveis, é uma parte deste passado que merece ser relembrada. Apesar de se poder argumentar que este novo ímpeto internacionalista se deveu, ou foi profundamente modulado, pelo contexto da Guerra Fria, ele claramente obriga a reponderar o seu lugar histórico. Não se tratou apenas da refundação de arquitectura de segurança global, corporizada na Organização das Nações Unidas, em 1945. A nova ordem eliminou barreiras “raciais” ou “civilizacionais” ao direito de se organizarem autonomamente comunidades políticas específicas e consagrou a extensão de um regime de direitos universais. Criou novas estruturas económicas multilaterais, ainda antes do fim da guerra, em Bretton Woods, em 1944. Era o resultado, consagrado na Carta das Nações Unidas, da compreensão de que as questões sociais, económicas e culturais constituíam não só um direito de toda a humanidade como representavam um pilar fundamental da paz e segurança internacionais. Boas intenções seguramente condicionadas por objectivos de natureza geopolítica, na sua acepção mais ampla, mas que não deixaram de produzir os seus efeitos. Como anunciava o candidato presidencial republicano Wendell Wilkie, no seu best-seller, One World (1940), a consciência de que existiam problemas com que se deparava toda a humanidade, e que exigiam soluções globais, não esmoreceu com a maior mortandade que aquela tinha engendrado. O reconhecimento destes processos não acarreta uma posição celebratória ou apologética. Muitos dos novos esforços de promover a cooperação técnica deram-se em domínios pouco atreitos a isso, como no caso da criação da Organização Internacional da Aviação Civil (1944), ou da Organização Meteorológica Mundial (1947). Mas tratava-se de um processo que era causa e consequência de uma crescente interdependência global, que se traduziu em mais do que uma duplicação de organizações internacionais entre 1940 e 1950. Nem estas histórias estiveram isentas de percalços, disputas ou instintos menos altruístas. O caso da nutrição e alimentação, já referido, constitui um bom observatório. Ainda durante a guerra, o presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt percebeu que esta seria uma questão crucial nos futuros planos do pós-guerra. A Food and Agriculture Organization (FAO) seria criada em 1945. Mas as diferenças entre os participantes, e em relação aos anos entre guerras, desde cedo se fizeram sentir. Por exemplo, os governos da América Latina queriam uma organização com reais poderes de regulação dos mercados internacionais; os EUA e o império britânico, uma mais dedicada à consultoria técnica, compilação de estatísticas e com menos poderes decisórios. Seria esta última visão que acabaria por prevalecer, levando a que John Boyd Orr, que viria a ser o primeiro director da organização, declarasse, irritado, que as pessoas esfaimadas “queriam pão, mas eram-lhe dadas estatísticas”. A resistência a que a organização pudesse ter poderes vinculativos em matérias como o comércio internacional de matérias-primas manteve-se, mesmo depois de a criação de uma Organização Internacional do Comércio ter fracassado. Mas, face às dificuldades, os funcionários da própria organização tiveram de a reinventar. Já com um novo director, o indiano Binay Sen, a FAO viria a criar uma das primeiras campanhas a nível global, a Freedom from Hunger Campaign, na década de 50. Envolvendo a sociedade civil, de indústrias de fertilizantes a grupos religiosos, a campanha visava alertar a opinião pública para o problema da fome no mundo. Patrocinada pelos EUA, que viam nela uma forma de granjear simpatias pelo mundo e, ao mesmo tempo, resolver o problema dos seus excedentes agrícolas, a campanha ajuda a justificar o aumento do orçamento da FAO de 7 para 83 milhões de dólares entre 1958 e 1967. A FAO é apenas um exemplo entre muitos da transformação operada no mundo das organizações internacionais nesta época. Sem ignorar os contributos pretéritos, a capacidade de intervenção destas organizações expandiu-se, aliando aos estudos, recomendações técnicas e sistema de aferição e cumprimento de normas internacionais, um número cada vez maior de intervenções no terreno. Uma expansão que era também geográfica à medida que o Sul global, especialmente após os anos da reconstrução europeia e, depois, com o acelerar da descolonização, se tornou o seu principal palco de intervenção. A Organização Mundial da Saúde (1948), além de criar normas de vacinação uniformes internacionais, compilação de estatísticas e sinalizar focos de epidemias a uma escala global, promoveu campanhas globais como a da erradicação da malária ou da varíola, mais tarde. Também aqui a história não é simples. O balanço final da campanha de erradicação global da malária foi francamente negativo, devido a factores ligados à própria metodologia da campanha, mas também a outros como as características da doença e as realidades sanitárias locais. A da varíola, pelo contrário, seria considerada um sucesso, em muito contribuindo para a erradicação global da doença. A acção destas organizações internacionais não se esgotava nas grandes campanhas internacionais. A troca cada vez mais regular de informações, a circulação de normas e modelos no seu seio promoviam diálogos menos visíveis. Logo após a sua fundação, e sustentando-se nos trabalhos de antropólogos e actores estatais durante o período entre guerras, a UNESCO olhou com particular interesse para programas na África do Sul, no Brasil e no México que visavam ultrapassar as desigualdades e discriminação raciais. No caso da África do Sul, o entusiasmo esmoreceria com a afirmação do apartheid no final da década de 40. O modelo da “democracia racial” brasileira acabaria por também sofrer com a constatação das suas insuficiências no terreno e com a instrumentalização do seu principal ideólogo — o para nós conhecido Gilberto Freyre — pelo Estado Novo português. O México acabaria por se assumir como um modelo de referência. Para isso contribuiu o trabalho de muitos dos seus académicos que procuravam responder à questão “indígena” nos anos 30, entre eles Jaime Torres Bodet, que lideraria a organização entre 1948 e 1952. Contribuía também uma prática política e social que pretendia substituir a “incorporação” pela “integração”, isto é, assumia que a integração plena das populações indígenas no espaço social “nacional” deveria ser feita com respeito por aspectos particulares da sua condição social, histórica e cultural. A afirmação do “modelo mexicano” seria, mais tarde, aproveitada por um sem-número de administradores e académicos franceses. Ao contrário de outras organizações internacionais, de quem o Governo francês desconfiava profundamente, a UNESCO, instalada em Paris, revelou-se instrumental na modelação de políticas coloniais francesas. Especialmente após o início da guerra na Argélia (1954), François Mitterrand, ministro do Interior, proclamou a nova doutrina de “integração”. Para isso, nomeou Jacques Soustelle, antropólogo que fizera trabalho etnográfico no México, para governador-geral na Argélia. Soustelle pôs então em marcha um plano inspirado no modelo mexicano dos anos 30: criando programas especiais para “cidadãos franceses muçulmanos da Argélia” no domínio da educação, reconhecendo a desvantagem fundamental criada pelo racismo que governara o império em matérias sociais e económicas e que não era resolvido pela simples igualdade jurídica. A França imperial iria tão longe quanto instituir quotas para argelinos muçulmanos nas estruturas administrativas, em 1958. O mesmo modelo enformaria os tropos anti-racistas que visavam justificar a presença francesa nos três departamentos. É importante sublinhar, novamente, que não se trata de celebrar o internacionalismo. Antes de sinalizar que ele constituiu uma realidade incontornável do século XX. Dois aspectos turvam esse olhar. Por um lado, a importância das organizações internacionais decaiu substancialmente à medida que o século se aproximou do fim. Se uma reunião técnica de qualquer organismo internacional, nos anos 50, se encontra profusamente espalhada pelo arquivo, hoje, a realidade, por exemplo, nos jornais diários é substancialmente diferente. Por outro, e à medida que a descolonização avançava, os projectos de remodelação integral de sociedades através de um meio que se queria “técnico” e “científico” começou a merecer cada vez maior desconfiança por parte das opiniões públicas ocidentais. O distanciamento do objectivo de criar um mundo mais igual em direcção a outros que davam prioridade à atenuação da pobreza, ligados a transformações da ordem económica internacional, e a burocratização dos técnicos e dirigentes das organizações internacionais para isso contribuíram. Seria, todavia, importante, assinalar que esta transformação abriu portas até então cerradas. Como afirmava o primeiro director da OMS, Brock Chisholm, os “povos do mundo” estavam a tentar “fazer coisas que nunca pensaram tentar na história da raça humana”. Não seria expectável que os “seus esforços relativamente primitivos tivessem sucesso à primeira ou que prosseguissem sem dificuldades”. Mesmo se nos fixarmos na história da Guerra Fria, aquilo que se passava para além das relações entre Estados e dentro destes forma uma história que deve ser recuperada no seu pleno direito. A ideia de Wilkie de One World acabaria por ser premonitória. E reforçada, à medida que o potencial destrutivo das armas nucleares passou a ser conhecido. Foi em torno desta questão que um dos mais importantes movimentos transnacionais da época se desenvolveu. O sentimento de vulnerabilidade suscitado pela possibilidade de aniquilação total, numa guerra fratricida, agitou os espíritos. Ao One World responderam Oppenheimer, Bohr e Einstein e outros cientistas com One World or None. O alerta para o perigo à espreita suscitava pulsões internacionalistas. Como Oppenheimer afirmava “os poderes amplamente aumentados de destruição que as armas atómicas nos deram trouxeram consigo uma profunda mudança no equilíbrio entre interesses nacionais e internacionais. O interesse comum de todos na prevenção da guerra atómica é tão grande que eclipsa qualquer interesse puramente nacional, seja de bem-estar ou segurança”. Consequentemente, a Federation of Atomic Scientists empenhou-se na batalha do desarmamento e da utilização da energia nuclear exclusivamente para fins civis. Não seriam os únicos. Na sequência de um teste de uma bomba de hidrogénio perto do atol de Bikini, em 1954, pelos EUA, um navio pesqueiro japonês que não fora alertado aproximou-se da zona, expondo a tripulação aos efeitos da radiação. Um poderoso movimento de base, não comunista, estendeu-se por todo o Japão, o primeiro após a guerra, pedindo o repúdio de todas as armas nucleares. Em Agosto de 1955, simbolicamente em Hiroxima, realizariam uma conferência mundial contra as bombas atómica e de hidrogénio, contando com a solidariedade, através de uma declaração, de Albert Einstein, Bertrand Russel e do físico nuclear e primeiro laureado nobel japonês, Yukawa Hideki. Não seria este o único eixo em torno do qual movimentos transnacionais se mobilizariam no contexto da Guerra Fria. A ideia de contrariar o movimento comunista internacional com um movimento de sentido contrário, mas também multinacional, datava já de finais do século XIX e adensara-se após a revolução russa de 1917. Com o início do conflito bipolar, projectos deste género multiplicaram-se. Um deles foi o Comité Europeu para a Paz e Liberdade, com filiais em França, na Alemanha, em Itália ou na Turquia. Investidos em criar uma “NATO espiritual”, os diversos grupos locais coordenaram acções conjuntas na batalha política e ideológica global. Tinham, seguramente, origens diversas. Enquanto o Paix et Liberté francês fora patrocinado pelo afamado René Pleven e contava com antigos membros da resistência e colaboradores do círculo do ex-comunista, então anticomunista, Boris Souvarine, o seu congénere alemão tinha na sua liderança o ex-braço direito de Joseph Goebbels e nas suas fileiras vários antigos nazis. Envolveram-se em acções concertadas que visavam desacreditar o comunismo internacional. Publicaram cartazes icónicos como o da “Pomba que faz boom”, atacando os movimentos pela paz mais ou menos ligados à União Soviética. Mas as diferenças faziam-se sentir. Num cartaz francês em que se convidava os observadores a visitar a União Soviética, “país da liberdade”, sugeria-se que aproveitassem os “campos de férias. . . soviéticos”. A ideia foi repetida na Alemanha, mas sem a imagética mais explícita francesa, que remetia para os campos de concentração nazi. Na Ásia, face à vitória da revolução chinesa, aos conflitos na Coreia e Indochina, à “insurgência” na Malásia, foi criada a Liga Anticomunista dos Povos da Ásia (1955), patrocinada por Chiang Kai-Shek e Sygman Ree. Seria esta a principal impulsionadora da criação da Liga Anticomunista Mundial (1966). Mais conhecida seria a Confederación Anticomunista Latinoamericana (1972). Ligada aos esquadrões da morte que começavam então a ganhar destaque no continente e a vários serviços militares e de intelligence, a confederação acabaria por se envolver em várias acções bem mais enérgicas. A operação levada a cabo por agentes da missão Condor que levaria ao assassinato de Orlando Letelier, antigo ministro de Salvador Allende, em 1976, nos EUA, contou com o esforço intermediário da confederação. Investida em derrotar os movimentos da Teologia da Libertação e inclusive o Concílio Vaticano II, e o Papa Paulo VI, por transigir com forças heréticas, a confederação, pelo menos através da sua delegação na Bolívia, deu instruções para colaborar com as instituições militares na denúncia de actividades suspeitas, especialmente de padres estrangeiros, num contexto marcado por vários homicídios desta natureza na América Latina e Central. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Servem estes exemplos para sublinhar um aspecto que continua a ser desvalorizado nas narrativas histórica sobre o século XX: se este é o século da afirmação do Estado-nação enquanto instância modelar de organização sócio-política, corresponde também à afirmação de múltiplas modalidades de internacionalismo. São as ideologias gémeas do século, e especialmente do liberalismo, como afirma Glenda Sluga em Internationalism in the Age of Nationalism. A história da coexistência, e por vezes competição, entre as duas mundivisões não é excludente, muito menos simples. Como procuramos mostrar neste texto, o internacionalismo assumiu múltiplas faces, nem sempre quis questionar o primado do Estado-nação e não poucas vezes representou a forma mais palatável de promover interesses egoístas. Também foi uma causa pela qual muitos dedicaram o melhor dos seus esforços, pela qual muitos sonharam para lá dos limites do imaginável. Como historiadores, a nossa função é não a ignorar. A sociedade em geral melhor faz se não se deixar aprisionar em antigos tropos sobre perversas e gigantescas conspirações que se traduzem, no quotidiano, num expediente para o destrato de cidadãos diferentes, frequentemente os mais frágeis e desprotegidos.
REFERÊNCIAS:
Quando o mundo veio a Portugal ver como se faz uma revolução
40 anos depois do 25 de Abril de 74, a revolução portuguesa tem o seu comeback. Livros, filmes, conferências. . . mas este regresso parece ter menos a ver com os rituais de uma efeméride do que sinalizar uma crise de identidade. Como se voltássemos a olhar para ela com a intensidade de uma primeira vez. Não foi preciso ter estado lá. Em Abril de 1974, dois jornalistas da rádio suíça francesa são enviados a Portugal para fazer uma reportagem “positiva” sobre a ajuda helvética a um país “subdesenvolvido, mas simpático”. Os jornalistas entediam-se na província portuguesa quando, subitamente, a revolução dos cravos f... (etc.)

Quando o mundo veio a Portugal ver como se faz uma revolução
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-02-06 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20160206113854/http://ipsilon.publico.pt/cinema/texto.aspx?id=333490
TEXTO: 40 anos depois do 25 de Abril de 74, a revolução portuguesa tem o seu comeback. Livros, filmes, conferências. . . mas este regresso parece ter menos a ver com os rituais de uma efeméride do que sinalizar uma crise de identidade. Como se voltássemos a olhar para ela com a intensidade de uma primeira vez. Não foi preciso ter estado lá. Em Abril de 1974, dois jornalistas da rádio suíça francesa são enviados a Portugal para fazer uma reportagem “positiva” sobre a ajuda helvética a um país “subdesenvolvido, mas simpático”. Os jornalistas entediam-se na província portuguesa quando, subitamente, a revolução dos cravos faz acelerar a sua carrinha Volkswagen em direcção a Lisboa. E, numa noite, produzem a reportagem das suas vidas. Um filme conta como foi, com todos os adereços de época, de calças à boca de sino para cima: As Ondas de Abril, do suíço Lionel Baier, é exibido esta sexta-feira às 19h no Festival IndieLisboa, e estreia em sala a 8 de Maio. É uma farsa – o realizador achou que ninguém levaria a mal se fizesse uma comédia sobre “uma revolução onde tudo correu bem” – mas só porque a história não é verdadeira, não quer dizer que não tenha acontecido. Numa cena, o repórter de guerra Joseph Cauvin é aclamado pelo povo enquanto discursa, apesar de ninguém entender o que diz. Esse momento, conta Lionel Baier ao Ípsilon, emocionou um português que, ao ver o filme na Suíça, se lembrou de ter tido uma experiência semelhante durante a revolução. “À época muitos sindicalistas de toda a Europa vieram a Portugal e ele lembrava-se de uma discussão uma noite num café de Lisboa onde um sindicalista tomou da palavra e falou em francês durante duas horas, sem que ninguém percebesse nada. Esse senhor disse-me: ‘Mas eu estava tão feliz com o direito de reunir e de falar livremente e, mais do que isso, com o facto de os franceses falarem de nós. Pela primeira vez em muito tempo, os franceses, os alemães, e outros falavam de nós. Tivemos a impressão de que nos estávamos a juntar ao resto do mundo, finalmente. ”Não houve, de facto, muitos momentos assim, em que o resto do mundo convergiu para Portugal. Literalmente: “De repente, toda a gente olhou para Portugal como se isto fosse uma coisa do outro mundo”, diz José Rebelo, que foi correspondente do Le Monde em Lisboa a partir de Janeiro de 1975. “Eu andei a passear por Lisboa com o Sartre e a Simone de Beauvoir. Vinha cá toda a gente. Parece que tudo quanto era importante se passava ali entre o Rossio e os Restauradores. ”Depois da revoluçãoAgora que se completam 40 anos sobre a revolução portuguesa, esse olhar exterior, estrangeiro, está de novo a ser evocado, o que parece ter menos a ver com os deveres de uma efeméride (afinal, este não é o primeiro aniversário redondo de Abril) do que sinalizar uma qualquer crise de identidade. Repórteres e enviados especiais que cobriram a revolução para a imprensa estrangeira foram convidados a participar de muitas das conferências e festividades que estão a ter lugar; um novo livro de Joaquim Vieira e Reto Monico, Nas Bocas do Mundo: O 25 de Abril e o PREC na Imprensa Internacional (ed. Tinta da China), reconstitui a forma como os jornais estrangeiros acompanharam o processo revolucionário português através dos seus textos de opinião e comentário; Lídia Jorge acaba de publicar um novo romance, Os Memoráveis, que tem no centro a realização de uma reportagem televisiva sobre a revolução portuguesa para a estação americana CBS (sobre essa questão de o olhar estrangeiro ser o catalisador deste regresso, a escritora explicou recentemente no Ípsilon que “no exterior avalia-se a revolução com mais frequência como uma coisa positiva”, seja porque os portugueses são “profundamente autopunitivos”, seja porque no exterior “talvez não se saiba do que veio a seguir”. )O que levou Lionel Baier, um suíço de 38 anos, a fazer um filme sobre a revolução portuguesa, quando a Suíça não viveu nenhuma guerra nem grande crise no século XX?“Quando era pequeno e ia à escola, no início dos anos 80, havia muitas crianças que eram filhas de imigrantes portugueses, eram quase 30% da minha turma. Quando havia festas de aniversário eu ia a casa delas e lembro-me de ver fotografias e de ouvir falar da revolução dos cravos. Quando somos pequenos e suíços temos a impressão que a democracia é uma coisa normal. As primeiras pessoas que me fizeram ter consciência do preço da democracia foram os portugueses. Dei-me conta de que tinham sido privados dela durante muito tempo e que a democracia era qualquer coisa frágil, que se podia perder”, explica. “Os portugueses têm qualquer coisa em comum com os suíços. São pessoas muito trabalhadoras, austeras, não muito alegres. Ao mesmo tempo, tiveram a força de fazer uma revolução, apesar de isso não fazer parte da sua natureza. Os franceses fazem revoluções o tempo todo, é uma coisa normal. Quando os portugueses se revoltam, é preciso um esforço suplementar. Creio que deram uma verdadeira lição de democracia aos suíços. Creio que é frequentemente o caso na Suíça: as vagas de imigrantes, quer sejam espanhóis, italianos ou portugueses, trazem com elas um certo peso do mundo que os suíços não conhecem. ”Existe nas personagens do filme uma certa condescendência em relação ao Portugal pré-revolucionário. Cauvin, o veterano, chega a relativizar uma ditadura patriarcal e arcaica, dizendo que as pessoas não parecem ter razões de queixa. Os jornalistas de As Ondas de Abril apercebem-se muito rapidamente de que a reportagem que lhes foi encomendada em Portugal não tem interesse, mas parecem demasiado ingénuos ou ter pouco brio profissional: apesar de se encontrarem numa das últimas ditaduras da Europa ocidental, nunca lhes ocorre fazer uma reportagem sobre isso. Ao mesmo tempo, há nesse retrato alguma verdade: de forma geral, a imprensa estrangeira ignorou Portugal durante a ditadura. O país não existia antes da revolução. “Tenho a impressão que os jornalistas estrangeiros não tinham consciência de que era uma ditadura tão esmagadora quanto era, na verdade”, sugere Lionel Baier. Werner Herzog, um jornalista suíço (nenhuma relação com o cineasta alemão homónimo) que cobriu a revolução para jornais suíços e alemães, admite: “Quase ninguém escrevia sobre Portugal. Tínhamos dado como perdida a possibilidade de alcançar a democracia em Portugal. Esperava-se mais de Espanha. Portugal foi uma surpresa. Parecia que eram umas ditaduras que duravam, duravam, duravam. Espanha e Portugal estavam atrás dos Pirenéus. Essas montanhas pareciam ter dez mil metros de altura porque aí começava outro mundo, que não tinha nada a ver com o resto da Europa ocidental. 25 de Abril foi o dia em que Portugal foi colocado no mapa da Europa. ” Falta dizer que tudo isto é dito originalmente em português – outro resultado, dizemos nós, do 25 de Abril. “Se não tivesse havido o 25 de Abril, eu não teria vindo a Portugal”, diz o catalão Ramón Font, 62 anos, que veio ver a revolução portuguesa quando no seu país a ditadura de Franco perdurava. “Na minha geração, quando se fala de Portugal, há sempre alguém que pergunta: ‘E tu, em que dia chegaste a Portugal?’ Há uma competição para ver quem chegou antes. Porque, mais tarde ou mais cedo, nos primeiros dois anos viemos todos. ”Para um imenso número de jornalistas internacionais, o testemunho e a cobertura da revolução portuguesa correspondeu a um trampolim profissional: uma escola de aprendizagem ou um prenúncio da carreira futura. Muitos deles prosseguiram o seu trabalho noutras zonas do globo, em particular África, ou perseguiram outras revoluções (no Irão, no mundo árabe). As suas biografias mencionam quase sempre a passagem pela revolução portuguesa, como um factor de orgulho. As suas histórias davam um filme. Há uma em particular que Dominique Pouchin, ex-repórter do Le Monde, contou vezes sem conta em cursos de jornalismo onde lhe pediam que partilhasse as suas experiências. Pouchin – que participa esta sexta-feira numa sessão no Museu do Oriente com Mário Soares e o ex-Presidente brasileiro Lula da Silva sobre “o 25 de Abril visto de fora” – costuma apresentá-la como “a história do scoop falhado”. Tinha terminado o seu estágio no Le Monde há pouco tempo quando, em Março de 1974, nas vésperas do levantamento militar falhado das Caldas da Rainha, o seu editor lhe perguntou se tinha medo de ir a Portugal. “Medo não, mas para fazer o quê?”, perguntou o jovem jornalista. A pasta sobre Portugal que existia nos arquivos do jornal era frugal. Havia sinais de descontentamento no interior do exército português – o alarme tinha soado duas ou três vezes em pouco tempo, explicaram-lhe. Não era forçoso que escrevesse alguma coisa, mas disseram-lhe para manter os olhos e os ouvidos abertos. Pouco depois, Pouchin deu consigo na parte de trás de uma mota, às voltas por Lisboa, sem saber onde estava. Tinha pedido ajuda a colegas portugueses, do jornal de oposição República. “Eu gostava de escrever sobre isto, mas se existe realmente um movimento de capitães preciso de falar com um deles. ” O encontro produziu-se na sala mais recôndita de um restaurante do Bairro Alto – que, afinal, não ficava longe da sede do República, a mota limitara-se a andar às voltas para despistar suspeitas –, onde Pouchin se viu sentado diante de um militar de óculos escuros que lhe falou durante mais de duas horas. “Esse senhor fala-me da sua admiração por Amílcar Cabral, da longa marcha chinesa. . . Fico completamente aturdido. ” O militar não correspondia às expectativas. “Tenho a impressão de estar perante um perito em acções militares, mas esquerdista”, ri-se hoje Dominique Pouchin, ao contar o episódio. O jornalista escreve um artigo curto, no qual cita vagamente o militar em questão, identificado como “Comandante R”. Após o golpe das Caldas de 16 de Março, tido como um ensaio para o 25 de Abril, regressa a Paris. Mas a revolução chama-o, pouco depois, de volta a Lisboa. Em de Julho de 1974, está no seu quarto no Hotel Mundial a folhear os jornais da manhã quando repara na fotografia de primeira página do Diário de Notícias. Era um retrato do militar que tinha encontrado em Março e que, percebia agora, veio a ter um papel crucial no movimento das forças armadas. “Dou-me conta de que o homem com tinha falado em Março, era o Major Melo Antunes. Ou seja, tinha encontrado Melo Antunes e não fiz nada, ou quase nada. ”Entre Março de 1974 e Janeiro de 1976, Pouchin passou mais tempo em Lisboa do que em Paris. “Eu ia e vinha, dependendo da evolução dos acontecimentos durante o PREC – a palavra mais horrível que já ouvi. Como se pode baptizar uma revolução com um nome tão horrível? Sempre que havia um sobressalto, eu vinha. ” Ao todo, foram 17 viagens a Lisboa, 40 blocos de notas. José Rebelo, que hoje é investigador e professor na área de sociologia da comunicação no ISCTE, nota que os jornalistas estrangeiros estavam distribuídos pelos hotéis de Lisboa de acordo com a nacionalidade. “Os americanos estavam quase todos no Sheraton. Os ingleses no Ritz. ” Os franceses ocupavam o último andar do Hotel Mundial. Jornalistas de diferentes jornais, da esquerda e da direita. “Constituíamos uma verdadeira redacção. Jantávamos sempre juntos no restaurante panorâmico do hotel. Não havia concorrência. Havia tanta coisa que se passava todos os dias que cada um de nós era incapaz de cobrir tudo. ”Um laboratório políticoO jornalista americano Steve Broening, então correspondente da Associated Press em Lisboa, é citado no livro de Joaquim Vieira e Reto Monico, dizendo que à excepção do Vietname, “nenhum outro acontecimento estrangeiro motivara tanta e tão longa atenção” por parte da agência quanto a revolução portuguesa. O que é que atrai tanto a atenção da imprensa internacional?“Estamos a falar de um período em que o cenário de guerra fria ainda existia, e os golpes de estado na altura eram de direita ou de extrema-direita, e eram feitos por generais e coronéis, sempre com tendências autoritárias e totalitárias, para endireitar um regime que eles achavam que estava a ser desviado por defeito dos políticos que estavam à frente dele. E este é o contrário”, contextualiza Joaquim Vieira. “Ainda para mais ocorrendo na Europa. Se fosse num país do Terceiro Mundo se calhar era diferente. Mas na Europa o que estava a acontecer era inédito desse ponto de vista. Tinha havido um golpe de estado na Grécia mas tinha sido feito por coronéis. ”Além disso, a mudança de regime não se produziu apenas em Portugal, mas em todas as extensões territoriais no ultramar. O que se estava a passar era maior do que um rectângulo no extremo ocidental da Europa. “O fim da guerra colonial e as independências africanas iam causar uma alteração profunda do ponto de vista geoestratégico. Muita gente começou a ver, a prazo, que a União Soviética podia ter influência nesse processo”, diz Joaquim Vieira. Que continua: “Depois do Maio de 68 em França, que durou só algumas semanas e não teve um grande resultado político, havia um processo revolucionário em Portugal que se prolongava com coisas concretas: ocupações de fábricas, de terras e tudo isso. A opinião pública estrangeira começou a estar muito atenta à evolução dos acontecimentos em Portugal, para ver o que é que isto ia dar. Muitos estrangeiros, herdeiros do Maio de 68 e outros, vinham aqui para Portugal. Havia uma ligação muito directa entre Portugal e as correntes estrangeiras mais de esquerda e extrema-esquerda. ”Inicialmente, pelo menos, a revolução é vista com simpatia pela imprensa internacional e saudada como positiva. “O que impressionou muito naquela fase foi que não houvesse violência”, diz Ramon Font, que se fixou como correspondente em Lisboa a partir de 1976, logo a seguir à aprovação da Constituição. “Não foi partido vidro nenhum. Há uma fotografia extraordinária que está no átrio da Universidade de Lisboa, onde se vê uma chaimite, dessas que estavam no Chiado, cheia de povo, sobrelotada, e, do lado direito, um senhor que devia ser funcionário de alguma repartição pública, vestido de fato e gravata, agarrando a chaimite como se fosse o seu guia. Como se dissesse: ‘Siga-me, siga-me que vou indicar-lhe o sítio. ’ Tudo isso configurava um universo assombroso para quem, como nós, vinha de fora. E estávamos fascinados com os militares, que eram a antítese dos nossos militares [espanhóis]. De repente, aparecem à nossa frente tipos com os quais se podia tomar um copo num bar de Lisboa. ”Numa visita a de Caxias, em Julho de 1974, Ramon Font fica impressionado com a forma como os novos prisioneiros – ex-agentes da polícia política do Estado Novo – são tratados. “Almoçámos no refeitório da prisão e nas mesas ao lado das nossas estavam os pides. Que nos diziam: ‘Estamos aqui como passarinhos, mas não vamos estar aqui muito tempo. ’ Efectivamente, saíram pouco tempo depois. Isso causou-me um impacto brutal de uma sociedade diferente. Se os vencedores são capazes de tratar os vencidos com esta generosidade. . . Essa foi a imagem mais forte que levei de Lisboa. Lembro-me que no regresso a Espanha passamos pela Andaluzia e fomos ter com uns militares espanhóis, nossos conhecidos, a quem contámos esse episódio e eles não nos deram crédito. Pensavam que, à hora a que contávamos isto, depois do jantar, era consequência do que tínhamos bebido. Não era possível. ”Os estrangeiros não tinham necessariamente uma visão “turística” da revolução portuguesa. Portugal parecia-lhes menos um caso de exotismo do que um laboratório político que podia trazer respostas às questões que os inquietavam. Ser o imenso PortugalZuenir Ventura, que veio cobrir a revolução para a revista brasileira Visão, chegou a Lisboa logo no dia 26 de Abril de 1974. “Fui o primeiro enviado especial do Brasil a chegar. Encontrei a cidade numa saudável confusão que me lembrou Carnaval, celebração desportiva e comício político. As pessoas, sem qualquer objectivo definido, pulavam, cantavam – e, sobretudo, falavam. Era quase como se tivessem descoberto a própria voz. Fiquei contagiado pela euforia do povo, uma espécie de embriaguez de liberdade. Como se fosse um prenúncio da nossa. ” O Brasil vivia então sob uma ditadura militar, que acabara de completar uma década, em vésperas da revolução portuguesa. “Foi a cobertura mais alegre e surpreendente da minha vida. Porque eu olhava para aquilo pensando no Brasil. Menos em Portugal e mais no Brasil. ” Até então, Portugal tinha sido uma referência no Brasil, mas irónica. “De repente, você queria ‘ser o imenso Portugal’, como na canção Fado tropical, de Chico Buarque. ”Outro brasileiro que veio para Lisboa nesse período, foi o realizador Glauber Rocha. “Ele conseguiu uma câmara emprestada e filmou o 1º de Maio. Filmou como se quisesse se preparar para fazer o mesmo no Brasil. ”A neutralidade não era possível. “Há idades em que é muito difícil resistir a certos cantos de sereia”, diz Ramon Font. “Com 22 anos, era difícil não me deixar arrastar [pela revolução]. Ninguém me pedia neutralidade. E se alguém tivesse pedido, eu teria dito: ‘Desculpe, não consigo. ’ Ainda por cima, o país estava todo à esquerda. [Os de direita] Ou tinham fugido ou todos disfarçavam. ”Talvez espante ouvir dizer que a revolução, aqui, foi “exemplar” (a expressão é de Lionel Baier) quando 1975 em particular representa um período traumático para alguns sectores da sociedade portuguesa (as nacionalizações, as expropriações, a vaga de “retornados” das ex-colónias) e abriu dissidências político-partidárias que perduram até hoje que fazem com que a nossa forma de comemorar o 25 de Abril ainda não esteja normalizada (prova disso é a recente polémica sobre se os capitães de Abril deveriam ou não ter direito a discursar no Parlamento, nota Ramon Font). Talvez espante ouvir dizer que a revolução foi exemplar quando para boa parte da esquerda, ela representou o fim das ilusões revolucionárias dos soixante-huitards (“Usando linguagem teatral: o pano cai em 1975”, diz Dominique Pouchin, ex-trotskista cicatrizado). Talvez espante ouvir dizer que a revolução foi exemplar quando o modelo hoje seguido na Tunísia, um exemplo feliz da Primavera árabe, é a transição espanhola, onde não houve revolução e a mudança de regime foi um pacto negociado por mútuo acordo entre ex-franquistas e a esquerda (“A minha suspeita é que os tunisinos sabem muito mais sobre a transição espanhola e estão, de certa forma, a tentar seguir-lhe o exemplo. E não fazem ideia do que foi o processo português”, disse ao Ípsilon Philippe Schmitter, analista americano que presenciou a revolução portuguesa e escreveu sobre ela, na véspera de partir para a Tunísia. “Amanhã tiro as teimas!”)Talvez espante ouvir dizer que a revolução foi exemplar quando a crise parece confrontar-nos com as escolhas que foram feitas nesse período e com esse legado. Para as gerações que nasceram depois de 1974, talvez este seja o primeiro aniversário em que a revolução é mais do que uma efeméride. “Há uns anos tive a impressão que muitas pessoas nas novas gerações se tinham esquecido do que se passara. Isso surpreendeu-me. Os jovens não sabiam grande coisa porque para eles era algo que pertencia à história”, diz Lionel Baier. Mas em 2012, quando filmou As Ondas de Abril em Portugal, o realizador teve a sensação de que as pessoas começavam a ganhar uma nova consciência. “Grande parte da equipa do filme era portuguesa e eu fazia imensas perguntas. E pareceu-me que era como se falassem pela primeira vez em muito tempo da revolução. As pessoas parecem ter vontade de se lembrar desse espírito. ” Por causa da crise? “Por causa da crise, sim. ”Não por acaso, o filme de Baier termina com imagens actuais, dos graffiti anti-austeridade e anti-troika. “Parecia-me impossível fazer um filme com um tom meramente histórico. Todos os dias havia manifestações na rua, havia dias em que interrompíamos as filmagens para que os técnicos ou os figurantes pudessem ir manifestar-se. O filme devia dizer qualquer coisa sobre o presente. ”
REFERÊNCIAS:
Iluminados pelo fogo
Pedro Costa fez do Museu de Serralves um lugar de reencontro com o cinema, com o mundo dos deserdados e esquecidos e com aqueles que cuja companhia preserva e cultiva: amigos, vivos e mortos. Pedro Costa - Companhia faz o espectador entrar em labirintos, corredores, memoriais, iluminado por vozes e gestos que são os de uma humanidade comum. (...)

Iluminados pelo fogo
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: Pedro Costa fez do Museu de Serralves um lugar de reencontro com o cinema, com o mundo dos deserdados e esquecidos e com aqueles que cuja companhia preserva e cultiva: amigos, vivos e mortos. Pedro Costa - Companhia faz o espectador entrar em labirintos, corredores, memoriais, iluminado por vozes e gestos que são os de uma humanidade comum.
TEXTO: Há onze anos, Pedro Costa concluía uma conversa com uma exortação dirigida ao museu (podemos lê-la no catálogo da exposição Pedro Costa, Rui Chafes: Fora! = Out!). Que este devia ser ousadia e felicidade, e citava os filmes Cézanne e Uma Visita ao Louvre (2004), de Jean-Marie Straub e Danièle Huille e Bando à Parte (1964), de Jean-Luc Godard. Diante do corredor que começa Pedro Costa Companhia, no Museu de Serralves, essa ousadia é solicitada a quem chega, pois, para entrar, tem de correr o risco do escuro, sondar o espaço. Descemos o corredor, o corpo parece imobilizar-se, enquanto, ao fundo, a cena final de Trás-os-Montes, de António Reis e Margarida Cordeiro avança veloz, cresce, agiganta-se ao rimo do silvo e do fumo do comboio. A sensação é de vertigem e reminiscente desse encontro, absolutamente solitário, na sala escura que as imagens iluminam: com o espanto do cinema. Organização: Museu de Arte Contemporânea de Serralves Comissário(s): Nuno Crespo e João RibasEsta é primeira grande experiência de Pedro Costa Companhia, exposição que, dedicada ao cineasta português, pode ser vista como uma colectiva, uma exposição de um grupo, um grupo de amigos. Artistas, pintores, poetas, cineastas, actores e actrizes, uns vivos, outros mortos, representados nas obras. Todos, aqueles que ele escolheu para lhe fazer companhia: Pablo Picasso, Robert Bresson, António Reis, Walker Evans, João Queiroz, John Ford, Jeff Wall, Jacques Tourneur, Maria Capelo, Andy Rector, Jean-Luc Godard, Max Beckmann, Paulo Nozolino, Jacob Riis, Rui Chafes, André Cepeda, Charlie Chaplin, Robert Desnos, Ventura. Quando se fala de amizade, está-se a falar, inevitavelmente, do mundo, do mundo a que o museu deve a sua existência, e que existe fora das paredes brancas. E para Costa esse mundo é o dos deserdados, dos esquecidos, dos homens e das mulheres comuns, daqueles que o progresso calca, imparável, na sua marcha. Antes desse encontro com o comboio na noite de Trás-os-Montes, há um retrato de um homem negro, pintado por Théodore Géricault (1791- 1824). É o mesmo que pudemos ver em Cavalo Dinheiro (2014). A exposição começa assim, numa pintura. Desse retrato, aparecerão outros na parede do corredor, de personagens e actores do mesmo filme, em impressões fotográficas. Ventura, Vitalina, Tito e, talvez, o de Tom Joad, interpretado por Henry Fonda, em As Vinhas da Ira, de John Ford. Entre o retrato pintado por Géricault e estas projecções, quais pinturas rupestres iluminadas pelo fogo, o espectador descobre outra entrada para Pedro Costa Companhia. Num labirinto, feito de corredores, passagens, vultos e imagens, luzes, sombras. Um cenário reminiscente do cinema expressionista alemão do século XX, com os seus ângulos e volumes. Nas paredes deste cenário labiríntico, só há uma acção. A do encontro do espectador primeiro com o cinema que Pedro Costa ama, e num segundo momento com a carta de Robert Desnos a Youki (que o cineasta transfigurará em Juventude em Marcha), o desenho de Pablo Picasso e um trabalho de Andy Rector. Detemo-nos no encontro com o cinema. Em televisores encastrados nas paredes, vêem-se excertos de filmes, que condensam momentos e acções cujos significados não perdem, ainda hoje (e talvez sobretudo hoje), o seu poder de revelação. Entre muitos, três: o encontro do vagabundo de Luzes da Cidade, de Charlie Chaplin, com a mulher que finalmente o pode ver (“Yes, I can see now”, diz ela), o discurso de Josiah Doziah Gray (Joel McCrea), em Stars in My Crown, de Jacques Tourneur que, dirigido ao coração dos outros, impede um assassinato racista ou as palavras lancinantes do pedófilo e assassino Hans Beckert (Peter Lorre), que suplica em M (1931), de Friz Lang, pelo reconhecimento da sua própria humanidade. Na mesma conversa, mencionada no início deste texto, Pedo Costa disse temer a presença dos televisores nos museus. Pois, ei-los, a fazer aparecer esse cinema, como uma forma arcaica e quase perdida de ver e narrar o mundo. Em excertos, fragmentos, memórias de vozes e palavras, gestos e acções que nos assombram. São eles, miniaturizados, reduzidos (como se protegidos pelas paredes do museu, como se não restasse outra coisa que esse exílio, o do arquivo) que rodeia, que protegem a sala de Alto Cutelo, uma instalação que Costa havia mostrado em 2012, no Carpe Diem e na galeria do Palácio Galveias, no âmbito do DocLisboa 2012. No ecrã, grande, alto, Ventura canta as dores da partida e da emigração. Evoca a história do homem que parte, da mulher que fica, dos filhos, da terra que deixou para trás. Noutro ecrã, os vulcões soltam lava e fumo (são imagens de A Ilha do Fogo, de Orlando Ribeiro). Portugal, Cabo Verde, Lisboa, o trabalho, a exploração dos homens pelos homens, a contingência da política e da história iluminam, à volta da qual circulam as histórias do cinema. Entretanto, a escuridão do corredor atenuou-se. O olhar habituou-se à luz e à sombra, e assistimos à primeira “conversa” entre artistas: um conjunto de peças de Rui Chafes e a instalação Filhas do Fogo, de Pedro Costa. Suspensas do tecto, as esculturas, finas e pesadas, desenham um bailado, que parece apontar ao céu, com os rostos, projectados nos ecrãs, das mulheres que ficaram, para trás, com os seus mistérios na Ilha do Fogo. As histórias, as personagens libertam-se da narrativa, no espaço. Este já é outro cinema, mas ainda é a exposição, o trabalho de Pedro Costa. A questão do trabalho, mais exactamente de como representar, filmar, fotografar os outros, respeitando-os, na sua irredutível dignidade, surge na aparição do livro Let Us Now Praise Famous Men (1941) de James Agee e Walker Evans, que documenta e retrata a vida quotidiana de trabalhadores rurais e pobres do Sul dos EUA, durante a Grande Depressão. Numa pequena sala, vemos os retratos de Allie Mae Burroughs e Floyd Burroughs, as casas, os objectos, os alpendres, mas é nas questões que James Agee, crítico e escritor, levanta no prefácio, pressente-se outra afinidade com Pedro Costa que não passa por temas ou conteúdos, mas tem a ver com a atitude em relação ao método de trabalho, à representação do outro, ao destino das imagens, aos princípios que presidiram à sua realização. Agee tem pudor em apelidar de “Arte” o livro e as suas imagens. Não serão estes dilemas familiares ao cineasta? Não é apenas uma sensibilidade comum às coisas que o torna amigo de Evans e Agee, mas também dúvidas, hesitações, questões que enfrentou na companhia dos outros. Uma família que se foi construindo e consumindo ao longo de três décadas e que podemos ver nas séries de fotografias, alusivas às rodagens dos filmes (de Sangue, em 1989 até Vitalina Varela, em 2018). Estão lá os retratados (Inês Medeiros, Canto e Castro, Pedro Hestnes, Vanda Duarte, Zita Duarte, Ventura) como aqueles que retrataram: Martin Schafer; Mariana Viegas, Richard Dumas, Marta Mateus, o próprio Pedro Costa. É desta galeria que descemos ao segundo piso, onde nos aguarda uma clareia banhada pela luz natural. Aqui não se mostram filmes, mas pinturas de paisagens de Thomas Gainsborough, João Queiroz e Maria Capelo, ou antes retratos de paisagens, algumas das quais deixam entrever vestígios da presença humana. É o momento mais desequilibrado da exposição, porque a luz queima o escuro da outra sala, impedindo o espectador de ver Puissance de La Parole, de Jean-Luc Godard. Como se a luz e escuridão, a pintura (na sua impassibilidade) e cinema (na sua ruidosa agitação) tivessem dificuldade em habitar, lado a lado, o mesmo museu. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Passado este desencontro, percorrem-se corredores e becos, passagens, descobrem-se acessos a salas, como a que reúne Paulo Nozolino e Pedro Costa, amigos de muitos anos: de um lado, fotografias, silenciosas, quase sem tempo e sem lugar, do outros, sons e imagens em movimento que reconhecemos do Bairro das Fontainhas. Fotografia e cinema, ambos testemunhos mundanos de sítios e pessoas. Entretanto, adensam-se rumores e ecos do que ainda está para vir e ver. A fragilidade e o sofrimento humanos ganham sentido na fotografia de Josef Koudelka, realizada em 1968 na Checoslováquia, e num desenho do artista expressionista alemão Max Beckmann, intitulado Descida da Cruz, mas são os gritos e a música de uma cena de Give Us This Day, de Edward Dmytryk que despertam a atenção, que assustam, que afligem. Ela torna visível o drama dos homens que construíram os arranha-céus de Nova Iorque, outro Ventura entre tantos Venturas na história da humanidade. Pedro Costa insiste em lembrar que o cinema também esteve ao serviço os homens comuns, quando os libertou, pela ficção, do olvido, quando dramatizou as suas vidas: “Vejam. Não se esqueçam”, segreda. Esta frase ganha uma força mais intensa diante da instalação das fotografias de mulheres, homens, crianças, famílias que Jacob Riis realizou em 1890 no início do século XX, nos bairros mais pobres de Nova Iorque. Numa sala escurecida, cada imagem ocupa uma coluna, pedindo para ser vista individualmente, a uma escala humana. É um memorial coletivo que a fotografia tornou possível e em que cada imagem, ressuscita, por instantes, no encontro que o espectador lhe proporciona, as figuras fotografadas. Memorial que temos de atravessar para ver Sweet Exorcist. E aí voltar a escutar o medo de Ventura, o medo de que será esquecido, de que ninguém o lembrará. E, então damo-nos conta, de que Pedro Costa, na companhia dos seus amigos, vivos e mortos, não só não o esqueceu, como o salvou, se não com felicidade, certamente com a ousadia de quem correu, acompanhado, pelas salas do museu.
REFERÊNCIAS:
Francisco Ribeiro Telles: “Disparei. Fazer a revolução sem dar tiros…”
Francisco Ribeiro Telles é a partir de Janeiro o novo secretário executivo da CPLP. Até lá, embaixador em Roma, acompanha o processo político em Itália. (...)

Francisco Ribeiro Telles: “Disparei. Fazer a revolução sem dar tiros…”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Francisco Ribeiro Telles é a partir de Janeiro o novo secretário executivo da CPLP. Até lá, embaixador em Roma, acompanha o processo político em Itália.
TEXTO: Diz, com ironia, que aprendeu a ser mediador nas rondas nocturnas nos night clubs da então Lourenço Marques, separando comandos de paraquedistas desavindos no desafogo após o mato. Em Timor sob ocupação da Indonésia, esteve numa missão da ONU para preparar uma frustrada visita de deputados portugueses ao território, e manteve encontros à margem do estabelecido. Depois de estar à frente das embaixadas em Cabo Verde, Angola e Brasil, regressou à Europa e não gosta do que vê. Por não saber desenhar não seguiu as pisadas paternas, a arquitectura paisagista. É um óptimo contador de histórias, com sentido de humor e comicidade das situações, quem vai estar no Palácio de Conde de Penafiel à frente da Comunidade de Países de Língua PortuguesaComo é ser filho do pai?Estamos nos jardins da Fundação Gulbenkian que o meu pai concebeu, lembro-me de os visitar durante a construção duas ou três vezes com 12 ou 13 anos. Ainda pensei ser arquitecto paisagista mas percebi que não podia. Para além do meu pai ser muito criativo, vanguardista, é um excelente desenhador, e eu não tinha jeito para o desenho. Seria o filho do arquitecto e ficaria a perder. Qual o papel diferenciador do arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, seu pai, na sua formação?Sempre o vi como um homem de princípios, de uma coerência absoluta na vida. Atravessou várias fases em termos políticos, mas o que mais me marcou foi a coerência do pensamento sem transigir nos valores fundamentais. Ele tinha uma perspectiva de Portugal a que, na altura, muito pouca gente dava atenção, e o tempo veio provar a sua enorme razão na conservação da natureza e ordenamento do território. Talvez se tivesse sido ouvido pouparíamos muitos problemas dos que temos. Viu muito antes o que seriam os problemas da sociedade contemporânea. Portanto, o seu pai foi mais decisivo na sua formação que o curso de História?Muito mais decisivo. Falo por mim e pelos meus irmãos, marcou-nos profundamente. Com ele aprendi muito. Com Salgueiro Maia, no 25 de Abril de 1974, também aprendeu. Como foi?Na Escola Prática de Cavalaria de Santarém, eram cinco ou seis da tarde de 24 de Abril, comentei a um amigo, o Vasco Câmara Pereira, que iríamos ter exercícios nocturnos, porque os carros de combate e jipes estavam a abastecer, mas estava longe de imaginar que naquela altura já o primeiro e o segundo comandantes estavam presos. Fomos acordados às duas da manhã e eu disse ao Vasco que lá íamos para exercícios, quando o capitão Maia nos leu rapidamente o comunicado do Movimento das Forças Armadas e, depois, faz-nos uma prelecção sobre a questão colonial, dizendo que o Movimento a queria resolver, que se estava a tornar insustentável para todos. Para um alferes miliciano isso foi ouro sobre azul. Exactamente (risos). Depois, pediu 150 voluntários para marchar sobre Lisboa, nós tínhamos três meses de tropa, não sabíamos disparar, havia o exemplo do golpe falhado das Caldas da Rainha [16 de Março de 1974], mas viemos. Saímos de Santarém às 3 da manhã a uma velocidade impressionante, uma coluna de veículos a 30 quilómetros por hora, e chegámos ao Terreiro do Paço. Houve uma série de peripécias já conhecidas, o capitão Maia alertara-nos de que o grande problema seriam os M 47 [blindados] de Cavalaria 7, se disparassem, a revolução estava perdida. Acabaram por se render. Depois, fomos em apoteose até ao Largo do Carmo, onde, como muitos outros, disparei, fazer a revolução sem dar tiros… disparei para as paredes do quartel do Carmo. Eu estava instalado numa seguradora frente ao quartel, com telefone à secretária, ia relatando as peripécias revolucionárias ao meu pai, de quando o Maia iria dar ordem de fogo ou não. Saímos do Carmo já com a prisão do Marcello Caetano, subimos a Avenida da Liberdade em delírio, com toda a agente à janela e acabámos no Colégio Militar. Essa noite ainda fizemos escolta à Junta de Salvação Nacional e ao general Spínola na RTP. Depois partimos para Santarém, lembro-me que demorámos seis ou sete horas, quando chegámos ao Cartaxo às 3 da manhã estava a população na rua para nos saudar. Era da Polícia Militar, tinha uma boa classificação de curso, éramos 40 e fiquei entre os primeiros oito, e em princípio não seria mobilizado. Mas há os acontecimentos em Lourenço Marques, sectores da população que queriam uma independência à Rodésia e alguns militares que se associaram invadiram o Rádio Clube. Eu que estava calmamente em Lisboa, em Lanceiros 2, na Ajuda, fui mobilizado à pressa para Moçambique onde cheguei em Novembro e fiquei até 24 horas antes da independência [25 de Junho de 1975]. Tinha um dia de serviço e três de folga, de maneira que só ia duas vezes por semana ao quartel e, quando ia, fazia rondas na rua Major Araújo, a dos night clubs onde os militares vindos do mato se iam desafogar. Um dos grandes problemas que tinha era separar os paraquedistas dos comandos que inevitavelmente se envolviam à pancada. Daí ter ganho dotes de negociador (risos). No total, tive uma tropa de 15 ou 16 meses muito intensos. O que ficou dessa experiência?Uma enorme admiração pelo capitão Salgueiro Maia. Penso que quando o capitão Maia pede voluntários para Lisboa e ter sido ele a pedir levou muita gente a avançar. Quantos vieram?Entre 150 a 200, quase todos deram um passo em frente. Lembro-me que, duas semanas antes, tivemos uma semana de campo e acabámos à volta da fogueira a cantar Zeca Afonso. Eu comentava que era uma tropa esquisita, que algo se estava a passar. O que me marcou foram os meses que passei com o capitão Salgueiro Maia. A propósito da capacidade de negociador nas rondas de Lourenço Marques. A diplomacia é instrumento do multilateralismo, como é que um diplomata avalia a subalternização da ONU?Muita coisa está a mudar na diplomacia. Comecei por um posto multilateral, as Nações Unidas em 1987, aprendi as vantagens da diplomacia multilateral, da concertação entre Estados. Vejo que muito dos grandes avanços das negociações internacionais, sempre em fóruns multilaterais, se estão a perder. Não sei o que vai acontecer, mas existe um desencanto em relação ao multilateralismo. Há dias deparava com uma carta do eng. Guterres aos países da ONU sobre as enormes dificuldades económicas da organização. Talvez seja pela influência dos tempos que se vivem nos Estados Unidos, mas o multilateralismo está a perder a relevância, quando até hoje todos os Presidentes norte-americanos acreditaram no multilateralismo. Escreveu sobre a necessidade de reforma do Conselho de Segurança da ONU, uma reforma que está no tinteiro. Ficou um sabor amargo?Deixou um sabor amargo, porque temos uma composição do Conselho de Segurança obsoleta que resulta dos vencedores da Segunda Guerra Mundial. O mundo mudou tanto que a legitimidade dos membros permanentes do Conselho de Segurança pode ser posta em causa porque as estruturas de poder mudaram a nível global. De forma que havia de adaptar o Conselho de Segurança, escrevi sobre uma maior presença de membros não permanentes e de não mexer nos cinco permanentes. É uma questão difícil porque os permanentes não abdicam. Lembro-me que uma das coisas que me deixou perplexo foi quando pedíamos aos franceses e ingleses para nos relatarem o que se passava no circuito fechado do Conselho de Segurança, e eles privilegiavam a condição de membros permanentes em detrimento da de membros da União Europeia, o que é sintomático. A diplomacia implica códigos definidos, atitudes previsíveis e guiões compreensíveis. O apogeu do populismo baralha estes dados?Pode baralhar. O que refere como previsibilidade sempre aconteceu, mas esta é uma questão muito mais vasta. Tem a ver, e sinto isso em Itália, com o descontentamento dos italianos e com a perda do poder de compra. Tem a ver com o que significou para os italianos a entrada no euro, com o desemprego, a emigração que não é muito significativa mas que determinados partidos e movimentos aproveitam. A Europa foi um projecto de sucesso no século XX, agora há que adaptar-se ao século XXI. Após 16 anos no hemisfério sul, em Cabo Verde, Angola e Brasil, ao chegar à Europa não gosto do que vejo. A diplomacia está em vias de extinção?De maneira nenhuma. Já muita gente apostou na morte da diplomacia mas, juntamente com a outra, é das mais velhas profissões do mundo. Foi consultor de Mário Soares, trabalhou com o ministro dos Negócios Estrangeiros Jaime Gama e é embaixador. Como chefe de representação teve de se conter mais?Trabalhei três vezes com Mário Soares enquanto primeiro-ministro e duas como Presidente da República, no início e no final da sua Presidência. Com Jaime Gama fui adjunto e chefe de gabinete. Tive a sorte de trabalhar com dois homens excepcionais, muito diferentes mas com enorme sentido de Estado, enorme dimensão humana, com quem aprendi bastante. Tinha um trabalho de gabinete, na chefia de uma missão diplomática é diferente, está-se mais exposto, é-se mais escrutinado, sobretudo nos países onde estive. Pode-se ir para um país da Europa frio e cinzento em que ninguém dá por ti, em que se é uma segunda linha, mas estar em Cabo Verde, Angola ou no Brasil como embaixador de Portugal, tem um escrutínio e visibilidade diferentes. Há que medir muito bem as palavras, o que se faz, com quem nos damos, com quem almoçamos, com quem jantamos. É mais trabalho diplomático?Sim. Lembro-me que após quatro anos em Cabo Verde havia a possibilidade de ir para a Europa, mas não me interessava. Possivelmente ia ser uma segunda linha, estava mal habituado porque em Cabo Verde era uma primeiríssima linha, mas havia também a possibilidade de ir para Buenos Aires ou Luanda. O ministro da altura, professor Freitas do Amaral, tinha-me dito da sua vontade de me ver em Luanda mas se eu quisesse ir para Buenos Aires não havia problema. Lembro-me de ter falado com a minha mulher, Maria João, e de ela me ter dito que se eu queria um pouco de festa, salero e algum trabalho ia para Buenos Aires, mas se queria um posto difícil, exigente o destino era Luanda. A diplomacia é um pouco isto. É de uma fornada de diplomatas para quem a questão de Timor-Leste não estava arrumada. Onde estava e como celebrou a independência?Timor marcou-me muito, foi o meu dossiê quando cheguei em 1987 às Nações Unidas, onde tínhamos vindo a perder apoios, já ninguém queria discutir Timor, era um assunto arrumado. E, quando discutiam, era sobretudo no plano dos Direitos Humanos, nunca mencionando a autodeterminação, embora todas as organizações das Nações Unidas falassem da autodeterminação. Aliás, a resolução 37/30, que pede à ONU negociações com todas as partes, foi aprovada por apenas quatro votos. Exactamente, e na altura o embaixador Futscher Pereira percebeu que mais um ano e perderíamos. Quando cheguei à ONU, tirando os movimentos de libertação que por lá apareciam, o Ramos Horta, o Mari Alkatiri, o José Luís Guterres, pouca gente falava de Timor. Tínhamos alguns apoios, eram sobretudo países africanos de língua oficial portuguesa, no seio da União Europeia muito poucos, talvez os gregos e os espanhóis tivessem alguma apetência para nos apoiar, mas diplomatas europeus chegaram-me a dizer “Francisco, esquece isso, não vale a pena, do que se trata é de sermos vigilantes em relação aos Direitos Humanos”. E nós estávamos, de certa forma, nessa linha. Lembro-me que quando fui em 1991 preparar uma visita de deputados portugueses a Timor, tínhamos chegado a acordo com os indonésios de que a missão era sob a égide da ONU, que envolveria dois diplomatas portugueses, um da missão de Nova Iorque, eu, outro, o assessor diplomático do presidente da Assembleia da República. A Indonésia teria também dois diplomatas e os restantes seriam chefiados por um representante do secretário-geral. Passei cinco dias em Timor-Leste, dois em Díli e três praticamente ao relento nas montanhas. A visita marcou-me imenso. O que nos contavam ser a situação em Timor, pois só nos podíamos basear nos relatórios e informações que nos davam os nossos amigos, não correspondia de maneira nenhuma à realidade, a situação era muito mais tensa. E os timorenses não estavam dispostos a ficarem indefinidamente sob o jugo indonésio. Estava no quarto do hotel, recebia chamadas às duas, três e quatro da manhã que diziam “independência ou morte, viva Timor-Leste”. Quando regressei, chamei a atenção de uma situação diferente da que nos transmitiam. Também escrevi que a visita dos deputados não ia ser um passeio, porque tinha a informação de que se estava a preparar uma grande manifestação para a sua chegada, que havia bandeiras da Fretilin enterradas nos quintais, o que os indonésios desconheciam. Foi em conversas com o bispo Ximenes Belo e em encontros clandestinos com resistentes, à margem da missão que me apercebi do que se preparava. Quando a delegação portuguesa chegasse a Timor, haveria manifestações de rua e a visita poderia não durar cinco dias, poderia acabar ali. A fase final das negociações não surtiu efeito e não houve visita. O pretexto foi que queríamos que uma jornalista muito conhecida, a Jill Jolliffe, fizesse parte da delegação, os indonésios opuseram-se e cancelámos a visita. Há um desencanto dos timorenses e quando chega o relator especial da ONU para os Direitos Humanos, cuja visita tínhamos acordado com os indonésios em Genebra, o que era suposto acontecer para os deputados aconteceu para ele e dá-se o massacre de Santa Cruz. Quando cheguei a Nova Iorque vindo de Díli disse a dois jornalistas americanos com vistos para Timor para a visita dos deputados para não cancelarem a ida. “Vocês vão fazer a reportagem das vossas vidas, porque o que se passa em Timor é escamoteado e escondido”. São eles que filmam o massacre e, no dia em que as imagens aparecem no prime-time da CNN, pensei: está ganho. Há um ponto de viragem, aparecer no prime-time da CNN implica a Casa Branca tomar posição e ninguém acreditava que uma pequena população ocupada por um gigante como a Indonésia, com aliados poderosos na região, caso da Austrália, pudesse ser independente. Foi uma página brilhante da nossa diplomacia, uma página brilhantíssima dos timorenses que resistiram. Quando já estava na embaixada de Madrid como ministro conselheiro, recebi uma carta de Ramos Horta para assistir à cerimónia da independência mas, infelizmente, não pude ir. Esteve em vários destinos, qual foi o maior desafio como embaixador?À sua maneira, cada um foram postos fascinantes, falo de Cabo Verde, Angola e do Brasil onde se tem uma enorme autonomia de actuação, onde o que se diz conta, se é respeitado, se é uma voz de primeiríssima linha. Cabo Verde foi uma experiência muito interessante, num país pobre, um arquipélago no meio do Atlântico praticamente sem recursos, com uma gestão impressionante e pessoas muito preparadas. Angola foi um desafio enorme. Tinha acabado de haver a paz, o país fora destruído pela guerra, os angolanos tinham perdido duas gerações. Fui com a atitude de observar, escutar e tirar conclusões. Uma das coisas que notei ao longo dos cinco anos que lá estive é que qualquer português tem uma opinião formada e definitiva do que deve ser a política do Estado português em relação a Angola. Diplomatas de bancada, portanto?Diplomatas de bancada, o que não se passa em relação a outro país. Os próprios partidos políticos portugueses tomaram partido por movimentos angolanos, o que também não aconteceu em mais lado nenhum. De maneira que as relações com Angola são sempre muito emocionais, muito intensas e muito susceptíveis porque damos muita importância ao que dizemos um do outro. Há que gerir isso com alguma prudência e sabedoria. Lembro-me que muitos portugueses que vinham falar comigo já tinham lido todos os últimos estudos sobre Angola, as análises e estatísticas, já sabiam perfeitamente o que iam encontrar. O problema era quando chocavam com a realidade e ficavam baralhados. Foi um posto fascinante, duro e difícil, mas que me deu muito prazer pessoal e profissional. E o Brasil é o Brasil. Cada diplomata devia fazer um estágio no Brasil. Aprendi muito o que é ser português em Cabo Verde, Angola e no Brasil. No Brasil há aquela dimensão enorme de um país em que se fala português desde o Rio Grande do Sul ao Amazonas, há aspectos positivos e negativos. Na minha despedida falava com um general brasileiro que me dizia “embaixador, nós temos agora um estudo muito sofisticado sobre a segurança e as vulnerabilidades do Brasil em relação à ameaça externa e você sabe que os pontos mais sensíveis, mais vulneráveis, foram onde os portugueses há quatro séculos construíram os fortes?”. Temos com o Brasil uma relação muito forte, nunca me senti estrangeiro, há uma cumplicidade natural. Em Itália estou há ano e meio, é o regresso à Europa, apanhei a mudança de um governo de centro-esquerda para uma coisa que ninguém sabe muito bem o que é, mas que existe, que faz o seu caminho, que transmite as suas mensagens e que neste momento tem um apoio de 60% dos italianos. A Itália sempre funcionou como um laboratório político para a Europa e volta a funcionar. Destes destinos, qual foi a maior surpresa?Não posso dizer que tenha ficado surpreendido com os meus destinos, mas talvez o país que me tenha impressionado mais foi Angola. Apanhei o boom angolano, o regresso e a chegada das empresas portuguesas, havia uma espécie de eldorado, o que chamava de efeito manada do empresariado português – ia um e todos atrás, não se sabe muito bem para fazer o quê. Angola foi de certa forma uma revelação porque é um país próximo de nós, onde as atitudes e os costumes são muito próximos dos portugueses, da forma de falar, de vestir, de vibrar com as situações, é um país onde deixámos, para o bem e para o mal, uma grande influência. E a maior decepção?Não tive decepções, talvez tenha ficado nesta última fase decepcionado com o que se passa no Brasil. O Brasil sempre teve um jeito natural para resolver os seus conflitos, o tal jeitinho brasileiro. Hoje vejo uma sociedade dividida, crispada, tensa, famílias divididas e isso é muito mau. Na base está o problema de sempre, o sistema político que tem de ser refundado de alto abaixo. Oxalá o Brasil tenha condições para o fazer. É verdade que a diplomacia portuguesa passou do croquete à economia?Não, não é verdade. Sempre fiz, e todos os meus colegas também, diplomacia económica. Essa história da diplomacia do croquete é uma caricatura, uma das coisas que mais nos custa, aos meus colegas estrangeiros e nacionais, é ir a uma recepção. Fui a tantas, faço-o por dever, por respeito ao país que me convida. Em Brasília, onde somos 140 embaixadas, comentava que como todos os países tinham o seu dia nacional, nós, embaixadores, todos os dias nos víamos. Em Roma, vou às recepções que considero estritamente indispensáveis, e a representação de Portugal é assegurada pelo número dois ou o número três. Nunca fiz a diplomacia do croquete, fiz sempre uma diplomacia onde a componente política foi muito importante, foi muito importante em Angola e no Brasil. A componente económica também, está a dominar tudo, mas a componente política é essencial a qualquer trabalho diplomático. Temos a ideia que a diplomacia portuguesa é hoje mais eficiente. Tem a ver com o perfil dos novos diplomatas?Talvez, tem a ver com outra preparação. Se compararmos com quem ia para a carreira diplomática há 30 anos quem hoje vai é uma geração mais nova, muito mais bem preparada, mais focalizada nas questões importantes. Há muito mais mulheres, o elemento feminino foi um elemento transformador fantástico da carreira diplomática. Ganhou o prémio Francisco Melo Torres para melhor diplomata económico quando era embaixador no Brasil. Investiu a bolsa de 25 mil euros na compra de um carro eléctrico do CEIIA [Centro de Excelência para a Inovação da Indústria Automóvel] como veículo oficial da embaixada. Foi diplomacia económica no terreno?O carro é o primeiro veículo eléctrico da embaixada portuguesa no Brasil graças ao patrocínio do CEIIA. Na altura, o CEIIA estava-se a instalar no Brasil, tinha um projecto na Foz do Iguaçu que visitei, e começavam a ter projectos importantes na área da mobilidade. Quando ganhei o prémio, e querendo dar uma imagem de modernidade de Portugal, estabeleci uma parceria com o CEIIA para o carro eléctrico. Que lá está, é utilizado todos os dias, tem o escudo da embaixada de Portugal e uma referência ao CEIIA. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ganhei a primeira edição do prémio – não dou muita importância a isso – talvez pelo trabalho com as empresas portuguesas e porque tinha dossiês sensíveis, como o dos vinhos e do azeite. Mais de metade das nossas exportações para o Brasil é de azeite e os brasileiros queriam que ele fosse certificado no Brasil e não na origem, o que acabaria com as nossas exportações. Tudo se resolveu. Também queriam taxar ainda mais os vinhos portugueses, mas resolveu-se. É esta experiência dos diplomatas na economia que leva antigos embaixadores e ex-ministros dos Estrangeiros a mudarem para o mundo empresarial?É uma tendência que já existe noutros países. Falo com colegas meus em Roma, que estão a atingir o limite de idade, e têm a perspectiva de passarem para uma empresa privada. É muito comum no Reino Unido os embaixadores saírem e determinadas empresas aproveitarem o seu network e know-how para contratarem-nos como consultores. Em França suponho que seja a mesma coisa, em Espanha talvez não tanto. É uma tendência nalguns países europeus aproveitar as mais-valias que alguns diplomatas e ex-ministros têm no campo económico e a rede de contactos que estabeleceram ao longo da sua vida. Na transição devia haver algum período de nojo?Talvez fosse adequado haver um período de nojo, não sei se de seis meses ou um ano, após a cessão de funções enquanto diplomata e a assunção de funções numa empresa.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU
Raimund Hoghe, aliás Minnelli
An Evening with Judy e Quartet, as duas mais recentes peças do coreógrafo alemão que podem ser vistas esta sexta-feira e amanhã no Rivoli, vão da depressão de duas vidas afundadas em álcool e comprimidos ao esplendor de luzes e confetti do musical. Judy Garland primeiro, Liza Minnelli depois: até hoje, ele não consegue ouvi-las sem ficar de lágrimas nos olhos. (...)

Raimund Hoghe, aliás Minnelli
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: An Evening with Judy e Quartet, as duas mais recentes peças do coreógrafo alemão que podem ser vistas esta sexta-feira e amanhã no Rivoli, vão da depressão de duas vidas afundadas em álcool e comprimidos ao esplendor de luzes e confetti do musical. Judy Garland primeiro, Liza Minnelli depois: até hoje, ele não consegue ouvi-las sem ficar de lágrimas nos olhos.
TEXTO: Raimund Hoghe (Wuppertal, 1949) tem todas as más memórias que podemos fazer decorrer das simples coordenadas do seu nascimento na Alemanha do pós-guerra (tipo: o sítio errado à hora errada), mais aquelas, intransmissíveis, que durante décadas, provavelmente até hoje, fizeram virar cabeças na sua direcção quando passava na rua e, depois, a partir de 1994, quando passou a atirar o corpo para a luta em cima do palco, em resposta à frase de Pier Paolo Pasolini da qual fez o seu slogan. Deformada por um parto difícil e pela ausência de medicação adequada, a sua coluna não é uma coluna “normal” – e mais anormal será à medida que o tempo continuar a passar e o avanço do diagnóstico pré-natal permitir erradicar definitivamente a deficiência como a mais indesejável das anomalias (“Não sou contra o aborto, mas sou contra a selecção de pessoas, porque isso é fazer o que o Terceiro Reich fez. Escolher não é humano. Se a minha mãe tivesse ‘escolhido’, talvez eu não tivesse nascido”, disse-nos em 2007, quando veio à Fundação de Serralves contar a história da sua luta num ciclo paralelo à exposição Anos 80: Uma Topologia). Não estaríamos outra vez a ter esta conversa sobre o coreógrafo alemão se An Evening with Judy (2013), a primeira das duas peças que este fim-de-semana traz ao Teatro Municipal do Porto – Rivoli no prolongamento do Dia Mundial da Dança (hoje, 21h30, Grande Auditório), não tratasse justamente do glorioso momento, ocorrido há muitos e bons anos, ainda o leão da Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) rugia, em que Raimund Hoghe encontrou uma alma gémea do tamanho de Judy Garland (1, 51 metros, para sermos mais precisos). Estaremos a romantizar, mas apenas porque não há outra maneira de olhar para esta peça em que se trata sempre da turbulenta história de amor entre o público e a menina que aos 12 anos calçou uns sapatos vermelhos para seguir por uma estrada de tijolos amarelos e cumprimentar O Feiticeiro de Oz e que aos 47, um casamento com Vincente Minnelli (em certo sentido o seu Frankenstein) e várias tentativas de suicídio depois, apareceu morta na casa-de-banho do apartamento que alugara em Londres, afundada em cirrose, depressão e comprimidos para dormir. Por algum motivo, aliás, as primeiras palavras que se ouvem, numa voz off monumental, são: “Thank you for being here. And I love you. ”Antes disso, claro, An Evening with Judy trata sobretudo da história de amor entre Raimund Hoghe, que na sua autobiografia, quando teve de se definir (escritor, actor, performer, dramaturgo, coreógrafo?), escreveu “corcunda”, e a starchild tornada box office draw a quem Louis B. Mayer, o patrão da MGM, chamava “a minha corcundinha”. Continua até hoje, essa história, assegura Raimund, que encontramos num hotel do Porto horas depois de uma viagem de avião em que veio a ouvir duas gerações de raparigas malditas, a mãe Judy Garland e a filha Liza Minnelli, e ficou mais uma vez “de lágrimas nos olhos”. “Gosto muito da Judy desde a minha infância. Na peça mostro um disco dela que me acompanha religiosamente desde então. De resto, já em 1980 – Ein Stück von Pina Bausch, a minha primeira grande peça para a Pina Bausch [durante uma década, Hoghe foi dramaturgo da coreógrafa alemã no Tanztheater Wuppertal], o Over the rainbow aparecia duas vezes: numa primeira versão gravada quando a Judy Garland ainda era jovem, e numa outra gravada já no final da vida. Dei esses dois discos à Pina – e agora uso-os eu noutro contexto”, diz ao Ípsilon. A paixão que tem por Judy Garland, acrescenta, não é bem do mesmo género da que teve por outras cantoras americanas ou francesas: “Saber que o patrão lhe chamava ‘minha corcundinha’ é tão forte para mim… Não, ela não tinha nem a beleza nem o glamour das outras estrelas de Hollywood, e é impossível eu não me identificar com isso. ”TragédiaTerceiro de uma série de retratos de cantores sem happy end – depois de Meinwärts (1990), o seu primeiro solo, a partir da vida do tenor romeno-alemão Joseph Schmidt, que foi perseguido pelos nazis e morreu em 1942 num campo de internamento para imigrantes ilegais na Suíça, um dia antes de lhe ter sido concedido um visto de trabalho; e de 36, Avenue Georges Mandel (2007), sobre a morte atrozmente solitária de Maria Callas em Paris, aos 53 anos –, An Evening with Judy parece um reencontro de Raimund Hoghe com a tragédia. Não é: “A tragédia das vidas deles não me interessa. Interessa-me a extraordinária qualidade musical dos três: deram tanto deles que ainda hoje ouvi-los cantar é invulgarmente comovente. Ouves um disco da Judy Garland e pensas: ‘Ok, ela não vai conseguir cantar outra música assim, pôs o coração todo aqui’. E depois a canção seguinte é igualmente arrebatadora. ”Certo, Raimund Hoghe não ignora que a tragédia é fundadora na vida dos três. Feio, baixíssimo, Joseph Schmidt passou ao lado da fulgurante carreira na ópera que a sua voz prometia porque media menos de 1, 52m (conta o site Music and the Holocaust: “Quando o maestro Leo Blech o ouviu cantar pela primeira vez, ficou profundamente comovido: ‘Pena não seres baixo’, disse-lhe. ‘Mas eu sou baixo’, respondeu Schmidt. ‘Não, tu não és baixo, tu és demasiado baixo’, retorquiu o maestro”). Paradigma mais-que-perfeito da diva do século XX, Maria Callas morreu sozinha – como uma sem-abrigo, argumentava Hoghe em 36, Avenue Georges Mandel, a peça que se sentiu forçado a fazer depois de uma visita ao hall da casa onde a soprano morreu de ataque cardíaco –, cumprindo o destino da frase que dissera uns anos antes (“É terrível ser a Maria Callas”). E depois há Judy Garland, nascida Frances Ethel Gumm em 1922, no Minnesota, filha de pais que faziam vida do vaudeville e que a medicavam para a pôr a trabalhar, tal como às irmãs – a Judy Garland que parecia grande de mais para protagonista de O Feiticeiro de Oz, que foi recauchutada para funcionar como a girl next door (já que a mais do que isso não podia aspirar) nos musicais de Minnelli, que foi uma estrela difícil, absentista e suicida e mesmo assim teve uma segunda vida na televisão, com o The Judy Garland Show, e nas salas de concertos, antes de se matar de vez. MúsicaAn Evening with Judy, o espectáculo que Hoghe faz caber inteiro no trolley com que entra e sai do palco de vestido preto, saltos altos, véu e óculos escuros (tal como 36, Avenue Georges Mandel cabia inteiro num cobertor da Cruz Vermelha), alimenta-se desses materiais biográficos (sobretudo de entrevistas, porque não está interessado “no que terceiros pensam acerca dela, apenas no que ela diz de si própria”), mas também de toda a fantasia inscrita nas canções dos discos guardados dentro dessa mala, uma fantasia que frequentemente a verdadeira vida de Judy contradiz. Mas se o espectáculo começa instalado nessa zona de apoteose e de aplauso que podia ter sido (mas não foi…) de conforto para Garland, como sublinha a intransponível distância entre as primeiras e as últimas versões de Over the rainbow, acaba colado ao luto por uma vida que não acabou como a actriz imaginava, na cozinha (porque as insónias tiveram isso de bom: fizeram-na aprender a cozinhar). Em certo sentido, porém, esta história tem uma continuação inesperada em Quartet (2014), que expande a reflexão de Hoghe acerca do preço do show-business, da ambivalência do estrelato e do que há por trás da lenda – uma continuação materializada no corpo do bailarino Takashi Ueno, que aparece na primeira peça “como convidado, como uma espécie de figuração da Liza Minnelli” em foco na segunda peça (amanhã, 21h30, Grande Auditório). Inicialmente pensada como uma dedicatória para (e com) os seus quatro bailarinos favoritos e mais fiéis – Ornella Balestra, Marion Ballester, Emmanuel Eggermont e Takashi Ueno – a partir dos quartetos de cordas de Schubert, Quartet evoluiu como todas as peças corais de Hoghe em função do que aconteceu nos ensaios (“Sou muito aberto. Muito do que acaba por entrar vem da música e do modo como os bailarinos reagem às minhas escolhas. É uma jornada: vamos juntos e eu descubro muitas coisas com eles, neles”, explica-nos). Mas também evoluiu em função do que aconteceu em An Evening with Judy, não só porque Hoghe não queria voltar a estar praticamente sozinho em palco como porque foi com Judy Garland que chegou a Liza Minnelli (“Claro que conhecia o Cabaret e o New York, New York, mas o resto não”). Há mais música em Quartet, nalguns casos sugerida pelos bailarinos: vozes divertidas como as das versões italianas de Girl, dos Beatles, ou These boots, de Nancy Sinatra, mas sobretudo vozes doridas como as da brasileira Dolores Duran, que um amigo português deu a conhecer a Hoghe e ele demorou anos a levar a sério (“Achei o nome tão estúpido, tão foleiro…”), da enorme Elaine Stritch, outra epifania recente, ou de Marianne Faithfull. “Há alguma coisa nessas vozes que fala da luta pela sobrevivência”, argumenta Hoghe, resumindo aquilo que escreveu sobre Judy Garland e que está em todas as entrelinhas de Quartet: “Interessam-me essas vozes de outro tempo. Têm qualidades que não existem nas vozes contemporâneas, que se gastam rapidamente, primeiro porque o marketing é impositivo e obriga os cantores a cantarem demasiado, e depois porque a televisão cria estrelas todas as semanas. ”As estrelas dele, Raimund, não se gastam nunca, embora morram relativamente cedo e ainda assim não deixem cadáveres bonitos (mas enfim, afinal isto é o entretenimento, e não há negócio como ele). Mais do que na maioria das outras peças do coreógrafo, há cor e ligeireza em Quartet, como num musical: “Acredito na felicidade (há flores em quase todos os meus espectáculos…), mas também conheço o outro lado da vida. Em 1999 criei um espectáculo a partir de cartas de amor, Lettere Amorose. Uma das cartas em que me baseei era de dois jovens africanos que sonhavam vir para a Europa agarrados às asas de um avião. Passaram estes anos todos e continua a ser uma tragédia dos nossos dias. ”No fundo, também é por isso que Raimund Hoghe quis ser estas três pessoas – Schmidt, Callas, Garland – pelo menos uma vez na vida. “Com o Joseph Schmidt não foi difícil porque ele era baixo e descrito como feio pelos jornais nazis. Com elas é mais difícil, por isso me limito a usar saltos altos, um lenço e uma saia. Não o faço por travestismo. Faço-o porque não quero nem consigo explicar a um bailarino o que sinto por estas pessoas. É a Judy que canta no Nasceu uma Estrela, embora não esteja na minha peça: ‘I’ll go my way by myself’. ”
REFERÊNCIAS:
Marine versus Jean-Marie: a Frente Nacional discute em público
Marine Le Pen critica pela primeira vez publicamente o pai, por comentários “maldosamente interpretados” como anti-semitas. (...)

Marine versus Jean-Marie: a Frente Nacional discute em público
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20150501223750/http://www.publico.pt/1639309
SUMÁRIO: Marine Le Pen critica pela primeira vez publicamente o pai, por comentários “maldosamente interpretados” como anti-semitas.
TEXTO: A estratégia de normalização da Frente Nacional de Marine Le Pen acabou de levar uma machadada precisamente numa altura em que ela precisava que o partido estivesse na sua forma mais respeitável, quando se esforça para negociar um grupo europeu de partidos anti-euro e anti-imigração, o que lhe daria mais verbas e relevância no Parlamento Europeu. Por isso, Marine, que herdou a liderança do partido de extrema-direita em 2011, viu-se obrigada a responder, publicamente, pelo comentário do seu pai dizendo que faria uma “fornada” com críticos, incluindo um judeu, e acusá-lo de ter cometido “um erro”. Jean-Marie, que é o presidente honorário da FN, parece não ter vontade de se calar e lembrou que tem o título de modo “vitalício”. Tudo começou quando Jean-Marie Le Pen comentou as críticas ao partido feitas por uma série de artistas e de outras personalidades – entre eles, a cantora Madonna, o humorista Guy Bedos, o antigo campeão de ténis Yannick Noah e o cantor (judeu) Patrick Bruel. Questionado sobre como responderia, Le Pen riu-se: “Da próxima vez, faremos uma fornada com eles. ”Marine Le Pen manteve a resposta pronta que o seu pai sempre tem perante acusações de racismo ou anti-semitismo: que ele não é racista nem anti-semita, e que estas interpretações são feitas pelos seus opositores com intenção de o denegrir. Embora dizendo-se “convencida de que o sentido dado às suas palavras vem de uma interpretação maldosa”, Marine ousou criticar o pai: dada a sua “longa experiência”, o facto de “não ter antecipado a interpretação que seria feita dessa formulação foi um erro político do qual a Frente Nacional vai sofrer as consequências”. Marine tentou, ainda, transformar a situação a seu favor: “Esta polémica pode ter um lado positivo, que é o de me permitir lembrar que a Frente Nacional condena do modo mais firme toda a forma de anti-semitismo. ”Mas o comentário é desastroso pelo alvo e pelo timing. Uma coisa é Le Pen falar do ébola como possível regulador do “problema da imigração em França” antes da votação para as europeias, e aí Marine ter-lhe-á chamado a atenção, em privado. Outra coisa é falar em “fornos” a propósito de um judeu precisamente na altura em que a filha precisa da aura de respeitabilidade que tem tentado dar ao partido para conseguir acordos com outros partidos europeus para formar um grupo no parlamento de Bruxelas. Pode até causar problemas com um partido que está na aliança inicial, o PVV holandês, de Geert Wilders, que tem uma postura anti-imigração, mas para quem o anti-semitismo é intragável (Wilders, político que começou com uma forte veia anti-islão, recebe apoio de Israel e há alguns anos recusava qualquer associação com Jean-Marie Le Pen, classificando-o como “horrível”). Em editorial, o diário Le Monde diz que Le Pen “lembra à sua filha de onde vem a Frente Nacional”. Le Pen pai já foi condenado por dizer, em 1987, que as câmaras de gás eram “um detalhe” na II Guerra – Marine Le Pen disse, por seu lado, em 2011, que os campos nazis eram “o supra-sumo da barbárie”. Associações anti-racismo já anunciaram que vão pedir que lhe seja retirada a imunidade parlamentar (Jean-Marie é um dos 24 eurodeputados da FN), para o acusar de anti-semitismo. Outros responsáveis da Frente Nacional, incluindo alguns que sempre lhe foram leais, criticaram o erro e até chegaram a aconselhar-lhe a reforma. O presidente honorário da FN não recuou. À filha, não disse “nada”: “Não tenho nada a dizer, o que tiver, direi no seio das instâncias da Frente Nacional”, cita o site da revista Le Point. Mas confessou ver as declarações da filha “um pouco como uma traição”. Mais lembrou ter o título “vitalício” de presidente honorário do partido e criticou quem na FN fizer uma interpretação dos seus comentários como anti-semitas: “Quem, no meu campo, fizer isso, é um imbecil”.
REFERÊNCIAS:
Étnia Judeu